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Ricardo Reali Taurisano
RESUMO Este trabalho procura destacar tendo por base a Retoacuterica de Aristoacutete-
les o papel das provas que se dizem ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo (ἔντεχνοι πίστεις)
ecircthos paacutethos e loacutegos nas Confissotildees de Agostinho de Hipona as quais para
muito aleacutem das simples tarefas de construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e ago-
niacutestica exercem papel filosoacutefico fundamental na obra do hiponense Para tanto
emreende-se primeiramente uma siacutentese propedecircutica do sistema retoacuterico aristo-
teacutelico seguida de consideraccedilotildees de caraacuteter teoacuterico sobre os trecircs gecircneros retoacutericos
nas Confissotildees judiciaacuterio deliberativo e epidiacutectico para for fim discorrer sobre
o papel das provas propriamente ditas
PALAVRAS-CHAVE Retoacuterica Agostinho Aristoacuteteles Confissotildees
ABSTRACT Based upon the Rhetoric of Aristotle this work intends to highlight
the role of the so-called ldquotechnical proofsrdquo or ldquoproofs of the artrdquo (ἔντεχνοι
πίστεις) ecircthos paacutethos and loacutegos in the Confessions of Augustine of Hippo
which far beyond the simple tasks of character building passions manipulation
or speech ornamentation for exclusively persuasive and agonistic purposes play
a fundamental role in the thought of the African philosopher To this end it first
undertakes a propaedeutic synthesis of the Aristotelian rhetorical system followed
by theoretical remarks on the three rhetorical genres in the Confessions forensic
deliberative and epideictic in order to deal at last with the roles of the proofs
themselves
KEYWORDS Rhetoric Augustine Aristotle Confessions
130
As provas da arte retoacuterica ecircthos paacutethos loacutegos
nas Confissotildees de Agostinho de Hipona
Ningueacutem ensina geometria assim
οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει
Aristoacuteteles
(Retoacuterica 1404a12)
Introduccedilatildeo
Diferentemente do trabalho que deu origem a este artigo1 cujo foco recaiu com peso
maior sobre a elocuccedilatildeo (elocutio) das partes retoacutericas a que mais se relacionava com o que se
entende hoje por ldquoestilordquo e que como se esforccedilou por demonstrar guarda potencial natildeo apenas
argumentativo mas sobremodo filosoacutefico este texto por sua vez pretende circunscrever-se aos
trecircs gecircneros de provas retoacutericas que Aristoacuteteles denomina ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo ecircthos paacutethos
e loacutegos e seu emprego nas Confissotildees Embora as figuras retoacutericas possam ser compreendidas
como argumentos em forma condensada fazendo parte igualmente das provas natildeo apenas por
seu potencial argumentativo mas tambeacutem por prestarem valioso auxiacutelio na construccedilatildeo eacutetica dos
caracteres e na movimentaccedilatildeo das paixotildees haacute de se concentrar aqui ainda que de modo bastante
sucinto nas ferramentas propriamente argumentativas segundo os fins e meios de cada um dos
trecircs gecircneros de provas teacutecnicas supracitados Para tanto contudo natildeo se poderaacute prescindir duma
breviacutessima e propedecircutica siacutentese do sistema retoacuterico aristoteacutelico que serviu de base para todas
as consideraccedilotildees empreendidas neste texto acerca da arte2 siacutentese que se faraacute antes do trata-
mento das provas retoacutericas nas Confissotildees
1 Trata-se da nossa tese de doutoramento (FFLCH-USP 2014) sob a orientaccedilatildeo do prof Moacyr A Novaes
(USP) intitulada O enigma do espelho a retoacuterica do silecircncio nas ldquoConfissotildeesrdquo de Agostinho de Hipona cujo
apecircndice (M) Ecircthos paacutethos loacutegos serviu de base para este texto a partir da sugestatildeo do prof Pedro Calixto
(UFJF) 2 Embora desnecessaacuteria uma tal justificativa pode-se argumentar em favor do recurso quase que exclusivo agrave
Retoacuterica de Aristoacuteteles pelo simples motivo de dar peso maior ao loacutegos mesmo quando trata das outras duas
provas o ecircthos e o paacutethos o que serve perfeitamente aos propoacutesitos deste artigo ao contraacuterio da obra retoacuterica de
Ciacutecero por exemplo que imprime destaque ao ecircthos em detrimento do loacutegos e do paacutethos Isso sem dizer do fato
de a obra retoacuterica de Aristoacuteteles ter servido de base a quase todos os tratados subsequentes sobre o tema inclusive
os contemporacircneos como os de Perelman-Tyteca Reboul Plebe e Emanuele Barthes Meyer entre outros
131
O sistema retoacuterico aristoteacutelico uma siacutentese
Natildeo constituindo um fim em si mesma a retoacuterica eacute apenas uacutetil (χρήσιμος) diz Aristoacute-
teles (1355b14)3 o que equivale a dizer que serve para algo ulterior tampouco se limita a algum
objeto especiacutefico de persuasatildeo (οὐ περί τι γένος ἴδιον) o que implica sua utilizaccedilatildeo em qual-
quer gecircnero de discurso em qualquer aacuterea em que seja necessaacuterio argumentar para algum fim
porque nenhuma arte pode ocupar-se do particular que eacute infinito (τὸ δὲ καθrsquo ἕκαστον ἄπειρον)
(1356b30-7) Assim sendo os temas de que trata a retoacuterica satildeo (1357a1-4) 1 temas passiacuteveis
de deliberaccedilatildeo (βουλευόμεθα) 2 temas para os quais natildeo haacute arte sistemaacutetica (τέχνας μὴ
ἔχομεν) ou seja que estatildeo fora do escopo dalguma ciecircncia ou teacutecnica 3 temas que se tratam
diante de pessoas comuns incapazes de efetuar ou acompanhar raciociacutenios loacutegicos elaborados
(οὐδὲ λογίζεσθαι πόρρωθεν) ou de contemplar uma visatildeo de conjunto (διὰ πολλῶν
συνορᾶν) E se os temas satildeo passiacuteveis de deliberaccedilatildeo satildeo igualmente controversos pois natildeo
se delibera senatildeo acerca do que aparente admitir (ao menos) dois modos de pensar (1357a4-5)
(περὶ τῶν φαινομένων ἐνδέχεσθαι ἔχειν ἀμφοτέρως) Portanto trata a retoacuterica de temas so-
bre os quais natildeo se tem certeza pois para os assuntos passados presentes ou futuros que de
modo indubitaacutevel foram (γενέσθαι) seratildeo (ἔσεσθαι) ou satildeo (ἔχειν) ningueacutem delibera (οὐδεὶς
βουλεύεσθαι) porque natildeo se discute acerca do certo apenas do duvidoso (ἀμφισβητήσιμος)
uma vez que nada se aprende do que jaacute eacute sabido explica o filoacutesofo
E assim como os temas tratados trecircs satildeo igualmente os tipos de ouvintes (τῶν
ἀκροατῶν) que de um modo ou de outro satildeo todos juiacutezes 1 aquele que ajuiacuteza (κριτής) das
coisas passadas (τῶν γεγενημένων) 2 o membro da assembleia (ἐκκλησιαστής) ou do con-
selho (βουλευτής) que julga das coisas futuras (τῶν μελλόντων) 3 ο espectador ou contem-
plante (θεωρός) que julga das coisas presentes (1358b1-6) Do que decorre serem trecircs tambeacutem
os gecircneros discursivos voltados respectivamente aos trecircs tipos diferentes de ouvintes (1368b6-
7) 1 judiciaacuterio (δικανικόν) que presume o juiacutezo dum magistrado (δικαστής) num tribunal
(δικαστήριον) 2 deliberativo (συμβουλευτικόν) que presume ou o membro da assembleia
(ἐκκλησία) ou do conselho (βουλή) oacutergatildeos legislativos sobremodo 3 epidiacutectico
(ἐπιδεικτικόν) ou demonstrativo que presume a presenccedila dum puacuteblico de espectadores
(θεωροί) seja para um panegiacuterico (λόγος πανηγυρικός) ou mesmo para uma conferecircncia
filosoacutefica (ἐπίδειξις) Dos trecircs gecircneros de discurso o judiciaacuterio volta-se predominante mas natildeo
3 As referecircncias agrave Retoacuterica de Aristoacuteteles se faratildeo pela ediccedilatildeo criacutetica da seacuterie Oxford Classical Texts anotada
e revista por Ross que teve como base a ediccedilatildeo de Bekker cotejada com outros manuscritos
132
exclusivamente ao que se denomina paacutethos o deliberativo ao ecircthos enquanto o epidiacutectico ao
loacutegos o que trocando em miuacutedos significa dizer 1 que nos discursos do gecircnero judiciaacuterio se
procura movimentar as paixotildees dos juiacutezes a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa que se quer
justa ou um juiacutezo desfavoraacutevel agrave causa adversaacuteria que se reputa injusta 2 que nos discursos
deliberativos procura-se construir um caraacuteter moral digno de admiraccedilatildeo respeito e sobretudo
confianccedila a fim de persuadir a assembleia ou o conselho acerca dum dado curso de accedilatildeo que
se julga proveitoso ou dissuadi-la de algo por reputaacute-lo inuacutetil ou nocivo o que natildeo se faz senatildeo
sobre o ecircthos uma vez tratar-se de algo completamente incerto o futuro cujas garantias se
esteiam apenas sobre a opiniatildeo dos ditos homens de bem e por fim 3 que nos discursos do
gecircnero epidiacutectico trata-se sobremaneira (mas natildeo exclusivamente) do proacuteprio discurso quando
se pretende louvar ou censurar seja o belo o bom ou seus contraacuterios o feio e o mau diante
dum auditoacuterio de espectadores que pode ser tambeacutem o de um universo determinado de leitores
Nos trecircs gecircneros descritos que se dirigem para o passado (judiciaacuterio) futuro (delibera-
tivo) e presente (epidiacutectico) faz-se preciso argumentar em favor da causa daquilo que se con-
sidera respectivamente justo uacutetil e belo ou seus contraacuterios E seja qual for o juiacutezo que se tenha
em mente necessaacuterio se faz o recurso agraves chamadas provas (πίστεις) retoacutericas que segundo
Aristoacuteteles podem ser ldquoteacutecnicasrdquo (ἔντεχνοι) ou ldquonatildeo-teacutecnicasrdquo (ἄτεχνοι)4 (1355b-1356a) As
primeiras se referem a tudo aquilo que eacute fruto do esforccedilo do orador dentro das regras da arte
(τέχνη) As segundas a tudo o que estaacute fora da arte natildeo tendo sido produzido pelo orador
como 1 testemunhos (μάρτυρες) 2 contratos (σύγγραφαι) 3 e ateacute confissotildees obtidas por
meio de tortura (βάσανοι) Portanto as provas teacutecnicas devem ser ldquodescobertasrdquo ou ldquoencontra-
dasrdquo (εὑρεῖν) as natildeo-teacutecnicas apenas utilizadas (χρήσασθαι) Evidente que as provas que mais
interessam agrave arte retoacuterica (ao menos agrave aristoteacutelica) satildeo antes as de caraacuteter teacutecnico (1356a1-4)
fruto do esforccedilo de invenccedilatildeo (εὕρεσις) do orador segundo o meacutetodo (διὰ μεθόδου) da arte
quais sejam 1 ecircthos (ἦθος) as provas eacuteticas que se atecircm ao caraacuteter do orador (αἱ ἐν τῷ ἤθει
τοῦ λέγοντος) 2 paacutethos (πάθος) as provas que objetivam pocircr o auditoacuterio num certo estado
de espiacuterito ao movimentar seus sentimentos aguccedilar suas paixotildees (αἱ ἐν τῷ τὸν ἀκροατὴν
διαθεῖναί πως) 3 loacutegos (λόγος) as provas que nem se voltam especificamente para a audi-
ecircncia tampouco para o orador e sim para o proacuteprio discurso (αἱ ἐν αὐτῷ τῷ λόγῳ) Pois bem
4 Os termos ἔντεχνοι e ἄτεχνοι ldquoteacutecnicasrdquo e ldquonatildeo-teacutecnicasrdquo que qualificam ldquoprovasrdquo (πίστεις) por vezes se
traduzem tambeacutem por ldquoartiacutesticasrdquo e ldquoinartiacutesticasrdquo ldquoartificiaisrdquo e ldquoinartificiaisrdquo ou ainda ldquointriacutensecasrdquo e ldquoextriacutense-
casrdquo
133
se as provas teacutecnicas satildeo destes trecircs gecircneros depreende-se como necessaacuterio para o ecircthos paacute-
thos e loacutegos respectivamente 1 o estudo dos caracteres (τοῦ θεωρῆσαι περὶ τὰ ἤθη) e das
virtudes (καὶ τὰς ἀρετάς) 2 o estudo das emoccedilotildees ou paixotildees da alma (θεωρῆσαι περὶ τὰ
πάθη) 3 e o estudo do raciociacutenio loacutegico ou silogiacutestico (τοῦ συλλογίσασθαι δυναμένου)
(1356a20)
Em cada um dos gecircneros retoacutericos predomina uma prova teacutecnica apropriada sem exclu-
satildeo das restantes assim como tarefas e objetivos especiacuteficos a saber 1 no gecircnero judiciaacuterio
cujo predomiacutenio do paacutethos jaacute se referiu o orador tem por tarefa (πράξις) a acusaccedilatildeo
(κατηγορία) e a defesa (ἀπολογία) e por objetivo ou finalidade (τέλος) ajuizar do justo (τὸ
δίκαιον) e do injusto (τὸ ἄδικον) acerca de fatos passados 2 no deliberativo por sua vez cujo
peso do ecircthos foi posto em destaque tem-se a tarefa da exortaccedilatildeo (προτροπή) ou da dissuasatildeo
(ἀποτροπή) acerca do proveitoso (τὸ συμφερόν) ou do prejudicial (τὸ βλαβερόν) com res-
peito aos eventos futuros 3 por fim no epidiacutectico cuja prova principal eacute o loacutegos tem-se por
tarefa o louvor (ἔπαινος) ou a censura (ψόγος) seja sobre o belo (τὸ καλόν) ou o bom (τὸ
ἀγαθόν) seja sobre o feio (αἰσχρόν) ou sobre o mau (τὸ κακόν) em relaccedilatildeo agraves coisas que satildeo
no presente
Argumentos ou provas de tipo demonstrativo igualmente predominam em cada um dos
gecircneros retoacutericos sem obviamente implicar a exclusatildeo dos demais Daiacute que 1 no judiciaacuterio
argumenta-se em favor do justo ou contra o injusto seja acusando ou defendendo por meio
predominantemente de entimemas (ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) o que natildeo exclui ne-
nhum dos demais recursos 2 no deliberativo por sua vez argumenta-se em favor ou contra
um determinado curso de accedilatildeo proveitoso ou prejudicial seja pela exortaccedilatildeo ou dissuasatildeo
acima de tudo por meio de exemplos (παραδείγματα) pois eacute a partir do que fizeram homens
ilustres do passado em feitos natildeo menos ilustres que se pode deliberar em vista dum futuro
incerto 3 por fim no gecircnero epidiacutectico argumenta-se a favor de ou contra uma determinada
qualidade virtude viacutecio tese ou pessoa seja louvando ou censurando de modo principal por
meio da amplificaccedilatildeo que pode ser positiva (αὔξησις) ou negativa (ταπείνωσις) sem que se
excluam os demais recursos probatoacuterios
Todo esse ldquosistemardquo retoacuterico elaborado ou desdobrado por Aristoacuteteles pode ser visuali-
zado com mais clareza na seguinte disposiccedilatildeo tabelar
Tabela I
134
GEcirc
NE
RO
S D
E
DIS
CU
RS
O
τρία
γέν
η τῶ
ν λό
γων
AUDITOacuteRIO ἀκροατής
JUIacuteZO E TEMPO κρίσις καὶ χρόνος
PROVAS
TEacuteCNICAS πίστεις ἔντεχνοι
TAREFAS E OBJETIVOS πράξεις καὶ τέλος
PROVA
DEMONSTRATIVA ἀπόδειξις
JUD
ICIAacute
RIO
δι
κανι
κόν
JUIZ-TRIBUNAL δικαστής
δικαστήριον
DO QUE DECORREU
NO PRETEacuteRITO περὶ τῶν γεγενημένων
PAacuteTHOS πάθος
ACUSACcedilAtildeO Ε DEFESA κατηγορία ἀπολογία
O JUSTO E O INJUSTO τὸ δίκαιον ἄδικον
ENTIMEMAS
E MAacuteXIMAS ἐνθυμήματα
γνῶμαι
DE
LIB
ER
AT
IVO
συ
μβου
λευτ
ικόν
LEGISLADOR-AS-
SEMBLEIA
CONSELHO βουλευτής
ἐκκλησία βουλή
DO QUE PODE OCORRER
NO FUTURO περὶ τῶν μελλόντων
EcircTHOS ἦθος
EXORTAR E DISSUADIR προτροπή ἀποτροπή
O UacuteTIL E O PREJUDICIAL τὸ συμφερόν βλαβερόν
EXEMPLOS παραδείγματα
EP
IDIacuteC
TIC
O
ἐπιδ
εικτι
κόν ESPECTADOR-
CONFEREcircNCIA θεωρός ἐπίδειξις
SOBRE O QUE Eacute
NO PRESENTE
(DA VIRTUDE DO DISCURSO) περὶ τῆς δυνάμεως
τοῦ λόγου
LOacuteGOS λόγος
LOUVOR E CENSURA ἔπαινος ψόγος
O BELO OU BOM
E O FEIO OU MAU τὸ καλὸν ἢ ἀγαθόν
τὸ αἰσχρὸν ἢ κακόν
AMPLIFICACcedilAtildeO αὔξησις ταπείνωσις
Importa notar que a coluna das ldquoprovas teacutecnicasrdquo deve ser compreendida do seguinte modo 1
no gecircnero judiciaacuterio preponderacircncia do paacutethos seguido de loacutegos e ecircthos 2 no deliberativo
preponderacircncia do ecircthos seguido de loacutegos e paacutethos 3 no epidiacutectico preponderacircncia do loacutegos
seguido de paacutethos e ecircthos Isso porque em todos os gecircneros se fazem necessaacuterias todas as trecircs
provas teacutecnicas mescladas com a precedecircncia de uma ou outra em relaccedilatildeo agraves restantes E o
mesmo se diga da coluna das provas ldquodemonstrativasrdquo que deve ser entendida do seguinte
modo 1 judiciaacuterio preponderacircncia dos entimemas e maacuteximas sem excluir exemplos e ampli-
ficaccedilotildees 2 deliberativo preponderacircncia dos exemplos sem omissatildeo de entimemas maacuteximas
e amplificaccedilotildees 3 epidiacutectico preponderacircncia da amplificaccedilatildeo seja pela auxese ou tapeinose
sem que se excluam maacuteximas exemplos e entimemas De fato Aristoacuteteles encerra o segundo
livro da retoacuterica dando destaque igual aos trecircs recursos ao dizer que em relaccedilatildeo ao loacutegos (περὶ
τὸν λόγον) ou seja no que tange agrave atividade do pensamento (διάνοια) tanto exemplos
(παραδείγματα) como entimemas (ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) se fazem igualmente
importantes (1403a34-35)
Embora Aristoacuteteles priorize sobremodo os fatos e a demonstraccedilatildeo reconhece a necessi-
dade do recurso aos outros gecircneros de provas que natildeo as exclusivamente apodiacutecticas uma vez
ter plena consciecircncia de que os adversaacuterios a elas recorrem muita vez sem escruacutepulos care-
cendo o orador de estar ciente de seu mecanismo ao menos para defender-se como se deve
135
pois seria esdruacutexulo (ἄτοπον) reconhece o filoacutesofo (1355a39-b2) se se considerasse vergo-
nhoso (αἰσχρόν) que o corpo natildeo pudesse defender-se a si mesmo mas que a mesma defesa
natildeo fosse facultada ao espiacuterito pela atividade mental-discursiva uma vez que o que caracteriza
o homem eacute muito mais a atividade intelectual que a fiacutesica5 Portanto embora desejasse intima-
mente restringir sua Retoacuterica ao tratamento das mateacuterias uacuteteis para o entimema (1354a5) que
eacute o silogismo retoacuterico como faz no primeiro livro segundo cada um dos gecircneros contudo uma
vez que cada um dos trecircs tipos de ouvintes relacionados respectivamente aos trecircs gecircneros dis-
cursivos eacute em si mesmo uma espeacutecie de juiz (κριτής) a quem cabe ajuizar seja do justo ou do
injusto do proveitoso ou do nocivo e do belo ou do feio numa palavra como a retoacuterica grosso
modo tem que ver com ldquojuiacutezosrdquo (ἕνεκα κρίσεώς ἐστιν ἡ ῥητορική) reconhece o filoacutesofo que
natildeo basta tornar o discurso apenas apodiacutectico (ἀποδεικτικός) ou criacutevel (πιστός) por meio das
provas exclusivamente demonstrativas (λόγος) como o entimema e os exemplos mas tambeacutem
saber como fazer com que o orador pareccedila ter um determinado caraacuteter (ἦθος) aleacutem de ser capaz
de pocircr os juiacutezes sejam quais forem num certo estado de espiacuterito (πάθος) Pelo que faz enorme
diferenccedila que o orador mostre-se possuidor de certas qualidades (τὸ ποίον τινα φαίνεσθαι τὸν
λέγοντα) e que seus ouvintes estejam dispostos de certo modo em relaccedilatildeo a ele pensando por
sua vez que ele tambeacutem esteja disposto de certo modo em relaccedilatildeo a eles No discurso delibe-
rativo eacute mais importante que o orador pareccedila ser portador dum caraacuteter ilibado confiaacutevel no
judiciaacuterio que os que iratildeo julgar estejam dispostos de modo favoraacutevel agrave causa e ao pleiteante
No epidiacutectico por sua vez os dois anteriores natildeo devem ser desprezados quando importa natildeo
apenas a construccedilatildeo dum certo caraacuteter mas tambeacutem a disposiccedilatildeo do auditoacuterio no que redunda
numa certa combinaccedilatildeo ecircthos-paacutethos que se deve submeter ao serviccedilo do loacutegos a fim de em-
preender o louvor ou a censura Em assim sendo maacuteximas (γνῶμαι) exemplos
(παραδείγματα) amplificaccedilotildees (αὐξήσεις) de toda sorte de par com as ferramentas da elocu-
ccedilatildeo (λέξις) como as figuras (σχήματα) e os tropos (τρόποι) se combinam natildeo apenas pela
beleza que podem conferir ao estilo mas principalmente por sua forccedila (δύναμις) argumentativa
o que os transforma em armas bastante eficazes tanto para o discurso de louvor como para o de
caraacuteter filosoacutefico
Conhecidos pois os gecircneros de discurso os auditoacuterios especiacuteficos de cada um junta-
mente com os tempos e juiacutezos das accedilotildees as provas teacutecnicas as tarefas objetivos e provas de-
monstrativas predominantes resta conhecer as trecircs grandes metas que devem ser cumpridas em
5 (1355a39-b2) ldquoἄτοπον εἰ τῷ σώματι μὴ δύνασθαι βοηθεῖν ἑαυτῷ λόγῳ δ᾿ οὐκ αἰσχρόν ὃ μᾶλλον
ἴδιόν ἐστιν ἀνθρώπου τῆς τοῦ σώματος χρείαςrdquo
136
cada uma das fazes de composiccedilatildeo do discurso 1 invenccedilatildeo (εὕρεσις ou inuentio) descobrir de
onde tirar as provas (ἐκ τίνων πίστεις ἔσονται) 2 disposiccedilatildeo (τάξις ou dispositio) ordenar
as partes do discurso isto eacute as provas encontradas na invenccedilatildeo (πῶς χρή τάξαι τὰ μέρη τοῦ
λόγου) 3 elocuccedilatildeo (λέξις ou elocutio) tratar do estilo (περὶ τὴν λέξιν) ou seja do modo de
apresentaccedilatildeo das ideias que foram encontradas e ordenadas (1403b6-8) Da primeira meta a
invenccedilatildeo ou descoberta das provas Aristoacuteteles tratou nos dois primeiros livros ao discorrer
sobre as mateacuterias adequadas ao entimema e aos exemplos de par com o que eacute uacutetil agrave construccedilatildeo
dos caracteres e o estudo detalhado das paixotildees da alma com vistas agrave afetaccedilatildeo dos juiacutezes Res-
taram apenas a disposiccedilatildeo das mateacuterias e a elocuccedilatildeo ou seja o tratamento do estilo o que o
filoacutesofo empreende fazer no terceiro e uacuteltimo livro da Retoacuterica
No que se refere ao estilo (περὶ τῆς λέξεως) Aristoacuteteles pondera que natildeo basta possuir
o quecirc se natildeo se souber como dizecirc-lo (ὡς δεῖ εἰπεῖν) (1403b16) o que se deve fazer sempre de
modo claro jaacute que a grande virtude da elocuccedilatildeo eacute a clareza (λέξεως ἀρετὴ σαφῆ εἶναι)
(1404b1-2) e o discurso que natildeo for claro natildeo cumpriraacute sua tarefa (1404b2-3) (οὐ ποιῆσει τὸ
ἑαυτοῦ ἔργον) Tendo as mateacuterias de persuasatildeo a seu dispor o orador deve cuidar da apresen-
taccedilatildeo desse material (λέξει διαθέσθαι) ou seja do estilo do discurso para entatildeo empregar a
forccedila (δύναμις) de accedilatildeo atualizando aquilo que se descobriu e figurou dum certo modo
(ὑπόκρισις) Essa atualizaccedilatildeo ou representaccedilatildeo do discurso hupoacutekrisis que em latim se deno-
mina actio refere-se agrave sua expressatildeo oral compreendendo questotildees de voz (φωνή) volume
(μέγεθος) harmonia (ἁρμονία) ritmo (ῥυθμός) e tom (τόνος) que pode ser agudo (ὀξύς)
grave (βαρύς) ou meacutedio (μέσος)
Por fim no que tange agrave disposiccedilatildeo das mateacuterias (περὶ τῆς τάξεως) cujo tratamento se
inicia no final do terceiro livro da Retoacuterica (1414a29) Aristoacuteteles resume em duas as partes
principais do discurso isso porque nem toda parte da divisatildeo tradicional respeitava a todo e
qualquer gecircnero 1 o estado da questatildeo (πρόθεσις) isto eacute a exposiccedilatildeo da causa (τὸ πρᾶγμα
εἰπεῖν) acerca de que se haacute de argumentar (περὶ οὗ) 2 a prova (πίστις) ou seja a demonstraccedilatildeo
(τὸ ἀποδεῖξαι) (1414a31-36) A divisatildeo tradicional por sua vez elenca as seguintes partes 1
proecircmio ou exoacuterdio (προοίμιον) 2 narraccedilatildeo (διήγησις) que se subdivide em 21 exposiccedilatildeo
da causa (πρόθεσις) e 22 refutaccedilatildeo (ἀντιδίκησις) 3 prova (πίστις) 4 peroraccedilatildeo ou conclusatildeo
(ἐπίλογος) destas contudo apenas o proecircmio o estado da questatildeo a prova e a peroraccedilatildeo se
aplicam a todos os gecircneros retoacutericos (1414b8-9)
Do que se disse natildeo se deve imaginar que o discurso filosoacutefico esteja fora do acircmbito
retoacuterico pois ainda que se trate do discurso de um soacute pretende sempre persuadir ou persuadir-
137
se de algo seja duma verdade ideia crenccedila ou praacutetica E todo aquele que deve ser persuadido
seja o proacuteprio autor do discurso ou um outro se faz indubitavelmente juiz (1391b11-12)
(ἁπλῶς κρίτης) Deste modo esteja-se disposto contra um oponente (πρὸς ἀμφισβητοῦντα)
ou contra uma teoria (πρὸς ὑπόθεσιν) eacute preciso uma vez e sempre recorrer agrave argumentaccedilatildeo
(τῷ λόγῳ ἀνάγκη χρῆσθαι) a fim de defender um ponto de vista ou destruir o seu contraacuterio
(1391b13-14) o que eacute apropriado ao gecircnero de discurso epidiacutectico acima de tudo (ὡσαύτως
ἐν τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) como se se estivesse argumentando diante de um verdadeiro juiz
(ὥσπερ πρὸς κρίτην) que no caso eacute o espectador (θεωρός) aquele que contempla observa
aprende agrave maneira dum disciacutepulo dum arguidor dialeacutetico ou do proacuteprio filoacutesofo se este estiver
apenas escrevendo
Os gecircneros retoacutericos nas Confissotildees consideraccedilotildees teoacutericas
Quando se estaacute diante de temas controversos que aceitam ao menos dois modos dife-
rentes de pensar como os temas tipicamente retoacutericos (1357a1-5) a demonstraccedilatildeo apodiacutectica
(ἀπόδειξις) raramente eacute possiacutevel diz Olivier Reboul (2000 p 27) natildeo sendo nada ldquocientiacuteficardquo
a exigecircncia de ldquorespostasrdquo de caraacuteter cientiacutefico como ocorre nas Confissotildees por exemplo
quando se quer falar das ldquocoisasrdquo de Deus Contudo entre a luz do que se pode apreender cien-
tificamente (e demonstrar apodicticamente) e a obscuridade da mais completa ignoracircncia acerca
do misteacuterio abissal do Ser encontra-se todo um universo de possibilidades retoacutericas cujo rei-
nado pertence ao argumento E se argumentar natildeo eacute senatildeo propor y para que se admita x como
bem o ilustra esse autor (ibid pp 91-2) que se poderia argumentar acerca do Ser enquanto
Ser (x) sem que se circunscrevesse a dizer de seus pseudopredicados (y) daquilo que apenas
eacute Recursos haacute poreacutem que permitem dizecirc-lo argumentando enquanto Ser ainda que de modo
ilusoacuterio obliacutequo silencioso a partir dos mecanismos que a arte retoacuterica oferece seja com o
auxiacutelio do ecircthos do paacutethos ou do loacutegos os trecircs gecircneros de provas ditas teacutecnicas
Um dos objetivos de Agostinho ao pretender falar de Deus tema indubitavelmente con-
troverso (ἀμφισβητήσιμος) na referida acepccedilatildeo aristoteacutelica isto eacute passiacutevel de disputa por ser
natildeo-apodiacutectico pelo que igualmente retoacuterico pode-se dizer seja pocircr em destaque primordial-
mente o loacutegos o que se faz sobretudo por meio dum discurso do gecircnero epidiacutectico em que
predomina a funccedilatildeo referencial da linguagem uma pseudoterceira pessoa discursiva melhor
compreendida como uma natildeo-pessoa ou seja aquilo de que se fala (περὶ οὗ λέγει) (1358b1)
Todavia jamais deixa de pretender comover (πάθος) poreacutem natildeo especificamente quando fala
138
com Deus ο ldquopara quemrdquo (πρὸς ὅν) (1388b1) pois o Ser divino enquanto segunda pessoa
discursiva eacute onisciente e embora deixe-se dalgum modo misterioso comover por causa de sua
misericoacuterdia por ser igualmente justo ele cujo juiacutezo eacute inexoraacutevel torna a tarefa quanto ao
paacutethos um tanto obstada Por isso os esforccedilos de Agostinho no sentido de comover devem vol-
tar-se nem sempre e de imediato a Deus e sim aos seus leitores o auditoacuterio cristatildeo a quem o
filoacutesofo confessa de fato dirigir-se (Conf 235) ldquoA quem estou relatando estas coisas Ora
natildeo a ti meu Deus e sim na tua presenccedila relato-as aos de meu gecircnero ao gecircnero humano por
pequenina a parcela dos que possam deparar com estes meus escritosrdquo6
Quer comover portanto aleacutem de fazer converter para Deus como se viu convertido
fazendo com que as almas se elevem movidas pela penitecircncia o que natildeo se faz senatildeo tendo em
vista uma accedilatildeo futura (περὶ τῶν μελλόντων) E se para falar de Deus carece dum loacutegos apro-
priado ao louvor (ἔπαινος) que eacute tambeacutem contemplaccedilatildeo (θεωρεῖν) contemplaccedilatildeo do Belo (τὸ
καλόν) e do Bem (τὸ ἀγαθόν) a comoccedilatildeo natildeo se faz sem os recursos do paacutethos tampouco
prescindindo do ecircthos a fim de edificar um caraacuteter penitente digno do arrependimento ou con-
versatildeo mental (μετάνοια) a que todo cristatildeo deve submeter-se antes de crer no Evangelho
como admoestava Cristo (Mc 114-15) ldquoArrependei-vos [= convertei-vos] e crede no Evange-
lhordquo (μετανοεῖτε καὶ πιστεύετε ἐν τῷ εὐαγγελίῳ) Portanto Agostinho carece tambeacutem de
construir sempre pelo discurso (διὰ τοῦ λόγου) seu ecircthos discorrendo acerca daquilo que de
edificante se passou consigo (περὶ τῶν γεγενημένων) (1358b5) para os ldquojuiacutezesrdquo (δικασταί)
do auditoacuterio cristatildeo pois seu preteacuterito precisa de ser desenodoado Destarte ao narrar suas
desventuras pregressas confessando-se a Deus e aos homens potildee em destaque seja um Tu
divino que eacute tambeacutem a terceira pessoa discursiva e seu referente pois eacute dele que se fala seja
um tu humano semelhante a si seu leitor Pelo que loacutegos ecircthos e paacutethos se fazem necessaacuterios
de modo temperado segundo as tarefas e os objetivos que se desdobram a cada passo da obra
Tendo pois construiacutedo um ecircthos confiaacutevel a partir de suas gestas pregressas segundo
a taacutebua de valores cristatildeos como a humildade ou a misericoacuterdia por exemplo pode Agostinho
direcionar daiacute em diante sua atenccedilatildeo para o futuro ao modo do gecircnero deliberativo a fim de
comover as almas exortando-as (προτρέπω) seja a voltar-se para Deus o Fim uacuteltimo ou Bem
supremo que se louva pelos recursos do loacutegos seja dissuadindo-as (ἀποτρέπω) de seguir o
caminho do mal que equivale a um afastamento deste mesmo Fim uacuteltimo o que eacute tambeacutem
tarefa do paacutethos quando entatildeo o discurso potildee em destaque a segunda pessoa requerendo um
6 (Conf 235) ldquoCui narro haec neque enim tibi deus meus sed apud te narro haec generi meo generi
humano quantulacumque ex particula incidere potest in istas meas litterasrdquo
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domiacutenio sobre as paixotildees a fim de conduzir o auditoacuterio ao objetivo (τέλος) almejado que
como se disse eacute sempre futuro (περὶ τῶν μελλόντων) Todavia se natildeo se delibera tendo em
vista o fim que se persegue (οὐ περὶ τοῦ τέλος) em conformidade com o que diz Aristoacuteteles
e sim aquilo que leva ateacute ele (ἀλλὰ περὶ τῶν πρὸς τὸ τέλος) (1352a15-19) ou seja os meios
os quais por sua vez residem nas accedilotildees (κατὰ τὰς πράξεις) tem-se como sequecircncia necessaacuteria
que 1 o uacutetil serve a um propoacutesito ulterior um fim e que 2 se o fim for bom o uacutetil natildeo apenas
levaraacute a esse bem mas seraacute tambeacutem de algum modo bom ainda que mediatamente e em menor
grau Daiacute que natildeo apenas o uacutetil em favor de que se delibera seja bom mas tambeacutem a praacuteksis
contraacuteria o seja a saber a rejeiccedilatildeo do nocivo do inuacutetil E com efeito seja para Aristoacuteteles ou
Agostinho o Bem (ἀγαθόν) uacuteltimo ou supremo pode ser definido como sendo aquilo que se
deve buscar (αἱρετόν) em vista de si mesmo (αὑτοῦ ἕκενα) e natildeo de algo ulterior (καὶ μὴ
ἄλλου) (1363b12-14) Esse Fim (τέλος) que coincide com o Bem supremo eacute aquilo em vista
de que (οὗ ἕνεκα) todo o resto (τὰ ἄλλα) se faz (1363b16-17) Em se admitindo com o autor
da Retoacuterica que esse Fim uacuteltimo embora sendo desejado natildeo seja objeto imediato de delibe-
raccedilatildeo e sim as accedilotildees (πράξεις) por meio de que se possa chegar a ele percebe-se sem muito
esforccedilo que as deliberaccedilotildees acerca deste Fim chame-se eudaimoniacutea ou Ser supremo fazem-se
sobremodo a partir de accedilotildees que podem ser virtuosas quando entatildeo se aproxima do objetivo
ou viciosas quando dele se afasta restando manifesto e inconteste o potencial tanto do ecircthos
como do paacutethos no tratamento daquilo que para Agostinho se traduz em princiacutepio pela uita
beata e posteriormente pelo Saacutebado eterno seja nas quatro virtudes cardeais justiccedila tempe-
ranccedila prudecircncia e coragem ou nas trecircs teologais feacute esperanccedila e caridade a serem praticadas
nesta vida tendo em vista o Bem uacuteltimo e supremo Deus seja por outra na comoccedilatildeo necessaacuteria
das almas que se deve aproximar desta mesma uita beata ou afastar da uita misera sem perder
de vista o fim uacuteltimo que se almeja
E se o deliberativo tem sua funccedilatildeo na exortaccedilatildeo tampouco se faz ausente da obra o
gecircnero judiciaacuterio que contempla sobremodo accedilotildees de acusaccedilatildeo (κατηγορία) e de defesa
(ἀπολογία) (1358b) De fato que faz Agostinho na parte dita biograacutefica da obra enquanto
narra suas desventuras preteacuteritas senatildeo acusar-se de seus erros como a experiecircncia entre os
maniqueus entre os ceacuteticos ou mesmo as aventuras ditas libidinosas em Cartago ou entatildeo
fazer a apologia da Graccedila divina da continecircncia da conversatildeo de sua matildee (ao contraacuterio do pai
que ele prefere acusar) Acusaccedilatildeo e defesa portanto seja de atos seus preteacuteritos (περὶ τῶν
γεγενημένων) (1358b5) seja de doutrinas ou ideias que reputa natildeo apenas inimigas do cami-
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nho que leva ao Fim uacuteltimo por ele eleito mas tambeacutem antagocircnicas agrave proacutepria concepccedilatildeo des-
posada deste Ser supremo como o dualismo maniqueu por uma ou o ceticismo de tipo neoa-
cadecircmico por outra que perigosamente ameaccedilava uma das proacuteprias virtudes teologais a natildeo
dizer duas feacute e a esperanccedila por meio duma descrenccedila radical na possibilidade de acesso a
noccedilotildees fundamentadas acerca do verdadeiro
E se se podem perceber nuanccedilas do deliberativo e do judiciaacuterio na exortaccedilatildeo ou dissu-
asatildeo na acusaccedilatildeo e na defesa muito mais no caso do gecircnero predominante expresso pelas Con-
fissotildees o epidiacutectico que segundo Aristoacuteteles compreende tanto o louvor (ἔπαινος) como a
censura (ψόγος) (1358b12-3) De fato que faz Agostinho ao longo das Confissotildees senatildeo cen-
surar o que afasta de Deus louvando o que dele aproxima o homem censurar o pecado lou-
vando seu contraacuterio as virtudes fazer o elogio da vida feliz (beata uita) vituperando seu
oposto a infeliz (misera) E mesmo quando censura seu objetivo natildeo eacute senatildeo louvar louvar o
que se edifica como antipodal daquilo que se estaacute censurando pois natildeo se trata de discorrer
sobre o viacutecio sobre o torto sobre o caminho errado que se natildeo deve percorrer numa palavra
natildeo se trata de discorrer sobre o mal porque ele natildeo existe (entenda-se o mal ontoloacutegico) Ao
contraacuterio trata-se de louvar o que Eacute o Ser por excelecircncia Deus e toda a sua obra cujo paro-
xismo natildeo eacute outro senatildeo o momento em que cria o homem Paradoxal seria pois limitar-se ao
vitupeacuterio o que equivaleria a ressaltar apenas e tatildeo somente aquilo que natildeo possui existecircncia
real o mal ou antisser7 como quem escrevesse um livro sobre o que natildeo eacute As Confissotildees
portanto empreendem sobretudo um discurso de louvor que se bem pode denominar filosofia
do louvor a qual se enquadra perfeitamente no gecircnero epidiacutectico cuja tocircnica eacute dada pelo loacutegos
enquanto referente aquilo de que se fala (περὶ οὗ λέγει) (1358b1) referente de muacuteltiplos sen-
tidos que se pode compreender natildeo apenas como a Palavra que eacute Deus mas tambeacutem a palavra
de Deus a palavra sobre a palavra de Deus a palavra sobre o Deus que eacute Palavra e profere
palavras embora esse mesmo referente enquanto Verbo divino seja inefaacutevel donde ser neces-
saacuterio que esse loacutegos seja tambeacutem linguagem nos recursos retoacutericos precisos a que se diga o
indiziacutevel
Todos os trecircs gecircneros portanto prestam auxiacutelio reciacuteproco pois quem louva no presente
deve fazecirc-lo tambeacutem por meio das lembranccedilas do passado (ἀναμιμνήσειν τὰ γενόμενα) ou das
conjecturas e esperanccedilas futuras (προεικάζειν τὰ μέλλοντα) e o justo por sua vez objeto das
reflexotildees judiciaacuterias pode igualmente ser feio ou belo uacutetil ou inuacutetil mateacuteria dos outros dois
7 O que de esdruacutexulo possa haver neste composto se deve agraves novas regras do Acordo Ortograacutefico de 1990 O
que se quis expressar eacute o contraacuterio do ser ldquoanti-serrdquo que natildeo mais se grafa assim com hiacutefen
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gecircneros assim como uacutetil e o inuacutetil mateacuteria de deliberaccedilatildeo que podem ser justos ou seu con-
traacuterio belos ou natildeo ou ainda o bom e o mau que podem muito bem ser inuacuteteis ou natildeo justos
ou natildeo em conformidade com o que diz Aristoacuteteles justificando assim a mistura dos gecircneros
retoacutericos (1358b27-1359a4) Poreacutem o gecircnero epidiacutectico parece ser o mais completo dos trecircs
uma vez nem focar demasiado no passado como o judiciaacuterio tampouco no futuro como o
deliberativo ao contraacuterio ao discorrer acerca do presente (ὁ παρὼν χρόνος) louvando ou
censurando as coisas que de fato satildeo (κατὰ τὰ ὐπάρχοντα) eacute-lhe permitido voltar-se tanto agraves
reminiscecircncias preteacuteritas quanto ao que pode vir a ser como se percebe nitidamente do primeiro
ao derradeiro livro das Confissotildees que nem se limitam a perscrutar o passado tampouco a
especular esperanccedilosamente sobre o futuro ou mesmo sobre o presente na investigaccedilatildeo do
proacuteprio rememorar quando entatildeo empreendem o louvor do que eacute foi e haacute de ser de par com o
do que sempre e indefectivelmente eacute
Uma uacuteltima palavra acerca da retoacuterica se faz necessaacuteria antes de voltar a atenccedilatildeo para
os trecircs gecircneros de provas teacutecnicas nas Confissotildees Quando se propotildee apresentar uma resposta
diz Michel Meyer (2010 p 53) a retoacuterica tende a ocultar o problemaacutetico fazendo com que a
questatildeo de base subjacente a todo discurso questatildeo em torno de que se reuacutenem ou dispersam
as partes pareccedila resolvida No entanto isso de modo nenhum eacute o que se percebe na retoacuterica
filosoacutefica de Agostinho que opera agraves avessas natildeo projetando de modo nenhum esconder o
problemaacutetico e sim permitindo lidar com ele dizendo-o embora sua insoluacutevel inefabilidade E
de fato se se tome por base a proacutepria definiccedilatildeo da retoacuterica elaborada pelo mesmo Meyer (2012
p 21) como sendo a negociaccedilatildeo entre a distacircncia criada por um dado problema que se constitui
sua proacutepria medida percebe-se no que tange ao Ser natildeo haver distacircncia entre interlocutores
para quem a sua inefabilidade eacute paciacutefica quer se o identifique com a Divindade cristatilde ou natildeo
E em natildeo havendo essa distacircncia qual a finalidade da retoacuterica sendo ela a suposta negociaccedilatildeo
que se estabelece em funccedilatildeo dum dado problema que se mede exatamente por essa distacircncia
inexistente Logo em natildeo havendo uma distacircncia que se constituiacutesse a medida do problemaacutetico
desnecessaacuterio seria argumentar inexistindo o problema Contudo isso se refere de modo espe-
cial agraves retoacutericas forense e deliberativa natildeo agrave epidiacutectica e menos ainda a epidiacutectica com finali-
dade filosoacutefica como se daacute no caso de Agostinho Nas Confissotildees a distacircncia que se quer
negociar eacute a que se supotildee entre o conhecido desconhecimento de Deus e seu desconhecido
conhecimento ou seja a distacircncia entre o nada que se pode conhecer de Deus e o tudo que se
desconhece entre o nada que dele se pode dizer e o tudo que se natildeo diz E como essa distacircncia
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eacute inegociaacutevel resta agrave retoacuterica simular a edificaccedilatildeo duma estrutura especial a linguagem per-
mitindo que pela proacutepria expressatildeo do paradoxo do estranhamento da perplexidade se diga
sem dizer e se natildeo diga dizendo Numa palavra a retoacuterica permite que Agostinho estique a
corda do arco de seu dizer para aleacutem da tensatildeo do compreensiacutevel apodiacutectico para aleacutem do
alcance da razatildeo que seja capaz carreando o leitor consigo de tangenciar o suprarracional a
natildeo dizer irracional pois natildeo desprovido de razatildeo e sim muito aleacutem dela
A primeira das provas da arte ecircthos
Aleacutem das provas loacutegicas que envolviam mateacuterias e meacutetodos cujo apelo se voltava pri-
mordialmente a natildeo dizer exclusivamente para a razatildeo a retoacuterica reconhecia outros meios de
prova pois se dera conta havia muito de que as pessoas natildeo satildeo apenas dotadas de capacidade
racional mas tambeacutem de sentimentos e de vontade pelo que se fazia necessaacuterio lidar com elas
natildeo como deveriam ser mas como realmente eram lembram Corbett e Connors (1999 p 72)
Destarte tomando por base a definiccedilatildeo aristoteacutelica de que a retoacuterica eacute a arte de descobrir todos
os meios possiacuteveis de persuasatildeo8 torna-se oacutebvio o recurso a tudo aquilo que se comprove efi-
ciente para esse fim Neste sentido afianccedilam esses autores o apelo eacutetico pode ser mais eficaz
que o apelo agrave razatildeo pois
mesmo o mais engenhoso e sensato apelo agrave razatildeo pode fracassar diante de ouvidos
amoucos se a audiecircncia reagiu desfavoravelmente ao caraacuteter do orador O apelo eacutetico
eacute especialmente importante no discurso retoacuterico porque aqui estamos lidando com
assuntos acerca dos quais eacute impossiacutevel ter-se certeza absoluta e em que as opiniotildees
satildeo divididas
Com efeito o ecircthos prova teacutecnica que se erige a partir do caraacuteter moral do orador segundo
reconhecia Aristoacuteteles (1356a13) constitui-se no meio mais eficaz de prova (κυριωτάτην ἔχει
πίστιν τὸ ἦθος)
Quintiliano por sua vez em suas Instituiccedilotildees Oratoacuterias (3813) adotando integral-
mente a teoria aristoteacutelica argumenta que dos trecircs gecircneros de discurso o deliberativo era o que
mais necessitava do apelo eacutetico ou seja o discurso que mais se apoiava no caraacuteter do orador
que ele denominava auctoritas
Nas deliberaccedilotildees poreacutem a autoridade eacute o que possui maior valor Com efeito natildeo
apenas deve ser considerado muitiacutessimo prudente como tambeacutem muitiacutessimo virtuoso
todo aquele que deseje que todos acreditem nos seus pensamentos acerca das coisas
8 (1355b25-6) ldquoSeja entatildeo a retoacuterica a faculdade de considerar acerca de cada coisa o que eacute possivelmente
persuasivordquo (ἔστω δὴ ἡ ῥητορικὴ δύναμις περὶ ἕκαστον τοῦ θεωρῆσαι τὸ ἐνδεχόμενον πιθανόν)
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proveitosas e dignas de honra [] natildeo haacute quem negue que as deliberaccedilotildees satildeo feitas
segundo os caracteres dos oradores9
Em conformidade com o que se argumentou um pouco antes a partir das consideraccedilotildees do
proacuteprio Aristoacuteteles acerca da mistura de gecircneros retoacutericos (1358b27-1359a4) sobre a predomi-
nacircncia do gecircnero epidiacutectico nas Confissotildees eacute perceptiacutevel natildeo apenas a importacircncia do apelo
eacutetico que natildeo eacute das menores por tratar-se duma obra primordialmente na primeira pessoa e
que sob certo ponto de vista quer falar de si mas principalmente pelo que se disse acerca de
um dos objetivos da obra de caraacuteter ldquodeliberativordquo ou antes de caraacuteter ldquopastoralrdquo de mover
as almas para Deus (conuersio ad deum) ao modo dum loacutegos protreacuteptico afastando-as do pe-
cado e de tudo que as manteacutem distantes do Bem (auersio a bono) objetivo que se cumpre
escorado no caraacuteter eacutetico que se esforccedilou por burilar ao longo primordialmente dos livros ditos
autobiograacuteficos da obra De fato natildeo obteacutem ecircxito na pretensatildeo de exortar (προτρέπω) para
Deus senatildeo aquele que se deixou dissuadir (ἀποτρέπω) do caminho do pecado que compro-
vou sua humildade (humilitas) na aceitaccedilatildeo natildeo do poder de seu livre-arbiacutetrio e sim da Graccedila
divina cujas Justiccedila e Misericoacuterdia se amalgamam na Sabedoria una e indivisiacutevel do Ser ao
inveacutes de se anularem pela contradiccedilatildeo Natildeo se trata de reconhecer-se purificado trata-se mui-
tiacutessimo ao contraacuterio de reconhecer-se pecador carente da Graccedila e incapacitado de autossalva-
ccedilatildeo numa palavra trata-se de diminuir-se ao modo do ldquoesvaziamentordquo (κένωσις) de Cristo
que embora possuindo uma forma divina (ἐν μορφῇ θεοῦ) esvaziou-se a si mesmo segundo
Paulo assumindo uma forma de escravo e fazendo-se semelhante aos homens pelos quais se
humilhou e obedientemente deixou-se matar na cruz10 Esse o ecircthos cristatildeo portador das virtu-
des dignas de imitaccedilatildeo invertidas quanto pudessem parecer a um auditoacuterio pagatildeo da eacutepoca
para o qual nem a misericoacuterdia tampouco a humildade eram considerados valores morais dese-
jaacuteveis e sim fraquezas despreziacuteveis
O orador persuade por seu caraacuteter moral explicava Aristoacuteteles (1356a5) quando seu
discurso eacute de tal modo elaborado que seja capaz de tornaacute-lo digno de credibilidade um homem
em quem pareccedila ser possiacutevel confiar Essa credibilidade contudo natildeo se constroacutei por meio de
elementos extratextuais de ideias preacute-concebidas acerca da conduta eacutetica do orador e sim atra-
veacutes do discurso (1356a8) donde ser considerado o ecircthos uma prova de caraacuteter teacutecnico fruto da
9 Inst oratoriae (3813) ldquoValet autem in consiliis auctoritas plurimum nam et prudentissimus esse haberique
et optimus debet qui sententiae suae de utilibus atque honestis credere omnes uelit [] consilia nemo est qui
neget secundum mores darirdquo 10 Paulo (Fl 25-8) ldquoΤοῦτο φρονεῖτε ἐν ὑμῖν ὃ καὶ ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων οὐχ
ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ ἀλλὰ ἑαυτὸν ἐκένωσεν μορφὴν δούλου λαβών ἐν ὁμοιώματι ἀνθρώπων γενόμενοςmiddot καὶ σχήματι εὑρεθεὶς ὡς ἄνθρωπος ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν γενόμενος ὑπήκοος μέχρι θανάτου θανάτου δὲ σταυροῦrdquo
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arte Isso se daacute explica o filoacutesofo porque quando se estaacute tratando de temas de caraacuteter geral via
de regra a confianccedila se estabelece sobre as opiniotildees das pessoas cujo valor eacute notoacuterio poreacutem
quando os temas satildeo incertos duvidosos (τὸ ἀμφιδοξεῖν) aiacute entatildeo como que desprovido de
alternativas resta ao auditoacuterio tatildeo soacute a confianccedila quase que total e irrestrita (παντελῶς) na-
queles cujos caracteres ou comprovou-se destacar-se ou lograram aparentar fazecirc-lo E sobre
que versam as Confissotildees em linhas gerais como jaacute se apontou antes senatildeo sobre o tema natildeo-
apodiacutectico por excelecircncia Deus Donde ser liacutecito dizer que pelo prisma da retoacuterica Agostinho
empreende um enorme esforccedilo de construccedilatildeo dum ecircthos apropriado a falar de Deus E de fato
se se pretende falar de tema natildeo apenas duvidoso retoacuterico mas inefaacutevel como o Ser de que
modo evadir-se do estribo do ecircthos Se o tema fosse apodiacutectico o caraacuteter do orador talvez
restasse menos relevante poreacutem natildeo num tema em que as provas demonstrativas satildeo pratica-
mente inexistentes
Para ressaltar o caraacuteter moral de algueacutem que se queira elogiar seja o do proacuteprio orador
ou natildeo lembra Aristoacuteteles (1367b22-27) eacute preciso associar as suas accedilotildees (as quais se empre-
ende louvar) agraves suas intenccedilotildees a fim de demonstrar seu valor porque o louvor (ἔπαινος) se tira
das accedilotildees (ἐκ τῶν πράξεων) desde que este aja em conformidade com suas determinaccedilotildees
morais (κατὰ προαίρεσιν) E se o homem de valor age segundo suas proacuteprias determinaccedilotildees
depreende-se que o homem cujo valor eacute nulo aja determinado isto eacute conduzido pelo destino
pela sorte (ἀπὸ τύχης) e que o homem cujo valor eacute repreensiacutevel exemplo que o filoacutesofo natildeo
daacute mas cujo raciociacutenio permite avanccedilar agiria tambeacutem motivado por suas determinaccedilotildees mo-
rais as quais contudo seriam maacutes O que importa no que tange ao ecircthos eacute que se deve mostrar
que aquele que se estaacute louvando age de acordo com suas determinaccedilotildees e natildeo ao acaso o que
lhe tiraria todo o meacuterito meacuterito que caberia entatildeo agrave fortuna (τύχη) uma vez que as accedilotildees natildeo
praticadas de modo voluntaacuterio natildeo satildeo meritoacuterias em conformidade com o que Agostinho tam-
beacutem admitia11 Portanto o conselho de Aristoacuteteles ao orador que quer construir o seu proacuteprio
ecircthos ou o de algum outro eacute tornar todas as accedilotildees possiacuteveis inclusive as decorrentes da sorte
mdash o que natildeo seria nada honesto admite o filoacutesofo mdash fruto do meacuterito daquele que se quer
enaltecer o que seria sinal de homem resoluto decidido (σημεῖον ἀρετῆς εἶναι προαιρέσεως)
No entanto esse conselho natildeo apenas natildeo eacute seguido por Agostinho e pelo discurso cristatildeo de
modo geral como ao reveacutes o exato oposto eacute o que se potildee em praacutetica ao atribuir-se tudo agrave
Graccedila divina agrave bondade preexistente daquele que natildeo precisou de nenhuma das criaturas que
criou as quais jamais fizeram por merecer o dom da vida (Conf 1311) ldquoPorque antes que eu
11 O livre arbiacutetrio (11430101) ldquoIn uoluntate meritum sitrdquo
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existisse existias tu e eu nem existia para que me concedesses que eu existisserdquo12 Isso eacute feito
contudo natildeo em detrimento do ecircthos da construccedilatildeo dum caraacuteter digno de louvor e fidedigno
e sim para construir um caraacuteter cristatildeo ou seja um caraacuteter natildeo pautado pela taacutebua de valores
eacuteticos claacutessicos que atribuiacutea grande peso agrave gloacuteria agrave honra ao denodo guerreiro e agrave justiccedila
inflexiacutevel e fria da lei13 e sim para destacar o homem jaacute de tipo medieval manso e humilde de
coraccedilatildeo misericordioso ao ponto de voltar a outra face numa palavra homem cuja honra estava
na cruz e no sangue de seu Salvador e para o qual ldquoo insensato de Deusrdquo era ldquomais saacutebio que
os homens e o fraco de Deus mais forte que os homensrdquo14 O ecircthos pois que se quer construir
eacute o do homem de feacute que se deixa conduzir pela matildeo de Deus na praacutetica das virtudes ditas
teologais feacute esperanccedila e caridade (πίστις ἐλπίς ἀγάπη) (1Cor 1313) O homem comumente
se orgulha das coisas que faz por si proacuteprio (τοῖς διrsquo αὐτόν) lembra Aristoacuteteles mas natildeo se
orgulha do que o destino lhe trouxe (διὰ τύχην) (1368a3-4) Agostinho bastante ao contraacuterio
natildeo apenas natildeo se orgulha do que fez mas se arrepende amargamente preferindo ao inveacutes da
honra agradecer a Deus todo o bem que lhe sucedeu por seu intermeacutedio divino ldquoe assim Se-
nhor apagaste todos os meus merecidos males para que natildeo retribuiacutesses agraves minhas matildeos nas
quais te deixei e te antecipaste a todos os meus merecidos bens para que retribuiacutesses agraves tuas
matildeos com as quais me fizesterdquo15
Destarte das trecircs qualidades independentes de demonstraccedilatildeo (ἔξω τῶν ἀποδείξεων)
que Aristoacuteteles aponta (1378a) como necessaacuterias ao orador ainda que em aparecircncia somente a
fim de que seja convincente o que de modo principal se refere agraves assembleias ou ao conselho
instacircncias tiacutepicas de deliberaccedilatildeo na Greacutecia antiga 1 prudecircncia ou bom-senso (φρόνησις) 2
excelecircncia moral (ἀρετή) e 3 boa disposiccedilatildeo (εὔνοια) nenhuma delas guarda nas Confissotildees
a importacircncia que o estagirita lhe atribui a natildeo ser que se considerem as virtudes ditas teologais
como pertencentes ao rol das aretaiacute aristoteacutelicas o que seria no miacutenimo um grave anacronismo
Por fim a Retoacuterica destaca o papel do ecircthos na disposiccedilatildeo das mateacuterias (τάξις) de modo
especiacutefico no proecircmio (exordium) Nos discursos do gecircnero judiciaacuterio por exemplo aquele que
se defende (ἀπολογουμένῳ) deve fazecirc-lo logo no proecircmio (πρῶτον) antes da acusaccedilatildeo ao
contraacuterio de quem acusa que deve fazecirc-lo no final (τῷ ἐπιλόγῳ) porque aquele que defende
deve construir seu ecircthos no iniacutecio antes da acusaccedilatildeo (πρὸς τὴν διαβολήν) (1415a29-30) a
12 Confissotildees (1311) ldquoquia et priusquam essem tu eras nec eram cui praestares ut essemrdquo 13 Em conformidade com a ideia veiculada pela maacutexima romana ldquodura sed lexrdquo 14 Paulo (1Cor 121-25) ldquoὅτι τὸ μωρὸν τοῦ θεοῦ σοφώτερον τῶν ἀνθρώπων ἐστὶν καὶ τὸ ἀσθενὲς τοῦ
θεοῦ ἰσχυρότερον τῶν ἀνθρώπωνrdquo 15Confissotildees (1311) ldquoEtenim domine deleuisti omnia mala merita mea ne retribueres manibus meis in
quibus a te defeci et praeuenisti omnia bona merita mea ut retribueres manibus tuis quibus me fecistirdquo
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fim de livrar-se de todo impedimento ou embaraccedilo como faz Agostinho nas Confissotildees utili-
zando-se dos primeiros livros ditos biograacuteficos para tanto Se o acusador deve criar o precon-
ceito contra o acusado no fim para que permaneccedila bem presente na memoacuteria dos juiacutezes o
defendente deve desvencilhar-se do preconceito logo no iniacutecio a fim de que seus argumentos
satildeo sejam prejudicados pela imagem da pecha moral que traz consigo Natildeo eacute apenas para o
ecircthos que o proecircmio eacute importante mas tambeacutem para o paacutethos pois eacute preciso tornar o auditoacuterio
bem disposto em relaccedilatildeo ao orador se se estaacute defendendo ou tornaacute-lo indisposto contra a outra
parte (1415a-34-36) se se estaacute acusando Para isso conta muito a aparecircncia de respeitabilidade
do falante pois ldquoas pessoas respeitaacuteveis recebem mais atenccedilatildeordquo diz Aristoacuteteles Pelo que o
orador deve esforccedilar-se por conseguir duas coisas do auditoacuterio 1 amizade (φίλον) e 2 com-
paixatildeo (ἐλεεινόν) (1415b22-28) tornaacute-lo amigo e compassivo fazendo-o crer que ele mesmo
o orador sente exatamente aquilo que censura ou louva ou seja que estaacute sendo sincero
(1415b28-29) Ora como falar da Graccedila de Deus sem que se recorra ao testemunho pessoal
pois a Graccedila diferentemente da recompensa ou do salaacuterio (merces) eacute distribuiacuteda gratuitamente
para o que por paradoxal pareccedila faz-se necessaacuterio ser pecador numa palavra estar desprovido
de qualquer meacuterito que o tornaria credor ao inveacutes de devedor meacuterito que poderia confundi-la
a Graccedila com pagamento ou retribuiccedilatildeo Evidente que se trata dum exagero pois os que tecircm
meacuterito natildeo estatildeo de modo nenhum excluiacutedos da Graccedila jaacute que natildeo faz muito sentido que natildeo
receba sem meacuterito16 senatildeo quem natildeo mereccedila
Seja como for esse ecircthos de sinceridade logra construir com bastante esmero Agostinho
ao reconhecer-se pecador devedor pequenino desprovido de meacuteritos e absolutamente depen-
dente da bondade da Providecircncia divina que se expressa pela Graccedila gratis
A segunda das provas da arte paacutethos
A movimentaccedilatildeo das emoccedilotildees (πάθος) embora uma prova (πίστις) que se diz teacutecnica
ou ldquoda arterdquo (ἔντεχνος) de modo aparentemente paradoxal natildeo tem que ver diretamente com
as provas demonstrativas ou com a causa em si e sim respeita aos juiacutezes (δικασταί) explica
Aristoacuteteles (1354a4-5)17 De fato o orador alcanccedila a persuasatildeo seja em que gecircnero for (o que
16 Isto eacute gratuitamente 17 Aristoacuteteles natildeo era muito simpaacutetico nem ao apelo eacutetico tampouco ao emocional que julgava ser um mal
necessaacuterio pois considerava errado manipular os sentimentos dos juiacutezes o que equivalia a corromper a proacutepria lei
que se tentava fazer valer ou de que se queria socorrer (1356a14) Argumento muito parecido esse (de destruir a
proacutepria lei a que se deveraacute recorrer depois) com o utilizado por Soacutecrates ao negar a proposta de fuga de Criacuteton no
diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo (50a-b) Pois bem no iniacutecio do tratamento da hupoacutekrisis (1403b22-) Aristoacuteteles
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natildeo exclui nem o epidiacutectico tampouco o deliberativo) mediatamente por meio dos ouvintes
(διὰ τῶν ἀκροατῶν) aqueles aos quais se dirige quando recorre ao paacutethos despertando ou
dirigindo suas emoccedilotildees (ὅταν εἰς πάθος) o que se faz pela accedilatildeo discursiva (ὑπὸ τοῦ λόγου)
Isso porque os juiacutezos (τὰς κρίσεις) dos ouvintes objetivo da accedilatildeo persuasiva variam sob a
influecircncia das emoccedilotildees tais como a dor (λύπη) a alegria (χαρά) a amizade (φιλία) o oacutedio
(μῖσος) etc Com efeito o orador natildeo tem por escopo a emoccedilatildeo do auditoacuterio em si mesma como
finalidade e sim a sua persuasatildeo a fim de que decida em favor de sua causa para o que as
emoccedilotildees cooperam vivamente como percebeu Aristoacuteteles ao dedicar grande parte do livro
segundo da Retoacuterica ao estudo das paixotildees da alma
Um dos meios mais eficazes para a movimentaccedilatildeo do paacutethos a fim de que se tenha ecircxito
no apelo emocional em vista dum fim ulterior natildeo satildeo as provas demonstrativas recomendadas
para o gecircnero apropriado (o judiciaacuterio no caso) o entimema e as maacuteximas provas que devem
ser descobertas na invenccedilatildeo e sim os recursos pertencentes a outra parte da retoacuterica a elocuccedilatildeo
(λέξις) Com efeito depois de encontrado o que dizer (εὕρεσις) e disposto as mateacuterias de modo
apropriado (τάξις) resta saber como dizecirc-lo Esse ldquocomordquo respeita sem duacutevida agrave forma do dis-
curso que se chama tambeacutem ldquoestilordquo poreacutem de modo nenhum se limita a isso como se fosse
apenas uma sua vestimenta Os recursos da elocuccedilatildeo para muito aleacutem da ornamentaccedilatildeo tecircm
forccedila persuasiva pois argumentam seja pela concisatildeo das figuras seja pelo ritmo e paralelismo
das construccedilotildees seja pelas imagens que evocam o que fazem de modo principal pondo em
destaque tanto o ecircthos como o paacutethos O ecircthos por exemplo no emprego do leacutexico que quando
recheado de estrangeirismos (ξένην ποιεῖν τὴν διάλεκτον) (1404b10-12) diz Aristoacuteteles con-
fere um ar de dignidade ao discurso promovendo por tabela o orador que se faz parecer digno
e nobre assim como aquilo que estaacute dizendo O paacutethos por sua vez quando o discurso eacute ldquoele-
vadordquo a um niacutevel suprarracional ou sublime pelo uso de recursos poeacuteticos dentre os quais se
destacam as figuras de repeticcedilatildeo como paralelismos epanalepses anadiploses antanaacuteclases
reconhece que tudo aquilo que respeita agrave apresentaccedilatildeo do discurso como voz volume tom altura ritmo harmo-
nia entre tais e que eacute muito importante nos certames dramaacuteticos e eacutepicos (τῶν ἀγώνων) quando entatildeo faz-se
necessaacuterio equilibrar esses elementos segundo cada uma das emoccedilotildees (πρὸς ἕκαστον πάθος) embora seja tam-
beacutem utilizado nas demais atividades poliacuteticas como assembleias deliberativas e tribunais o eacute apenas de modo
deploraacutevel Isso porque conquanto seja necessaacuterio mover as paixotildees do auditoacuterio e construir o caraacuteter do orador
discursivamente essa necessidade se deve tatildeo soacute agrave corrupccedilatildeo dos cidadatildeos (διὰ τὴν μοχθηρίαν τῶν πολιτῶν)
(1403b34-35) o que equivale a dizer do auditoacuterio (τοῦ ἀκροατοῦ) Assim sendo o recurso tanto ao ecircthos como
ao paacutethos deixa de ser questatildeo de correccedilatildeo (οὐκ ὀρθῶς) de certo ou errado passando a ser uma necessidade (ἀλλrsquo
ὡς ἀναγκαίου) Com efeito o justo (δίκαιον) seria defender acusar exortar e dissuadir movido apenas pelos
fatos (ἀγωνίζεσθαι τοῖς πράγμασιν) (1404a5-6) de maneira tal que o restante que Aristoacuteteles reputa fora da
demonstraccedilatildeo (ἔξω τοῦ ἀποδεῖξαι) ο que inclui ecircthos e paacutethos seria superfluidade (περίεργα ἐστίν) (1404a8)
Infelizmente poreacutem a realidade eacute que o orador precisa conhecer estes recursos a fim de poder defender-se e atingir
seus objetivos uma vez que os adversaacuterios certamente lanccedilam matildeo deles de modo quase sempre inescrupuloso
148
paronomaacutesias antimetaacuteboles poliptotos etc E fique claro que dizer que Aristoacuteteles natildeo via com
bons olhos o (mau) recurso aos apelos eacutetico e pateacutetico nos tribunais natildeo significa dizer que
desprezasse os mecanismos da elocuccedilatildeo o que implicaria dizer que cresse o homem ser dotado
apenas de razatildeo excluiacutedos sentimentos e caraacuteter a natildeo dizer da vontade Ao contraacuterio Aristoacute-
teles bem reconhecia que em todo tipo de aprendizado (ἐν πάσῃ διδασκαλίᾳ) o estilo se faz
mateacuteria de certa importacircncia uma vez que algo se torna claro (πρὸς τὸ δηλῶσαι) por meio do
modo como eacute dito (ὡδὶ ἢ ὡδὶ εἰπεῖν) embora relegasse a questatildeo do estilo ao niacutevel da aparecircn-
cia (ἀλλrsquo ἅπαντα φαντασία ταῦτrsquo εστὶ) cuja finalidade seria apenas agradar o ouvinte (πρὸς
τὸν ἀκροατήν) ouvinte esse por sua vez cuja corrupccedilatildeo (μοχθηρία) seria a verdadeira causa
de tudo que natildeo eacute apodiacutectico na retoacuterica (1404a7-8) Em assim sendo o estilo (λέξις) seria um
mal necessaacuterio uma ferramenta que embora potencialmente injusta seria uacutetil para conferir
clareza ao discurso assim como todos os demais elementos de persuasatildeo natildeo-apodiacutecticos ou
extrademonstrativos E isso se justifica diz o filoacutesofo de modo peremptoacuterio porque ningueacutem
ensina a fazer geometria desse modo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) isto eacute nem pelo
recurso ao paacutethos nem pelo ecircthos tampouco por qualquer outra ferramenta indicada para a
elocuccedilatildeo como as figuras (1404a12) Compreende-se essa visatildeo deveras depreciativa da elo-
cuccedilatildeo por parte do filoacutesofo pois como ele mesmo diz no terceiro livro de sua Retoacuterica ao
empreender o tratamento da actio ou representaccedilatildeo do discurso (ὑπόκρισις) ateacute ao tempo da
escritura da obra natildeo havia ainda nenhuma arte isto eacute nenhum manual de retoacuterica voltado para
a mateacuteria (οὔπω δὲ σύγκειται τέχνη περὶ αὐτῶν) porque a leacuteksis soacute havia sido notada pou-
quiacutessimo antes (ἐπεὶ καὶ τὸ περὶ τὴν λέξιν ὀψὲ προῆλθεν) descaso que se justificava pelo fato
de o estilo mdash considerado entatildeo como mera ornamentaccedilatildeo do discurso mdash ser julgado inferior
(φορτικὸν) tema indigno das preocupaccedilotildees dum homem livre criacutetica que natildeo evita endossar o
filoacutesofo (καλῶς ὐπολαμβανόμενον) (1403b35-6)
A despeito desta postura criacutetica adotada por Aristoacuteteles e de seu juiacutezo negativo a respeito
do ecircthos e do paacutethos postura raramente admitida pelos estudiosos atuais da retoacuterica o que
importa para os fins deste artigo contudo eacute seu poder argumentativo uma vez que sua impor-
tacircncia natildeo pode ser negada seja ela justificada ou natildeo de par com a finalidade filosoacutefica que
lhes imprime o rhetor de Hipona Portanto justo ou natildeo (nos tribunais e assembleias) o fato
admitido por Aristoacuteteles eacute que a elocuccedilatildeo afeta sobremodo o paacutethos sendo de par com o ecircthos
reconhecido como a mais persuasiva (κυριωτάτη) das provas (1356a13) altamente eficaz para
os objetivos da argumentaccedilatildeo pois resta claro que por meio do estilo se consegue mover as
emoccedilotildees (1408a16) seja quando se fala com indignaccedilatildeo audaciosa (ὕβρις) seja com raiva
149
(ὁργιζομένου) impiedade (ἀσεβή) ou vergonha (αἰσχρά) O estilo adequado (ἡ οἰκεία λέξις)
que eacute aquele em que os elementos do paacutethos (παθητική) e do ecircthos (ἠθική) satildeo proporcionais
(ἀνάλογον) aos temas subjacentes (τοῖς ὐποκειμένοις πράγμασιν) (1408a10-11) faz com
que um dado assunto seja mais persuasivo Aleacutem disso remata Aristoacuteteles o ouvinte sempre
simpatiza (συνομοπαθεῖ ὁ ἀκούων) com quem fala de modo emocional (παθητικῶς
λέγοντι) ainda que esse natildeo diga nada (κἂν μηθὲν λέγῃ) (1408a23-4)
Reconhecido o vigor (δύναμις) natildeo apenas pateacutetico mas tambeacutem argumentativo da elo-
cuccedilatildeo resta ver como Agostinho se utiliza de seus recursos nas Confissotildees a fim de atingir seus
objetivos numa palavra a fim de fazer filosofia Pois bem as descriccedilotildees que melhor instigam
as emoccedilotildees satildeo as que fazem apelo agrave imaginaccedilatildeo e aos sentidos descriccedilotildees viacutevidas de cenas e
eventos contam muito como o famigerado roubo das peras (Conf 249) a prisatildeo de Aliacutepio
(6914) ou a cena do jardim de Milatildeo (81125-27) por exemplo as inumeraacuteveis metaacuteforas e a
prosopopeia de oacutergatildeos humanos que passam a ser dotados de matildeos pernas ouvidos como as
matildeos do coraccedilatildeo que se estendem em prece a Deus os relatos de laacutegrimas pungentes que se
vertem repetidas vezes enfim descriccedilotildees essas que tecircm potencial enorme para despertar fortes
sentimentos Do mesmo modo o uso de hipeacuterboles e outras tantas figuras se faz extremamente
uacutetil para criar o efeito emocional desejado Todavia nada talvez seja tatildeo eficiente nesse sentido
quanto o vocabulaacuterio o uso de palavras carregadas de intensa conotaccedilatildeo pateacutetica E no apelo
agraves emoccedilotildees pode-se dizer esteja uma das chaves de leitura das Confissotildees ao menos retoacuterica
De fato a linguagem da obra estaacute repleta de figuras cujo efeito principal eacute o despertar dos
sentimentos Mas de quem e para quecirc A sua audiecircncia soacute pode ser depreendida de modo in-
direto por meio da linguagem do estilo e do tema o que natildeo se constitui tarefa das mais faacuteceis
por tratar-se de obra multifacetada de linguagem muito elaborada que prima pela sofisticaccedilatildeo
mas que natildeo despreza uma certa tonalidade menos erudita que se pode ateacute denominar em
alguma medida popular ou humilde De fato pelo recurso aos salmos e textos escrituraacuterios
com seu respectivo campo semacircntico permeado de expressotildees da liacutengua grega vulgar (κοινή)
traduzidas ou transliteradas em latim conhecidos de toda comunidade cristatilde natildeo apenas por
serem lidos mas principalmente por sua funccedilatildeo lituacutergica eacute sem duacutevida uma linguagem
(sermo) popular ou humilis todavia pelos mecanismos retoacutericos extremamente requintados e
pelas referecircncias a toda uma cultura filosoacutefica de par com uma argumentaccedilatildeo em muitas pas-
sagens nada singela especialmente nos livros 1 8 e de 9 a 13 pode-se considerar igualmente
elevadiacutessima Portanto humilde e elevada eacute a linguagem das Confissotildees constituindo em si
mesma um oximoro
150
Diante desse desafio de escrever tanto para a gente mais simples como para filoacutesofos
desafio que se exprime nesse caso pela linguagem supotildee-se que Agostinho natildeo tenha simples-
mente pretendido abaixar o registro de seu discurso descendo aos simples e pequeninos (ad
catechizandos rudes) muito ao contraacuterio ao que parece pretendia elevar-se ou melhor ser
elevado ao confessar-se arrependido penitenciando-se mas tambeacutem ao confessar sua feacute e seu
louvor enaltecendo e reconhecendo a graccedila de Deus em sua vida Em sendo assim ao ser ele-
vado por Deus pela confissatildeo pretende igualmente mover as almas incitando-lhes semelhante
elevaccedilatildeo ou quando natildeo o desejo de elevaccedilatildeo desejo de que se deixassem igualmente elevar
como ele confessava desejar o que se pode considerar sem duacutevida uma meta de caraacuteter pastoral
Portanto sua missatildeo quanto ao paacutethos eacute tambeacutem a de mover as almas agrave salvaccedilatildeo que
se pode sintetizar na vontade de ser elevado e de para lanccedilar matildeo duma contradiccedilatildeo merecer
por uma espeacutecie de ascese cataacutertica a graccedila divina a misericoacuterdia do Deus justiacutessimo Ora
disso decorre a possibilidade duma outra funccedilatildeo da linguagem extremamente comovente fruto
dos recursos da elocuccedilatildeo a que recorre Agostinho nas Confissotildees e interligada com essa funccedilatildeo
dita pastoral de elevar as almas uma funccedilatildeo que se pode compreender como simultaneamente
propedecircutica e filosoacutefica Com efeito se uma das funccedilotildees deste paacutethos que se diz de caraacuteter
pastoral pretende comover positiva e negativamente incitando a um soacute tempo o desejo de
salvaccedilatildeo e o de horror agrave perdiccedilatildeo o desejo de buscar Deus e de evitar o mal de buscar ser mais
pela proximidade do Ser supremo e de evitar ser menos ou deixar de ser pelo afastamento desse
mesmo Ser como se percebe sobremodo nos livros da parte considerada biograacutefica da obra o
que natildeo implica de modo algum a exclusatildeo dos restantes livros a outra funccedilatildeo por sua vez
relacionada intimamente agrave primeira de que se pode dizer seja consequecircncia natural que se
exacerba tambeacutem a partir dos recursos da elocuccedilatildeo e que como se disse tem caraacuteter prope-
decircutico compreende-se como uma funccedilatildeo de purificaccedilatildeo filosoacutefica de afastamento progressivo
das coisas deste mundo de afastamento da ldquocarnerdquo se se pode dizer tendo em vista o despren-
dimento rumo a uma vida mais espiritual de proximidade com o Ser o puro Inteligiacutevel que se
transubstancia por sua vez num projeto de vivecircncia cristatilde o que se destaca sobremodo a partir
do livro novo encontrando sua foz nos estertores do livro derradeiro Donde ser liacutecito afirmar
que os livros da parte biograacutefica das Confissotildees do primeiro ao oitavo tecircm tambeacutem essa fun-
ccedilatildeo de purificaccedilatildeo tanto das emoccedilotildees como da razatildeo ou seja de disciplinar ou exercitar asce-
ticamente a alma (exercitatio animi)18 a fim de que os leitores e ouvintes pudessem estar pre-
parados para o que havia de vir nos livros subsequentes E isso parece estar em harmonia com
18 Ἥ ἄσκησις ἥ τῆς ψυχῆς
151
o projeto filosoacutefico platocircnico-cristatildeo que Agostinho tinha para sua vida e que colocou em praacute-
tica desde os tempos preacute-batismais de Cassiciacuteaco ateacute ser interrompido pela sua consagraccedilatildeo
sacerdotal (391 dC) um projeto propedecircutico-purificador
E de fato se se pode aventar que esse projeto cataacutertico da razatildeo encontra seu ponto de
saiacuteda no expurgo do ceticismo de tipo neoacadecircmico como se percebe nos trecircs livros intitulados
Contra Academicos desenvolve-se sobremodo nas paacuteginas do diaacutelogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monoacutelogo com os Soliloacutequios obras do mesmo periacuteodo
Formato monoloacutegico esse denominado por Dupuy-Trudelle (1998 p 1198) ldquodesdobramentordquo
que eacute bem possiacutevel tenha servido de laboratoacuterio para as proacuteprias Confissotildees sugere a autora
refletindo a intenccedilatildeo de Agostinho apesar da excelecircncia da feacute de levar as exigecircncias da razatildeo
ateacute ao limite extremo num esforccedilo de purificaccedilatildeo num ir-aleacutem das paixotildees e desiludir-se sobre
si mesmo Ora estar iludido acerca de si mesmo natildeo eacute impedimento agrave feacute mas o eacute ao acesso agrave
convicccedilatildeo intelectual verdadeira Portanto para chegar-se ao conhecimento define esta autora
(ibid pp 1198-9) faz-se mister como condiccedilatildeo uacutenica a ldquolibertaccedilatildeo da razatildeo de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesmardquo libertaccedilatildeo a que os Soliloacutequios datildeo curso
Pode-se compreender que para desenlamear a consciecircncia dos similisavoirs libertaacute-
la de toda ilusatildeo psicoloacutegica ensinaacute-la que o desejo da verdade natildeo eacute ainda a posses-
satildeo da verdade permitir-lhe ir aleacutem do conflito de interesses que leva a opiniatildeo a
revoltar-se contra a verdade seja preciso mensurar a distacircncia entre o sujeito e si
mesmo Ora fazecirc-lo eacute um convite a mensurar a distacircncia entre si e o conhecimento de
Deus Eis entatildeo todo o sentido do exerciacutecio proposto pelo ldquosoliloacutequiordquo mensurar uma
e outra19
Natildeo parece haver duacutevidas de que os Soliloacutequios trazem em si de modo embrionaacuterio o estilo
que haveria de consagrar sobretudo a partir das Confissotildees quando entatildeo dispensa o combate
direto de ideias preferindo ldquodesdobrar-serdquo e deixar-se interrogar por si mesmo ainda que de
modo proleacuteptico continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas
Todavia eacute mais que provaacutevel que esta exigecircncia natildeo tenha surgido do nada e sim pertenccedila a
um projeto filosoacutefico maior que englobe as demais obras de Cassiciacuteaco sendo-lhe entatildeo um
como que desenvolvimento natural
No proacutelogo do De ordine (13-4) Agostinho argumenta que o homem por ser um des-
conhecido de si mesmo natildeo consegue perceber a ordem que reina em todo o universo ordem
providencial em que ele estaacute inserido e que para conseguir conhecer-se seria necessaacuterio entrar
em si mesmo ali permanecendo afastado dos sentidos lugar em que poderia entatildeo curar-se das
feridas que as opiniotildees vulgares infligem agrave alma seja pelo ldquofogordquo do ldquoisolamentordquo conforme
19 DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Les Confessions Paris Gal-
limard 1998 p 1206
152
se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
153
soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
154
As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
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menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
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Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
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sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
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(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
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articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
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ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
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(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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130
As provas da arte retoacuterica ecircthos paacutethos loacutegos
nas Confissotildees de Agostinho de Hipona
Ningueacutem ensina geometria assim
οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει
Aristoacuteteles
(Retoacuterica 1404a12)
Introduccedilatildeo
Diferentemente do trabalho que deu origem a este artigo1 cujo foco recaiu com peso
maior sobre a elocuccedilatildeo (elocutio) das partes retoacutericas a que mais se relacionava com o que se
entende hoje por ldquoestilordquo e que como se esforccedilou por demonstrar guarda potencial natildeo apenas
argumentativo mas sobremodo filosoacutefico este texto por sua vez pretende circunscrever-se aos
trecircs gecircneros de provas retoacutericas que Aristoacuteteles denomina ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo ecircthos paacutethos
e loacutegos e seu emprego nas Confissotildees Embora as figuras retoacutericas possam ser compreendidas
como argumentos em forma condensada fazendo parte igualmente das provas natildeo apenas por
seu potencial argumentativo mas tambeacutem por prestarem valioso auxiacutelio na construccedilatildeo eacutetica dos
caracteres e na movimentaccedilatildeo das paixotildees haacute de se concentrar aqui ainda que de modo bastante
sucinto nas ferramentas propriamente argumentativas segundo os fins e meios de cada um dos
trecircs gecircneros de provas teacutecnicas supracitados Para tanto contudo natildeo se poderaacute prescindir duma
breviacutessima e propedecircutica siacutentese do sistema retoacuterico aristoteacutelico que serviu de base para todas
as consideraccedilotildees empreendidas neste texto acerca da arte2 siacutentese que se faraacute antes do trata-
mento das provas retoacutericas nas Confissotildees
1 Trata-se da nossa tese de doutoramento (FFLCH-USP 2014) sob a orientaccedilatildeo do prof Moacyr A Novaes
(USP) intitulada O enigma do espelho a retoacuterica do silecircncio nas ldquoConfissotildeesrdquo de Agostinho de Hipona cujo
apecircndice (M) Ecircthos paacutethos loacutegos serviu de base para este texto a partir da sugestatildeo do prof Pedro Calixto
(UFJF) 2 Embora desnecessaacuteria uma tal justificativa pode-se argumentar em favor do recurso quase que exclusivo agrave
Retoacuterica de Aristoacuteteles pelo simples motivo de dar peso maior ao loacutegos mesmo quando trata das outras duas
provas o ecircthos e o paacutethos o que serve perfeitamente aos propoacutesitos deste artigo ao contraacuterio da obra retoacuterica de
Ciacutecero por exemplo que imprime destaque ao ecircthos em detrimento do loacutegos e do paacutethos Isso sem dizer do fato
de a obra retoacuterica de Aristoacuteteles ter servido de base a quase todos os tratados subsequentes sobre o tema inclusive
os contemporacircneos como os de Perelman-Tyteca Reboul Plebe e Emanuele Barthes Meyer entre outros
131
O sistema retoacuterico aristoteacutelico uma siacutentese
Natildeo constituindo um fim em si mesma a retoacuterica eacute apenas uacutetil (χρήσιμος) diz Aristoacute-
teles (1355b14)3 o que equivale a dizer que serve para algo ulterior tampouco se limita a algum
objeto especiacutefico de persuasatildeo (οὐ περί τι γένος ἴδιον) o que implica sua utilizaccedilatildeo em qual-
quer gecircnero de discurso em qualquer aacuterea em que seja necessaacuterio argumentar para algum fim
porque nenhuma arte pode ocupar-se do particular que eacute infinito (τὸ δὲ καθrsquo ἕκαστον ἄπειρον)
(1356b30-7) Assim sendo os temas de que trata a retoacuterica satildeo (1357a1-4) 1 temas passiacuteveis
de deliberaccedilatildeo (βουλευόμεθα) 2 temas para os quais natildeo haacute arte sistemaacutetica (τέχνας μὴ
ἔχομεν) ou seja que estatildeo fora do escopo dalguma ciecircncia ou teacutecnica 3 temas que se tratam
diante de pessoas comuns incapazes de efetuar ou acompanhar raciociacutenios loacutegicos elaborados
(οὐδὲ λογίζεσθαι πόρρωθεν) ou de contemplar uma visatildeo de conjunto (διὰ πολλῶν
συνορᾶν) E se os temas satildeo passiacuteveis de deliberaccedilatildeo satildeo igualmente controversos pois natildeo
se delibera senatildeo acerca do que aparente admitir (ao menos) dois modos de pensar (1357a4-5)
(περὶ τῶν φαινομένων ἐνδέχεσθαι ἔχειν ἀμφοτέρως) Portanto trata a retoacuterica de temas so-
bre os quais natildeo se tem certeza pois para os assuntos passados presentes ou futuros que de
modo indubitaacutevel foram (γενέσθαι) seratildeo (ἔσεσθαι) ou satildeo (ἔχειν) ningueacutem delibera (οὐδεὶς
βουλεύεσθαι) porque natildeo se discute acerca do certo apenas do duvidoso (ἀμφισβητήσιμος)
uma vez que nada se aprende do que jaacute eacute sabido explica o filoacutesofo
E assim como os temas tratados trecircs satildeo igualmente os tipos de ouvintes (τῶν
ἀκροατῶν) que de um modo ou de outro satildeo todos juiacutezes 1 aquele que ajuiacuteza (κριτής) das
coisas passadas (τῶν γεγενημένων) 2 o membro da assembleia (ἐκκλησιαστής) ou do con-
selho (βουλευτής) que julga das coisas futuras (τῶν μελλόντων) 3 ο espectador ou contem-
plante (θεωρός) que julga das coisas presentes (1358b1-6) Do que decorre serem trecircs tambeacutem
os gecircneros discursivos voltados respectivamente aos trecircs tipos diferentes de ouvintes (1368b6-
7) 1 judiciaacuterio (δικανικόν) que presume o juiacutezo dum magistrado (δικαστής) num tribunal
(δικαστήριον) 2 deliberativo (συμβουλευτικόν) que presume ou o membro da assembleia
(ἐκκλησία) ou do conselho (βουλή) oacutergatildeos legislativos sobremodo 3 epidiacutectico
(ἐπιδεικτικόν) ou demonstrativo que presume a presenccedila dum puacuteblico de espectadores
(θεωροί) seja para um panegiacuterico (λόγος πανηγυρικός) ou mesmo para uma conferecircncia
filosoacutefica (ἐπίδειξις) Dos trecircs gecircneros de discurso o judiciaacuterio volta-se predominante mas natildeo
3 As referecircncias agrave Retoacuterica de Aristoacuteteles se faratildeo pela ediccedilatildeo criacutetica da seacuterie Oxford Classical Texts anotada
e revista por Ross que teve como base a ediccedilatildeo de Bekker cotejada com outros manuscritos
132
exclusivamente ao que se denomina paacutethos o deliberativo ao ecircthos enquanto o epidiacutectico ao
loacutegos o que trocando em miuacutedos significa dizer 1 que nos discursos do gecircnero judiciaacuterio se
procura movimentar as paixotildees dos juiacutezes a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa que se quer
justa ou um juiacutezo desfavoraacutevel agrave causa adversaacuteria que se reputa injusta 2 que nos discursos
deliberativos procura-se construir um caraacuteter moral digno de admiraccedilatildeo respeito e sobretudo
confianccedila a fim de persuadir a assembleia ou o conselho acerca dum dado curso de accedilatildeo que
se julga proveitoso ou dissuadi-la de algo por reputaacute-lo inuacutetil ou nocivo o que natildeo se faz senatildeo
sobre o ecircthos uma vez tratar-se de algo completamente incerto o futuro cujas garantias se
esteiam apenas sobre a opiniatildeo dos ditos homens de bem e por fim 3 que nos discursos do
gecircnero epidiacutectico trata-se sobremaneira (mas natildeo exclusivamente) do proacuteprio discurso quando
se pretende louvar ou censurar seja o belo o bom ou seus contraacuterios o feio e o mau diante
dum auditoacuterio de espectadores que pode ser tambeacutem o de um universo determinado de leitores
Nos trecircs gecircneros descritos que se dirigem para o passado (judiciaacuterio) futuro (delibera-
tivo) e presente (epidiacutectico) faz-se preciso argumentar em favor da causa daquilo que se con-
sidera respectivamente justo uacutetil e belo ou seus contraacuterios E seja qual for o juiacutezo que se tenha
em mente necessaacuterio se faz o recurso agraves chamadas provas (πίστεις) retoacutericas que segundo
Aristoacuteteles podem ser ldquoteacutecnicasrdquo (ἔντεχνοι) ou ldquonatildeo-teacutecnicasrdquo (ἄτεχνοι)4 (1355b-1356a) As
primeiras se referem a tudo aquilo que eacute fruto do esforccedilo do orador dentro das regras da arte
(τέχνη) As segundas a tudo o que estaacute fora da arte natildeo tendo sido produzido pelo orador
como 1 testemunhos (μάρτυρες) 2 contratos (σύγγραφαι) 3 e ateacute confissotildees obtidas por
meio de tortura (βάσανοι) Portanto as provas teacutecnicas devem ser ldquodescobertasrdquo ou ldquoencontra-
dasrdquo (εὑρεῖν) as natildeo-teacutecnicas apenas utilizadas (χρήσασθαι) Evidente que as provas que mais
interessam agrave arte retoacuterica (ao menos agrave aristoteacutelica) satildeo antes as de caraacuteter teacutecnico (1356a1-4)
fruto do esforccedilo de invenccedilatildeo (εὕρεσις) do orador segundo o meacutetodo (διὰ μεθόδου) da arte
quais sejam 1 ecircthos (ἦθος) as provas eacuteticas que se atecircm ao caraacuteter do orador (αἱ ἐν τῷ ἤθει
τοῦ λέγοντος) 2 paacutethos (πάθος) as provas que objetivam pocircr o auditoacuterio num certo estado
de espiacuterito ao movimentar seus sentimentos aguccedilar suas paixotildees (αἱ ἐν τῷ τὸν ἀκροατὴν
διαθεῖναί πως) 3 loacutegos (λόγος) as provas que nem se voltam especificamente para a audi-
ecircncia tampouco para o orador e sim para o proacuteprio discurso (αἱ ἐν αὐτῷ τῷ λόγῳ) Pois bem
4 Os termos ἔντεχνοι e ἄτεχνοι ldquoteacutecnicasrdquo e ldquonatildeo-teacutecnicasrdquo que qualificam ldquoprovasrdquo (πίστεις) por vezes se
traduzem tambeacutem por ldquoartiacutesticasrdquo e ldquoinartiacutesticasrdquo ldquoartificiaisrdquo e ldquoinartificiaisrdquo ou ainda ldquointriacutensecasrdquo e ldquoextriacutense-
casrdquo
133
se as provas teacutecnicas satildeo destes trecircs gecircneros depreende-se como necessaacuterio para o ecircthos paacute-
thos e loacutegos respectivamente 1 o estudo dos caracteres (τοῦ θεωρῆσαι περὶ τὰ ἤθη) e das
virtudes (καὶ τὰς ἀρετάς) 2 o estudo das emoccedilotildees ou paixotildees da alma (θεωρῆσαι περὶ τὰ
πάθη) 3 e o estudo do raciociacutenio loacutegico ou silogiacutestico (τοῦ συλλογίσασθαι δυναμένου)
(1356a20)
Em cada um dos gecircneros retoacutericos predomina uma prova teacutecnica apropriada sem exclu-
satildeo das restantes assim como tarefas e objetivos especiacuteficos a saber 1 no gecircnero judiciaacuterio
cujo predomiacutenio do paacutethos jaacute se referiu o orador tem por tarefa (πράξις) a acusaccedilatildeo
(κατηγορία) e a defesa (ἀπολογία) e por objetivo ou finalidade (τέλος) ajuizar do justo (τὸ
δίκαιον) e do injusto (τὸ ἄδικον) acerca de fatos passados 2 no deliberativo por sua vez cujo
peso do ecircthos foi posto em destaque tem-se a tarefa da exortaccedilatildeo (προτροπή) ou da dissuasatildeo
(ἀποτροπή) acerca do proveitoso (τὸ συμφερόν) ou do prejudicial (τὸ βλαβερόν) com res-
peito aos eventos futuros 3 por fim no epidiacutectico cuja prova principal eacute o loacutegos tem-se por
tarefa o louvor (ἔπαινος) ou a censura (ψόγος) seja sobre o belo (τὸ καλόν) ou o bom (τὸ
ἀγαθόν) seja sobre o feio (αἰσχρόν) ou sobre o mau (τὸ κακόν) em relaccedilatildeo agraves coisas que satildeo
no presente
Argumentos ou provas de tipo demonstrativo igualmente predominam em cada um dos
gecircneros retoacutericos sem obviamente implicar a exclusatildeo dos demais Daiacute que 1 no judiciaacuterio
argumenta-se em favor do justo ou contra o injusto seja acusando ou defendendo por meio
predominantemente de entimemas (ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) o que natildeo exclui ne-
nhum dos demais recursos 2 no deliberativo por sua vez argumenta-se em favor ou contra
um determinado curso de accedilatildeo proveitoso ou prejudicial seja pela exortaccedilatildeo ou dissuasatildeo
acima de tudo por meio de exemplos (παραδείγματα) pois eacute a partir do que fizeram homens
ilustres do passado em feitos natildeo menos ilustres que se pode deliberar em vista dum futuro
incerto 3 por fim no gecircnero epidiacutectico argumenta-se a favor de ou contra uma determinada
qualidade virtude viacutecio tese ou pessoa seja louvando ou censurando de modo principal por
meio da amplificaccedilatildeo que pode ser positiva (αὔξησις) ou negativa (ταπείνωσις) sem que se
excluam os demais recursos probatoacuterios
Todo esse ldquosistemardquo retoacuterico elaborado ou desdobrado por Aristoacuteteles pode ser visuali-
zado com mais clareza na seguinte disposiccedilatildeo tabelar
Tabela I
134
GEcirc
NE
RO
S D
E
DIS
CU
RS
O
τρία
γέν
η τῶ
ν λό
γων
AUDITOacuteRIO ἀκροατής
JUIacuteZO E TEMPO κρίσις καὶ χρόνος
PROVAS
TEacuteCNICAS πίστεις ἔντεχνοι
TAREFAS E OBJETIVOS πράξεις καὶ τέλος
PROVA
DEMONSTRATIVA ἀπόδειξις
JUD
ICIAacute
RIO
δι
κανι
κόν
JUIZ-TRIBUNAL δικαστής
δικαστήριον
DO QUE DECORREU
NO PRETEacuteRITO περὶ τῶν γεγενημένων
PAacuteTHOS πάθος
ACUSACcedilAtildeO Ε DEFESA κατηγορία ἀπολογία
O JUSTO E O INJUSTO τὸ δίκαιον ἄδικον
ENTIMEMAS
E MAacuteXIMAS ἐνθυμήματα
γνῶμαι
DE
LIB
ER
AT
IVO
συ
μβου
λευτ
ικόν
LEGISLADOR-AS-
SEMBLEIA
CONSELHO βουλευτής
ἐκκλησία βουλή
DO QUE PODE OCORRER
NO FUTURO περὶ τῶν μελλόντων
EcircTHOS ἦθος
EXORTAR E DISSUADIR προτροπή ἀποτροπή
O UacuteTIL E O PREJUDICIAL τὸ συμφερόν βλαβερόν
EXEMPLOS παραδείγματα
EP
IDIacuteC
TIC
O
ἐπιδ
εικτι
κόν ESPECTADOR-
CONFEREcircNCIA θεωρός ἐπίδειξις
SOBRE O QUE Eacute
NO PRESENTE
(DA VIRTUDE DO DISCURSO) περὶ τῆς δυνάμεως
τοῦ λόγου
LOacuteGOS λόγος
LOUVOR E CENSURA ἔπαινος ψόγος
O BELO OU BOM
E O FEIO OU MAU τὸ καλὸν ἢ ἀγαθόν
τὸ αἰσχρὸν ἢ κακόν
AMPLIFICACcedilAtildeO αὔξησις ταπείνωσις
Importa notar que a coluna das ldquoprovas teacutecnicasrdquo deve ser compreendida do seguinte modo 1
no gecircnero judiciaacuterio preponderacircncia do paacutethos seguido de loacutegos e ecircthos 2 no deliberativo
preponderacircncia do ecircthos seguido de loacutegos e paacutethos 3 no epidiacutectico preponderacircncia do loacutegos
seguido de paacutethos e ecircthos Isso porque em todos os gecircneros se fazem necessaacuterias todas as trecircs
provas teacutecnicas mescladas com a precedecircncia de uma ou outra em relaccedilatildeo agraves restantes E o
mesmo se diga da coluna das provas ldquodemonstrativasrdquo que deve ser entendida do seguinte
modo 1 judiciaacuterio preponderacircncia dos entimemas e maacuteximas sem excluir exemplos e ampli-
ficaccedilotildees 2 deliberativo preponderacircncia dos exemplos sem omissatildeo de entimemas maacuteximas
e amplificaccedilotildees 3 epidiacutectico preponderacircncia da amplificaccedilatildeo seja pela auxese ou tapeinose
sem que se excluam maacuteximas exemplos e entimemas De fato Aristoacuteteles encerra o segundo
livro da retoacuterica dando destaque igual aos trecircs recursos ao dizer que em relaccedilatildeo ao loacutegos (περὶ
τὸν λόγον) ou seja no que tange agrave atividade do pensamento (διάνοια) tanto exemplos
(παραδείγματα) como entimemas (ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) se fazem igualmente
importantes (1403a34-35)
Embora Aristoacuteteles priorize sobremodo os fatos e a demonstraccedilatildeo reconhece a necessi-
dade do recurso aos outros gecircneros de provas que natildeo as exclusivamente apodiacutecticas uma vez
ter plena consciecircncia de que os adversaacuterios a elas recorrem muita vez sem escruacutepulos care-
cendo o orador de estar ciente de seu mecanismo ao menos para defender-se como se deve
135
pois seria esdruacutexulo (ἄτοπον) reconhece o filoacutesofo (1355a39-b2) se se considerasse vergo-
nhoso (αἰσχρόν) que o corpo natildeo pudesse defender-se a si mesmo mas que a mesma defesa
natildeo fosse facultada ao espiacuterito pela atividade mental-discursiva uma vez que o que caracteriza
o homem eacute muito mais a atividade intelectual que a fiacutesica5 Portanto embora desejasse intima-
mente restringir sua Retoacuterica ao tratamento das mateacuterias uacuteteis para o entimema (1354a5) que
eacute o silogismo retoacuterico como faz no primeiro livro segundo cada um dos gecircneros contudo uma
vez que cada um dos trecircs tipos de ouvintes relacionados respectivamente aos trecircs gecircneros dis-
cursivos eacute em si mesmo uma espeacutecie de juiz (κριτής) a quem cabe ajuizar seja do justo ou do
injusto do proveitoso ou do nocivo e do belo ou do feio numa palavra como a retoacuterica grosso
modo tem que ver com ldquojuiacutezosrdquo (ἕνεκα κρίσεώς ἐστιν ἡ ῥητορική) reconhece o filoacutesofo que
natildeo basta tornar o discurso apenas apodiacutectico (ἀποδεικτικός) ou criacutevel (πιστός) por meio das
provas exclusivamente demonstrativas (λόγος) como o entimema e os exemplos mas tambeacutem
saber como fazer com que o orador pareccedila ter um determinado caraacuteter (ἦθος) aleacutem de ser capaz
de pocircr os juiacutezes sejam quais forem num certo estado de espiacuterito (πάθος) Pelo que faz enorme
diferenccedila que o orador mostre-se possuidor de certas qualidades (τὸ ποίον τινα φαίνεσθαι τὸν
λέγοντα) e que seus ouvintes estejam dispostos de certo modo em relaccedilatildeo a ele pensando por
sua vez que ele tambeacutem esteja disposto de certo modo em relaccedilatildeo a eles No discurso delibe-
rativo eacute mais importante que o orador pareccedila ser portador dum caraacuteter ilibado confiaacutevel no
judiciaacuterio que os que iratildeo julgar estejam dispostos de modo favoraacutevel agrave causa e ao pleiteante
No epidiacutectico por sua vez os dois anteriores natildeo devem ser desprezados quando importa natildeo
apenas a construccedilatildeo dum certo caraacuteter mas tambeacutem a disposiccedilatildeo do auditoacuterio no que redunda
numa certa combinaccedilatildeo ecircthos-paacutethos que se deve submeter ao serviccedilo do loacutegos a fim de em-
preender o louvor ou a censura Em assim sendo maacuteximas (γνῶμαι) exemplos
(παραδείγματα) amplificaccedilotildees (αὐξήσεις) de toda sorte de par com as ferramentas da elocu-
ccedilatildeo (λέξις) como as figuras (σχήματα) e os tropos (τρόποι) se combinam natildeo apenas pela
beleza que podem conferir ao estilo mas principalmente por sua forccedila (δύναμις) argumentativa
o que os transforma em armas bastante eficazes tanto para o discurso de louvor como para o de
caraacuteter filosoacutefico
Conhecidos pois os gecircneros de discurso os auditoacuterios especiacuteficos de cada um junta-
mente com os tempos e juiacutezos das accedilotildees as provas teacutecnicas as tarefas objetivos e provas de-
monstrativas predominantes resta conhecer as trecircs grandes metas que devem ser cumpridas em
5 (1355a39-b2) ldquoἄτοπον εἰ τῷ σώματι μὴ δύνασθαι βοηθεῖν ἑαυτῷ λόγῳ δ᾿ οὐκ αἰσχρόν ὃ μᾶλλον
ἴδιόν ἐστιν ἀνθρώπου τῆς τοῦ σώματος χρείαςrdquo
136
cada uma das fazes de composiccedilatildeo do discurso 1 invenccedilatildeo (εὕρεσις ou inuentio) descobrir de
onde tirar as provas (ἐκ τίνων πίστεις ἔσονται) 2 disposiccedilatildeo (τάξις ou dispositio) ordenar
as partes do discurso isto eacute as provas encontradas na invenccedilatildeo (πῶς χρή τάξαι τὰ μέρη τοῦ
λόγου) 3 elocuccedilatildeo (λέξις ou elocutio) tratar do estilo (περὶ τὴν λέξιν) ou seja do modo de
apresentaccedilatildeo das ideias que foram encontradas e ordenadas (1403b6-8) Da primeira meta a
invenccedilatildeo ou descoberta das provas Aristoacuteteles tratou nos dois primeiros livros ao discorrer
sobre as mateacuterias adequadas ao entimema e aos exemplos de par com o que eacute uacutetil agrave construccedilatildeo
dos caracteres e o estudo detalhado das paixotildees da alma com vistas agrave afetaccedilatildeo dos juiacutezes Res-
taram apenas a disposiccedilatildeo das mateacuterias e a elocuccedilatildeo ou seja o tratamento do estilo o que o
filoacutesofo empreende fazer no terceiro e uacuteltimo livro da Retoacuterica
No que se refere ao estilo (περὶ τῆς λέξεως) Aristoacuteteles pondera que natildeo basta possuir
o quecirc se natildeo se souber como dizecirc-lo (ὡς δεῖ εἰπεῖν) (1403b16) o que se deve fazer sempre de
modo claro jaacute que a grande virtude da elocuccedilatildeo eacute a clareza (λέξεως ἀρετὴ σαφῆ εἶναι)
(1404b1-2) e o discurso que natildeo for claro natildeo cumpriraacute sua tarefa (1404b2-3) (οὐ ποιῆσει τὸ
ἑαυτοῦ ἔργον) Tendo as mateacuterias de persuasatildeo a seu dispor o orador deve cuidar da apresen-
taccedilatildeo desse material (λέξει διαθέσθαι) ou seja do estilo do discurso para entatildeo empregar a
forccedila (δύναμις) de accedilatildeo atualizando aquilo que se descobriu e figurou dum certo modo
(ὑπόκρισις) Essa atualizaccedilatildeo ou representaccedilatildeo do discurso hupoacutekrisis que em latim se deno-
mina actio refere-se agrave sua expressatildeo oral compreendendo questotildees de voz (φωνή) volume
(μέγεθος) harmonia (ἁρμονία) ritmo (ῥυθμός) e tom (τόνος) que pode ser agudo (ὀξύς)
grave (βαρύς) ou meacutedio (μέσος)
Por fim no que tange agrave disposiccedilatildeo das mateacuterias (περὶ τῆς τάξεως) cujo tratamento se
inicia no final do terceiro livro da Retoacuterica (1414a29) Aristoacuteteles resume em duas as partes
principais do discurso isso porque nem toda parte da divisatildeo tradicional respeitava a todo e
qualquer gecircnero 1 o estado da questatildeo (πρόθεσις) isto eacute a exposiccedilatildeo da causa (τὸ πρᾶγμα
εἰπεῖν) acerca de que se haacute de argumentar (περὶ οὗ) 2 a prova (πίστις) ou seja a demonstraccedilatildeo
(τὸ ἀποδεῖξαι) (1414a31-36) A divisatildeo tradicional por sua vez elenca as seguintes partes 1
proecircmio ou exoacuterdio (προοίμιον) 2 narraccedilatildeo (διήγησις) que se subdivide em 21 exposiccedilatildeo
da causa (πρόθεσις) e 22 refutaccedilatildeo (ἀντιδίκησις) 3 prova (πίστις) 4 peroraccedilatildeo ou conclusatildeo
(ἐπίλογος) destas contudo apenas o proecircmio o estado da questatildeo a prova e a peroraccedilatildeo se
aplicam a todos os gecircneros retoacutericos (1414b8-9)
Do que se disse natildeo se deve imaginar que o discurso filosoacutefico esteja fora do acircmbito
retoacuterico pois ainda que se trate do discurso de um soacute pretende sempre persuadir ou persuadir-
137
se de algo seja duma verdade ideia crenccedila ou praacutetica E todo aquele que deve ser persuadido
seja o proacuteprio autor do discurso ou um outro se faz indubitavelmente juiz (1391b11-12)
(ἁπλῶς κρίτης) Deste modo esteja-se disposto contra um oponente (πρὸς ἀμφισβητοῦντα)
ou contra uma teoria (πρὸς ὑπόθεσιν) eacute preciso uma vez e sempre recorrer agrave argumentaccedilatildeo
(τῷ λόγῳ ἀνάγκη χρῆσθαι) a fim de defender um ponto de vista ou destruir o seu contraacuterio
(1391b13-14) o que eacute apropriado ao gecircnero de discurso epidiacutectico acima de tudo (ὡσαύτως
ἐν τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) como se se estivesse argumentando diante de um verdadeiro juiz
(ὥσπερ πρὸς κρίτην) que no caso eacute o espectador (θεωρός) aquele que contempla observa
aprende agrave maneira dum disciacutepulo dum arguidor dialeacutetico ou do proacuteprio filoacutesofo se este estiver
apenas escrevendo
Os gecircneros retoacutericos nas Confissotildees consideraccedilotildees teoacutericas
Quando se estaacute diante de temas controversos que aceitam ao menos dois modos dife-
rentes de pensar como os temas tipicamente retoacutericos (1357a1-5) a demonstraccedilatildeo apodiacutectica
(ἀπόδειξις) raramente eacute possiacutevel diz Olivier Reboul (2000 p 27) natildeo sendo nada ldquocientiacuteficardquo
a exigecircncia de ldquorespostasrdquo de caraacuteter cientiacutefico como ocorre nas Confissotildees por exemplo
quando se quer falar das ldquocoisasrdquo de Deus Contudo entre a luz do que se pode apreender cien-
tificamente (e demonstrar apodicticamente) e a obscuridade da mais completa ignoracircncia acerca
do misteacuterio abissal do Ser encontra-se todo um universo de possibilidades retoacutericas cujo rei-
nado pertence ao argumento E se argumentar natildeo eacute senatildeo propor y para que se admita x como
bem o ilustra esse autor (ibid pp 91-2) que se poderia argumentar acerca do Ser enquanto
Ser (x) sem que se circunscrevesse a dizer de seus pseudopredicados (y) daquilo que apenas
eacute Recursos haacute poreacutem que permitem dizecirc-lo argumentando enquanto Ser ainda que de modo
ilusoacuterio obliacutequo silencioso a partir dos mecanismos que a arte retoacuterica oferece seja com o
auxiacutelio do ecircthos do paacutethos ou do loacutegos os trecircs gecircneros de provas ditas teacutecnicas
Um dos objetivos de Agostinho ao pretender falar de Deus tema indubitavelmente con-
troverso (ἀμφισβητήσιμος) na referida acepccedilatildeo aristoteacutelica isto eacute passiacutevel de disputa por ser
natildeo-apodiacutectico pelo que igualmente retoacuterico pode-se dizer seja pocircr em destaque primordial-
mente o loacutegos o que se faz sobretudo por meio dum discurso do gecircnero epidiacutectico em que
predomina a funccedilatildeo referencial da linguagem uma pseudoterceira pessoa discursiva melhor
compreendida como uma natildeo-pessoa ou seja aquilo de que se fala (περὶ οὗ λέγει) (1358b1)
Todavia jamais deixa de pretender comover (πάθος) poreacutem natildeo especificamente quando fala
138
com Deus ο ldquopara quemrdquo (πρὸς ὅν) (1388b1) pois o Ser divino enquanto segunda pessoa
discursiva eacute onisciente e embora deixe-se dalgum modo misterioso comover por causa de sua
misericoacuterdia por ser igualmente justo ele cujo juiacutezo eacute inexoraacutevel torna a tarefa quanto ao
paacutethos um tanto obstada Por isso os esforccedilos de Agostinho no sentido de comover devem vol-
tar-se nem sempre e de imediato a Deus e sim aos seus leitores o auditoacuterio cristatildeo a quem o
filoacutesofo confessa de fato dirigir-se (Conf 235) ldquoA quem estou relatando estas coisas Ora
natildeo a ti meu Deus e sim na tua presenccedila relato-as aos de meu gecircnero ao gecircnero humano por
pequenina a parcela dos que possam deparar com estes meus escritosrdquo6
Quer comover portanto aleacutem de fazer converter para Deus como se viu convertido
fazendo com que as almas se elevem movidas pela penitecircncia o que natildeo se faz senatildeo tendo em
vista uma accedilatildeo futura (περὶ τῶν μελλόντων) E se para falar de Deus carece dum loacutegos apro-
priado ao louvor (ἔπαινος) que eacute tambeacutem contemplaccedilatildeo (θεωρεῖν) contemplaccedilatildeo do Belo (τὸ
καλόν) e do Bem (τὸ ἀγαθόν) a comoccedilatildeo natildeo se faz sem os recursos do paacutethos tampouco
prescindindo do ecircthos a fim de edificar um caraacuteter penitente digno do arrependimento ou con-
versatildeo mental (μετάνοια) a que todo cristatildeo deve submeter-se antes de crer no Evangelho
como admoestava Cristo (Mc 114-15) ldquoArrependei-vos [= convertei-vos] e crede no Evange-
lhordquo (μετανοεῖτε καὶ πιστεύετε ἐν τῷ εὐαγγελίῳ) Portanto Agostinho carece tambeacutem de
construir sempre pelo discurso (διὰ τοῦ λόγου) seu ecircthos discorrendo acerca daquilo que de
edificante se passou consigo (περὶ τῶν γεγενημένων) (1358b5) para os ldquojuiacutezesrdquo (δικασταί)
do auditoacuterio cristatildeo pois seu preteacuterito precisa de ser desenodoado Destarte ao narrar suas
desventuras pregressas confessando-se a Deus e aos homens potildee em destaque seja um Tu
divino que eacute tambeacutem a terceira pessoa discursiva e seu referente pois eacute dele que se fala seja
um tu humano semelhante a si seu leitor Pelo que loacutegos ecircthos e paacutethos se fazem necessaacuterios
de modo temperado segundo as tarefas e os objetivos que se desdobram a cada passo da obra
Tendo pois construiacutedo um ecircthos confiaacutevel a partir de suas gestas pregressas segundo
a taacutebua de valores cristatildeos como a humildade ou a misericoacuterdia por exemplo pode Agostinho
direcionar daiacute em diante sua atenccedilatildeo para o futuro ao modo do gecircnero deliberativo a fim de
comover as almas exortando-as (προτρέπω) seja a voltar-se para Deus o Fim uacuteltimo ou Bem
supremo que se louva pelos recursos do loacutegos seja dissuadindo-as (ἀποτρέπω) de seguir o
caminho do mal que equivale a um afastamento deste mesmo Fim uacuteltimo o que eacute tambeacutem
tarefa do paacutethos quando entatildeo o discurso potildee em destaque a segunda pessoa requerendo um
6 (Conf 235) ldquoCui narro haec neque enim tibi deus meus sed apud te narro haec generi meo generi
humano quantulacumque ex particula incidere potest in istas meas litterasrdquo
139
domiacutenio sobre as paixotildees a fim de conduzir o auditoacuterio ao objetivo (τέλος) almejado que
como se disse eacute sempre futuro (περὶ τῶν μελλόντων) Todavia se natildeo se delibera tendo em
vista o fim que se persegue (οὐ περὶ τοῦ τέλος) em conformidade com o que diz Aristoacuteteles
e sim aquilo que leva ateacute ele (ἀλλὰ περὶ τῶν πρὸς τὸ τέλος) (1352a15-19) ou seja os meios
os quais por sua vez residem nas accedilotildees (κατὰ τὰς πράξεις) tem-se como sequecircncia necessaacuteria
que 1 o uacutetil serve a um propoacutesito ulterior um fim e que 2 se o fim for bom o uacutetil natildeo apenas
levaraacute a esse bem mas seraacute tambeacutem de algum modo bom ainda que mediatamente e em menor
grau Daiacute que natildeo apenas o uacutetil em favor de que se delibera seja bom mas tambeacutem a praacuteksis
contraacuteria o seja a saber a rejeiccedilatildeo do nocivo do inuacutetil E com efeito seja para Aristoacuteteles ou
Agostinho o Bem (ἀγαθόν) uacuteltimo ou supremo pode ser definido como sendo aquilo que se
deve buscar (αἱρετόν) em vista de si mesmo (αὑτοῦ ἕκενα) e natildeo de algo ulterior (καὶ μὴ
ἄλλου) (1363b12-14) Esse Fim (τέλος) que coincide com o Bem supremo eacute aquilo em vista
de que (οὗ ἕνεκα) todo o resto (τὰ ἄλλα) se faz (1363b16-17) Em se admitindo com o autor
da Retoacuterica que esse Fim uacuteltimo embora sendo desejado natildeo seja objeto imediato de delibe-
raccedilatildeo e sim as accedilotildees (πράξεις) por meio de que se possa chegar a ele percebe-se sem muito
esforccedilo que as deliberaccedilotildees acerca deste Fim chame-se eudaimoniacutea ou Ser supremo fazem-se
sobremodo a partir de accedilotildees que podem ser virtuosas quando entatildeo se aproxima do objetivo
ou viciosas quando dele se afasta restando manifesto e inconteste o potencial tanto do ecircthos
como do paacutethos no tratamento daquilo que para Agostinho se traduz em princiacutepio pela uita
beata e posteriormente pelo Saacutebado eterno seja nas quatro virtudes cardeais justiccedila tempe-
ranccedila prudecircncia e coragem ou nas trecircs teologais feacute esperanccedila e caridade a serem praticadas
nesta vida tendo em vista o Bem uacuteltimo e supremo Deus seja por outra na comoccedilatildeo necessaacuteria
das almas que se deve aproximar desta mesma uita beata ou afastar da uita misera sem perder
de vista o fim uacuteltimo que se almeja
E se o deliberativo tem sua funccedilatildeo na exortaccedilatildeo tampouco se faz ausente da obra o
gecircnero judiciaacuterio que contempla sobremodo accedilotildees de acusaccedilatildeo (κατηγορία) e de defesa
(ἀπολογία) (1358b) De fato que faz Agostinho na parte dita biograacutefica da obra enquanto
narra suas desventuras preteacuteritas senatildeo acusar-se de seus erros como a experiecircncia entre os
maniqueus entre os ceacuteticos ou mesmo as aventuras ditas libidinosas em Cartago ou entatildeo
fazer a apologia da Graccedila divina da continecircncia da conversatildeo de sua matildee (ao contraacuterio do pai
que ele prefere acusar) Acusaccedilatildeo e defesa portanto seja de atos seus preteacuteritos (περὶ τῶν
γεγενημένων) (1358b5) seja de doutrinas ou ideias que reputa natildeo apenas inimigas do cami-
140
nho que leva ao Fim uacuteltimo por ele eleito mas tambeacutem antagocircnicas agrave proacutepria concepccedilatildeo des-
posada deste Ser supremo como o dualismo maniqueu por uma ou o ceticismo de tipo neoa-
cadecircmico por outra que perigosamente ameaccedilava uma das proacuteprias virtudes teologais a natildeo
dizer duas feacute e a esperanccedila por meio duma descrenccedila radical na possibilidade de acesso a
noccedilotildees fundamentadas acerca do verdadeiro
E se se podem perceber nuanccedilas do deliberativo e do judiciaacuterio na exortaccedilatildeo ou dissu-
asatildeo na acusaccedilatildeo e na defesa muito mais no caso do gecircnero predominante expresso pelas Con-
fissotildees o epidiacutectico que segundo Aristoacuteteles compreende tanto o louvor (ἔπαινος) como a
censura (ψόγος) (1358b12-3) De fato que faz Agostinho ao longo das Confissotildees senatildeo cen-
surar o que afasta de Deus louvando o que dele aproxima o homem censurar o pecado lou-
vando seu contraacuterio as virtudes fazer o elogio da vida feliz (beata uita) vituperando seu
oposto a infeliz (misera) E mesmo quando censura seu objetivo natildeo eacute senatildeo louvar louvar o
que se edifica como antipodal daquilo que se estaacute censurando pois natildeo se trata de discorrer
sobre o viacutecio sobre o torto sobre o caminho errado que se natildeo deve percorrer numa palavra
natildeo se trata de discorrer sobre o mal porque ele natildeo existe (entenda-se o mal ontoloacutegico) Ao
contraacuterio trata-se de louvar o que Eacute o Ser por excelecircncia Deus e toda a sua obra cujo paro-
xismo natildeo eacute outro senatildeo o momento em que cria o homem Paradoxal seria pois limitar-se ao
vitupeacuterio o que equivaleria a ressaltar apenas e tatildeo somente aquilo que natildeo possui existecircncia
real o mal ou antisser7 como quem escrevesse um livro sobre o que natildeo eacute As Confissotildees
portanto empreendem sobretudo um discurso de louvor que se bem pode denominar filosofia
do louvor a qual se enquadra perfeitamente no gecircnero epidiacutectico cuja tocircnica eacute dada pelo loacutegos
enquanto referente aquilo de que se fala (περὶ οὗ λέγει) (1358b1) referente de muacuteltiplos sen-
tidos que se pode compreender natildeo apenas como a Palavra que eacute Deus mas tambeacutem a palavra
de Deus a palavra sobre a palavra de Deus a palavra sobre o Deus que eacute Palavra e profere
palavras embora esse mesmo referente enquanto Verbo divino seja inefaacutevel donde ser neces-
saacuterio que esse loacutegos seja tambeacutem linguagem nos recursos retoacutericos precisos a que se diga o
indiziacutevel
Todos os trecircs gecircneros portanto prestam auxiacutelio reciacuteproco pois quem louva no presente
deve fazecirc-lo tambeacutem por meio das lembranccedilas do passado (ἀναμιμνήσειν τὰ γενόμενα) ou das
conjecturas e esperanccedilas futuras (προεικάζειν τὰ μέλλοντα) e o justo por sua vez objeto das
reflexotildees judiciaacuterias pode igualmente ser feio ou belo uacutetil ou inuacutetil mateacuteria dos outros dois
7 O que de esdruacutexulo possa haver neste composto se deve agraves novas regras do Acordo Ortograacutefico de 1990 O
que se quis expressar eacute o contraacuterio do ser ldquoanti-serrdquo que natildeo mais se grafa assim com hiacutefen
141
gecircneros assim como uacutetil e o inuacutetil mateacuteria de deliberaccedilatildeo que podem ser justos ou seu con-
traacuterio belos ou natildeo ou ainda o bom e o mau que podem muito bem ser inuacuteteis ou natildeo justos
ou natildeo em conformidade com o que diz Aristoacuteteles justificando assim a mistura dos gecircneros
retoacutericos (1358b27-1359a4) Poreacutem o gecircnero epidiacutectico parece ser o mais completo dos trecircs
uma vez nem focar demasiado no passado como o judiciaacuterio tampouco no futuro como o
deliberativo ao contraacuterio ao discorrer acerca do presente (ὁ παρὼν χρόνος) louvando ou
censurando as coisas que de fato satildeo (κατὰ τὰ ὐπάρχοντα) eacute-lhe permitido voltar-se tanto agraves
reminiscecircncias preteacuteritas quanto ao que pode vir a ser como se percebe nitidamente do primeiro
ao derradeiro livro das Confissotildees que nem se limitam a perscrutar o passado tampouco a
especular esperanccedilosamente sobre o futuro ou mesmo sobre o presente na investigaccedilatildeo do
proacuteprio rememorar quando entatildeo empreendem o louvor do que eacute foi e haacute de ser de par com o
do que sempre e indefectivelmente eacute
Uma uacuteltima palavra acerca da retoacuterica se faz necessaacuteria antes de voltar a atenccedilatildeo para
os trecircs gecircneros de provas teacutecnicas nas Confissotildees Quando se propotildee apresentar uma resposta
diz Michel Meyer (2010 p 53) a retoacuterica tende a ocultar o problemaacutetico fazendo com que a
questatildeo de base subjacente a todo discurso questatildeo em torno de que se reuacutenem ou dispersam
as partes pareccedila resolvida No entanto isso de modo nenhum eacute o que se percebe na retoacuterica
filosoacutefica de Agostinho que opera agraves avessas natildeo projetando de modo nenhum esconder o
problemaacutetico e sim permitindo lidar com ele dizendo-o embora sua insoluacutevel inefabilidade E
de fato se se tome por base a proacutepria definiccedilatildeo da retoacuterica elaborada pelo mesmo Meyer (2012
p 21) como sendo a negociaccedilatildeo entre a distacircncia criada por um dado problema que se constitui
sua proacutepria medida percebe-se no que tange ao Ser natildeo haver distacircncia entre interlocutores
para quem a sua inefabilidade eacute paciacutefica quer se o identifique com a Divindade cristatilde ou natildeo
E em natildeo havendo essa distacircncia qual a finalidade da retoacuterica sendo ela a suposta negociaccedilatildeo
que se estabelece em funccedilatildeo dum dado problema que se mede exatamente por essa distacircncia
inexistente Logo em natildeo havendo uma distacircncia que se constituiacutesse a medida do problemaacutetico
desnecessaacuterio seria argumentar inexistindo o problema Contudo isso se refere de modo espe-
cial agraves retoacutericas forense e deliberativa natildeo agrave epidiacutectica e menos ainda a epidiacutectica com finali-
dade filosoacutefica como se daacute no caso de Agostinho Nas Confissotildees a distacircncia que se quer
negociar eacute a que se supotildee entre o conhecido desconhecimento de Deus e seu desconhecido
conhecimento ou seja a distacircncia entre o nada que se pode conhecer de Deus e o tudo que se
desconhece entre o nada que dele se pode dizer e o tudo que se natildeo diz E como essa distacircncia
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eacute inegociaacutevel resta agrave retoacuterica simular a edificaccedilatildeo duma estrutura especial a linguagem per-
mitindo que pela proacutepria expressatildeo do paradoxo do estranhamento da perplexidade se diga
sem dizer e se natildeo diga dizendo Numa palavra a retoacuterica permite que Agostinho estique a
corda do arco de seu dizer para aleacutem da tensatildeo do compreensiacutevel apodiacutectico para aleacutem do
alcance da razatildeo que seja capaz carreando o leitor consigo de tangenciar o suprarracional a
natildeo dizer irracional pois natildeo desprovido de razatildeo e sim muito aleacutem dela
A primeira das provas da arte ecircthos
Aleacutem das provas loacutegicas que envolviam mateacuterias e meacutetodos cujo apelo se voltava pri-
mordialmente a natildeo dizer exclusivamente para a razatildeo a retoacuterica reconhecia outros meios de
prova pois se dera conta havia muito de que as pessoas natildeo satildeo apenas dotadas de capacidade
racional mas tambeacutem de sentimentos e de vontade pelo que se fazia necessaacuterio lidar com elas
natildeo como deveriam ser mas como realmente eram lembram Corbett e Connors (1999 p 72)
Destarte tomando por base a definiccedilatildeo aristoteacutelica de que a retoacuterica eacute a arte de descobrir todos
os meios possiacuteveis de persuasatildeo8 torna-se oacutebvio o recurso a tudo aquilo que se comprove efi-
ciente para esse fim Neste sentido afianccedilam esses autores o apelo eacutetico pode ser mais eficaz
que o apelo agrave razatildeo pois
mesmo o mais engenhoso e sensato apelo agrave razatildeo pode fracassar diante de ouvidos
amoucos se a audiecircncia reagiu desfavoravelmente ao caraacuteter do orador O apelo eacutetico
eacute especialmente importante no discurso retoacuterico porque aqui estamos lidando com
assuntos acerca dos quais eacute impossiacutevel ter-se certeza absoluta e em que as opiniotildees
satildeo divididas
Com efeito o ecircthos prova teacutecnica que se erige a partir do caraacuteter moral do orador segundo
reconhecia Aristoacuteteles (1356a13) constitui-se no meio mais eficaz de prova (κυριωτάτην ἔχει
πίστιν τὸ ἦθος)
Quintiliano por sua vez em suas Instituiccedilotildees Oratoacuterias (3813) adotando integral-
mente a teoria aristoteacutelica argumenta que dos trecircs gecircneros de discurso o deliberativo era o que
mais necessitava do apelo eacutetico ou seja o discurso que mais se apoiava no caraacuteter do orador
que ele denominava auctoritas
Nas deliberaccedilotildees poreacutem a autoridade eacute o que possui maior valor Com efeito natildeo
apenas deve ser considerado muitiacutessimo prudente como tambeacutem muitiacutessimo virtuoso
todo aquele que deseje que todos acreditem nos seus pensamentos acerca das coisas
8 (1355b25-6) ldquoSeja entatildeo a retoacuterica a faculdade de considerar acerca de cada coisa o que eacute possivelmente
persuasivordquo (ἔστω δὴ ἡ ῥητορικὴ δύναμις περὶ ἕκαστον τοῦ θεωρῆσαι τὸ ἐνδεχόμενον πιθανόν)
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proveitosas e dignas de honra [] natildeo haacute quem negue que as deliberaccedilotildees satildeo feitas
segundo os caracteres dos oradores9
Em conformidade com o que se argumentou um pouco antes a partir das consideraccedilotildees do
proacuteprio Aristoacuteteles acerca da mistura de gecircneros retoacutericos (1358b27-1359a4) sobre a predomi-
nacircncia do gecircnero epidiacutectico nas Confissotildees eacute perceptiacutevel natildeo apenas a importacircncia do apelo
eacutetico que natildeo eacute das menores por tratar-se duma obra primordialmente na primeira pessoa e
que sob certo ponto de vista quer falar de si mas principalmente pelo que se disse acerca de
um dos objetivos da obra de caraacuteter ldquodeliberativordquo ou antes de caraacuteter ldquopastoralrdquo de mover
as almas para Deus (conuersio ad deum) ao modo dum loacutegos protreacuteptico afastando-as do pe-
cado e de tudo que as manteacutem distantes do Bem (auersio a bono) objetivo que se cumpre
escorado no caraacuteter eacutetico que se esforccedilou por burilar ao longo primordialmente dos livros ditos
autobiograacuteficos da obra De fato natildeo obteacutem ecircxito na pretensatildeo de exortar (προτρέπω) para
Deus senatildeo aquele que se deixou dissuadir (ἀποτρέπω) do caminho do pecado que compro-
vou sua humildade (humilitas) na aceitaccedilatildeo natildeo do poder de seu livre-arbiacutetrio e sim da Graccedila
divina cujas Justiccedila e Misericoacuterdia se amalgamam na Sabedoria una e indivisiacutevel do Ser ao
inveacutes de se anularem pela contradiccedilatildeo Natildeo se trata de reconhecer-se purificado trata-se mui-
tiacutessimo ao contraacuterio de reconhecer-se pecador carente da Graccedila e incapacitado de autossalva-
ccedilatildeo numa palavra trata-se de diminuir-se ao modo do ldquoesvaziamentordquo (κένωσις) de Cristo
que embora possuindo uma forma divina (ἐν μορφῇ θεοῦ) esvaziou-se a si mesmo segundo
Paulo assumindo uma forma de escravo e fazendo-se semelhante aos homens pelos quais se
humilhou e obedientemente deixou-se matar na cruz10 Esse o ecircthos cristatildeo portador das virtu-
des dignas de imitaccedilatildeo invertidas quanto pudessem parecer a um auditoacuterio pagatildeo da eacutepoca
para o qual nem a misericoacuterdia tampouco a humildade eram considerados valores morais dese-
jaacuteveis e sim fraquezas despreziacuteveis
O orador persuade por seu caraacuteter moral explicava Aristoacuteteles (1356a5) quando seu
discurso eacute de tal modo elaborado que seja capaz de tornaacute-lo digno de credibilidade um homem
em quem pareccedila ser possiacutevel confiar Essa credibilidade contudo natildeo se constroacutei por meio de
elementos extratextuais de ideias preacute-concebidas acerca da conduta eacutetica do orador e sim atra-
veacutes do discurso (1356a8) donde ser considerado o ecircthos uma prova de caraacuteter teacutecnico fruto da
9 Inst oratoriae (3813) ldquoValet autem in consiliis auctoritas plurimum nam et prudentissimus esse haberique
et optimus debet qui sententiae suae de utilibus atque honestis credere omnes uelit [] consilia nemo est qui
neget secundum mores darirdquo 10 Paulo (Fl 25-8) ldquoΤοῦτο φρονεῖτε ἐν ὑμῖν ὃ καὶ ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων οὐχ
ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ ἀλλὰ ἑαυτὸν ἐκένωσεν μορφὴν δούλου λαβών ἐν ὁμοιώματι ἀνθρώπων γενόμενοςmiddot καὶ σχήματι εὑρεθεὶς ὡς ἄνθρωπος ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν γενόμενος ὑπήκοος μέχρι θανάτου θανάτου δὲ σταυροῦrdquo
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arte Isso se daacute explica o filoacutesofo porque quando se estaacute tratando de temas de caraacuteter geral via
de regra a confianccedila se estabelece sobre as opiniotildees das pessoas cujo valor eacute notoacuterio poreacutem
quando os temas satildeo incertos duvidosos (τὸ ἀμφιδοξεῖν) aiacute entatildeo como que desprovido de
alternativas resta ao auditoacuterio tatildeo soacute a confianccedila quase que total e irrestrita (παντελῶς) na-
queles cujos caracteres ou comprovou-se destacar-se ou lograram aparentar fazecirc-lo E sobre
que versam as Confissotildees em linhas gerais como jaacute se apontou antes senatildeo sobre o tema natildeo-
apodiacutectico por excelecircncia Deus Donde ser liacutecito dizer que pelo prisma da retoacuterica Agostinho
empreende um enorme esforccedilo de construccedilatildeo dum ecircthos apropriado a falar de Deus E de fato
se se pretende falar de tema natildeo apenas duvidoso retoacuterico mas inefaacutevel como o Ser de que
modo evadir-se do estribo do ecircthos Se o tema fosse apodiacutectico o caraacuteter do orador talvez
restasse menos relevante poreacutem natildeo num tema em que as provas demonstrativas satildeo pratica-
mente inexistentes
Para ressaltar o caraacuteter moral de algueacutem que se queira elogiar seja o do proacuteprio orador
ou natildeo lembra Aristoacuteteles (1367b22-27) eacute preciso associar as suas accedilotildees (as quais se empre-
ende louvar) agraves suas intenccedilotildees a fim de demonstrar seu valor porque o louvor (ἔπαινος) se tira
das accedilotildees (ἐκ τῶν πράξεων) desde que este aja em conformidade com suas determinaccedilotildees
morais (κατὰ προαίρεσιν) E se o homem de valor age segundo suas proacuteprias determinaccedilotildees
depreende-se que o homem cujo valor eacute nulo aja determinado isto eacute conduzido pelo destino
pela sorte (ἀπὸ τύχης) e que o homem cujo valor eacute repreensiacutevel exemplo que o filoacutesofo natildeo
daacute mas cujo raciociacutenio permite avanccedilar agiria tambeacutem motivado por suas determinaccedilotildees mo-
rais as quais contudo seriam maacutes O que importa no que tange ao ecircthos eacute que se deve mostrar
que aquele que se estaacute louvando age de acordo com suas determinaccedilotildees e natildeo ao acaso o que
lhe tiraria todo o meacuterito meacuterito que caberia entatildeo agrave fortuna (τύχη) uma vez que as accedilotildees natildeo
praticadas de modo voluntaacuterio natildeo satildeo meritoacuterias em conformidade com o que Agostinho tam-
beacutem admitia11 Portanto o conselho de Aristoacuteteles ao orador que quer construir o seu proacuteprio
ecircthos ou o de algum outro eacute tornar todas as accedilotildees possiacuteveis inclusive as decorrentes da sorte
mdash o que natildeo seria nada honesto admite o filoacutesofo mdash fruto do meacuterito daquele que se quer
enaltecer o que seria sinal de homem resoluto decidido (σημεῖον ἀρετῆς εἶναι προαιρέσεως)
No entanto esse conselho natildeo apenas natildeo eacute seguido por Agostinho e pelo discurso cristatildeo de
modo geral como ao reveacutes o exato oposto eacute o que se potildee em praacutetica ao atribuir-se tudo agrave
Graccedila divina agrave bondade preexistente daquele que natildeo precisou de nenhuma das criaturas que
criou as quais jamais fizeram por merecer o dom da vida (Conf 1311) ldquoPorque antes que eu
11 O livre arbiacutetrio (11430101) ldquoIn uoluntate meritum sitrdquo
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existisse existias tu e eu nem existia para que me concedesses que eu existisserdquo12 Isso eacute feito
contudo natildeo em detrimento do ecircthos da construccedilatildeo dum caraacuteter digno de louvor e fidedigno
e sim para construir um caraacuteter cristatildeo ou seja um caraacuteter natildeo pautado pela taacutebua de valores
eacuteticos claacutessicos que atribuiacutea grande peso agrave gloacuteria agrave honra ao denodo guerreiro e agrave justiccedila
inflexiacutevel e fria da lei13 e sim para destacar o homem jaacute de tipo medieval manso e humilde de
coraccedilatildeo misericordioso ao ponto de voltar a outra face numa palavra homem cuja honra estava
na cruz e no sangue de seu Salvador e para o qual ldquoo insensato de Deusrdquo era ldquomais saacutebio que
os homens e o fraco de Deus mais forte que os homensrdquo14 O ecircthos pois que se quer construir
eacute o do homem de feacute que se deixa conduzir pela matildeo de Deus na praacutetica das virtudes ditas
teologais feacute esperanccedila e caridade (πίστις ἐλπίς ἀγάπη) (1Cor 1313) O homem comumente
se orgulha das coisas que faz por si proacuteprio (τοῖς διrsquo αὐτόν) lembra Aristoacuteteles mas natildeo se
orgulha do que o destino lhe trouxe (διὰ τύχην) (1368a3-4) Agostinho bastante ao contraacuterio
natildeo apenas natildeo se orgulha do que fez mas se arrepende amargamente preferindo ao inveacutes da
honra agradecer a Deus todo o bem que lhe sucedeu por seu intermeacutedio divino ldquoe assim Se-
nhor apagaste todos os meus merecidos males para que natildeo retribuiacutesses agraves minhas matildeos nas
quais te deixei e te antecipaste a todos os meus merecidos bens para que retribuiacutesses agraves tuas
matildeos com as quais me fizesterdquo15
Destarte das trecircs qualidades independentes de demonstraccedilatildeo (ἔξω τῶν ἀποδείξεων)
que Aristoacuteteles aponta (1378a) como necessaacuterias ao orador ainda que em aparecircncia somente a
fim de que seja convincente o que de modo principal se refere agraves assembleias ou ao conselho
instacircncias tiacutepicas de deliberaccedilatildeo na Greacutecia antiga 1 prudecircncia ou bom-senso (φρόνησις) 2
excelecircncia moral (ἀρετή) e 3 boa disposiccedilatildeo (εὔνοια) nenhuma delas guarda nas Confissotildees
a importacircncia que o estagirita lhe atribui a natildeo ser que se considerem as virtudes ditas teologais
como pertencentes ao rol das aretaiacute aristoteacutelicas o que seria no miacutenimo um grave anacronismo
Por fim a Retoacuterica destaca o papel do ecircthos na disposiccedilatildeo das mateacuterias (τάξις) de modo
especiacutefico no proecircmio (exordium) Nos discursos do gecircnero judiciaacuterio por exemplo aquele que
se defende (ἀπολογουμένῳ) deve fazecirc-lo logo no proecircmio (πρῶτον) antes da acusaccedilatildeo ao
contraacuterio de quem acusa que deve fazecirc-lo no final (τῷ ἐπιλόγῳ) porque aquele que defende
deve construir seu ecircthos no iniacutecio antes da acusaccedilatildeo (πρὸς τὴν διαβολήν) (1415a29-30) a
12 Confissotildees (1311) ldquoquia et priusquam essem tu eras nec eram cui praestares ut essemrdquo 13 Em conformidade com a ideia veiculada pela maacutexima romana ldquodura sed lexrdquo 14 Paulo (1Cor 121-25) ldquoὅτι τὸ μωρὸν τοῦ θεοῦ σοφώτερον τῶν ἀνθρώπων ἐστὶν καὶ τὸ ἀσθενὲς τοῦ
θεοῦ ἰσχυρότερον τῶν ἀνθρώπωνrdquo 15Confissotildees (1311) ldquoEtenim domine deleuisti omnia mala merita mea ne retribueres manibus meis in
quibus a te defeci et praeuenisti omnia bona merita mea ut retribueres manibus tuis quibus me fecistirdquo
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fim de livrar-se de todo impedimento ou embaraccedilo como faz Agostinho nas Confissotildees utili-
zando-se dos primeiros livros ditos biograacuteficos para tanto Se o acusador deve criar o precon-
ceito contra o acusado no fim para que permaneccedila bem presente na memoacuteria dos juiacutezes o
defendente deve desvencilhar-se do preconceito logo no iniacutecio a fim de que seus argumentos
satildeo sejam prejudicados pela imagem da pecha moral que traz consigo Natildeo eacute apenas para o
ecircthos que o proecircmio eacute importante mas tambeacutem para o paacutethos pois eacute preciso tornar o auditoacuterio
bem disposto em relaccedilatildeo ao orador se se estaacute defendendo ou tornaacute-lo indisposto contra a outra
parte (1415a-34-36) se se estaacute acusando Para isso conta muito a aparecircncia de respeitabilidade
do falante pois ldquoas pessoas respeitaacuteveis recebem mais atenccedilatildeordquo diz Aristoacuteteles Pelo que o
orador deve esforccedilar-se por conseguir duas coisas do auditoacuterio 1 amizade (φίλον) e 2 com-
paixatildeo (ἐλεεινόν) (1415b22-28) tornaacute-lo amigo e compassivo fazendo-o crer que ele mesmo
o orador sente exatamente aquilo que censura ou louva ou seja que estaacute sendo sincero
(1415b28-29) Ora como falar da Graccedila de Deus sem que se recorra ao testemunho pessoal
pois a Graccedila diferentemente da recompensa ou do salaacuterio (merces) eacute distribuiacuteda gratuitamente
para o que por paradoxal pareccedila faz-se necessaacuterio ser pecador numa palavra estar desprovido
de qualquer meacuterito que o tornaria credor ao inveacutes de devedor meacuterito que poderia confundi-la
a Graccedila com pagamento ou retribuiccedilatildeo Evidente que se trata dum exagero pois os que tecircm
meacuterito natildeo estatildeo de modo nenhum excluiacutedos da Graccedila jaacute que natildeo faz muito sentido que natildeo
receba sem meacuterito16 senatildeo quem natildeo mereccedila
Seja como for esse ecircthos de sinceridade logra construir com bastante esmero Agostinho
ao reconhecer-se pecador devedor pequenino desprovido de meacuteritos e absolutamente depen-
dente da bondade da Providecircncia divina que se expressa pela Graccedila gratis
A segunda das provas da arte paacutethos
A movimentaccedilatildeo das emoccedilotildees (πάθος) embora uma prova (πίστις) que se diz teacutecnica
ou ldquoda arterdquo (ἔντεχνος) de modo aparentemente paradoxal natildeo tem que ver diretamente com
as provas demonstrativas ou com a causa em si e sim respeita aos juiacutezes (δικασταί) explica
Aristoacuteteles (1354a4-5)17 De fato o orador alcanccedila a persuasatildeo seja em que gecircnero for (o que
16 Isto eacute gratuitamente 17 Aristoacuteteles natildeo era muito simpaacutetico nem ao apelo eacutetico tampouco ao emocional que julgava ser um mal
necessaacuterio pois considerava errado manipular os sentimentos dos juiacutezes o que equivalia a corromper a proacutepria lei
que se tentava fazer valer ou de que se queria socorrer (1356a14) Argumento muito parecido esse (de destruir a
proacutepria lei a que se deveraacute recorrer depois) com o utilizado por Soacutecrates ao negar a proposta de fuga de Criacuteton no
diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo (50a-b) Pois bem no iniacutecio do tratamento da hupoacutekrisis (1403b22-) Aristoacuteteles
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natildeo exclui nem o epidiacutectico tampouco o deliberativo) mediatamente por meio dos ouvintes
(διὰ τῶν ἀκροατῶν) aqueles aos quais se dirige quando recorre ao paacutethos despertando ou
dirigindo suas emoccedilotildees (ὅταν εἰς πάθος) o que se faz pela accedilatildeo discursiva (ὑπὸ τοῦ λόγου)
Isso porque os juiacutezos (τὰς κρίσεις) dos ouvintes objetivo da accedilatildeo persuasiva variam sob a
influecircncia das emoccedilotildees tais como a dor (λύπη) a alegria (χαρά) a amizade (φιλία) o oacutedio
(μῖσος) etc Com efeito o orador natildeo tem por escopo a emoccedilatildeo do auditoacuterio em si mesma como
finalidade e sim a sua persuasatildeo a fim de que decida em favor de sua causa para o que as
emoccedilotildees cooperam vivamente como percebeu Aristoacuteteles ao dedicar grande parte do livro
segundo da Retoacuterica ao estudo das paixotildees da alma
Um dos meios mais eficazes para a movimentaccedilatildeo do paacutethos a fim de que se tenha ecircxito
no apelo emocional em vista dum fim ulterior natildeo satildeo as provas demonstrativas recomendadas
para o gecircnero apropriado (o judiciaacuterio no caso) o entimema e as maacuteximas provas que devem
ser descobertas na invenccedilatildeo e sim os recursos pertencentes a outra parte da retoacuterica a elocuccedilatildeo
(λέξις) Com efeito depois de encontrado o que dizer (εὕρεσις) e disposto as mateacuterias de modo
apropriado (τάξις) resta saber como dizecirc-lo Esse ldquocomordquo respeita sem duacutevida agrave forma do dis-
curso que se chama tambeacutem ldquoestilordquo poreacutem de modo nenhum se limita a isso como se fosse
apenas uma sua vestimenta Os recursos da elocuccedilatildeo para muito aleacutem da ornamentaccedilatildeo tecircm
forccedila persuasiva pois argumentam seja pela concisatildeo das figuras seja pelo ritmo e paralelismo
das construccedilotildees seja pelas imagens que evocam o que fazem de modo principal pondo em
destaque tanto o ecircthos como o paacutethos O ecircthos por exemplo no emprego do leacutexico que quando
recheado de estrangeirismos (ξένην ποιεῖν τὴν διάλεκτον) (1404b10-12) diz Aristoacuteteles con-
fere um ar de dignidade ao discurso promovendo por tabela o orador que se faz parecer digno
e nobre assim como aquilo que estaacute dizendo O paacutethos por sua vez quando o discurso eacute ldquoele-
vadordquo a um niacutevel suprarracional ou sublime pelo uso de recursos poeacuteticos dentre os quais se
destacam as figuras de repeticcedilatildeo como paralelismos epanalepses anadiploses antanaacuteclases
reconhece que tudo aquilo que respeita agrave apresentaccedilatildeo do discurso como voz volume tom altura ritmo harmo-
nia entre tais e que eacute muito importante nos certames dramaacuteticos e eacutepicos (τῶν ἀγώνων) quando entatildeo faz-se
necessaacuterio equilibrar esses elementos segundo cada uma das emoccedilotildees (πρὸς ἕκαστον πάθος) embora seja tam-
beacutem utilizado nas demais atividades poliacuteticas como assembleias deliberativas e tribunais o eacute apenas de modo
deploraacutevel Isso porque conquanto seja necessaacuterio mover as paixotildees do auditoacuterio e construir o caraacuteter do orador
discursivamente essa necessidade se deve tatildeo soacute agrave corrupccedilatildeo dos cidadatildeos (διὰ τὴν μοχθηρίαν τῶν πολιτῶν)
(1403b34-35) o que equivale a dizer do auditoacuterio (τοῦ ἀκροατοῦ) Assim sendo o recurso tanto ao ecircthos como
ao paacutethos deixa de ser questatildeo de correccedilatildeo (οὐκ ὀρθῶς) de certo ou errado passando a ser uma necessidade (ἀλλrsquo
ὡς ἀναγκαίου) Com efeito o justo (δίκαιον) seria defender acusar exortar e dissuadir movido apenas pelos
fatos (ἀγωνίζεσθαι τοῖς πράγμασιν) (1404a5-6) de maneira tal que o restante que Aristoacuteteles reputa fora da
demonstraccedilatildeo (ἔξω τοῦ ἀποδεῖξαι) ο que inclui ecircthos e paacutethos seria superfluidade (περίεργα ἐστίν) (1404a8)
Infelizmente poreacutem a realidade eacute que o orador precisa conhecer estes recursos a fim de poder defender-se e atingir
seus objetivos uma vez que os adversaacuterios certamente lanccedilam matildeo deles de modo quase sempre inescrupuloso
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paronomaacutesias antimetaacuteboles poliptotos etc E fique claro que dizer que Aristoacuteteles natildeo via com
bons olhos o (mau) recurso aos apelos eacutetico e pateacutetico nos tribunais natildeo significa dizer que
desprezasse os mecanismos da elocuccedilatildeo o que implicaria dizer que cresse o homem ser dotado
apenas de razatildeo excluiacutedos sentimentos e caraacuteter a natildeo dizer da vontade Ao contraacuterio Aristoacute-
teles bem reconhecia que em todo tipo de aprendizado (ἐν πάσῃ διδασκαλίᾳ) o estilo se faz
mateacuteria de certa importacircncia uma vez que algo se torna claro (πρὸς τὸ δηλῶσαι) por meio do
modo como eacute dito (ὡδὶ ἢ ὡδὶ εἰπεῖν) embora relegasse a questatildeo do estilo ao niacutevel da aparecircn-
cia (ἀλλrsquo ἅπαντα φαντασία ταῦτrsquo εστὶ) cuja finalidade seria apenas agradar o ouvinte (πρὸς
τὸν ἀκροατήν) ouvinte esse por sua vez cuja corrupccedilatildeo (μοχθηρία) seria a verdadeira causa
de tudo que natildeo eacute apodiacutectico na retoacuterica (1404a7-8) Em assim sendo o estilo (λέξις) seria um
mal necessaacuterio uma ferramenta que embora potencialmente injusta seria uacutetil para conferir
clareza ao discurso assim como todos os demais elementos de persuasatildeo natildeo-apodiacutecticos ou
extrademonstrativos E isso se justifica diz o filoacutesofo de modo peremptoacuterio porque ningueacutem
ensina a fazer geometria desse modo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) isto eacute nem pelo
recurso ao paacutethos nem pelo ecircthos tampouco por qualquer outra ferramenta indicada para a
elocuccedilatildeo como as figuras (1404a12) Compreende-se essa visatildeo deveras depreciativa da elo-
cuccedilatildeo por parte do filoacutesofo pois como ele mesmo diz no terceiro livro de sua Retoacuterica ao
empreender o tratamento da actio ou representaccedilatildeo do discurso (ὑπόκρισις) ateacute ao tempo da
escritura da obra natildeo havia ainda nenhuma arte isto eacute nenhum manual de retoacuterica voltado para
a mateacuteria (οὔπω δὲ σύγκειται τέχνη περὶ αὐτῶν) porque a leacuteksis soacute havia sido notada pou-
quiacutessimo antes (ἐπεὶ καὶ τὸ περὶ τὴν λέξιν ὀψὲ προῆλθεν) descaso que se justificava pelo fato
de o estilo mdash considerado entatildeo como mera ornamentaccedilatildeo do discurso mdash ser julgado inferior
(φορτικὸν) tema indigno das preocupaccedilotildees dum homem livre criacutetica que natildeo evita endossar o
filoacutesofo (καλῶς ὐπολαμβανόμενον) (1403b35-6)
A despeito desta postura criacutetica adotada por Aristoacuteteles e de seu juiacutezo negativo a respeito
do ecircthos e do paacutethos postura raramente admitida pelos estudiosos atuais da retoacuterica o que
importa para os fins deste artigo contudo eacute seu poder argumentativo uma vez que sua impor-
tacircncia natildeo pode ser negada seja ela justificada ou natildeo de par com a finalidade filosoacutefica que
lhes imprime o rhetor de Hipona Portanto justo ou natildeo (nos tribunais e assembleias) o fato
admitido por Aristoacuteteles eacute que a elocuccedilatildeo afeta sobremodo o paacutethos sendo de par com o ecircthos
reconhecido como a mais persuasiva (κυριωτάτη) das provas (1356a13) altamente eficaz para
os objetivos da argumentaccedilatildeo pois resta claro que por meio do estilo se consegue mover as
emoccedilotildees (1408a16) seja quando se fala com indignaccedilatildeo audaciosa (ὕβρις) seja com raiva
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(ὁργιζομένου) impiedade (ἀσεβή) ou vergonha (αἰσχρά) O estilo adequado (ἡ οἰκεία λέξις)
que eacute aquele em que os elementos do paacutethos (παθητική) e do ecircthos (ἠθική) satildeo proporcionais
(ἀνάλογον) aos temas subjacentes (τοῖς ὐποκειμένοις πράγμασιν) (1408a10-11) faz com
que um dado assunto seja mais persuasivo Aleacutem disso remata Aristoacuteteles o ouvinte sempre
simpatiza (συνομοπαθεῖ ὁ ἀκούων) com quem fala de modo emocional (παθητικῶς
λέγοντι) ainda que esse natildeo diga nada (κἂν μηθὲν λέγῃ) (1408a23-4)
Reconhecido o vigor (δύναμις) natildeo apenas pateacutetico mas tambeacutem argumentativo da elo-
cuccedilatildeo resta ver como Agostinho se utiliza de seus recursos nas Confissotildees a fim de atingir seus
objetivos numa palavra a fim de fazer filosofia Pois bem as descriccedilotildees que melhor instigam
as emoccedilotildees satildeo as que fazem apelo agrave imaginaccedilatildeo e aos sentidos descriccedilotildees viacutevidas de cenas e
eventos contam muito como o famigerado roubo das peras (Conf 249) a prisatildeo de Aliacutepio
(6914) ou a cena do jardim de Milatildeo (81125-27) por exemplo as inumeraacuteveis metaacuteforas e a
prosopopeia de oacutergatildeos humanos que passam a ser dotados de matildeos pernas ouvidos como as
matildeos do coraccedilatildeo que se estendem em prece a Deus os relatos de laacutegrimas pungentes que se
vertem repetidas vezes enfim descriccedilotildees essas que tecircm potencial enorme para despertar fortes
sentimentos Do mesmo modo o uso de hipeacuterboles e outras tantas figuras se faz extremamente
uacutetil para criar o efeito emocional desejado Todavia nada talvez seja tatildeo eficiente nesse sentido
quanto o vocabulaacuterio o uso de palavras carregadas de intensa conotaccedilatildeo pateacutetica E no apelo
agraves emoccedilotildees pode-se dizer esteja uma das chaves de leitura das Confissotildees ao menos retoacuterica
De fato a linguagem da obra estaacute repleta de figuras cujo efeito principal eacute o despertar dos
sentimentos Mas de quem e para quecirc A sua audiecircncia soacute pode ser depreendida de modo in-
direto por meio da linguagem do estilo e do tema o que natildeo se constitui tarefa das mais faacuteceis
por tratar-se de obra multifacetada de linguagem muito elaborada que prima pela sofisticaccedilatildeo
mas que natildeo despreza uma certa tonalidade menos erudita que se pode ateacute denominar em
alguma medida popular ou humilde De fato pelo recurso aos salmos e textos escrituraacuterios
com seu respectivo campo semacircntico permeado de expressotildees da liacutengua grega vulgar (κοινή)
traduzidas ou transliteradas em latim conhecidos de toda comunidade cristatilde natildeo apenas por
serem lidos mas principalmente por sua funccedilatildeo lituacutergica eacute sem duacutevida uma linguagem
(sermo) popular ou humilis todavia pelos mecanismos retoacutericos extremamente requintados e
pelas referecircncias a toda uma cultura filosoacutefica de par com uma argumentaccedilatildeo em muitas pas-
sagens nada singela especialmente nos livros 1 8 e de 9 a 13 pode-se considerar igualmente
elevadiacutessima Portanto humilde e elevada eacute a linguagem das Confissotildees constituindo em si
mesma um oximoro
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Diante desse desafio de escrever tanto para a gente mais simples como para filoacutesofos
desafio que se exprime nesse caso pela linguagem supotildee-se que Agostinho natildeo tenha simples-
mente pretendido abaixar o registro de seu discurso descendo aos simples e pequeninos (ad
catechizandos rudes) muito ao contraacuterio ao que parece pretendia elevar-se ou melhor ser
elevado ao confessar-se arrependido penitenciando-se mas tambeacutem ao confessar sua feacute e seu
louvor enaltecendo e reconhecendo a graccedila de Deus em sua vida Em sendo assim ao ser ele-
vado por Deus pela confissatildeo pretende igualmente mover as almas incitando-lhes semelhante
elevaccedilatildeo ou quando natildeo o desejo de elevaccedilatildeo desejo de que se deixassem igualmente elevar
como ele confessava desejar o que se pode considerar sem duacutevida uma meta de caraacuteter pastoral
Portanto sua missatildeo quanto ao paacutethos eacute tambeacutem a de mover as almas agrave salvaccedilatildeo que
se pode sintetizar na vontade de ser elevado e de para lanccedilar matildeo duma contradiccedilatildeo merecer
por uma espeacutecie de ascese cataacutertica a graccedila divina a misericoacuterdia do Deus justiacutessimo Ora
disso decorre a possibilidade duma outra funccedilatildeo da linguagem extremamente comovente fruto
dos recursos da elocuccedilatildeo a que recorre Agostinho nas Confissotildees e interligada com essa funccedilatildeo
dita pastoral de elevar as almas uma funccedilatildeo que se pode compreender como simultaneamente
propedecircutica e filosoacutefica Com efeito se uma das funccedilotildees deste paacutethos que se diz de caraacuteter
pastoral pretende comover positiva e negativamente incitando a um soacute tempo o desejo de
salvaccedilatildeo e o de horror agrave perdiccedilatildeo o desejo de buscar Deus e de evitar o mal de buscar ser mais
pela proximidade do Ser supremo e de evitar ser menos ou deixar de ser pelo afastamento desse
mesmo Ser como se percebe sobremodo nos livros da parte considerada biograacutefica da obra o
que natildeo implica de modo algum a exclusatildeo dos restantes livros a outra funccedilatildeo por sua vez
relacionada intimamente agrave primeira de que se pode dizer seja consequecircncia natural que se
exacerba tambeacutem a partir dos recursos da elocuccedilatildeo e que como se disse tem caraacuteter prope-
decircutico compreende-se como uma funccedilatildeo de purificaccedilatildeo filosoacutefica de afastamento progressivo
das coisas deste mundo de afastamento da ldquocarnerdquo se se pode dizer tendo em vista o despren-
dimento rumo a uma vida mais espiritual de proximidade com o Ser o puro Inteligiacutevel que se
transubstancia por sua vez num projeto de vivecircncia cristatilde o que se destaca sobremodo a partir
do livro novo encontrando sua foz nos estertores do livro derradeiro Donde ser liacutecito afirmar
que os livros da parte biograacutefica das Confissotildees do primeiro ao oitavo tecircm tambeacutem essa fun-
ccedilatildeo de purificaccedilatildeo tanto das emoccedilotildees como da razatildeo ou seja de disciplinar ou exercitar asce-
ticamente a alma (exercitatio animi)18 a fim de que os leitores e ouvintes pudessem estar pre-
parados para o que havia de vir nos livros subsequentes E isso parece estar em harmonia com
18 Ἥ ἄσκησις ἥ τῆς ψυχῆς
151
o projeto filosoacutefico platocircnico-cristatildeo que Agostinho tinha para sua vida e que colocou em praacute-
tica desde os tempos preacute-batismais de Cassiciacuteaco ateacute ser interrompido pela sua consagraccedilatildeo
sacerdotal (391 dC) um projeto propedecircutico-purificador
E de fato se se pode aventar que esse projeto cataacutertico da razatildeo encontra seu ponto de
saiacuteda no expurgo do ceticismo de tipo neoacadecircmico como se percebe nos trecircs livros intitulados
Contra Academicos desenvolve-se sobremodo nas paacuteginas do diaacutelogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monoacutelogo com os Soliloacutequios obras do mesmo periacuteodo
Formato monoloacutegico esse denominado por Dupuy-Trudelle (1998 p 1198) ldquodesdobramentordquo
que eacute bem possiacutevel tenha servido de laboratoacuterio para as proacuteprias Confissotildees sugere a autora
refletindo a intenccedilatildeo de Agostinho apesar da excelecircncia da feacute de levar as exigecircncias da razatildeo
ateacute ao limite extremo num esforccedilo de purificaccedilatildeo num ir-aleacutem das paixotildees e desiludir-se sobre
si mesmo Ora estar iludido acerca de si mesmo natildeo eacute impedimento agrave feacute mas o eacute ao acesso agrave
convicccedilatildeo intelectual verdadeira Portanto para chegar-se ao conhecimento define esta autora
(ibid pp 1198-9) faz-se mister como condiccedilatildeo uacutenica a ldquolibertaccedilatildeo da razatildeo de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesmardquo libertaccedilatildeo a que os Soliloacutequios datildeo curso
Pode-se compreender que para desenlamear a consciecircncia dos similisavoirs libertaacute-
la de toda ilusatildeo psicoloacutegica ensinaacute-la que o desejo da verdade natildeo eacute ainda a posses-
satildeo da verdade permitir-lhe ir aleacutem do conflito de interesses que leva a opiniatildeo a
revoltar-se contra a verdade seja preciso mensurar a distacircncia entre o sujeito e si
mesmo Ora fazecirc-lo eacute um convite a mensurar a distacircncia entre si e o conhecimento de
Deus Eis entatildeo todo o sentido do exerciacutecio proposto pelo ldquosoliloacutequiordquo mensurar uma
e outra19
Natildeo parece haver duacutevidas de que os Soliloacutequios trazem em si de modo embrionaacuterio o estilo
que haveria de consagrar sobretudo a partir das Confissotildees quando entatildeo dispensa o combate
direto de ideias preferindo ldquodesdobrar-serdquo e deixar-se interrogar por si mesmo ainda que de
modo proleacuteptico continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas
Todavia eacute mais que provaacutevel que esta exigecircncia natildeo tenha surgido do nada e sim pertenccedila a
um projeto filosoacutefico maior que englobe as demais obras de Cassiciacuteaco sendo-lhe entatildeo um
como que desenvolvimento natural
No proacutelogo do De ordine (13-4) Agostinho argumenta que o homem por ser um des-
conhecido de si mesmo natildeo consegue perceber a ordem que reina em todo o universo ordem
providencial em que ele estaacute inserido e que para conseguir conhecer-se seria necessaacuterio entrar
em si mesmo ali permanecendo afastado dos sentidos lugar em que poderia entatildeo curar-se das
feridas que as opiniotildees vulgares infligem agrave alma seja pelo ldquofogordquo do ldquoisolamentordquo conforme
19 DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Les Confessions Paris Gal-
limard 1998 p 1206
152
se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
153
soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
154
As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
155
menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
156
Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
157
sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
158
(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
159
articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
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Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
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da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
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das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
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O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
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Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
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ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
REFEREcircNCIAS
[CICERO] Rhetorica ad Herennium (Transl by Harry Caplan) Cambridge (MA) Harvard
University Press 2004 (LOEB Classical Library 403)
ARISTOTELIS Ars Rhetorica (Recognouit breuique adnotatione critica instruxit W D
Ross) Oxford Oxford University Press 2008 (Oxford Classical Texts)
ARISTOTLE The Complete Works of Aristotle (The Revised Oxford Translation Edited by
Jonathan Barnes) Sixth Printing with corrections Princeton Princeton University Press
1995 (Volumes I amp II)
AUERBACH Erich Ensaios de Literatura Ocidental Filologia e Criacutetica 1ordf ed Satildeo Paulo
Duas Cidades Editora 34 2007 pp 15-96 ldquoSacrae scripturae sermo humilisrdquo pp 15-28
ldquoSermo humilisrdquo pp 29-76 ldquoGloria Passionisrdquo pp 77-96
AUGUSTIN Confessions (Texte Eacutetabli et Traduit par Pierre de Labriolle) Seiziegraveme tirage
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131
O sistema retoacuterico aristoteacutelico uma siacutentese
Natildeo constituindo um fim em si mesma a retoacuterica eacute apenas uacutetil (χρήσιμος) diz Aristoacute-
teles (1355b14)3 o que equivale a dizer que serve para algo ulterior tampouco se limita a algum
objeto especiacutefico de persuasatildeo (οὐ περί τι γένος ἴδιον) o que implica sua utilizaccedilatildeo em qual-
quer gecircnero de discurso em qualquer aacuterea em que seja necessaacuterio argumentar para algum fim
porque nenhuma arte pode ocupar-se do particular que eacute infinito (τὸ δὲ καθrsquo ἕκαστον ἄπειρον)
(1356b30-7) Assim sendo os temas de que trata a retoacuterica satildeo (1357a1-4) 1 temas passiacuteveis
de deliberaccedilatildeo (βουλευόμεθα) 2 temas para os quais natildeo haacute arte sistemaacutetica (τέχνας μὴ
ἔχομεν) ou seja que estatildeo fora do escopo dalguma ciecircncia ou teacutecnica 3 temas que se tratam
diante de pessoas comuns incapazes de efetuar ou acompanhar raciociacutenios loacutegicos elaborados
(οὐδὲ λογίζεσθαι πόρρωθεν) ou de contemplar uma visatildeo de conjunto (διὰ πολλῶν
συνορᾶν) E se os temas satildeo passiacuteveis de deliberaccedilatildeo satildeo igualmente controversos pois natildeo
se delibera senatildeo acerca do que aparente admitir (ao menos) dois modos de pensar (1357a4-5)
(περὶ τῶν φαινομένων ἐνδέχεσθαι ἔχειν ἀμφοτέρως) Portanto trata a retoacuterica de temas so-
bre os quais natildeo se tem certeza pois para os assuntos passados presentes ou futuros que de
modo indubitaacutevel foram (γενέσθαι) seratildeo (ἔσεσθαι) ou satildeo (ἔχειν) ningueacutem delibera (οὐδεὶς
βουλεύεσθαι) porque natildeo se discute acerca do certo apenas do duvidoso (ἀμφισβητήσιμος)
uma vez que nada se aprende do que jaacute eacute sabido explica o filoacutesofo
E assim como os temas tratados trecircs satildeo igualmente os tipos de ouvintes (τῶν
ἀκροατῶν) que de um modo ou de outro satildeo todos juiacutezes 1 aquele que ajuiacuteza (κριτής) das
coisas passadas (τῶν γεγενημένων) 2 o membro da assembleia (ἐκκλησιαστής) ou do con-
selho (βουλευτής) que julga das coisas futuras (τῶν μελλόντων) 3 ο espectador ou contem-
plante (θεωρός) que julga das coisas presentes (1358b1-6) Do que decorre serem trecircs tambeacutem
os gecircneros discursivos voltados respectivamente aos trecircs tipos diferentes de ouvintes (1368b6-
7) 1 judiciaacuterio (δικανικόν) que presume o juiacutezo dum magistrado (δικαστής) num tribunal
(δικαστήριον) 2 deliberativo (συμβουλευτικόν) que presume ou o membro da assembleia
(ἐκκλησία) ou do conselho (βουλή) oacutergatildeos legislativos sobremodo 3 epidiacutectico
(ἐπιδεικτικόν) ou demonstrativo que presume a presenccedila dum puacuteblico de espectadores
(θεωροί) seja para um panegiacuterico (λόγος πανηγυρικός) ou mesmo para uma conferecircncia
filosoacutefica (ἐπίδειξις) Dos trecircs gecircneros de discurso o judiciaacuterio volta-se predominante mas natildeo
3 As referecircncias agrave Retoacuterica de Aristoacuteteles se faratildeo pela ediccedilatildeo criacutetica da seacuterie Oxford Classical Texts anotada
e revista por Ross que teve como base a ediccedilatildeo de Bekker cotejada com outros manuscritos
132
exclusivamente ao que se denomina paacutethos o deliberativo ao ecircthos enquanto o epidiacutectico ao
loacutegos o que trocando em miuacutedos significa dizer 1 que nos discursos do gecircnero judiciaacuterio se
procura movimentar as paixotildees dos juiacutezes a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa que se quer
justa ou um juiacutezo desfavoraacutevel agrave causa adversaacuteria que se reputa injusta 2 que nos discursos
deliberativos procura-se construir um caraacuteter moral digno de admiraccedilatildeo respeito e sobretudo
confianccedila a fim de persuadir a assembleia ou o conselho acerca dum dado curso de accedilatildeo que
se julga proveitoso ou dissuadi-la de algo por reputaacute-lo inuacutetil ou nocivo o que natildeo se faz senatildeo
sobre o ecircthos uma vez tratar-se de algo completamente incerto o futuro cujas garantias se
esteiam apenas sobre a opiniatildeo dos ditos homens de bem e por fim 3 que nos discursos do
gecircnero epidiacutectico trata-se sobremaneira (mas natildeo exclusivamente) do proacuteprio discurso quando
se pretende louvar ou censurar seja o belo o bom ou seus contraacuterios o feio e o mau diante
dum auditoacuterio de espectadores que pode ser tambeacutem o de um universo determinado de leitores
Nos trecircs gecircneros descritos que se dirigem para o passado (judiciaacuterio) futuro (delibera-
tivo) e presente (epidiacutectico) faz-se preciso argumentar em favor da causa daquilo que se con-
sidera respectivamente justo uacutetil e belo ou seus contraacuterios E seja qual for o juiacutezo que se tenha
em mente necessaacuterio se faz o recurso agraves chamadas provas (πίστεις) retoacutericas que segundo
Aristoacuteteles podem ser ldquoteacutecnicasrdquo (ἔντεχνοι) ou ldquonatildeo-teacutecnicasrdquo (ἄτεχνοι)4 (1355b-1356a) As
primeiras se referem a tudo aquilo que eacute fruto do esforccedilo do orador dentro das regras da arte
(τέχνη) As segundas a tudo o que estaacute fora da arte natildeo tendo sido produzido pelo orador
como 1 testemunhos (μάρτυρες) 2 contratos (σύγγραφαι) 3 e ateacute confissotildees obtidas por
meio de tortura (βάσανοι) Portanto as provas teacutecnicas devem ser ldquodescobertasrdquo ou ldquoencontra-
dasrdquo (εὑρεῖν) as natildeo-teacutecnicas apenas utilizadas (χρήσασθαι) Evidente que as provas que mais
interessam agrave arte retoacuterica (ao menos agrave aristoteacutelica) satildeo antes as de caraacuteter teacutecnico (1356a1-4)
fruto do esforccedilo de invenccedilatildeo (εὕρεσις) do orador segundo o meacutetodo (διὰ μεθόδου) da arte
quais sejam 1 ecircthos (ἦθος) as provas eacuteticas que se atecircm ao caraacuteter do orador (αἱ ἐν τῷ ἤθει
τοῦ λέγοντος) 2 paacutethos (πάθος) as provas que objetivam pocircr o auditoacuterio num certo estado
de espiacuterito ao movimentar seus sentimentos aguccedilar suas paixotildees (αἱ ἐν τῷ τὸν ἀκροατὴν
διαθεῖναί πως) 3 loacutegos (λόγος) as provas que nem se voltam especificamente para a audi-
ecircncia tampouco para o orador e sim para o proacuteprio discurso (αἱ ἐν αὐτῷ τῷ λόγῳ) Pois bem
4 Os termos ἔντεχνοι e ἄτεχνοι ldquoteacutecnicasrdquo e ldquonatildeo-teacutecnicasrdquo que qualificam ldquoprovasrdquo (πίστεις) por vezes se
traduzem tambeacutem por ldquoartiacutesticasrdquo e ldquoinartiacutesticasrdquo ldquoartificiaisrdquo e ldquoinartificiaisrdquo ou ainda ldquointriacutensecasrdquo e ldquoextriacutense-
casrdquo
133
se as provas teacutecnicas satildeo destes trecircs gecircneros depreende-se como necessaacuterio para o ecircthos paacute-
thos e loacutegos respectivamente 1 o estudo dos caracteres (τοῦ θεωρῆσαι περὶ τὰ ἤθη) e das
virtudes (καὶ τὰς ἀρετάς) 2 o estudo das emoccedilotildees ou paixotildees da alma (θεωρῆσαι περὶ τὰ
πάθη) 3 e o estudo do raciociacutenio loacutegico ou silogiacutestico (τοῦ συλλογίσασθαι δυναμένου)
(1356a20)
Em cada um dos gecircneros retoacutericos predomina uma prova teacutecnica apropriada sem exclu-
satildeo das restantes assim como tarefas e objetivos especiacuteficos a saber 1 no gecircnero judiciaacuterio
cujo predomiacutenio do paacutethos jaacute se referiu o orador tem por tarefa (πράξις) a acusaccedilatildeo
(κατηγορία) e a defesa (ἀπολογία) e por objetivo ou finalidade (τέλος) ajuizar do justo (τὸ
δίκαιον) e do injusto (τὸ ἄδικον) acerca de fatos passados 2 no deliberativo por sua vez cujo
peso do ecircthos foi posto em destaque tem-se a tarefa da exortaccedilatildeo (προτροπή) ou da dissuasatildeo
(ἀποτροπή) acerca do proveitoso (τὸ συμφερόν) ou do prejudicial (τὸ βλαβερόν) com res-
peito aos eventos futuros 3 por fim no epidiacutectico cuja prova principal eacute o loacutegos tem-se por
tarefa o louvor (ἔπαινος) ou a censura (ψόγος) seja sobre o belo (τὸ καλόν) ou o bom (τὸ
ἀγαθόν) seja sobre o feio (αἰσχρόν) ou sobre o mau (τὸ κακόν) em relaccedilatildeo agraves coisas que satildeo
no presente
Argumentos ou provas de tipo demonstrativo igualmente predominam em cada um dos
gecircneros retoacutericos sem obviamente implicar a exclusatildeo dos demais Daiacute que 1 no judiciaacuterio
argumenta-se em favor do justo ou contra o injusto seja acusando ou defendendo por meio
predominantemente de entimemas (ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) o que natildeo exclui ne-
nhum dos demais recursos 2 no deliberativo por sua vez argumenta-se em favor ou contra
um determinado curso de accedilatildeo proveitoso ou prejudicial seja pela exortaccedilatildeo ou dissuasatildeo
acima de tudo por meio de exemplos (παραδείγματα) pois eacute a partir do que fizeram homens
ilustres do passado em feitos natildeo menos ilustres que se pode deliberar em vista dum futuro
incerto 3 por fim no gecircnero epidiacutectico argumenta-se a favor de ou contra uma determinada
qualidade virtude viacutecio tese ou pessoa seja louvando ou censurando de modo principal por
meio da amplificaccedilatildeo que pode ser positiva (αὔξησις) ou negativa (ταπείνωσις) sem que se
excluam os demais recursos probatoacuterios
Todo esse ldquosistemardquo retoacuterico elaborado ou desdobrado por Aristoacuteteles pode ser visuali-
zado com mais clareza na seguinte disposiccedilatildeo tabelar
Tabela I
134
GEcirc
NE
RO
S D
E
DIS
CU
RS
O
τρία
γέν
η τῶ
ν λό
γων
AUDITOacuteRIO ἀκροατής
JUIacuteZO E TEMPO κρίσις καὶ χρόνος
PROVAS
TEacuteCNICAS πίστεις ἔντεχνοι
TAREFAS E OBJETIVOS πράξεις καὶ τέλος
PROVA
DEMONSTRATIVA ἀπόδειξις
JUD
ICIAacute
RIO
δι
κανι
κόν
JUIZ-TRIBUNAL δικαστής
δικαστήριον
DO QUE DECORREU
NO PRETEacuteRITO περὶ τῶν γεγενημένων
PAacuteTHOS πάθος
ACUSACcedilAtildeO Ε DEFESA κατηγορία ἀπολογία
O JUSTO E O INJUSTO τὸ δίκαιον ἄδικον
ENTIMEMAS
E MAacuteXIMAS ἐνθυμήματα
γνῶμαι
DE
LIB
ER
AT
IVO
συ
μβου
λευτ
ικόν
LEGISLADOR-AS-
SEMBLEIA
CONSELHO βουλευτής
ἐκκλησία βουλή
DO QUE PODE OCORRER
NO FUTURO περὶ τῶν μελλόντων
EcircTHOS ἦθος
EXORTAR E DISSUADIR προτροπή ἀποτροπή
O UacuteTIL E O PREJUDICIAL τὸ συμφερόν βλαβερόν
EXEMPLOS παραδείγματα
EP
IDIacuteC
TIC
O
ἐπιδ
εικτι
κόν ESPECTADOR-
CONFEREcircNCIA θεωρός ἐπίδειξις
SOBRE O QUE Eacute
NO PRESENTE
(DA VIRTUDE DO DISCURSO) περὶ τῆς δυνάμεως
τοῦ λόγου
LOacuteGOS λόγος
LOUVOR E CENSURA ἔπαινος ψόγος
O BELO OU BOM
E O FEIO OU MAU τὸ καλὸν ἢ ἀγαθόν
τὸ αἰσχρὸν ἢ κακόν
AMPLIFICACcedilAtildeO αὔξησις ταπείνωσις
Importa notar que a coluna das ldquoprovas teacutecnicasrdquo deve ser compreendida do seguinte modo 1
no gecircnero judiciaacuterio preponderacircncia do paacutethos seguido de loacutegos e ecircthos 2 no deliberativo
preponderacircncia do ecircthos seguido de loacutegos e paacutethos 3 no epidiacutectico preponderacircncia do loacutegos
seguido de paacutethos e ecircthos Isso porque em todos os gecircneros se fazem necessaacuterias todas as trecircs
provas teacutecnicas mescladas com a precedecircncia de uma ou outra em relaccedilatildeo agraves restantes E o
mesmo se diga da coluna das provas ldquodemonstrativasrdquo que deve ser entendida do seguinte
modo 1 judiciaacuterio preponderacircncia dos entimemas e maacuteximas sem excluir exemplos e ampli-
ficaccedilotildees 2 deliberativo preponderacircncia dos exemplos sem omissatildeo de entimemas maacuteximas
e amplificaccedilotildees 3 epidiacutectico preponderacircncia da amplificaccedilatildeo seja pela auxese ou tapeinose
sem que se excluam maacuteximas exemplos e entimemas De fato Aristoacuteteles encerra o segundo
livro da retoacuterica dando destaque igual aos trecircs recursos ao dizer que em relaccedilatildeo ao loacutegos (περὶ
τὸν λόγον) ou seja no que tange agrave atividade do pensamento (διάνοια) tanto exemplos
(παραδείγματα) como entimemas (ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) se fazem igualmente
importantes (1403a34-35)
Embora Aristoacuteteles priorize sobremodo os fatos e a demonstraccedilatildeo reconhece a necessi-
dade do recurso aos outros gecircneros de provas que natildeo as exclusivamente apodiacutecticas uma vez
ter plena consciecircncia de que os adversaacuterios a elas recorrem muita vez sem escruacutepulos care-
cendo o orador de estar ciente de seu mecanismo ao menos para defender-se como se deve
135
pois seria esdruacutexulo (ἄτοπον) reconhece o filoacutesofo (1355a39-b2) se se considerasse vergo-
nhoso (αἰσχρόν) que o corpo natildeo pudesse defender-se a si mesmo mas que a mesma defesa
natildeo fosse facultada ao espiacuterito pela atividade mental-discursiva uma vez que o que caracteriza
o homem eacute muito mais a atividade intelectual que a fiacutesica5 Portanto embora desejasse intima-
mente restringir sua Retoacuterica ao tratamento das mateacuterias uacuteteis para o entimema (1354a5) que
eacute o silogismo retoacuterico como faz no primeiro livro segundo cada um dos gecircneros contudo uma
vez que cada um dos trecircs tipos de ouvintes relacionados respectivamente aos trecircs gecircneros dis-
cursivos eacute em si mesmo uma espeacutecie de juiz (κριτής) a quem cabe ajuizar seja do justo ou do
injusto do proveitoso ou do nocivo e do belo ou do feio numa palavra como a retoacuterica grosso
modo tem que ver com ldquojuiacutezosrdquo (ἕνεκα κρίσεώς ἐστιν ἡ ῥητορική) reconhece o filoacutesofo que
natildeo basta tornar o discurso apenas apodiacutectico (ἀποδεικτικός) ou criacutevel (πιστός) por meio das
provas exclusivamente demonstrativas (λόγος) como o entimema e os exemplos mas tambeacutem
saber como fazer com que o orador pareccedila ter um determinado caraacuteter (ἦθος) aleacutem de ser capaz
de pocircr os juiacutezes sejam quais forem num certo estado de espiacuterito (πάθος) Pelo que faz enorme
diferenccedila que o orador mostre-se possuidor de certas qualidades (τὸ ποίον τινα φαίνεσθαι τὸν
λέγοντα) e que seus ouvintes estejam dispostos de certo modo em relaccedilatildeo a ele pensando por
sua vez que ele tambeacutem esteja disposto de certo modo em relaccedilatildeo a eles No discurso delibe-
rativo eacute mais importante que o orador pareccedila ser portador dum caraacuteter ilibado confiaacutevel no
judiciaacuterio que os que iratildeo julgar estejam dispostos de modo favoraacutevel agrave causa e ao pleiteante
No epidiacutectico por sua vez os dois anteriores natildeo devem ser desprezados quando importa natildeo
apenas a construccedilatildeo dum certo caraacuteter mas tambeacutem a disposiccedilatildeo do auditoacuterio no que redunda
numa certa combinaccedilatildeo ecircthos-paacutethos que se deve submeter ao serviccedilo do loacutegos a fim de em-
preender o louvor ou a censura Em assim sendo maacuteximas (γνῶμαι) exemplos
(παραδείγματα) amplificaccedilotildees (αὐξήσεις) de toda sorte de par com as ferramentas da elocu-
ccedilatildeo (λέξις) como as figuras (σχήματα) e os tropos (τρόποι) se combinam natildeo apenas pela
beleza que podem conferir ao estilo mas principalmente por sua forccedila (δύναμις) argumentativa
o que os transforma em armas bastante eficazes tanto para o discurso de louvor como para o de
caraacuteter filosoacutefico
Conhecidos pois os gecircneros de discurso os auditoacuterios especiacuteficos de cada um junta-
mente com os tempos e juiacutezos das accedilotildees as provas teacutecnicas as tarefas objetivos e provas de-
monstrativas predominantes resta conhecer as trecircs grandes metas que devem ser cumpridas em
5 (1355a39-b2) ldquoἄτοπον εἰ τῷ σώματι μὴ δύνασθαι βοηθεῖν ἑαυτῷ λόγῳ δ᾿ οὐκ αἰσχρόν ὃ μᾶλλον
ἴδιόν ἐστιν ἀνθρώπου τῆς τοῦ σώματος χρείαςrdquo
136
cada uma das fazes de composiccedilatildeo do discurso 1 invenccedilatildeo (εὕρεσις ou inuentio) descobrir de
onde tirar as provas (ἐκ τίνων πίστεις ἔσονται) 2 disposiccedilatildeo (τάξις ou dispositio) ordenar
as partes do discurso isto eacute as provas encontradas na invenccedilatildeo (πῶς χρή τάξαι τὰ μέρη τοῦ
λόγου) 3 elocuccedilatildeo (λέξις ou elocutio) tratar do estilo (περὶ τὴν λέξιν) ou seja do modo de
apresentaccedilatildeo das ideias que foram encontradas e ordenadas (1403b6-8) Da primeira meta a
invenccedilatildeo ou descoberta das provas Aristoacuteteles tratou nos dois primeiros livros ao discorrer
sobre as mateacuterias adequadas ao entimema e aos exemplos de par com o que eacute uacutetil agrave construccedilatildeo
dos caracteres e o estudo detalhado das paixotildees da alma com vistas agrave afetaccedilatildeo dos juiacutezes Res-
taram apenas a disposiccedilatildeo das mateacuterias e a elocuccedilatildeo ou seja o tratamento do estilo o que o
filoacutesofo empreende fazer no terceiro e uacuteltimo livro da Retoacuterica
No que se refere ao estilo (περὶ τῆς λέξεως) Aristoacuteteles pondera que natildeo basta possuir
o quecirc se natildeo se souber como dizecirc-lo (ὡς δεῖ εἰπεῖν) (1403b16) o que se deve fazer sempre de
modo claro jaacute que a grande virtude da elocuccedilatildeo eacute a clareza (λέξεως ἀρετὴ σαφῆ εἶναι)
(1404b1-2) e o discurso que natildeo for claro natildeo cumpriraacute sua tarefa (1404b2-3) (οὐ ποιῆσει τὸ
ἑαυτοῦ ἔργον) Tendo as mateacuterias de persuasatildeo a seu dispor o orador deve cuidar da apresen-
taccedilatildeo desse material (λέξει διαθέσθαι) ou seja do estilo do discurso para entatildeo empregar a
forccedila (δύναμις) de accedilatildeo atualizando aquilo que se descobriu e figurou dum certo modo
(ὑπόκρισις) Essa atualizaccedilatildeo ou representaccedilatildeo do discurso hupoacutekrisis que em latim se deno-
mina actio refere-se agrave sua expressatildeo oral compreendendo questotildees de voz (φωνή) volume
(μέγεθος) harmonia (ἁρμονία) ritmo (ῥυθμός) e tom (τόνος) que pode ser agudo (ὀξύς)
grave (βαρύς) ou meacutedio (μέσος)
Por fim no que tange agrave disposiccedilatildeo das mateacuterias (περὶ τῆς τάξεως) cujo tratamento se
inicia no final do terceiro livro da Retoacuterica (1414a29) Aristoacuteteles resume em duas as partes
principais do discurso isso porque nem toda parte da divisatildeo tradicional respeitava a todo e
qualquer gecircnero 1 o estado da questatildeo (πρόθεσις) isto eacute a exposiccedilatildeo da causa (τὸ πρᾶγμα
εἰπεῖν) acerca de que se haacute de argumentar (περὶ οὗ) 2 a prova (πίστις) ou seja a demonstraccedilatildeo
(τὸ ἀποδεῖξαι) (1414a31-36) A divisatildeo tradicional por sua vez elenca as seguintes partes 1
proecircmio ou exoacuterdio (προοίμιον) 2 narraccedilatildeo (διήγησις) que se subdivide em 21 exposiccedilatildeo
da causa (πρόθεσις) e 22 refutaccedilatildeo (ἀντιδίκησις) 3 prova (πίστις) 4 peroraccedilatildeo ou conclusatildeo
(ἐπίλογος) destas contudo apenas o proecircmio o estado da questatildeo a prova e a peroraccedilatildeo se
aplicam a todos os gecircneros retoacutericos (1414b8-9)
Do que se disse natildeo se deve imaginar que o discurso filosoacutefico esteja fora do acircmbito
retoacuterico pois ainda que se trate do discurso de um soacute pretende sempre persuadir ou persuadir-
137
se de algo seja duma verdade ideia crenccedila ou praacutetica E todo aquele que deve ser persuadido
seja o proacuteprio autor do discurso ou um outro se faz indubitavelmente juiz (1391b11-12)
(ἁπλῶς κρίτης) Deste modo esteja-se disposto contra um oponente (πρὸς ἀμφισβητοῦντα)
ou contra uma teoria (πρὸς ὑπόθεσιν) eacute preciso uma vez e sempre recorrer agrave argumentaccedilatildeo
(τῷ λόγῳ ἀνάγκη χρῆσθαι) a fim de defender um ponto de vista ou destruir o seu contraacuterio
(1391b13-14) o que eacute apropriado ao gecircnero de discurso epidiacutectico acima de tudo (ὡσαύτως
ἐν τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) como se se estivesse argumentando diante de um verdadeiro juiz
(ὥσπερ πρὸς κρίτην) que no caso eacute o espectador (θεωρός) aquele que contempla observa
aprende agrave maneira dum disciacutepulo dum arguidor dialeacutetico ou do proacuteprio filoacutesofo se este estiver
apenas escrevendo
Os gecircneros retoacutericos nas Confissotildees consideraccedilotildees teoacutericas
Quando se estaacute diante de temas controversos que aceitam ao menos dois modos dife-
rentes de pensar como os temas tipicamente retoacutericos (1357a1-5) a demonstraccedilatildeo apodiacutectica
(ἀπόδειξις) raramente eacute possiacutevel diz Olivier Reboul (2000 p 27) natildeo sendo nada ldquocientiacuteficardquo
a exigecircncia de ldquorespostasrdquo de caraacuteter cientiacutefico como ocorre nas Confissotildees por exemplo
quando se quer falar das ldquocoisasrdquo de Deus Contudo entre a luz do que se pode apreender cien-
tificamente (e demonstrar apodicticamente) e a obscuridade da mais completa ignoracircncia acerca
do misteacuterio abissal do Ser encontra-se todo um universo de possibilidades retoacutericas cujo rei-
nado pertence ao argumento E se argumentar natildeo eacute senatildeo propor y para que se admita x como
bem o ilustra esse autor (ibid pp 91-2) que se poderia argumentar acerca do Ser enquanto
Ser (x) sem que se circunscrevesse a dizer de seus pseudopredicados (y) daquilo que apenas
eacute Recursos haacute poreacutem que permitem dizecirc-lo argumentando enquanto Ser ainda que de modo
ilusoacuterio obliacutequo silencioso a partir dos mecanismos que a arte retoacuterica oferece seja com o
auxiacutelio do ecircthos do paacutethos ou do loacutegos os trecircs gecircneros de provas ditas teacutecnicas
Um dos objetivos de Agostinho ao pretender falar de Deus tema indubitavelmente con-
troverso (ἀμφισβητήσιμος) na referida acepccedilatildeo aristoteacutelica isto eacute passiacutevel de disputa por ser
natildeo-apodiacutectico pelo que igualmente retoacuterico pode-se dizer seja pocircr em destaque primordial-
mente o loacutegos o que se faz sobretudo por meio dum discurso do gecircnero epidiacutectico em que
predomina a funccedilatildeo referencial da linguagem uma pseudoterceira pessoa discursiva melhor
compreendida como uma natildeo-pessoa ou seja aquilo de que se fala (περὶ οὗ λέγει) (1358b1)
Todavia jamais deixa de pretender comover (πάθος) poreacutem natildeo especificamente quando fala
138
com Deus ο ldquopara quemrdquo (πρὸς ὅν) (1388b1) pois o Ser divino enquanto segunda pessoa
discursiva eacute onisciente e embora deixe-se dalgum modo misterioso comover por causa de sua
misericoacuterdia por ser igualmente justo ele cujo juiacutezo eacute inexoraacutevel torna a tarefa quanto ao
paacutethos um tanto obstada Por isso os esforccedilos de Agostinho no sentido de comover devem vol-
tar-se nem sempre e de imediato a Deus e sim aos seus leitores o auditoacuterio cristatildeo a quem o
filoacutesofo confessa de fato dirigir-se (Conf 235) ldquoA quem estou relatando estas coisas Ora
natildeo a ti meu Deus e sim na tua presenccedila relato-as aos de meu gecircnero ao gecircnero humano por
pequenina a parcela dos que possam deparar com estes meus escritosrdquo6
Quer comover portanto aleacutem de fazer converter para Deus como se viu convertido
fazendo com que as almas se elevem movidas pela penitecircncia o que natildeo se faz senatildeo tendo em
vista uma accedilatildeo futura (περὶ τῶν μελλόντων) E se para falar de Deus carece dum loacutegos apro-
priado ao louvor (ἔπαινος) que eacute tambeacutem contemplaccedilatildeo (θεωρεῖν) contemplaccedilatildeo do Belo (τὸ
καλόν) e do Bem (τὸ ἀγαθόν) a comoccedilatildeo natildeo se faz sem os recursos do paacutethos tampouco
prescindindo do ecircthos a fim de edificar um caraacuteter penitente digno do arrependimento ou con-
versatildeo mental (μετάνοια) a que todo cristatildeo deve submeter-se antes de crer no Evangelho
como admoestava Cristo (Mc 114-15) ldquoArrependei-vos [= convertei-vos] e crede no Evange-
lhordquo (μετανοεῖτε καὶ πιστεύετε ἐν τῷ εὐαγγελίῳ) Portanto Agostinho carece tambeacutem de
construir sempre pelo discurso (διὰ τοῦ λόγου) seu ecircthos discorrendo acerca daquilo que de
edificante se passou consigo (περὶ τῶν γεγενημένων) (1358b5) para os ldquojuiacutezesrdquo (δικασταί)
do auditoacuterio cristatildeo pois seu preteacuterito precisa de ser desenodoado Destarte ao narrar suas
desventuras pregressas confessando-se a Deus e aos homens potildee em destaque seja um Tu
divino que eacute tambeacutem a terceira pessoa discursiva e seu referente pois eacute dele que se fala seja
um tu humano semelhante a si seu leitor Pelo que loacutegos ecircthos e paacutethos se fazem necessaacuterios
de modo temperado segundo as tarefas e os objetivos que se desdobram a cada passo da obra
Tendo pois construiacutedo um ecircthos confiaacutevel a partir de suas gestas pregressas segundo
a taacutebua de valores cristatildeos como a humildade ou a misericoacuterdia por exemplo pode Agostinho
direcionar daiacute em diante sua atenccedilatildeo para o futuro ao modo do gecircnero deliberativo a fim de
comover as almas exortando-as (προτρέπω) seja a voltar-se para Deus o Fim uacuteltimo ou Bem
supremo que se louva pelos recursos do loacutegos seja dissuadindo-as (ἀποτρέπω) de seguir o
caminho do mal que equivale a um afastamento deste mesmo Fim uacuteltimo o que eacute tambeacutem
tarefa do paacutethos quando entatildeo o discurso potildee em destaque a segunda pessoa requerendo um
6 (Conf 235) ldquoCui narro haec neque enim tibi deus meus sed apud te narro haec generi meo generi
humano quantulacumque ex particula incidere potest in istas meas litterasrdquo
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domiacutenio sobre as paixotildees a fim de conduzir o auditoacuterio ao objetivo (τέλος) almejado que
como se disse eacute sempre futuro (περὶ τῶν μελλόντων) Todavia se natildeo se delibera tendo em
vista o fim que se persegue (οὐ περὶ τοῦ τέλος) em conformidade com o que diz Aristoacuteteles
e sim aquilo que leva ateacute ele (ἀλλὰ περὶ τῶν πρὸς τὸ τέλος) (1352a15-19) ou seja os meios
os quais por sua vez residem nas accedilotildees (κατὰ τὰς πράξεις) tem-se como sequecircncia necessaacuteria
que 1 o uacutetil serve a um propoacutesito ulterior um fim e que 2 se o fim for bom o uacutetil natildeo apenas
levaraacute a esse bem mas seraacute tambeacutem de algum modo bom ainda que mediatamente e em menor
grau Daiacute que natildeo apenas o uacutetil em favor de que se delibera seja bom mas tambeacutem a praacuteksis
contraacuteria o seja a saber a rejeiccedilatildeo do nocivo do inuacutetil E com efeito seja para Aristoacuteteles ou
Agostinho o Bem (ἀγαθόν) uacuteltimo ou supremo pode ser definido como sendo aquilo que se
deve buscar (αἱρετόν) em vista de si mesmo (αὑτοῦ ἕκενα) e natildeo de algo ulterior (καὶ μὴ
ἄλλου) (1363b12-14) Esse Fim (τέλος) que coincide com o Bem supremo eacute aquilo em vista
de que (οὗ ἕνεκα) todo o resto (τὰ ἄλλα) se faz (1363b16-17) Em se admitindo com o autor
da Retoacuterica que esse Fim uacuteltimo embora sendo desejado natildeo seja objeto imediato de delibe-
raccedilatildeo e sim as accedilotildees (πράξεις) por meio de que se possa chegar a ele percebe-se sem muito
esforccedilo que as deliberaccedilotildees acerca deste Fim chame-se eudaimoniacutea ou Ser supremo fazem-se
sobremodo a partir de accedilotildees que podem ser virtuosas quando entatildeo se aproxima do objetivo
ou viciosas quando dele se afasta restando manifesto e inconteste o potencial tanto do ecircthos
como do paacutethos no tratamento daquilo que para Agostinho se traduz em princiacutepio pela uita
beata e posteriormente pelo Saacutebado eterno seja nas quatro virtudes cardeais justiccedila tempe-
ranccedila prudecircncia e coragem ou nas trecircs teologais feacute esperanccedila e caridade a serem praticadas
nesta vida tendo em vista o Bem uacuteltimo e supremo Deus seja por outra na comoccedilatildeo necessaacuteria
das almas que se deve aproximar desta mesma uita beata ou afastar da uita misera sem perder
de vista o fim uacuteltimo que se almeja
E se o deliberativo tem sua funccedilatildeo na exortaccedilatildeo tampouco se faz ausente da obra o
gecircnero judiciaacuterio que contempla sobremodo accedilotildees de acusaccedilatildeo (κατηγορία) e de defesa
(ἀπολογία) (1358b) De fato que faz Agostinho na parte dita biograacutefica da obra enquanto
narra suas desventuras preteacuteritas senatildeo acusar-se de seus erros como a experiecircncia entre os
maniqueus entre os ceacuteticos ou mesmo as aventuras ditas libidinosas em Cartago ou entatildeo
fazer a apologia da Graccedila divina da continecircncia da conversatildeo de sua matildee (ao contraacuterio do pai
que ele prefere acusar) Acusaccedilatildeo e defesa portanto seja de atos seus preteacuteritos (περὶ τῶν
γεγενημένων) (1358b5) seja de doutrinas ou ideias que reputa natildeo apenas inimigas do cami-
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nho que leva ao Fim uacuteltimo por ele eleito mas tambeacutem antagocircnicas agrave proacutepria concepccedilatildeo des-
posada deste Ser supremo como o dualismo maniqueu por uma ou o ceticismo de tipo neoa-
cadecircmico por outra que perigosamente ameaccedilava uma das proacuteprias virtudes teologais a natildeo
dizer duas feacute e a esperanccedila por meio duma descrenccedila radical na possibilidade de acesso a
noccedilotildees fundamentadas acerca do verdadeiro
E se se podem perceber nuanccedilas do deliberativo e do judiciaacuterio na exortaccedilatildeo ou dissu-
asatildeo na acusaccedilatildeo e na defesa muito mais no caso do gecircnero predominante expresso pelas Con-
fissotildees o epidiacutectico que segundo Aristoacuteteles compreende tanto o louvor (ἔπαινος) como a
censura (ψόγος) (1358b12-3) De fato que faz Agostinho ao longo das Confissotildees senatildeo cen-
surar o que afasta de Deus louvando o que dele aproxima o homem censurar o pecado lou-
vando seu contraacuterio as virtudes fazer o elogio da vida feliz (beata uita) vituperando seu
oposto a infeliz (misera) E mesmo quando censura seu objetivo natildeo eacute senatildeo louvar louvar o
que se edifica como antipodal daquilo que se estaacute censurando pois natildeo se trata de discorrer
sobre o viacutecio sobre o torto sobre o caminho errado que se natildeo deve percorrer numa palavra
natildeo se trata de discorrer sobre o mal porque ele natildeo existe (entenda-se o mal ontoloacutegico) Ao
contraacuterio trata-se de louvar o que Eacute o Ser por excelecircncia Deus e toda a sua obra cujo paro-
xismo natildeo eacute outro senatildeo o momento em que cria o homem Paradoxal seria pois limitar-se ao
vitupeacuterio o que equivaleria a ressaltar apenas e tatildeo somente aquilo que natildeo possui existecircncia
real o mal ou antisser7 como quem escrevesse um livro sobre o que natildeo eacute As Confissotildees
portanto empreendem sobretudo um discurso de louvor que se bem pode denominar filosofia
do louvor a qual se enquadra perfeitamente no gecircnero epidiacutectico cuja tocircnica eacute dada pelo loacutegos
enquanto referente aquilo de que se fala (περὶ οὗ λέγει) (1358b1) referente de muacuteltiplos sen-
tidos que se pode compreender natildeo apenas como a Palavra que eacute Deus mas tambeacutem a palavra
de Deus a palavra sobre a palavra de Deus a palavra sobre o Deus que eacute Palavra e profere
palavras embora esse mesmo referente enquanto Verbo divino seja inefaacutevel donde ser neces-
saacuterio que esse loacutegos seja tambeacutem linguagem nos recursos retoacutericos precisos a que se diga o
indiziacutevel
Todos os trecircs gecircneros portanto prestam auxiacutelio reciacuteproco pois quem louva no presente
deve fazecirc-lo tambeacutem por meio das lembranccedilas do passado (ἀναμιμνήσειν τὰ γενόμενα) ou das
conjecturas e esperanccedilas futuras (προεικάζειν τὰ μέλλοντα) e o justo por sua vez objeto das
reflexotildees judiciaacuterias pode igualmente ser feio ou belo uacutetil ou inuacutetil mateacuteria dos outros dois
7 O que de esdruacutexulo possa haver neste composto se deve agraves novas regras do Acordo Ortograacutefico de 1990 O
que se quis expressar eacute o contraacuterio do ser ldquoanti-serrdquo que natildeo mais se grafa assim com hiacutefen
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gecircneros assim como uacutetil e o inuacutetil mateacuteria de deliberaccedilatildeo que podem ser justos ou seu con-
traacuterio belos ou natildeo ou ainda o bom e o mau que podem muito bem ser inuacuteteis ou natildeo justos
ou natildeo em conformidade com o que diz Aristoacuteteles justificando assim a mistura dos gecircneros
retoacutericos (1358b27-1359a4) Poreacutem o gecircnero epidiacutectico parece ser o mais completo dos trecircs
uma vez nem focar demasiado no passado como o judiciaacuterio tampouco no futuro como o
deliberativo ao contraacuterio ao discorrer acerca do presente (ὁ παρὼν χρόνος) louvando ou
censurando as coisas que de fato satildeo (κατὰ τὰ ὐπάρχοντα) eacute-lhe permitido voltar-se tanto agraves
reminiscecircncias preteacuteritas quanto ao que pode vir a ser como se percebe nitidamente do primeiro
ao derradeiro livro das Confissotildees que nem se limitam a perscrutar o passado tampouco a
especular esperanccedilosamente sobre o futuro ou mesmo sobre o presente na investigaccedilatildeo do
proacuteprio rememorar quando entatildeo empreendem o louvor do que eacute foi e haacute de ser de par com o
do que sempre e indefectivelmente eacute
Uma uacuteltima palavra acerca da retoacuterica se faz necessaacuteria antes de voltar a atenccedilatildeo para
os trecircs gecircneros de provas teacutecnicas nas Confissotildees Quando se propotildee apresentar uma resposta
diz Michel Meyer (2010 p 53) a retoacuterica tende a ocultar o problemaacutetico fazendo com que a
questatildeo de base subjacente a todo discurso questatildeo em torno de que se reuacutenem ou dispersam
as partes pareccedila resolvida No entanto isso de modo nenhum eacute o que se percebe na retoacuterica
filosoacutefica de Agostinho que opera agraves avessas natildeo projetando de modo nenhum esconder o
problemaacutetico e sim permitindo lidar com ele dizendo-o embora sua insoluacutevel inefabilidade E
de fato se se tome por base a proacutepria definiccedilatildeo da retoacuterica elaborada pelo mesmo Meyer (2012
p 21) como sendo a negociaccedilatildeo entre a distacircncia criada por um dado problema que se constitui
sua proacutepria medida percebe-se no que tange ao Ser natildeo haver distacircncia entre interlocutores
para quem a sua inefabilidade eacute paciacutefica quer se o identifique com a Divindade cristatilde ou natildeo
E em natildeo havendo essa distacircncia qual a finalidade da retoacuterica sendo ela a suposta negociaccedilatildeo
que se estabelece em funccedilatildeo dum dado problema que se mede exatamente por essa distacircncia
inexistente Logo em natildeo havendo uma distacircncia que se constituiacutesse a medida do problemaacutetico
desnecessaacuterio seria argumentar inexistindo o problema Contudo isso se refere de modo espe-
cial agraves retoacutericas forense e deliberativa natildeo agrave epidiacutectica e menos ainda a epidiacutectica com finali-
dade filosoacutefica como se daacute no caso de Agostinho Nas Confissotildees a distacircncia que se quer
negociar eacute a que se supotildee entre o conhecido desconhecimento de Deus e seu desconhecido
conhecimento ou seja a distacircncia entre o nada que se pode conhecer de Deus e o tudo que se
desconhece entre o nada que dele se pode dizer e o tudo que se natildeo diz E como essa distacircncia
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eacute inegociaacutevel resta agrave retoacuterica simular a edificaccedilatildeo duma estrutura especial a linguagem per-
mitindo que pela proacutepria expressatildeo do paradoxo do estranhamento da perplexidade se diga
sem dizer e se natildeo diga dizendo Numa palavra a retoacuterica permite que Agostinho estique a
corda do arco de seu dizer para aleacutem da tensatildeo do compreensiacutevel apodiacutectico para aleacutem do
alcance da razatildeo que seja capaz carreando o leitor consigo de tangenciar o suprarracional a
natildeo dizer irracional pois natildeo desprovido de razatildeo e sim muito aleacutem dela
A primeira das provas da arte ecircthos
Aleacutem das provas loacutegicas que envolviam mateacuterias e meacutetodos cujo apelo se voltava pri-
mordialmente a natildeo dizer exclusivamente para a razatildeo a retoacuterica reconhecia outros meios de
prova pois se dera conta havia muito de que as pessoas natildeo satildeo apenas dotadas de capacidade
racional mas tambeacutem de sentimentos e de vontade pelo que se fazia necessaacuterio lidar com elas
natildeo como deveriam ser mas como realmente eram lembram Corbett e Connors (1999 p 72)
Destarte tomando por base a definiccedilatildeo aristoteacutelica de que a retoacuterica eacute a arte de descobrir todos
os meios possiacuteveis de persuasatildeo8 torna-se oacutebvio o recurso a tudo aquilo que se comprove efi-
ciente para esse fim Neste sentido afianccedilam esses autores o apelo eacutetico pode ser mais eficaz
que o apelo agrave razatildeo pois
mesmo o mais engenhoso e sensato apelo agrave razatildeo pode fracassar diante de ouvidos
amoucos se a audiecircncia reagiu desfavoravelmente ao caraacuteter do orador O apelo eacutetico
eacute especialmente importante no discurso retoacuterico porque aqui estamos lidando com
assuntos acerca dos quais eacute impossiacutevel ter-se certeza absoluta e em que as opiniotildees
satildeo divididas
Com efeito o ecircthos prova teacutecnica que se erige a partir do caraacuteter moral do orador segundo
reconhecia Aristoacuteteles (1356a13) constitui-se no meio mais eficaz de prova (κυριωτάτην ἔχει
πίστιν τὸ ἦθος)
Quintiliano por sua vez em suas Instituiccedilotildees Oratoacuterias (3813) adotando integral-
mente a teoria aristoteacutelica argumenta que dos trecircs gecircneros de discurso o deliberativo era o que
mais necessitava do apelo eacutetico ou seja o discurso que mais se apoiava no caraacuteter do orador
que ele denominava auctoritas
Nas deliberaccedilotildees poreacutem a autoridade eacute o que possui maior valor Com efeito natildeo
apenas deve ser considerado muitiacutessimo prudente como tambeacutem muitiacutessimo virtuoso
todo aquele que deseje que todos acreditem nos seus pensamentos acerca das coisas
8 (1355b25-6) ldquoSeja entatildeo a retoacuterica a faculdade de considerar acerca de cada coisa o que eacute possivelmente
persuasivordquo (ἔστω δὴ ἡ ῥητορικὴ δύναμις περὶ ἕκαστον τοῦ θεωρῆσαι τὸ ἐνδεχόμενον πιθανόν)
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proveitosas e dignas de honra [] natildeo haacute quem negue que as deliberaccedilotildees satildeo feitas
segundo os caracteres dos oradores9
Em conformidade com o que se argumentou um pouco antes a partir das consideraccedilotildees do
proacuteprio Aristoacuteteles acerca da mistura de gecircneros retoacutericos (1358b27-1359a4) sobre a predomi-
nacircncia do gecircnero epidiacutectico nas Confissotildees eacute perceptiacutevel natildeo apenas a importacircncia do apelo
eacutetico que natildeo eacute das menores por tratar-se duma obra primordialmente na primeira pessoa e
que sob certo ponto de vista quer falar de si mas principalmente pelo que se disse acerca de
um dos objetivos da obra de caraacuteter ldquodeliberativordquo ou antes de caraacuteter ldquopastoralrdquo de mover
as almas para Deus (conuersio ad deum) ao modo dum loacutegos protreacuteptico afastando-as do pe-
cado e de tudo que as manteacutem distantes do Bem (auersio a bono) objetivo que se cumpre
escorado no caraacuteter eacutetico que se esforccedilou por burilar ao longo primordialmente dos livros ditos
autobiograacuteficos da obra De fato natildeo obteacutem ecircxito na pretensatildeo de exortar (προτρέπω) para
Deus senatildeo aquele que se deixou dissuadir (ἀποτρέπω) do caminho do pecado que compro-
vou sua humildade (humilitas) na aceitaccedilatildeo natildeo do poder de seu livre-arbiacutetrio e sim da Graccedila
divina cujas Justiccedila e Misericoacuterdia se amalgamam na Sabedoria una e indivisiacutevel do Ser ao
inveacutes de se anularem pela contradiccedilatildeo Natildeo se trata de reconhecer-se purificado trata-se mui-
tiacutessimo ao contraacuterio de reconhecer-se pecador carente da Graccedila e incapacitado de autossalva-
ccedilatildeo numa palavra trata-se de diminuir-se ao modo do ldquoesvaziamentordquo (κένωσις) de Cristo
que embora possuindo uma forma divina (ἐν μορφῇ θεοῦ) esvaziou-se a si mesmo segundo
Paulo assumindo uma forma de escravo e fazendo-se semelhante aos homens pelos quais se
humilhou e obedientemente deixou-se matar na cruz10 Esse o ecircthos cristatildeo portador das virtu-
des dignas de imitaccedilatildeo invertidas quanto pudessem parecer a um auditoacuterio pagatildeo da eacutepoca
para o qual nem a misericoacuterdia tampouco a humildade eram considerados valores morais dese-
jaacuteveis e sim fraquezas despreziacuteveis
O orador persuade por seu caraacuteter moral explicava Aristoacuteteles (1356a5) quando seu
discurso eacute de tal modo elaborado que seja capaz de tornaacute-lo digno de credibilidade um homem
em quem pareccedila ser possiacutevel confiar Essa credibilidade contudo natildeo se constroacutei por meio de
elementos extratextuais de ideias preacute-concebidas acerca da conduta eacutetica do orador e sim atra-
veacutes do discurso (1356a8) donde ser considerado o ecircthos uma prova de caraacuteter teacutecnico fruto da
9 Inst oratoriae (3813) ldquoValet autem in consiliis auctoritas plurimum nam et prudentissimus esse haberique
et optimus debet qui sententiae suae de utilibus atque honestis credere omnes uelit [] consilia nemo est qui
neget secundum mores darirdquo 10 Paulo (Fl 25-8) ldquoΤοῦτο φρονεῖτε ἐν ὑμῖν ὃ καὶ ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων οὐχ
ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ ἀλλὰ ἑαυτὸν ἐκένωσεν μορφὴν δούλου λαβών ἐν ὁμοιώματι ἀνθρώπων γενόμενοςmiddot καὶ σχήματι εὑρεθεὶς ὡς ἄνθρωπος ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν γενόμενος ὑπήκοος μέχρι θανάτου θανάτου δὲ σταυροῦrdquo
144
arte Isso se daacute explica o filoacutesofo porque quando se estaacute tratando de temas de caraacuteter geral via
de regra a confianccedila se estabelece sobre as opiniotildees das pessoas cujo valor eacute notoacuterio poreacutem
quando os temas satildeo incertos duvidosos (τὸ ἀμφιδοξεῖν) aiacute entatildeo como que desprovido de
alternativas resta ao auditoacuterio tatildeo soacute a confianccedila quase que total e irrestrita (παντελῶς) na-
queles cujos caracteres ou comprovou-se destacar-se ou lograram aparentar fazecirc-lo E sobre
que versam as Confissotildees em linhas gerais como jaacute se apontou antes senatildeo sobre o tema natildeo-
apodiacutectico por excelecircncia Deus Donde ser liacutecito dizer que pelo prisma da retoacuterica Agostinho
empreende um enorme esforccedilo de construccedilatildeo dum ecircthos apropriado a falar de Deus E de fato
se se pretende falar de tema natildeo apenas duvidoso retoacuterico mas inefaacutevel como o Ser de que
modo evadir-se do estribo do ecircthos Se o tema fosse apodiacutectico o caraacuteter do orador talvez
restasse menos relevante poreacutem natildeo num tema em que as provas demonstrativas satildeo pratica-
mente inexistentes
Para ressaltar o caraacuteter moral de algueacutem que se queira elogiar seja o do proacuteprio orador
ou natildeo lembra Aristoacuteteles (1367b22-27) eacute preciso associar as suas accedilotildees (as quais se empre-
ende louvar) agraves suas intenccedilotildees a fim de demonstrar seu valor porque o louvor (ἔπαινος) se tira
das accedilotildees (ἐκ τῶν πράξεων) desde que este aja em conformidade com suas determinaccedilotildees
morais (κατὰ προαίρεσιν) E se o homem de valor age segundo suas proacuteprias determinaccedilotildees
depreende-se que o homem cujo valor eacute nulo aja determinado isto eacute conduzido pelo destino
pela sorte (ἀπὸ τύχης) e que o homem cujo valor eacute repreensiacutevel exemplo que o filoacutesofo natildeo
daacute mas cujo raciociacutenio permite avanccedilar agiria tambeacutem motivado por suas determinaccedilotildees mo-
rais as quais contudo seriam maacutes O que importa no que tange ao ecircthos eacute que se deve mostrar
que aquele que se estaacute louvando age de acordo com suas determinaccedilotildees e natildeo ao acaso o que
lhe tiraria todo o meacuterito meacuterito que caberia entatildeo agrave fortuna (τύχη) uma vez que as accedilotildees natildeo
praticadas de modo voluntaacuterio natildeo satildeo meritoacuterias em conformidade com o que Agostinho tam-
beacutem admitia11 Portanto o conselho de Aristoacuteteles ao orador que quer construir o seu proacuteprio
ecircthos ou o de algum outro eacute tornar todas as accedilotildees possiacuteveis inclusive as decorrentes da sorte
mdash o que natildeo seria nada honesto admite o filoacutesofo mdash fruto do meacuterito daquele que se quer
enaltecer o que seria sinal de homem resoluto decidido (σημεῖον ἀρετῆς εἶναι προαιρέσεως)
No entanto esse conselho natildeo apenas natildeo eacute seguido por Agostinho e pelo discurso cristatildeo de
modo geral como ao reveacutes o exato oposto eacute o que se potildee em praacutetica ao atribuir-se tudo agrave
Graccedila divina agrave bondade preexistente daquele que natildeo precisou de nenhuma das criaturas que
criou as quais jamais fizeram por merecer o dom da vida (Conf 1311) ldquoPorque antes que eu
11 O livre arbiacutetrio (11430101) ldquoIn uoluntate meritum sitrdquo
145
existisse existias tu e eu nem existia para que me concedesses que eu existisserdquo12 Isso eacute feito
contudo natildeo em detrimento do ecircthos da construccedilatildeo dum caraacuteter digno de louvor e fidedigno
e sim para construir um caraacuteter cristatildeo ou seja um caraacuteter natildeo pautado pela taacutebua de valores
eacuteticos claacutessicos que atribuiacutea grande peso agrave gloacuteria agrave honra ao denodo guerreiro e agrave justiccedila
inflexiacutevel e fria da lei13 e sim para destacar o homem jaacute de tipo medieval manso e humilde de
coraccedilatildeo misericordioso ao ponto de voltar a outra face numa palavra homem cuja honra estava
na cruz e no sangue de seu Salvador e para o qual ldquoo insensato de Deusrdquo era ldquomais saacutebio que
os homens e o fraco de Deus mais forte que os homensrdquo14 O ecircthos pois que se quer construir
eacute o do homem de feacute que se deixa conduzir pela matildeo de Deus na praacutetica das virtudes ditas
teologais feacute esperanccedila e caridade (πίστις ἐλπίς ἀγάπη) (1Cor 1313) O homem comumente
se orgulha das coisas que faz por si proacuteprio (τοῖς διrsquo αὐτόν) lembra Aristoacuteteles mas natildeo se
orgulha do que o destino lhe trouxe (διὰ τύχην) (1368a3-4) Agostinho bastante ao contraacuterio
natildeo apenas natildeo se orgulha do que fez mas se arrepende amargamente preferindo ao inveacutes da
honra agradecer a Deus todo o bem que lhe sucedeu por seu intermeacutedio divino ldquoe assim Se-
nhor apagaste todos os meus merecidos males para que natildeo retribuiacutesses agraves minhas matildeos nas
quais te deixei e te antecipaste a todos os meus merecidos bens para que retribuiacutesses agraves tuas
matildeos com as quais me fizesterdquo15
Destarte das trecircs qualidades independentes de demonstraccedilatildeo (ἔξω τῶν ἀποδείξεων)
que Aristoacuteteles aponta (1378a) como necessaacuterias ao orador ainda que em aparecircncia somente a
fim de que seja convincente o que de modo principal se refere agraves assembleias ou ao conselho
instacircncias tiacutepicas de deliberaccedilatildeo na Greacutecia antiga 1 prudecircncia ou bom-senso (φρόνησις) 2
excelecircncia moral (ἀρετή) e 3 boa disposiccedilatildeo (εὔνοια) nenhuma delas guarda nas Confissotildees
a importacircncia que o estagirita lhe atribui a natildeo ser que se considerem as virtudes ditas teologais
como pertencentes ao rol das aretaiacute aristoteacutelicas o que seria no miacutenimo um grave anacronismo
Por fim a Retoacuterica destaca o papel do ecircthos na disposiccedilatildeo das mateacuterias (τάξις) de modo
especiacutefico no proecircmio (exordium) Nos discursos do gecircnero judiciaacuterio por exemplo aquele que
se defende (ἀπολογουμένῳ) deve fazecirc-lo logo no proecircmio (πρῶτον) antes da acusaccedilatildeo ao
contraacuterio de quem acusa que deve fazecirc-lo no final (τῷ ἐπιλόγῳ) porque aquele que defende
deve construir seu ecircthos no iniacutecio antes da acusaccedilatildeo (πρὸς τὴν διαβολήν) (1415a29-30) a
12 Confissotildees (1311) ldquoquia et priusquam essem tu eras nec eram cui praestares ut essemrdquo 13 Em conformidade com a ideia veiculada pela maacutexima romana ldquodura sed lexrdquo 14 Paulo (1Cor 121-25) ldquoὅτι τὸ μωρὸν τοῦ θεοῦ σοφώτερον τῶν ἀνθρώπων ἐστὶν καὶ τὸ ἀσθενὲς τοῦ
θεοῦ ἰσχυρότερον τῶν ἀνθρώπωνrdquo 15Confissotildees (1311) ldquoEtenim domine deleuisti omnia mala merita mea ne retribueres manibus meis in
quibus a te defeci et praeuenisti omnia bona merita mea ut retribueres manibus tuis quibus me fecistirdquo
146
fim de livrar-se de todo impedimento ou embaraccedilo como faz Agostinho nas Confissotildees utili-
zando-se dos primeiros livros ditos biograacuteficos para tanto Se o acusador deve criar o precon-
ceito contra o acusado no fim para que permaneccedila bem presente na memoacuteria dos juiacutezes o
defendente deve desvencilhar-se do preconceito logo no iniacutecio a fim de que seus argumentos
satildeo sejam prejudicados pela imagem da pecha moral que traz consigo Natildeo eacute apenas para o
ecircthos que o proecircmio eacute importante mas tambeacutem para o paacutethos pois eacute preciso tornar o auditoacuterio
bem disposto em relaccedilatildeo ao orador se se estaacute defendendo ou tornaacute-lo indisposto contra a outra
parte (1415a-34-36) se se estaacute acusando Para isso conta muito a aparecircncia de respeitabilidade
do falante pois ldquoas pessoas respeitaacuteveis recebem mais atenccedilatildeordquo diz Aristoacuteteles Pelo que o
orador deve esforccedilar-se por conseguir duas coisas do auditoacuterio 1 amizade (φίλον) e 2 com-
paixatildeo (ἐλεεινόν) (1415b22-28) tornaacute-lo amigo e compassivo fazendo-o crer que ele mesmo
o orador sente exatamente aquilo que censura ou louva ou seja que estaacute sendo sincero
(1415b28-29) Ora como falar da Graccedila de Deus sem que se recorra ao testemunho pessoal
pois a Graccedila diferentemente da recompensa ou do salaacuterio (merces) eacute distribuiacuteda gratuitamente
para o que por paradoxal pareccedila faz-se necessaacuterio ser pecador numa palavra estar desprovido
de qualquer meacuterito que o tornaria credor ao inveacutes de devedor meacuterito que poderia confundi-la
a Graccedila com pagamento ou retribuiccedilatildeo Evidente que se trata dum exagero pois os que tecircm
meacuterito natildeo estatildeo de modo nenhum excluiacutedos da Graccedila jaacute que natildeo faz muito sentido que natildeo
receba sem meacuterito16 senatildeo quem natildeo mereccedila
Seja como for esse ecircthos de sinceridade logra construir com bastante esmero Agostinho
ao reconhecer-se pecador devedor pequenino desprovido de meacuteritos e absolutamente depen-
dente da bondade da Providecircncia divina que se expressa pela Graccedila gratis
A segunda das provas da arte paacutethos
A movimentaccedilatildeo das emoccedilotildees (πάθος) embora uma prova (πίστις) que se diz teacutecnica
ou ldquoda arterdquo (ἔντεχνος) de modo aparentemente paradoxal natildeo tem que ver diretamente com
as provas demonstrativas ou com a causa em si e sim respeita aos juiacutezes (δικασταί) explica
Aristoacuteteles (1354a4-5)17 De fato o orador alcanccedila a persuasatildeo seja em que gecircnero for (o que
16 Isto eacute gratuitamente 17 Aristoacuteteles natildeo era muito simpaacutetico nem ao apelo eacutetico tampouco ao emocional que julgava ser um mal
necessaacuterio pois considerava errado manipular os sentimentos dos juiacutezes o que equivalia a corromper a proacutepria lei
que se tentava fazer valer ou de que se queria socorrer (1356a14) Argumento muito parecido esse (de destruir a
proacutepria lei a que se deveraacute recorrer depois) com o utilizado por Soacutecrates ao negar a proposta de fuga de Criacuteton no
diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo (50a-b) Pois bem no iniacutecio do tratamento da hupoacutekrisis (1403b22-) Aristoacuteteles
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natildeo exclui nem o epidiacutectico tampouco o deliberativo) mediatamente por meio dos ouvintes
(διὰ τῶν ἀκροατῶν) aqueles aos quais se dirige quando recorre ao paacutethos despertando ou
dirigindo suas emoccedilotildees (ὅταν εἰς πάθος) o que se faz pela accedilatildeo discursiva (ὑπὸ τοῦ λόγου)
Isso porque os juiacutezos (τὰς κρίσεις) dos ouvintes objetivo da accedilatildeo persuasiva variam sob a
influecircncia das emoccedilotildees tais como a dor (λύπη) a alegria (χαρά) a amizade (φιλία) o oacutedio
(μῖσος) etc Com efeito o orador natildeo tem por escopo a emoccedilatildeo do auditoacuterio em si mesma como
finalidade e sim a sua persuasatildeo a fim de que decida em favor de sua causa para o que as
emoccedilotildees cooperam vivamente como percebeu Aristoacuteteles ao dedicar grande parte do livro
segundo da Retoacuterica ao estudo das paixotildees da alma
Um dos meios mais eficazes para a movimentaccedilatildeo do paacutethos a fim de que se tenha ecircxito
no apelo emocional em vista dum fim ulterior natildeo satildeo as provas demonstrativas recomendadas
para o gecircnero apropriado (o judiciaacuterio no caso) o entimema e as maacuteximas provas que devem
ser descobertas na invenccedilatildeo e sim os recursos pertencentes a outra parte da retoacuterica a elocuccedilatildeo
(λέξις) Com efeito depois de encontrado o que dizer (εὕρεσις) e disposto as mateacuterias de modo
apropriado (τάξις) resta saber como dizecirc-lo Esse ldquocomordquo respeita sem duacutevida agrave forma do dis-
curso que se chama tambeacutem ldquoestilordquo poreacutem de modo nenhum se limita a isso como se fosse
apenas uma sua vestimenta Os recursos da elocuccedilatildeo para muito aleacutem da ornamentaccedilatildeo tecircm
forccedila persuasiva pois argumentam seja pela concisatildeo das figuras seja pelo ritmo e paralelismo
das construccedilotildees seja pelas imagens que evocam o que fazem de modo principal pondo em
destaque tanto o ecircthos como o paacutethos O ecircthos por exemplo no emprego do leacutexico que quando
recheado de estrangeirismos (ξένην ποιεῖν τὴν διάλεκτον) (1404b10-12) diz Aristoacuteteles con-
fere um ar de dignidade ao discurso promovendo por tabela o orador que se faz parecer digno
e nobre assim como aquilo que estaacute dizendo O paacutethos por sua vez quando o discurso eacute ldquoele-
vadordquo a um niacutevel suprarracional ou sublime pelo uso de recursos poeacuteticos dentre os quais se
destacam as figuras de repeticcedilatildeo como paralelismos epanalepses anadiploses antanaacuteclases
reconhece que tudo aquilo que respeita agrave apresentaccedilatildeo do discurso como voz volume tom altura ritmo harmo-
nia entre tais e que eacute muito importante nos certames dramaacuteticos e eacutepicos (τῶν ἀγώνων) quando entatildeo faz-se
necessaacuterio equilibrar esses elementos segundo cada uma das emoccedilotildees (πρὸς ἕκαστον πάθος) embora seja tam-
beacutem utilizado nas demais atividades poliacuteticas como assembleias deliberativas e tribunais o eacute apenas de modo
deploraacutevel Isso porque conquanto seja necessaacuterio mover as paixotildees do auditoacuterio e construir o caraacuteter do orador
discursivamente essa necessidade se deve tatildeo soacute agrave corrupccedilatildeo dos cidadatildeos (διὰ τὴν μοχθηρίαν τῶν πολιτῶν)
(1403b34-35) o que equivale a dizer do auditoacuterio (τοῦ ἀκροατοῦ) Assim sendo o recurso tanto ao ecircthos como
ao paacutethos deixa de ser questatildeo de correccedilatildeo (οὐκ ὀρθῶς) de certo ou errado passando a ser uma necessidade (ἀλλrsquo
ὡς ἀναγκαίου) Com efeito o justo (δίκαιον) seria defender acusar exortar e dissuadir movido apenas pelos
fatos (ἀγωνίζεσθαι τοῖς πράγμασιν) (1404a5-6) de maneira tal que o restante que Aristoacuteteles reputa fora da
demonstraccedilatildeo (ἔξω τοῦ ἀποδεῖξαι) ο que inclui ecircthos e paacutethos seria superfluidade (περίεργα ἐστίν) (1404a8)
Infelizmente poreacutem a realidade eacute que o orador precisa conhecer estes recursos a fim de poder defender-se e atingir
seus objetivos uma vez que os adversaacuterios certamente lanccedilam matildeo deles de modo quase sempre inescrupuloso
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paronomaacutesias antimetaacuteboles poliptotos etc E fique claro que dizer que Aristoacuteteles natildeo via com
bons olhos o (mau) recurso aos apelos eacutetico e pateacutetico nos tribunais natildeo significa dizer que
desprezasse os mecanismos da elocuccedilatildeo o que implicaria dizer que cresse o homem ser dotado
apenas de razatildeo excluiacutedos sentimentos e caraacuteter a natildeo dizer da vontade Ao contraacuterio Aristoacute-
teles bem reconhecia que em todo tipo de aprendizado (ἐν πάσῃ διδασκαλίᾳ) o estilo se faz
mateacuteria de certa importacircncia uma vez que algo se torna claro (πρὸς τὸ δηλῶσαι) por meio do
modo como eacute dito (ὡδὶ ἢ ὡδὶ εἰπεῖν) embora relegasse a questatildeo do estilo ao niacutevel da aparecircn-
cia (ἀλλrsquo ἅπαντα φαντασία ταῦτrsquo εστὶ) cuja finalidade seria apenas agradar o ouvinte (πρὸς
τὸν ἀκροατήν) ouvinte esse por sua vez cuja corrupccedilatildeo (μοχθηρία) seria a verdadeira causa
de tudo que natildeo eacute apodiacutectico na retoacuterica (1404a7-8) Em assim sendo o estilo (λέξις) seria um
mal necessaacuterio uma ferramenta que embora potencialmente injusta seria uacutetil para conferir
clareza ao discurso assim como todos os demais elementos de persuasatildeo natildeo-apodiacutecticos ou
extrademonstrativos E isso se justifica diz o filoacutesofo de modo peremptoacuterio porque ningueacutem
ensina a fazer geometria desse modo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) isto eacute nem pelo
recurso ao paacutethos nem pelo ecircthos tampouco por qualquer outra ferramenta indicada para a
elocuccedilatildeo como as figuras (1404a12) Compreende-se essa visatildeo deveras depreciativa da elo-
cuccedilatildeo por parte do filoacutesofo pois como ele mesmo diz no terceiro livro de sua Retoacuterica ao
empreender o tratamento da actio ou representaccedilatildeo do discurso (ὑπόκρισις) ateacute ao tempo da
escritura da obra natildeo havia ainda nenhuma arte isto eacute nenhum manual de retoacuterica voltado para
a mateacuteria (οὔπω δὲ σύγκειται τέχνη περὶ αὐτῶν) porque a leacuteksis soacute havia sido notada pou-
quiacutessimo antes (ἐπεὶ καὶ τὸ περὶ τὴν λέξιν ὀψὲ προῆλθεν) descaso que se justificava pelo fato
de o estilo mdash considerado entatildeo como mera ornamentaccedilatildeo do discurso mdash ser julgado inferior
(φορτικὸν) tema indigno das preocupaccedilotildees dum homem livre criacutetica que natildeo evita endossar o
filoacutesofo (καλῶς ὐπολαμβανόμενον) (1403b35-6)
A despeito desta postura criacutetica adotada por Aristoacuteteles e de seu juiacutezo negativo a respeito
do ecircthos e do paacutethos postura raramente admitida pelos estudiosos atuais da retoacuterica o que
importa para os fins deste artigo contudo eacute seu poder argumentativo uma vez que sua impor-
tacircncia natildeo pode ser negada seja ela justificada ou natildeo de par com a finalidade filosoacutefica que
lhes imprime o rhetor de Hipona Portanto justo ou natildeo (nos tribunais e assembleias) o fato
admitido por Aristoacuteteles eacute que a elocuccedilatildeo afeta sobremodo o paacutethos sendo de par com o ecircthos
reconhecido como a mais persuasiva (κυριωτάτη) das provas (1356a13) altamente eficaz para
os objetivos da argumentaccedilatildeo pois resta claro que por meio do estilo se consegue mover as
emoccedilotildees (1408a16) seja quando se fala com indignaccedilatildeo audaciosa (ὕβρις) seja com raiva
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(ὁργιζομένου) impiedade (ἀσεβή) ou vergonha (αἰσχρά) O estilo adequado (ἡ οἰκεία λέξις)
que eacute aquele em que os elementos do paacutethos (παθητική) e do ecircthos (ἠθική) satildeo proporcionais
(ἀνάλογον) aos temas subjacentes (τοῖς ὐποκειμένοις πράγμασιν) (1408a10-11) faz com
que um dado assunto seja mais persuasivo Aleacutem disso remata Aristoacuteteles o ouvinte sempre
simpatiza (συνομοπαθεῖ ὁ ἀκούων) com quem fala de modo emocional (παθητικῶς
λέγοντι) ainda que esse natildeo diga nada (κἂν μηθὲν λέγῃ) (1408a23-4)
Reconhecido o vigor (δύναμις) natildeo apenas pateacutetico mas tambeacutem argumentativo da elo-
cuccedilatildeo resta ver como Agostinho se utiliza de seus recursos nas Confissotildees a fim de atingir seus
objetivos numa palavra a fim de fazer filosofia Pois bem as descriccedilotildees que melhor instigam
as emoccedilotildees satildeo as que fazem apelo agrave imaginaccedilatildeo e aos sentidos descriccedilotildees viacutevidas de cenas e
eventos contam muito como o famigerado roubo das peras (Conf 249) a prisatildeo de Aliacutepio
(6914) ou a cena do jardim de Milatildeo (81125-27) por exemplo as inumeraacuteveis metaacuteforas e a
prosopopeia de oacutergatildeos humanos que passam a ser dotados de matildeos pernas ouvidos como as
matildeos do coraccedilatildeo que se estendem em prece a Deus os relatos de laacutegrimas pungentes que se
vertem repetidas vezes enfim descriccedilotildees essas que tecircm potencial enorme para despertar fortes
sentimentos Do mesmo modo o uso de hipeacuterboles e outras tantas figuras se faz extremamente
uacutetil para criar o efeito emocional desejado Todavia nada talvez seja tatildeo eficiente nesse sentido
quanto o vocabulaacuterio o uso de palavras carregadas de intensa conotaccedilatildeo pateacutetica E no apelo
agraves emoccedilotildees pode-se dizer esteja uma das chaves de leitura das Confissotildees ao menos retoacuterica
De fato a linguagem da obra estaacute repleta de figuras cujo efeito principal eacute o despertar dos
sentimentos Mas de quem e para quecirc A sua audiecircncia soacute pode ser depreendida de modo in-
direto por meio da linguagem do estilo e do tema o que natildeo se constitui tarefa das mais faacuteceis
por tratar-se de obra multifacetada de linguagem muito elaborada que prima pela sofisticaccedilatildeo
mas que natildeo despreza uma certa tonalidade menos erudita que se pode ateacute denominar em
alguma medida popular ou humilde De fato pelo recurso aos salmos e textos escrituraacuterios
com seu respectivo campo semacircntico permeado de expressotildees da liacutengua grega vulgar (κοινή)
traduzidas ou transliteradas em latim conhecidos de toda comunidade cristatilde natildeo apenas por
serem lidos mas principalmente por sua funccedilatildeo lituacutergica eacute sem duacutevida uma linguagem
(sermo) popular ou humilis todavia pelos mecanismos retoacutericos extremamente requintados e
pelas referecircncias a toda uma cultura filosoacutefica de par com uma argumentaccedilatildeo em muitas pas-
sagens nada singela especialmente nos livros 1 8 e de 9 a 13 pode-se considerar igualmente
elevadiacutessima Portanto humilde e elevada eacute a linguagem das Confissotildees constituindo em si
mesma um oximoro
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Diante desse desafio de escrever tanto para a gente mais simples como para filoacutesofos
desafio que se exprime nesse caso pela linguagem supotildee-se que Agostinho natildeo tenha simples-
mente pretendido abaixar o registro de seu discurso descendo aos simples e pequeninos (ad
catechizandos rudes) muito ao contraacuterio ao que parece pretendia elevar-se ou melhor ser
elevado ao confessar-se arrependido penitenciando-se mas tambeacutem ao confessar sua feacute e seu
louvor enaltecendo e reconhecendo a graccedila de Deus em sua vida Em sendo assim ao ser ele-
vado por Deus pela confissatildeo pretende igualmente mover as almas incitando-lhes semelhante
elevaccedilatildeo ou quando natildeo o desejo de elevaccedilatildeo desejo de que se deixassem igualmente elevar
como ele confessava desejar o que se pode considerar sem duacutevida uma meta de caraacuteter pastoral
Portanto sua missatildeo quanto ao paacutethos eacute tambeacutem a de mover as almas agrave salvaccedilatildeo que
se pode sintetizar na vontade de ser elevado e de para lanccedilar matildeo duma contradiccedilatildeo merecer
por uma espeacutecie de ascese cataacutertica a graccedila divina a misericoacuterdia do Deus justiacutessimo Ora
disso decorre a possibilidade duma outra funccedilatildeo da linguagem extremamente comovente fruto
dos recursos da elocuccedilatildeo a que recorre Agostinho nas Confissotildees e interligada com essa funccedilatildeo
dita pastoral de elevar as almas uma funccedilatildeo que se pode compreender como simultaneamente
propedecircutica e filosoacutefica Com efeito se uma das funccedilotildees deste paacutethos que se diz de caraacuteter
pastoral pretende comover positiva e negativamente incitando a um soacute tempo o desejo de
salvaccedilatildeo e o de horror agrave perdiccedilatildeo o desejo de buscar Deus e de evitar o mal de buscar ser mais
pela proximidade do Ser supremo e de evitar ser menos ou deixar de ser pelo afastamento desse
mesmo Ser como se percebe sobremodo nos livros da parte considerada biograacutefica da obra o
que natildeo implica de modo algum a exclusatildeo dos restantes livros a outra funccedilatildeo por sua vez
relacionada intimamente agrave primeira de que se pode dizer seja consequecircncia natural que se
exacerba tambeacutem a partir dos recursos da elocuccedilatildeo e que como se disse tem caraacuteter prope-
decircutico compreende-se como uma funccedilatildeo de purificaccedilatildeo filosoacutefica de afastamento progressivo
das coisas deste mundo de afastamento da ldquocarnerdquo se se pode dizer tendo em vista o despren-
dimento rumo a uma vida mais espiritual de proximidade com o Ser o puro Inteligiacutevel que se
transubstancia por sua vez num projeto de vivecircncia cristatilde o que se destaca sobremodo a partir
do livro novo encontrando sua foz nos estertores do livro derradeiro Donde ser liacutecito afirmar
que os livros da parte biograacutefica das Confissotildees do primeiro ao oitavo tecircm tambeacutem essa fun-
ccedilatildeo de purificaccedilatildeo tanto das emoccedilotildees como da razatildeo ou seja de disciplinar ou exercitar asce-
ticamente a alma (exercitatio animi)18 a fim de que os leitores e ouvintes pudessem estar pre-
parados para o que havia de vir nos livros subsequentes E isso parece estar em harmonia com
18 Ἥ ἄσκησις ἥ τῆς ψυχῆς
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o projeto filosoacutefico platocircnico-cristatildeo que Agostinho tinha para sua vida e que colocou em praacute-
tica desde os tempos preacute-batismais de Cassiciacuteaco ateacute ser interrompido pela sua consagraccedilatildeo
sacerdotal (391 dC) um projeto propedecircutico-purificador
E de fato se se pode aventar que esse projeto cataacutertico da razatildeo encontra seu ponto de
saiacuteda no expurgo do ceticismo de tipo neoacadecircmico como se percebe nos trecircs livros intitulados
Contra Academicos desenvolve-se sobremodo nas paacuteginas do diaacutelogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monoacutelogo com os Soliloacutequios obras do mesmo periacuteodo
Formato monoloacutegico esse denominado por Dupuy-Trudelle (1998 p 1198) ldquodesdobramentordquo
que eacute bem possiacutevel tenha servido de laboratoacuterio para as proacuteprias Confissotildees sugere a autora
refletindo a intenccedilatildeo de Agostinho apesar da excelecircncia da feacute de levar as exigecircncias da razatildeo
ateacute ao limite extremo num esforccedilo de purificaccedilatildeo num ir-aleacutem das paixotildees e desiludir-se sobre
si mesmo Ora estar iludido acerca de si mesmo natildeo eacute impedimento agrave feacute mas o eacute ao acesso agrave
convicccedilatildeo intelectual verdadeira Portanto para chegar-se ao conhecimento define esta autora
(ibid pp 1198-9) faz-se mister como condiccedilatildeo uacutenica a ldquolibertaccedilatildeo da razatildeo de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesmardquo libertaccedilatildeo a que os Soliloacutequios datildeo curso
Pode-se compreender que para desenlamear a consciecircncia dos similisavoirs libertaacute-
la de toda ilusatildeo psicoloacutegica ensinaacute-la que o desejo da verdade natildeo eacute ainda a posses-
satildeo da verdade permitir-lhe ir aleacutem do conflito de interesses que leva a opiniatildeo a
revoltar-se contra a verdade seja preciso mensurar a distacircncia entre o sujeito e si
mesmo Ora fazecirc-lo eacute um convite a mensurar a distacircncia entre si e o conhecimento de
Deus Eis entatildeo todo o sentido do exerciacutecio proposto pelo ldquosoliloacutequiordquo mensurar uma
e outra19
Natildeo parece haver duacutevidas de que os Soliloacutequios trazem em si de modo embrionaacuterio o estilo
que haveria de consagrar sobretudo a partir das Confissotildees quando entatildeo dispensa o combate
direto de ideias preferindo ldquodesdobrar-serdquo e deixar-se interrogar por si mesmo ainda que de
modo proleacuteptico continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas
Todavia eacute mais que provaacutevel que esta exigecircncia natildeo tenha surgido do nada e sim pertenccedila a
um projeto filosoacutefico maior que englobe as demais obras de Cassiciacuteaco sendo-lhe entatildeo um
como que desenvolvimento natural
No proacutelogo do De ordine (13-4) Agostinho argumenta que o homem por ser um des-
conhecido de si mesmo natildeo consegue perceber a ordem que reina em todo o universo ordem
providencial em que ele estaacute inserido e que para conseguir conhecer-se seria necessaacuterio entrar
em si mesmo ali permanecendo afastado dos sentidos lugar em que poderia entatildeo curar-se das
feridas que as opiniotildees vulgares infligem agrave alma seja pelo ldquofogordquo do ldquoisolamentordquo conforme
19 DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Les Confessions Paris Gal-
limard 1998 p 1206
152
se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
153
soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
154
As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
155
menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
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Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
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sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
158
(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
159
articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
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(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
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orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
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o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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132
exclusivamente ao que se denomina paacutethos o deliberativo ao ecircthos enquanto o epidiacutectico ao
loacutegos o que trocando em miuacutedos significa dizer 1 que nos discursos do gecircnero judiciaacuterio se
procura movimentar as paixotildees dos juiacutezes a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa que se quer
justa ou um juiacutezo desfavoraacutevel agrave causa adversaacuteria que se reputa injusta 2 que nos discursos
deliberativos procura-se construir um caraacuteter moral digno de admiraccedilatildeo respeito e sobretudo
confianccedila a fim de persuadir a assembleia ou o conselho acerca dum dado curso de accedilatildeo que
se julga proveitoso ou dissuadi-la de algo por reputaacute-lo inuacutetil ou nocivo o que natildeo se faz senatildeo
sobre o ecircthos uma vez tratar-se de algo completamente incerto o futuro cujas garantias se
esteiam apenas sobre a opiniatildeo dos ditos homens de bem e por fim 3 que nos discursos do
gecircnero epidiacutectico trata-se sobremaneira (mas natildeo exclusivamente) do proacuteprio discurso quando
se pretende louvar ou censurar seja o belo o bom ou seus contraacuterios o feio e o mau diante
dum auditoacuterio de espectadores que pode ser tambeacutem o de um universo determinado de leitores
Nos trecircs gecircneros descritos que se dirigem para o passado (judiciaacuterio) futuro (delibera-
tivo) e presente (epidiacutectico) faz-se preciso argumentar em favor da causa daquilo que se con-
sidera respectivamente justo uacutetil e belo ou seus contraacuterios E seja qual for o juiacutezo que se tenha
em mente necessaacuterio se faz o recurso agraves chamadas provas (πίστεις) retoacutericas que segundo
Aristoacuteteles podem ser ldquoteacutecnicasrdquo (ἔντεχνοι) ou ldquonatildeo-teacutecnicasrdquo (ἄτεχνοι)4 (1355b-1356a) As
primeiras se referem a tudo aquilo que eacute fruto do esforccedilo do orador dentro das regras da arte
(τέχνη) As segundas a tudo o que estaacute fora da arte natildeo tendo sido produzido pelo orador
como 1 testemunhos (μάρτυρες) 2 contratos (σύγγραφαι) 3 e ateacute confissotildees obtidas por
meio de tortura (βάσανοι) Portanto as provas teacutecnicas devem ser ldquodescobertasrdquo ou ldquoencontra-
dasrdquo (εὑρεῖν) as natildeo-teacutecnicas apenas utilizadas (χρήσασθαι) Evidente que as provas que mais
interessam agrave arte retoacuterica (ao menos agrave aristoteacutelica) satildeo antes as de caraacuteter teacutecnico (1356a1-4)
fruto do esforccedilo de invenccedilatildeo (εὕρεσις) do orador segundo o meacutetodo (διὰ μεθόδου) da arte
quais sejam 1 ecircthos (ἦθος) as provas eacuteticas que se atecircm ao caraacuteter do orador (αἱ ἐν τῷ ἤθει
τοῦ λέγοντος) 2 paacutethos (πάθος) as provas que objetivam pocircr o auditoacuterio num certo estado
de espiacuterito ao movimentar seus sentimentos aguccedilar suas paixotildees (αἱ ἐν τῷ τὸν ἀκροατὴν
διαθεῖναί πως) 3 loacutegos (λόγος) as provas que nem se voltam especificamente para a audi-
ecircncia tampouco para o orador e sim para o proacuteprio discurso (αἱ ἐν αὐτῷ τῷ λόγῳ) Pois bem
4 Os termos ἔντεχνοι e ἄτεχνοι ldquoteacutecnicasrdquo e ldquonatildeo-teacutecnicasrdquo que qualificam ldquoprovasrdquo (πίστεις) por vezes se
traduzem tambeacutem por ldquoartiacutesticasrdquo e ldquoinartiacutesticasrdquo ldquoartificiaisrdquo e ldquoinartificiaisrdquo ou ainda ldquointriacutensecasrdquo e ldquoextriacutense-
casrdquo
133
se as provas teacutecnicas satildeo destes trecircs gecircneros depreende-se como necessaacuterio para o ecircthos paacute-
thos e loacutegos respectivamente 1 o estudo dos caracteres (τοῦ θεωρῆσαι περὶ τὰ ἤθη) e das
virtudes (καὶ τὰς ἀρετάς) 2 o estudo das emoccedilotildees ou paixotildees da alma (θεωρῆσαι περὶ τὰ
πάθη) 3 e o estudo do raciociacutenio loacutegico ou silogiacutestico (τοῦ συλλογίσασθαι δυναμένου)
(1356a20)
Em cada um dos gecircneros retoacutericos predomina uma prova teacutecnica apropriada sem exclu-
satildeo das restantes assim como tarefas e objetivos especiacuteficos a saber 1 no gecircnero judiciaacuterio
cujo predomiacutenio do paacutethos jaacute se referiu o orador tem por tarefa (πράξις) a acusaccedilatildeo
(κατηγορία) e a defesa (ἀπολογία) e por objetivo ou finalidade (τέλος) ajuizar do justo (τὸ
δίκαιον) e do injusto (τὸ ἄδικον) acerca de fatos passados 2 no deliberativo por sua vez cujo
peso do ecircthos foi posto em destaque tem-se a tarefa da exortaccedilatildeo (προτροπή) ou da dissuasatildeo
(ἀποτροπή) acerca do proveitoso (τὸ συμφερόν) ou do prejudicial (τὸ βλαβερόν) com res-
peito aos eventos futuros 3 por fim no epidiacutectico cuja prova principal eacute o loacutegos tem-se por
tarefa o louvor (ἔπαινος) ou a censura (ψόγος) seja sobre o belo (τὸ καλόν) ou o bom (τὸ
ἀγαθόν) seja sobre o feio (αἰσχρόν) ou sobre o mau (τὸ κακόν) em relaccedilatildeo agraves coisas que satildeo
no presente
Argumentos ou provas de tipo demonstrativo igualmente predominam em cada um dos
gecircneros retoacutericos sem obviamente implicar a exclusatildeo dos demais Daiacute que 1 no judiciaacuterio
argumenta-se em favor do justo ou contra o injusto seja acusando ou defendendo por meio
predominantemente de entimemas (ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) o que natildeo exclui ne-
nhum dos demais recursos 2 no deliberativo por sua vez argumenta-se em favor ou contra
um determinado curso de accedilatildeo proveitoso ou prejudicial seja pela exortaccedilatildeo ou dissuasatildeo
acima de tudo por meio de exemplos (παραδείγματα) pois eacute a partir do que fizeram homens
ilustres do passado em feitos natildeo menos ilustres que se pode deliberar em vista dum futuro
incerto 3 por fim no gecircnero epidiacutectico argumenta-se a favor de ou contra uma determinada
qualidade virtude viacutecio tese ou pessoa seja louvando ou censurando de modo principal por
meio da amplificaccedilatildeo que pode ser positiva (αὔξησις) ou negativa (ταπείνωσις) sem que se
excluam os demais recursos probatoacuterios
Todo esse ldquosistemardquo retoacuterico elaborado ou desdobrado por Aristoacuteteles pode ser visuali-
zado com mais clareza na seguinte disposiccedilatildeo tabelar
Tabela I
134
GEcirc
NE
RO
S D
E
DIS
CU
RS
O
τρία
γέν
η τῶ
ν λό
γων
AUDITOacuteRIO ἀκροατής
JUIacuteZO E TEMPO κρίσις καὶ χρόνος
PROVAS
TEacuteCNICAS πίστεις ἔντεχνοι
TAREFAS E OBJETIVOS πράξεις καὶ τέλος
PROVA
DEMONSTRATIVA ἀπόδειξις
JUD
ICIAacute
RIO
δι
κανι
κόν
JUIZ-TRIBUNAL δικαστής
δικαστήριον
DO QUE DECORREU
NO PRETEacuteRITO περὶ τῶν γεγενημένων
PAacuteTHOS πάθος
ACUSACcedilAtildeO Ε DEFESA κατηγορία ἀπολογία
O JUSTO E O INJUSTO τὸ δίκαιον ἄδικον
ENTIMEMAS
E MAacuteXIMAS ἐνθυμήματα
γνῶμαι
DE
LIB
ER
AT
IVO
συ
μβου
λευτ
ικόν
LEGISLADOR-AS-
SEMBLEIA
CONSELHO βουλευτής
ἐκκλησία βουλή
DO QUE PODE OCORRER
NO FUTURO περὶ τῶν μελλόντων
EcircTHOS ἦθος
EXORTAR E DISSUADIR προτροπή ἀποτροπή
O UacuteTIL E O PREJUDICIAL τὸ συμφερόν βλαβερόν
EXEMPLOS παραδείγματα
EP
IDIacuteC
TIC
O
ἐπιδ
εικτι
κόν ESPECTADOR-
CONFEREcircNCIA θεωρός ἐπίδειξις
SOBRE O QUE Eacute
NO PRESENTE
(DA VIRTUDE DO DISCURSO) περὶ τῆς δυνάμεως
τοῦ λόγου
LOacuteGOS λόγος
LOUVOR E CENSURA ἔπαινος ψόγος
O BELO OU BOM
E O FEIO OU MAU τὸ καλὸν ἢ ἀγαθόν
τὸ αἰσχρὸν ἢ κακόν
AMPLIFICACcedilAtildeO αὔξησις ταπείνωσις
Importa notar que a coluna das ldquoprovas teacutecnicasrdquo deve ser compreendida do seguinte modo 1
no gecircnero judiciaacuterio preponderacircncia do paacutethos seguido de loacutegos e ecircthos 2 no deliberativo
preponderacircncia do ecircthos seguido de loacutegos e paacutethos 3 no epidiacutectico preponderacircncia do loacutegos
seguido de paacutethos e ecircthos Isso porque em todos os gecircneros se fazem necessaacuterias todas as trecircs
provas teacutecnicas mescladas com a precedecircncia de uma ou outra em relaccedilatildeo agraves restantes E o
mesmo se diga da coluna das provas ldquodemonstrativasrdquo que deve ser entendida do seguinte
modo 1 judiciaacuterio preponderacircncia dos entimemas e maacuteximas sem excluir exemplos e ampli-
ficaccedilotildees 2 deliberativo preponderacircncia dos exemplos sem omissatildeo de entimemas maacuteximas
e amplificaccedilotildees 3 epidiacutectico preponderacircncia da amplificaccedilatildeo seja pela auxese ou tapeinose
sem que se excluam maacuteximas exemplos e entimemas De fato Aristoacuteteles encerra o segundo
livro da retoacuterica dando destaque igual aos trecircs recursos ao dizer que em relaccedilatildeo ao loacutegos (περὶ
τὸν λόγον) ou seja no que tange agrave atividade do pensamento (διάνοια) tanto exemplos
(παραδείγματα) como entimemas (ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) se fazem igualmente
importantes (1403a34-35)
Embora Aristoacuteteles priorize sobremodo os fatos e a demonstraccedilatildeo reconhece a necessi-
dade do recurso aos outros gecircneros de provas que natildeo as exclusivamente apodiacutecticas uma vez
ter plena consciecircncia de que os adversaacuterios a elas recorrem muita vez sem escruacutepulos care-
cendo o orador de estar ciente de seu mecanismo ao menos para defender-se como se deve
135
pois seria esdruacutexulo (ἄτοπον) reconhece o filoacutesofo (1355a39-b2) se se considerasse vergo-
nhoso (αἰσχρόν) que o corpo natildeo pudesse defender-se a si mesmo mas que a mesma defesa
natildeo fosse facultada ao espiacuterito pela atividade mental-discursiva uma vez que o que caracteriza
o homem eacute muito mais a atividade intelectual que a fiacutesica5 Portanto embora desejasse intima-
mente restringir sua Retoacuterica ao tratamento das mateacuterias uacuteteis para o entimema (1354a5) que
eacute o silogismo retoacuterico como faz no primeiro livro segundo cada um dos gecircneros contudo uma
vez que cada um dos trecircs tipos de ouvintes relacionados respectivamente aos trecircs gecircneros dis-
cursivos eacute em si mesmo uma espeacutecie de juiz (κριτής) a quem cabe ajuizar seja do justo ou do
injusto do proveitoso ou do nocivo e do belo ou do feio numa palavra como a retoacuterica grosso
modo tem que ver com ldquojuiacutezosrdquo (ἕνεκα κρίσεώς ἐστιν ἡ ῥητορική) reconhece o filoacutesofo que
natildeo basta tornar o discurso apenas apodiacutectico (ἀποδεικτικός) ou criacutevel (πιστός) por meio das
provas exclusivamente demonstrativas (λόγος) como o entimema e os exemplos mas tambeacutem
saber como fazer com que o orador pareccedila ter um determinado caraacuteter (ἦθος) aleacutem de ser capaz
de pocircr os juiacutezes sejam quais forem num certo estado de espiacuterito (πάθος) Pelo que faz enorme
diferenccedila que o orador mostre-se possuidor de certas qualidades (τὸ ποίον τινα φαίνεσθαι τὸν
λέγοντα) e que seus ouvintes estejam dispostos de certo modo em relaccedilatildeo a ele pensando por
sua vez que ele tambeacutem esteja disposto de certo modo em relaccedilatildeo a eles No discurso delibe-
rativo eacute mais importante que o orador pareccedila ser portador dum caraacuteter ilibado confiaacutevel no
judiciaacuterio que os que iratildeo julgar estejam dispostos de modo favoraacutevel agrave causa e ao pleiteante
No epidiacutectico por sua vez os dois anteriores natildeo devem ser desprezados quando importa natildeo
apenas a construccedilatildeo dum certo caraacuteter mas tambeacutem a disposiccedilatildeo do auditoacuterio no que redunda
numa certa combinaccedilatildeo ecircthos-paacutethos que se deve submeter ao serviccedilo do loacutegos a fim de em-
preender o louvor ou a censura Em assim sendo maacuteximas (γνῶμαι) exemplos
(παραδείγματα) amplificaccedilotildees (αὐξήσεις) de toda sorte de par com as ferramentas da elocu-
ccedilatildeo (λέξις) como as figuras (σχήματα) e os tropos (τρόποι) se combinam natildeo apenas pela
beleza que podem conferir ao estilo mas principalmente por sua forccedila (δύναμις) argumentativa
o que os transforma em armas bastante eficazes tanto para o discurso de louvor como para o de
caraacuteter filosoacutefico
Conhecidos pois os gecircneros de discurso os auditoacuterios especiacuteficos de cada um junta-
mente com os tempos e juiacutezos das accedilotildees as provas teacutecnicas as tarefas objetivos e provas de-
monstrativas predominantes resta conhecer as trecircs grandes metas que devem ser cumpridas em
5 (1355a39-b2) ldquoἄτοπον εἰ τῷ σώματι μὴ δύνασθαι βοηθεῖν ἑαυτῷ λόγῳ δ᾿ οὐκ αἰσχρόν ὃ μᾶλλον
ἴδιόν ἐστιν ἀνθρώπου τῆς τοῦ σώματος χρείαςrdquo
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cada uma das fazes de composiccedilatildeo do discurso 1 invenccedilatildeo (εὕρεσις ou inuentio) descobrir de
onde tirar as provas (ἐκ τίνων πίστεις ἔσονται) 2 disposiccedilatildeo (τάξις ou dispositio) ordenar
as partes do discurso isto eacute as provas encontradas na invenccedilatildeo (πῶς χρή τάξαι τὰ μέρη τοῦ
λόγου) 3 elocuccedilatildeo (λέξις ou elocutio) tratar do estilo (περὶ τὴν λέξιν) ou seja do modo de
apresentaccedilatildeo das ideias que foram encontradas e ordenadas (1403b6-8) Da primeira meta a
invenccedilatildeo ou descoberta das provas Aristoacuteteles tratou nos dois primeiros livros ao discorrer
sobre as mateacuterias adequadas ao entimema e aos exemplos de par com o que eacute uacutetil agrave construccedilatildeo
dos caracteres e o estudo detalhado das paixotildees da alma com vistas agrave afetaccedilatildeo dos juiacutezes Res-
taram apenas a disposiccedilatildeo das mateacuterias e a elocuccedilatildeo ou seja o tratamento do estilo o que o
filoacutesofo empreende fazer no terceiro e uacuteltimo livro da Retoacuterica
No que se refere ao estilo (περὶ τῆς λέξεως) Aristoacuteteles pondera que natildeo basta possuir
o quecirc se natildeo se souber como dizecirc-lo (ὡς δεῖ εἰπεῖν) (1403b16) o que se deve fazer sempre de
modo claro jaacute que a grande virtude da elocuccedilatildeo eacute a clareza (λέξεως ἀρετὴ σαφῆ εἶναι)
(1404b1-2) e o discurso que natildeo for claro natildeo cumpriraacute sua tarefa (1404b2-3) (οὐ ποιῆσει τὸ
ἑαυτοῦ ἔργον) Tendo as mateacuterias de persuasatildeo a seu dispor o orador deve cuidar da apresen-
taccedilatildeo desse material (λέξει διαθέσθαι) ou seja do estilo do discurso para entatildeo empregar a
forccedila (δύναμις) de accedilatildeo atualizando aquilo que se descobriu e figurou dum certo modo
(ὑπόκρισις) Essa atualizaccedilatildeo ou representaccedilatildeo do discurso hupoacutekrisis que em latim se deno-
mina actio refere-se agrave sua expressatildeo oral compreendendo questotildees de voz (φωνή) volume
(μέγεθος) harmonia (ἁρμονία) ritmo (ῥυθμός) e tom (τόνος) que pode ser agudo (ὀξύς)
grave (βαρύς) ou meacutedio (μέσος)
Por fim no que tange agrave disposiccedilatildeo das mateacuterias (περὶ τῆς τάξεως) cujo tratamento se
inicia no final do terceiro livro da Retoacuterica (1414a29) Aristoacuteteles resume em duas as partes
principais do discurso isso porque nem toda parte da divisatildeo tradicional respeitava a todo e
qualquer gecircnero 1 o estado da questatildeo (πρόθεσις) isto eacute a exposiccedilatildeo da causa (τὸ πρᾶγμα
εἰπεῖν) acerca de que se haacute de argumentar (περὶ οὗ) 2 a prova (πίστις) ou seja a demonstraccedilatildeo
(τὸ ἀποδεῖξαι) (1414a31-36) A divisatildeo tradicional por sua vez elenca as seguintes partes 1
proecircmio ou exoacuterdio (προοίμιον) 2 narraccedilatildeo (διήγησις) que se subdivide em 21 exposiccedilatildeo
da causa (πρόθεσις) e 22 refutaccedilatildeo (ἀντιδίκησις) 3 prova (πίστις) 4 peroraccedilatildeo ou conclusatildeo
(ἐπίλογος) destas contudo apenas o proecircmio o estado da questatildeo a prova e a peroraccedilatildeo se
aplicam a todos os gecircneros retoacutericos (1414b8-9)
Do que se disse natildeo se deve imaginar que o discurso filosoacutefico esteja fora do acircmbito
retoacuterico pois ainda que se trate do discurso de um soacute pretende sempre persuadir ou persuadir-
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se de algo seja duma verdade ideia crenccedila ou praacutetica E todo aquele que deve ser persuadido
seja o proacuteprio autor do discurso ou um outro se faz indubitavelmente juiz (1391b11-12)
(ἁπλῶς κρίτης) Deste modo esteja-se disposto contra um oponente (πρὸς ἀμφισβητοῦντα)
ou contra uma teoria (πρὸς ὑπόθεσιν) eacute preciso uma vez e sempre recorrer agrave argumentaccedilatildeo
(τῷ λόγῳ ἀνάγκη χρῆσθαι) a fim de defender um ponto de vista ou destruir o seu contraacuterio
(1391b13-14) o que eacute apropriado ao gecircnero de discurso epidiacutectico acima de tudo (ὡσαύτως
ἐν τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) como se se estivesse argumentando diante de um verdadeiro juiz
(ὥσπερ πρὸς κρίτην) que no caso eacute o espectador (θεωρός) aquele que contempla observa
aprende agrave maneira dum disciacutepulo dum arguidor dialeacutetico ou do proacuteprio filoacutesofo se este estiver
apenas escrevendo
Os gecircneros retoacutericos nas Confissotildees consideraccedilotildees teoacutericas
Quando se estaacute diante de temas controversos que aceitam ao menos dois modos dife-
rentes de pensar como os temas tipicamente retoacutericos (1357a1-5) a demonstraccedilatildeo apodiacutectica
(ἀπόδειξις) raramente eacute possiacutevel diz Olivier Reboul (2000 p 27) natildeo sendo nada ldquocientiacuteficardquo
a exigecircncia de ldquorespostasrdquo de caraacuteter cientiacutefico como ocorre nas Confissotildees por exemplo
quando se quer falar das ldquocoisasrdquo de Deus Contudo entre a luz do que se pode apreender cien-
tificamente (e demonstrar apodicticamente) e a obscuridade da mais completa ignoracircncia acerca
do misteacuterio abissal do Ser encontra-se todo um universo de possibilidades retoacutericas cujo rei-
nado pertence ao argumento E se argumentar natildeo eacute senatildeo propor y para que se admita x como
bem o ilustra esse autor (ibid pp 91-2) que se poderia argumentar acerca do Ser enquanto
Ser (x) sem que se circunscrevesse a dizer de seus pseudopredicados (y) daquilo que apenas
eacute Recursos haacute poreacutem que permitem dizecirc-lo argumentando enquanto Ser ainda que de modo
ilusoacuterio obliacutequo silencioso a partir dos mecanismos que a arte retoacuterica oferece seja com o
auxiacutelio do ecircthos do paacutethos ou do loacutegos os trecircs gecircneros de provas ditas teacutecnicas
Um dos objetivos de Agostinho ao pretender falar de Deus tema indubitavelmente con-
troverso (ἀμφισβητήσιμος) na referida acepccedilatildeo aristoteacutelica isto eacute passiacutevel de disputa por ser
natildeo-apodiacutectico pelo que igualmente retoacuterico pode-se dizer seja pocircr em destaque primordial-
mente o loacutegos o que se faz sobretudo por meio dum discurso do gecircnero epidiacutectico em que
predomina a funccedilatildeo referencial da linguagem uma pseudoterceira pessoa discursiva melhor
compreendida como uma natildeo-pessoa ou seja aquilo de que se fala (περὶ οὗ λέγει) (1358b1)
Todavia jamais deixa de pretender comover (πάθος) poreacutem natildeo especificamente quando fala
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com Deus ο ldquopara quemrdquo (πρὸς ὅν) (1388b1) pois o Ser divino enquanto segunda pessoa
discursiva eacute onisciente e embora deixe-se dalgum modo misterioso comover por causa de sua
misericoacuterdia por ser igualmente justo ele cujo juiacutezo eacute inexoraacutevel torna a tarefa quanto ao
paacutethos um tanto obstada Por isso os esforccedilos de Agostinho no sentido de comover devem vol-
tar-se nem sempre e de imediato a Deus e sim aos seus leitores o auditoacuterio cristatildeo a quem o
filoacutesofo confessa de fato dirigir-se (Conf 235) ldquoA quem estou relatando estas coisas Ora
natildeo a ti meu Deus e sim na tua presenccedila relato-as aos de meu gecircnero ao gecircnero humano por
pequenina a parcela dos que possam deparar com estes meus escritosrdquo6
Quer comover portanto aleacutem de fazer converter para Deus como se viu convertido
fazendo com que as almas se elevem movidas pela penitecircncia o que natildeo se faz senatildeo tendo em
vista uma accedilatildeo futura (περὶ τῶν μελλόντων) E se para falar de Deus carece dum loacutegos apro-
priado ao louvor (ἔπαινος) que eacute tambeacutem contemplaccedilatildeo (θεωρεῖν) contemplaccedilatildeo do Belo (τὸ
καλόν) e do Bem (τὸ ἀγαθόν) a comoccedilatildeo natildeo se faz sem os recursos do paacutethos tampouco
prescindindo do ecircthos a fim de edificar um caraacuteter penitente digno do arrependimento ou con-
versatildeo mental (μετάνοια) a que todo cristatildeo deve submeter-se antes de crer no Evangelho
como admoestava Cristo (Mc 114-15) ldquoArrependei-vos [= convertei-vos] e crede no Evange-
lhordquo (μετανοεῖτε καὶ πιστεύετε ἐν τῷ εὐαγγελίῳ) Portanto Agostinho carece tambeacutem de
construir sempre pelo discurso (διὰ τοῦ λόγου) seu ecircthos discorrendo acerca daquilo que de
edificante se passou consigo (περὶ τῶν γεγενημένων) (1358b5) para os ldquojuiacutezesrdquo (δικασταί)
do auditoacuterio cristatildeo pois seu preteacuterito precisa de ser desenodoado Destarte ao narrar suas
desventuras pregressas confessando-se a Deus e aos homens potildee em destaque seja um Tu
divino que eacute tambeacutem a terceira pessoa discursiva e seu referente pois eacute dele que se fala seja
um tu humano semelhante a si seu leitor Pelo que loacutegos ecircthos e paacutethos se fazem necessaacuterios
de modo temperado segundo as tarefas e os objetivos que se desdobram a cada passo da obra
Tendo pois construiacutedo um ecircthos confiaacutevel a partir de suas gestas pregressas segundo
a taacutebua de valores cristatildeos como a humildade ou a misericoacuterdia por exemplo pode Agostinho
direcionar daiacute em diante sua atenccedilatildeo para o futuro ao modo do gecircnero deliberativo a fim de
comover as almas exortando-as (προτρέπω) seja a voltar-se para Deus o Fim uacuteltimo ou Bem
supremo que se louva pelos recursos do loacutegos seja dissuadindo-as (ἀποτρέπω) de seguir o
caminho do mal que equivale a um afastamento deste mesmo Fim uacuteltimo o que eacute tambeacutem
tarefa do paacutethos quando entatildeo o discurso potildee em destaque a segunda pessoa requerendo um
6 (Conf 235) ldquoCui narro haec neque enim tibi deus meus sed apud te narro haec generi meo generi
humano quantulacumque ex particula incidere potest in istas meas litterasrdquo
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domiacutenio sobre as paixotildees a fim de conduzir o auditoacuterio ao objetivo (τέλος) almejado que
como se disse eacute sempre futuro (περὶ τῶν μελλόντων) Todavia se natildeo se delibera tendo em
vista o fim que se persegue (οὐ περὶ τοῦ τέλος) em conformidade com o que diz Aristoacuteteles
e sim aquilo que leva ateacute ele (ἀλλὰ περὶ τῶν πρὸς τὸ τέλος) (1352a15-19) ou seja os meios
os quais por sua vez residem nas accedilotildees (κατὰ τὰς πράξεις) tem-se como sequecircncia necessaacuteria
que 1 o uacutetil serve a um propoacutesito ulterior um fim e que 2 se o fim for bom o uacutetil natildeo apenas
levaraacute a esse bem mas seraacute tambeacutem de algum modo bom ainda que mediatamente e em menor
grau Daiacute que natildeo apenas o uacutetil em favor de que se delibera seja bom mas tambeacutem a praacuteksis
contraacuteria o seja a saber a rejeiccedilatildeo do nocivo do inuacutetil E com efeito seja para Aristoacuteteles ou
Agostinho o Bem (ἀγαθόν) uacuteltimo ou supremo pode ser definido como sendo aquilo que se
deve buscar (αἱρετόν) em vista de si mesmo (αὑτοῦ ἕκενα) e natildeo de algo ulterior (καὶ μὴ
ἄλλου) (1363b12-14) Esse Fim (τέλος) que coincide com o Bem supremo eacute aquilo em vista
de que (οὗ ἕνεκα) todo o resto (τὰ ἄλλα) se faz (1363b16-17) Em se admitindo com o autor
da Retoacuterica que esse Fim uacuteltimo embora sendo desejado natildeo seja objeto imediato de delibe-
raccedilatildeo e sim as accedilotildees (πράξεις) por meio de que se possa chegar a ele percebe-se sem muito
esforccedilo que as deliberaccedilotildees acerca deste Fim chame-se eudaimoniacutea ou Ser supremo fazem-se
sobremodo a partir de accedilotildees que podem ser virtuosas quando entatildeo se aproxima do objetivo
ou viciosas quando dele se afasta restando manifesto e inconteste o potencial tanto do ecircthos
como do paacutethos no tratamento daquilo que para Agostinho se traduz em princiacutepio pela uita
beata e posteriormente pelo Saacutebado eterno seja nas quatro virtudes cardeais justiccedila tempe-
ranccedila prudecircncia e coragem ou nas trecircs teologais feacute esperanccedila e caridade a serem praticadas
nesta vida tendo em vista o Bem uacuteltimo e supremo Deus seja por outra na comoccedilatildeo necessaacuteria
das almas que se deve aproximar desta mesma uita beata ou afastar da uita misera sem perder
de vista o fim uacuteltimo que se almeja
E se o deliberativo tem sua funccedilatildeo na exortaccedilatildeo tampouco se faz ausente da obra o
gecircnero judiciaacuterio que contempla sobremodo accedilotildees de acusaccedilatildeo (κατηγορία) e de defesa
(ἀπολογία) (1358b) De fato que faz Agostinho na parte dita biograacutefica da obra enquanto
narra suas desventuras preteacuteritas senatildeo acusar-se de seus erros como a experiecircncia entre os
maniqueus entre os ceacuteticos ou mesmo as aventuras ditas libidinosas em Cartago ou entatildeo
fazer a apologia da Graccedila divina da continecircncia da conversatildeo de sua matildee (ao contraacuterio do pai
que ele prefere acusar) Acusaccedilatildeo e defesa portanto seja de atos seus preteacuteritos (περὶ τῶν
γεγενημένων) (1358b5) seja de doutrinas ou ideias que reputa natildeo apenas inimigas do cami-
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nho que leva ao Fim uacuteltimo por ele eleito mas tambeacutem antagocircnicas agrave proacutepria concepccedilatildeo des-
posada deste Ser supremo como o dualismo maniqueu por uma ou o ceticismo de tipo neoa-
cadecircmico por outra que perigosamente ameaccedilava uma das proacuteprias virtudes teologais a natildeo
dizer duas feacute e a esperanccedila por meio duma descrenccedila radical na possibilidade de acesso a
noccedilotildees fundamentadas acerca do verdadeiro
E se se podem perceber nuanccedilas do deliberativo e do judiciaacuterio na exortaccedilatildeo ou dissu-
asatildeo na acusaccedilatildeo e na defesa muito mais no caso do gecircnero predominante expresso pelas Con-
fissotildees o epidiacutectico que segundo Aristoacuteteles compreende tanto o louvor (ἔπαινος) como a
censura (ψόγος) (1358b12-3) De fato que faz Agostinho ao longo das Confissotildees senatildeo cen-
surar o que afasta de Deus louvando o que dele aproxima o homem censurar o pecado lou-
vando seu contraacuterio as virtudes fazer o elogio da vida feliz (beata uita) vituperando seu
oposto a infeliz (misera) E mesmo quando censura seu objetivo natildeo eacute senatildeo louvar louvar o
que se edifica como antipodal daquilo que se estaacute censurando pois natildeo se trata de discorrer
sobre o viacutecio sobre o torto sobre o caminho errado que se natildeo deve percorrer numa palavra
natildeo se trata de discorrer sobre o mal porque ele natildeo existe (entenda-se o mal ontoloacutegico) Ao
contraacuterio trata-se de louvar o que Eacute o Ser por excelecircncia Deus e toda a sua obra cujo paro-
xismo natildeo eacute outro senatildeo o momento em que cria o homem Paradoxal seria pois limitar-se ao
vitupeacuterio o que equivaleria a ressaltar apenas e tatildeo somente aquilo que natildeo possui existecircncia
real o mal ou antisser7 como quem escrevesse um livro sobre o que natildeo eacute As Confissotildees
portanto empreendem sobretudo um discurso de louvor que se bem pode denominar filosofia
do louvor a qual se enquadra perfeitamente no gecircnero epidiacutectico cuja tocircnica eacute dada pelo loacutegos
enquanto referente aquilo de que se fala (περὶ οὗ λέγει) (1358b1) referente de muacuteltiplos sen-
tidos que se pode compreender natildeo apenas como a Palavra que eacute Deus mas tambeacutem a palavra
de Deus a palavra sobre a palavra de Deus a palavra sobre o Deus que eacute Palavra e profere
palavras embora esse mesmo referente enquanto Verbo divino seja inefaacutevel donde ser neces-
saacuterio que esse loacutegos seja tambeacutem linguagem nos recursos retoacutericos precisos a que se diga o
indiziacutevel
Todos os trecircs gecircneros portanto prestam auxiacutelio reciacuteproco pois quem louva no presente
deve fazecirc-lo tambeacutem por meio das lembranccedilas do passado (ἀναμιμνήσειν τὰ γενόμενα) ou das
conjecturas e esperanccedilas futuras (προεικάζειν τὰ μέλλοντα) e o justo por sua vez objeto das
reflexotildees judiciaacuterias pode igualmente ser feio ou belo uacutetil ou inuacutetil mateacuteria dos outros dois
7 O que de esdruacutexulo possa haver neste composto se deve agraves novas regras do Acordo Ortograacutefico de 1990 O
que se quis expressar eacute o contraacuterio do ser ldquoanti-serrdquo que natildeo mais se grafa assim com hiacutefen
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gecircneros assim como uacutetil e o inuacutetil mateacuteria de deliberaccedilatildeo que podem ser justos ou seu con-
traacuterio belos ou natildeo ou ainda o bom e o mau que podem muito bem ser inuacuteteis ou natildeo justos
ou natildeo em conformidade com o que diz Aristoacuteteles justificando assim a mistura dos gecircneros
retoacutericos (1358b27-1359a4) Poreacutem o gecircnero epidiacutectico parece ser o mais completo dos trecircs
uma vez nem focar demasiado no passado como o judiciaacuterio tampouco no futuro como o
deliberativo ao contraacuterio ao discorrer acerca do presente (ὁ παρὼν χρόνος) louvando ou
censurando as coisas que de fato satildeo (κατὰ τὰ ὐπάρχοντα) eacute-lhe permitido voltar-se tanto agraves
reminiscecircncias preteacuteritas quanto ao que pode vir a ser como se percebe nitidamente do primeiro
ao derradeiro livro das Confissotildees que nem se limitam a perscrutar o passado tampouco a
especular esperanccedilosamente sobre o futuro ou mesmo sobre o presente na investigaccedilatildeo do
proacuteprio rememorar quando entatildeo empreendem o louvor do que eacute foi e haacute de ser de par com o
do que sempre e indefectivelmente eacute
Uma uacuteltima palavra acerca da retoacuterica se faz necessaacuteria antes de voltar a atenccedilatildeo para
os trecircs gecircneros de provas teacutecnicas nas Confissotildees Quando se propotildee apresentar uma resposta
diz Michel Meyer (2010 p 53) a retoacuterica tende a ocultar o problemaacutetico fazendo com que a
questatildeo de base subjacente a todo discurso questatildeo em torno de que se reuacutenem ou dispersam
as partes pareccedila resolvida No entanto isso de modo nenhum eacute o que se percebe na retoacuterica
filosoacutefica de Agostinho que opera agraves avessas natildeo projetando de modo nenhum esconder o
problemaacutetico e sim permitindo lidar com ele dizendo-o embora sua insoluacutevel inefabilidade E
de fato se se tome por base a proacutepria definiccedilatildeo da retoacuterica elaborada pelo mesmo Meyer (2012
p 21) como sendo a negociaccedilatildeo entre a distacircncia criada por um dado problema que se constitui
sua proacutepria medida percebe-se no que tange ao Ser natildeo haver distacircncia entre interlocutores
para quem a sua inefabilidade eacute paciacutefica quer se o identifique com a Divindade cristatilde ou natildeo
E em natildeo havendo essa distacircncia qual a finalidade da retoacuterica sendo ela a suposta negociaccedilatildeo
que se estabelece em funccedilatildeo dum dado problema que se mede exatamente por essa distacircncia
inexistente Logo em natildeo havendo uma distacircncia que se constituiacutesse a medida do problemaacutetico
desnecessaacuterio seria argumentar inexistindo o problema Contudo isso se refere de modo espe-
cial agraves retoacutericas forense e deliberativa natildeo agrave epidiacutectica e menos ainda a epidiacutectica com finali-
dade filosoacutefica como se daacute no caso de Agostinho Nas Confissotildees a distacircncia que se quer
negociar eacute a que se supotildee entre o conhecido desconhecimento de Deus e seu desconhecido
conhecimento ou seja a distacircncia entre o nada que se pode conhecer de Deus e o tudo que se
desconhece entre o nada que dele se pode dizer e o tudo que se natildeo diz E como essa distacircncia
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eacute inegociaacutevel resta agrave retoacuterica simular a edificaccedilatildeo duma estrutura especial a linguagem per-
mitindo que pela proacutepria expressatildeo do paradoxo do estranhamento da perplexidade se diga
sem dizer e se natildeo diga dizendo Numa palavra a retoacuterica permite que Agostinho estique a
corda do arco de seu dizer para aleacutem da tensatildeo do compreensiacutevel apodiacutectico para aleacutem do
alcance da razatildeo que seja capaz carreando o leitor consigo de tangenciar o suprarracional a
natildeo dizer irracional pois natildeo desprovido de razatildeo e sim muito aleacutem dela
A primeira das provas da arte ecircthos
Aleacutem das provas loacutegicas que envolviam mateacuterias e meacutetodos cujo apelo se voltava pri-
mordialmente a natildeo dizer exclusivamente para a razatildeo a retoacuterica reconhecia outros meios de
prova pois se dera conta havia muito de que as pessoas natildeo satildeo apenas dotadas de capacidade
racional mas tambeacutem de sentimentos e de vontade pelo que se fazia necessaacuterio lidar com elas
natildeo como deveriam ser mas como realmente eram lembram Corbett e Connors (1999 p 72)
Destarte tomando por base a definiccedilatildeo aristoteacutelica de que a retoacuterica eacute a arte de descobrir todos
os meios possiacuteveis de persuasatildeo8 torna-se oacutebvio o recurso a tudo aquilo que se comprove efi-
ciente para esse fim Neste sentido afianccedilam esses autores o apelo eacutetico pode ser mais eficaz
que o apelo agrave razatildeo pois
mesmo o mais engenhoso e sensato apelo agrave razatildeo pode fracassar diante de ouvidos
amoucos se a audiecircncia reagiu desfavoravelmente ao caraacuteter do orador O apelo eacutetico
eacute especialmente importante no discurso retoacuterico porque aqui estamos lidando com
assuntos acerca dos quais eacute impossiacutevel ter-se certeza absoluta e em que as opiniotildees
satildeo divididas
Com efeito o ecircthos prova teacutecnica que se erige a partir do caraacuteter moral do orador segundo
reconhecia Aristoacuteteles (1356a13) constitui-se no meio mais eficaz de prova (κυριωτάτην ἔχει
πίστιν τὸ ἦθος)
Quintiliano por sua vez em suas Instituiccedilotildees Oratoacuterias (3813) adotando integral-
mente a teoria aristoteacutelica argumenta que dos trecircs gecircneros de discurso o deliberativo era o que
mais necessitava do apelo eacutetico ou seja o discurso que mais se apoiava no caraacuteter do orador
que ele denominava auctoritas
Nas deliberaccedilotildees poreacutem a autoridade eacute o que possui maior valor Com efeito natildeo
apenas deve ser considerado muitiacutessimo prudente como tambeacutem muitiacutessimo virtuoso
todo aquele que deseje que todos acreditem nos seus pensamentos acerca das coisas
8 (1355b25-6) ldquoSeja entatildeo a retoacuterica a faculdade de considerar acerca de cada coisa o que eacute possivelmente
persuasivordquo (ἔστω δὴ ἡ ῥητορικὴ δύναμις περὶ ἕκαστον τοῦ θεωρῆσαι τὸ ἐνδεχόμενον πιθανόν)
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proveitosas e dignas de honra [] natildeo haacute quem negue que as deliberaccedilotildees satildeo feitas
segundo os caracteres dos oradores9
Em conformidade com o que se argumentou um pouco antes a partir das consideraccedilotildees do
proacuteprio Aristoacuteteles acerca da mistura de gecircneros retoacutericos (1358b27-1359a4) sobre a predomi-
nacircncia do gecircnero epidiacutectico nas Confissotildees eacute perceptiacutevel natildeo apenas a importacircncia do apelo
eacutetico que natildeo eacute das menores por tratar-se duma obra primordialmente na primeira pessoa e
que sob certo ponto de vista quer falar de si mas principalmente pelo que se disse acerca de
um dos objetivos da obra de caraacuteter ldquodeliberativordquo ou antes de caraacuteter ldquopastoralrdquo de mover
as almas para Deus (conuersio ad deum) ao modo dum loacutegos protreacuteptico afastando-as do pe-
cado e de tudo que as manteacutem distantes do Bem (auersio a bono) objetivo que se cumpre
escorado no caraacuteter eacutetico que se esforccedilou por burilar ao longo primordialmente dos livros ditos
autobiograacuteficos da obra De fato natildeo obteacutem ecircxito na pretensatildeo de exortar (προτρέπω) para
Deus senatildeo aquele que se deixou dissuadir (ἀποτρέπω) do caminho do pecado que compro-
vou sua humildade (humilitas) na aceitaccedilatildeo natildeo do poder de seu livre-arbiacutetrio e sim da Graccedila
divina cujas Justiccedila e Misericoacuterdia se amalgamam na Sabedoria una e indivisiacutevel do Ser ao
inveacutes de se anularem pela contradiccedilatildeo Natildeo se trata de reconhecer-se purificado trata-se mui-
tiacutessimo ao contraacuterio de reconhecer-se pecador carente da Graccedila e incapacitado de autossalva-
ccedilatildeo numa palavra trata-se de diminuir-se ao modo do ldquoesvaziamentordquo (κένωσις) de Cristo
que embora possuindo uma forma divina (ἐν μορφῇ θεοῦ) esvaziou-se a si mesmo segundo
Paulo assumindo uma forma de escravo e fazendo-se semelhante aos homens pelos quais se
humilhou e obedientemente deixou-se matar na cruz10 Esse o ecircthos cristatildeo portador das virtu-
des dignas de imitaccedilatildeo invertidas quanto pudessem parecer a um auditoacuterio pagatildeo da eacutepoca
para o qual nem a misericoacuterdia tampouco a humildade eram considerados valores morais dese-
jaacuteveis e sim fraquezas despreziacuteveis
O orador persuade por seu caraacuteter moral explicava Aristoacuteteles (1356a5) quando seu
discurso eacute de tal modo elaborado que seja capaz de tornaacute-lo digno de credibilidade um homem
em quem pareccedila ser possiacutevel confiar Essa credibilidade contudo natildeo se constroacutei por meio de
elementos extratextuais de ideias preacute-concebidas acerca da conduta eacutetica do orador e sim atra-
veacutes do discurso (1356a8) donde ser considerado o ecircthos uma prova de caraacuteter teacutecnico fruto da
9 Inst oratoriae (3813) ldquoValet autem in consiliis auctoritas plurimum nam et prudentissimus esse haberique
et optimus debet qui sententiae suae de utilibus atque honestis credere omnes uelit [] consilia nemo est qui
neget secundum mores darirdquo 10 Paulo (Fl 25-8) ldquoΤοῦτο φρονεῖτε ἐν ὑμῖν ὃ καὶ ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων οὐχ
ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ ἀλλὰ ἑαυτὸν ἐκένωσεν μορφὴν δούλου λαβών ἐν ὁμοιώματι ἀνθρώπων γενόμενοςmiddot καὶ σχήματι εὑρεθεὶς ὡς ἄνθρωπος ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν γενόμενος ὑπήκοος μέχρι θανάτου θανάτου δὲ σταυροῦrdquo
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arte Isso se daacute explica o filoacutesofo porque quando se estaacute tratando de temas de caraacuteter geral via
de regra a confianccedila se estabelece sobre as opiniotildees das pessoas cujo valor eacute notoacuterio poreacutem
quando os temas satildeo incertos duvidosos (τὸ ἀμφιδοξεῖν) aiacute entatildeo como que desprovido de
alternativas resta ao auditoacuterio tatildeo soacute a confianccedila quase que total e irrestrita (παντελῶς) na-
queles cujos caracteres ou comprovou-se destacar-se ou lograram aparentar fazecirc-lo E sobre
que versam as Confissotildees em linhas gerais como jaacute se apontou antes senatildeo sobre o tema natildeo-
apodiacutectico por excelecircncia Deus Donde ser liacutecito dizer que pelo prisma da retoacuterica Agostinho
empreende um enorme esforccedilo de construccedilatildeo dum ecircthos apropriado a falar de Deus E de fato
se se pretende falar de tema natildeo apenas duvidoso retoacuterico mas inefaacutevel como o Ser de que
modo evadir-se do estribo do ecircthos Se o tema fosse apodiacutectico o caraacuteter do orador talvez
restasse menos relevante poreacutem natildeo num tema em que as provas demonstrativas satildeo pratica-
mente inexistentes
Para ressaltar o caraacuteter moral de algueacutem que se queira elogiar seja o do proacuteprio orador
ou natildeo lembra Aristoacuteteles (1367b22-27) eacute preciso associar as suas accedilotildees (as quais se empre-
ende louvar) agraves suas intenccedilotildees a fim de demonstrar seu valor porque o louvor (ἔπαινος) se tira
das accedilotildees (ἐκ τῶν πράξεων) desde que este aja em conformidade com suas determinaccedilotildees
morais (κατὰ προαίρεσιν) E se o homem de valor age segundo suas proacuteprias determinaccedilotildees
depreende-se que o homem cujo valor eacute nulo aja determinado isto eacute conduzido pelo destino
pela sorte (ἀπὸ τύχης) e que o homem cujo valor eacute repreensiacutevel exemplo que o filoacutesofo natildeo
daacute mas cujo raciociacutenio permite avanccedilar agiria tambeacutem motivado por suas determinaccedilotildees mo-
rais as quais contudo seriam maacutes O que importa no que tange ao ecircthos eacute que se deve mostrar
que aquele que se estaacute louvando age de acordo com suas determinaccedilotildees e natildeo ao acaso o que
lhe tiraria todo o meacuterito meacuterito que caberia entatildeo agrave fortuna (τύχη) uma vez que as accedilotildees natildeo
praticadas de modo voluntaacuterio natildeo satildeo meritoacuterias em conformidade com o que Agostinho tam-
beacutem admitia11 Portanto o conselho de Aristoacuteteles ao orador que quer construir o seu proacuteprio
ecircthos ou o de algum outro eacute tornar todas as accedilotildees possiacuteveis inclusive as decorrentes da sorte
mdash o que natildeo seria nada honesto admite o filoacutesofo mdash fruto do meacuterito daquele que se quer
enaltecer o que seria sinal de homem resoluto decidido (σημεῖον ἀρετῆς εἶναι προαιρέσεως)
No entanto esse conselho natildeo apenas natildeo eacute seguido por Agostinho e pelo discurso cristatildeo de
modo geral como ao reveacutes o exato oposto eacute o que se potildee em praacutetica ao atribuir-se tudo agrave
Graccedila divina agrave bondade preexistente daquele que natildeo precisou de nenhuma das criaturas que
criou as quais jamais fizeram por merecer o dom da vida (Conf 1311) ldquoPorque antes que eu
11 O livre arbiacutetrio (11430101) ldquoIn uoluntate meritum sitrdquo
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existisse existias tu e eu nem existia para que me concedesses que eu existisserdquo12 Isso eacute feito
contudo natildeo em detrimento do ecircthos da construccedilatildeo dum caraacuteter digno de louvor e fidedigno
e sim para construir um caraacuteter cristatildeo ou seja um caraacuteter natildeo pautado pela taacutebua de valores
eacuteticos claacutessicos que atribuiacutea grande peso agrave gloacuteria agrave honra ao denodo guerreiro e agrave justiccedila
inflexiacutevel e fria da lei13 e sim para destacar o homem jaacute de tipo medieval manso e humilde de
coraccedilatildeo misericordioso ao ponto de voltar a outra face numa palavra homem cuja honra estava
na cruz e no sangue de seu Salvador e para o qual ldquoo insensato de Deusrdquo era ldquomais saacutebio que
os homens e o fraco de Deus mais forte que os homensrdquo14 O ecircthos pois que se quer construir
eacute o do homem de feacute que se deixa conduzir pela matildeo de Deus na praacutetica das virtudes ditas
teologais feacute esperanccedila e caridade (πίστις ἐλπίς ἀγάπη) (1Cor 1313) O homem comumente
se orgulha das coisas que faz por si proacuteprio (τοῖς διrsquo αὐτόν) lembra Aristoacuteteles mas natildeo se
orgulha do que o destino lhe trouxe (διὰ τύχην) (1368a3-4) Agostinho bastante ao contraacuterio
natildeo apenas natildeo se orgulha do que fez mas se arrepende amargamente preferindo ao inveacutes da
honra agradecer a Deus todo o bem que lhe sucedeu por seu intermeacutedio divino ldquoe assim Se-
nhor apagaste todos os meus merecidos males para que natildeo retribuiacutesses agraves minhas matildeos nas
quais te deixei e te antecipaste a todos os meus merecidos bens para que retribuiacutesses agraves tuas
matildeos com as quais me fizesterdquo15
Destarte das trecircs qualidades independentes de demonstraccedilatildeo (ἔξω τῶν ἀποδείξεων)
que Aristoacuteteles aponta (1378a) como necessaacuterias ao orador ainda que em aparecircncia somente a
fim de que seja convincente o que de modo principal se refere agraves assembleias ou ao conselho
instacircncias tiacutepicas de deliberaccedilatildeo na Greacutecia antiga 1 prudecircncia ou bom-senso (φρόνησις) 2
excelecircncia moral (ἀρετή) e 3 boa disposiccedilatildeo (εὔνοια) nenhuma delas guarda nas Confissotildees
a importacircncia que o estagirita lhe atribui a natildeo ser que se considerem as virtudes ditas teologais
como pertencentes ao rol das aretaiacute aristoteacutelicas o que seria no miacutenimo um grave anacronismo
Por fim a Retoacuterica destaca o papel do ecircthos na disposiccedilatildeo das mateacuterias (τάξις) de modo
especiacutefico no proecircmio (exordium) Nos discursos do gecircnero judiciaacuterio por exemplo aquele que
se defende (ἀπολογουμένῳ) deve fazecirc-lo logo no proecircmio (πρῶτον) antes da acusaccedilatildeo ao
contraacuterio de quem acusa que deve fazecirc-lo no final (τῷ ἐπιλόγῳ) porque aquele que defende
deve construir seu ecircthos no iniacutecio antes da acusaccedilatildeo (πρὸς τὴν διαβολήν) (1415a29-30) a
12 Confissotildees (1311) ldquoquia et priusquam essem tu eras nec eram cui praestares ut essemrdquo 13 Em conformidade com a ideia veiculada pela maacutexima romana ldquodura sed lexrdquo 14 Paulo (1Cor 121-25) ldquoὅτι τὸ μωρὸν τοῦ θεοῦ σοφώτερον τῶν ἀνθρώπων ἐστὶν καὶ τὸ ἀσθενὲς τοῦ
θεοῦ ἰσχυρότερον τῶν ἀνθρώπωνrdquo 15Confissotildees (1311) ldquoEtenim domine deleuisti omnia mala merita mea ne retribueres manibus meis in
quibus a te defeci et praeuenisti omnia bona merita mea ut retribueres manibus tuis quibus me fecistirdquo
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fim de livrar-se de todo impedimento ou embaraccedilo como faz Agostinho nas Confissotildees utili-
zando-se dos primeiros livros ditos biograacuteficos para tanto Se o acusador deve criar o precon-
ceito contra o acusado no fim para que permaneccedila bem presente na memoacuteria dos juiacutezes o
defendente deve desvencilhar-se do preconceito logo no iniacutecio a fim de que seus argumentos
satildeo sejam prejudicados pela imagem da pecha moral que traz consigo Natildeo eacute apenas para o
ecircthos que o proecircmio eacute importante mas tambeacutem para o paacutethos pois eacute preciso tornar o auditoacuterio
bem disposto em relaccedilatildeo ao orador se se estaacute defendendo ou tornaacute-lo indisposto contra a outra
parte (1415a-34-36) se se estaacute acusando Para isso conta muito a aparecircncia de respeitabilidade
do falante pois ldquoas pessoas respeitaacuteveis recebem mais atenccedilatildeordquo diz Aristoacuteteles Pelo que o
orador deve esforccedilar-se por conseguir duas coisas do auditoacuterio 1 amizade (φίλον) e 2 com-
paixatildeo (ἐλεεινόν) (1415b22-28) tornaacute-lo amigo e compassivo fazendo-o crer que ele mesmo
o orador sente exatamente aquilo que censura ou louva ou seja que estaacute sendo sincero
(1415b28-29) Ora como falar da Graccedila de Deus sem que se recorra ao testemunho pessoal
pois a Graccedila diferentemente da recompensa ou do salaacuterio (merces) eacute distribuiacuteda gratuitamente
para o que por paradoxal pareccedila faz-se necessaacuterio ser pecador numa palavra estar desprovido
de qualquer meacuterito que o tornaria credor ao inveacutes de devedor meacuterito que poderia confundi-la
a Graccedila com pagamento ou retribuiccedilatildeo Evidente que se trata dum exagero pois os que tecircm
meacuterito natildeo estatildeo de modo nenhum excluiacutedos da Graccedila jaacute que natildeo faz muito sentido que natildeo
receba sem meacuterito16 senatildeo quem natildeo mereccedila
Seja como for esse ecircthos de sinceridade logra construir com bastante esmero Agostinho
ao reconhecer-se pecador devedor pequenino desprovido de meacuteritos e absolutamente depen-
dente da bondade da Providecircncia divina que se expressa pela Graccedila gratis
A segunda das provas da arte paacutethos
A movimentaccedilatildeo das emoccedilotildees (πάθος) embora uma prova (πίστις) que se diz teacutecnica
ou ldquoda arterdquo (ἔντεχνος) de modo aparentemente paradoxal natildeo tem que ver diretamente com
as provas demonstrativas ou com a causa em si e sim respeita aos juiacutezes (δικασταί) explica
Aristoacuteteles (1354a4-5)17 De fato o orador alcanccedila a persuasatildeo seja em que gecircnero for (o que
16 Isto eacute gratuitamente 17 Aristoacuteteles natildeo era muito simpaacutetico nem ao apelo eacutetico tampouco ao emocional que julgava ser um mal
necessaacuterio pois considerava errado manipular os sentimentos dos juiacutezes o que equivalia a corromper a proacutepria lei
que se tentava fazer valer ou de que se queria socorrer (1356a14) Argumento muito parecido esse (de destruir a
proacutepria lei a que se deveraacute recorrer depois) com o utilizado por Soacutecrates ao negar a proposta de fuga de Criacuteton no
diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo (50a-b) Pois bem no iniacutecio do tratamento da hupoacutekrisis (1403b22-) Aristoacuteteles
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natildeo exclui nem o epidiacutectico tampouco o deliberativo) mediatamente por meio dos ouvintes
(διὰ τῶν ἀκροατῶν) aqueles aos quais se dirige quando recorre ao paacutethos despertando ou
dirigindo suas emoccedilotildees (ὅταν εἰς πάθος) o que se faz pela accedilatildeo discursiva (ὑπὸ τοῦ λόγου)
Isso porque os juiacutezos (τὰς κρίσεις) dos ouvintes objetivo da accedilatildeo persuasiva variam sob a
influecircncia das emoccedilotildees tais como a dor (λύπη) a alegria (χαρά) a amizade (φιλία) o oacutedio
(μῖσος) etc Com efeito o orador natildeo tem por escopo a emoccedilatildeo do auditoacuterio em si mesma como
finalidade e sim a sua persuasatildeo a fim de que decida em favor de sua causa para o que as
emoccedilotildees cooperam vivamente como percebeu Aristoacuteteles ao dedicar grande parte do livro
segundo da Retoacuterica ao estudo das paixotildees da alma
Um dos meios mais eficazes para a movimentaccedilatildeo do paacutethos a fim de que se tenha ecircxito
no apelo emocional em vista dum fim ulterior natildeo satildeo as provas demonstrativas recomendadas
para o gecircnero apropriado (o judiciaacuterio no caso) o entimema e as maacuteximas provas que devem
ser descobertas na invenccedilatildeo e sim os recursos pertencentes a outra parte da retoacuterica a elocuccedilatildeo
(λέξις) Com efeito depois de encontrado o que dizer (εὕρεσις) e disposto as mateacuterias de modo
apropriado (τάξις) resta saber como dizecirc-lo Esse ldquocomordquo respeita sem duacutevida agrave forma do dis-
curso que se chama tambeacutem ldquoestilordquo poreacutem de modo nenhum se limita a isso como se fosse
apenas uma sua vestimenta Os recursos da elocuccedilatildeo para muito aleacutem da ornamentaccedilatildeo tecircm
forccedila persuasiva pois argumentam seja pela concisatildeo das figuras seja pelo ritmo e paralelismo
das construccedilotildees seja pelas imagens que evocam o que fazem de modo principal pondo em
destaque tanto o ecircthos como o paacutethos O ecircthos por exemplo no emprego do leacutexico que quando
recheado de estrangeirismos (ξένην ποιεῖν τὴν διάλεκτον) (1404b10-12) diz Aristoacuteteles con-
fere um ar de dignidade ao discurso promovendo por tabela o orador que se faz parecer digno
e nobre assim como aquilo que estaacute dizendo O paacutethos por sua vez quando o discurso eacute ldquoele-
vadordquo a um niacutevel suprarracional ou sublime pelo uso de recursos poeacuteticos dentre os quais se
destacam as figuras de repeticcedilatildeo como paralelismos epanalepses anadiploses antanaacuteclases
reconhece que tudo aquilo que respeita agrave apresentaccedilatildeo do discurso como voz volume tom altura ritmo harmo-
nia entre tais e que eacute muito importante nos certames dramaacuteticos e eacutepicos (τῶν ἀγώνων) quando entatildeo faz-se
necessaacuterio equilibrar esses elementos segundo cada uma das emoccedilotildees (πρὸς ἕκαστον πάθος) embora seja tam-
beacutem utilizado nas demais atividades poliacuteticas como assembleias deliberativas e tribunais o eacute apenas de modo
deploraacutevel Isso porque conquanto seja necessaacuterio mover as paixotildees do auditoacuterio e construir o caraacuteter do orador
discursivamente essa necessidade se deve tatildeo soacute agrave corrupccedilatildeo dos cidadatildeos (διὰ τὴν μοχθηρίαν τῶν πολιτῶν)
(1403b34-35) o que equivale a dizer do auditoacuterio (τοῦ ἀκροατοῦ) Assim sendo o recurso tanto ao ecircthos como
ao paacutethos deixa de ser questatildeo de correccedilatildeo (οὐκ ὀρθῶς) de certo ou errado passando a ser uma necessidade (ἀλλrsquo
ὡς ἀναγκαίου) Com efeito o justo (δίκαιον) seria defender acusar exortar e dissuadir movido apenas pelos
fatos (ἀγωνίζεσθαι τοῖς πράγμασιν) (1404a5-6) de maneira tal que o restante que Aristoacuteteles reputa fora da
demonstraccedilatildeo (ἔξω τοῦ ἀποδεῖξαι) ο que inclui ecircthos e paacutethos seria superfluidade (περίεργα ἐστίν) (1404a8)
Infelizmente poreacutem a realidade eacute que o orador precisa conhecer estes recursos a fim de poder defender-se e atingir
seus objetivos uma vez que os adversaacuterios certamente lanccedilam matildeo deles de modo quase sempre inescrupuloso
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paronomaacutesias antimetaacuteboles poliptotos etc E fique claro que dizer que Aristoacuteteles natildeo via com
bons olhos o (mau) recurso aos apelos eacutetico e pateacutetico nos tribunais natildeo significa dizer que
desprezasse os mecanismos da elocuccedilatildeo o que implicaria dizer que cresse o homem ser dotado
apenas de razatildeo excluiacutedos sentimentos e caraacuteter a natildeo dizer da vontade Ao contraacuterio Aristoacute-
teles bem reconhecia que em todo tipo de aprendizado (ἐν πάσῃ διδασκαλίᾳ) o estilo se faz
mateacuteria de certa importacircncia uma vez que algo se torna claro (πρὸς τὸ δηλῶσαι) por meio do
modo como eacute dito (ὡδὶ ἢ ὡδὶ εἰπεῖν) embora relegasse a questatildeo do estilo ao niacutevel da aparecircn-
cia (ἀλλrsquo ἅπαντα φαντασία ταῦτrsquo εστὶ) cuja finalidade seria apenas agradar o ouvinte (πρὸς
τὸν ἀκροατήν) ouvinte esse por sua vez cuja corrupccedilatildeo (μοχθηρία) seria a verdadeira causa
de tudo que natildeo eacute apodiacutectico na retoacuterica (1404a7-8) Em assim sendo o estilo (λέξις) seria um
mal necessaacuterio uma ferramenta que embora potencialmente injusta seria uacutetil para conferir
clareza ao discurso assim como todos os demais elementos de persuasatildeo natildeo-apodiacutecticos ou
extrademonstrativos E isso se justifica diz o filoacutesofo de modo peremptoacuterio porque ningueacutem
ensina a fazer geometria desse modo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) isto eacute nem pelo
recurso ao paacutethos nem pelo ecircthos tampouco por qualquer outra ferramenta indicada para a
elocuccedilatildeo como as figuras (1404a12) Compreende-se essa visatildeo deveras depreciativa da elo-
cuccedilatildeo por parte do filoacutesofo pois como ele mesmo diz no terceiro livro de sua Retoacuterica ao
empreender o tratamento da actio ou representaccedilatildeo do discurso (ὑπόκρισις) ateacute ao tempo da
escritura da obra natildeo havia ainda nenhuma arte isto eacute nenhum manual de retoacuterica voltado para
a mateacuteria (οὔπω δὲ σύγκειται τέχνη περὶ αὐτῶν) porque a leacuteksis soacute havia sido notada pou-
quiacutessimo antes (ἐπεὶ καὶ τὸ περὶ τὴν λέξιν ὀψὲ προῆλθεν) descaso que se justificava pelo fato
de o estilo mdash considerado entatildeo como mera ornamentaccedilatildeo do discurso mdash ser julgado inferior
(φορτικὸν) tema indigno das preocupaccedilotildees dum homem livre criacutetica que natildeo evita endossar o
filoacutesofo (καλῶς ὐπολαμβανόμενον) (1403b35-6)
A despeito desta postura criacutetica adotada por Aristoacuteteles e de seu juiacutezo negativo a respeito
do ecircthos e do paacutethos postura raramente admitida pelos estudiosos atuais da retoacuterica o que
importa para os fins deste artigo contudo eacute seu poder argumentativo uma vez que sua impor-
tacircncia natildeo pode ser negada seja ela justificada ou natildeo de par com a finalidade filosoacutefica que
lhes imprime o rhetor de Hipona Portanto justo ou natildeo (nos tribunais e assembleias) o fato
admitido por Aristoacuteteles eacute que a elocuccedilatildeo afeta sobremodo o paacutethos sendo de par com o ecircthos
reconhecido como a mais persuasiva (κυριωτάτη) das provas (1356a13) altamente eficaz para
os objetivos da argumentaccedilatildeo pois resta claro que por meio do estilo se consegue mover as
emoccedilotildees (1408a16) seja quando se fala com indignaccedilatildeo audaciosa (ὕβρις) seja com raiva
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(ὁργιζομένου) impiedade (ἀσεβή) ou vergonha (αἰσχρά) O estilo adequado (ἡ οἰκεία λέξις)
que eacute aquele em que os elementos do paacutethos (παθητική) e do ecircthos (ἠθική) satildeo proporcionais
(ἀνάλογον) aos temas subjacentes (τοῖς ὐποκειμένοις πράγμασιν) (1408a10-11) faz com
que um dado assunto seja mais persuasivo Aleacutem disso remata Aristoacuteteles o ouvinte sempre
simpatiza (συνομοπαθεῖ ὁ ἀκούων) com quem fala de modo emocional (παθητικῶς
λέγοντι) ainda que esse natildeo diga nada (κἂν μηθὲν λέγῃ) (1408a23-4)
Reconhecido o vigor (δύναμις) natildeo apenas pateacutetico mas tambeacutem argumentativo da elo-
cuccedilatildeo resta ver como Agostinho se utiliza de seus recursos nas Confissotildees a fim de atingir seus
objetivos numa palavra a fim de fazer filosofia Pois bem as descriccedilotildees que melhor instigam
as emoccedilotildees satildeo as que fazem apelo agrave imaginaccedilatildeo e aos sentidos descriccedilotildees viacutevidas de cenas e
eventos contam muito como o famigerado roubo das peras (Conf 249) a prisatildeo de Aliacutepio
(6914) ou a cena do jardim de Milatildeo (81125-27) por exemplo as inumeraacuteveis metaacuteforas e a
prosopopeia de oacutergatildeos humanos que passam a ser dotados de matildeos pernas ouvidos como as
matildeos do coraccedilatildeo que se estendem em prece a Deus os relatos de laacutegrimas pungentes que se
vertem repetidas vezes enfim descriccedilotildees essas que tecircm potencial enorme para despertar fortes
sentimentos Do mesmo modo o uso de hipeacuterboles e outras tantas figuras se faz extremamente
uacutetil para criar o efeito emocional desejado Todavia nada talvez seja tatildeo eficiente nesse sentido
quanto o vocabulaacuterio o uso de palavras carregadas de intensa conotaccedilatildeo pateacutetica E no apelo
agraves emoccedilotildees pode-se dizer esteja uma das chaves de leitura das Confissotildees ao menos retoacuterica
De fato a linguagem da obra estaacute repleta de figuras cujo efeito principal eacute o despertar dos
sentimentos Mas de quem e para quecirc A sua audiecircncia soacute pode ser depreendida de modo in-
direto por meio da linguagem do estilo e do tema o que natildeo se constitui tarefa das mais faacuteceis
por tratar-se de obra multifacetada de linguagem muito elaborada que prima pela sofisticaccedilatildeo
mas que natildeo despreza uma certa tonalidade menos erudita que se pode ateacute denominar em
alguma medida popular ou humilde De fato pelo recurso aos salmos e textos escrituraacuterios
com seu respectivo campo semacircntico permeado de expressotildees da liacutengua grega vulgar (κοινή)
traduzidas ou transliteradas em latim conhecidos de toda comunidade cristatilde natildeo apenas por
serem lidos mas principalmente por sua funccedilatildeo lituacutergica eacute sem duacutevida uma linguagem
(sermo) popular ou humilis todavia pelos mecanismos retoacutericos extremamente requintados e
pelas referecircncias a toda uma cultura filosoacutefica de par com uma argumentaccedilatildeo em muitas pas-
sagens nada singela especialmente nos livros 1 8 e de 9 a 13 pode-se considerar igualmente
elevadiacutessima Portanto humilde e elevada eacute a linguagem das Confissotildees constituindo em si
mesma um oximoro
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Diante desse desafio de escrever tanto para a gente mais simples como para filoacutesofos
desafio que se exprime nesse caso pela linguagem supotildee-se que Agostinho natildeo tenha simples-
mente pretendido abaixar o registro de seu discurso descendo aos simples e pequeninos (ad
catechizandos rudes) muito ao contraacuterio ao que parece pretendia elevar-se ou melhor ser
elevado ao confessar-se arrependido penitenciando-se mas tambeacutem ao confessar sua feacute e seu
louvor enaltecendo e reconhecendo a graccedila de Deus em sua vida Em sendo assim ao ser ele-
vado por Deus pela confissatildeo pretende igualmente mover as almas incitando-lhes semelhante
elevaccedilatildeo ou quando natildeo o desejo de elevaccedilatildeo desejo de que se deixassem igualmente elevar
como ele confessava desejar o que se pode considerar sem duacutevida uma meta de caraacuteter pastoral
Portanto sua missatildeo quanto ao paacutethos eacute tambeacutem a de mover as almas agrave salvaccedilatildeo que
se pode sintetizar na vontade de ser elevado e de para lanccedilar matildeo duma contradiccedilatildeo merecer
por uma espeacutecie de ascese cataacutertica a graccedila divina a misericoacuterdia do Deus justiacutessimo Ora
disso decorre a possibilidade duma outra funccedilatildeo da linguagem extremamente comovente fruto
dos recursos da elocuccedilatildeo a que recorre Agostinho nas Confissotildees e interligada com essa funccedilatildeo
dita pastoral de elevar as almas uma funccedilatildeo que se pode compreender como simultaneamente
propedecircutica e filosoacutefica Com efeito se uma das funccedilotildees deste paacutethos que se diz de caraacuteter
pastoral pretende comover positiva e negativamente incitando a um soacute tempo o desejo de
salvaccedilatildeo e o de horror agrave perdiccedilatildeo o desejo de buscar Deus e de evitar o mal de buscar ser mais
pela proximidade do Ser supremo e de evitar ser menos ou deixar de ser pelo afastamento desse
mesmo Ser como se percebe sobremodo nos livros da parte considerada biograacutefica da obra o
que natildeo implica de modo algum a exclusatildeo dos restantes livros a outra funccedilatildeo por sua vez
relacionada intimamente agrave primeira de que se pode dizer seja consequecircncia natural que se
exacerba tambeacutem a partir dos recursos da elocuccedilatildeo e que como se disse tem caraacuteter prope-
decircutico compreende-se como uma funccedilatildeo de purificaccedilatildeo filosoacutefica de afastamento progressivo
das coisas deste mundo de afastamento da ldquocarnerdquo se se pode dizer tendo em vista o despren-
dimento rumo a uma vida mais espiritual de proximidade com o Ser o puro Inteligiacutevel que se
transubstancia por sua vez num projeto de vivecircncia cristatilde o que se destaca sobremodo a partir
do livro novo encontrando sua foz nos estertores do livro derradeiro Donde ser liacutecito afirmar
que os livros da parte biograacutefica das Confissotildees do primeiro ao oitavo tecircm tambeacutem essa fun-
ccedilatildeo de purificaccedilatildeo tanto das emoccedilotildees como da razatildeo ou seja de disciplinar ou exercitar asce-
ticamente a alma (exercitatio animi)18 a fim de que os leitores e ouvintes pudessem estar pre-
parados para o que havia de vir nos livros subsequentes E isso parece estar em harmonia com
18 Ἥ ἄσκησις ἥ τῆς ψυχῆς
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o projeto filosoacutefico platocircnico-cristatildeo que Agostinho tinha para sua vida e que colocou em praacute-
tica desde os tempos preacute-batismais de Cassiciacuteaco ateacute ser interrompido pela sua consagraccedilatildeo
sacerdotal (391 dC) um projeto propedecircutico-purificador
E de fato se se pode aventar que esse projeto cataacutertico da razatildeo encontra seu ponto de
saiacuteda no expurgo do ceticismo de tipo neoacadecircmico como se percebe nos trecircs livros intitulados
Contra Academicos desenvolve-se sobremodo nas paacuteginas do diaacutelogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monoacutelogo com os Soliloacutequios obras do mesmo periacuteodo
Formato monoloacutegico esse denominado por Dupuy-Trudelle (1998 p 1198) ldquodesdobramentordquo
que eacute bem possiacutevel tenha servido de laboratoacuterio para as proacuteprias Confissotildees sugere a autora
refletindo a intenccedilatildeo de Agostinho apesar da excelecircncia da feacute de levar as exigecircncias da razatildeo
ateacute ao limite extremo num esforccedilo de purificaccedilatildeo num ir-aleacutem das paixotildees e desiludir-se sobre
si mesmo Ora estar iludido acerca de si mesmo natildeo eacute impedimento agrave feacute mas o eacute ao acesso agrave
convicccedilatildeo intelectual verdadeira Portanto para chegar-se ao conhecimento define esta autora
(ibid pp 1198-9) faz-se mister como condiccedilatildeo uacutenica a ldquolibertaccedilatildeo da razatildeo de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesmardquo libertaccedilatildeo a que os Soliloacutequios datildeo curso
Pode-se compreender que para desenlamear a consciecircncia dos similisavoirs libertaacute-
la de toda ilusatildeo psicoloacutegica ensinaacute-la que o desejo da verdade natildeo eacute ainda a posses-
satildeo da verdade permitir-lhe ir aleacutem do conflito de interesses que leva a opiniatildeo a
revoltar-se contra a verdade seja preciso mensurar a distacircncia entre o sujeito e si
mesmo Ora fazecirc-lo eacute um convite a mensurar a distacircncia entre si e o conhecimento de
Deus Eis entatildeo todo o sentido do exerciacutecio proposto pelo ldquosoliloacutequiordquo mensurar uma
e outra19
Natildeo parece haver duacutevidas de que os Soliloacutequios trazem em si de modo embrionaacuterio o estilo
que haveria de consagrar sobretudo a partir das Confissotildees quando entatildeo dispensa o combate
direto de ideias preferindo ldquodesdobrar-serdquo e deixar-se interrogar por si mesmo ainda que de
modo proleacuteptico continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas
Todavia eacute mais que provaacutevel que esta exigecircncia natildeo tenha surgido do nada e sim pertenccedila a
um projeto filosoacutefico maior que englobe as demais obras de Cassiciacuteaco sendo-lhe entatildeo um
como que desenvolvimento natural
No proacutelogo do De ordine (13-4) Agostinho argumenta que o homem por ser um des-
conhecido de si mesmo natildeo consegue perceber a ordem que reina em todo o universo ordem
providencial em que ele estaacute inserido e que para conseguir conhecer-se seria necessaacuterio entrar
em si mesmo ali permanecendo afastado dos sentidos lugar em que poderia entatildeo curar-se das
feridas que as opiniotildees vulgares infligem agrave alma seja pelo ldquofogordquo do ldquoisolamentordquo conforme
19 DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Les Confessions Paris Gal-
limard 1998 p 1206
152
se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
153
soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
154
As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
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menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
156
Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
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sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
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(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
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articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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133
se as provas teacutecnicas satildeo destes trecircs gecircneros depreende-se como necessaacuterio para o ecircthos paacute-
thos e loacutegos respectivamente 1 o estudo dos caracteres (τοῦ θεωρῆσαι περὶ τὰ ἤθη) e das
virtudes (καὶ τὰς ἀρετάς) 2 o estudo das emoccedilotildees ou paixotildees da alma (θεωρῆσαι περὶ τὰ
πάθη) 3 e o estudo do raciociacutenio loacutegico ou silogiacutestico (τοῦ συλλογίσασθαι δυναμένου)
(1356a20)
Em cada um dos gecircneros retoacutericos predomina uma prova teacutecnica apropriada sem exclu-
satildeo das restantes assim como tarefas e objetivos especiacuteficos a saber 1 no gecircnero judiciaacuterio
cujo predomiacutenio do paacutethos jaacute se referiu o orador tem por tarefa (πράξις) a acusaccedilatildeo
(κατηγορία) e a defesa (ἀπολογία) e por objetivo ou finalidade (τέλος) ajuizar do justo (τὸ
δίκαιον) e do injusto (τὸ ἄδικον) acerca de fatos passados 2 no deliberativo por sua vez cujo
peso do ecircthos foi posto em destaque tem-se a tarefa da exortaccedilatildeo (προτροπή) ou da dissuasatildeo
(ἀποτροπή) acerca do proveitoso (τὸ συμφερόν) ou do prejudicial (τὸ βλαβερόν) com res-
peito aos eventos futuros 3 por fim no epidiacutectico cuja prova principal eacute o loacutegos tem-se por
tarefa o louvor (ἔπαινος) ou a censura (ψόγος) seja sobre o belo (τὸ καλόν) ou o bom (τὸ
ἀγαθόν) seja sobre o feio (αἰσχρόν) ou sobre o mau (τὸ κακόν) em relaccedilatildeo agraves coisas que satildeo
no presente
Argumentos ou provas de tipo demonstrativo igualmente predominam em cada um dos
gecircneros retoacutericos sem obviamente implicar a exclusatildeo dos demais Daiacute que 1 no judiciaacuterio
argumenta-se em favor do justo ou contra o injusto seja acusando ou defendendo por meio
predominantemente de entimemas (ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) o que natildeo exclui ne-
nhum dos demais recursos 2 no deliberativo por sua vez argumenta-se em favor ou contra
um determinado curso de accedilatildeo proveitoso ou prejudicial seja pela exortaccedilatildeo ou dissuasatildeo
acima de tudo por meio de exemplos (παραδείγματα) pois eacute a partir do que fizeram homens
ilustres do passado em feitos natildeo menos ilustres que se pode deliberar em vista dum futuro
incerto 3 por fim no gecircnero epidiacutectico argumenta-se a favor de ou contra uma determinada
qualidade virtude viacutecio tese ou pessoa seja louvando ou censurando de modo principal por
meio da amplificaccedilatildeo que pode ser positiva (αὔξησις) ou negativa (ταπείνωσις) sem que se
excluam os demais recursos probatoacuterios
Todo esse ldquosistemardquo retoacuterico elaborado ou desdobrado por Aristoacuteteles pode ser visuali-
zado com mais clareza na seguinte disposiccedilatildeo tabelar
Tabela I
134
GEcirc
NE
RO
S D
E
DIS
CU
RS
O
τρία
γέν
η τῶ
ν λό
γων
AUDITOacuteRIO ἀκροατής
JUIacuteZO E TEMPO κρίσις καὶ χρόνος
PROVAS
TEacuteCNICAS πίστεις ἔντεχνοι
TAREFAS E OBJETIVOS πράξεις καὶ τέλος
PROVA
DEMONSTRATIVA ἀπόδειξις
JUD
ICIAacute
RIO
δι
κανι
κόν
JUIZ-TRIBUNAL δικαστής
δικαστήριον
DO QUE DECORREU
NO PRETEacuteRITO περὶ τῶν γεγενημένων
PAacuteTHOS πάθος
ACUSACcedilAtildeO Ε DEFESA κατηγορία ἀπολογία
O JUSTO E O INJUSTO τὸ δίκαιον ἄδικον
ENTIMEMAS
E MAacuteXIMAS ἐνθυμήματα
γνῶμαι
DE
LIB
ER
AT
IVO
συ
μβου
λευτ
ικόν
LEGISLADOR-AS-
SEMBLEIA
CONSELHO βουλευτής
ἐκκλησία βουλή
DO QUE PODE OCORRER
NO FUTURO περὶ τῶν μελλόντων
EcircTHOS ἦθος
EXORTAR E DISSUADIR προτροπή ἀποτροπή
O UacuteTIL E O PREJUDICIAL τὸ συμφερόν βλαβερόν
EXEMPLOS παραδείγματα
EP
IDIacuteC
TIC
O
ἐπιδ
εικτι
κόν ESPECTADOR-
CONFEREcircNCIA θεωρός ἐπίδειξις
SOBRE O QUE Eacute
NO PRESENTE
(DA VIRTUDE DO DISCURSO) περὶ τῆς δυνάμεως
τοῦ λόγου
LOacuteGOS λόγος
LOUVOR E CENSURA ἔπαινος ψόγος
O BELO OU BOM
E O FEIO OU MAU τὸ καλὸν ἢ ἀγαθόν
τὸ αἰσχρὸν ἢ κακόν
AMPLIFICACcedilAtildeO αὔξησις ταπείνωσις
Importa notar que a coluna das ldquoprovas teacutecnicasrdquo deve ser compreendida do seguinte modo 1
no gecircnero judiciaacuterio preponderacircncia do paacutethos seguido de loacutegos e ecircthos 2 no deliberativo
preponderacircncia do ecircthos seguido de loacutegos e paacutethos 3 no epidiacutectico preponderacircncia do loacutegos
seguido de paacutethos e ecircthos Isso porque em todos os gecircneros se fazem necessaacuterias todas as trecircs
provas teacutecnicas mescladas com a precedecircncia de uma ou outra em relaccedilatildeo agraves restantes E o
mesmo se diga da coluna das provas ldquodemonstrativasrdquo que deve ser entendida do seguinte
modo 1 judiciaacuterio preponderacircncia dos entimemas e maacuteximas sem excluir exemplos e ampli-
ficaccedilotildees 2 deliberativo preponderacircncia dos exemplos sem omissatildeo de entimemas maacuteximas
e amplificaccedilotildees 3 epidiacutectico preponderacircncia da amplificaccedilatildeo seja pela auxese ou tapeinose
sem que se excluam maacuteximas exemplos e entimemas De fato Aristoacuteteles encerra o segundo
livro da retoacuterica dando destaque igual aos trecircs recursos ao dizer que em relaccedilatildeo ao loacutegos (περὶ
τὸν λόγον) ou seja no que tange agrave atividade do pensamento (διάνοια) tanto exemplos
(παραδείγματα) como entimemas (ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) se fazem igualmente
importantes (1403a34-35)
Embora Aristoacuteteles priorize sobremodo os fatos e a demonstraccedilatildeo reconhece a necessi-
dade do recurso aos outros gecircneros de provas que natildeo as exclusivamente apodiacutecticas uma vez
ter plena consciecircncia de que os adversaacuterios a elas recorrem muita vez sem escruacutepulos care-
cendo o orador de estar ciente de seu mecanismo ao menos para defender-se como se deve
135
pois seria esdruacutexulo (ἄτοπον) reconhece o filoacutesofo (1355a39-b2) se se considerasse vergo-
nhoso (αἰσχρόν) que o corpo natildeo pudesse defender-se a si mesmo mas que a mesma defesa
natildeo fosse facultada ao espiacuterito pela atividade mental-discursiva uma vez que o que caracteriza
o homem eacute muito mais a atividade intelectual que a fiacutesica5 Portanto embora desejasse intima-
mente restringir sua Retoacuterica ao tratamento das mateacuterias uacuteteis para o entimema (1354a5) que
eacute o silogismo retoacuterico como faz no primeiro livro segundo cada um dos gecircneros contudo uma
vez que cada um dos trecircs tipos de ouvintes relacionados respectivamente aos trecircs gecircneros dis-
cursivos eacute em si mesmo uma espeacutecie de juiz (κριτής) a quem cabe ajuizar seja do justo ou do
injusto do proveitoso ou do nocivo e do belo ou do feio numa palavra como a retoacuterica grosso
modo tem que ver com ldquojuiacutezosrdquo (ἕνεκα κρίσεώς ἐστιν ἡ ῥητορική) reconhece o filoacutesofo que
natildeo basta tornar o discurso apenas apodiacutectico (ἀποδεικτικός) ou criacutevel (πιστός) por meio das
provas exclusivamente demonstrativas (λόγος) como o entimema e os exemplos mas tambeacutem
saber como fazer com que o orador pareccedila ter um determinado caraacuteter (ἦθος) aleacutem de ser capaz
de pocircr os juiacutezes sejam quais forem num certo estado de espiacuterito (πάθος) Pelo que faz enorme
diferenccedila que o orador mostre-se possuidor de certas qualidades (τὸ ποίον τινα φαίνεσθαι τὸν
λέγοντα) e que seus ouvintes estejam dispostos de certo modo em relaccedilatildeo a ele pensando por
sua vez que ele tambeacutem esteja disposto de certo modo em relaccedilatildeo a eles No discurso delibe-
rativo eacute mais importante que o orador pareccedila ser portador dum caraacuteter ilibado confiaacutevel no
judiciaacuterio que os que iratildeo julgar estejam dispostos de modo favoraacutevel agrave causa e ao pleiteante
No epidiacutectico por sua vez os dois anteriores natildeo devem ser desprezados quando importa natildeo
apenas a construccedilatildeo dum certo caraacuteter mas tambeacutem a disposiccedilatildeo do auditoacuterio no que redunda
numa certa combinaccedilatildeo ecircthos-paacutethos que se deve submeter ao serviccedilo do loacutegos a fim de em-
preender o louvor ou a censura Em assim sendo maacuteximas (γνῶμαι) exemplos
(παραδείγματα) amplificaccedilotildees (αὐξήσεις) de toda sorte de par com as ferramentas da elocu-
ccedilatildeo (λέξις) como as figuras (σχήματα) e os tropos (τρόποι) se combinam natildeo apenas pela
beleza que podem conferir ao estilo mas principalmente por sua forccedila (δύναμις) argumentativa
o que os transforma em armas bastante eficazes tanto para o discurso de louvor como para o de
caraacuteter filosoacutefico
Conhecidos pois os gecircneros de discurso os auditoacuterios especiacuteficos de cada um junta-
mente com os tempos e juiacutezos das accedilotildees as provas teacutecnicas as tarefas objetivos e provas de-
monstrativas predominantes resta conhecer as trecircs grandes metas que devem ser cumpridas em
5 (1355a39-b2) ldquoἄτοπον εἰ τῷ σώματι μὴ δύνασθαι βοηθεῖν ἑαυτῷ λόγῳ δ᾿ οὐκ αἰσχρόν ὃ μᾶλλον
ἴδιόν ἐστιν ἀνθρώπου τῆς τοῦ σώματος χρείαςrdquo
136
cada uma das fazes de composiccedilatildeo do discurso 1 invenccedilatildeo (εὕρεσις ou inuentio) descobrir de
onde tirar as provas (ἐκ τίνων πίστεις ἔσονται) 2 disposiccedilatildeo (τάξις ou dispositio) ordenar
as partes do discurso isto eacute as provas encontradas na invenccedilatildeo (πῶς χρή τάξαι τὰ μέρη τοῦ
λόγου) 3 elocuccedilatildeo (λέξις ou elocutio) tratar do estilo (περὶ τὴν λέξιν) ou seja do modo de
apresentaccedilatildeo das ideias que foram encontradas e ordenadas (1403b6-8) Da primeira meta a
invenccedilatildeo ou descoberta das provas Aristoacuteteles tratou nos dois primeiros livros ao discorrer
sobre as mateacuterias adequadas ao entimema e aos exemplos de par com o que eacute uacutetil agrave construccedilatildeo
dos caracteres e o estudo detalhado das paixotildees da alma com vistas agrave afetaccedilatildeo dos juiacutezes Res-
taram apenas a disposiccedilatildeo das mateacuterias e a elocuccedilatildeo ou seja o tratamento do estilo o que o
filoacutesofo empreende fazer no terceiro e uacuteltimo livro da Retoacuterica
No que se refere ao estilo (περὶ τῆς λέξεως) Aristoacuteteles pondera que natildeo basta possuir
o quecirc se natildeo se souber como dizecirc-lo (ὡς δεῖ εἰπεῖν) (1403b16) o que se deve fazer sempre de
modo claro jaacute que a grande virtude da elocuccedilatildeo eacute a clareza (λέξεως ἀρετὴ σαφῆ εἶναι)
(1404b1-2) e o discurso que natildeo for claro natildeo cumpriraacute sua tarefa (1404b2-3) (οὐ ποιῆσει τὸ
ἑαυτοῦ ἔργον) Tendo as mateacuterias de persuasatildeo a seu dispor o orador deve cuidar da apresen-
taccedilatildeo desse material (λέξει διαθέσθαι) ou seja do estilo do discurso para entatildeo empregar a
forccedila (δύναμις) de accedilatildeo atualizando aquilo que se descobriu e figurou dum certo modo
(ὑπόκρισις) Essa atualizaccedilatildeo ou representaccedilatildeo do discurso hupoacutekrisis que em latim se deno-
mina actio refere-se agrave sua expressatildeo oral compreendendo questotildees de voz (φωνή) volume
(μέγεθος) harmonia (ἁρμονία) ritmo (ῥυθμός) e tom (τόνος) que pode ser agudo (ὀξύς)
grave (βαρύς) ou meacutedio (μέσος)
Por fim no que tange agrave disposiccedilatildeo das mateacuterias (περὶ τῆς τάξεως) cujo tratamento se
inicia no final do terceiro livro da Retoacuterica (1414a29) Aristoacuteteles resume em duas as partes
principais do discurso isso porque nem toda parte da divisatildeo tradicional respeitava a todo e
qualquer gecircnero 1 o estado da questatildeo (πρόθεσις) isto eacute a exposiccedilatildeo da causa (τὸ πρᾶγμα
εἰπεῖν) acerca de que se haacute de argumentar (περὶ οὗ) 2 a prova (πίστις) ou seja a demonstraccedilatildeo
(τὸ ἀποδεῖξαι) (1414a31-36) A divisatildeo tradicional por sua vez elenca as seguintes partes 1
proecircmio ou exoacuterdio (προοίμιον) 2 narraccedilatildeo (διήγησις) que se subdivide em 21 exposiccedilatildeo
da causa (πρόθεσις) e 22 refutaccedilatildeo (ἀντιδίκησις) 3 prova (πίστις) 4 peroraccedilatildeo ou conclusatildeo
(ἐπίλογος) destas contudo apenas o proecircmio o estado da questatildeo a prova e a peroraccedilatildeo se
aplicam a todos os gecircneros retoacutericos (1414b8-9)
Do que se disse natildeo se deve imaginar que o discurso filosoacutefico esteja fora do acircmbito
retoacuterico pois ainda que se trate do discurso de um soacute pretende sempre persuadir ou persuadir-
137
se de algo seja duma verdade ideia crenccedila ou praacutetica E todo aquele que deve ser persuadido
seja o proacuteprio autor do discurso ou um outro se faz indubitavelmente juiz (1391b11-12)
(ἁπλῶς κρίτης) Deste modo esteja-se disposto contra um oponente (πρὸς ἀμφισβητοῦντα)
ou contra uma teoria (πρὸς ὑπόθεσιν) eacute preciso uma vez e sempre recorrer agrave argumentaccedilatildeo
(τῷ λόγῳ ἀνάγκη χρῆσθαι) a fim de defender um ponto de vista ou destruir o seu contraacuterio
(1391b13-14) o que eacute apropriado ao gecircnero de discurso epidiacutectico acima de tudo (ὡσαύτως
ἐν τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) como se se estivesse argumentando diante de um verdadeiro juiz
(ὥσπερ πρὸς κρίτην) que no caso eacute o espectador (θεωρός) aquele que contempla observa
aprende agrave maneira dum disciacutepulo dum arguidor dialeacutetico ou do proacuteprio filoacutesofo se este estiver
apenas escrevendo
Os gecircneros retoacutericos nas Confissotildees consideraccedilotildees teoacutericas
Quando se estaacute diante de temas controversos que aceitam ao menos dois modos dife-
rentes de pensar como os temas tipicamente retoacutericos (1357a1-5) a demonstraccedilatildeo apodiacutectica
(ἀπόδειξις) raramente eacute possiacutevel diz Olivier Reboul (2000 p 27) natildeo sendo nada ldquocientiacuteficardquo
a exigecircncia de ldquorespostasrdquo de caraacuteter cientiacutefico como ocorre nas Confissotildees por exemplo
quando se quer falar das ldquocoisasrdquo de Deus Contudo entre a luz do que se pode apreender cien-
tificamente (e demonstrar apodicticamente) e a obscuridade da mais completa ignoracircncia acerca
do misteacuterio abissal do Ser encontra-se todo um universo de possibilidades retoacutericas cujo rei-
nado pertence ao argumento E se argumentar natildeo eacute senatildeo propor y para que se admita x como
bem o ilustra esse autor (ibid pp 91-2) que se poderia argumentar acerca do Ser enquanto
Ser (x) sem que se circunscrevesse a dizer de seus pseudopredicados (y) daquilo que apenas
eacute Recursos haacute poreacutem que permitem dizecirc-lo argumentando enquanto Ser ainda que de modo
ilusoacuterio obliacutequo silencioso a partir dos mecanismos que a arte retoacuterica oferece seja com o
auxiacutelio do ecircthos do paacutethos ou do loacutegos os trecircs gecircneros de provas ditas teacutecnicas
Um dos objetivos de Agostinho ao pretender falar de Deus tema indubitavelmente con-
troverso (ἀμφισβητήσιμος) na referida acepccedilatildeo aristoteacutelica isto eacute passiacutevel de disputa por ser
natildeo-apodiacutectico pelo que igualmente retoacuterico pode-se dizer seja pocircr em destaque primordial-
mente o loacutegos o que se faz sobretudo por meio dum discurso do gecircnero epidiacutectico em que
predomina a funccedilatildeo referencial da linguagem uma pseudoterceira pessoa discursiva melhor
compreendida como uma natildeo-pessoa ou seja aquilo de que se fala (περὶ οὗ λέγει) (1358b1)
Todavia jamais deixa de pretender comover (πάθος) poreacutem natildeo especificamente quando fala
138
com Deus ο ldquopara quemrdquo (πρὸς ὅν) (1388b1) pois o Ser divino enquanto segunda pessoa
discursiva eacute onisciente e embora deixe-se dalgum modo misterioso comover por causa de sua
misericoacuterdia por ser igualmente justo ele cujo juiacutezo eacute inexoraacutevel torna a tarefa quanto ao
paacutethos um tanto obstada Por isso os esforccedilos de Agostinho no sentido de comover devem vol-
tar-se nem sempre e de imediato a Deus e sim aos seus leitores o auditoacuterio cristatildeo a quem o
filoacutesofo confessa de fato dirigir-se (Conf 235) ldquoA quem estou relatando estas coisas Ora
natildeo a ti meu Deus e sim na tua presenccedila relato-as aos de meu gecircnero ao gecircnero humano por
pequenina a parcela dos que possam deparar com estes meus escritosrdquo6
Quer comover portanto aleacutem de fazer converter para Deus como se viu convertido
fazendo com que as almas se elevem movidas pela penitecircncia o que natildeo se faz senatildeo tendo em
vista uma accedilatildeo futura (περὶ τῶν μελλόντων) E se para falar de Deus carece dum loacutegos apro-
priado ao louvor (ἔπαινος) que eacute tambeacutem contemplaccedilatildeo (θεωρεῖν) contemplaccedilatildeo do Belo (τὸ
καλόν) e do Bem (τὸ ἀγαθόν) a comoccedilatildeo natildeo se faz sem os recursos do paacutethos tampouco
prescindindo do ecircthos a fim de edificar um caraacuteter penitente digno do arrependimento ou con-
versatildeo mental (μετάνοια) a que todo cristatildeo deve submeter-se antes de crer no Evangelho
como admoestava Cristo (Mc 114-15) ldquoArrependei-vos [= convertei-vos] e crede no Evange-
lhordquo (μετανοεῖτε καὶ πιστεύετε ἐν τῷ εὐαγγελίῳ) Portanto Agostinho carece tambeacutem de
construir sempre pelo discurso (διὰ τοῦ λόγου) seu ecircthos discorrendo acerca daquilo que de
edificante se passou consigo (περὶ τῶν γεγενημένων) (1358b5) para os ldquojuiacutezesrdquo (δικασταί)
do auditoacuterio cristatildeo pois seu preteacuterito precisa de ser desenodoado Destarte ao narrar suas
desventuras pregressas confessando-se a Deus e aos homens potildee em destaque seja um Tu
divino que eacute tambeacutem a terceira pessoa discursiva e seu referente pois eacute dele que se fala seja
um tu humano semelhante a si seu leitor Pelo que loacutegos ecircthos e paacutethos se fazem necessaacuterios
de modo temperado segundo as tarefas e os objetivos que se desdobram a cada passo da obra
Tendo pois construiacutedo um ecircthos confiaacutevel a partir de suas gestas pregressas segundo
a taacutebua de valores cristatildeos como a humildade ou a misericoacuterdia por exemplo pode Agostinho
direcionar daiacute em diante sua atenccedilatildeo para o futuro ao modo do gecircnero deliberativo a fim de
comover as almas exortando-as (προτρέπω) seja a voltar-se para Deus o Fim uacuteltimo ou Bem
supremo que se louva pelos recursos do loacutegos seja dissuadindo-as (ἀποτρέπω) de seguir o
caminho do mal que equivale a um afastamento deste mesmo Fim uacuteltimo o que eacute tambeacutem
tarefa do paacutethos quando entatildeo o discurso potildee em destaque a segunda pessoa requerendo um
6 (Conf 235) ldquoCui narro haec neque enim tibi deus meus sed apud te narro haec generi meo generi
humano quantulacumque ex particula incidere potest in istas meas litterasrdquo
139
domiacutenio sobre as paixotildees a fim de conduzir o auditoacuterio ao objetivo (τέλος) almejado que
como se disse eacute sempre futuro (περὶ τῶν μελλόντων) Todavia se natildeo se delibera tendo em
vista o fim que se persegue (οὐ περὶ τοῦ τέλος) em conformidade com o que diz Aristoacuteteles
e sim aquilo que leva ateacute ele (ἀλλὰ περὶ τῶν πρὸς τὸ τέλος) (1352a15-19) ou seja os meios
os quais por sua vez residem nas accedilotildees (κατὰ τὰς πράξεις) tem-se como sequecircncia necessaacuteria
que 1 o uacutetil serve a um propoacutesito ulterior um fim e que 2 se o fim for bom o uacutetil natildeo apenas
levaraacute a esse bem mas seraacute tambeacutem de algum modo bom ainda que mediatamente e em menor
grau Daiacute que natildeo apenas o uacutetil em favor de que se delibera seja bom mas tambeacutem a praacuteksis
contraacuteria o seja a saber a rejeiccedilatildeo do nocivo do inuacutetil E com efeito seja para Aristoacuteteles ou
Agostinho o Bem (ἀγαθόν) uacuteltimo ou supremo pode ser definido como sendo aquilo que se
deve buscar (αἱρετόν) em vista de si mesmo (αὑτοῦ ἕκενα) e natildeo de algo ulterior (καὶ μὴ
ἄλλου) (1363b12-14) Esse Fim (τέλος) que coincide com o Bem supremo eacute aquilo em vista
de que (οὗ ἕνεκα) todo o resto (τὰ ἄλλα) se faz (1363b16-17) Em se admitindo com o autor
da Retoacuterica que esse Fim uacuteltimo embora sendo desejado natildeo seja objeto imediato de delibe-
raccedilatildeo e sim as accedilotildees (πράξεις) por meio de que se possa chegar a ele percebe-se sem muito
esforccedilo que as deliberaccedilotildees acerca deste Fim chame-se eudaimoniacutea ou Ser supremo fazem-se
sobremodo a partir de accedilotildees que podem ser virtuosas quando entatildeo se aproxima do objetivo
ou viciosas quando dele se afasta restando manifesto e inconteste o potencial tanto do ecircthos
como do paacutethos no tratamento daquilo que para Agostinho se traduz em princiacutepio pela uita
beata e posteriormente pelo Saacutebado eterno seja nas quatro virtudes cardeais justiccedila tempe-
ranccedila prudecircncia e coragem ou nas trecircs teologais feacute esperanccedila e caridade a serem praticadas
nesta vida tendo em vista o Bem uacuteltimo e supremo Deus seja por outra na comoccedilatildeo necessaacuteria
das almas que se deve aproximar desta mesma uita beata ou afastar da uita misera sem perder
de vista o fim uacuteltimo que se almeja
E se o deliberativo tem sua funccedilatildeo na exortaccedilatildeo tampouco se faz ausente da obra o
gecircnero judiciaacuterio que contempla sobremodo accedilotildees de acusaccedilatildeo (κατηγορία) e de defesa
(ἀπολογία) (1358b) De fato que faz Agostinho na parte dita biograacutefica da obra enquanto
narra suas desventuras preteacuteritas senatildeo acusar-se de seus erros como a experiecircncia entre os
maniqueus entre os ceacuteticos ou mesmo as aventuras ditas libidinosas em Cartago ou entatildeo
fazer a apologia da Graccedila divina da continecircncia da conversatildeo de sua matildee (ao contraacuterio do pai
que ele prefere acusar) Acusaccedilatildeo e defesa portanto seja de atos seus preteacuteritos (περὶ τῶν
γεγενημένων) (1358b5) seja de doutrinas ou ideias que reputa natildeo apenas inimigas do cami-
140
nho que leva ao Fim uacuteltimo por ele eleito mas tambeacutem antagocircnicas agrave proacutepria concepccedilatildeo des-
posada deste Ser supremo como o dualismo maniqueu por uma ou o ceticismo de tipo neoa-
cadecircmico por outra que perigosamente ameaccedilava uma das proacuteprias virtudes teologais a natildeo
dizer duas feacute e a esperanccedila por meio duma descrenccedila radical na possibilidade de acesso a
noccedilotildees fundamentadas acerca do verdadeiro
E se se podem perceber nuanccedilas do deliberativo e do judiciaacuterio na exortaccedilatildeo ou dissu-
asatildeo na acusaccedilatildeo e na defesa muito mais no caso do gecircnero predominante expresso pelas Con-
fissotildees o epidiacutectico que segundo Aristoacuteteles compreende tanto o louvor (ἔπαινος) como a
censura (ψόγος) (1358b12-3) De fato que faz Agostinho ao longo das Confissotildees senatildeo cen-
surar o que afasta de Deus louvando o que dele aproxima o homem censurar o pecado lou-
vando seu contraacuterio as virtudes fazer o elogio da vida feliz (beata uita) vituperando seu
oposto a infeliz (misera) E mesmo quando censura seu objetivo natildeo eacute senatildeo louvar louvar o
que se edifica como antipodal daquilo que se estaacute censurando pois natildeo se trata de discorrer
sobre o viacutecio sobre o torto sobre o caminho errado que se natildeo deve percorrer numa palavra
natildeo se trata de discorrer sobre o mal porque ele natildeo existe (entenda-se o mal ontoloacutegico) Ao
contraacuterio trata-se de louvar o que Eacute o Ser por excelecircncia Deus e toda a sua obra cujo paro-
xismo natildeo eacute outro senatildeo o momento em que cria o homem Paradoxal seria pois limitar-se ao
vitupeacuterio o que equivaleria a ressaltar apenas e tatildeo somente aquilo que natildeo possui existecircncia
real o mal ou antisser7 como quem escrevesse um livro sobre o que natildeo eacute As Confissotildees
portanto empreendem sobretudo um discurso de louvor que se bem pode denominar filosofia
do louvor a qual se enquadra perfeitamente no gecircnero epidiacutectico cuja tocircnica eacute dada pelo loacutegos
enquanto referente aquilo de que se fala (περὶ οὗ λέγει) (1358b1) referente de muacuteltiplos sen-
tidos que se pode compreender natildeo apenas como a Palavra que eacute Deus mas tambeacutem a palavra
de Deus a palavra sobre a palavra de Deus a palavra sobre o Deus que eacute Palavra e profere
palavras embora esse mesmo referente enquanto Verbo divino seja inefaacutevel donde ser neces-
saacuterio que esse loacutegos seja tambeacutem linguagem nos recursos retoacutericos precisos a que se diga o
indiziacutevel
Todos os trecircs gecircneros portanto prestam auxiacutelio reciacuteproco pois quem louva no presente
deve fazecirc-lo tambeacutem por meio das lembranccedilas do passado (ἀναμιμνήσειν τὰ γενόμενα) ou das
conjecturas e esperanccedilas futuras (προεικάζειν τὰ μέλλοντα) e o justo por sua vez objeto das
reflexotildees judiciaacuterias pode igualmente ser feio ou belo uacutetil ou inuacutetil mateacuteria dos outros dois
7 O que de esdruacutexulo possa haver neste composto se deve agraves novas regras do Acordo Ortograacutefico de 1990 O
que se quis expressar eacute o contraacuterio do ser ldquoanti-serrdquo que natildeo mais se grafa assim com hiacutefen
141
gecircneros assim como uacutetil e o inuacutetil mateacuteria de deliberaccedilatildeo que podem ser justos ou seu con-
traacuterio belos ou natildeo ou ainda o bom e o mau que podem muito bem ser inuacuteteis ou natildeo justos
ou natildeo em conformidade com o que diz Aristoacuteteles justificando assim a mistura dos gecircneros
retoacutericos (1358b27-1359a4) Poreacutem o gecircnero epidiacutectico parece ser o mais completo dos trecircs
uma vez nem focar demasiado no passado como o judiciaacuterio tampouco no futuro como o
deliberativo ao contraacuterio ao discorrer acerca do presente (ὁ παρὼν χρόνος) louvando ou
censurando as coisas que de fato satildeo (κατὰ τὰ ὐπάρχοντα) eacute-lhe permitido voltar-se tanto agraves
reminiscecircncias preteacuteritas quanto ao que pode vir a ser como se percebe nitidamente do primeiro
ao derradeiro livro das Confissotildees que nem se limitam a perscrutar o passado tampouco a
especular esperanccedilosamente sobre o futuro ou mesmo sobre o presente na investigaccedilatildeo do
proacuteprio rememorar quando entatildeo empreendem o louvor do que eacute foi e haacute de ser de par com o
do que sempre e indefectivelmente eacute
Uma uacuteltima palavra acerca da retoacuterica se faz necessaacuteria antes de voltar a atenccedilatildeo para
os trecircs gecircneros de provas teacutecnicas nas Confissotildees Quando se propotildee apresentar uma resposta
diz Michel Meyer (2010 p 53) a retoacuterica tende a ocultar o problemaacutetico fazendo com que a
questatildeo de base subjacente a todo discurso questatildeo em torno de que se reuacutenem ou dispersam
as partes pareccedila resolvida No entanto isso de modo nenhum eacute o que se percebe na retoacuterica
filosoacutefica de Agostinho que opera agraves avessas natildeo projetando de modo nenhum esconder o
problemaacutetico e sim permitindo lidar com ele dizendo-o embora sua insoluacutevel inefabilidade E
de fato se se tome por base a proacutepria definiccedilatildeo da retoacuterica elaborada pelo mesmo Meyer (2012
p 21) como sendo a negociaccedilatildeo entre a distacircncia criada por um dado problema que se constitui
sua proacutepria medida percebe-se no que tange ao Ser natildeo haver distacircncia entre interlocutores
para quem a sua inefabilidade eacute paciacutefica quer se o identifique com a Divindade cristatilde ou natildeo
E em natildeo havendo essa distacircncia qual a finalidade da retoacuterica sendo ela a suposta negociaccedilatildeo
que se estabelece em funccedilatildeo dum dado problema que se mede exatamente por essa distacircncia
inexistente Logo em natildeo havendo uma distacircncia que se constituiacutesse a medida do problemaacutetico
desnecessaacuterio seria argumentar inexistindo o problema Contudo isso se refere de modo espe-
cial agraves retoacutericas forense e deliberativa natildeo agrave epidiacutectica e menos ainda a epidiacutectica com finali-
dade filosoacutefica como se daacute no caso de Agostinho Nas Confissotildees a distacircncia que se quer
negociar eacute a que se supotildee entre o conhecido desconhecimento de Deus e seu desconhecido
conhecimento ou seja a distacircncia entre o nada que se pode conhecer de Deus e o tudo que se
desconhece entre o nada que dele se pode dizer e o tudo que se natildeo diz E como essa distacircncia
142
eacute inegociaacutevel resta agrave retoacuterica simular a edificaccedilatildeo duma estrutura especial a linguagem per-
mitindo que pela proacutepria expressatildeo do paradoxo do estranhamento da perplexidade se diga
sem dizer e se natildeo diga dizendo Numa palavra a retoacuterica permite que Agostinho estique a
corda do arco de seu dizer para aleacutem da tensatildeo do compreensiacutevel apodiacutectico para aleacutem do
alcance da razatildeo que seja capaz carreando o leitor consigo de tangenciar o suprarracional a
natildeo dizer irracional pois natildeo desprovido de razatildeo e sim muito aleacutem dela
A primeira das provas da arte ecircthos
Aleacutem das provas loacutegicas que envolviam mateacuterias e meacutetodos cujo apelo se voltava pri-
mordialmente a natildeo dizer exclusivamente para a razatildeo a retoacuterica reconhecia outros meios de
prova pois se dera conta havia muito de que as pessoas natildeo satildeo apenas dotadas de capacidade
racional mas tambeacutem de sentimentos e de vontade pelo que se fazia necessaacuterio lidar com elas
natildeo como deveriam ser mas como realmente eram lembram Corbett e Connors (1999 p 72)
Destarte tomando por base a definiccedilatildeo aristoteacutelica de que a retoacuterica eacute a arte de descobrir todos
os meios possiacuteveis de persuasatildeo8 torna-se oacutebvio o recurso a tudo aquilo que se comprove efi-
ciente para esse fim Neste sentido afianccedilam esses autores o apelo eacutetico pode ser mais eficaz
que o apelo agrave razatildeo pois
mesmo o mais engenhoso e sensato apelo agrave razatildeo pode fracassar diante de ouvidos
amoucos se a audiecircncia reagiu desfavoravelmente ao caraacuteter do orador O apelo eacutetico
eacute especialmente importante no discurso retoacuterico porque aqui estamos lidando com
assuntos acerca dos quais eacute impossiacutevel ter-se certeza absoluta e em que as opiniotildees
satildeo divididas
Com efeito o ecircthos prova teacutecnica que se erige a partir do caraacuteter moral do orador segundo
reconhecia Aristoacuteteles (1356a13) constitui-se no meio mais eficaz de prova (κυριωτάτην ἔχει
πίστιν τὸ ἦθος)
Quintiliano por sua vez em suas Instituiccedilotildees Oratoacuterias (3813) adotando integral-
mente a teoria aristoteacutelica argumenta que dos trecircs gecircneros de discurso o deliberativo era o que
mais necessitava do apelo eacutetico ou seja o discurso que mais se apoiava no caraacuteter do orador
que ele denominava auctoritas
Nas deliberaccedilotildees poreacutem a autoridade eacute o que possui maior valor Com efeito natildeo
apenas deve ser considerado muitiacutessimo prudente como tambeacutem muitiacutessimo virtuoso
todo aquele que deseje que todos acreditem nos seus pensamentos acerca das coisas
8 (1355b25-6) ldquoSeja entatildeo a retoacuterica a faculdade de considerar acerca de cada coisa o que eacute possivelmente
persuasivordquo (ἔστω δὴ ἡ ῥητορικὴ δύναμις περὶ ἕκαστον τοῦ θεωρῆσαι τὸ ἐνδεχόμενον πιθανόν)
143
proveitosas e dignas de honra [] natildeo haacute quem negue que as deliberaccedilotildees satildeo feitas
segundo os caracteres dos oradores9
Em conformidade com o que se argumentou um pouco antes a partir das consideraccedilotildees do
proacuteprio Aristoacuteteles acerca da mistura de gecircneros retoacutericos (1358b27-1359a4) sobre a predomi-
nacircncia do gecircnero epidiacutectico nas Confissotildees eacute perceptiacutevel natildeo apenas a importacircncia do apelo
eacutetico que natildeo eacute das menores por tratar-se duma obra primordialmente na primeira pessoa e
que sob certo ponto de vista quer falar de si mas principalmente pelo que se disse acerca de
um dos objetivos da obra de caraacuteter ldquodeliberativordquo ou antes de caraacuteter ldquopastoralrdquo de mover
as almas para Deus (conuersio ad deum) ao modo dum loacutegos protreacuteptico afastando-as do pe-
cado e de tudo que as manteacutem distantes do Bem (auersio a bono) objetivo que se cumpre
escorado no caraacuteter eacutetico que se esforccedilou por burilar ao longo primordialmente dos livros ditos
autobiograacuteficos da obra De fato natildeo obteacutem ecircxito na pretensatildeo de exortar (προτρέπω) para
Deus senatildeo aquele que se deixou dissuadir (ἀποτρέπω) do caminho do pecado que compro-
vou sua humildade (humilitas) na aceitaccedilatildeo natildeo do poder de seu livre-arbiacutetrio e sim da Graccedila
divina cujas Justiccedila e Misericoacuterdia se amalgamam na Sabedoria una e indivisiacutevel do Ser ao
inveacutes de se anularem pela contradiccedilatildeo Natildeo se trata de reconhecer-se purificado trata-se mui-
tiacutessimo ao contraacuterio de reconhecer-se pecador carente da Graccedila e incapacitado de autossalva-
ccedilatildeo numa palavra trata-se de diminuir-se ao modo do ldquoesvaziamentordquo (κένωσις) de Cristo
que embora possuindo uma forma divina (ἐν μορφῇ θεοῦ) esvaziou-se a si mesmo segundo
Paulo assumindo uma forma de escravo e fazendo-se semelhante aos homens pelos quais se
humilhou e obedientemente deixou-se matar na cruz10 Esse o ecircthos cristatildeo portador das virtu-
des dignas de imitaccedilatildeo invertidas quanto pudessem parecer a um auditoacuterio pagatildeo da eacutepoca
para o qual nem a misericoacuterdia tampouco a humildade eram considerados valores morais dese-
jaacuteveis e sim fraquezas despreziacuteveis
O orador persuade por seu caraacuteter moral explicava Aristoacuteteles (1356a5) quando seu
discurso eacute de tal modo elaborado que seja capaz de tornaacute-lo digno de credibilidade um homem
em quem pareccedila ser possiacutevel confiar Essa credibilidade contudo natildeo se constroacutei por meio de
elementos extratextuais de ideias preacute-concebidas acerca da conduta eacutetica do orador e sim atra-
veacutes do discurso (1356a8) donde ser considerado o ecircthos uma prova de caraacuteter teacutecnico fruto da
9 Inst oratoriae (3813) ldquoValet autem in consiliis auctoritas plurimum nam et prudentissimus esse haberique
et optimus debet qui sententiae suae de utilibus atque honestis credere omnes uelit [] consilia nemo est qui
neget secundum mores darirdquo 10 Paulo (Fl 25-8) ldquoΤοῦτο φρονεῖτε ἐν ὑμῖν ὃ καὶ ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων οὐχ
ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ ἀλλὰ ἑαυτὸν ἐκένωσεν μορφὴν δούλου λαβών ἐν ὁμοιώματι ἀνθρώπων γενόμενοςmiddot καὶ σχήματι εὑρεθεὶς ὡς ἄνθρωπος ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν γενόμενος ὑπήκοος μέχρι θανάτου θανάτου δὲ σταυροῦrdquo
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arte Isso se daacute explica o filoacutesofo porque quando se estaacute tratando de temas de caraacuteter geral via
de regra a confianccedila se estabelece sobre as opiniotildees das pessoas cujo valor eacute notoacuterio poreacutem
quando os temas satildeo incertos duvidosos (τὸ ἀμφιδοξεῖν) aiacute entatildeo como que desprovido de
alternativas resta ao auditoacuterio tatildeo soacute a confianccedila quase que total e irrestrita (παντελῶς) na-
queles cujos caracteres ou comprovou-se destacar-se ou lograram aparentar fazecirc-lo E sobre
que versam as Confissotildees em linhas gerais como jaacute se apontou antes senatildeo sobre o tema natildeo-
apodiacutectico por excelecircncia Deus Donde ser liacutecito dizer que pelo prisma da retoacuterica Agostinho
empreende um enorme esforccedilo de construccedilatildeo dum ecircthos apropriado a falar de Deus E de fato
se se pretende falar de tema natildeo apenas duvidoso retoacuterico mas inefaacutevel como o Ser de que
modo evadir-se do estribo do ecircthos Se o tema fosse apodiacutectico o caraacuteter do orador talvez
restasse menos relevante poreacutem natildeo num tema em que as provas demonstrativas satildeo pratica-
mente inexistentes
Para ressaltar o caraacuteter moral de algueacutem que se queira elogiar seja o do proacuteprio orador
ou natildeo lembra Aristoacuteteles (1367b22-27) eacute preciso associar as suas accedilotildees (as quais se empre-
ende louvar) agraves suas intenccedilotildees a fim de demonstrar seu valor porque o louvor (ἔπαινος) se tira
das accedilotildees (ἐκ τῶν πράξεων) desde que este aja em conformidade com suas determinaccedilotildees
morais (κατὰ προαίρεσιν) E se o homem de valor age segundo suas proacuteprias determinaccedilotildees
depreende-se que o homem cujo valor eacute nulo aja determinado isto eacute conduzido pelo destino
pela sorte (ἀπὸ τύχης) e que o homem cujo valor eacute repreensiacutevel exemplo que o filoacutesofo natildeo
daacute mas cujo raciociacutenio permite avanccedilar agiria tambeacutem motivado por suas determinaccedilotildees mo-
rais as quais contudo seriam maacutes O que importa no que tange ao ecircthos eacute que se deve mostrar
que aquele que se estaacute louvando age de acordo com suas determinaccedilotildees e natildeo ao acaso o que
lhe tiraria todo o meacuterito meacuterito que caberia entatildeo agrave fortuna (τύχη) uma vez que as accedilotildees natildeo
praticadas de modo voluntaacuterio natildeo satildeo meritoacuterias em conformidade com o que Agostinho tam-
beacutem admitia11 Portanto o conselho de Aristoacuteteles ao orador que quer construir o seu proacuteprio
ecircthos ou o de algum outro eacute tornar todas as accedilotildees possiacuteveis inclusive as decorrentes da sorte
mdash o que natildeo seria nada honesto admite o filoacutesofo mdash fruto do meacuterito daquele que se quer
enaltecer o que seria sinal de homem resoluto decidido (σημεῖον ἀρετῆς εἶναι προαιρέσεως)
No entanto esse conselho natildeo apenas natildeo eacute seguido por Agostinho e pelo discurso cristatildeo de
modo geral como ao reveacutes o exato oposto eacute o que se potildee em praacutetica ao atribuir-se tudo agrave
Graccedila divina agrave bondade preexistente daquele que natildeo precisou de nenhuma das criaturas que
criou as quais jamais fizeram por merecer o dom da vida (Conf 1311) ldquoPorque antes que eu
11 O livre arbiacutetrio (11430101) ldquoIn uoluntate meritum sitrdquo
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existisse existias tu e eu nem existia para que me concedesses que eu existisserdquo12 Isso eacute feito
contudo natildeo em detrimento do ecircthos da construccedilatildeo dum caraacuteter digno de louvor e fidedigno
e sim para construir um caraacuteter cristatildeo ou seja um caraacuteter natildeo pautado pela taacutebua de valores
eacuteticos claacutessicos que atribuiacutea grande peso agrave gloacuteria agrave honra ao denodo guerreiro e agrave justiccedila
inflexiacutevel e fria da lei13 e sim para destacar o homem jaacute de tipo medieval manso e humilde de
coraccedilatildeo misericordioso ao ponto de voltar a outra face numa palavra homem cuja honra estava
na cruz e no sangue de seu Salvador e para o qual ldquoo insensato de Deusrdquo era ldquomais saacutebio que
os homens e o fraco de Deus mais forte que os homensrdquo14 O ecircthos pois que se quer construir
eacute o do homem de feacute que se deixa conduzir pela matildeo de Deus na praacutetica das virtudes ditas
teologais feacute esperanccedila e caridade (πίστις ἐλπίς ἀγάπη) (1Cor 1313) O homem comumente
se orgulha das coisas que faz por si proacuteprio (τοῖς διrsquo αὐτόν) lembra Aristoacuteteles mas natildeo se
orgulha do que o destino lhe trouxe (διὰ τύχην) (1368a3-4) Agostinho bastante ao contraacuterio
natildeo apenas natildeo se orgulha do que fez mas se arrepende amargamente preferindo ao inveacutes da
honra agradecer a Deus todo o bem que lhe sucedeu por seu intermeacutedio divino ldquoe assim Se-
nhor apagaste todos os meus merecidos males para que natildeo retribuiacutesses agraves minhas matildeos nas
quais te deixei e te antecipaste a todos os meus merecidos bens para que retribuiacutesses agraves tuas
matildeos com as quais me fizesterdquo15
Destarte das trecircs qualidades independentes de demonstraccedilatildeo (ἔξω τῶν ἀποδείξεων)
que Aristoacuteteles aponta (1378a) como necessaacuterias ao orador ainda que em aparecircncia somente a
fim de que seja convincente o que de modo principal se refere agraves assembleias ou ao conselho
instacircncias tiacutepicas de deliberaccedilatildeo na Greacutecia antiga 1 prudecircncia ou bom-senso (φρόνησις) 2
excelecircncia moral (ἀρετή) e 3 boa disposiccedilatildeo (εὔνοια) nenhuma delas guarda nas Confissotildees
a importacircncia que o estagirita lhe atribui a natildeo ser que se considerem as virtudes ditas teologais
como pertencentes ao rol das aretaiacute aristoteacutelicas o que seria no miacutenimo um grave anacronismo
Por fim a Retoacuterica destaca o papel do ecircthos na disposiccedilatildeo das mateacuterias (τάξις) de modo
especiacutefico no proecircmio (exordium) Nos discursos do gecircnero judiciaacuterio por exemplo aquele que
se defende (ἀπολογουμένῳ) deve fazecirc-lo logo no proecircmio (πρῶτον) antes da acusaccedilatildeo ao
contraacuterio de quem acusa que deve fazecirc-lo no final (τῷ ἐπιλόγῳ) porque aquele que defende
deve construir seu ecircthos no iniacutecio antes da acusaccedilatildeo (πρὸς τὴν διαβολήν) (1415a29-30) a
12 Confissotildees (1311) ldquoquia et priusquam essem tu eras nec eram cui praestares ut essemrdquo 13 Em conformidade com a ideia veiculada pela maacutexima romana ldquodura sed lexrdquo 14 Paulo (1Cor 121-25) ldquoὅτι τὸ μωρὸν τοῦ θεοῦ σοφώτερον τῶν ἀνθρώπων ἐστὶν καὶ τὸ ἀσθενὲς τοῦ
θεοῦ ἰσχυρότερον τῶν ἀνθρώπωνrdquo 15Confissotildees (1311) ldquoEtenim domine deleuisti omnia mala merita mea ne retribueres manibus meis in
quibus a te defeci et praeuenisti omnia bona merita mea ut retribueres manibus tuis quibus me fecistirdquo
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fim de livrar-se de todo impedimento ou embaraccedilo como faz Agostinho nas Confissotildees utili-
zando-se dos primeiros livros ditos biograacuteficos para tanto Se o acusador deve criar o precon-
ceito contra o acusado no fim para que permaneccedila bem presente na memoacuteria dos juiacutezes o
defendente deve desvencilhar-se do preconceito logo no iniacutecio a fim de que seus argumentos
satildeo sejam prejudicados pela imagem da pecha moral que traz consigo Natildeo eacute apenas para o
ecircthos que o proecircmio eacute importante mas tambeacutem para o paacutethos pois eacute preciso tornar o auditoacuterio
bem disposto em relaccedilatildeo ao orador se se estaacute defendendo ou tornaacute-lo indisposto contra a outra
parte (1415a-34-36) se se estaacute acusando Para isso conta muito a aparecircncia de respeitabilidade
do falante pois ldquoas pessoas respeitaacuteveis recebem mais atenccedilatildeordquo diz Aristoacuteteles Pelo que o
orador deve esforccedilar-se por conseguir duas coisas do auditoacuterio 1 amizade (φίλον) e 2 com-
paixatildeo (ἐλεεινόν) (1415b22-28) tornaacute-lo amigo e compassivo fazendo-o crer que ele mesmo
o orador sente exatamente aquilo que censura ou louva ou seja que estaacute sendo sincero
(1415b28-29) Ora como falar da Graccedila de Deus sem que se recorra ao testemunho pessoal
pois a Graccedila diferentemente da recompensa ou do salaacuterio (merces) eacute distribuiacuteda gratuitamente
para o que por paradoxal pareccedila faz-se necessaacuterio ser pecador numa palavra estar desprovido
de qualquer meacuterito que o tornaria credor ao inveacutes de devedor meacuterito que poderia confundi-la
a Graccedila com pagamento ou retribuiccedilatildeo Evidente que se trata dum exagero pois os que tecircm
meacuterito natildeo estatildeo de modo nenhum excluiacutedos da Graccedila jaacute que natildeo faz muito sentido que natildeo
receba sem meacuterito16 senatildeo quem natildeo mereccedila
Seja como for esse ecircthos de sinceridade logra construir com bastante esmero Agostinho
ao reconhecer-se pecador devedor pequenino desprovido de meacuteritos e absolutamente depen-
dente da bondade da Providecircncia divina que se expressa pela Graccedila gratis
A segunda das provas da arte paacutethos
A movimentaccedilatildeo das emoccedilotildees (πάθος) embora uma prova (πίστις) que se diz teacutecnica
ou ldquoda arterdquo (ἔντεχνος) de modo aparentemente paradoxal natildeo tem que ver diretamente com
as provas demonstrativas ou com a causa em si e sim respeita aos juiacutezes (δικασταί) explica
Aristoacuteteles (1354a4-5)17 De fato o orador alcanccedila a persuasatildeo seja em que gecircnero for (o que
16 Isto eacute gratuitamente 17 Aristoacuteteles natildeo era muito simpaacutetico nem ao apelo eacutetico tampouco ao emocional que julgava ser um mal
necessaacuterio pois considerava errado manipular os sentimentos dos juiacutezes o que equivalia a corromper a proacutepria lei
que se tentava fazer valer ou de que se queria socorrer (1356a14) Argumento muito parecido esse (de destruir a
proacutepria lei a que se deveraacute recorrer depois) com o utilizado por Soacutecrates ao negar a proposta de fuga de Criacuteton no
diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo (50a-b) Pois bem no iniacutecio do tratamento da hupoacutekrisis (1403b22-) Aristoacuteteles
147
natildeo exclui nem o epidiacutectico tampouco o deliberativo) mediatamente por meio dos ouvintes
(διὰ τῶν ἀκροατῶν) aqueles aos quais se dirige quando recorre ao paacutethos despertando ou
dirigindo suas emoccedilotildees (ὅταν εἰς πάθος) o que se faz pela accedilatildeo discursiva (ὑπὸ τοῦ λόγου)
Isso porque os juiacutezos (τὰς κρίσεις) dos ouvintes objetivo da accedilatildeo persuasiva variam sob a
influecircncia das emoccedilotildees tais como a dor (λύπη) a alegria (χαρά) a amizade (φιλία) o oacutedio
(μῖσος) etc Com efeito o orador natildeo tem por escopo a emoccedilatildeo do auditoacuterio em si mesma como
finalidade e sim a sua persuasatildeo a fim de que decida em favor de sua causa para o que as
emoccedilotildees cooperam vivamente como percebeu Aristoacuteteles ao dedicar grande parte do livro
segundo da Retoacuterica ao estudo das paixotildees da alma
Um dos meios mais eficazes para a movimentaccedilatildeo do paacutethos a fim de que se tenha ecircxito
no apelo emocional em vista dum fim ulterior natildeo satildeo as provas demonstrativas recomendadas
para o gecircnero apropriado (o judiciaacuterio no caso) o entimema e as maacuteximas provas que devem
ser descobertas na invenccedilatildeo e sim os recursos pertencentes a outra parte da retoacuterica a elocuccedilatildeo
(λέξις) Com efeito depois de encontrado o que dizer (εὕρεσις) e disposto as mateacuterias de modo
apropriado (τάξις) resta saber como dizecirc-lo Esse ldquocomordquo respeita sem duacutevida agrave forma do dis-
curso que se chama tambeacutem ldquoestilordquo poreacutem de modo nenhum se limita a isso como se fosse
apenas uma sua vestimenta Os recursos da elocuccedilatildeo para muito aleacutem da ornamentaccedilatildeo tecircm
forccedila persuasiva pois argumentam seja pela concisatildeo das figuras seja pelo ritmo e paralelismo
das construccedilotildees seja pelas imagens que evocam o que fazem de modo principal pondo em
destaque tanto o ecircthos como o paacutethos O ecircthos por exemplo no emprego do leacutexico que quando
recheado de estrangeirismos (ξένην ποιεῖν τὴν διάλεκτον) (1404b10-12) diz Aristoacuteteles con-
fere um ar de dignidade ao discurso promovendo por tabela o orador que se faz parecer digno
e nobre assim como aquilo que estaacute dizendo O paacutethos por sua vez quando o discurso eacute ldquoele-
vadordquo a um niacutevel suprarracional ou sublime pelo uso de recursos poeacuteticos dentre os quais se
destacam as figuras de repeticcedilatildeo como paralelismos epanalepses anadiploses antanaacuteclases
reconhece que tudo aquilo que respeita agrave apresentaccedilatildeo do discurso como voz volume tom altura ritmo harmo-
nia entre tais e que eacute muito importante nos certames dramaacuteticos e eacutepicos (τῶν ἀγώνων) quando entatildeo faz-se
necessaacuterio equilibrar esses elementos segundo cada uma das emoccedilotildees (πρὸς ἕκαστον πάθος) embora seja tam-
beacutem utilizado nas demais atividades poliacuteticas como assembleias deliberativas e tribunais o eacute apenas de modo
deploraacutevel Isso porque conquanto seja necessaacuterio mover as paixotildees do auditoacuterio e construir o caraacuteter do orador
discursivamente essa necessidade se deve tatildeo soacute agrave corrupccedilatildeo dos cidadatildeos (διὰ τὴν μοχθηρίαν τῶν πολιτῶν)
(1403b34-35) o que equivale a dizer do auditoacuterio (τοῦ ἀκροατοῦ) Assim sendo o recurso tanto ao ecircthos como
ao paacutethos deixa de ser questatildeo de correccedilatildeo (οὐκ ὀρθῶς) de certo ou errado passando a ser uma necessidade (ἀλλrsquo
ὡς ἀναγκαίου) Com efeito o justo (δίκαιον) seria defender acusar exortar e dissuadir movido apenas pelos
fatos (ἀγωνίζεσθαι τοῖς πράγμασιν) (1404a5-6) de maneira tal que o restante que Aristoacuteteles reputa fora da
demonstraccedilatildeo (ἔξω τοῦ ἀποδεῖξαι) ο que inclui ecircthos e paacutethos seria superfluidade (περίεργα ἐστίν) (1404a8)
Infelizmente poreacutem a realidade eacute que o orador precisa conhecer estes recursos a fim de poder defender-se e atingir
seus objetivos uma vez que os adversaacuterios certamente lanccedilam matildeo deles de modo quase sempre inescrupuloso
148
paronomaacutesias antimetaacuteboles poliptotos etc E fique claro que dizer que Aristoacuteteles natildeo via com
bons olhos o (mau) recurso aos apelos eacutetico e pateacutetico nos tribunais natildeo significa dizer que
desprezasse os mecanismos da elocuccedilatildeo o que implicaria dizer que cresse o homem ser dotado
apenas de razatildeo excluiacutedos sentimentos e caraacuteter a natildeo dizer da vontade Ao contraacuterio Aristoacute-
teles bem reconhecia que em todo tipo de aprendizado (ἐν πάσῃ διδασκαλίᾳ) o estilo se faz
mateacuteria de certa importacircncia uma vez que algo se torna claro (πρὸς τὸ δηλῶσαι) por meio do
modo como eacute dito (ὡδὶ ἢ ὡδὶ εἰπεῖν) embora relegasse a questatildeo do estilo ao niacutevel da aparecircn-
cia (ἀλλrsquo ἅπαντα φαντασία ταῦτrsquo εστὶ) cuja finalidade seria apenas agradar o ouvinte (πρὸς
τὸν ἀκροατήν) ouvinte esse por sua vez cuja corrupccedilatildeo (μοχθηρία) seria a verdadeira causa
de tudo que natildeo eacute apodiacutectico na retoacuterica (1404a7-8) Em assim sendo o estilo (λέξις) seria um
mal necessaacuterio uma ferramenta que embora potencialmente injusta seria uacutetil para conferir
clareza ao discurso assim como todos os demais elementos de persuasatildeo natildeo-apodiacutecticos ou
extrademonstrativos E isso se justifica diz o filoacutesofo de modo peremptoacuterio porque ningueacutem
ensina a fazer geometria desse modo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) isto eacute nem pelo
recurso ao paacutethos nem pelo ecircthos tampouco por qualquer outra ferramenta indicada para a
elocuccedilatildeo como as figuras (1404a12) Compreende-se essa visatildeo deveras depreciativa da elo-
cuccedilatildeo por parte do filoacutesofo pois como ele mesmo diz no terceiro livro de sua Retoacuterica ao
empreender o tratamento da actio ou representaccedilatildeo do discurso (ὑπόκρισις) ateacute ao tempo da
escritura da obra natildeo havia ainda nenhuma arte isto eacute nenhum manual de retoacuterica voltado para
a mateacuteria (οὔπω δὲ σύγκειται τέχνη περὶ αὐτῶν) porque a leacuteksis soacute havia sido notada pou-
quiacutessimo antes (ἐπεὶ καὶ τὸ περὶ τὴν λέξιν ὀψὲ προῆλθεν) descaso que se justificava pelo fato
de o estilo mdash considerado entatildeo como mera ornamentaccedilatildeo do discurso mdash ser julgado inferior
(φορτικὸν) tema indigno das preocupaccedilotildees dum homem livre criacutetica que natildeo evita endossar o
filoacutesofo (καλῶς ὐπολαμβανόμενον) (1403b35-6)
A despeito desta postura criacutetica adotada por Aristoacuteteles e de seu juiacutezo negativo a respeito
do ecircthos e do paacutethos postura raramente admitida pelos estudiosos atuais da retoacuterica o que
importa para os fins deste artigo contudo eacute seu poder argumentativo uma vez que sua impor-
tacircncia natildeo pode ser negada seja ela justificada ou natildeo de par com a finalidade filosoacutefica que
lhes imprime o rhetor de Hipona Portanto justo ou natildeo (nos tribunais e assembleias) o fato
admitido por Aristoacuteteles eacute que a elocuccedilatildeo afeta sobremodo o paacutethos sendo de par com o ecircthos
reconhecido como a mais persuasiva (κυριωτάτη) das provas (1356a13) altamente eficaz para
os objetivos da argumentaccedilatildeo pois resta claro que por meio do estilo se consegue mover as
emoccedilotildees (1408a16) seja quando se fala com indignaccedilatildeo audaciosa (ὕβρις) seja com raiva
149
(ὁργιζομένου) impiedade (ἀσεβή) ou vergonha (αἰσχρά) O estilo adequado (ἡ οἰκεία λέξις)
que eacute aquele em que os elementos do paacutethos (παθητική) e do ecircthos (ἠθική) satildeo proporcionais
(ἀνάλογον) aos temas subjacentes (τοῖς ὐποκειμένοις πράγμασιν) (1408a10-11) faz com
que um dado assunto seja mais persuasivo Aleacutem disso remata Aristoacuteteles o ouvinte sempre
simpatiza (συνομοπαθεῖ ὁ ἀκούων) com quem fala de modo emocional (παθητικῶς
λέγοντι) ainda que esse natildeo diga nada (κἂν μηθὲν λέγῃ) (1408a23-4)
Reconhecido o vigor (δύναμις) natildeo apenas pateacutetico mas tambeacutem argumentativo da elo-
cuccedilatildeo resta ver como Agostinho se utiliza de seus recursos nas Confissotildees a fim de atingir seus
objetivos numa palavra a fim de fazer filosofia Pois bem as descriccedilotildees que melhor instigam
as emoccedilotildees satildeo as que fazem apelo agrave imaginaccedilatildeo e aos sentidos descriccedilotildees viacutevidas de cenas e
eventos contam muito como o famigerado roubo das peras (Conf 249) a prisatildeo de Aliacutepio
(6914) ou a cena do jardim de Milatildeo (81125-27) por exemplo as inumeraacuteveis metaacuteforas e a
prosopopeia de oacutergatildeos humanos que passam a ser dotados de matildeos pernas ouvidos como as
matildeos do coraccedilatildeo que se estendem em prece a Deus os relatos de laacutegrimas pungentes que se
vertem repetidas vezes enfim descriccedilotildees essas que tecircm potencial enorme para despertar fortes
sentimentos Do mesmo modo o uso de hipeacuterboles e outras tantas figuras se faz extremamente
uacutetil para criar o efeito emocional desejado Todavia nada talvez seja tatildeo eficiente nesse sentido
quanto o vocabulaacuterio o uso de palavras carregadas de intensa conotaccedilatildeo pateacutetica E no apelo
agraves emoccedilotildees pode-se dizer esteja uma das chaves de leitura das Confissotildees ao menos retoacuterica
De fato a linguagem da obra estaacute repleta de figuras cujo efeito principal eacute o despertar dos
sentimentos Mas de quem e para quecirc A sua audiecircncia soacute pode ser depreendida de modo in-
direto por meio da linguagem do estilo e do tema o que natildeo se constitui tarefa das mais faacuteceis
por tratar-se de obra multifacetada de linguagem muito elaborada que prima pela sofisticaccedilatildeo
mas que natildeo despreza uma certa tonalidade menos erudita que se pode ateacute denominar em
alguma medida popular ou humilde De fato pelo recurso aos salmos e textos escrituraacuterios
com seu respectivo campo semacircntico permeado de expressotildees da liacutengua grega vulgar (κοινή)
traduzidas ou transliteradas em latim conhecidos de toda comunidade cristatilde natildeo apenas por
serem lidos mas principalmente por sua funccedilatildeo lituacutergica eacute sem duacutevida uma linguagem
(sermo) popular ou humilis todavia pelos mecanismos retoacutericos extremamente requintados e
pelas referecircncias a toda uma cultura filosoacutefica de par com uma argumentaccedilatildeo em muitas pas-
sagens nada singela especialmente nos livros 1 8 e de 9 a 13 pode-se considerar igualmente
elevadiacutessima Portanto humilde e elevada eacute a linguagem das Confissotildees constituindo em si
mesma um oximoro
150
Diante desse desafio de escrever tanto para a gente mais simples como para filoacutesofos
desafio que se exprime nesse caso pela linguagem supotildee-se que Agostinho natildeo tenha simples-
mente pretendido abaixar o registro de seu discurso descendo aos simples e pequeninos (ad
catechizandos rudes) muito ao contraacuterio ao que parece pretendia elevar-se ou melhor ser
elevado ao confessar-se arrependido penitenciando-se mas tambeacutem ao confessar sua feacute e seu
louvor enaltecendo e reconhecendo a graccedila de Deus em sua vida Em sendo assim ao ser ele-
vado por Deus pela confissatildeo pretende igualmente mover as almas incitando-lhes semelhante
elevaccedilatildeo ou quando natildeo o desejo de elevaccedilatildeo desejo de que se deixassem igualmente elevar
como ele confessava desejar o que se pode considerar sem duacutevida uma meta de caraacuteter pastoral
Portanto sua missatildeo quanto ao paacutethos eacute tambeacutem a de mover as almas agrave salvaccedilatildeo que
se pode sintetizar na vontade de ser elevado e de para lanccedilar matildeo duma contradiccedilatildeo merecer
por uma espeacutecie de ascese cataacutertica a graccedila divina a misericoacuterdia do Deus justiacutessimo Ora
disso decorre a possibilidade duma outra funccedilatildeo da linguagem extremamente comovente fruto
dos recursos da elocuccedilatildeo a que recorre Agostinho nas Confissotildees e interligada com essa funccedilatildeo
dita pastoral de elevar as almas uma funccedilatildeo que se pode compreender como simultaneamente
propedecircutica e filosoacutefica Com efeito se uma das funccedilotildees deste paacutethos que se diz de caraacuteter
pastoral pretende comover positiva e negativamente incitando a um soacute tempo o desejo de
salvaccedilatildeo e o de horror agrave perdiccedilatildeo o desejo de buscar Deus e de evitar o mal de buscar ser mais
pela proximidade do Ser supremo e de evitar ser menos ou deixar de ser pelo afastamento desse
mesmo Ser como se percebe sobremodo nos livros da parte considerada biograacutefica da obra o
que natildeo implica de modo algum a exclusatildeo dos restantes livros a outra funccedilatildeo por sua vez
relacionada intimamente agrave primeira de que se pode dizer seja consequecircncia natural que se
exacerba tambeacutem a partir dos recursos da elocuccedilatildeo e que como se disse tem caraacuteter prope-
decircutico compreende-se como uma funccedilatildeo de purificaccedilatildeo filosoacutefica de afastamento progressivo
das coisas deste mundo de afastamento da ldquocarnerdquo se se pode dizer tendo em vista o despren-
dimento rumo a uma vida mais espiritual de proximidade com o Ser o puro Inteligiacutevel que se
transubstancia por sua vez num projeto de vivecircncia cristatilde o que se destaca sobremodo a partir
do livro novo encontrando sua foz nos estertores do livro derradeiro Donde ser liacutecito afirmar
que os livros da parte biograacutefica das Confissotildees do primeiro ao oitavo tecircm tambeacutem essa fun-
ccedilatildeo de purificaccedilatildeo tanto das emoccedilotildees como da razatildeo ou seja de disciplinar ou exercitar asce-
ticamente a alma (exercitatio animi)18 a fim de que os leitores e ouvintes pudessem estar pre-
parados para o que havia de vir nos livros subsequentes E isso parece estar em harmonia com
18 Ἥ ἄσκησις ἥ τῆς ψυχῆς
151
o projeto filosoacutefico platocircnico-cristatildeo que Agostinho tinha para sua vida e que colocou em praacute-
tica desde os tempos preacute-batismais de Cassiciacuteaco ateacute ser interrompido pela sua consagraccedilatildeo
sacerdotal (391 dC) um projeto propedecircutico-purificador
E de fato se se pode aventar que esse projeto cataacutertico da razatildeo encontra seu ponto de
saiacuteda no expurgo do ceticismo de tipo neoacadecircmico como se percebe nos trecircs livros intitulados
Contra Academicos desenvolve-se sobremodo nas paacuteginas do diaacutelogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monoacutelogo com os Soliloacutequios obras do mesmo periacuteodo
Formato monoloacutegico esse denominado por Dupuy-Trudelle (1998 p 1198) ldquodesdobramentordquo
que eacute bem possiacutevel tenha servido de laboratoacuterio para as proacuteprias Confissotildees sugere a autora
refletindo a intenccedilatildeo de Agostinho apesar da excelecircncia da feacute de levar as exigecircncias da razatildeo
ateacute ao limite extremo num esforccedilo de purificaccedilatildeo num ir-aleacutem das paixotildees e desiludir-se sobre
si mesmo Ora estar iludido acerca de si mesmo natildeo eacute impedimento agrave feacute mas o eacute ao acesso agrave
convicccedilatildeo intelectual verdadeira Portanto para chegar-se ao conhecimento define esta autora
(ibid pp 1198-9) faz-se mister como condiccedilatildeo uacutenica a ldquolibertaccedilatildeo da razatildeo de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesmardquo libertaccedilatildeo a que os Soliloacutequios datildeo curso
Pode-se compreender que para desenlamear a consciecircncia dos similisavoirs libertaacute-
la de toda ilusatildeo psicoloacutegica ensinaacute-la que o desejo da verdade natildeo eacute ainda a posses-
satildeo da verdade permitir-lhe ir aleacutem do conflito de interesses que leva a opiniatildeo a
revoltar-se contra a verdade seja preciso mensurar a distacircncia entre o sujeito e si
mesmo Ora fazecirc-lo eacute um convite a mensurar a distacircncia entre si e o conhecimento de
Deus Eis entatildeo todo o sentido do exerciacutecio proposto pelo ldquosoliloacutequiordquo mensurar uma
e outra19
Natildeo parece haver duacutevidas de que os Soliloacutequios trazem em si de modo embrionaacuterio o estilo
que haveria de consagrar sobretudo a partir das Confissotildees quando entatildeo dispensa o combate
direto de ideias preferindo ldquodesdobrar-serdquo e deixar-se interrogar por si mesmo ainda que de
modo proleacuteptico continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas
Todavia eacute mais que provaacutevel que esta exigecircncia natildeo tenha surgido do nada e sim pertenccedila a
um projeto filosoacutefico maior que englobe as demais obras de Cassiciacuteaco sendo-lhe entatildeo um
como que desenvolvimento natural
No proacutelogo do De ordine (13-4) Agostinho argumenta que o homem por ser um des-
conhecido de si mesmo natildeo consegue perceber a ordem que reina em todo o universo ordem
providencial em que ele estaacute inserido e que para conseguir conhecer-se seria necessaacuterio entrar
em si mesmo ali permanecendo afastado dos sentidos lugar em que poderia entatildeo curar-se das
feridas que as opiniotildees vulgares infligem agrave alma seja pelo ldquofogordquo do ldquoisolamentordquo conforme
19 DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Les Confessions Paris Gal-
limard 1998 p 1206
152
se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
153
soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
154
As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
155
menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
156
Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
157
sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
158
(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
159
articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
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da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
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das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
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O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
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Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
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ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
REFEREcircNCIAS
[CICERO] Rhetorica ad Herennium (Transl by Harry Caplan) Cambridge (MA) Harvard
University Press 2004 (LOEB Classical Library 403)
ARISTOTELIS Ars Rhetorica (Recognouit breuique adnotatione critica instruxit W D
Ross) Oxford Oxford University Press 2008 (Oxford Classical Texts)
ARISTOTLE The Complete Works of Aristotle (The Revised Oxford Translation Edited by
Jonathan Barnes) Sixth Printing with corrections Princeton Princeton University Press
1995 (Volumes I amp II)
AUERBACH Erich Ensaios de Literatura Ocidental Filologia e Criacutetica 1ordf ed Satildeo Paulo
Duas Cidades Editora 34 2007 pp 15-96 ldquoSacrae scripturae sermo humilisrdquo pp 15-28
ldquoSermo humilisrdquo pp 29-76 ldquoGloria Passionisrdquo pp 77-96
AUGUSTIN Confessions (Texte Eacutetabli et Traduit par Pierre de Labriolle) Seiziegraveme tirage
Paris Les Belles Lettres 2002 (Tome I livres I-VIII Tome II livres VIII-XIII)
______ IV Dialogues Philosophiques I Problegravemes fondamentaux Contra Academicos De
beata uita De ordine (Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et notes de R
Jolivet) 2me eacutedition revue et augmenteacutee Paris Descleacutee de Brouwer 1939 (Œuvres de Saint
Augustin 1re Seacuterie Opuscules)
______ V Dialogues Philosophiques II Dieu et Lrsquoame Soliloques De immortalitate
animae De quantitate animae (Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et
notes de Pierre de Labriolle) Paris Descleacutee de Brouwer 1939 (Œuvres de Saint Augustin 1re
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134
GEcirc
NE
RO
S D
E
DIS
CU
RS
O
τρία
γέν
η τῶ
ν λό
γων
AUDITOacuteRIO ἀκροατής
JUIacuteZO E TEMPO κρίσις καὶ χρόνος
PROVAS
TEacuteCNICAS πίστεις ἔντεχνοι
TAREFAS E OBJETIVOS πράξεις καὶ τέλος
PROVA
DEMONSTRATIVA ἀπόδειξις
JUD
ICIAacute
RIO
δι
κανι
κόν
JUIZ-TRIBUNAL δικαστής
δικαστήριον
DO QUE DECORREU
NO PRETEacuteRITO περὶ τῶν γεγενημένων
PAacuteTHOS πάθος
ACUSACcedilAtildeO Ε DEFESA κατηγορία ἀπολογία
O JUSTO E O INJUSTO τὸ δίκαιον ἄδικον
ENTIMEMAS
E MAacuteXIMAS ἐνθυμήματα
γνῶμαι
DE
LIB
ER
AT
IVO
συ
μβου
λευτ
ικόν
LEGISLADOR-AS-
SEMBLEIA
CONSELHO βουλευτής
ἐκκλησία βουλή
DO QUE PODE OCORRER
NO FUTURO περὶ τῶν μελλόντων
EcircTHOS ἦθος
EXORTAR E DISSUADIR προτροπή ἀποτροπή
O UacuteTIL E O PREJUDICIAL τὸ συμφερόν βλαβερόν
EXEMPLOS παραδείγματα
EP
IDIacuteC
TIC
O
ἐπιδ
εικτι
κόν ESPECTADOR-
CONFEREcircNCIA θεωρός ἐπίδειξις
SOBRE O QUE Eacute
NO PRESENTE
(DA VIRTUDE DO DISCURSO) περὶ τῆς δυνάμεως
τοῦ λόγου
LOacuteGOS λόγος
LOUVOR E CENSURA ἔπαινος ψόγος
O BELO OU BOM
E O FEIO OU MAU τὸ καλὸν ἢ ἀγαθόν
τὸ αἰσχρὸν ἢ κακόν
AMPLIFICACcedilAtildeO αὔξησις ταπείνωσις
Importa notar que a coluna das ldquoprovas teacutecnicasrdquo deve ser compreendida do seguinte modo 1
no gecircnero judiciaacuterio preponderacircncia do paacutethos seguido de loacutegos e ecircthos 2 no deliberativo
preponderacircncia do ecircthos seguido de loacutegos e paacutethos 3 no epidiacutectico preponderacircncia do loacutegos
seguido de paacutethos e ecircthos Isso porque em todos os gecircneros se fazem necessaacuterias todas as trecircs
provas teacutecnicas mescladas com a precedecircncia de uma ou outra em relaccedilatildeo agraves restantes E o
mesmo se diga da coluna das provas ldquodemonstrativasrdquo que deve ser entendida do seguinte
modo 1 judiciaacuterio preponderacircncia dos entimemas e maacuteximas sem excluir exemplos e ampli-
ficaccedilotildees 2 deliberativo preponderacircncia dos exemplos sem omissatildeo de entimemas maacuteximas
e amplificaccedilotildees 3 epidiacutectico preponderacircncia da amplificaccedilatildeo seja pela auxese ou tapeinose
sem que se excluam maacuteximas exemplos e entimemas De fato Aristoacuteteles encerra o segundo
livro da retoacuterica dando destaque igual aos trecircs recursos ao dizer que em relaccedilatildeo ao loacutegos (περὶ
τὸν λόγον) ou seja no que tange agrave atividade do pensamento (διάνοια) tanto exemplos
(παραδείγματα) como entimemas (ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) se fazem igualmente
importantes (1403a34-35)
Embora Aristoacuteteles priorize sobremodo os fatos e a demonstraccedilatildeo reconhece a necessi-
dade do recurso aos outros gecircneros de provas que natildeo as exclusivamente apodiacutecticas uma vez
ter plena consciecircncia de que os adversaacuterios a elas recorrem muita vez sem escruacutepulos care-
cendo o orador de estar ciente de seu mecanismo ao menos para defender-se como se deve
135
pois seria esdruacutexulo (ἄτοπον) reconhece o filoacutesofo (1355a39-b2) se se considerasse vergo-
nhoso (αἰσχρόν) que o corpo natildeo pudesse defender-se a si mesmo mas que a mesma defesa
natildeo fosse facultada ao espiacuterito pela atividade mental-discursiva uma vez que o que caracteriza
o homem eacute muito mais a atividade intelectual que a fiacutesica5 Portanto embora desejasse intima-
mente restringir sua Retoacuterica ao tratamento das mateacuterias uacuteteis para o entimema (1354a5) que
eacute o silogismo retoacuterico como faz no primeiro livro segundo cada um dos gecircneros contudo uma
vez que cada um dos trecircs tipos de ouvintes relacionados respectivamente aos trecircs gecircneros dis-
cursivos eacute em si mesmo uma espeacutecie de juiz (κριτής) a quem cabe ajuizar seja do justo ou do
injusto do proveitoso ou do nocivo e do belo ou do feio numa palavra como a retoacuterica grosso
modo tem que ver com ldquojuiacutezosrdquo (ἕνεκα κρίσεώς ἐστιν ἡ ῥητορική) reconhece o filoacutesofo que
natildeo basta tornar o discurso apenas apodiacutectico (ἀποδεικτικός) ou criacutevel (πιστός) por meio das
provas exclusivamente demonstrativas (λόγος) como o entimema e os exemplos mas tambeacutem
saber como fazer com que o orador pareccedila ter um determinado caraacuteter (ἦθος) aleacutem de ser capaz
de pocircr os juiacutezes sejam quais forem num certo estado de espiacuterito (πάθος) Pelo que faz enorme
diferenccedila que o orador mostre-se possuidor de certas qualidades (τὸ ποίον τινα φαίνεσθαι τὸν
λέγοντα) e que seus ouvintes estejam dispostos de certo modo em relaccedilatildeo a ele pensando por
sua vez que ele tambeacutem esteja disposto de certo modo em relaccedilatildeo a eles No discurso delibe-
rativo eacute mais importante que o orador pareccedila ser portador dum caraacuteter ilibado confiaacutevel no
judiciaacuterio que os que iratildeo julgar estejam dispostos de modo favoraacutevel agrave causa e ao pleiteante
No epidiacutectico por sua vez os dois anteriores natildeo devem ser desprezados quando importa natildeo
apenas a construccedilatildeo dum certo caraacuteter mas tambeacutem a disposiccedilatildeo do auditoacuterio no que redunda
numa certa combinaccedilatildeo ecircthos-paacutethos que se deve submeter ao serviccedilo do loacutegos a fim de em-
preender o louvor ou a censura Em assim sendo maacuteximas (γνῶμαι) exemplos
(παραδείγματα) amplificaccedilotildees (αὐξήσεις) de toda sorte de par com as ferramentas da elocu-
ccedilatildeo (λέξις) como as figuras (σχήματα) e os tropos (τρόποι) se combinam natildeo apenas pela
beleza que podem conferir ao estilo mas principalmente por sua forccedila (δύναμις) argumentativa
o que os transforma em armas bastante eficazes tanto para o discurso de louvor como para o de
caraacuteter filosoacutefico
Conhecidos pois os gecircneros de discurso os auditoacuterios especiacuteficos de cada um junta-
mente com os tempos e juiacutezos das accedilotildees as provas teacutecnicas as tarefas objetivos e provas de-
monstrativas predominantes resta conhecer as trecircs grandes metas que devem ser cumpridas em
5 (1355a39-b2) ldquoἄτοπον εἰ τῷ σώματι μὴ δύνασθαι βοηθεῖν ἑαυτῷ λόγῳ δ᾿ οὐκ αἰσχρόν ὃ μᾶλλον
ἴδιόν ἐστιν ἀνθρώπου τῆς τοῦ σώματος χρείαςrdquo
136
cada uma das fazes de composiccedilatildeo do discurso 1 invenccedilatildeo (εὕρεσις ou inuentio) descobrir de
onde tirar as provas (ἐκ τίνων πίστεις ἔσονται) 2 disposiccedilatildeo (τάξις ou dispositio) ordenar
as partes do discurso isto eacute as provas encontradas na invenccedilatildeo (πῶς χρή τάξαι τὰ μέρη τοῦ
λόγου) 3 elocuccedilatildeo (λέξις ou elocutio) tratar do estilo (περὶ τὴν λέξιν) ou seja do modo de
apresentaccedilatildeo das ideias que foram encontradas e ordenadas (1403b6-8) Da primeira meta a
invenccedilatildeo ou descoberta das provas Aristoacuteteles tratou nos dois primeiros livros ao discorrer
sobre as mateacuterias adequadas ao entimema e aos exemplos de par com o que eacute uacutetil agrave construccedilatildeo
dos caracteres e o estudo detalhado das paixotildees da alma com vistas agrave afetaccedilatildeo dos juiacutezes Res-
taram apenas a disposiccedilatildeo das mateacuterias e a elocuccedilatildeo ou seja o tratamento do estilo o que o
filoacutesofo empreende fazer no terceiro e uacuteltimo livro da Retoacuterica
No que se refere ao estilo (περὶ τῆς λέξεως) Aristoacuteteles pondera que natildeo basta possuir
o quecirc se natildeo se souber como dizecirc-lo (ὡς δεῖ εἰπεῖν) (1403b16) o que se deve fazer sempre de
modo claro jaacute que a grande virtude da elocuccedilatildeo eacute a clareza (λέξεως ἀρετὴ σαφῆ εἶναι)
(1404b1-2) e o discurso que natildeo for claro natildeo cumpriraacute sua tarefa (1404b2-3) (οὐ ποιῆσει τὸ
ἑαυτοῦ ἔργον) Tendo as mateacuterias de persuasatildeo a seu dispor o orador deve cuidar da apresen-
taccedilatildeo desse material (λέξει διαθέσθαι) ou seja do estilo do discurso para entatildeo empregar a
forccedila (δύναμις) de accedilatildeo atualizando aquilo que se descobriu e figurou dum certo modo
(ὑπόκρισις) Essa atualizaccedilatildeo ou representaccedilatildeo do discurso hupoacutekrisis que em latim se deno-
mina actio refere-se agrave sua expressatildeo oral compreendendo questotildees de voz (φωνή) volume
(μέγεθος) harmonia (ἁρμονία) ritmo (ῥυθμός) e tom (τόνος) que pode ser agudo (ὀξύς)
grave (βαρύς) ou meacutedio (μέσος)
Por fim no que tange agrave disposiccedilatildeo das mateacuterias (περὶ τῆς τάξεως) cujo tratamento se
inicia no final do terceiro livro da Retoacuterica (1414a29) Aristoacuteteles resume em duas as partes
principais do discurso isso porque nem toda parte da divisatildeo tradicional respeitava a todo e
qualquer gecircnero 1 o estado da questatildeo (πρόθεσις) isto eacute a exposiccedilatildeo da causa (τὸ πρᾶγμα
εἰπεῖν) acerca de que se haacute de argumentar (περὶ οὗ) 2 a prova (πίστις) ou seja a demonstraccedilatildeo
(τὸ ἀποδεῖξαι) (1414a31-36) A divisatildeo tradicional por sua vez elenca as seguintes partes 1
proecircmio ou exoacuterdio (προοίμιον) 2 narraccedilatildeo (διήγησις) que se subdivide em 21 exposiccedilatildeo
da causa (πρόθεσις) e 22 refutaccedilatildeo (ἀντιδίκησις) 3 prova (πίστις) 4 peroraccedilatildeo ou conclusatildeo
(ἐπίλογος) destas contudo apenas o proecircmio o estado da questatildeo a prova e a peroraccedilatildeo se
aplicam a todos os gecircneros retoacutericos (1414b8-9)
Do que se disse natildeo se deve imaginar que o discurso filosoacutefico esteja fora do acircmbito
retoacuterico pois ainda que se trate do discurso de um soacute pretende sempre persuadir ou persuadir-
137
se de algo seja duma verdade ideia crenccedila ou praacutetica E todo aquele que deve ser persuadido
seja o proacuteprio autor do discurso ou um outro se faz indubitavelmente juiz (1391b11-12)
(ἁπλῶς κρίτης) Deste modo esteja-se disposto contra um oponente (πρὸς ἀμφισβητοῦντα)
ou contra uma teoria (πρὸς ὑπόθεσιν) eacute preciso uma vez e sempre recorrer agrave argumentaccedilatildeo
(τῷ λόγῳ ἀνάγκη χρῆσθαι) a fim de defender um ponto de vista ou destruir o seu contraacuterio
(1391b13-14) o que eacute apropriado ao gecircnero de discurso epidiacutectico acima de tudo (ὡσαύτως
ἐν τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) como se se estivesse argumentando diante de um verdadeiro juiz
(ὥσπερ πρὸς κρίτην) que no caso eacute o espectador (θεωρός) aquele que contempla observa
aprende agrave maneira dum disciacutepulo dum arguidor dialeacutetico ou do proacuteprio filoacutesofo se este estiver
apenas escrevendo
Os gecircneros retoacutericos nas Confissotildees consideraccedilotildees teoacutericas
Quando se estaacute diante de temas controversos que aceitam ao menos dois modos dife-
rentes de pensar como os temas tipicamente retoacutericos (1357a1-5) a demonstraccedilatildeo apodiacutectica
(ἀπόδειξις) raramente eacute possiacutevel diz Olivier Reboul (2000 p 27) natildeo sendo nada ldquocientiacuteficardquo
a exigecircncia de ldquorespostasrdquo de caraacuteter cientiacutefico como ocorre nas Confissotildees por exemplo
quando se quer falar das ldquocoisasrdquo de Deus Contudo entre a luz do que se pode apreender cien-
tificamente (e demonstrar apodicticamente) e a obscuridade da mais completa ignoracircncia acerca
do misteacuterio abissal do Ser encontra-se todo um universo de possibilidades retoacutericas cujo rei-
nado pertence ao argumento E se argumentar natildeo eacute senatildeo propor y para que se admita x como
bem o ilustra esse autor (ibid pp 91-2) que se poderia argumentar acerca do Ser enquanto
Ser (x) sem que se circunscrevesse a dizer de seus pseudopredicados (y) daquilo que apenas
eacute Recursos haacute poreacutem que permitem dizecirc-lo argumentando enquanto Ser ainda que de modo
ilusoacuterio obliacutequo silencioso a partir dos mecanismos que a arte retoacuterica oferece seja com o
auxiacutelio do ecircthos do paacutethos ou do loacutegos os trecircs gecircneros de provas ditas teacutecnicas
Um dos objetivos de Agostinho ao pretender falar de Deus tema indubitavelmente con-
troverso (ἀμφισβητήσιμος) na referida acepccedilatildeo aristoteacutelica isto eacute passiacutevel de disputa por ser
natildeo-apodiacutectico pelo que igualmente retoacuterico pode-se dizer seja pocircr em destaque primordial-
mente o loacutegos o que se faz sobretudo por meio dum discurso do gecircnero epidiacutectico em que
predomina a funccedilatildeo referencial da linguagem uma pseudoterceira pessoa discursiva melhor
compreendida como uma natildeo-pessoa ou seja aquilo de que se fala (περὶ οὗ λέγει) (1358b1)
Todavia jamais deixa de pretender comover (πάθος) poreacutem natildeo especificamente quando fala
138
com Deus ο ldquopara quemrdquo (πρὸς ὅν) (1388b1) pois o Ser divino enquanto segunda pessoa
discursiva eacute onisciente e embora deixe-se dalgum modo misterioso comover por causa de sua
misericoacuterdia por ser igualmente justo ele cujo juiacutezo eacute inexoraacutevel torna a tarefa quanto ao
paacutethos um tanto obstada Por isso os esforccedilos de Agostinho no sentido de comover devem vol-
tar-se nem sempre e de imediato a Deus e sim aos seus leitores o auditoacuterio cristatildeo a quem o
filoacutesofo confessa de fato dirigir-se (Conf 235) ldquoA quem estou relatando estas coisas Ora
natildeo a ti meu Deus e sim na tua presenccedila relato-as aos de meu gecircnero ao gecircnero humano por
pequenina a parcela dos que possam deparar com estes meus escritosrdquo6
Quer comover portanto aleacutem de fazer converter para Deus como se viu convertido
fazendo com que as almas se elevem movidas pela penitecircncia o que natildeo se faz senatildeo tendo em
vista uma accedilatildeo futura (περὶ τῶν μελλόντων) E se para falar de Deus carece dum loacutegos apro-
priado ao louvor (ἔπαινος) que eacute tambeacutem contemplaccedilatildeo (θεωρεῖν) contemplaccedilatildeo do Belo (τὸ
καλόν) e do Bem (τὸ ἀγαθόν) a comoccedilatildeo natildeo se faz sem os recursos do paacutethos tampouco
prescindindo do ecircthos a fim de edificar um caraacuteter penitente digno do arrependimento ou con-
versatildeo mental (μετάνοια) a que todo cristatildeo deve submeter-se antes de crer no Evangelho
como admoestava Cristo (Mc 114-15) ldquoArrependei-vos [= convertei-vos] e crede no Evange-
lhordquo (μετανοεῖτε καὶ πιστεύετε ἐν τῷ εὐαγγελίῳ) Portanto Agostinho carece tambeacutem de
construir sempre pelo discurso (διὰ τοῦ λόγου) seu ecircthos discorrendo acerca daquilo que de
edificante se passou consigo (περὶ τῶν γεγενημένων) (1358b5) para os ldquojuiacutezesrdquo (δικασταί)
do auditoacuterio cristatildeo pois seu preteacuterito precisa de ser desenodoado Destarte ao narrar suas
desventuras pregressas confessando-se a Deus e aos homens potildee em destaque seja um Tu
divino que eacute tambeacutem a terceira pessoa discursiva e seu referente pois eacute dele que se fala seja
um tu humano semelhante a si seu leitor Pelo que loacutegos ecircthos e paacutethos se fazem necessaacuterios
de modo temperado segundo as tarefas e os objetivos que se desdobram a cada passo da obra
Tendo pois construiacutedo um ecircthos confiaacutevel a partir de suas gestas pregressas segundo
a taacutebua de valores cristatildeos como a humildade ou a misericoacuterdia por exemplo pode Agostinho
direcionar daiacute em diante sua atenccedilatildeo para o futuro ao modo do gecircnero deliberativo a fim de
comover as almas exortando-as (προτρέπω) seja a voltar-se para Deus o Fim uacuteltimo ou Bem
supremo que se louva pelos recursos do loacutegos seja dissuadindo-as (ἀποτρέπω) de seguir o
caminho do mal que equivale a um afastamento deste mesmo Fim uacuteltimo o que eacute tambeacutem
tarefa do paacutethos quando entatildeo o discurso potildee em destaque a segunda pessoa requerendo um
6 (Conf 235) ldquoCui narro haec neque enim tibi deus meus sed apud te narro haec generi meo generi
humano quantulacumque ex particula incidere potest in istas meas litterasrdquo
139
domiacutenio sobre as paixotildees a fim de conduzir o auditoacuterio ao objetivo (τέλος) almejado que
como se disse eacute sempre futuro (περὶ τῶν μελλόντων) Todavia se natildeo se delibera tendo em
vista o fim que se persegue (οὐ περὶ τοῦ τέλος) em conformidade com o que diz Aristoacuteteles
e sim aquilo que leva ateacute ele (ἀλλὰ περὶ τῶν πρὸς τὸ τέλος) (1352a15-19) ou seja os meios
os quais por sua vez residem nas accedilotildees (κατὰ τὰς πράξεις) tem-se como sequecircncia necessaacuteria
que 1 o uacutetil serve a um propoacutesito ulterior um fim e que 2 se o fim for bom o uacutetil natildeo apenas
levaraacute a esse bem mas seraacute tambeacutem de algum modo bom ainda que mediatamente e em menor
grau Daiacute que natildeo apenas o uacutetil em favor de que se delibera seja bom mas tambeacutem a praacuteksis
contraacuteria o seja a saber a rejeiccedilatildeo do nocivo do inuacutetil E com efeito seja para Aristoacuteteles ou
Agostinho o Bem (ἀγαθόν) uacuteltimo ou supremo pode ser definido como sendo aquilo que se
deve buscar (αἱρετόν) em vista de si mesmo (αὑτοῦ ἕκενα) e natildeo de algo ulterior (καὶ μὴ
ἄλλου) (1363b12-14) Esse Fim (τέλος) que coincide com o Bem supremo eacute aquilo em vista
de que (οὗ ἕνεκα) todo o resto (τὰ ἄλλα) se faz (1363b16-17) Em se admitindo com o autor
da Retoacuterica que esse Fim uacuteltimo embora sendo desejado natildeo seja objeto imediato de delibe-
raccedilatildeo e sim as accedilotildees (πράξεις) por meio de que se possa chegar a ele percebe-se sem muito
esforccedilo que as deliberaccedilotildees acerca deste Fim chame-se eudaimoniacutea ou Ser supremo fazem-se
sobremodo a partir de accedilotildees que podem ser virtuosas quando entatildeo se aproxima do objetivo
ou viciosas quando dele se afasta restando manifesto e inconteste o potencial tanto do ecircthos
como do paacutethos no tratamento daquilo que para Agostinho se traduz em princiacutepio pela uita
beata e posteriormente pelo Saacutebado eterno seja nas quatro virtudes cardeais justiccedila tempe-
ranccedila prudecircncia e coragem ou nas trecircs teologais feacute esperanccedila e caridade a serem praticadas
nesta vida tendo em vista o Bem uacuteltimo e supremo Deus seja por outra na comoccedilatildeo necessaacuteria
das almas que se deve aproximar desta mesma uita beata ou afastar da uita misera sem perder
de vista o fim uacuteltimo que se almeja
E se o deliberativo tem sua funccedilatildeo na exortaccedilatildeo tampouco se faz ausente da obra o
gecircnero judiciaacuterio que contempla sobremodo accedilotildees de acusaccedilatildeo (κατηγορία) e de defesa
(ἀπολογία) (1358b) De fato que faz Agostinho na parte dita biograacutefica da obra enquanto
narra suas desventuras preteacuteritas senatildeo acusar-se de seus erros como a experiecircncia entre os
maniqueus entre os ceacuteticos ou mesmo as aventuras ditas libidinosas em Cartago ou entatildeo
fazer a apologia da Graccedila divina da continecircncia da conversatildeo de sua matildee (ao contraacuterio do pai
que ele prefere acusar) Acusaccedilatildeo e defesa portanto seja de atos seus preteacuteritos (περὶ τῶν
γεγενημένων) (1358b5) seja de doutrinas ou ideias que reputa natildeo apenas inimigas do cami-
140
nho que leva ao Fim uacuteltimo por ele eleito mas tambeacutem antagocircnicas agrave proacutepria concepccedilatildeo des-
posada deste Ser supremo como o dualismo maniqueu por uma ou o ceticismo de tipo neoa-
cadecircmico por outra que perigosamente ameaccedilava uma das proacuteprias virtudes teologais a natildeo
dizer duas feacute e a esperanccedila por meio duma descrenccedila radical na possibilidade de acesso a
noccedilotildees fundamentadas acerca do verdadeiro
E se se podem perceber nuanccedilas do deliberativo e do judiciaacuterio na exortaccedilatildeo ou dissu-
asatildeo na acusaccedilatildeo e na defesa muito mais no caso do gecircnero predominante expresso pelas Con-
fissotildees o epidiacutectico que segundo Aristoacuteteles compreende tanto o louvor (ἔπαινος) como a
censura (ψόγος) (1358b12-3) De fato que faz Agostinho ao longo das Confissotildees senatildeo cen-
surar o que afasta de Deus louvando o que dele aproxima o homem censurar o pecado lou-
vando seu contraacuterio as virtudes fazer o elogio da vida feliz (beata uita) vituperando seu
oposto a infeliz (misera) E mesmo quando censura seu objetivo natildeo eacute senatildeo louvar louvar o
que se edifica como antipodal daquilo que se estaacute censurando pois natildeo se trata de discorrer
sobre o viacutecio sobre o torto sobre o caminho errado que se natildeo deve percorrer numa palavra
natildeo se trata de discorrer sobre o mal porque ele natildeo existe (entenda-se o mal ontoloacutegico) Ao
contraacuterio trata-se de louvar o que Eacute o Ser por excelecircncia Deus e toda a sua obra cujo paro-
xismo natildeo eacute outro senatildeo o momento em que cria o homem Paradoxal seria pois limitar-se ao
vitupeacuterio o que equivaleria a ressaltar apenas e tatildeo somente aquilo que natildeo possui existecircncia
real o mal ou antisser7 como quem escrevesse um livro sobre o que natildeo eacute As Confissotildees
portanto empreendem sobretudo um discurso de louvor que se bem pode denominar filosofia
do louvor a qual se enquadra perfeitamente no gecircnero epidiacutectico cuja tocircnica eacute dada pelo loacutegos
enquanto referente aquilo de que se fala (περὶ οὗ λέγει) (1358b1) referente de muacuteltiplos sen-
tidos que se pode compreender natildeo apenas como a Palavra que eacute Deus mas tambeacutem a palavra
de Deus a palavra sobre a palavra de Deus a palavra sobre o Deus que eacute Palavra e profere
palavras embora esse mesmo referente enquanto Verbo divino seja inefaacutevel donde ser neces-
saacuterio que esse loacutegos seja tambeacutem linguagem nos recursos retoacutericos precisos a que se diga o
indiziacutevel
Todos os trecircs gecircneros portanto prestam auxiacutelio reciacuteproco pois quem louva no presente
deve fazecirc-lo tambeacutem por meio das lembranccedilas do passado (ἀναμιμνήσειν τὰ γενόμενα) ou das
conjecturas e esperanccedilas futuras (προεικάζειν τὰ μέλλοντα) e o justo por sua vez objeto das
reflexotildees judiciaacuterias pode igualmente ser feio ou belo uacutetil ou inuacutetil mateacuteria dos outros dois
7 O que de esdruacutexulo possa haver neste composto se deve agraves novas regras do Acordo Ortograacutefico de 1990 O
que se quis expressar eacute o contraacuterio do ser ldquoanti-serrdquo que natildeo mais se grafa assim com hiacutefen
141
gecircneros assim como uacutetil e o inuacutetil mateacuteria de deliberaccedilatildeo que podem ser justos ou seu con-
traacuterio belos ou natildeo ou ainda o bom e o mau que podem muito bem ser inuacuteteis ou natildeo justos
ou natildeo em conformidade com o que diz Aristoacuteteles justificando assim a mistura dos gecircneros
retoacutericos (1358b27-1359a4) Poreacutem o gecircnero epidiacutectico parece ser o mais completo dos trecircs
uma vez nem focar demasiado no passado como o judiciaacuterio tampouco no futuro como o
deliberativo ao contraacuterio ao discorrer acerca do presente (ὁ παρὼν χρόνος) louvando ou
censurando as coisas que de fato satildeo (κατὰ τὰ ὐπάρχοντα) eacute-lhe permitido voltar-se tanto agraves
reminiscecircncias preteacuteritas quanto ao que pode vir a ser como se percebe nitidamente do primeiro
ao derradeiro livro das Confissotildees que nem se limitam a perscrutar o passado tampouco a
especular esperanccedilosamente sobre o futuro ou mesmo sobre o presente na investigaccedilatildeo do
proacuteprio rememorar quando entatildeo empreendem o louvor do que eacute foi e haacute de ser de par com o
do que sempre e indefectivelmente eacute
Uma uacuteltima palavra acerca da retoacuterica se faz necessaacuteria antes de voltar a atenccedilatildeo para
os trecircs gecircneros de provas teacutecnicas nas Confissotildees Quando se propotildee apresentar uma resposta
diz Michel Meyer (2010 p 53) a retoacuterica tende a ocultar o problemaacutetico fazendo com que a
questatildeo de base subjacente a todo discurso questatildeo em torno de que se reuacutenem ou dispersam
as partes pareccedila resolvida No entanto isso de modo nenhum eacute o que se percebe na retoacuterica
filosoacutefica de Agostinho que opera agraves avessas natildeo projetando de modo nenhum esconder o
problemaacutetico e sim permitindo lidar com ele dizendo-o embora sua insoluacutevel inefabilidade E
de fato se se tome por base a proacutepria definiccedilatildeo da retoacuterica elaborada pelo mesmo Meyer (2012
p 21) como sendo a negociaccedilatildeo entre a distacircncia criada por um dado problema que se constitui
sua proacutepria medida percebe-se no que tange ao Ser natildeo haver distacircncia entre interlocutores
para quem a sua inefabilidade eacute paciacutefica quer se o identifique com a Divindade cristatilde ou natildeo
E em natildeo havendo essa distacircncia qual a finalidade da retoacuterica sendo ela a suposta negociaccedilatildeo
que se estabelece em funccedilatildeo dum dado problema que se mede exatamente por essa distacircncia
inexistente Logo em natildeo havendo uma distacircncia que se constituiacutesse a medida do problemaacutetico
desnecessaacuterio seria argumentar inexistindo o problema Contudo isso se refere de modo espe-
cial agraves retoacutericas forense e deliberativa natildeo agrave epidiacutectica e menos ainda a epidiacutectica com finali-
dade filosoacutefica como se daacute no caso de Agostinho Nas Confissotildees a distacircncia que se quer
negociar eacute a que se supotildee entre o conhecido desconhecimento de Deus e seu desconhecido
conhecimento ou seja a distacircncia entre o nada que se pode conhecer de Deus e o tudo que se
desconhece entre o nada que dele se pode dizer e o tudo que se natildeo diz E como essa distacircncia
142
eacute inegociaacutevel resta agrave retoacuterica simular a edificaccedilatildeo duma estrutura especial a linguagem per-
mitindo que pela proacutepria expressatildeo do paradoxo do estranhamento da perplexidade se diga
sem dizer e se natildeo diga dizendo Numa palavra a retoacuterica permite que Agostinho estique a
corda do arco de seu dizer para aleacutem da tensatildeo do compreensiacutevel apodiacutectico para aleacutem do
alcance da razatildeo que seja capaz carreando o leitor consigo de tangenciar o suprarracional a
natildeo dizer irracional pois natildeo desprovido de razatildeo e sim muito aleacutem dela
A primeira das provas da arte ecircthos
Aleacutem das provas loacutegicas que envolviam mateacuterias e meacutetodos cujo apelo se voltava pri-
mordialmente a natildeo dizer exclusivamente para a razatildeo a retoacuterica reconhecia outros meios de
prova pois se dera conta havia muito de que as pessoas natildeo satildeo apenas dotadas de capacidade
racional mas tambeacutem de sentimentos e de vontade pelo que se fazia necessaacuterio lidar com elas
natildeo como deveriam ser mas como realmente eram lembram Corbett e Connors (1999 p 72)
Destarte tomando por base a definiccedilatildeo aristoteacutelica de que a retoacuterica eacute a arte de descobrir todos
os meios possiacuteveis de persuasatildeo8 torna-se oacutebvio o recurso a tudo aquilo que se comprove efi-
ciente para esse fim Neste sentido afianccedilam esses autores o apelo eacutetico pode ser mais eficaz
que o apelo agrave razatildeo pois
mesmo o mais engenhoso e sensato apelo agrave razatildeo pode fracassar diante de ouvidos
amoucos se a audiecircncia reagiu desfavoravelmente ao caraacuteter do orador O apelo eacutetico
eacute especialmente importante no discurso retoacuterico porque aqui estamos lidando com
assuntos acerca dos quais eacute impossiacutevel ter-se certeza absoluta e em que as opiniotildees
satildeo divididas
Com efeito o ecircthos prova teacutecnica que se erige a partir do caraacuteter moral do orador segundo
reconhecia Aristoacuteteles (1356a13) constitui-se no meio mais eficaz de prova (κυριωτάτην ἔχει
πίστιν τὸ ἦθος)
Quintiliano por sua vez em suas Instituiccedilotildees Oratoacuterias (3813) adotando integral-
mente a teoria aristoteacutelica argumenta que dos trecircs gecircneros de discurso o deliberativo era o que
mais necessitava do apelo eacutetico ou seja o discurso que mais se apoiava no caraacuteter do orador
que ele denominava auctoritas
Nas deliberaccedilotildees poreacutem a autoridade eacute o que possui maior valor Com efeito natildeo
apenas deve ser considerado muitiacutessimo prudente como tambeacutem muitiacutessimo virtuoso
todo aquele que deseje que todos acreditem nos seus pensamentos acerca das coisas
8 (1355b25-6) ldquoSeja entatildeo a retoacuterica a faculdade de considerar acerca de cada coisa o que eacute possivelmente
persuasivordquo (ἔστω δὴ ἡ ῥητορικὴ δύναμις περὶ ἕκαστον τοῦ θεωρῆσαι τὸ ἐνδεχόμενον πιθανόν)
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proveitosas e dignas de honra [] natildeo haacute quem negue que as deliberaccedilotildees satildeo feitas
segundo os caracteres dos oradores9
Em conformidade com o que se argumentou um pouco antes a partir das consideraccedilotildees do
proacuteprio Aristoacuteteles acerca da mistura de gecircneros retoacutericos (1358b27-1359a4) sobre a predomi-
nacircncia do gecircnero epidiacutectico nas Confissotildees eacute perceptiacutevel natildeo apenas a importacircncia do apelo
eacutetico que natildeo eacute das menores por tratar-se duma obra primordialmente na primeira pessoa e
que sob certo ponto de vista quer falar de si mas principalmente pelo que se disse acerca de
um dos objetivos da obra de caraacuteter ldquodeliberativordquo ou antes de caraacuteter ldquopastoralrdquo de mover
as almas para Deus (conuersio ad deum) ao modo dum loacutegos protreacuteptico afastando-as do pe-
cado e de tudo que as manteacutem distantes do Bem (auersio a bono) objetivo que se cumpre
escorado no caraacuteter eacutetico que se esforccedilou por burilar ao longo primordialmente dos livros ditos
autobiograacuteficos da obra De fato natildeo obteacutem ecircxito na pretensatildeo de exortar (προτρέπω) para
Deus senatildeo aquele que se deixou dissuadir (ἀποτρέπω) do caminho do pecado que compro-
vou sua humildade (humilitas) na aceitaccedilatildeo natildeo do poder de seu livre-arbiacutetrio e sim da Graccedila
divina cujas Justiccedila e Misericoacuterdia se amalgamam na Sabedoria una e indivisiacutevel do Ser ao
inveacutes de se anularem pela contradiccedilatildeo Natildeo se trata de reconhecer-se purificado trata-se mui-
tiacutessimo ao contraacuterio de reconhecer-se pecador carente da Graccedila e incapacitado de autossalva-
ccedilatildeo numa palavra trata-se de diminuir-se ao modo do ldquoesvaziamentordquo (κένωσις) de Cristo
que embora possuindo uma forma divina (ἐν μορφῇ θεοῦ) esvaziou-se a si mesmo segundo
Paulo assumindo uma forma de escravo e fazendo-se semelhante aos homens pelos quais se
humilhou e obedientemente deixou-se matar na cruz10 Esse o ecircthos cristatildeo portador das virtu-
des dignas de imitaccedilatildeo invertidas quanto pudessem parecer a um auditoacuterio pagatildeo da eacutepoca
para o qual nem a misericoacuterdia tampouco a humildade eram considerados valores morais dese-
jaacuteveis e sim fraquezas despreziacuteveis
O orador persuade por seu caraacuteter moral explicava Aristoacuteteles (1356a5) quando seu
discurso eacute de tal modo elaborado que seja capaz de tornaacute-lo digno de credibilidade um homem
em quem pareccedila ser possiacutevel confiar Essa credibilidade contudo natildeo se constroacutei por meio de
elementos extratextuais de ideias preacute-concebidas acerca da conduta eacutetica do orador e sim atra-
veacutes do discurso (1356a8) donde ser considerado o ecircthos uma prova de caraacuteter teacutecnico fruto da
9 Inst oratoriae (3813) ldquoValet autem in consiliis auctoritas plurimum nam et prudentissimus esse haberique
et optimus debet qui sententiae suae de utilibus atque honestis credere omnes uelit [] consilia nemo est qui
neget secundum mores darirdquo 10 Paulo (Fl 25-8) ldquoΤοῦτο φρονεῖτε ἐν ὑμῖν ὃ καὶ ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων οὐχ
ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ ἀλλὰ ἑαυτὸν ἐκένωσεν μορφὴν δούλου λαβών ἐν ὁμοιώματι ἀνθρώπων γενόμενοςmiddot καὶ σχήματι εὑρεθεὶς ὡς ἄνθρωπος ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν γενόμενος ὑπήκοος μέχρι θανάτου θανάτου δὲ σταυροῦrdquo
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arte Isso se daacute explica o filoacutesofo porque quando se estaacute tratando de temas de caraacuteter geral via
de regra a confianccedila se estabelece sobre as opiniotildees das pessoas cujo valor eacute notoacuterio poreacutem
quando os temas satildeo incertos duvidosos (τὸ ἀμφιδοξεῖν) aiacute entatildeo como que desprovido de
alternativas resta ao auditoacuterio tatildeo soacute a confianccedila quase que total e irrestrita (παντελῶς) na-
queles cujos caracteres ou comprovou-se destacar-se ou lograram aparentar fazecirc-lo E sobre
que versam as Confissotildees em linhas gerais como jaacute se apontou antes senatildeo sobre o tema natildeo-
apodiacutectico por excelecircncia Deus Donde ser liacutecito dizer que pelo prisma da retoacuterica Agostinho
empreende um enorme esforccedilo de construccedilatildeo dum ecircthos apropriado a falar de Deus E de fato
se se pretende falar de tema natildeo apenas duvidoso retoacuterico mas inefaacutevel como o Ser de que
modo evadir-se do estribo do ecircthos Se o tema fosse apodiacutectico o caraacuteter do orador talvez
restasse menos relevante poreacutem natildeo num tema em que as provas demonstrativas satildeo pratica-
mente inexistentes
Para ressaltar o caraacuteter moral de algueacutem que se queira elogiar seja o do proacuteprio orador
ou natildeo lembra Aristoacuteteles (1367b22-27) eacute preciso associar as suas accedilotildees (as quais se empre-
ende louvar) agraves suas intenccedilotildees a fim de demonstrar seu valor porque o louvor (ἔπαινος) se tira
das accedilotildees (ἐκ τῶν πράξεων) desde que este aja em conformidade com suas determinaccedilotildees
morais (κατὰ προαίρεσιν) E se o homem de valor age segundo suas proacuteprias determinaccedilotildees
depreende-se que o homem cujo valor eacute nulo aja determinado isto eacute conduzido pelo destino
pela sorte (ἀπὸ τύχης) e que o homem cujo valor eacute repreensiacutevel exemplo que o filoacutesofo natildeo
daacute mas cujo raciociacutenio permite avanccedilar agiria tambeacutem motivado por suas determinaccedilotildees mo-
rais as quais contudo seriam maacutes O que importa no que tange ao ecircthos eacute que se deve mostrar
que aquele que se estaacute louvando age de acordo com suas determinaccedilotildees e natildeo ao acaso o que
lhe tiraria todo o meacuterito meacuterito que caberia entatildeo agrave fortuna (τύχη) uma vez que as accedilotildees natildeo
praticadas de modo voluntaacuterio natildeo satildeo meritoacuterias em conformidade com o que Agostinho tam-
beacutem admitia11 Portanto o conselho de Aristoacuteteles ao orador que quer construir o seu proacuteprio
ecircthos ou o de algum outro eacute tornar todas as accedilotildees possiacuteveis inclusive as decorrentes da sorte
mdash o que natildeo seria nada honesto admite o filoacutesofo mdash fruto do meacuterito daquele que se quer
enaltecer o que seria sinal de homem resoluto decidido (σημεῖον ἀρετῆς εἶναι προαιρέσεως)
No entanto esse conselho natildeo apenas natildeo eacute seguido por Agostinho e pelo discurso cristatildeo de
modo geral como ao reveacutes o exato oposto eacute o que se potildee em praacutetica ao atribuir-se tudo agrave
Graccedila divina agrave bondade preexistente daquele que natildeo precisou de nenhuma das criaturas que
criou as quais jamais fizeram por merecer o dom da vida (Conf 1311) ldquoPorque antes que eu
11 O livre arbiacutetrio (11430101) ldquoIn uoluntate meritum sitrdquo
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existisse existias tu e eu nem existia para que me concedesses que eu existisserdquo12 Isso eacute feito
contudo natildeo em detrimento do ecircthos da construccedilatildeo dum caraacuteter digno de louvor e fidedigno
e sim para construir um caraacuteter cristatildeo ou seja um caraacuteter natildeo pautado pela taacutebua de valores
eacuteticos claacutessicos que atribuiacutea grande peso agrave gloacuteria agrave honra ao denodo guerreiro e agrave justiccedila
inflexiacutevel e fria da lei13 e sim para destacar o homem jaacute de tipo medieval manso e humilde de
coraccedilatildeo misericordioso ao ponto de voltar a outra face numa palavra homem cuja honra estava
na cruz e no sangue de seu Salvador e para o qual ldquoo insensato de Deusrdquo era ldquomais saacutebio que
os homens e o fraco de Deus mais forte que os homensrdquo14 O ecircthos pois que se quer construir
eacute o do homem de feacute que se deixa conduzir pela matildeo de Deus na praacutetica das virtudes ditas
teologais feacute esperanccedila e caridade (πίστις ἐλπίς ἀγάπη) (1Cor 1313) O homem comumente
se orgulha das coisas que faz por si proacuteprio (τοῖς διrsquo αὐτόν) lembra Aristoacuteteles mas natildeo se
orgulha do que o destino lhe trouxe (διὰ τύχην) (1368a3-4) Agostinho bastante ao contraacuterio
natildeo apenas natildeo se orgulha do que fez mas se arrepende amargamente preferindo ao inveacutes da
honra agradecer a Deus todo o bem que lhe sucedeu por seu intermeacutedio divino ldquoe assim Se-
nhor apagaste todos os meus merecidos males para que natildeo retribuiacutesses agraves minhas matildeos nas
quais te deixei e te antecipaste a todos os meus merecidos bens para que retribuiacutesses agraves tuas
matildeos com as quais me fizesterdquo15
Destarte das trecircs qualidades independentes de demonstraccedilatildeo (ἔξω τῶν ἀποδείξεων)
que Aristoacuteteles aponta (1378a) como necessaacuterias ao orador ainda que em aparecircncia somente a
fim de que seja convincente o que de modo principal se refere agraves assembleias ou ao conselho
instacircncias tiacutepicas de deliberaccedilatildeo na Greacutecia antiga 1 prudecircncia ou bom-senso (φρόνησις) 2
excelecircncia moral (ἀρετή) e 3 boa disposiccedilatildeo (εὔνοια) nenhuma delas guarda nas Confissotildees
a importacircncia que o estagirita lhe atribui a natildeo ser que se considerem as virtudes ditas teologais
como pertencentes ao rol das aretaiacute aristoteacutelicas o que seria no miacutenimo um grave anacronismo
Por fim a Retoacuterica destaca o papel do ecircthos na disposiccedilatildeo das mateacuterias (τάξις) de modo
especiacutefico no proecircmio (exordium) Nos discursos do gecircnero judiciaacuterio por exemplo aquele que
se defende (ἀπολογουμένῳ) deve fazecirc-lo logo no proecircmio (πρῶτον) antes da acusaccedilatildeo ao
contraacuterio de quem acusa que deve fazecirc-lo no final (τῷ ἐπιλόγῳ) porque aquele que defende
deve construir seu ecircthos no iniacutecio antes da acusaccedilatildeo (πρὸς τὴν διαβολήν) (1415a29-30) a
12 Confissotildees (1311) ldquoquia et priusquam essem tu eras nec eram cui praestares ut essemrdquo 13 Em conformidade com a ideia veiculada pela maacutexima romana ldquodura sed lexrdquo 14 Paulo (1Cor 121-25) ldquoὅτι τὸ μωρὸν τοῦ θεοῦ σοφώτερον τῶν ἀνθρώπων ἐστὶν καὶ τὸ ἀσθενὲς τοῦ
θεοῦ ἰσχυρότερον τῶν ἀνθρώπωνrdquo 15Confissotildees (1311) ldquoEtenim domine deleuisti omnia mala merita mea ne retribueres manibus meis in
quibus a te defeci et praeuenisti omnia bona merita mea ut retribueres manibus tuis quibus me fecistirdquo
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fim de livrar-se de todo impedimento ou embaraccedilo como faz Agostinho nas Confissotildees utili-
zando-se dos primeiros livros ditos biograacuteficos para tanto Se o acusador deve criar o precon-
ceito contra o acusado no fim para que permaneccedila bem presente na memoacuteria dos juiacutezes o
defendente deve desvencilhar-se do preconceito logo no iniacutecio a fim de que seus argumentos
satildeo sejam prejudicados pela imagem da pecha moral que traz consigo Natildeo eacute apenas para o
ecircthos que o proecircmio eacute importante mas tambeacutem para o paacutethos pois eacute preciso tornar o auditoacuterio
bem disposto em relaccedilatildeo ao orador se se estaacute defendendo ou tornaacute-lo indisposto contra a outra
parte (1415a-34-36) se se estaacute acusando Para isso conta muito a aparecircncia de respeitabilidade
do falante pois ldquoas pessoas respeitaacuteveis recebem mais atenccedilatildeordquo diz Aristoacuteteles Pelo que o
orador deve esforccedilar-se por conseguir duas coisas do auditoacuterio 1 amizade (φίλον) e 2 com-
paixatildeo (ἐλεεινόν) (1415b22-28) tornaacute-lo amigo e compassivo fazendo-o crer que ele mesmo
o orador sente exatamente aquilo que censura ou louva ou seja que estaacute sendo sincero
(1415b28-29) Ora como falar da Graccedila de Deus sem que se recorra ao testemunho pessoal
pois a Graccedila diferentemente da recompensa ou do salaacuterio (merces) eacute distribuiacuteda gratuitamente
para o que por paradoxal pareccedila faz-se necessaacuterio ser pecador numa palavra estar desprovido
de qualquer meacuterito que o tornaria credor ao inveacutes de devedor meacuterito que poderia confundi-la
a Graccedila com pagamento ou retribuiccedilatildeo Evidente que se trata dum exagero pois os que tecircm
meacuterito natildeo estatildeo de modo nenhum excluiacutedos da Graccedila jaacute que natildeo faz muito sentido que natildeo
receba sem meacuterito16 senatildeo quem natildeo mereccedila
Seja como for esse ecircthos de sinceridade logra construir com bastante esmero Agostinho
ao reconhecer-se pecador devedor pequenino desprovido de meacuteritos e absolutamente depen-
dente da bondade da Providecircncia divina que se expressa pela Graccedila gratis
A segunda das provas da arte paacutethos
A movimentaccedilatildeo das emoccedilotildees (πάθος) embora uma prova (πίστις) que se diz teacutecnica
ou ldquoda arterdquo (ἔντεχνος) de modo aparentemente paradoxal natildeo tem que ver diretamente com
as provas demonstrativas ou com a causa em si e sim respeita aos juiacutezes (δικασταί) explica
Aristoacuteteles (1354a4-5)17 De fato o orador alcanccedila a persuasatildeo seja em que gecircnero for (o que
16 Isto eacute gratuitamente 17 Aristoacuteteles natildeo era muito simpaacutetico nem ao apelo eacutetico tampouco ao emocional que julgava ser um mal
necessaacuterio pois considerava errado manipular os sentimentos dos juiacutezes o que equivalia a corromper a proacutepria lei
que se tentava fazer valer ou de que se queria socorrer (1356a14) Argumento muito parecido esse (de destruir a
proacutepria lei a que se deveraacute recorrer depois) com o utilizado por Soacutecrates ao negar a proposta de fuga de Criacuteton no
diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo (50a-b) Pois bem no iniacutecio do tratamento da hupoacutekrisis (1403b22-) Aristoacuteteles
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natildeo exclui nem o epidiacutectico tampouco o deliberativo) mediatamente por meio dos ouvintes
(διὰ τῶν ἀκροατῶν) aqueles aos quais se dirige quando recorre ao paacutethos despertando ou
dirigindo suas emoccedilotildees (ὅταν εἰς πάθος) o que se faz pela accedilatildeo discursiva (ὑπὸ τοῦ λόγου)
Isso porque os juiacutezos (τὰς κρίσεις) dos ouvintes objetivo da accedilatildeo persuasiva variam sob a
influecircncia das emoccedilotildees tais como a dor (λύπη) a alegria (χαρά) a amizade (φιλία) o oacutedio
(μῖσος) etc Com efeito o orador natildeo tem por escopo a emoccedilatildeo do auditoacuterio em si mesma como
finalidade e sim a sua persuasatildeo a fim de que decida em favor de sua causa para o que as
emoccedilotildees cooperam vivamente como percebeu Aristoacuteteles ao dedicar grande parte do livro
segundo da Retoacuterica ao estudo das paixotildees da alma
Um dos meios mais eficazes para a movimentaccedilatildeo do paacutethos a fim de que se tenha ecircxito
no apelo emocional em vista dum fim ulterior natildeo satildeo as provas demonstrativas recomendadas
para o gecircnero apropriado (o judiciaacuterio no caso) o entimema e as maacuteximas provas que devem
ser descobertas na invenccedilatildeo e sim os recursos pertencentes a outra parte da retoacuterica a elocuccedilatildeo
(λέξις) Com efeito depois de encontrado o que dizer (εὕρεσις) e disposto as mateacuterias de modo
apropriado (τάξις) resta saber como dizecirc-lo Esse ldquocomordquo respeita sem duacutevida agrave forma do dis-
curso que se chama tambeacutem ldquoestilordquo poreacutem de modo nenhum se limita a isso como se fosse
apenas uma sua vestimenta Os recursos da elocuccedilatildeo para muito aleacutem da ornamentaccedilatildeo tecircm
forccedila persuasiva pois argumentam seja pela concisatildeo das figuras seja pelo ritmo e paralelismo
das construccedilotildees seja pelas imagens que evocam o que fazem de modo principal pondo em
destaque tanto o ecircthos como o paacutethos O ecircthos por exemplo no emprego do leacutexico que quando
recheado de estrangeirismos (ξένην ποιεῖν τὴν διάλεκτον) (1404b10-12) diz Aristoacuteteles con-
fere um ar de dignidade ao discurso promovendo por tabela o orador que se faz parecer digno
e nobre assim como aquilo que estaacute dizendo O paacutethos por sua vez quando o discurso eacute ldquoele-
vadordquo a um niacutevel suprarracional ou sublime pelo uso de recursos poeacuteticos dentre os quais se
destacam as figuras de repeticcedilatildeo como paralelismos epanalepses anadiploses antanaacuteclases
reconhece que tudo aquilo que respeita agrave apresentaccedilatildeo do discurso como voz volume tom altura ritmo harmo-
nia entre tais e que eacute muito importante nos certames dramaacuteticos e eacutepicos (τῶν ἀγώνων) quando entatildeo faz-se
necessaacuterio equilibrar esses elementos segundo cada uma das emoccedilotildees (πρὸς ἕκαστον πάθος) embora seja tam-
beacutem utilizado nas demais atividades poliacuteticas como assembleias deliberativas e tribunais o eacute apenas de modo
deploraacutevel Isso porque conquanto seja necessaacuterio mover as paixotildees do auditoacuterio e construir o caraacuteter do orador
discursivamente essa necessidade se deve tatildeo soacute agrave corrupccedilatildeo dos cidadatildeos (διὰ τὴν μοχθηρίαν τῶν πολιτῶν)
(1403b34-35) o que equivale a dizer do auditoacuterio (τοῦ ἀκροατοῦ) Assim sendo o recurso tanto ao ecircthos como
ao paacutethos deixa de ser questatildeo de correccedilatildeo (οὐκ ὀρθῶς) de certo ou errado passando a ser uma necessidade (ἀλλrsquo
ὡς ἀναγκαίου) Com efeito o justo (δίκαιον) seria defender acusar exortar e dissuadir movido apenas pelos
fatos (ἀγωνίζεσθαι τοῖς πράγμασιν) (1404a5-6) de maneira tal que o restante que Aristoacuteteles reputa fora da
demonstraccedilatildeo (ἔξω τοῦ ἀποδεῖξαι) ο que inclui ecircthos e paacutethos seria superfluidade (περίεργα ἐστίν) (1404a8)
Infelizmente poreacutem a realidade eacute que o orador precisa conhecer estes recursos a fim de poder defender-se e atingir
seus objetivos uma vez que os adversaacuterios certamente lanccedilam matildeo deles de modo quase sempre inescrupuloso
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paronomaacutesias antimetaacuteboles poliptotos etc E fique claro que dizer que Aristoacuteteles natildeo via com
bons olhos o (mau) recurso aos apelos eacutetico e pateacutetico nos tribunais natildeo significa dizer que
desprezasse os mecanismos da elocuccedilatildeo o que implicaria dizer que cresse o homem ser dotado
apenas de razatildeo excluiacutedos sentimentos e caraacuteter a natildeo dizer da vontade Ao contraacuterio Aristoacute-
teles bem reconhecia que em todo tipo de aprendizado (ἐν πάσῃ διδασκαλίᾳ) o estilo se faz
mateacuteria de certa importacircncia uma vez que algo se torna claro (πρὸς τὸ δηλῶσαι) por meio do
modo como eacute dito (ὡδὶ ἢ ὡδὶ εἰπεῖν) embora relegasse a questatildeo do estilo ao niacutevel da aparecircn-
cia (ἀλλrsquo ἅπαντα φαντασία ταῦτrsquo εστὶ) cuja finalidade seria apenas agradar o ouvinte (πρὸς
τὸν ἀκροατήν) ouvinte esse por sua vez cuja corrupccedilatildeo (μοχθηρία) seria a verdadeira causa
de tudo que natildeo eacute apodiacutectico na retoacuterica (1404a7-8) Em assim sendo o estilo (λέξις) seria um
mal necessaacuterio uma ferramenta que embora potencialmente injusta seria uacutetil para conferir
clareza ao discurso assim como todos os demais elementos de persuasatildeo natildeo-apodiacutecticos ou
extrademonstrativos E isso se justifica diz o filoacutesofo de modo peremptoacuterio porque ningueacutem
ensina a fazer geometria desse modo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) isto eacute nem pelo
recurso ao paacutethos nem pelo ecircthos tampouco por qualquer outra ferramenta indicada para a
elocuccedilatildeo como as figuras (1404a12) Compreende-se essa visatildeo deveras depreciativa da elo-
cuccedilatildeo por parte do filoacutesofo pois como ele mesmo diz no terceiro livro de sua Retoacuterica ao
empreender o tratamento da actio ou representaccedilatildeo do discurso (ὑπόκρισις) ateacute ao tempo da
escritura da obra natildeo havia ainda nenhuma arte isto eacute nenhum manual de retoacuterica voltado para
a mateacuteria (οὔπω δὲ σύγκειται τέχνη περὶ αὐτῶν) porque a leacuteksis soacute havia sido notada pou-
quiacutessimo antes (ἐπεὶ καὶ τὸ περὶ τὴν λέξιν ὀψὲ προῆλθεν) descaso que se justificava pelo fato
de o estilo mdash considerado entatildeo como mera ornamentaccedilatildeo do discurso mdash ser julgado inferior
(φορτικὸν) tema indigno das preocupaccedilotildees dum homem livre criacutetica que natildeo evita endossar o
filoacutesofo (καλῶς ὐπολαμβανόμενον) (1403b35-6)
A despeito desta postura criacutetica adotada por Aristoacuteteles e de seu juiacutezo negativo a respeito
do ecircthos e do paacutethos postura raramente admitida pelos estudiosos atuais da retoacuterica o que
importa para os fins deste artigo contudo eacute seu poder argumentativo uma vez que sua impor-
tacircncia natildeo pode ser negada seja ela justificada ou natildeo de par com a finalidade filosoacutefica que
lhes imprime o rhetor de Hipona Portanto justo ou natildeo (nos tribunais e assembleias) o fato
admitido por Aristoacuteteles eacute que a elocuccedilatildeo afeta sobremodo o paacutethos sendo de par com o ecircthos
reconhecido como a mais persuasiva (κυριωτάτη) das provas (1356a13) altamente eficaz para
os objetivos da argumentaccedilatildeo pois resta claro que por meio do estilo se consegue mover as
emoccedilotildees (1408a16) seja quando se fala com indignaccedilatildeo audaciosa (ὕβρις) seja com raiva
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(ὁργιζομένου) impiedade (ἀσεβή) ou vergonha (αἰσχρά) O estilo adequado (ἡ οἰκεία λέξις)
que eacute aquele em que os elementos do paacutethos (παθητική) e do ecircthos (ἠθική) satildeo proporcionais
(ἀνάλογον) aos temas subjacentes (τοῖς ὐποκειμένοις πράγμασιν) (1408a10-11) faz com
que um dado assunto seja mais persuasivo Aleacutem disso remata Aristoacuteteles o ouvinte sempre
simpatiza (συνομοπαθεῖ ὁ ἀκούων) com quem fala de modo emocional (παθητικῶς
λέγοντι) ainda que esse natildeo diga nada (κἂν μηθὲν λέγῃ) (1408a23-4)
Reconhecido o vigor (δύναμις) natildeo apenas pateacutetico mas tambeacutem argumentativo da elo-
cuccedilatildeo resta ver como Agostinho se utiliza de seus recursos nas Confissotildees a fim de atingir seus
objetivos numa palavra a fim de fazer filosofia Pois bem as descriccedilotildees que melhor instigam
as emoccedilotildees satildeo as que fazem apelo agrave imaginaccedilatildeo e aos sentidos descriccedilotildees viacutevidas de cenas e
eventos contam muito como o famigerado roubo das peras (Conf 249) a prisatildeo de Aliacutepio
(6914) ou a cena do jardim de Milatildeo (81125-27) por exemplo as inumeraacuteveis metaacuteforas e a
prosopopeia de oacutergatildeos humanos que passam a ser dotados de matildeos pernas ouvidos como as
matildeos do coraccedilatildeo que se estendem em prece a Deus os relatos de laacutegrimas pungentes que se
vertem repetidas vezes enfim descriccedilotildees essas que tecircm potencial enorme para despertar fortes
sentimentos Do mesmo modo o uso de hipeacuterboles e outras tantas figuras se faz extremamente
uacutetil para criar o efeito emocional desejado Todavia nada talvez seja tatildeo eficiente nesse sentido
quanto o vocabulaacuterio o uso de palavras carregadas de intensa conotaccedilatildeo pateacutetica E no apelo
agraves emoccedilotildees pode-se dizer esteja uma das chaves de leitura das Confissotildees ao menos retoacuterica
De fato a linguagem da obra estaacute repleta de figuras cujo efeito principal eacute o despertar dos
sentimentos Mas de quem e para quecirc A sua audiecircncia soacute pode ser depreendida de modo in-
direto por meio da linguagem do estilo e do tema o que natildeo se constitui tarefa das mais faacuteceis
por tratar-se de obra multifacetada de linguagem muito elaborada que prima pela sofisticaccedilatildeo
mas que natildeo despreza uma certa tonalidade menos erudita que se pode ateacute denominar em
alguma medida popular ou humilde De fato pelo recurso aos salmos e textos escrituraacuterios
com seu respectivo campo semacircntico permeado de expressotildees da liacutengua grega vulgar (κοινή)
traduzidas ou transliteradas em latim conhecidos de toda comunidade cristatilde natildeo apenas por
serem lidos mas principalmente por sua funccedilatildeo lituacutergica eacute sem duacutevida uma linguagem
(sermo) popular ou humilis todavia pelos mecanismos retoacutericos extremamente requintados e
pelas referecircncias a toda uma cultura filosoacutefica de par com uma argumentaccedilatildeo em muitas pas-
sagens nada singela especialmente nos livros 1 8 e de 9 a 13 pode-se considerar igualmente
elevadiacutessima Portanto humilde e elevada eacute a linguagem das Confissotildees constituindo em si
mesma um oximoro
150
Diante desse desafio de escrever tanto para a gente mais simples como para filoacutesofos
desafio que se exprime nesse caso pela linguagem supotildee-se que Agostinho natildeo tenha simples-
mente pretendido abaixar o registro de seu discurso descendo aos simples e pequeninos (ad
catechizandos rudes) muito ao contraacuterio ao que parece pretendia elevar-se ou melhor ser
elevado ao confessar-se arrependido penitenciando-se mas tambeacutem ao confessar sua feacute e seu
louvor enaltecendo e reconhecendo a graccedila de Deus em sua vida Em sendo assim ao ser ele-
vado por Deus pela confissatildeo pretende igualmente mover as almas incitando-lhes semelhante
elevaccedilatildeo ou quando natildeo o desejo de elevaccedilatildeo desejo de que se deixassem igualmente elevar
como ele confessava desejar o que se pode considerar sem duacutevida uma meta de caraacuteter pastoral
Portanto sua missatildeo quanto ao paacutethos eacute tambeacutem a de mover as almas agrave salvaccedilatildeo que
se pode sintetizar na vontade de ser elevado e de para lanccedilar matildeo duma contradiccedilatildeo merecer
por uma espeacutecie de ascese cataacutertica a graccedila divina a misericoacuterdia do Deus justiacutessimo Ora
disso decorre a possibilidade duma outra funccedilatildeo da linguagem extremamente comovente fruto
dos recursos da elocuccedilatildeo a que recorre Agostinho nas Confissotildees e interligada com essa funccedilatildeo
dita pastoral de elevar as almas uma funccedilatildeo que se pode compreender como simultaneamente
propedecircutica e filosoacutefica Com efeito se uma das funccedilotildees deste paacutethos que se diz de caraacuteter
pastoral pretende comover positiva e negativamente incitando a um soacute tempo o desejo de
salvaccedilatildeo e o de horror agrave perdiccedilatildeo o desejo de buscar Deus e de evitar o mal de buscar ser mais
pela proximidade do Ser supremo e de evitar ser menos ou deixar de ser pelo afastamento desse
mesmo Ser como se percebe sobremodo nos livros da parte considerada biograacutefica da obra o
que natildeo implica de modo algum a exclusatildeo dos restantes livros a outra funccedilatildeo por sua vez
relacionada intimamente agrave primeira de que se pode dizer seja consequecircncia natural que se
exacerba tambeacutem a partir dos recursos da elocuccedilatildeo e que como se disse tem caraacuteter prope-
decircutico compreende-se como uma funccedilatildeo de purificaccedilatildeo filosoacutefica de afastamento progressivo
das coisas deste mundo de afastamento da ldquocarnerdquo se se pode dizer tendo em vista o despren-
dimento rumo a uma vida mais espiritual de proximidade com o Ser o puro Inteligiacutevel que se
transubstancia por sua vez num projeto de vivecircncia cristatilde o que se destaca sobremodo a partir
do livro novo encontrando sua foz nos estertores do livro derradeiro Donde ser liacutecito afirmar
que os livros da parte biograacutefica das Confissotildees do primeiro ao oitavo tecircm tambeacutem essa fun-
ccedilatildeo de purificaccedilatildeo tanto das emoccedilotildees como da razatildeo ou seja de disciplinar ou exercitar asce-
ticamente a alma (exercitatio animi)18 a fim de que os leitores e ouvintes pudessem estar pre-
parados para o que havia de vir nos livros subsequentes E isso parece estar em harmonia com
18 Ἥ ἄσκησις ἥ τῆς ψυχῆς
151
o projeto filosoacutefico platocircnico-cristatildeo que Agostinho tinha para sua vida e que colocou em praacute-
tica desde os tempos preacute-batismais de Cassiciacuteaco ateacute ser interrompido pela sua consagraccedilatildeo
sacerdotal (391 dC) um projeto propedecircutico-purificador
E de fato se se pode aventar que esse projeto cataacutertico da razatildeo encontra seu ponto de
saiacuteda no expurgo do ceticismo de tipo neoacadecircmico como se percebe nos trecircs livros intitulados
Contra Academicos desenvolve-se sobremodo nas paacuteginas do diaacutelogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monoacutelogo com os Soliloacutequios obras do mesmo periacuteodo
Formato monoloacutegico esse denominado por Dupuy-Trudelle (1998 p 1198) ldquodesdobramentordquo
que eacute bem possiacutevel tenha servido de laboratoacuterio para as proacuteprias Confissotildees sugere a autora
refletindo a intenccedilatildeo de Agostinho apesar da excelecircncia da feacute de levar as exigecircncias da razatildeo
ateacute ao limite extremo num esforccedilo de purificaccedilatildeo num ir-aleacutem das paixotildees e desiludir-se sobre
si mesmo Ora estar iludido acerca de si mesmo natildeo eacute impedimento agrave feacute mas o eacute ao acesso agrave
convicccedilatildeo intelectual verdadeira Portanto para chegar-se ao conhecimento define esta autora
(ibid pp 1198-9) faz-se mister como condiccedilatildeo uacutenica a ldquolibertaccedilatildeo da razatildeo de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesmardquo libertaccedilatildeo a que os Soliloacutequios datildeo curso
Pode-se compreender que para desenlamear a consciecircncia dos similisavoirs libertaacute-
la de toda ilusatildeo psicoloacutegica ensinaacute-la que o desejo da verdade natildeo eacute ainda a posses-
satildeo da verdade permitir-lhe ir aleacutem do conflito de interesses que leva a opiniatildeo a
revoltar-se contra a verdade seja preciso mensurar a distacircncia entre o sujeito e si
mesmo Ora fazecirc-lo eacute um convite a mensurar a distacircncia entre si e o conhecimento de
Deus Eis entatildeo todo o sentido do exerciacutecio proposto pelo ldquosoliloacutequiordquo mensurar uma
e outra19
Natildeo parece haver duacutevidas de que os Soliloacutequios trazem em si de modo embrionaacuterio o estilo
que haveria de consagrar sobretudo a partir das Confissotildees quando entatildeo dispensa o combate
direto de ideias preferindo ldquodesdobrar-serdquo e deixar-se interrogar por si mesmo ainda que de
modo proleacuteptico continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas
Todavia eacute mais que provaacutevel que esta exigecircncia natildeo tenha surgido do nada e sim pertenccedila a
um projeto filosoacutefico maior que englobe as demais obras de Cassiciacuteaco sendo-lhe entatildeo um
como que desenvolvimento natural
No proacutelogo do De ordine (13-4) Agostinho argumenta que o homem por ser um des-
conhecido de si mesmo natildeo consegue perceber a ordem que reina em todo o universo ordem
providencial em que ele estaacute inserido e que para conseguir conhecer-se seria necessaacuterio entrar
em si mesmo ali permanecendo afastado dos sentidos lugar em que poderia entatildeo curar-se das
feridas que as opiniotildees vulgares infligem agrave alma seja pelo ldquofogordquo do ldquoisolamentordquo conforme
19 DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Les Confessions Paris Gal-
limard 1998 p 1206
152
se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
153
soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
154
As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
155
menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
156
Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
157
sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
158
(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
159
articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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135
pois seria esdruacutexulo (ἄτοπον) reconhece o filoacutesofo (1355a39-b2) se se considerasse vergo-
nhoso (αἰσχρόν) que o corpo natildeo pudesse defender-se a si mesmo mas que a mesma defesa
natildeo fosse facultada ao espiacuterito pela atividade mental-discursiva uma vez que o que caracteriza
o homem eacute muito mais a atividade intelectual que a fiacutesica5 Portanto embora desejasse intima-
mente restringir sua Retoacuterica ao tratamento das mateacuterias uacuteteis para o entimema (1354a5) que
eacute o silogismo retoacuterico como faz no primeiro livro segundo cada um dos gecircneros contudo uma
vez que cada um dos trecircs tipos de ouvintes relacionados respectivamente aos trecircs gecircneros dis-
cursivos eacute em si mesmo uma espeacutecie de juiz (κριτής) a quem cabe ajuizar seja do justo ou do
injusto do proveitoso ou do nocivo e do belo ou do feio numa palavra como a retoacuterica grosso
modo tem que ver com ldquojuiacutezosrdquo (ἕνεκα κρίσεώς ἐστιν ἡ ῥητορική) reconhece o filoacutesofo que
natildeo basta tornar o discurso apenas apodiacutectico (ἀποδεικτικός) ou criacutevel (πιστός) por meio das
provas exclusivamente demonstrativas (λόγος) como o entimema e os exemplos mas tambeacutem
saber como fazer com que o orador pareccedila ter um determinado caraacuteter (ἦθος) aleacutem de ser capaz
de pocircr os juiacutezes sejam quais forem num certo estado de espiacuterito (πάθος) Pelo que faz enorme
diferenccedila que o orador mostre-se possuidor de certas qualidades (τὸ ποίον τινα φαίνεσθαι τὸν
λέγοντα) e que seus ouvintes estejam dispostos de certo modo em relaccedilatildeo a ele pensando por
sua vez que ele tambeacutem esteja disposto de certo modo em relaccedilatildeo a eles No discurso delibe-
rativo eacute mais importante que o orador pareccedila ser portador dum caraacuteter ilibado confiaacutevel no
judiciaacuterio que os que iratildeo julgar estejam dispostos de modo favoraacutevel agrave causa e ao pleiteante
No epidiacutectico por sua vez os dois anteriores natildeo devem ser desprezados quando importa natildeo
apenas a construccedilatildeo dum certo caraacuteter mas tambeacutem a disposiccedilatildeo do auditoacuterio no que redunda
numa certa combinaccedilatildeo ecircthos-paacutethos que se deve submeter ao serviccedilo do loacutegos a fim de em-
preender o louvor ou a censura Em assim sendo maacuteximas (γνῶμαι) exemplos
(παραδείγματα) amplificaccedilotildees (αὐξήσεις) de toda sorte de par com as ferramentas da elocu-
ccedilatildeo (λέξις) como as figuras (σχήματα) e os tropos (τρόποι) se combinam natildeo apenas pela
beleza que podem conferir ao estilo mas principalmente por sua forccedila (δύναμις) argumentativa
o que os transforma em armas bastante eficazes tanto para o discurso de louvor como para o de
caraacuteter filosoacutefico
Conhecidos pois os gecircneros de discurso os auditoacuterios especiacuteficos de cada um junta-
mente com os tempos e juiacutezos das accedilotildees as provas teacutecnicas as tarefas objetivos e provas de-
monstrativas predominantes resta conhecer as trecircs grandes metas que devem ser cumpridas em
5 (1355a39-b2) ldquoἄτοπον εἰ τῷ σώματι μὴ δύνασθαι βοηθεῖν ἑαυτῷ λόγῳ δ᾿ οὐκ αἰσχρόν ὃ μᾶλλον
ἴδιόν ἐστιν ἀνθρώπου τῆς τοῦ σώματος χρείαςrdquo
136
cada uma das fazes de composiccedilatildeo do discurso 1 invenccedilatildeo (εὕρεσις ou inuentio) descobrir de
onde tirar as provas (ἐκ τίνων πίστεις ἔσονται) 2 disposiccedilatildeo (τάξις ou dispositio) ordenar
as partes do discurso isto eacute as provas encontradas na invenccedilatildeo (πῶς χρή τάξαι τὰ μέρη τοῦ
λόγου) 3 elocuccedilatildeo (λέξις ou elocutio) tratar do estilo (περὶ τὴν λέξιν) ou seja do modo de
apresentaccedilatildeo das ideias que foram encontradas e ordenadas (1403b6-8) Da primeira meta a
invenccedilatildeo ou descoberta das provas Aristoacuteteles tratou nos dois primeiros livros ao discorrer
sobre as mateacuterias adequadas ao entimema e aos exemplos de par com o que eacute uacutetil agrave construccedilatildeo
dos caracteres e o estudo detalhado das paixotildees da alma com vistas agrave afetaccedilatildeo dos juiacutezes Res-
taram apenas a disposiccedilatildeo das mateacuterias e a elocuccedilatildeo ou seja o tratamento do estilo o que o
filoacutesofo empreende fazer no terceiro e uacuteltimo livro da Retoacuterica
No que se refere ao estilo (περὶ τῆς λέξεως) Aristoacuteteles pondera que natildeo basta possuir
o quecirc se natildeo se souber como dizecirc-lo (ὡς δεῖ εἰπεῖν) (1403b16) o que se deve fazer sempre de
modo claro jaacute que a grande virtude da elocuccedilatildeo eacute a clareza (λέξεως ἀρετὴ σαφῆ εἶναι)
(1404b1-2) e o discurso que natildeo for claro natildeo cumpriraacute sua tarefa (1404b2-3) (οὐ ποιῆσει τὸ
ἑαυτοῦ ἔργον) Tendo as mateacuterias de persuasatildeo a seu dispor o orador deve cuidar da apresen-
taccedilatildeo desse material (λέξει διαθέσθαι) ou seja do estilo do discurso para entatildeo empregar a
forccedila (δύναμις) de accedilatildeo atualizando aquilo que se descobriu e figurou dum certo modo
(ὑπόκρισις) Essa atualizaccedilatildeo ou representaccedilatildeo do discurso hupoacutekrisis que em latim se deno-
mina actio refere-se agrave sua expressatildeo oral compreendendo questotildees de voz (φωνή) volume
(μέγεθος) harmonia (ἁρμονία) ritmo (ῥυθμός) e tom (τόνος) que pode ser agudo (ὀξύς)
grave (βαρύς) ou meacutedio (μέσος)
Por fim no que tange agrave disposiccedilatildeo das mateacuterias (περὶ τῆς τάξεως) cujo tratamento se
inicia no final do terceiro livro da Retoacuterica (1414a29) Aristoacuteteles resume em duas as partes
principais do discurso isso porque nem toda parte da divisatildeo tradicional respeitava a todo e
qualquer gecircnero 1 o estado da questatildeo (πρόθεσις) isto eacute a exposiccedilatildeo da causa (τὸ πρᾶγμα
εἰπεῖν) acerca de que se haacute de argumentar (περὶ οὗ) 2 a prova (πίστις) ou seja a demonstraccedilatildeo
(τὸ ἀποδεῖξαι) (1414a31-36) A divisatildeo tradicional por sua vez elenca as seguintes partes 1
proecircmio ou exoacuterdio (προοίμιον) 2 narraccedilatildeo (διήγησις) que se subdivide em 21 exposiccedilatildeo
da causa (πρόθεσις) e 22 refutaccedilatildeo (ἀντιδίκησις) 3 prova (πίστις) 4 peroraccedilatildeo ou conclusatildeo
(ἐπίλογος) destas contudo apenas o proecircmio o estado da questatildeo a prova e a peroraccedilatildeo se
aplicam a todos os gecircneros retoacutericos (1414b8-9)
Do que se disse natildeo se deve imaginar que o discurso filosoacutefico esteja fora do acircmbito
retoacuterico pois ainda que se trate do discurso de um soacute pretende sempre persuadir ou persuadir-
137
se de algo seja duma verdade ideia crenccedila ou praacutetica E todo aquele que deve ser persuadido
seja o proacuteprio autor do discurso ou um outro se faz indubitavelmente juiz (1391b11-12)
(ἁπλῶς κρίτης) Deste modo esteja-se disposto contra um oponente (πρὸς ἀμφισβητοῦντα)
ou contra uma teoria (πρὸς ὑπόθεσιν) eacute preciso uma vez e sempre recorrer agrave argumentaccedilatildeo
(τῷ λόγῳ ἀνάγκη χρῆσθαι) a fim de defender um ponto de vista ou destruir o seu contraacuterio
(1391b13-14) o que eacute apropriado ao gecircnero de discurso epidiacutectico acima de tudo (ὡσαύτως
ἐν τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) como se se estivesse argumentando diante de um verdadeiro juiz
(ὥσπερ πρὸς κρίτην) que no caso eacute o espectador (θεωρός) aquele que contempla observa
aprende agrave maneira dum disciacutepulo dum arguidor dialeacutetico ou do proacuteprio filoacutesofo se este estiver
apenas escrevendo
Os gecircneros retoacutericos nas Confissotildees consideraccedilotildees teoacutericas
Quando se estaacute diante de temas controversos que aceitam ao menos dois modos dife-
rentes de pensar como os temas tipicamente retoacutericos (1357a1-5) a demonstraccedilatildeo apodiacutectica
(ἀπόδειξις) raramente eacute possiacutevel diz Olivier Reboul (2000 p 27) natildeo sendo nada ldquocientiacuteficardquo
a exigecircncia de ldquorespostasrdquo de caraacuteter cientiacutefico como ocorre nas Confissotildees por exemplo
quando se quer falar das ldquocoisasrdquo de Deus Contudo entre a luz do que se pode apreender cien-
tificamente (e demonstrar apodicticamente) e a obscuridade da mais completa ignoracircncia acerca
do misteacuterio abissal do Ser encontra-se todo um universo de possibilidades retoacutericas cujo rei-
nado pertence ao argumento E se argumentar natildeo eacute senatildeo propor y para que se admita x como
bem o ilustra esse autor (ibid pp 91-2) que se poderia argumentar acerca do Ser enquanto
Ser (x) sem que se circunscrevesse a dizer de seus pseudopredicados (y) daquilo que apenas
eacute Recursos haacute poreacutem que permitem dizecirc-lo argumentando enquanto Ser ainda que de modo
ilusoacuterio obliacutequo silencioso a partir dos mecanismos que a arte retoacuterica oferece seja com o
auxiacutelio do ecircthos do paacutethos ou do loacutegos os trecircs gecircneros de provas ditas teacutecnicas
Um dos objetivos de Agostinho ao pretender falar de Deus tema indubitavelmente con-
troverso (ἀμφισβητήσιμος) na referida acepccedilatildeo aristoteacutelica isto eacute passiacutevel de disputa por ser
natildeo-apodiacutectico pelo que igualmente retoacuterico pode-se dizer seja pocircr em destaque primordial-
mente o loacutegos o que se faz sobretudo por meio dum discurso do gecircnero epidiacutectico em que
predomina a funccedilatildeo referencial da linguagem uma pseudoterceira pessoa discursiva melhor
compreendida como uma natildeo-pessoa ou seja aquilo de que se fala (περὶ οὗ λέγει) (1358b1)
Todavia jamais deixa de pretender comover (πάθος) poreacutem natildeo especificamente quando fala
138
com Deus ο ldquopara quemrdquo (πρὸς ὅν) (1388b1) pois o Ser divino enquanto segunda pessoa
discursiva eacute onisciente e embora deixe-se dalgum modo misterioso comover por causa de sua
misericoacuterdia por ser igualmente justo ele cujo juiacutezo eacute inexoraacutevel torna a tarefa quanto ao
paacutethos um tanto obstada Por isso os esforccedilos de Agostinho no sentido de comover devem vol-
tar-se nem sempre e de imediato a Deus e sim aos seus leitores o auditoacuterio cristatildeo a quem o
filoacutesofo confessa de fato dirigir-se (Conf 235) ldquoA quem estou relatando estas coisas Ora
natildeo a ti meu Deus e sim na tua presenccedila relato-as aos de meu gecircnero ao gecircnero humano por
pequenina a parcela dos que possam deparar com estes meus escritosrdquo6
Quer comover portanto aleacutem de fazer converter para Deus como se viu convertido
fazendo com que as almas se elevem movidas pela penitecircncia o que natildeo se faz senatildeo tendo em
vista uma accedilatildeo futura (περὶ τῶν μελλόντων) E se para falar de Deus carece dum loacutegos apro-
priado ao louvor (ἔπαινος) que eacute tambeacutem contemplaccedilatildeo (θεωρεῖν) contemplaccedilatildeo do Belo (τὸ
καλόν) e do Bem (τὸ ἀγαθόν) a comoccedilatildeo natildeo se faz sem os recursos do paacutethos tampouco
prescindindo do ecircthos a fim de edificar um caraacuteter penitente digno do arrependimento ou con-
versatildeo mental (μετάνοια) a que todo cristatildeo deve submeter-se antes de crer no Evangelho
como admoestava Cristo (Mc 114-15) ldquoArrependei-vos [= convertei-vos] e crede no Evange-
lhordquo (μετανοεῖτε καὶ πιστεύετε ἐν τῷ εὐαγγελίῳ) Portanto Agostinho carece tambeacutem de
construir sempre pelo discurso (διὰ τοῦ λόγου) seu ecircthos discorrendo acerca daquilo que de
edificante se passou consigo (περὶ τῶν γεγενημένων) (1358b5) para os ldquojuiacutezesrdquo (δικασταί)
do auditoacuterio cristatildeo pois seu preteacuterito precisa de ser desenodoado Destarte ao narrar suas
desventuras pregressas confessando-se a Deus e aos homens potildee em destaque seja um Tu
divino que eacute tambeacutem a terceira pessoa discursiva e seu referente pois eacute dele que se fala seja
um tu humano semelhante a si seu leitor Pelo que loacutegos ecircthos e paacutethos se fazem necessaacuterios
de modo temperado segundo as tarefas e os objetivos que se desdobram a cada passo da obra
Tendo pois construiacutedo um ecircthos confiaacutevel a partir de suas gestas pregressas segundo
a taacutebua de valores cristatildeos como a humildade ou a misericoacuterdia por exemplo pode Agostinho
direcionar daiacute em diante sua atenccedilatildeo para o futuro ao modo do gecircnero deliberativo a fim de
comover as almas exortando-as (προτρέπω) seja a voltar-se para Deus o Fim uacuteltimo ou Bem
supremo que se louva pelos recursos do loacutegos seja dissuadindo-as (ἀποτρέπω) de seguir o
caminho do mal que equivale a um afastamento deste mesmo Fim uacuteltimo o que eacute tambeacutem
tarefa do paacutethos quando entatildeo o discurso potildee em destaque a segunda pessoa requerendo um
6 (Conf 235) ldquoCui narro haec neque enim tibi deus meus sed apud te narro haec generi meo generi
humano quantulacumque ex particula incidere potest in istas meas litterasrdquo
139
domiacutenio sobre as paixotildees a fim de conduzir o auditoacuterio ao objetivo (τέλος) almejado que
como se disse eacute sempre futuro (περὶ τῶν μελλόντων) Todavia se natildeo se delibera tendo em
vista o fim que se persegue (οὐ περὶ τοῦ τέλος) em conformidade com o que diz Aristoacuteteles
e sim aquilo que leva ateacute ele (ἀλλὰ περὶ τῶν πρὸς τὸ τέλος) (1352a15-19) ou seja os meios
os quais por sua vez residem nas accedilotildees (κατὰ τὰς πράξεις) tem-se como sequecircncia necessaacuteria
que 1 o uacutetil serve a um propoacutesito ulterior um fim e que 2 se o fim for bom o uacutetil natildeo apenas
levaraacute a esse bem mas seraacute tambeacutem de algum modo bom ainda que mediatamente e em menor
grau Daiacute que natildeo apenas o uacutetil em favor de que se delibera seja bom mas tambeacutem a praacuteksis
contraacuteria o seja a saber a rejeiccedilatildeo do nocivo do inuacutetil E com efeito seja para Aristoacuteteles ou
Agostinho o Bem (ἀγαθόν) uacuteltimo ou supremo pode ser definido como sendo aquilo que se
deve buscar (αἱρετόν) em vista de si mesmo (αὑτοῦ ἕκενα) e natildeo de algo ulterior (καὶ μὴ
ἄλλου) (1363b12-14) Esse Fim (τέλος) que coincide com o Bem supremo eacute aquilo em vista
de que (οὗ ἕνεκα) todo o resto (τὰ ἄλλα) se faz (1363b16-17) Em se admitindo com o autor
da Retoacuterica que esse Fim uacuteltimo embora sendo desejado natildeo seja objeto imediato de delibe-
raccedilatildeo e sim as accedilotildees (πράξεις) por meio de que se possa chegar a ele percebe-se sem muito
esforccedilo que as deliberaccedilotildees acerca deste Fim chame-se eudaimoniacutea ou Ser supremo fazem-se
sobremodo a partir de accedilotildees que podem ser virtuosas quando entatildeo se aproxima do objetivo
ou viciosas quando dele se afasta restando manifesto e inconteste o potencial tanto do ecircthos
como do paacutethos no tratamento daquilo que para Agostinho se traduz em princiacutepio pela uita
beata e posteriormente pelo Saacutebado eterno seja nas quatro virtudes cardeais justiccedila tempe-
ranccedila prudecircncia e coragem ou nas trecircs teologais feacute esperanccedila e caridade a serem praticadas
nesta vida tendo em vista o Bem uacuteltimo e supremo Deus seja por outra na comoccedilatildeo necessaacuteria
das almas que se deve aproximar desta mesma uita beata ou afastar da uita misera sem perder
de vista o fim uacuteltimo que se almeja
E se o deliberativo tem sua funccedilatildeo na exortaccedilatildeo tampouco se faz ausente da obra o
gecircnero judiciaacuterio que contempla sobremodo accedilotildees de acusaccedilatildeo (κατηγορία) e de defesa
(ἀπολογία) (1358b) De fato que faz Agostinho na parte dita biograacutefica da obra enquanto
narra suas desventuras preteacuteritas senatildeo acusar-se de seus erros como a experiecircncia entre os
maniqueus entre os ceacuteticos ou mesmo as aventuras ditas libidinosas em Cartago ou entatildeo
fazer a apologia da Graccedila divina da continecircncia da conversatildeo de sua matildee (ao contraacuterio do pai
que ele prefere acusar) Acusaccedilatildeo e defesa portanto seja de atos seus preteacuteritos (περὶ τῶν
γεγενημένων) (1358b5) seja de doutrinas ou ideias que reputa natildeo apenas inimigas do cami-
140
nho que leva ao Fim uacuteltimo por ele eleito mas tambeacutem antagocircnicas agrave proacutepria concepccedilatildeo des-
posada deste Ser supremo como o dualismo maniqueu por uma ou o ceticismo de tipo neoa-
cadecircmico por outra que perigosamente ameaccedilava uma das proacuteprias virtudes teologais a natildeo
dizer duas feacute e a esperanccedila por meio duma descrenccedila radical na possibilidade de acesso a
noccedilotildees fundamentadas acerca do verdadeiro
E se se podem perceber nuanccedilas do deliberativo e do judiciaacuterio na exortaccedilatildeo ou dissu-
asatildeo na acusaccedilatildeo e na defesa muito mais no caso do gecircnero predominante expresso pelas Con-
fissotildees o epidiacutectico que segundo Aristoacuteteles compreende tanto o louvor (ἔπαινος) como a
censura (ψόγος) (1358b12-3) De fato que faz Agostinho ao longo das Confissotildees senatildeo cen-
surar o que afasta de Deus louvando o que dele aproxima o homem censurar o pecado lou-
vando seu contraacuterio as virtudes fazer o elogio da vida feliz (beata uita) vituperando seu
oposto a infeliz (misera) E mesmo quando censura seu objetivo natildeo eacute senatildeo louvar louvar o
que se edifica como antipodal daquilo que se estaacute censurando pois natildeo se trata de discorrer
sobre o viacutecio sobre o torto sobre o caminho errado que se natildeo deve percorrer numa palavra
natildeo se trata de discorrer sobre o mal porque ele natildeo existe (entenda-se o mal ontoloacutegico) Ao
contraacuterio trata-se de louvar o que Eacute o Ser por excelecircncia Deus e toda a sua obra cujo paro-
xismo natildeo eacute outro senatildeo o momento em que cria o homem Paradoxal seria pois limitar-se ao
vitupeacuterio o que equivaleria a ressaltar apenas e tatildeo somente aquilo que natildeo possui existecircncia
real o mal ou antisser7 como quem escrevesse um livro sobre o que natildeo eacute As Confissotildees
portanto empreendem sobretudo um discurso de louvor que se bem pode denominar filosofia
do louvor a qual se enquadra perfeitamente no gecircnero epidiacutectico cuja tocircnica eacute dada pelo loacutegos
enquanto referente aquilo de que se fala (περὶ οὗ λέγει) (1358b1) referente de muacuteltiplos sen-
tidos que se pode compreender natildeo apenas como a Palavra que eacute Deus mas tambeacutem a palavra
de Deus a palavra sobre a palavra de Deus a palavra sobre o Deus que eacute Palavra e profere
palavras embora esse mesmo referente enquanto Verbo divino seja inefaacutevel donde ser neces-
saacuterio que esse loacutegos seja tambeacutem linguagem nos recursos retoacutericos precisos a que se diga o
indiziacutevel
Todos os trecircs gecircneros portanto prestam auxiacutelio reciacuteproco pois quem louva no presente
deve fazecirc-lo tambeacutem por meio das lembranccedilas do passado (ἀναμιμνήσειν τὰ γενόμενα) ou das
conjecturas e esperanccedilas futuras (προεικάζειν τὰ μέλλοντα) e o justo por sua vez objeto das
reflexotildees judiciaacuterias pode igualmente ser feio ou belo uacutetil ou inuacutetil mateacuteria dos outros dois
7 O que de esdruacutexulo possa haver neste composto se deve agraves novas regras do Acordo Ortograacutefico de 1990 O
que se quis expressar eacute o contraacuterio do ser ldquoanti-serrdquo que natildeo mais se grafa assim com hiacutefen
141
gecircneros assim como uacutetil e o inuacutetil mateacuteria de deliberaccedilatildeo que podem ser justos ou seu con-
traacuterio belos ou natildeo ou ainda o bom e o mau que podem muito bem ser inuacuteteis ou natildeo justos
ou natildeo em conformidade com o que diz Aristoacuteteles justificando assim a mistura dos gecircneros
retoacutericos (1358b27-1359a4) Poreacutem o gecircnero epidiacutectico parece ser o mais completo dos trecircs
uma vez nem focar demasiado no passado como o judiciaacuterio tampouco no futuro como o
deliberativo ao contraacuterio ao discorrer acerca do presente (ὁ παρὼν χρόνος) louvando ou
censurando as coisas que de fato satildeo (κατὰ τὰ ὐπάρχοντα) eacute-lhe permitido voltar-se tanto agraves
reminiscecircncias preteacuteritas quanto ao que pode vir a ser como se percebe nitidamente do primeiro
ao derradeiro livro das Confissotildees que nem se limitam a perscrutar o passado tampouco a
especular esperanccedilosamente sobre o futuro ou mesmo sobre o presente na investigaccedilatildeo do
proacuteprio rememorar quando entatildeo empreendem o louvor do que eacute foi e haacute de ser de par com o
do que sempre e indefectivelmente eacute
Uma uacuteltima palavra acerca da retoacuterica se faz necessaacuteria antes de voltar a atenccedilatildeo para
os trecircs gecircneros de provas teacutecnicas nas Confissotildees Quando se propotildee apresentar uma resposta
diz Michel Meyer (2010 p 53) a retoacuterica tende a ocultar o problemaacutetico fazendo com que a
questatildeo de base subjacente a todo discurso questatildeo em torno de que se reuacutenem ou dispersam
as partes pareccedila resolvida No entanto isso de modo nenhum eacute o que se percebe na retoacuterica
filosoacutefica de Agostinho que opera agraves avessas natildeo projetando de modo nenhum esconder o
problemaacutetico e sim permitindo lidar com ele dizendo-o embora sua insoluacutevel inefabilidade E
de fato se se tome por base a proacutepria definiccedilatildeo da retoacuterica elaborada pelo mesmo Meyer (2012
p 21) como sendo a negociaccedilatildeo entre a distacircncia criada por um dado problema que se constitui
sua proacutepria medida percebe-se no que tange ao Ser natildeo haver distacircncia entre interlocutores
para quem a sua inefabilidade eacute paciacutefica quer se o identifique com a Divindade cristatilde ou natildeo
E em natildeo havendo essa distacircncia qual a finalidade da retoacuterica sendo ela a suposta negociaccedilatildeo
que se estabelece em funccedilatildeo dum dado problema que se mede exatamente por essa distacircncia
inexistente Logo em natildeo havendo uma distacircncia que se constituiacutesse a medida do problemaacutetico
desnecessaacuterio seria argumentar inexistindo o problema Contudo isso se refere de modo espe-
cial agraves retoacutericas forense e deliberativa natildeo agrave epidiacutectica e menos ainda a epidiacutectica com finali-
dade filosoacutefica como se daacute no caso de Agostinho Nas Confissotildees a distacircncia que se quer
negociar eacute a que se supotildee entre o conhecido desconhecimento de Deus e seu desconhecido
conhecimento ou seja a distacircncia entre o nada que se pode conhecer de Deus e o tudo que se
desconhece entre o nada que dele se pode dizer e o tudo que se natildeo diz E como essa distacircncia
142
eacute inegociaacutevel resta agrave retoacuterica simular a edificaccedilatildeo duma estrutura especial a linguagem per-
mitindo que pela proacutepria expressatildeo do paradoxo do estranhamento da perplexidade se diga
sem dizer e se natildeo diga dizendo Numa palavra a retoacuterica permite que Agostinho estique a
corda do arco de seu dizer para aleacutem da tensatildeo do compreensiacutevel apodiacutectico para aleacutem do
alcance da razatildeo que seja capaz carreando o leitor consigo de tangenciar o suprarracional a
natildeo dizer irracional pois natildeo desprovido de razatildeo e sim muito aleacutem dela
A primeira das provas da arte ecircthos
Aleacutem das provas loacutegicas que envolviam mateacuterias e meacutetodos cujo apelo se voltava pri-
mordialmente a natildeo dizer exclusivamente para a razatildeo a retoacuterica reconhecia outros meios de
prova pois se dera conta havia muito de que as pessoas natildeo satildeo apenas dotadas de capacidade
racional mas tambeacutem de sentimentos e de vontade pelo que se fazia necessaacuterio lidar com elas
natildeo como deveriam ser mas como realmente eram lembram Corbett e Connors (1999 p 72)
Destarte tomando por base a definiccedilatildeo aristoteacutelica de que a retoacuterica eacute a arte de descobrir todos
os meios possiacuteveis de persuasatildeo8 torna-se oacutebvio o recurso a tudo aquilo que se comprove efi-
ciente para esse fim Neste sentido afianccedilam esses autores o apelo eacutetico pode ser mais eficaz
que o apelo agrave razatildeo pois
mesmo o mais engenhoso e sensato apelo agrave razatildeo pode fracassar diante de ouvidos
amoucos se a audiecircncia reagiu desfavoravelmente ao caraacuteter do orador O apelo eacutetico
eacute especialmente importante no discurso retoacuterico porque aqui estamos lidando com
assuntos acerca dos quais eacute impossiacutevel ter-se certeza absoluta e em que as opiniotildees
satildeo divididas
Com efeito o ecircthos prova teacutecnica que se erige a partir do caraacuteter moral do orador segundo
reconhecia Aristoacuteteles (1356a13) constitui-se no meio mais eficaz de prova (κυριωτάτην ἔχει
πίστιν τὸ ἦθος)
Quintiliano por sua vez em suas Instituiccedilotildees Oratoacuterias (3813) adotando integral-
mente a teoria aristoteacutelica argumenta que dos trecircs gecircneros de discurso o deliberativo era o que
mais necessitava do apelo eacutetico ou seja o discurso que mais se apoiava no caraacuteter do orador
que ele denominava auctoritas
Nas deliberaccedilotildees poreacutem a autoridade eacute o que possui maior valor Com efeito natildeo
apenas deve ser considerado muitiacutessimo prudente como tambeacutem muitiacutessimo virtuoso
todo aquele que deseje que todos acreditem nos seus pensamentos acerca das coisas
8 (1355b25-6) ldquoSeja entatildeo a retoacuterica a faculdade de considerar acerca de cada coisa o que eacute possivelmente
persuasivordquo (ἔστω δὴ ἡ ῥητορικὴ δύναμις περὶ ἕκαστον τοῦ θεωρῆσαι τὸ ἐνδεχόμενον πιθανόν)
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proveitosas e dignas de honra [] natildeo haacute quem negue que as deliberaccedilotildees satildeo feitas
segundo os caracteres dos oradores9
Em conformidade com o que se argumentou um pouco antes a partir das consideraccedilotildees do
proacuteprio Aristoacuteteles acerca da mistura de gecircneros retoacutericos (1358b27-1359a4) sobre a predomi-
nacircncia do gecircnero epidiacutectico nas Confissotildees eacute perceptiacutevel natildeo apenas a importacircncia do apelo
eacutetico que natildeo eacute das menores por tratar-se duma obra primordialmente na primeira pessoa e
que sob certo ponto de vista quer falar de si mas principalmente pelo que se disse acerca de
um dos objetivos da obra de caraacuteter ldquodeliberativordquo ou antes de caraacuteter ldquopastoralrdquo de mover
as almas para Deus (conuersio ad deum) ao modo dum loacutegos protreacuteptico afastando-as do pe-
cado e de tudo que as manteacutem distantes do Bem (auersio a bono) objetivo que se cumpre
escorado no caraacuteter eacutetico que se esforccedilou por burilar ao longo primordialmente dos livros ditos
autobiograacuteficos da obra De fato natildeo obteacutem ecircxito na pretensatildeo de exortar (προτρέπω) para
Deus senatildeo aquele que se deixou dissuadir (ἀποτρέπω) do caminho do pecado que compro-
vou sua humildade (humilitas) na aceitaccedilatildeo natildeo do poder de seu livre-arbiacutetrio e sim da Graccedila
divina cujas Justiccedila e Misericoacuterdia se amalgamam na Sabedoria una e indivisiacutevel do Ser ao
inveacutes de se anularem pela contradiccedilatildeo Natildeo se trata de reconhecer-se purificado trata-se mui-
tiacutessimo ao contraacuterio de reconhecer-se pecador carente da Graccedila e incapacitado de autossalva-
ccedilatildeo numa palavra trata-se de diminuir-se ao modo do ldquoesvaziamentordquo (κένωσις) de Cristo
que embora possuindo uma forma divina (ἐν μορφῇ θεοῦ) esvaziou-se a si mesmo segundo
Paulo assumindo uma forma de escravo e fazendo-se semelhante aos homens pelos quais se
humilhou e obedientemente deixou-se matar na cruz10 Esse o ecircthos cristatildeo portador das virtu-
des dignas de imitaccedilatildeo invertidas quanto pudessem parecer a um auditoacuterio pagatildeo da eacutepoca
para o qual nem a misericoacuterdia tampouco a humildade eram considerados valores morais dese-
jaacuteveis e sim fraquezas despreziacuteveis
O orador persuade por seu caraacuteter moral explicava Aristoacuteteles (1356a5) quando seu
discurso eacute de tal modo elaborado que seja capaz de tornaacute-lo digno de credibilidade um homem
em quem pareccedila ser possiacutevel confiar Essa credibilidade contudo natildeo se constroacutei por meio de
elementos extratextuais de ideias preacute-concebidas acerca da conduta eacutetica do orador e sim atra-
veacutes do discurso (1356a8) donde ser considerado o ecircthos uma prova de caraacuteter teacutecnico fruto da
9 Inst oratoriae (3813) ldquoValet autem in consiliis auctoritas plurimum nam et prudentissimus esse haberique
et optimus debet qui sententiae suae de utilibus atque honestis credere omnes uelit [] consilia nemo est qui
neget secundum mores darirdquo 10 Paulo (Fl 25-8) ldquoΤοῦτο φρονεῖτε ἐν ὑμῖν ὃ καὶ ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων οὐχ
ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ ἀλλὰ ἑαυτὸν ἐκένωσεν μορφὴν δούλου λαβών ἐν ὁμοιώματι ἀνθρώπων γενόμενοςmiddot καὶ σχήματι εὑρεθεὶς ὡς ἄνθρωπος ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν γενόμενος ὑπήκοος μέχρι θανάτου θανάτου δὲ σταυροῦrdquo
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arte Isso se daacute explica o filoacutesofo porque quando se estaacute tratando de temas de caraacuteter geral via
de regra a confianccedila se estabelece sobre as opiniotildees das pessoas cujo valor eacute notoacuterio poreacutem
quando os temas satildeo incertos duvidosos (τὸ ἀμφιδοξεῖν) aiacute entatildeo como que desprovido de
alternativas resta ao auditoacuterio tatildeo soacute a confianccedila quase que total e irrestrita (παντελῶς) na-
queles cujos caracteres ou comprovou-se destacar-se ou lograram aparentar fazecirc-lo E sobre
que versam as Confissotildees em linhas gerais como jaacute se apontou antes senatildeo sobre o tema natildeo-
apodiacutectico por excelecircncia Deus Donde ser liacutecito dizer que pelo prisma da retoacuterica Agostinho
empreende um enorme esforccedilo de construccedilatildeo dum ecircthos apropriado a falar de Deus E de fato
se se pretende falar de tema natildeo apenas duvidoso retoacuterico mas inefaacutevel como o Ser de que
modo evadir-se do estribo do ecircthos Se o tema fosse apodiacutectico o caraacuteter do orador talvez
restasse menos relevante poreacutem natildeo num tema em que as provas demonstrativas satildeo pratica-
mente inexistentes
Para ressaltar o caraacuteter moral de algueacutem que se queira elogiar seja o do proacuteprio orador
ou natildeo lembra Aristoacuteteles (1367b22-27) eacute preciso associar as suas accedilotildees (as quais se empre-
ende louvar) agraves suas intenccedilotildees a fim de demonstrar seu valor porque o louvor (ἔπαινος) se tira
das accedilotildees (ἐκ τῶν πράξεων) desde que este aja em conformidade com suas determinaccedilotildees
morais (κατὰ προαίρεσιν) E se o homem de valor age segundo suas proacuteprias determinaccedilotildees
depreende-se que o homem cujo valor eacute nulo aja determinado isto eacute conduzido pelo destino
pela sorte (ἀπὸ τύχης) e que o homem cujo valor eacute repreensiacutevel exemplo que o filoacutesofo natildeo
daacute mas cujo raciociacutenio permite avanccedilar agiria tambeacutem motivado por suas determinaccedilotildees mo-
rais as quais contudo seriam maacutes O que importa no que tange ao ecircthos eacute que se deve mostrar
que aquele que se estaacute louvando age de acordo com suas determinaccedilotildees e natildeo ao acaso o que
lhe tiraria todo o meacuterito meacuterito que caberia entatildeo agrave fortuna (τύχη) uma vez que as accedilotildees natildeo
praticadas de modo voluntaacuterio natildeo satildeo meritoacuterias em conformidade com o que Agostinho tam-
beacutem admitia11 Portanto o conselho de Aristoacuteteles ao orador que quer construir o seu proacuteprio
ecircthos ou o de algum outro eacute tornar todas as accedilotildees possiacuteveis inclusive as decorrentes da sorte
mdash o que natildeo seria nada honesto admite o filoacutesofo mdash fruto do meacuterito daquele que se quer
enaltecer o que seria sinal de homem resoluto decidido (σημεῖον ἀρετῆς εἶναι προαιρέσεως)
No entanto esse conselho natildeo apenas natildeo eacute seguido por Agostinho e pelo discurso cristatildeo de
modo geral como ao reveacutes o exato oposto eacute o que se potildee em praacutetica ao atribuir-se tudo agrave
Graccedila divina agrave bondade preexistente daquele que natildeo precisou de nenhuma das criaturas que
criou as quais jamais fizeram por merecer o dom da vida (Conf 1311) ldquoPorque antes que eu
11 O livre arbiacutetrio (11430101) ldquoIn uoluntate meritum sitrdquo
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existisse existias tu e eu nem existia para que me concedesses que eu existisserdquo12 Isso eacute feito
contudo natildeo em detrimento do ecircthos da construccedilatildeo dum caraacuteter digno de louvor e fidedigno
e sim para construir um caraacuteter cristatildeo ou seja um caraacuteter natildeo pautado pela taacutebua de valores
eacuteticos claacutessicos que atribuiacutea grande peso agrave gloacuteria agrave honra ao denodo guerreiro e agrave justiccedila
inflexiacutevel e fria da lei13 e sim para destacar o homem jaacute de tipo medieval manso e humilde de
coraccedilatildeo misericordioso ao ponto de voltar a outra face numa palavra homem cuja honra estava
na cruz e no sangue de seu Salvador e para o qual ldquoo insensato de Deusrdquo era ldquomais saacutebio que
os homens e o fraco de Deus mais forte que os homensrdquo14 O ecircthos pois que se quer construir
eacute o do homem de feacute que se deixa conduzir pela matildeo de Deus na praacutetica das virtudes ditas
teologais feacute esperanccedila e caridade (πίστις ἐλπίς ἀγάπη) (1Cor 1313) O homem comumente
se orgulha das coisas que faz por si proacuteprio (τοῖς διrsquo αὐτόν) lembra Aristoacuteteles mas natildeo se
orgulha do que o destino lhe trouxe (διὰ τύχην) (1368a3-4) Agostinho bastante ao contraacuterio
natildeo apenas natildeo se orgulha do que fez mas se arrepende amargamente preferindo ao inveacutes da
honra agradecer a Deus todo o bem que lhe sucedeu por seu intermeacutedio divino ldquoe assim Se-
nhor apagaste todos os meus merecidos males para que natildeo retribuiacutesses agraves minhas matildeos nas
quais te deixei e te antecipaste a todos os meus merecidos bens para que retribuiacutesses agraves tuas
matildeos com as quais me fizesterdquo15
Destarte das trecircs qualidades independentes de demonstraccedilatildeo (ἔξω τῶν ἀποδείξεων)
que Aristoacuteteles aponta (1378a) como necessaacuterias ao orador ainda que em aparecircncia somente a
fim de que seja convincente o que de modo principal se refere agraves assembleias ou ao conselho
instacircncias tiacutepicas de deliberaccedilatildeo na Greacutecia antiga 1 prudecircncia ou bom-senso (φρόνησις) 2
excelecircncia moral (ἀρετή) e 3 boa disposiccedilatildeo (εὔνοια) nenhuma delas guarda nas Confissotildees
a importacircncia que o estagirita lhe atribui a natildeo ser que se considerem as virtudes ditas teologais
como pertencentes ao rol das aretaiacute aristoteacutelicas o que seria no miacutenimo um grave anacronismo
Por fim a Retoacuterica destaca o papel do ecircthos na disposiccedilatildeo das mateacuterias (τάξις) de modo
especiacutefico no proecircmio (exordium) Nos discursos do gecircnero judiciaacuterio por exemplo aquele que
se defende (ἀπολογουμένῳ) deve fazecirc-lo logo no proecircmio (πρῶτον) antes da acusaccedilatildeo ao
contraacuterio de quem acusa que deve fazecirc-lo no final (τῷ ἐπιλόγῳ) porque aquele que defende
deve construir seu ecircthos no iniacutecio antes da acusaccedilatildeo (πρὸς τὴν διαβολήν) (1415a29-30) a
12 Confissotildees (1311) ldquoquia et priusquam essem tu eras nec eram cui praestares ut essemrdquo 13 Em conformidade com a ideia veiculada pela maacutexima romana ldquodura sed lexrdquo 14 Paulo (1Cor 121-25) ldquoὅτι τὸ μωρὸν τοῦ θεοῦ σοφώτερον τῶν ἀνθρώπων ἐστὶν καὶ τὸ ἀσθενὲς τοῦ
θεοῦ ἰσχυρότερον τῶν ἀνθρώπωνrdquo 15Confissotildees (1311) ldquoEtenim domine deleuisti omnia mala merita mea ne retribueres manibus meis in
quibus a te defeci et praeuenisti omnia bona merita mea ut retribueres manibus tuis quibus me fecistirdquo
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fim de livrar-se de todo impedimento ou embaraccedilo como faz Agostinho nas Confissotildees utili-
zando-se dos primeiros livros ditos biograacuteficos para tanto Se o acusador deve criar o precon-
ceito contra o acusado no fim para que permaneccedila bem presente na memoacuteria dos juiacutezes o
defendente deve desvencilhar-se do preconceito logo no iniacutecio a fim de que seus argumentos
satildeo sejam prejudicados pela imagem da pecha moral que traz consigo Natildeo eacute apenas para o
ecircthos que o proecircmio eacute importante mas tambeacutem para o paacutethos pois eacute preciso tornar o auditoacuterio
bem disposto em relaccedilatildeo ao orador se se estaacute defendendo ou tornaacute-lo indisposto contra a outra
parte (1415a-34-36) se se estaacute acusando Para isso conta muito a aparecircncia de respeitabilidade
do falante pois ldquoas pessoas respeitaacuteveis recebem mais atenccedilatildeordquo diz Aristoacuteteles Pelo que o
orador deve esforccedilar-se por conseguir duas coisas do auditoacuterio 1 amizade (φίλον) e 2 com-
paixatildeo (ἐλεεινόν) (1415b22-28) tornaacute-lo amigo e compassivo fazendo-o crer que ele mesmo
o orador sente exatamente aquilo que censura ou louva ou seja que estaacute sendo sincero
(1415b28-29) Ora como falar da Graccedila de Deus sem que se recorra ao testemunho pessoal
pois a Graccedila diferentemente da recompensa ou do salaacuterio (merces) eacute distribuiacuteda gratuitamente
para o que por paradoxal pareccedila faz-se necessaacuterio ser pecador numa palavra estar desprovido
de qualquer meacuterito que o tornaria credor ao inveacutes de devedor meacuterito que poderia confundi-la
a Graccedila com pagamento ou retribuiccedilatildeo Evidente que se trata dum exagero pois os que tecircm
meacuterito natildeo estatildeo de modo nenhum excluiacutedos da Graccedila jaacute que natildeo faz muito sentido que natildeo
receba sem meacuterito16 senatildeo quem natildeo mereccedila
Seja como for esse ecircthos de sinceridade logra construir com bastante esmero Agostinho
ao reconhecer-se pecador devedor pequenino desprovido de meacuteritos e absolutamente depen-
dente da bondade da Providecircncia divina que se expressa pela Graccedila gratis
A segunda das provas da arte paacutethos
A movimentaccedilatildeo das emoccedilotildees (πάθος) embora uma prova (πίστις) que se diz teacutecnica
ou ldquoda arterdquo (ἔντεχνος) de modo aparentemente paradoxal natildeo tem que ver diretamente com
as provas demonstrativas ou com a causa em si e sim respeita aos juiacutezes (δικασταί) explica
Aristoacuteteles (1354a4-5)17 De fato o orador alcanccedila a persuasatildeo seja em que gecircnero for (o que
16 Isto eacute gratuitamente 17 Aristoacuteteles natildeo era muito simpaacutetico nem ao apelo eacutetico tampouco ao emocional que julgava ser um mal
necessaacuterio pois considerava errado manipular os sentimentos dos juiacutezes o que equivalia a corromper a proacutepria lei
que se tentava fazer valer ou de que se queria socorrer (1356a14) Argumento muito parecido esse (de destruir a
proacutepria lei a que se deveraacute recorrer depois) com o utilizado por Soacutecrates ao negar a proposta de fuga de Criacuteton no
diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo (50a-b) Pois bem no iniacutecio do tratamento da hupoacutekrisis (1403b22-) Aristoacuteteles
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natildeo exclui nem o epidiacutectico tampouco o deliberativo) mediatamente por meio dos ouvintes
(διὰ τῶν ἀκροατῶν) aqueles aos quais se dirige quando recorre ao paacutethos despertando ou
dirigindo suas emoccedilotildees (ὅταν εἰς πάθος) o que se faz pela accedilatildeo discursiva (ὑπὸ τοῦ λόγου)
Isso porque os juiacutezos (τὰς κρίσεις) dos ouvintes objetivo da accedilatildeo persuasiva variam sob a
influecircncia das emoccedilotildees tais como a dor (λύπη) a alegria (χαρά) a amizade (φιλία) o oacutedio
(μῖσος) etc Com efeito o orador natildeo tem por escopo a emoccedilatildeo do auditoacuterio em si mesma como
finalidade e sim a sua persuasatildeo a fim de que decida em favor de sua causa para o que as
emoccedilotildees cooperam vivamente como percebeu Aristoacuteteles ao dedicar grande parte do livro
segundo da Retoacuterica ao estudo das paixotildees da alma
Um dos meios mais eficazes para a movimentaccedilatildeo do paacutethos a fim de que se tenha ecircxito
no apelo emocional em vista dum fim ulterior natildeo satildeo as provas demonstrativas recomendadas
para o gecircnero apropriado (o judiciaacuterio no caso) o entimema e as maacuteximas provas que devem
ser descobertas na invenccedilatildeo e sim os recursos pertencentes a outra parte da retoacuterica a elocuccedilatildeo
(λέξις) Com efeito depois de encontrado o que dizer (εὕρεσις) e disposto as mateacuterias de modo
apropriado (τάξις) resta saber como dizecirc-lo Esse ldquocomordquo respeita sem duacutevida agrave forma do dis-
curso que se chama tambeacutem ldquoestilordquo poreacutem de modo nenhum se limita a isso como se fosse
apenas uma sua vestimenta Os recursos da elocuccedilatildeo para muito aleacutem da ornamentaccedilatildeo tecircm
forccedila persuasiva pois argumentam seja pela concisatildeo das figuras seja pelo ritmo e paralelismo
das construccedilotildees seja pelas imagens que evocam o que fazem de modo principal pondo em
destaque tanto o ecircthos como o paacutethos O ecircthos por exemplo no emprego do leacutexico que quando
recheado de estrangeirismos (ξένην ποιεῖν τὴν διάλεκτον) (1404b10-12) diz Aristoacuteteles con-
fere um ar de dignidade ao discurso promovendo por tabela o orador que se faz parecer digno
e nobre assim como aquilo que estaacute dizendo O paacutethos por sua vez quando o discurso eacute ldquoele-
vadordquo a um niacutevel suprarracional ou sublime pelo uso de recursos poeacuteticos dentre os quais se
destacam as figuras de repeticcedilatildeo como paralelismos epanalepses anadiploses antanaacuteclases
reconhece que tudo aquilo que respeita agrave apresentaccedilatildeo do discurso como voz volume tom altura ritmo harmo-
nia entre tais e que eacute muito importante nos certames dramaacuteticos e eacutepicos (τῶν ἀγώνων) quando entatildeo faz-se
necessaacuterio equilibrar esses elementos segundo cada uma das emoccedilotildees (πρὸς ἕκαστον πάθος) embora seja tam-
beacutem utilizado nas demais atividades poliacuteticas como assembleias deliberativas e tribunais o eacute apenas de modo
deploraacutevel Isso porque conquanto seja necessaacuterio mover as paixotildees do auditoacuterio e construir o caraacuteter do orador
discursivamente essa necessidade se deve tatildeo soacute agrave corrupccedilatildeo dos cidadatildeos (διὰ τὴν μοχθηρίαν τῶν πολιτῶν)
(1403b34-35) o que equivale a dizer do auditoacuterio (τοῦ ἀκροατοῦ) Assim sendo o recurso tanto ao ecircthos como
ao paacutethos deixa de ser questatildeo de correccedilatildeo (οὐκ ὀρθῶς) de certo ou errado passando a ser uma necessidade (ἀλλrsquo
ὡς ἀναγκαίου) Com efeito o justo (δίκαιον) seria defender acusar exortar e dissuadir movido apenas pelos
fatos (ἀγωνίζεσθαι τοῖς πράγμασιν) (1404a5-6) de maneira tal que o restante que Aristoacuteteles reputa fora da
demonstraccedilatildeo (ἔξω τοῦ ἀποδεῖξαι) ο que inclui ecircthos e paacutethos seria superfluidade (περίεργα ἐστίν) (1404a8)
Infelizmente poreacutem a realidade eacute que o orador precisa conhecer estes recursos a fim de poder defender-se e atingir
seus objetivos uma vez que os adversaacuterios certamente lanccedilam matildeo deles de modo quase sempre inescrupuloso
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paronomaacutesias antimetaacuteboles poliptotos etc E fique claro que dizer que Aristoacuteteles natildeo via com
bons olhos o (mau) recurso aos apelos eacutetico e pateacutetico nos tribunais natildeo significa dizer que
desprezasse os mecanismos da elocuccedilatildeo o que implicaria dizer que cresse o homem ser dotado
apenas de razatildeo excluiacutedos sentimentos e caraacuteter a natildeo dizer da vontade Ao contraacuterio Aristoacute-
teles bem reconhecia que em todo tipo de aprendizado (ἐν πάσῃ διδασκαλίᾳ) o estilo se faz
mateacuteria de certa importacircncia uma vez que algo se torna claro (πρὸς τὸ δηλῶσαι) por meio do
modo como eacute dito (ὡδὶ ἢ ὡδὶ εἰπεῖν) embora relegasse a questatildeo do estilo ao niacutevel da aparecircn-
cia (ἀλλrsquo ἅπαντα φαντασία ταῦτrsquo εστὶ) cuja finalidade seria apenas agradar o ouvinte (πρὸς
τὸν ἀκροατήν) ouvinte esse por sua vez cuja corrupccedilatildeo (μοχθηρία) seria a verdadeira causa
de tudo que natildeo eacute apodiacutectico na retoacuterica (1404a7-8) Em assim sendo o estilo (λέξις) seria um
mal necessaacuterio uma ferramenta que embora potencialmente injusta seria uacutetil para conferir
clareza ao discurso assim como todos os demais elementos de persuasatildeo natildeo-apodiacutecticos ou
extrademonstrativos E isso se justifica diz o filoacutesofo de modo peremptoacuterio porque ningueacutem
ensina a fazer geometria desse modo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) isto eacute nem pelo
recurso ao paacutethos nem pelo ecircthos tampouco por qualquer outra ferramenta indicada para a
elocuccedilatildeo como as figuras (1404a12) Compreende-se essa visatildeo deveras depreciativa da elo-
cuccedilatildeo por parte do filoacutesofo pois como ele mesmo diz no terceiro livro de sua Retoacuterica ao
empreender o tratamento da actio ou representaccedilatildeo do discurso (ὑπόκρισις) ateacute ao tempo da
escritura da obra natildeo havia ainda nenhuma arte isto eacute nenhum manual de retoacuterica voltado para
a mateacuteria (οὔπω δὲ σύγκειται τέχνη περὶ αὐτῶν) porque a leacuteksis soacute havia sido notada pou-
quiacutessimo antes (ἐπεὶ καὶ τὸ περὶ τὴν λέξιν ὀψὲ προῆλθεν) descaso que se justificava pelo fato
de o estilo mdash considerado entatildeo como mera ornamentaccedilatildeo do discurso mdash ser julgado inferior
(φορτικὸν) tema indigno das preocupaccedilotildees dum homem livre criacutetica que natildeo evita endossar o
filoacutesofo (καλῶς ὐπολαμβανόμενον) (1403b35-6)
A despeito desta postura criacutetica adotada por Aristoacuteteles e de seu juiacutezo negativo a respeito
do ecircthos e do paacutethos postura raramente admitida pelos estudiosos atuais da retoacuterica o que
importa para os fins deste artigo contudo eacute seu poder argumentativo uma vez que sua impor-
tacircncia natildeo pode ser negada seja ela justificada ou natildeo de par com a finalidade filosoacutefica que
lhes imprime o rhetor de Hipona Portanto justo ou natildeo (nos tribunais e assembleias) o fato
admitido por Aristoacuteteles eacute que a elocuccedilatildeo afeta sobremodo o paacutethos sendo de par com o ecircthos
reconhecido como a mais persuasiva (κυριωτάτη) das provas (1356a13) altamente eficaz para
os objetivos da argumentaccedilatildeo pois resta claro que por meio do estilo se consegue mover as
emoccedilotildees (1408a16) seja quando se fala com indignaccedilatildeo audaciosa (ὕβρις) seja com raiva
149
(ὁργιζομένου) impiedade (ἀσεβή) ou vergonha (αἰσχρά) O estilo adequado (ἡ οἰκεία λέξις)
que eacute aquele em que os elementos do paacutethos (παθητική) e do ecircthos (ἠθική) satildeo proporcionais
(ἀνάλογον) aos temas subjacentes (τοῖς ὐποκειμένοις πράγμασιν) (1408a10-11) faz com
que um dado assunto seja mais persuasivo Aleacutem disso remata Aristoacuteteles o ouvinte sempre
simpatiza (συνομοπαθεῖ ὁ ἀκούων) com quem fala de modo emocional (παθητικῶς
λέγοντι) ainda que esse natildeo diga nada (κἂν μηθὲν λέγῃ) (1408a23-4)
Reconhecido o vigor (δύναμις) natildeo apenas pateacutetico mas tambeacutem argumentativo da elo-
cuccedilatildeo resta ver como Agostinho se utiliza de seus recursos nas Confissotildees a fim de atingir seus
objetivos numa palavra a fim de fazer filosofia Pois bem as descriccedilotildees que melhor instigam
as emoccedilotildees satildeo as que fazem apelo agrave imaginaccedilatildeo e aos sentidos descriccedilotildees viacutevidas de cenas e
eventos contam muito como o famigerado roubo das peras (Conf 249) a prisatildeo de Aliacutepio
(6914) ou a cena do jardim de Milatildeo (81125-27) por exemplo as inumeraacuteveis metaacuteforas e a
prosopopeia de oacutergatildeos humanos que passam a ser dotados de matildeos pernas ouvidos como as
matildeos do coraccedilatildeo que se estendem em prece a Deus os relatos de laacutegrimas pungentes que se
vertem repetidas vezes enfim descriccedilotildees essas que tecircm potencial enorme para despertar fortes
sentimentos Do mesmo modo o uso de hipeacuterboles e outras tantas figuras se faz extremamente
uacutetil para criar o efeito emocional desejado Todavia nada talvez seja tatildeo eficiente nesse sentido
quanto o vocabulaacuterio o uso de palavras carregadas de intensa conotaccedilatildeo pateacutetica E no apelo
agraves emoccedilotildees pode-se dizer esteja uma das chaves de leitura das Confissotildees ao menos retoacuterica
De fato a linguagem da obra estaacute repleta de figuras cujo efeito principal eacute o despertar dos
sentimentos Mas de quem e para quecirc A sua audiecircncia soacute pode ser depreendida de modo in-
direto por meio da linguagem do estilo e do tema o que natildeo se constitui tarefa das mais faacuteceis
por tratar-se de obra multifacetada de linguagem muito elaborada que prima pela sofisticaccedilatildeo
mas que natildeo despreza uma certa tonalidade menos erudita que se pode ateacute denominar em
alguma medida popular ou humilde De fato pelo recurso aos salmos e textos escrituraacuterios
com seu respectivo campo semacircntico permeado de expressotildees da liacutengua grega vulgar (κοινή)
traduzidas ou transliteradas em latim conhecidos de toda comunidade cristatilde natildeo apenas por
serem lidos mas principalmente por sua funccedilatildeo lituacutergica eacute sem duacutevida uma linguagem
(sermo) popular ou humilis todavia pelos mecanismos retoacutericos extremamente requintados e
pelas referecircncias a toda uma cultura filosoacutefica de par com uma argumentaccedilatildeo em muitas pas-
sagens nada singela especialmente nos livros 1 8 e de 9 a 13 pode-se considerar igualmente
elevadiacutessima Portanto humilde e elevada eacute a linguagem das Confissotildees constituindo em si
mesma um oximoro
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Diante desse desafio de escrever tanto para a gente mais simples como para filoacutesofos
desafio que se exprime nesse caso pela linguagem supotildee-se que Agostinho natildeo tenha simples-
mente pretendido abaixar o registro de seu discurso descendo aos simples e pequeninos (ad
catechizandos rudes) muito ao contraacuterio ao que parece pretendia elevar-se ou melhor ser
elevado ao confessar-se arrependido penitenciando-se mas tambeacutem ao confessar sua feacute e seu
louvor enaltecendo e reconhecendo a graccedila de Deus em sua vida Em sendo assim ao ser ele-
vado por Deus pela confissatildeo pretende igualmente mover as almas incitando-lhes semelhante
elevaccedilatildeo ou quando natildeo o desejo de elevaccedilatildeo desejo de que se deixassem igualmente elevar
como ele confessava desejar o que se pode considerar sem duacutevida uma meta de caraacuteter pastoral
Portanto sua missatildeo quanto ao paacutethos eacute tambeacutem a de mover as almas agrave salvaccedilatildeo que
se pode sintetizar na vontade de ser elevado e de para lanccedilar matildeo duma contradiccedilatildeo merecer
por uma espeacutecie de ascese cataacutertica a graccedila divina a misericoacuterdia do Deus justiacutessimo Ora
disso decorre a possibilidade duma outra funccedilatildeo da linguagem extremamente comovente fruto
dos recursos da elocuccedilatildeo a que recorre Agostinho nas Confissotildees e interligada com essa funccedilatildeo
dita pastoral de elevar as almas uma funccedilatildeo que se pode compreender como simultaneamente
propedecircutica e filosoacutefica Com efeito se uma das funccedilotildees deste paacutethos que se diz de caraacuteter
pastoral pretende comover positiva e negativamente incitando a um soacute tempo o desejo de
salvaccedilatildeo e o de horror agrave perdiccedilatildeo o desejo de buscar Deus e de evitar o mal de buscar ser mais
pela proximidade do Ser supremo e de evitar ser menos ou deixar de ser pelo afastamento desse
mesmo Ser como se percebe sobremodo nos livros da parte considerada biograacutefica da obra o
que natildeo implica de modo algum a exclusatildeo dos restantes livros a outra funccedilatildeo por sua vez
relacionada intimamente agrave primeira de que se pode dizer seja consequecircncia natural que se
exacerba tambeacutem a partir dos recursos da elocuccedilatildeo e que como se disse tem caraacuteter prope-
decircutico compreende-se como uma funccedilatildeo de purificaccedilatildeo filosoacutefica de afastamento progressivo
das coisas deste mundo de afastamento da ldquocarnerdquo se se pode dizer tendo em vista o despren-
dimento rumo a uma vida mais espiritual de proximidade com o Ser o puro Inteligiacutevel que se
transubstancia por sua vez num projeto de vivecircncia cristatilde o que se destaca sobremodo a partir
do livro novo encontrando sua foz nos estertores do livro derradeiro Donde ser liacutecito afirmar
que os livros da parte biograacutefica das Confissotildees do primeiro ao oitavo tecircm tambeacutem essa fun-
ccedilatildeo de purificaccedilatildeo tanto das emoccedilotildees como da razatildeo ou seja de disciplinar ou exercitar asce-
ticamente a alma (exercitatio animi)18 a fim de que os leitores e ouvintes pudessem estar pre-
parados para o que havia de vir nos livros subsequentes E isso parece estar em harmonia com
18 Ἥ ἄσκησις ἥ τῆς ψυχῆς
151
o projeto filosoacutefico platocircnico-cristatildeo que Agostinho tinha para sua vida e que colocou em praacute-
tica desde os tempos preacute-batismais de Cassiciacuteaco ateacute ser interrompido pela sua consagraccedilatildeo
sacerdotal (391 dC) um projeto propedecircutico-purificador
E de fato se se pode aventar que esse projeto cataacutertico da razatildeo encontra seu ponto de
saiacuteda no expurgo do ceticismo de tipo neoacadecircmico como se percebe nos trecircs livros intitulados
Contra Academicos desenvolve-se sobremodo nas paacuteginas do diaacutelogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monoacutelogo com os Soliloacutequios obras do mesmo periacuteodo
Formato monoloacutegico esse denominado por Dupuy-Trudelle (1998 p 1198) ldquodesdobramentordquo
que eacute bem possiacutevel tenha servido de laboratoacuterio para as proacuteprias Confissotildees sugere a autora
refletindo a intenccedilatildeo de Agostinho apesar da excelecircncia da feacute de levar as exigecircncias da razatildeo
ateacute ao limite extremo num esforccedilo de purificaccedilatildeo num ir-aleacutem das paixotildees e desiludir-se sobre
si mesmo Ora estar iludido acerca de si mesmo natildeo eacute impedimento agrave feacute mas o eacute ao acesso agrave
convicccedilatildeo intelectual verdadeira Portanto para chegar-se ao conhecimento define esta autora
(ibid pp 1198-9) faz-se mister como condiccedilatildeo uacutenica a ldquolibertaccedilatildeo da razatildeo de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesmardquo libertaccedilatildeo a que os Soliloacutequios datildeo curso
Pode-se compreender que para desenlamear a consciecircncia dos similisavoirs libertaacute-
la de toda ilusatildeo psicoloacutegica ensinaacute-la que o desejo da verdade natildeo eacute ainda a posses-
satildeo da verdade permitir-lhe ir aleacutem do conflito de interesses que leva a opiniatildeo a
revoltar-se contra a verdade seja preciso mensurar a distacircncia entre o sujeito e si
mesmo Ora fazecirc-lo eacute um convite a mensurar a distacircncia entre si e o conhecimento de
Deus Eis entatildeo todo o sentido do exerciacutecio proposto pelo ldquosoliloacutequiordquo mensurar uma
e outra19
Natildeo parece haver duacutevidas de que os Soliloacutequios trazem em si de modo embrionaacuterio o estilo
que haveria de consagrar sobretudo a partir das Confissotildees quando entatildeo dispensa o combate
direto de ideias preferindo ldquodesdobrar-serdquo e deixar-se interrogar por si mesmo ainda que de
modo proleacuteptico continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas
Todavia eacute mais que provaacutevel que esta exigecircncia natildeo tenha surgido do nada e sim pertenccedila a
um projeto filosoacutefico maior que englobe as demais obras de Cassiciacuteaco sendo-lhe entatildeo um
como que desenvolvimento natural
No proacutelogo do De ordine (13-4) Agostinho argumenta que o homem por ser um des-
conhecido de si mesmo natildeo consegue perceber a ordem que reina em todo o universo ordem
providencial em que ele estaacute inserido e que para conseguir conhecer-se seria necessaacuterio entrar
em si mesmo ali permanecendo afastado dos sentidos lugar em que poderia entatildeo curar-se das
feridas que as opiniotildees vulgares infligem agrave alma seja pelo ldquofogordquo do ldquoisolamentordquo conforme
19 DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Les Confessions Paris Gal-
limard 1998 p 1206
152
se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
153
soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
154
As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
155
menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
156
Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
157
sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
158
(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
159
articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
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Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
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da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
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das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
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O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
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Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
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ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
REFEREcircNCIAS
[CICERO] Rhetorica ad Herennium (Transl by Harry Caplan) Cambridge (MA) Harvard
University Press 2004 (LOEB Classical Library 403)
ARISTOTELIS Ars Rhetorica (Recognouit breuique adnotatione critica instruxit W D
Ross) Oxford Oxford University Press 2008 (Oxford Classical Texts)
ARISTOTLE The Complete Works of Aristotle (The Revised Oxford Translation Edited by
Jonathan Barnes) Sixth Printing with corrections Princeton Princeton University Press
1995 (Volumes I amp II)
AUERBACH Erich Ensaios de Literatura Ocidental Filologia e Criacutetica 1ordf ed Satildeo Paulo
Duas Cidades Editora 34 2007 pp 15-96 ldquoSacrae scripturae sermo humilisrdquo pp 15-28
ldquoSermo humilisrdquo pp 29-76 ldquoGloria Passionisrdquo pp 77-96
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136
cada uma das fazes de composiccedilatildeo do discurso 1 invenccedilatildeo (εὕρεσις ou inuentio) descobrir de
onde tirar as provas (ἐκ τίνων πίστεις ἔσονται) 2 disposiccedilatildeo (τάξις ou dispositio) ordenar
as partes do discurso isto eacute as provas encontradas na invenccedilatildeo (πῶς χρή τάξαι τὰ μέρη τοῦ
λόγου) 3 elocuccedilatildeo (λέξις ou elocutio) tratar do estilo (περὶ τὴν λέξιν) ou seja do modo de
apresentaccedilatildeo das ideias que foram encontradas e ordenadas (1403b6-8) Da primeira meta a
invenccedilatildeo ou descoberta das provas Aristoacuteteles tratou nos dois primeiros livros ao discorrer
sobre as mateacuterias adequadas ao entimema e aos exemplos de par com o que eacute uacutetil agrave construccedilatildeo
dos caracteres e o estudo detalhado das paixotildees da alma com vistas agrave afetaccedilatildeo dos juiacutezes Res-
taram apenas a disposiccedilatildeo das mateacuterias e a elocuccedilatildeo ou seja o tratamento do estilo o que o
filoacutesofo empreende fazer no terceiro e uacuteltimo livro da Retoacuterica
No que se refere ao estilo (περὶ τῆς λέξεως) Aristoacuteteles pondera que natildeo basta possuir
o quecirc se natildeo se souber como dizecirc-lo (ὡς δεῖ εἰπεῖν) (1403b16) o que se deve fazer sempre de
modo claro jaacute que a grande virtude da elocuccedilatildeo eacute a clareza (λέξεως ἀρετὴ σαφῆ εἶναι)
(1404b1-2) e o discurso que natildeo for claro natildeo cumpriraacute sua tarefa (1404b2-3) (οὐ ποιῆσει τὸ
ἑαυτοῦ ἔργον) Tendo as mateacuterias de persuasatildeo a seu dispor o orador deve cuidar da apresen-
taccedilatildeo desse material (λέξει διαθέσθαι) ou seja do estilo do discurso para entatildeo empregar a
forccedila (δύναμις) de accedilatildeo atualizando aquilo que se descobriu e figurou dum certo modo
(ὑπόκρισις) Essa atualizaccedilatildeo ou representaccedilatildeo do discurso hupoacutekrisis que em latim se deno-
mina actio refere-se agrave sua expressatildeo oral compreendendo questotildees de voz (φωνή) volume
(μέγεθος) harmonia (ἁρμονία) ritmo (ῥυθμός) e tom (τόνος) que pode ser agudo (ὀξύς)
grave (βαρύς) ou meacutedio (μέσος)
Por fim no que tange agrave disposiccedilatildeo das mateacuterias (περὶ τῆς τάξεως) cujo tratamento se
inicia no final do terceiro livro da Retoacuterica (1414a29) Aristoacuteteles resume em duas as partes
principais do discurso isso porque nem toda parte da divisatildeo tradicional respeitava a todo e
qualquer gecircnero 1 o estado da questatildeo (πρόθεσις) isto eacute a exposiccedilatildeo da causa (τὸ πρᾶγμα
εἰπεῖν) acerca de que se haacute de argumentar (περὶ οὗ) 2 a prova (πίστις) ou seja a demonstraccedilatildeo
(τὸ ἀποδεῖξαι) (1414a31-36) A divisatildeo tradicional por sua vez elenca as seguintes partes 1
proecircmio ou exoacuterdio (προοίμιον) 2 narraccedilatildeo (διήγησις) que se subdivide em 21 exposiccedilatildeo
da causa (πρόθεσις) e 22 refutaccedilatildeo (ἀντιδίκησις) 3 prova (πίστις) 4 peroraccedilatildeo ou conclusatildeo
(ἐπίλογος) destas contudo apenas o proecircmio o estado da questatildeo a prova e a peroraccedilatildeo se
aplicam a todos os gecircneros retoacutericos (1414b8-9)
Do que se disse natildeo se deve imaginar que o discurso filosoacutefico esteja fora do acircmbito
retoacuterico pois ainda que se trate do discurso de um soacute pretende sempre persuadir ou persuadir-
137
se de algo seja duma verdade ideia crenccedila ou praacutetica E todo aquele que deve ser persuadido
seja o proacuteprio autor do discurso ou um outro se faz indubitavelmente juiz (1391b11-12)
(ἁπλῶς κρίτης) Deste modo esteja-se disposto contra um oponente (πρὸς ἀμφισβητοῦντα)
ou contra uma teoria (πρὸς ὑπόθεσιν) eacute preciso uma vez e sempre recorrer agrave argumentaccedilatildeo
(τῷ λόγῳ ἀνάγκη χρῆσθαι) a fim de defender um ponto de vista ou destruir o seu contraacuterio
(1391b13-14) o que eacute apropriado ao gecircnero de discurso epidiacutectico acima de tudo (ὡσαύτως
ἐν τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) como se se estivesse argumentando diante de um verdadeiro juiz
(ὥσπερ πρὸς κρίτην) que no caso eacute o espectador (θεωρός) aquele que contempla observa
aprende agrave maneira dum disciacutepulo dum arguidor dialeacutetico ou do proacuteprio filoacutesofo se este estiver
apenas escrevendo
Os gecircneros retoacutericos nas Confissotildees consideraccedilotildees teoacutericas
Quando se estaacute diante de temas controversos que aceitam ao menos dois modos dife-
rentes de pensar como os temas tipicamente retoacutericos (1357a1-5) a demonstraccedilatildeo apodiacutectica
(ἀπόδειξις) raramente eacute possiacutevel diz Olivier Reboul (2000 p 27) natildeo sendo nada ldquocientiacuteficardquo
a exigecircncia de ldquorespostasrdquo de caraacuteter cientiacutefico como ocorre nas Confissotildees por exemplo
quando se quer falar das ldquocoisasrdquo de Deus Contudo entre a luz do que se pode apreender cien-
tificamente (e demonstrar apodicticamente) e a obscuridade da mais completa ignoracircncia acerca
do misteacuterio abissal do Ser encontra-se todo um universo de possibilidades retoacutericas cujo rei-
nado pertence ao argumento E se argumentar natildeo eacute senatildeo propor y para que se admita x como
bem o ilustra esse autor (ibid pp 91-2) que se poderia argumentar acerca do Ser enquanto
Ser (x) sem que se circunscrevesse a dizer de seus pseudopredicados (y) daquilo que apenas
eacute Recursos haacute poreacutem que permitem dizecirc-lo argumentando enquanto Ser ainda que de modo
ilusoacuterio obliacutequo silencioso a partir dos mecanismos que a arte retoacuterica oferece seja com o
auxiacutelio do ecircthos do paacutethos ou do loacutegos os trecircs gecircneros de provas ditas teacutecnicas
Um dos objetivos de Agostinho ao pretender falar de Deus tema indubitavelmente con-
troverso (ἀμφισβητήσιμος) na referida acepccedilatildeo aristoteacutelica isto eacute passiacutevel de disputa por ser
natildeo-apodiacutectico pelo que igualmente retoacuterico pode-se dizer seja pocircr em destaque primordial-
mente o loacutegos o que se faz sobretudo por meio dum discurso do gecircnero epidiacutectico em que
predomina a funccedilatildeo referencial da linguagem uma pseudoterceira pessoa discursiva melhor
compreendida como uma natildeo-pessoa ou seja aquilo de que se fala (περὶ οὗ λέγει) (1358b1)
Todavia jamais deixa de pretender comover (πάθος) poreacutem natildeo especificamente quando fala
138
com Deus ο ldquopara quemrdquo (πρὸς ὅν) (1388b1) pois o Ser divino enquanto segunda pessoa
discursiva eacute onisciente e embora deixe-se dalgum modo misterioso comover por causa de sua
misericoacuterdia por ser igualmente justo ele cujo juiacutezo eacute inexoraacutevel torna a tarefa quanto ao
paacutethos um tanto obstada Por isso os esforccedilos de Agostinho no sentido de comover devem vol-
tar-se nem sempre e de imediato a Deus e sim aos seus leitores o auditoacuterio cristatildeo a quem o
filoacutesofo confessa de fato dirigir-se (Conf 235) ldquoA quem estou relatando estas coisas Ora
natildeo a ti meu Deus e sim na tua presenccedila relato-as aos de meu gecircnero ao gecircnero humano por
pequenina a parcela dos que possam deparar com estes meus escritosrdquo6
Quer comover portanto aleacutem de fazer converter para Deus como se viu convertido
fazendo com que as almas se elevem movidas pela penitecircncia o que natildeo se faz senatildeo tendo em
vista uma accedilatildeo futura (περὶ τῶν μελλόντων) E se para falar de Deus carece dum loacutegos apro-
priado ao louvor (ἔπαινος) que eacute tambeacutem contemplaccedilatildeo (θεωρεῖν) contemplaccedilatildeo do Belo (τὸ
καλόν) e do Bem (τὸ ἀγαθόν) a comoccedilatildeo natildeo se faz sem os recursos do paacutethos tampouco
prescindindo do ecircthos a fim de edificar um caraacuteter penitente digno do arrependimento ou con-
versatildeo mental (μετάνοια) a que todo cristatildeo deve submeter-se antes de crer no Evangelho
como admoestava Cristo (Mc 114-15) ldquoArrependei-vos [= convertei-vos] e crede no Evange-
lhordquo (μετανοεῖτε καὶ πιστεύετε ἐν τῷ εὐαγγελίῳ) Portanto Agostinho carece tambeacutem de
construir sempre pelo discurso (διὰ τοῦ λόγου) seu ecircthos discorrendo acerca daquilo que de
edificante se passou consigo (περὶ τῶν γεγενημένων) (1358b5) para os ldquojuiacutezesrdquo (δικασταί)
do auditoacuterio cristatildeo pois seu preteacuterito precisa de ser desenodoado Destarte ao narrar suas
desventuras pregressas confessando-se a Deus e aos homens potildee em destaque seja um Tu
divino que eacute tambeacutem a terceira pessoa discursiva e seu referente pois eacute dele que se fala seja
um tu humano semelhante a si seu leitor Pelo que loacutegos ecircthos e paacutethos se fazem necessaacuterios
de modo temperado segundo as tarefas e os objetivos que se desdobram a cada passo da obra
Tendo pois construiacutedo um ecircthos confiaacutevel a partir de suas gestas pregressas segundo
a taacutebua de valores cristatildeos como a humildade ou a misericoacuterdia por exemplo pode Agostinho
direcionar daiacute em diante sua atenccedilatildeo para o futuro ao modo do gecircnero deliberativo a fim de
comover as almas exortando-as (προτρέπω) seja a voltar-se para Deus o Fim uacuteltimo ou Bem
supremo que se louva pelos recursos do loacutegos seja dissuadindo-as (ἀποτρέπω) de seguir o
caminho do mal que equivale a um afastamento deste mesmo Fim uacuteltimo o que eacute tambeacutem
tarefa do paacutethos quando entatildeo o discurso potildee em destaque a segunda pessoa requerendo um
6 (Conf 235) ldquoCui narro haec neque enim tibi deus meus sed apud te narro haec generi meo generi
humano quantulacumque ex particula incidere potest in istas meas litterasrdquo
139
domiacutenio sobre as paixotildees a fim de conduzir o auditoacuterio ao objetivo (τέλος) almejado que
como se disse eacute sempre futuro (περὶ τῶν μελλόντων) Todavia se natildeo se delibera tendo em
vista o fim que se persegue (οὐ περὶ τοῦ τέλος) em conformidade com o que diz Aristoacuteteles
e sim aquilo que leva ateacute ele (ἀλλὰ περὶ τῶν πρὸς τὸ τέλος) (1352a15-19) ou seja os meios
os quais por sua vez residem nas accedilotildees (κατὰ τὰς πράξεις) tem-se como sequecircncia necessaacuteria
que 1 o uacutetil serve a um propoacutesito ulterior um fim e que 2 se o fim for bom o uacutetil natildeo apenas
levaraacute a esse bem mas seraacute tambeacutem de algum modo bom ainda que mediatamente e em menor
grau Daiacute que natildeo apenas o uacutetil em favor de que se delibera seja bom mas tambeacutem a praacuteksis
contraacuteria o seja a saber a rejeiccedilatildeo do nocivo do inuacutetil E com efeito seja para Aristoacuteteles ou
Agostinho o Bem (ἀγαθόν) uacuteltimo ou supremo pode ser definido como sendo aquilo que se
deve buscar (αἱρετόν) em vista de si mesmo (αὑτοῦ ἕκενα) e natildeo de algo ulterior (καὶ μὴ
ἄλλου) (1363b12-14) Esse Fim (τέλος) que coincide com o Bem supremo eacute aquilo em vista
de que (οὗ ἕνεκα) todo o resto (τὰ ἄλλα) se faz (1363b16-17) Em se admitindo com o autor
da Retoacuterica que esse Fim uacuteltimo embora sendo desejado natildeo seja objeto imediato de delibe-
raccedilatildeo e sim as accedilotildees (πράξεις) por meio de que se possa chegar a ele percebe-se sem muito
esforccedilo que as deliberaccedilotildees acerca deste Fim chame-se eudaimoniacutea ou Ser supremo fazem-se
sobremodo a partir de accedilotildees que podem ser virtuosas quando entatildeo se aproxima do objetivo
ou viciosas quando dele se afasta restando manifesto e inconteste o potencial tanto do ecircthos
como do paacutethos no tratamento daquilo que para Agostinho se traduz em princiacutepio pela uita
beata e posteriormente pelo Saacutebado eterno seja nas quatro virtudes cardeais justiccedila tempe-
ranccedila prudecircncia e coragem ou nas trecircs teologais feacute esperanccedila e caridade a serem praticadas
nesta vida tendo em vista o Bem uacuteltimo e supremo Deus seja por outra na comoccedilatildeo necessaacuteria
das almas que se deve aproximar desta mesma uita beata ou afastar da uita misera sem perder
de vista o fim uacuteltimo que se almeja
E se o deliberativo tem sua funccedilatildeo na exortaccedilatildeo tampouco se faz ausente da obra o
gecircnero judiciaacuterio que contempla sobremodo accedilotildees de acusaccedilatildeo (κατηγορία) e de defesa
(ἀπολογία) (1358b) De fato que faz Agostinho na parte dita biograacutefica da obra enquanto
narra suas desventuras preteacuteritas senatildeo acusar-se de seus erros como a experiecircncia entre os
maniqueus entre os ceacuteticos ou mesmo as aventuras ditas libidinosas em Cartago ou entatildeo
fazer a apologia da Graccedila divina da continecircncia da conversatildeo de sua matildee (ao contraacuterio do pai
que ele prefere acusar) Acusaccedilatildeo e defesa portanto seja de atos seus preteacuteritos (περὶ τῶν
γεγενημένων) (1358b5) seja de doutrinas ou ideias que reputa natildeo apenas inimigas do cami-
140
nho que leva ao Fim uacuteltimo por ele eleito mas tambeacutem antagocircnicas agrave proacutepria concepccedilatildeo des-
posada deste Ser supremo como o dualismo maniqueu por uma ou o ceticismo de tipo neoa-
cadecircmico por outra que perigosamente ameaccedilava uma das proacuteprias virtudes teologais a natildeo
dizer duas feacute e a esperanccedila por meio duma descrenccedila radical na possibilidade de acesso a
noccedilotildees fundamentadas acerca do verdadeiro
E se se podem perceber nuanccedilas do deliberativo e do judiciaacuterio na exortaccedilatildeo ou dissu-
asatildeo na acusaccedilatildeo e na defesa muito mais no caso do gecircnero predominante expresso pelas Con-
fissotildees o epidiacutectico que segundo Aristoacuteteles compreende tanto o louvor (ἔπαινος) como a
censura (ψόγος) (1358b12-3) De fato que faz Agostinho ao longo das Confissotildees senatildeo cen-
surar o que afasta de Deus louvando o que dele aproxima o homem censurar o pecado lou-
vando seu contraacuterio as virtudes fazer o elogio da vida feliz (beata uita) vituperando seu
oposto a infeliz (misera) E mesmo quando censura seu objetivo natildeo eacute senatildeo louvar louvar o
que se edifica como antipodal daquilo que se estaacute censurando pois natildeo se trata de discorrer
sobre o viacutecio sobre o torto sobre o caminho errado que se natildeo deve percorrer numa palavra
natildeo se trata de discorrer sobre o mal porque ele natildeo existe (entenda-se o mal ontoloacutegico) Ao
contraacuterio trata-se de louvar o que Eacute o Ser por excelecircncia Deus e toda a sua obra cujo paro-
xismo natildeo eacute outro senatildeo o momento em que cria o homem Paradoxal seria pois limitar-se ao
vitupeacuterio o que equivaleria a ressaltar apenas e tatildeo somente aquilo que natildeo possui existecircncia
real o mal ou antisser7 como quem escrevesse um livro sobre o que natildeo eacute As Confissotildees
portanto empreendem sobretudo um discurso de louvor que se bem pode denominar filosofia
do louvor a qual se enquadra perfeitamente no gecircnero epidiacutectico cuja tocircnica eacute dada pelo loacutegos
enquanto referente aquilo de que se fala (περὶ οὗ λέγει) (1358b1) referente de muacuteltiplos sen-
tidos que se pode compreender natildeo apenas como a Palavra que eacute Deus mas tambeacutem a palavra
de Deus a palavra sobre a palavra de Deus a palavra sobre o Deus que eacute Palavra e profere
palavras embora esse mesmo referente enquanto Verbo divino seja inefaacutevel donde ser neces-
saacuterio que esse loacutegos seja tambeacutem linguagem nos recursos retoacutericos precisos a que se diga o
indiziacutevel
Todos os trecircs gecircneros portanto prestam auxiacutelio reciacuteproco pois quem louva no presente
deve fazecirc-lo tambeacutem por meio das lembranccedilas do passado (ἀναμιμνήσειν τὰ γενόμενα) ou das
conjecturas e esperanccedilas futuras (προεικάζειν τὰ μέλλοντα) e o justo por sua vez objeto das
reflexotildees judiciaacuterias pode igualmente ser feio ou belo uacutetil ou inuacutetil mateacuteria dos outros dois
7 O que de esdruacutexulo possa haver neste composto se deve agraves novas regras do Acordo Ortograacutefico de 1990 O
que se quis expressar eacute o contraacuterio do ser ldquoanti-serrdquo que natildeo mais se grafa assim com hiacutefen
141
gecircneros assim como uacutetil e o inuacutetil mateacuteria de deliberaccedilatildeo que podem ser justos ou seu con-
traacuterio belos ou natildeo ou ainda o bom e o mau que podem muito bem ser inuacuteteis ou natildeo justos
ou natildeo em conformidade com o que diz Aristoacuteteles justificando assim a mistura dos gecircneros
retoacutericos (1358b27-1359a4) Poreacutem o gecircnero epidiacutectico parece ser o mais completo dos trecircs
uma vez nem focar demasiado no passado como o judiciaacuterio tampouco no futuro como o
deliberativo ao contraacuterio ao discorrer acerca do presente (ὁ παρὼν χρόνος) louvando ou
censurando as coisas que de fato satildeo (κατὰ τὰ ὐπάρχοντα) eacute-lhe permitido voltar-se tanto agraves
reminiscecircncias preteacuteritas quanto ao que pode vir a ser como se percebe nitidamente do primeiro
ao derradeiro livro das Confissotildees que nem se limitam a perscrutar o passado tampouco a
especular esperanccedilosamente sobre o futuro ou mesmo sobre o presente na investigaccedilatildeo do
proacuteprio rememorar quando entatildeo empreendem o louvor do que eacute foi e haacute de ser de par com o
do que sempre e indefectivelmente eacute
Uma uacuteltima palavra acerca da retoacuterica se faz necessaacuteria antes de voltar a atenccedilatildeo para
os trecircs gecircneros de provas teacutecnicas nas Confissotildees Quando se propotildee apresentar uma resposta
diz Michel Meyer (2010 p 53) a retoacuterica tende a ocultar o problemaacutetico fazendo com que a
questatildeo de base subjacente a todo discurso questatildeo em torno de que se reuacutenem ou dispersam
as partes pareccedila resolvida No entanto isso de modo nenhum eacute o que se percebe na retoacuterica
filosoacutefica de Agostinho que opera agraves avessas natildeo projetando de modo nenhum esconder o
problemaacutetico e sim permitindo lidar com ele dizendo-o embora sua insoluacutevel inefabilidade E
de fato se se tome por base a proacutepria definiccedilatildeo da retoacuterica elaborada pelo mesmo Meyer (2012
p 21) como sendo a negociaccedilatildeo entre a distacircncia criada por um dado problema que se constitui
sua proacutepria medida percebe-se no que tange ao Ser natildeo haver distacircncia entre interlocutores
para quem a sua inefabilidade eacute paciacutefica quer se o identifique com a Divindade cristatilde ou natildeo
E em natildeo havendo essa distacircncia qual a finalidade da retoacuterica sendo ela a suposta negociaccedilatildeo
que se estabelece em funccedilatildeo dum dado problema que se mede exatamente por essa distacircncia
inexistente Logo em natildeo havendo uma distacircncia que se constituiacutesse a medida do problemaacutetico
desnecessaacuterio seria argumentar inexistindo o problema Contudo isso se refere de modo espe-
cial agraves retoacutericas forense e deliberativa natildeo agrave epidiacutectica e menos ainda a epidiacutectica com finali-
dade filosoacutefica como se daacute no caso de Agostinho Nas Confissotildees a distacircncia que se quer
negociar eacute a que se supotildee entre o conhecido desconhecimento de Deus e seu desconhecido
conhecimento ou seja a distacircncia entre o nada que se pode conhecer de Deus e o tudo que se
desconhece entre o nada que dele se pode dizer e o tudo que se natildeo diz E como essa distacircncia
142
eacute inegociaacutevel resta agrave retoacuterica simular a edificaccedilatildeo duma estrutura especial a linguagem per-
mitindo que pela proacutepria expressatildeo do paradoxo do estranhamento da perplexidade se diga
sem dizer e se natildeo diga dizendo Numa palavra a retoacuterica permite que Agostinho estique a
corda do arco de seu dizer para aleacutem da tensatildeo do compreensiacutevel apodiacutectico para aleacutem do
alcance da razatildeo que seja capaz carreando o leitor consigo de tangenciar o suprarracional a
natildeo dizer irracional pois natildeo desprovido de razatildeo e sim muito aleacutem dela
A primeira das provas da arte ecircthos
Aleacutem das provas loacutegicas que envolviam mateacuterias e meacutetodos cujo apelo se voltava pri-
mordialmente a natildeo dizer exclusivamente para a razatildeo a retoacuterica reconhecia outros meios de
prova pois se dera conta havia muito de que as pessoas natildeo satildeo apenas dotadas de capacidade
racional mas tambeacutem de sentimentos e de vontade pelo que se fazia necessaacuterio lidar com elas
natildeo como deveriam ser mas como realmente eram lembram Corbett e Connors (1999 p 72)
Destarte tomando por base a definiccedilatildeo aristoteacutelica de que a retoacuterica eacute a arte de descobrir todos
os meios possiacuteveis de persuasatildeo8 torna-se oacutebvio o recurso a tudo aquilo que se comprove efi-
ciente para esse fim Neste sentido afianccedilam esses autores o apelo eacutetico pode ser mais eficaz
que o apelo agrave razatildeo pois
mesmo o mais engenhoso e sensato apelo agrave razatildeo pode fracassar diante de ouvidos
amoucos se a audiecircncia reagiu desfavoravelmente ao caraacuteter do orador O apelo eacutetico
eacute especialmente importante no discurso retoacuterico porque aqui estamos lidando com
assuntos acerca dos quais eacute impossiacutevel ter-se certeza absoluta e em que as opiniotildees
satildeo divididas
Com efeito o ecircthos prova teacutecnica que se erige a partir do caraacuteter moral do orador segundo
reconhecia Aristoacuteteles (1356a13) constitui-se no meio mais eficaz de prova (κυριωτάτην ἔχει
πίστιν τὸ ἦθος)
Quintiliano por sua vez em suas Instituiccedilotildees Oratoacuterias (3813) adotando integral-
mente a teoria aristoteacutelica argumenta que dos trecircs gecircneros de discurso o deliberativo era o que
mais necessitava do apelo eacutetico ou seja o discurso que mais se apoiava no caraacuteter do orador
que ele denominava auctoritas
Nas deliberaccedilotildees poreacutem a autoridade eacute o que possui maior valor Com efeito natildeo
apenas deve ser considerado muitiacutessimo prudente como tambeacutem muitiacutessimo virtuoso
todo aquele que deseje que todos acreditem nos seus pensamentos acerca das coisas
8 (1355b25-6) ldquoSeja entatildeo a retoacuterica a faculdade de considerar acerca de cada coisa o que eacute possivelmente
persuasivordquo (ἔστω δὴ ἡ ῥητορικὴ δύναμις περὶ ἕκαστον τοῦ θεωρῆσαι τὸ ἐνδεχόμενον πιθανόν)
143
proveitosas e dignas de honra [] natildeo haacute quem negue que as deliberaccedilotildees satildeo feitas
segundo os caracteres dos oradores9
Em conformidade com o que se argumentou um pouco antes a partir das consideraccedilotildees do
proacuteprio Aristoacuteteles acerca da mistura de gecircneros retoacutericos (1358b27-1359a4) sobre a predomi-
nacircncia do gecircnero epidiacutectico nas Confissotildees eacute perceptiacutevel natildeo apenas a importacircncia do apelo
eacutetico que natildeo eacute das menores por tratar-se duma obra primordialmente na primeira pessoa e
que sob certo ponto de vista quer falar de si mas principalmente pelo que se disse acerca de
um dos objetivos da obra de caraacuteter ldquodeliberativordquo ou antes de caraacuteter ldquopastoralrdquo de mover
as almas para Deus (conuersio ad deum) ao modo dum loacutegos protreacuteptico afastando-as do pe-
cado e de tudo que as manteacutem distantes do Bem (auersio a bono) objetivo que se cumpre
escorado no caraacuteter eacutetico que se esforccedilou por burilar ao longo primordialmente dos livros ditos
autobiograacuteficos da obra De fato natildeo obteacutem ecircxito na pretensatildeo de exortar (προτρέπω) para
Deus senatildeo aquele que se deixou dissuadir (ἀποτρέπω) do caminho do pecado que compro-
vou sua humildade (humilitas) na aceitaccedilatildeo natildeo do poder de seu livre-arbiacutetrio e sim da Graccedila
divina cujas Justiccedila e Misericoacuterdia se amalgamam na Sabedoria una e indivisiacutevel do Ser ao
inveacutes de se anularem pela contradiccedilatildeo Natildeo se trata de reconhecer-se purificado trata-se mui-
tiacutessimo ao contraacuterio de reconhecer-se pecador carente da Graccedila e incapacitado de autossalva-
ccedilatildeo numa palavra trata-se de diminuir-se ao modo do ldquoesvaziamentordquo (κένωσις) de Cristo
que embora possuindo uma forma divina (ἐν μορφῇ θεοῦ) esvaziou-se a si mesmo segundo
Paulo assumindo uma forma de escravo e fazendo-se semelhante aos homens pelos quais se
humilhou e obedientemente deixou-se matar na cruz10 Esse o ecircthos cristatildeo portador das virtu-
des dignas de imitaccedilatildeo invertidas quanto pudessem parecer a um auditoacuterio pagatildeo da eacutepoca
para o qual nem a misericoacuterdia tampouco a humildade eram considerados valores morais dese-
jaacuteveis e sim fraquezas despreziacuteveis
O orador persuade por seu caraacuteter moral explicava Aristoacuteteles (1356a5) quando seu
discurso eacute de tal modo elaborado que seja capaz de tornaacute-lo digno de credibilidade um homem
em quem pareccedila ser possiacutevel confiar Essa credibilidade contudo natildeo se constroacutei por meio de
elementos extratextuais de ideias preacute-concebidas acerca da conduta eacutetica do orador e sim atra-
veacutes do discurso (1356a8) donde ser considerado o ecircthos uma prova de caraacuteter teacutecnico fruto da
9 Inst oratoriae (3813) ldquoValet autem in consiliis auctoritas plurimum nam et prudentissimus esse haberique
et optimus debet qui sententiae suae de utilibus atque honestis credere omnes uelit [] consilia nemo est qui
neget secundum mores darirdquo 10 Paulo (Fl 25-8) ldquoΤοῦτο φρονεῖτε ἐν ὑμῖν ὃ καὶ ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων οὐχ
ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ ἀλλὰ ἑαυτὸν ἐκένωσεν μορφὴν δούλου λαβών ἐν ὁμοιώματι ἀνθρώπων γενόμενοςmiddot καὶ σχήματι εὑρεθεὶς ὡς ἄνθρωπος ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν γενόμενος ὑπήκοος μέχρι θανάτου θανάτου δὲ σταυροῦrdquo
144
arte Isso se daacute explica o filoacutesofo porque quando se estaacute tratando de temas de caraacuteter geral via
de regra a confianccedila se estabelece sobre as opiniotildees das pessoas cujo valor eacute notoacuterio poreacutem
quando os temas satildeo incertos duvidosos (τὸ ἀμφιδοξεῖν) aiacute entatildeo como que desprovido de
alternativas resta ao auditoacuterio tatildeo soacute a confianccedila quase que total e irrestrita (παντελῶς) na-
queles cujos caracteres ou comprovou-se destacar-se ou lograram aparentar fazecirc-lo E sobre
que versam as Confissotildees em linhas gerais como jaacute se apontou antes senatildeo sobre o tema natildeo-
apodiacutectico por excelecircncia Deus Donde ser liacutecito dizer que pelo prisma da retoacuterica Agostinho
empreende um enorme esforccedilo de construccedilatildeo dum ecircthos apropriado a falar de Deus E de fato
se se pretende falar de tema natildeo apenas duvidoso retoacuterico mas inefaacutevel como o Ser de que
modo evadir-se do estribo do ecircthos Se o tema fosse apodiacutectico o caraacuteter do orador talvez
restasse menos relevante poreacutem natildeo num tema em que as provas demonstrativas satildeo pratica-
mente inexistentes
Para ressaltar o caraacuteter moral de algueacutem que se queira elogiar seja o do proacuteprio orador
ou natildeo lembra Aristoacuteteles (1367b22-27) eacute preciso associar as suas accedilotildees (as quais se empre-
ende louvar) agraves suas intenccedilotildees a fim de demonstrar seu valor porque o louvor (ἔπαινος) se tira
das accedilotildees (ἐκ τῶν πράξεων) desde que este aja em conformidade com suas determinaccedilotildees
morais (κατὰ προαίρεσιν) E se o homem de valor age segundo suas proacuteprias determinaccedilotildees
depreende-se que o homem cujo valor eacute nulo aja determinado isto eacute conduzido pelo destino
pela sorte (ἀπὸ τύχης) e que o homem cujo valor eacute repreensiacutevel exemplo que o filoacutesofo natildeo
daacute mas cujo raciociacutenio permite avanccedilar agiria tambeacutem motivado por suas determinaccedilotildees mo-
rais as quais contudo seriam maacutes O que importa no que tange ao ecircthos eacute que se deve mostrar
que aquele que se estaacute louvando age de acordo com suas determinaccedilotildees e natildeo ao acaso o que
lhe tiraria todo o meacuterito meacuterito que caberia entatildeo agrave fortuna (τύχη) uma vez que as accedilotildees natildeo
praticadas de modo voluntaacuterio natildeo satildeo meritoacuterias em conformidade com o que Agostinho tam-
beacutem admitia11 Portanto o conselho de Aristoacuteteles ao orador que quer construir o seu proacuteprio
ecircthos ou o de algum outro eacute tornar todas as accedilotildees possiacuteveis inclusive as decorrentes da sorte
mdash o que natildeo seria nada honesto admite o filoacutesofo mdash fruto do meacuterito daquele que se quer
enaltecer o que seria sinal de homem resoluto decidido (σημεῖον ἀρετῆς εἶναι προαιρέσεως)
No entanto esse conselho natildeo apenas natildeo eacute seguido por Agostinho e pelo discurso cristatildeo de
modo geral como ao reveacutes o exato oposto eacute o que se potildee em praacutetica ao atribuir-se tudo agrave
Graccedila divina agrave bondade preexistente daquele que natildeo precisou de nenhuma das criaturas que
criou as quais jamais fizeram por merecer o dom da vida (Conf 1311) ldquoPorque antes que eu
11 O livre arbiacutetrio (11430101) ldquoIn uoluntate meritum sitrdquo
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existisse existias tu e eu nem existia para que me concedesses que eu existisserdquo12 Isso eacute feito
contudo natildeo em detrimento do ecircthos da construccedilatildeo dum caraacuteter digno de louvor e fidedigno
e sim para construir um caraacuteter cristatildeo ou seja um caraacuteter natildeo pautado pela taacutebua de valores
eacuteticos claacutessicos que atribuiacutea grande peso agrave gloacuteria agrave honra ao denodo guerreiro e agrave justiccedila
inflexiacutevel e fria da lei13 e sim para destacar o homem jaacute de tipo medieval manso e humilde de
coraccedilatildeo misericordioso ao ponto de voltar a outra face numa palavra homem cuja honra estava
na cruz e no sangue de seu Salvador e para o qual ldquoo insensato de Deusrdquo era ldquomais saacutebio que
os homens e o fraco de Deus mais forte que os homensrdquo14 O ecircthos pois que se quer construir
eacute o do homem de feacute que se deixa conduzir pela matildeo de Deus na praacutetica das virtudes ditas
teologais feacute esperanccedila e caridade (πίστις ἐλπίς ἀγάπη) (1Cor 1313) O homem comumente
se orgulha das coisas que faz por si proacuteprio (τοῖς διrsquo αὐτόν) lembra Aristoacuteteles mas natildeo se
orgulha do que o destino lhe trouxe (διὰ τύχην) (1368a3-4) Agostinho bastante ao contraacuterio
natildeo apenas natildeo se orgulha do que fez mas se arrepende amargamente preferindo ao inveacutes da
honra agradecer a Deus todo o bem que lhe sucedeu por seu intermeacutedio divino ldquoe assim Se-
nhor apagaste todos os meus merecidos males para que natildeo retribuiacutesses agraves minhas matildeos nas
quais te deixei e te antecipaste a todos os meus merecidos bens para que retribuiacutesses agraves tuas
matildeos com as quais me fizesterdquo15
Destarte das trecircs qualidades independentes de demonstraccedilatildeo (ἔξω τῶν ἀποδείξεων)
que Aristoacuteteles aponta (1378a) como necessaacuterias ao orador ainda que em aparecircncia somente a
fim de que seja convincente o que de modo principal se refere agraves assembleias ou ao conselho
instacircncias tiacutepicas de deliberaccedilatildeo na Greacutecia antiga 1 prudecircncia ou bom-senso (φρόνησις) 2
excelecircncia moral (ἀρετή) e 3 boa disposiccedilatildeo (εὔνοια) nenhuma delas guarda nas Confissotildees
a importacircncia que o estagirita lhe atribui a natildeo ser que se considerem as virtudes ditas teologais
como pertencentes ao rol das aretaiacute aristoteacutelicas o que seria no miacutenimo um grave anacronismo
Por fim a Retoacuterica destaca o papel do ecircthos na disposiccedilatildeo das mateacuterias (τάξις) de modo
especiacutefico no proecircmio (exordium) Nos discursos do gecircnero judiciaacuterio por exemplo aquele que
se defende (ἀπολογουμένῳ) deve fazecirc-lo logo no proecircmio (πρῶτον) antes da acusaccedilatildeo ao
contraacuterio de quem acusa que deve fazecirc-lo no final (τῷ ἐπιλόγῳ) porque aquele que defende
deve construir seu ecircthos no iniacutecio antes da acusaccedilatildeo (πρὸς τὴν διαβολήν) (1415a29-30) a
12 Confissotildees (1311) ldquoquia et priusquam essem tu eras nec eram cui praestares ut essemrdquo 13 Em conformidade com a ideia veiculada pela maacutexima romana ldquodura sed lexrdquo 14 Paulo (1Cor 121-25) ldquoὅτι τὸ μωρὸν τοῦ θεοῦ σοφώτερον τῶν ἀνθρώπων ἐστὶν καὶ τὸ ἀσθενὲς τοῦ
θεοῦ ἰσχυρότερον τῶν ἀνθρώπωνrdquo 15Confissotildees (1311) ldquoEtenim domine deleuisti omnia mala merita mea ne retribueres manibus meis in
quibus a te defeci et praeuenisti omnia bona merita mea ut retribueres manibus tuis quibus me fecistirdquo
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fim de livrar-se de todo impedimento ou embaraccedilo como faz Agostinho nas Confissotildees utili-
zando-se dos primeiros livros ditos biograacuteficos para tanto Se o acusador deve criar o precon-
ceito contra o acusado no fim para que permaneccedila bem presente na memoacuteria dos juiacutezes o
defendente deve desvencilhar-se do preconceito logo no iniacutecio a fim de que seus argumentos
satildeo sejam prejudicados pela imagem da pecha moral que traz consigo Natildeo eacute apenas para o
ecircthos que o proecircmio eacute importante mas tambeacutem para o paacutethos pois eacute preciso tornar o auditoacuterio
bem disposto em relaccedilatildeo ao orador se se estaacute defendendo ou tornaacute-lo indisposto contra a outra
parte (1415a-34-36) se se estaacute acusando Para isso conta muito a aparecircncia de respeitabilidade
do falante pois ldquoas pessoas respeitaacuteveis recebem mais atenccedilatildeordquo diz Aristoacuteteles Pelo que o
orador deve esforccedilar-se por conseguir duas coisas do auditoacuterio 1 amizade (φίλον) e 2 com-
paixatildeo (ἐλεεινόν) (1415b22-28) tornaacute-lo amigo e compassivo fazendo-o crer que ele mesmo
o orador sente exatamente aquilo que censura ou louva ou seja que estaacute sendo sincero
(1415b28-29) Ora como falar da Graccedila de Deus sem que se recorra ao testemunho pessoal
pois a Graccedila diferentemente da recompensa ou do salaacuterio (merces) eacute distribuiacuteda gratuitamente
para o que por paradoxal pareccedila faz-se necessaacuterio ser pecador numa palavra estar desprovido
de qualquer meacuterito que o tornaria credor ao inveacutes de devedor meacuterito que poderia confundi-la
a Graccedila com pagamento ou retribuiccedilatildeo Evidente que se trata dum exagero pois os que tecircm
meacuterito natildeo estatildeo de modo nenhum excluiacutedos da Graccedila jaacute que natildeo faz muito sentido que natildeo
receba sem meacuterito16 senatildeo quem natildeo mereccedila
Seja como for esse ecircthos de sinceridade logra construir com bastante esmero Agostinho
ao reconhecer-se pecador devedor pequenino desprovido de meacuteritos e absolutamente depen-
dente da bondade da Providecircncia divina que se expressa pela Graccedila gratis
A segunda das provas da arte paacutethos
A movimentaccedilatildeo das emoccedilotildees (πάθος) embora uma prova (πίστις) que se diz teacutecnica
ou ldquoda arterdquo (ἔντεχνος) de modo aparentemente paradoxal natildeo tem que ver diretamente com
as provas demonstrativas ou com a causa em si e sim respeita aos juiacutezes (δικασταί) explica
Aristoacuteteles (1354a4-5)17 De fato o orador alcanccedila a persuasatildeo seja em que gecircnero for (o que
16 Isto eacute gratuitamente 17 Aristoacuteteles natildeo era muito simpaacutetico nem ao apelo eacutetico tampouco ao emocional que julgava ser um mal
necessaacuterio pois considerava errado manipular os sentimentos dos juiacutezes o que equivalia a corromper a proacutepria lei
que se tentava fazer valer ou de que se queria socorrer (1356a14) Argumento muito parecido esse (de destruir a
proacutepria lei a que se deveraacute recorrer depois) com o utilizado por Soacutecrates ao negar a proposta de fuga de Criacuteton no
diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo (50a-b) Pois bem no iniacutecio do tratamento da hupoacutekrisis (1403b22-) Aristoacuteteles
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natildeo exclui nem o epidiacutectico tampouco o deliberativo) mediatamente por meio dos ouvintes
(διὰ τῶν ἀκροατῶν) aqueles aos quais se dirige quando recorre ao paacutethos despertando ou
dirigindo suas emoccedilotildees (ὅταν εἰς πάθος) o que se faz pela accedilatildeo discursiva (ὑπὸ τοῦ λόγου)
Isso porque os juiacutezos (τὰς κρίσεις) dos ouvintes objetivo da accedilatildeo persuasiva variam sob a
influecircncia das emoccedilotildees tais como a dor (λύπη) a alegria (χαρά) a amizade (φιλία) o oacutedio
(μῖσος) etc Com efeito o orador natildeo tem por escopo a emoccedilatildeo do auditoacuterio em si mesma como
finalidade e sim a sua persuasatildeo a fim de que decida em favor de sua causa para o que as
emoccedilotildees cooperam vivamente como percebeu Aristoacuteteles ao dedicar grande parte do livro
segundo da Retoacuterica ao estudo das paixotildees da alma
Um dos meios mais eficazes para a movimentaccedilatildeo do paacutethos a fim de que se tenha ecircxito
no apelo emocional em vista dum fim ulterior natildeo satildeo as provas demonstrativas recomendadas
para o gecircnero apropriado (o judiciaacuterio no caso) o entimema e as maacuteximas provas que devem
ser descobertas na invenccedilatildeo e sim os recursos pertencentes a outra parte da retoacuterica a elocuccedilatildeo
(λέξις) Com efeito depois de encontrado o que dizer (εὕρεσις) e disposto as mateacuterias de modo
apropriado (τάξις) resta saber como dizecirc-lo Esse ldquocomordquo respeita sem duacutevida agrave forma do dis-
curso que se chama tambeacutem ldquoestilordquo poreacutem de modo nenhum se limita a isso como se fosse
apenas uma sua vestimenta Os recursos da elocuccedilatildeo para muito aleacutem da ornamentaccedilatildeo tecircm
forccedila persuasiva pois argumentam seja pela concisatildeo das figuras seja pelo ritmo e paralelismo
das construccedilotildees seja pelas imagens que evocam o que fazem de modo principal pondo em
destaque tanto o ecircthos como o paacutethos O ecircthos por exemplo no emprego do leacutexico que quando
recheado de estrangeirismos (ξένην ποιεῖν τὴν διάλεκτον) (1404b10-12) diz Aristoacuteteles con-
fere um ar de dignidade ao discurso promovendo por tabela o orador que se faz parecer digno
e nobre assim como aquilo que estaacute dizendo O paacutethos por sua vez quando o discurso eacute ldquoele-
vadordquo a um niacutevel suprarracional ou sublime pelo uso de recursos poeacuteticos dentre os quais se
destacam as figuras de repeticcedilatildeo como paralelismos epanalepses anadiploses antanaacuteclases
reconhece que tudo aquilo que respeita agrave apresentaccedilatildeo do discurso como voz volume tom altura ritmo harmo-
nia entre tais e que eacute muito importante nos certames dramaacuteticos e eacutepicos (τῶν ἀγώνων) quando entatildeo faz-se
necessaacuterio equilibrar esses elementos segundo cada uma das emoccedilotildees (πρὸς ἕκαστον πάθος) embora seja tam-
beacutem utilizado nas demais atividades poliacuteticas como assembleias deliberativas e tribunais o eacute apenas de modo
deploraacutevel Isso porque conquanto seja necessaacuterio mover as paixotildees do auditoacuterio e construir o caraacuteter do orador
discursivamente essa necessidade se deve tatildeo soacute agrave corrupccedilatildeo dos cidadatildeos (διὰ τὴν μοχθηρίαν τῶν πολιτῶν)
(1403b34-35) o que equivale a dizer do auditoacuterio (τοῦ ἀκροατοῦ) Assim sendo o recurso tanto ao ecircthos como
ao paacutethos deixa de ser questatildeo de correccedilatildeo (οὐκ ὀρθῶς) de certo ou errado passando a ser uma necessidade (ἀλλrsquo
ὡς ἀναγκαίου) Com efeito o justo (δίκαιον) seria defender acusar exortar e dissuadir movido apenas pelos
fatos (ἀγωνίζεσθαι τοῖς πράγμασιν) (1404a5-6) de maneira tal que o restante que Aristoacuteteles reputa fora da
demonstraccedilatildeo (ἔξω τοῦ ἀποδεῖξαι) ο que inclui ecircthos e paacutethos seria superfluidade (περίεργα ἐστίν) (1404a8)
Infelizmente poreacutem a realidade eacute que o orador precisa conhecer estes recursos a fim de poder defender-se e atingir
seus objetivos uma vez que os adversaacuterios certamente lanccedilam matildeo deles de modo quase sempre inescrupuloso
148
paronomaacutesias antimetaacuteboles poliptotos etc E fique claro que dizer que Aristoacuteteles natildeo via com
bons olhos o (mau) recurso aos apelos eacutetico e pateacutetico nos tribunais natildeo significa dizer que
desprezasse os mecanismos da elocuccedilatildeo o que implicaria dizer que cresse o homem ser dotado
apenas de razatildeo excluiacutedos sentimentos e caraacuteter a natildeo dizer da vontade Ao contraacuterio Aristoacute-
teles bem reconhecia que em todo tipo de aprendizado (ἐν πάσῃ διδασκαλίᾳ) o estilo se faz
mateacuteria de certa importacircncia uma vez que algo se torna claro (πρὸς τὸ δηλῶσαι) por meio do
modo como eacute dito (ὡδὶ ἢ ὡδὶ εἰπεῖν) embora relegasse a questatildeo do estilo ao niacutevel da aparecircn-
cia (ἀλλrsquo ἅπαντα φαντασία ταῦτrsquo εστὶ) cuja finalidade seria apenas agradar o ouvinte (πρὸς
τὸν ἀκροατήν) ouvinte esse por sua vez cuja corrupccedilatildeo (μοχθηρία) seria a verdadeira causa
de tudo que natildeo eacute apodiacutectico na retoacuterica (1404a7-8) Em assim sendo o estilo (λέξις) seria um
mal necessaacuterio uma ferramenta que embora potencialmente injusta seria uacutetil para conferir
clareza ao discurso assim como todos os demais elementos de persuasatildeo natildeo-apodiacutecticos ou
extrademonstrativos E isso se justifica diz o filoacutesofo de modo peremptoacuterio porque ningueacutem
ensina a fazer geometria desse modo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) isto eacute nem pelo
recurso ao paacutethos nem pelo ecircthos tampouco por qualquer outra ferramenta indicada para a
elocuccedilatildeo como as figuras (1404a12) Compreende-se essa visatildeo deveras depreciativa da elo-
cuccedilatildeo por parte do filoacutesofo pois como ele mesmo diz no terceiro livro de sua Retoacuterica ao
empreender o tratamento da actio ou representaccedilatildeo do discurso (ὑπόκρισις) ateacute ao tempo da
escritura da obra natildeo havia ainda nenhuma arte isto eacute nenhum manual de retoacuterica voltado para
a mateacuteria (οὔπω δὲ σύγκειται τέχνη περὶ αὐτῶν) porque a leacuteksis soacute havia sido notada pou-
quiacutessimo antes (ἐπεὶ καὶ τὸ περὶ τὴν λέξιν ὀψὲ προῆλθεν) descaso que se justificava pelo fato
de o estilo mdash considerado entatildeo como mera ornamentaccedilatildeo do discurso mdash ser julgado inferior
(φορτικὸν) tema indigno das preocupaccedilotildees dum homem livre criacutetica que natildeo evita endossar o
filoacutesofo (καλῶς ὐπολαμβανόμενον) (1403b35-6)
A despeito desta postura criacutetica adotada por Aristoacuteteles e de seu juiacutezo negativo a respeito
do ecircthos e do paacutethos postura raramente admitida pelos estudiosos atuais da retoacuterica o que
importa para os fins deste artigo contudo eacute seu poder argumentativo uma vez que sua impor-
tacircncia natildeo pode ser negada seja ela justificada ou natildeo de par com a finalidade filosoacutefica que
lhes imprime o rhetor de Hipona Portanto justo ou natildeo (nos tribunais e assembleias) o fato
admitido por Aristoacuteteles eacute que a elocuccedilatildeo afeta sobremodo o paacutethos sendo de par com o ecircthos
reconhecido como a mais persuasiva (κυριωτάτη) das provas (1356a13) altamente eficaz para
os objetivos da argumentaccedilatildeo pois resta claro que por meio do estilo se consegue mover as
emoccedilotildees (1408a16) seja quando se fala com indignaccedilatildeo audaciosa (ὕβρις) seja com raiva
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(ὁργιζομένου) impiedade (ἀσεβή) ou vergonha (αἰσχρά) O estilo adequado (ἡ οἰκεία λέξις)
que eacute aquele em que os elementos do paacutethos (παθητική) e do ecircthos (ἠθική) satildeo proporcionais
(ἀνάλογον) aos temas subjacentes (τοῖς ὐποκειμένοις πράγμασιν) (1408a10-11) faz com
que um dado assunto seja mais persuasivo Aleacutem disso remata Aristoacuteteles o ouvinte sempre
simpatiza (συνομοπαθεῖ ὁ ἀκούων) com quem fala de modo emocional (παθητικῶς
λέγοντι) ainda que esse natildeo diga nada (κἂν μηθὲν λέγῃ) (1408a23-4)
Reconhecido o vigor (δύναμις) natildeo apenas pateacutetico mas tambeacutem argumentativo da elo-
cuccedilatildeo resta ver como Agostinho se utiliza de seus recursos nas Confissotildees a fim de atingir seus
objetivos numa palavra a fim de fazer filosofia Pois bem as descriccedilotildees que melhor instigam
as emoccedilotildees satildeo as que fazem apelo agrave imaginaccedilatildeo e aos sentidos descriccedilotildees viacutevidas de cenas e
eventos contam muito como o famigerado roubo das peras (Conf 249) a prisatildeo de Aliacutepio
(6914) ou a cena do jardim de Milatildeo (81125-27) por exemplo as inumeraacuteveis metaacuteforas e a
prosopopeia de oacutergatildeos humanos que passam a ser dotados de matildeos pernas ouvidos como as
matildeos do coraccedilatildeo que se estendem em prece a Deus os relatos de laacutegrimas pungentes que se
vertem repetidas vezes enfim descriccedilotildees essas que tecircm potencial enorme para despertar fortes
sentimentos Do mesmo modo o uso de hipeacuterboles e outras tantas figuras se faz extremamente
uacutetil para criar o efeito emocional desejado Todavia nada talvez seja tatildeo eficiente nesse sentido
quanto o vocabulaacuterio o uso de palavras carregadas de intensa conotaccedilatildeo pateacutetica E no apelo
agraves emoccedilotildees pode-se dizer esteja uma das chaves de leitura das Confissotildees ao menos retoacuterica
De fato a linguagem da obra estaacute repleta de figuras cujo efeito principal eacute o despertar dos
sentimentos Mas de quem e para quecirc A sua audiecircncia soacute pode ser depreendida de modo in-
direto por meio da linguagem do estilo e do tema o que natildeo se constitui tarefa das mais faacuteceis
por tratar-se de obra multifacetada de linguagem muito elaborada que prima pela sofisticaccedilatildeo
mas que natildeo despreza uma certa tonalidade menos erudita que se pode ateacute denominar em
alguma medida popular ou humilde De fato pelo recurso aos salmos e textos escrituraacuterios
com seu respectivo campo semacircntico permeado de expressotildees da liacutengua grega vulgar (κοινή)
traduzidas ou transliteradas em latim conhecidos de toda comunidade cristatilde natildeo apenas por
serem lidos mas principalmente por sua funccedilatildeo lituacutergica eacute sem duacutevida uma linguagem
(sermo) popular ou humilis todavia pelos mecanismos retoacutericos extremamente requintados e
pelas referecircncias a toda uma cultura filosoacutefica de par com uma argumentaccedilatildeo em muitas pas-
sagens nada singela especialmente nos livros 1 8 e de 9 a 13 pode-se considerar igualmente
elevadiacutessima Portanto humilde e elevada eacute a linguagem das Confissotildees constituindo em si
mesma um oximoro
150
Diante desse desafio de escrever tanto para a gente mais simples como para filoacutesofos
desafio que se exprime nesse caso pela linguagem supotildee-se que Agostinho natildeo tenha simples-
mente pretendido abaixar o registro de seu discurso descendo aos simples e pequeninos (ad
catechizandos rudes) muito ao contraacuterio ao que parece pretendia elevar-se ou melhor ser
elevado ao confessar-se arrependido penitenciando-se mas tambeacutem ao confessar sua feacute e seu
louvor enaltecendo e reconhecendo a graccedila de Deus em sua vida Em sendo assim ao ser ele-
vado por Deus pela confissatildeo pretende igualmente mover as almas incitando-lhes semelhante
elevaccedilatildeo ou quando natildeo o desejo de elevaccedilatildeo desejo de que se deixassem igualmente elevar
como ele confessava desejar o que se pode considerar sem duacutevida uma meta de caraacuteter pastoral
Portanto sua missatildeo quanto ao paacutethos eacute tambeacutem a de mover as almas agrave salvaccedilatildeo que
se pode sintetizar na vontade de ser elevado e de para lanccedilar matildeo duma contradiccedilatildeo merecer
por uma espeacutecie de ascese cataacutertica a graccedila divina a misericoacuterdia do Deus justiacutessimo Ora
disso decorre a possibilidade duma outra funccedilatildeo da linguagem extremamente comovente fruto
dos recursos da elocuccedilatildeo a que recorre Agostinho nas Confissotildees e interligada com essa funccedilatildeo
dita pastoral de elevar as almas uma funccedilatildeo que se pode compreender como simultaneamente
propedecircutica e filosoacutefica Com efeito se uma das funccedilotildees deste paacutethos que se diz de caraacuteter
pastoral pretende comover positiva e negativamente incitando a um soacute tempo o desejo de
salvaccedilatildeo e o de horror agrave perdiccedilatildeo o desejo de buscar Deus e de evitar o mal de buscar ser mais
pela proximidade do Ser supremo e de evitar ser menos ou deixar de ser pelo afastamento desse
mesmo Ser como se percebe sobremodo nos livros da parte considerada biograacutefica da obra o
que natildeo implica de modo algum a exclusatildeo dos restantes livros a outra funccedilatildeo por sua vez
relacionada intimamente agrave primeira de que se pode dizer seja consequecircncia natural que se
exacerba tambeacutem a partir dos recursos da elocuccedilatildeo e que como se disse tem caraacuteter prope-
decircutico compreende-se como uma funccedilatildeo de purificaccedilatildeo filosoacutefica de afastamento progressivo
das coisas deste mundo de afastamento da ldquocarnerdquo se se pode dizer tendo em vista o despren-
dimento rumo a uma vida mais espiritual de proximidade com o Ser o puro Inteligiacutevel que se
transubstancia por sua vez num projeto de vivecircncia cristatilde o que se destaca sobremodo a partir
do livro novo encontrando sua foz nos estertores do livro derradeiro Donde ser liacutecito afirmar
que os livros da parte biograacutefica das Confissotildees do primeiro ao oitavo tecircm tambeacutem essa fun-
ccedilatildeo de purificaccedilatildeo tanto das emoccedilotildees como da razatildeo ou seja de disciplinar ou exercitar asce-
ticamente a alma (exercitatio animi)18 a fim de que os leitores e ouvintes pudessem estar pre-
parados para o que havia de vir nos livros subsequentes E isso parece estar em harmonia com
18 Ἥ ἄσκησις ἥ τῆς ψυχῆς
151
o projeto filosoacutefico platocircnico-cristatildeo que Agostinho tinha para sua vida e que colocou em praacute-
tica desde os tempos preacute-batismais de Cassiciacuteaco ateacute ser interrompido pela sua consagraccedilatildeo
sacerdotal (391 dC) um projeto propedecircutico-purificador
E de fato se se pode aventar que esse projeto cataacutertico da razatildeo encontra seu ponto de
saiacuteda no expurgo do ceticismo de tipo neoacadecircmico como se percebe nos trecircs livros intitulados
Contra Academicos desenvolve-se sobremodo nas paacuteginas do diaacutelogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monoacutelogo com os Soliloacutequios obras do mesmo periacuteodo
Formato monoloacutegico esse denominado por Dupuy-Trudelle (1998 p 1198) ldquodesdobramentordquo
que eacute bem possiacutevel tenha servido de laboratoacuterio para as proacuteprias Confissotildees sugere a autora
refletindo a intenccedilatildeo de Agostinho apesar da excelecircncia da feacute de levar as exigecircncias da razatildeo
ateacute ao limite extremo num esforccedilo de purificaccedilatildeo num ir-aleacutem das paixotildees e desiludir-se sobre
si mesmo Ora estar iludido acerca de si mesmo natildeo eacute impedimento agrave feacute mas o eacute ao acesso agrave
convicccedilatildeo intelectual verdadeira Portanto para chegar-se ao conhecimento define esta autora
(ibid pp 1198-9) faz-se mister como condiccedilatildeo uacutenica a ldquolibertaccedilatildeo da razatildeo de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesmardquo libertaccedilatildeo a que os Soliloacutequios datildeo curso
Pode-se compreender que para desenlamear a consciecircncia dos similisavoirs libertaacute-
la de toda ilusatildeo psicoloacutegica ensinaacute-la que o desejo da verdade natildeo eacute ainda a posses-
satildeo da verdade permitir-lhe ir aleacutem do conflito de interesses que leva a opiniatildeo a
revoltar-se contra a verdade seja preciso mensurar a distacircncia entre o sujeito e si
mesmo Ora fazecirc-lo eacute um convite a mensurar a distacircncia entre si e o conhecimento de
Deus Eis entatildeo todo o sentido do exerciacutecio proposto pelo ldquosoliloacutequiordquo mensurar uma
e outra19
Natildeo parece haver duacutevidas de que os Soliloacutequios trazem em si de modo embrionaacuterio o estilo
que haveria de consagrar sobretudo a partir das Confissotildees quando entatildeo dispensa o combate
direto de ideias preferindo ldquodesdobrar-serdquo e deixar-se interrogar por si mesmo ainda que de
modo proleacuteptico continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas
Todavia eacute mais que provaacutevel que esta exigecircncia natildeo tenha surgido do nada e sim pertenccedila a
um projeto filosoacutefico maior que englobe as demais obras de Cassiciacuteaco sendo-lhe entatildeo um
como que desenvolvimento natural
No proacutelogo do De ordine (13-4) Agostinho argumenta que o homem por ser um des-
conhecido de si mesmo natildeo consegue perceber a ordem que reina em todo o universo ordem
providencial em que ele estaacute inserido e que para conseguir conhecer-se seria necessaacuterio entrar
em si mesmo ali permanecendo afastado dos sentidos lugar em que poderia entatildeo curar-se das
feridas que as opiniotildees vulgares infligem agrave alma seja pelo ldquofogordquo do ldquoisolamentordquo conforme
19 DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Les Confessions Paris Gal-
limard 1998 p 1206
152
se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
153
soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
154
As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
155
menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
156
Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
157
sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
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(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
159
articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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137
se de algo seja duma verdade ideia crenccedila ou praacutetica E todo aquele que deve ser persuadido
seja o proacuteprio autor do discurso ou um outro se faz indubitavelmente juiz (1391b11-12)
(ἁπλῶς κρίτης) Deste modo esteja-se disposto contra um oponente (πρὸς ἀμφισβητοῦντα)
ou contra uma teoria (πρὸς ὑπόθεσιν) eacute preciso uma vez e sempre recorrer agrave argumentaccedilatildeo
(τῷ λόγῳ ἀνάγκη χρῆσθαι) a fim de defender um ponto de vista ou destruir o seu contraacuterio
(1391b13-14) o que eacute apropriado ao gecircnero de discurso epidiacutectico acima de tudo (ὡσαύτως
ἐν τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) como se se estivesse argumentando diante de um verdadeiro juiz
(ὥσπερ πρὸς κρίτην) que no caso eacute o espectador (θεωρός) aquele que contempla observa
aprende agrave maneira dum disciacutepulo dum arguidor dialeacutetico ou do proacuteprio filoacutesofo se este estiver
apenas escrevendo
Os gecircneros retoacutericos nas Confissotildees consideraccedilotildees teoacutericas
Quando se estaacute diante de temas controversos que aceitam ao menos dois modos dife-
rentes de pensar como os temas tipicamente retoacutericos (1357a1-5) a demonstraccedilatildeo apodiacutectica
(ἀπόδειξις) raramente eacute possiacutevel diz Olivier Reboul (2000 p 27) natildeo sendo nada ldquocientiacuteficardquo
a exigecircncia de ldquorespostasrdquo de caraacuteter cientiacutefico como ocorre nas Confissotildees por exemplo
quando se quer falar das ldquocoisasrdquo de Deus Contudo entre a luz do que se pode apreender cien-
tificamente (e demonstrar apodicticamente) e a obscuridade da mais completa ignoracircncia acerca
do misteacuterio abissal do Ser encontra-se todo um universo de possibilidades retoacutericas cujo rei-
nado pertence ao argumento E se argumentar natildeo eacute senatildeo propor y para que se admita x como
bem o ilustra esse autor (ibid pp 91-2) que se poderia argumentar acerca do Ser enquanto
Ser (x) sem que se circunscrevesse a dizer de seus pseudopredicados (y) daquilo que apenas
eacute Recursos haacute poreacutem que permitem dizecirc-lo argumentando enquanto Ser ainda que de modo
ilusoacuterio obliacutequo silencioso a partir dos mecanismos que a arte retoacuterica oferece seja com o
auxiacutelio do ecircthos do paacutethos ou do loacutegos os trecircs gecircneros de provas ditas teacutecnicas
Um dos objetivos de Agostinho ao pretender falar de Deus tema indubitavelmente con-
troverso (ἀμφισβητήσιμος) na referida acepccedilatildeo aristoteacutelica isto eacute passiacutevel de disputa por ser
natildeo-apodiacutectico pelo que igualmente retoacuterico pode-se dizer seja pocircr em destaque primordial-
mente o loacutegos o que se faz sobretudo por meio dum discurso do gecircnero epidiacutectico em que
predomina a funccedilatildeo referencial da linguagem uma pseudoterceira pessoa discursiva melhor
compreendida como uma natildeo-pessoa ou seja aquilo de que se fala (περὶ οὗ λέγει) (1358b1)
Todavia jamais deixa de pretender comover (πάθος) poreacutem natildeo especificamente quando fala
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com Deus ο ldquopara quemrdquo (πρὸς ὅν) (1388b1) pois o Ser divino enquanto segunda pessoa
discursiva eacute onisciente e embora deixe-se dalgum modo misterioso comover por causa de sua
misericoacuterdia por ser igualmente justo ele cujo juiacutezo eacute inexoraacutevel torna a tarefa quanto ao
paacutethos um tanto obstada Por isso os esforccedilos de Agostinho no sentido de comover devem vol-
tar-se nem sempre e de imediato a Deus e sim aos seus leitores o auditoacuterio cristatildeo a quem o
filoacutesofo confessa de fato dirigir-se (Conf 235) ldquoA quem estou relatando estas coisas Ora
natildeo a ti meu Deus e sim na tua presenccedila relato-as aos de meu gecircnero ao gecircnero humano por
pequenina a parcela dos que possam deparar com estes meus escritosrdquo6
Quer comover portanto aleacutem de fazer converter para Deus como se viu convertido
fazendo com que as almas se elevem movidas pela penitecircncia o que natildeo se faz senatildeo tendo em
vista uma accedilatildeo futura (περὶ τῶν μελλόντων) E se para falar de Deus carece dum loacutegos apro-
priado ao louvor (ἔπαινος) que eacute tambeacutem contemplaccedilatildeo (θεωρεῖν) contemplaccedilatildeo do Belo (τὸ
καλόν) e do Bem (τὸ ἀγαθόν) a comoccedilatildeo natildeo se faz sem os recursos do paacutethos tampouco
prescindindo do ecircthos a fim de edificar um caraacuteter penitente digno do arrependimento ou con-
versatildeo mental (μετάνοια) a que todo cristatildeo deve submeter-se antes de crer no Evangelho
como admoestava Cristo (Mc 114-15) ldquoArrependei-vos [= convertei-vos] e crede no Evange-
lhordquo (μετανοεῖτε καὶ πιστεύετε ἐν τῷ εὐαγγελίῳ) Portanto Agostinho carece tambeacutem de
construir sempre pelo discurso (διὰ τοῦ λόγου) seu ecircthos discorrendo acerca daquilo que de
edificante se passou consigo (περὶ τῶν γεγενημένων) (1358b5) para os ldquojuiacutezesrdquo (δικασταί)
do auditoacuterio cristatildeo pois seu preteacuterito precisa de ser desenodoado Destarte ao narrar suas
desventuras pregressas confessando-se a Deus e aos homens potildee em destaque seja um Tu
divino que eacute tambeacutem a terceira pessoa discursiva e seu referente pois eacute dele que se fala seja
um tu humano semelhante a si seu leitor Pelo que loacutegos ecircthos e paacutethos se fazem necessaacuterios
de modo temperado segundo as tarefas e os objetivos que se desdobram a cada passo da obra
Tendo pois construiacutedo um ecircthos confiaacutevel a partir de suas gestas pregressas segundo
a taacutebua de valores cristatildeos como a humildade ou a misericoacuterdia por exemplo pode Agostinho
direcionar daiacute em diante sua atenccedilatildeo para o futuro ao modo do gecircnero deliberativo a fim de
comover as almas exortando-as (προτρέπω) seja a voltar-se para Deus o Fim uacuteltimo ou Bem
supremo que se louva pelos recursos do loacutegos seja dissuadindo-as (ἀποτρέπω) de seguir o
caminho do mal que equivale a um afastamento deste mesmo Fim uacuteltimo o que eacute tambeacutem
tarefa do paacutethos quando entatildeo o discurso potildee em destaque a segunda pessoa requerendo um
6 (Conf 235) ldquoCui narro haec neque enim tibi deus meus sed apud te narro haec generi meo generi
humano quantulacumque ex particula incidere potest in istas meas litterasrdquo
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domiacutenio sobre as paixotildees a fim de conduzir o auditoacuterio ao objetivo (τέλος) almejado que
como se disse eacute sempre futuro (περὶ τῶν μελλόντων) Todavia se natildeo se delibera tendo em
vista o fim que se persegue (οὐ περὶ τοῦ τέλος) em conformidade com o que diz Aristoacuteteles
e sim aquilo que leva ateacute ele (ἀλλὰ περὶ τῶν πρὸς τὸ τέλος) (1352a15-19) ou seja os meios
os quais por sua vez residem nas accedilotildees (κατὰ τὰς πράξεις) tem-se como sequecircncia necessaacuteria
que 1 o uacutetil serve a um propoacutesito ulterior um fim e que 2 se o fim for bom o uacutetil natildeo apenas
levaraacute a esse bem mas seraacute tambeacutem de algum modo bom ainda que mediatamente e em menor
grau Daiacute que natildeo apenas o uacutetil em favor de que se delibera seja bom mas tambeacutem a praacuteksis
contraacuteria o seja a saber a rejeiccedilatildeo do nocivo do inuacutetil E com efeito seja para Aristoacuteteles ou
Agostinho o Bem (ἀγαθόν) uacuteltimo ou supremo pode ser definido como sendo aquilo que se
deve buscar (αἱρετόν) em vista de si mesmo (αὑτοῦ ἕκενα) e natildeo de algo ulterior (καὶ μὴ
ἄλλου) (1363b12-14) Esse Fim (τέλος) que coincide com o Bem supremo eacute aquilo em vista
de que (οὗ ἕνεκα) todo o resto (τὰ ἄλλα) se faz (1363b16-17) Em se admitindo com o autor
da Retoacuterica que esse Fim uacuteltimo embora sendo desejado natildeo seja objeto imediato de delibe-
raccedilatildeo e sim as accedilotildees (πράξεις) por meio de que se possa chegar a ele percebe-se sem muito
esforccedilo que as deliberaccedilotildees acerca deste Fim chame-se eudaimoniacutea ou Ser supremo fazem-se
sobremodo a partir de accedilotildees que podem ser virtuosas quando entatildeo se aproxima do objetivo
ou viciosas quando dele se afasta restando manifesto e inconteste o potencial tanto do ecircthos
como do paacutethos no tratamento daquilo que para Agostinho se traduz em princiacutepio pela uita
beata e posteriormente pelo Saacutebado eterno seja nas quatro virtudes cardeais justiccedila tempe-
ranccedila prudecircncia e coragem ou nas trecircs teologais feacute esperanccedila e caridade a serem praticadas
nesta vida tendo em vista o Bem uacuteltimo e supremo Deus seja por outra na comoccedilatildeo necessaacuteria
das almas que se deve aproximar desta mesma uita beata ou afastar da uita misera sem perder
de vista o fim uacuteltimo que se almeja
E se o deliberativo tem sua funccedilatildeo na exortaccedilatildeo tampouco se faz ausente da obra o
gecircnero judiciaacuterio que contempla sobremodo accedilotildees de acusaccedilatildeo (κατηγορία) e de defesa
(ἀπολογία) (1358b) De fato que faz Agostinho na parte dita biograacutefica da obra enquanto
narra suas desventuras preteacuteritas senatildeo acusar-se de seus erros como a experiecircncia entre os
maniqueus entre os ceacuteticos ou mesmo as aventuras ditas libidinosas em Cartago ou entatildeo
fazer a apologia da Graccedila divina da continecircncia da conversatildeo de sua matildee (ao contraacuterio do pai
que ele prefere acusar) Acusaccedilatildeo e defesa portanto seja de atos seus preteacuteritos (περὶ τῶν
γεγενημένων) (1358b5) seja de doutrinas ou ideias que reputa natildeo apenas inimigas do cami-
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nho que leva ao Fim uacuteltimo por ele eleito mas tambeacutem antagocircnicas agrave proacutepria concepccedilatildeo des-
posada deste Ser supremo como o dualismo maniqueu por uma ou o ceticismo de tipo neoa-
cadecircmico por outra que perigosamente ameaccedilava uma das proacuteprias virtudes teologais a natildeo
dizer duas feacute e a esperanccedila por meio duma descrenccedila radical na possibilidade de acesso a
noccedilotildees fundamentadas acerca do verdadeiro
E se se podem perceber nuanccedilas do deliberativo e do judiciaacuterio na exortaccedilatildeo ou dissu-
asatildeo na acusaccedilatildeo e na defesa muito mais no caso do gecircnero predominante expresso pelas Con-
fissotildees o epidiacutectico que segundo Aristoacuteteles compreende tanto o louvor (ἔπαινος) como a
censura (ψόγος) (1358b12-3) De fato que faz Agostinho ao longo das Confissotildees senatildeo cen-
surar o que afasta de Deus louvando o que dele aproxima o homem censurar o pecado lou-
vando seu contraacuterio as virtudes fazer o elogio da vida feliz (beata uita) vituperando seu
oposto a infeliz (misera) E mesmo quando censura seu objetivo natildeo eacute senatildeo louvar louvar o
que se edifica como antipodal daquilo que se estaacute censurando pois natildeo se trata de discorrer
sobre o viacutecio sobre o torto sobre o caminho errado que se natildeo deve percorrer numa palavra
natildeo se trata de discorrer sobre o mal porque ele natildeo existe (entenda-se o mal ontoloacutegico) Ao
contraacuterio trata-se de louvar o que Eacute o Ser por excelecircncia Deus e toda a sua obra cujo paro-
xismo natildeo eacute outro senatildeo o momento em que cria o homem Paradoxal seria pois limitar-se ao
vitupeacuterio o que equivaleria a ressaltar apenas e tatildeo somente aquilo que natildeo possui existecircncia
real o mal ou antisser7 como quem escrevesse um livro sobre o que natildeo eacute As Confissotildees
portanto empreendem sobretudo um discurso de louvor que se bem pode denominar filosofia
do louvor a qual se enquadra perfeitamente no gecircnero epidiacutectico cuja tocircnica eacute dada pelo loacutegos
enquanto referente aquilo de que se fala (περὶ οὗ λέγει) (1358b1) referente de muacuteltiplos sen-
tidos que se pode compreender natildeo apenas como a Palavra que eacute Deus mas tambeacutem a palavra
de Deus a palavra sobre a palavra de Deus a palavra sobre o Deus que eacute Palavra e profere
palavras embora esse mesmo referente enquanto Verbo divino seja inefaacutevel donde ser neces-
saacuterio que esse loacutegos seja tambeacutem linguagem nos recursos retoacutericos precisos a que se diga o
indiziacutevel
Todos os trecircs gecircneros portanto prestam auxiacutelio reciacuteproco pois quem louva no presente
deve fazecirc-lo tambeacutem por meio das lembranccedilas do passado (ἀναμιμνήσειν τὰ γενόμενα) ou das
conjecturas e esperanccedilas futuras (προεικάζειν τὰ μέλλοντα) e o justo por sua vez objeto das
reflexotildees judiciaacuterias pode igualmente ser feio ou belo uacutetil ou inuacutetil mateacuteria dos outros dois
7 O que de esdruacutexulo possa haver neste composto se deve agraves novas regras do Acordo Ortograacutefico de 1990 O
que se quis expressar eacute o contraacuterio do ser ldquoanti-serrdquo que natildeo mais se grafa assim com hiacutefen
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gecircneros assim como uacutetil e o inuacutetil mateacuteria de deliberaccedilatildeo que podem ser justos ou seu con-
traacuterio belos ou natildeo ou ainda o bom e o mau que podem muito bem ser inuacuteteis ou natildeo justos
ou natildeo em conformidade com o que diz Aristoacuteteles justificando assim a mistura dos gecircneros
retoacutericos (1358b27-1359a4) Poreacutem o gecircnero epidiacutectico parece ser o mais completo dos trecircs
uma vez nem focar demasiado no passado como o judiciaacuterio tampouco no futuro como o
deliberativo ao contraacuterio ao discorrer acerca do presente (ὁ παρὼν χρόνος) louvando ou
censurando as coisas que de fato satildeo (κατὰ τὰ ὐπάρχοντα) eacute-lhe permitido voltar-se tanto agraves
reminiscecircncias preteacuteritas quanto ao que pode vir a ser como se percebe nitidamente do primeiro
ao derradeiro livro das Confissotildees que nem se limitam a perscrutar o passado tampouco a
especular esperanccedilosamente sobre o futuro ou mesmo sobre o presente na investigaccedilatildeo do
proacuteprio rememorar quando entatildeo empreendem o louvor do que eacute foi e haacute de ser de par com o
do que sempre e indefectivelmente eacute
Uma uacuteltima palavra acerca da retoacuterica se faz necessaacuteria antes de voltar a atenccedilatildeo para
os trecircs gecircneros de provas teacutecnicas nas Confissotildees Quando se propotildee apresentar uma resposta
diz Michel Meyer (2010 p 53) a retoacuterica tende a ocultar o problemaacutetico fazendo com que a
questatildeo de base subjacente a todo discurso questatildeo em torno de que se reuacutenem ou dispersam
as partes pareccedila resolvida No entanto isso de modo nenhum eacute o que se percebe na retoacuterica
filosoacutefica de Agostinho que opera agraves avessas natildeo projetando de modo nenhum esconder o
problemaacutetico e sim permitindo lidar com ele dizendo-o embora sua insoluacutevel inefabilidade E
de fato se se tome por base a proacutepria definiccedilatildeo da retoacuterica elaborada pelo mesmo Meyer (2012
p 21) como sendo a negociaccedilatildeo entre a distacircncia criada por um dado problema que se constitui
sua proacutepria medida percebe-se no que tange ao Ser natildeo haver distacircncia entre interlocutores
para quem a sua inefabilidade eacute paciacutefica quer se o identifique com a Divindade cristatilde ou natildeo
E em natildeo havendo essa distacircncia qual a finalidade da retoacuterica sendo ela a suposta negociaccedilatildeo
que se estabelece em funccedilatildeo dum dado problema que se mede exatamente por essa distacircncia
inexistente Logo em natildeo havendo uma distacircncia que se constituiacutesse a medida do problemaacutetico
desnecessaacuterio seria argumentar inexistindo o problema Contudo isso se refere de modo espe-
cial agraves retoacutericas forense e deliberativa natildeo agrave epidiacutectica e menos ainda a epidiacutectica com finali-
dade filosoacutefica como se daacute no caso de Agostinho Nas Confissotildees a distacircncia que se quer
negociar eacute a que se supotildee entre o conhecido desconhecimento de Deus e seu desconhecido
conhecimento ou seja a distacircncia entre o nada que se pode conhecer de Deus e o tudo que se
desconhece entre o nada que dele se pode dizer e o tudo que se natildeo diz E como essa distacircncia
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eacute inegociaacutevel resta agrave retoacuterica simular a edificaccedilatildeo duma estrutura especial a linguagem per-
mitindo que pela proacutepria expressatildeo do paradoxo do estranhamento da perplexidade se diga
sem dizer e se natildeo diga dizendo Numa palavra a retoacuterica permite que Agostinho estique a
corda do arco de seu dizer para aleacutem da tensatildeo do compreensiacutevel apodiacutectico para aleacutem do
alcance da razatildeo que seja capaz carreando o leitor consigo de tangenciar o suprarracional a
natildeo dizer irracional pois natildeo desprovido de razatildeo e sim muito aleacutem dela
A primeira das provas da arte ecircthos
Aleacutem das provas loacutegicas que envolviam mateacuterias e meacutetodos cujo apelo se voltava pri-
mordialmente a natildeo dizer exclusivamente para a razatildeo a retoacuterica reconhecia outros meios de
prova pois se dera conta havia muito de que as pessoas natildeo satildeo apenas dotadas de capacidade
racional mas tambeacutem de sentimentos e de vontade pelo que se fazia necessaacuterio lidar com elas
natildeo como deveriam ser mas como realmente eram lembram Corbett e Connors (1999 p 72)
Destarte tomando por base a definiccedilatildeo aristoteacutelica de que a retoacuterica eacute a arte de descobrir todos
os meios possiacuteveis de persuasatildeo8 torna-se oacutebvio o recurso a tudo aquilo que se comprove efi-
ciente para esse fim Neste sentido afianccedilam esses autores o apelo eacutetico pode ser mais eficaz
que o apelo agrave razatildeo pois
mesmo o mais engenhoso e sensato apelo agrave razatildeo pode fracassar diante de ouvidos
amoucos se a audiecircncia reagiu desfavoravelmente ao caraacuteter do orador O apelo eacutetico
eacute especialmente importante no discurso retoacuterico porque aqui estamos lidando com
assuntos acerca dos quais eacute impossiacutevel ter-se certeza absoluta e em que as opiniotildees
satildeo divididas
Com efeito o ecircthos prova teacutecnica que se erige a partir do caraacuteter moral do orador segundo
reconhecia Aristoacuteteles (1356a13) constitui-se no meio mais eficaz de prova (κυριωτάτην ἔχει
πίστιν τὸ ἦθος)
Quintiliano por sua vez em suas Instituiccedilotildees Oratoacuterias (3813) adotando integral-
mente a teoria aristoteacutelica argumenta que dos trecircs gecircneros de discurso o deliberativo era o que
mais necessitava do apelo eacutetico ou seja o discurso que mais se apoiava no caraacuteter do orador
que ele denominava auctoritas
Nas deliberaccedilotildees poreacutem a autoridade eacute o que possui maior valor Com efeito natildeo
apenas deve ser considerado muitiacutessimo prudente como tambeacutem muitiacutessimo virtuoso
todo aquele que deseje que todos acreditem nos seus pensamentos acerca das coisas
8 (1355b25-6) ldquoSeja entatildeo a retoacuterica a faculdade de considerar acerca de cada coisa o que eacute possivelmente
persuasivordquo (ἔστω δὴ ἡ ῥητορικὴ δύναμις περὶ ἕκαστον τοῦ θεωρῆσαι τὸ ἐνδεχόμενον πιθανόν)
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proveitosas e dignas de honra [] natildeo haacute quem negue que as deliberaccedilotildees satildeo feitas
segundo os caracteres dos oradores9
Em conformidade com o que se argumentou um pouco antes a partir das consideraccedilotildees do
proacuteprio Aristoacuteteles acerca da mistura de gecircneros retoacutericos (1358b27-1359a4) sobre a predomi-
nacircncia do gecircnero epidiacutectico nas Confissotildees eacute perceptiacutevel natildeo apenas a importacircncia do apelo
eacutetico que natildeo eacute das menores por tratar-se duma obra primordialmente na primeira pessoa e
que sob certo ponto de vista quer falar de si mas principalmente pelo que se disse acerca de
um dos objetivos da obra de caraacuteter ldquodeliberativordquo ou antes de caraacuteter ldquopastoralrdquo de mover
as almas para Deus (conuersio ad deum) ao modo dum loacutegos protreacuteptico afastando-as do pe-
cado e de tudo que as manteacutem distantes do Bem (auersio a bono) objetivo que se cumpre
escorado no caraacuteter eacutetico que se esforccedilou por burilar ao longo primordialmente dos livros ditos
autobiograacuteficos da obra De fato natildeo obteacutem ecircxito na pretensatildeo de exortar (προτρέπω) para
Deus senatildeo aquele que se deixou dissuadir (ἀποτρέπω) do caminho do pecado que compro-
vou sua humildade (humilitas) na aceitaccedilatildeo natildeo do poder de seu livre-arbiacutetrio e sim da Graccedila
divina cujas Justiccedila e Misericoacuterdia se amalgamam na Sabedoria una e indivisiacutevel do Ser ao
inveacutes de se anularem pela contradiccedilatildeo Natildeo se trata de reconhecer-se purificado trata-se mui-
tiacutessimo ao contraacuterio de reconhecer-se pecador carente da Graccedila e incapacitado de autossalva-
ccedilatildeo numa palavra trata-se de diminuir-se ao modo do ldquoesvaziamentordquo (κένωσις) de Cristo
que embora possuindo uma forma divina (ἐν μορφῇ θεοῦ) esvaziou-se a si mesmo segundo
Paulo assumindo uma forma de escravo e fazendo-se semelhante aos homens pelos quais se
humilhou e obedientemente deixou-se matar na cruz10 Esse o ecircthos cristatildeo portador das virtu-
des dignas de imitaccedilatildeo invertidas quanto pudessem parecer a um auditoacuterio pagatildeo da eacutepoca
para o qual nem a misericoacuterdia tampouco a humildade eram considerados valores morais dese-
jaacuteveis e sim fraquezas despreziacuteveis
O orador persuade por seu caraacuteter moral explicava Aristoacuteteles (1356a5) quando seu
discurso eacute de tal modo elaborado que seja capaz de tornaacute-lo digno de credibilidade um homem
em quem pareccedila ser possiacutevel confiar Essa credibilidade contudo natildeo se constroacutei por meio de
elementos extratextuais de ideias preacute-concebidas acerca da conduta eacutetica do orador e sim atra-
veacutes do discurso (1356a8) donde ser considerado o ecircthos uma prova de caraacuteter teacutecnico fruto da
9 Inst oratoriae (3813) ldquoValet autem in consiliis auctoritas plurimum nam et prudentissimus esse haberique
et optimus debet qui sententiae suae de utilibus atque honestis credere omnes uelit [] consilia nemo est qui
neget secundum mores darirdquo 10 Paulo (Fl 25-8) ldquoΤοῦτο φρονεῖτε ἐν ὑμῖν ὃ καὶ ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων οὐχ
ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ ἀλλὰ ἑαυτὸν ἐκένωσεν μορφὴν δούλου λαβών ἐν ὁμοιώματι ἀνθρώπων γενόμενοςmiddot καὶ σχήματι εὑρεθεὶς ὡς ἄνθρωπος ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν γενόμενος ὑπήκοος μέχρι θανάτου θανάτου δὲ σταυροῦrdquo
144
arte Isso se daacute explica o filoacutesofo porque quando se estaacute tratando de temas de caraacuteter geral via
de regra a confianccedila se estabelece sobre as opiniotildees das pessoas cujo valor eacute notoacuterio poreacutem
quando os temas satildeo incertos duvidosos (τὸ ἀμφιδοξεῖν) aiacute entatildeo como que desprovido de
alternativas resta ao auditoacuterio tatildeo soacute a confianccedila quase que total e irrestrita (παντελῶς) na-
queles cujos caracteres ou comprovou-se destacar-se ou lograram aparentar fazecirc-lo E sobre
que versam as Confissotildees em linhas gerais como jaacute se apontou antes senatildeo sobre o tema natildeo-
apodiacutectico por excelecircncia Deus Donde ser liacutecito dizer que pelo prisma da retoacuterica Agostinho
empreende um enorme esforccedilo de construccedilatildeo dum ecircthos apropriado a falar de Deus E de fato
se se pretende falar de tema natildeo apenas duvidoso retoacuterico mas inefaacutevel como o Ser de que
modo evadir-se do estribo do ecircthos Se o tema fosse apodiacutectico o caraacuteter do orador talvez
restasse menos relevante poreacutem natildeo num tema em que as provas demonstrativas satildeo pratica-
mente inexistentes
Para ressaltar o caraacuteter moral de algueacutem que se queira elogiar seja o do proacuteprio orador
ou natildeo lembra Aristoacuteteles (1367b22-27) eacute preciso associar as suas accedilotildees (as quais se empre-
ende louvar) agraves suas intenccedilotildees a fim de demonstrar seu valor porque o louvor (ἔπαινος) se tira
das accedilotildees (ἐκ τῶν πράξεων) desde que este aja em conformidade com suas determinaccedilotildees
morais (κατὰ προαίρεσιν) E se o homem de valor age segundo suas proacuteprias determinaccedilotildees
depreende-se que o homem cujo valor eacute nulo aja determinado isto eacute conduzido pelo destino
pela sorte (ἀπὸ τύχης) e que o homem cujo valor eacute repreensiacutevel exemplo que o filoacutesofo natildeo
daacute mas cujo raciociacutenio permite avanccedilar agiria tambeacutem motivado por suas determinaccedilotildees mo-
rais as quais contudo seriam maacutes O que importa no que tange ao ecircthos eacute que se deve mostrar
que aquele que se estaacute louvando age de acordo com suas determinaccedilotildees e natildeo ao acaso o que
lhe tiraria todo o meacuterito meacuterito que caberia entatildeo agrave fortuna (τύχη) uma vez que as accedilotildees natildeo
praticadas de modo voluntaacuterio natildeo satildeo meritoacuterias em conformidade com o que Agostinho tam-
beacutem admitia11 Portanto o conselho de Aristoacuteteles ao orador que quer construir o seu proacuteprio
ecircthos ou o de algum outro eacute tornar todas as accedilotildees possiacuteveis inclusive as decorrentes da sorte
mdash o que natildeo seria nada honesto admite o filoacutesofo mdash fruto do meacuterito daquele que se quer
enaltecer o que seria sinal de homem resoluto decidido (σημεῖον ἀρετῆς εἶναι προαιρέσεως)
No entanto esse conselho natildeo apenas natildeo eacute seguido por Agostinho e pelo discurso cristatildeo de
modo geral como ao reveacutes o exato oposto eacute o que se potildee em praacutetica ao atribuir-se tudo agrave
Graccedila divina agrave bondade preexistente daquele que natildeo precisou de nenhuma das criaturas que
criou as quais jamais fizeram por merecer o dom da vida (Conf 1311) ldquoPorque antes que eu
11 O livre arbiacutetrio (11430101) ldquoIn uoluntate meritum sitrdquo
145
existisse existias tu e eu nem existia para que me concedesses que eu existisserdquo12 Isso eacute feito
contudo natildeo em detrimento do ecircthos da construccedilatildeo dum caraacuteter digno de louvor e fidedigno
e sim para construir um caraacuteter cristatildeo ou seja um caraacuteter natildeo pautado pela taacutebua de valores
eacuteticos claacutessicos que atribuiacutea grande peso agrave gloacuteria agrave honra ao denodo guerreiro e agrave justiccedila
inflexiacutevel e fria da lei13 e sim para destacar o homem jaacute de tipo medieval manso e humilde de
coraccedilatildeo misericordioso ao ponto de voltar a outra face numa palavra homem cuja honra estava
na cruz e no sangue de seu Salvador e para o qual ldquoo insensato de Deusrdquo era ldquomais saacutebio que
os homens e o fraco de Deus mais forte que os homensrdquo14 O ecircthos pois que se quer construir
eacute o do homem de feacute que se deixa conduzir pela matildeo de Deus na praacutetica das virtudes ditas
teologais feacute esperanccedila e caridade (πίστις ἐλπίς ἀγάπη) (1Cor 1313) O homem comumente
se orgulha das coisas que faz por si proacuteprio (τοῖς διrsquo αὐτόν) lembra Aristoacuteteles mas natildeo se
orgulha do que o destino lhe trouxe (διὰ τύχην) (1368a3-4) Agostinho bastante ao contraacuterio
natildeo apenas natildeo se orgulha do que fez mas se arrepende amargamente preferindo ao inveacutes da
honra agradecer a Deus todo o bem que lhe sucedeu por seu intermeacutedio divino ldquoe assim Se-
nhor apagaste todos os meus merecidos males para que natildeo retribuiacutesses agraves minhas matildeos nas
quais te deixei e te antecipaste a todos os meus merecidos bens para que retribuiacutesses agraves tuas
matildeos com as quais me fizesterdquo15
Destarte das trecircs qualidades independentes de demonstraccedilatildeo (ἔξω τῶν ἀποδείξεων)
que Aristoacuteteles aponta (1378a) como necessaacuterias ao orador ainda que em aparecircncia somente a
fim de que seja convincente o que de modo principal se refere agraves assembleias ou ao conselho
instacircncias tiacutepicas de deliberaccedilatildeo na Greacutecia antiga 1 prudecircncia ou bom-senso (φρόνησις) 2
excelecircncia moral (ἀρετή) e 3 boa disposiccedilatildeo (εὔνοια) nenhuma delas guarda nas Confissotildees
a importacircncia que o estagirita lhe atribui a natildeo ser que se considerem as virtudes ditas teologais
como pertencentes ao rol das aretaiacute aristoteacutelicas o que seria no miacutenimo um grave anacronismo
Por fim a Retoacuterica destaca o papel do ecircthos na disposiccedilatildeo das mateacuterias (τάξις) de modo
especiacutefico no proecircmio (exordium) Nos discursos do gecircnero judiciaacuterio por exemplo aquele que
se defende (ἀπολογουμένῳ) deve fazecirc-lo logo no proecircmio (πρῶτον) antes da acusaccedilatildeo ao
contraacuterio de quem acusa que deve fazecirc-lo no final (τῷ ἐπιλόγῳ) porque aquele que defende
deve construir seu ecircthos no iniacutecio antes da acusaccedilatildeo (πρὸς τὴν διαβολήν) (1415a29-30) a
12 Confissotildees (1311) ldquoquia et priusquam essem tu eras nec eram cui praestares ut essemrdquo 13 Em conformidade com a ideia veiculada pela maacutexima romana ldquodura sed lexrdquo 14 Paulo (1Cor 121-25) ldquoὅτι τὸ μωρὸν τοῦ θεοῦ σοφώτερον τῶν ἀνθρώπων ἐστὶν καὶ τὸ ἀσθενὲς τοῦ
θεοῦ ἰσχυρότερον τῶν ἀνθρώπωνrdquo 15Confissotildees (1311) ldquoEtenim domine deleuisti omnia mala merita mea ne retribueres manibus meis in
quibus a te defeci et praeuenisti omnia bona merita mea ut retribueres manibus tuis quibus me fecistirdquo
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fim de livrar-se de todo impedimento ou embaraccedilo como faz Agostinho nas Confissotildees utili-
zando-se dos primeiros livros ditos biograacuteficos para tanto Se o acusador deve criar o precon-
ceito contra o acusado no fim para que permaneccedila bem presente na memoacuteria dos juiacutezes o
defendente deve desvencilhar-se do preconceito logo no iniacutecio a fim de que seus argumentos
satildeo sejam prejudicados pela imagem da pecha moral que traz consigo Natildeo eacute apenas para o
ecircthos que o proecircmio eacute importante mas tambeacutem para o paacutethos pois eacute preciso tornar o auditoacuterio
bem disposto em relaccedilatildeo ao orador se se estaacute defendendo ou tornaacute-lo indisposto contra a outra
parte (1415a-34-36) se se estaacute acusando Para isso conta muito a aparecircncia de respeitabilidade
do falante pois ldquoas pessoas respeitaacuteveis recebem mais atenccedilatildeordquo diz Aristoacuteteles Pelo que o
orador deve esforccedilar-se por conseguir duas coisas do auditoacuterio 1 amizade (φίλον) e 2 com-
paixatildeo (ἐλεεινόν) (1415b22-28) tornaacute-lo amigo e compassivo fazendo-o crer que ele mesmo
o orador sente exatamente aquilo que censura ou louva ou seja que estaacute sendo sincero
(1415b28-29) Ora como falar da Graccedila de Deus sem que se recorra ao testemunho pessoal
pois a Graccedila diferentemente da recompensa ou do salaacuterio (merces) eacute distribuiacuteda gratuitamente
para o que por paradoxal pareccedila faz-se necessaacuterio ser pecador numa palavra estar desprovido
de qualquer meacuterito que o tornaria credor ao inveacutes de devedor meacuterito que poderia confundi-la
a Graccedila com pagamento ou retribuiccedilatildeo Evidente que se trata dum exagero pois os que tecircm
meacuterito natildeo estatildeo de modo nenhum excluiacutedos da Graccedila jaacute que natildeo faz muito sentido que natildeo
receba sem meacuterito16 senatildeo quem natildeo mereccedila
Seja como for esse ecircthos de sinceridade logra construir com bastante esmero Agostinho
ao reconhecer-se pecador devedor pequenino desprovido de meacuteritos e absolutamente depen-
dente da bondade da Providecircncia divina que se expressa pela Graccedila gratis
A segunda das provas da arte paacutethos
A movimentaccedilatildeo das emoccedilotildees (πάθος) embora uma prova (πίστις) que se diz teacutecnica
ou ldquoda arterdquo (ἔντεχνος) de modo aparentemente paradoxal natildeo tem que ver diretamente com
as provas demonstrativas ou com a causa em si e sim respeita aos juiacutezes (δικασταί) explica
Aristoacuteteles (1354a4-5)17 De fato o orador alcanccedila a persuasatildeo seja em que gecircnero for (o que
16 Isto eacute gratuitamente 17 Aristoacuteteles natildeo era muito simpaacutetico nem ao apelo eacutetico tampouco ao emocional que julgava ser um mal
necessaacuterio pois considerava errado manipular os sentimentos dos juiacutezes o que equivalia a corromper a proacutepria lei
que se tentava fazer valer ou de que se queria socorrer (1356a14) Argumento muito parecido esse (de destruir a
proacutepria lei a que se deveraacute recorrer depois) com o utilizado por Soacutecrates ao negar a proposta de fuga de Criacuteton no
diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo (50a-b) Pois bem no iniacutecio do tratamento da hupoacutekrisis (1403b22-) Aristoacuteteles
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natildeo exclui nem o epidiacutectico tampouco o deliberativo) mediatamente por meio dos ouvintes
(διὰ τῶν ἀκροατῶν) aqueles aos quais se dirige quando recorre ao paacutethos despertando ou
dirigindo suas emoccedilotildees (ὅταν εἰς πάθος) o que se faz pela accedilatildeo discursiva (ὑπὸ τοῦ λόγου)
Isso porque os juiacutezos (τὰς κρίσεις) dos ouvintes objetivo da accedilatildeo persuasiva variam sob a
influecircncia das emoccedilotildees tais como a dor (λύπη) a alegria (χαρά) a amizade (φιλία) o oacutedio
(μῖσος) etc Com efeito o orador natildeo tem por escopo a emoccedilatildeo do auditoacuterio em si mesma como
finalidade e sim a sua persuasatildeo a fim de que decida em favor de sua causa para o que as
emoccedilotildees cooperam vivamente como percebeu Aristoacuteteles ao dedicar grande parte do livro
segundo da Retoacuterica ao estudo das paixotildees da alma
Um dos meios mais eficazes para a movimentaccedilatildeo do paacutethos a fim de que se tenha ecircxito
no apelo emocional em vista dum fim ulterior natildeo satildeo as provas demonstrativas recomendadas
para o gecircnero apropriado (o judiciaacuterio no caso) o entimema e as maacuteximas provas que devem
ser descobertas na invenccedilatildeo e sim os recursos pertencentes a outra parte da retoacuterica a elocuccedilatildeo
(λέξις) Com efeito depois de encontrado o que dizer (εὕρεσις) e disposto as mateacuterias de modo
apropriado (τάξις) resta saber como dizecirc-lo Esse ldquocomordquo respeita sem duacutevida agrave forma do dis-
curso que se chama tambeacutem ldquoestilordquo poreacutem de modo nenhum se limita a isso como se fosse
apenas uma sua vestimenta Os recursos da elocuccedilatildeo para muito aleacutem da ornamentaccedilatildeo tecircm
forccedila persuasiva pois argumentam seja pela concisatildeo das figuras seja pelo ritmo e paralelismo
das construccedilotildees seja pelas imagens que evocam o que fazem de modo principal pondo em
destaque tanto o ecircthos como o paacutethos O ecircthos por exemplo no emprego do leacutexico que quando
recheado de estrangeirismos (ξένην ποιεῖν τὴν διάλεκτον) (1404b10-12) diz Aristoacuteteles con-
fere um ar de dignidade ao discurso promovendo por tabela o orador que se faz parecer digno
e nobre assim como aquilo que estaacute dizendo O paacutethos por sua vez quando o discurso eacute ldquoele-
vadordquo a um niacutevel suprarracional ou sublime pelo uso de recursos poeacuteticos dentre os quais se
destacam as figuras de repeticcedilatildeo como paralelismos epanalepses anadiploses antanaacuteclases
reconhece que tudo aquilo que respeita agrave apresentaccedilatildeo do discurso como voz volume tom altura ritmo harmo-
nia entre tais e que eacute muito importante nos certames dramaacuteticos e eacutepicos (τῶν ἀγώνων) quando entatildeo faz-se
necessaacuterio equilibrar esses elementos segundo cada uma das emoccedilotildees (πρὸς ἕκαστον πάθος) embora seja tam-
beacutem utilizado nas demais atividades poliacuteticas como assembleias deliberativas e tribunais o eacute apenas de modo
deploraacutevel Isso porque conquanto seja necessaacuterio mover as paixotildees do auditoacuterio e construir o caraacuteter do orador
discursivamente essa necessidade se deve tatildeo soacute agrave corrupccedilatildeo dos cidadatildeos (διὰ τὴν μοχθηρίαν τῶν πολιτῶν)
(1403b34-35) o que equivale a dizer do auditoacuterio (τοῦ ἀκροατοῦ) Assim sendo o recurso tanto ao ecircthos como
ao paacutethos deixa de ser questatildeo de correccedilatildeo (οὐκ ὀρθῶς) de certo ou errado passando a ser uma necessidade (ἀλλrsquo
ὡς ἀναγκαίου) Com efeito o justo (δίκαιον) seria defender acusar exortar e dissuadir movido apenas pelos
fatos (ἀγωνίζεσθαι τοῖς πράγμασιν) (1404a5-6) de maneira tal que o restante que Aristoacuteteles reputa fora da
demonstraccedilatildeo (ἔξω τοῦ ἀποδεῖξαι) ο que inclui ecircthos e paacutethos seria superfluidade (περίεργα ἐστίν) (1404a8)
Infelizmente poreacutem a realidade eacute que o orador precisa conhecer estes recursos a fim de poder defender-se e atingir
seus objetivos uma vez que os adversaacuterios certamente lanccedilam matildeo deles de modo quase sempre inescrupuloso
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paronomaacutesias antimetaacuteboles poliptotos etc E fique claro que dizer que Aristoacuteteles natildeo via com
bons olhos o (mau) recurso aos apelos eacutetico e pateacutetico nos tribunais natildeo significa dizer que
desprezasse os mecanismos da elocuccedilatildeo o que implicaria dizer que cresse o homem ser dotado
apenas de razatildeo excluiacutedos sentimentos e caraacuteter a natildeo dizer da vontade Ao contraacuterio Aristoacute-
teles bem reconhecia que em todo tipo de aprendizado (ἐν πάσῃ διδασκαλίᾳ) o estilo se faz
mateacuteria de certa importacircncia uma vez que algo se torna claro (πρὸς τὸ δηλῶσαι) por meio do
modo como eacute dito (ὡδὶ ἢ ὡδὶ εἰπεῖν) embora relegasse a questatildeo do estilo ao niacutevel da aparecircn-
cia (ἀλλrsquo ἅπαντα φαντασία ταῦτrsquo εστὶ) cuja finalidade seria apenas agradar o ouvinte (πρὸς
τὸν ἀκροατήν) ouvinte esse por sua vez cuja corrupccedilatildeo (μοχθηρία) seria a verdadeira causa
de tudo que natildeo eacute apodiacutectico na retoacuterica (1404a7-8) Em assim sendo o estilo (λέξις) seria um
mal necessaacuterio uma ferramenta que embora potencialmente injusta seria uacutetil para conferir
clareza ao discurso assim como todos os demais elementos de persuasatildeo natildeo-apodiacutecticos ou
extrademonstrativos E isso se justifica diz o filoacutesofo de modo peremptoacuterio porque ningueacutem
ensina a fazer geometria desse modo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) isto eacute nem pelo
recurso ao paacutethos nem pelo ecircthos tampouco por qualquer outra ferramenta indicada para a
elocuccedilatildeo como as figuras (1404a12) Compreende-se essa visatildeo deveras depreciativa da elo-
cuccedilatildeo por parte do filoacutesofo pois como ele mesmo diz no terceiro livro de sua Retoacuterica ao
empreender o tratamento da actio ou representaccedilatildeo do discurso (ὑπόκρισις) ateacute ao tempo da
escritura da obra natildeo havia ainda nenhuma arte isto eacute nenhum manual de retoacuterica voltado para
a mateacuteria (οὔπω δὲ σύγκειται τέχνη περὶ αὐτῶν) porque a leacuteksis soacute havia sido notada pou-
quiacutessimo antes (ἐπεὶ καὶ τὸ περὶ τὴν λέξιν ὀψὲ προῆλθεν) descaso que se justificava pelo fato
de o estilo mdash considerado entatildeo como mera ornamentaccedilatildeo do discurso mdash ser julgado inferior
(φορτικὸν) tema indigno das preocupaccedilotildees dum homem livre criacutetica que natildeo evita endossar o
filoacutesofo (καλῶς ὐπολαμβανόμενον) (1403b35-6)
A despeito desta postura criacutetica adotada por Aristoacuteteles e de seu juiacutezo negativo a respeito
do ecircthos e do paacutethos postura raramente admitida pelos estudiosos atuais da retoacuterica o que
importa para os fins deste artigo contudo eacute seu poder argumentativo uma vez que sua impor-
tacircncia natildeo pode ser negada seja ela justificada ou natildeo de par com a finalidade filosoacutefica que
lhes imprime o rhetor de Hipona Portanto justo ou natildeo (nos tribunais e assembleias) o fato
admitido por Aristoacuteteles eacute que a elocuccedilatildeo afeta sobremodo o paacutethos sendo de par com o ecircthos
reconhecido como a mais persuasiva (κυριωτάτη) das provas (1356a13) altamente eficaz para
os objetivos da argumentaccedilatildeo pois resta claro que por meio do estilo se consegue mover as
emoccedilotildees (1408a16) seja quando se fala com indignaccedilatildeo audaciosa (ὕβρις) seja com raiva
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(ὁργιζομένου) impiedade (ἀσεβή) ou vergonha (αἰσχρά) O estilo adequado (ἡ οἰκεία λέξις)
que eacute aquele em que os elementos do paacutethos (παθητική) e do ecircthos (ἠθική) satildeo proporcionais
(ἀνάλογον) aos temas subjacentes (τοῖς ὐποκειμένοις πράγμασιν) (1408a10-11) faz com
que um dado assunto seja mais persuasivo Aleacutem disso remata Aristoacuteteles o ouvinte sempre
simpatiza (συνομοπαθεῖ ὁ ἀκούων) com quem fala de modo emocional (παθητικῶς
λέγοντι) ainda que esse natildeo diga nada (κἂν μηθὲν λέγῃ) (1408a23-4)
Reconhecido o vigor (δύναμις) natildeo apenas pateacutetico mas tambeacutem argumentativo da elo-
cuccedilatildeo resta ver como Agostinho se utiliza de seus recursos nas Confissotildees a fim de atingir seus
objetivos numa palavra a fim de fazer filosofia Pois bem as descriccedilotildees que melhor instigam
as emoccedilotildees satildeo as que fazem apelo agrave imaginaccedilatildeo e aos sentidos descriccedilotildees viacutevidas de cenas e
eventos contam muito como o famigerado roubo das peras (Conf 249) a prisatildeo de Aliacutepio
(6914) ou a cena do jardim de Milatildeo (81125-27) por exemplo as inumeraacuteveis metaacuteforas e a
prosopopeia de oacutergatildeos humanos que passam a ser dotados de matildeos pernas ouvidos como as
matildeos do coraccedilatildeo que se estendem em prece a Deus os relatos de laacutegrimas pungentes que se
vertem repetidas vezes enfim descriccedilotildees essas que tecircm potencial enorme para despertar fortes
sentimentos Do mesmo modo o uso de hipeacuterboles e outras tantas figuras se faz extremamente
uacutetil para criar o efeito emocional desejado Todavia nada talvez seja tatildeo eficiente nesse sentido
quanto o vocabulaacuterio o uso de palavras carregadas de intensa conotaccedilatildeo pateacutetica E no apelo
agraves emoccedilotildees pode-se dizer esteja uma das chaves de leitura das Confissotildees ao menos retoacuterica
De fato a linguagem da obra estaacute repleta de figuras cujo efeito principal eacute o despertar dos
sentimentos Mas de quem e para quecirc A sua audiecircncia soacute pode ser depreendida de modo in-
direto por meio da linguagem do estilo e do tema o que natildeo se constitui tarefa das mais faacuteceis
por tratar-se de obra multifacetada de linguagem muito elaborada que prima pela sofisticaccedilatildeo
mas que natildeo despreza uma certa tonalidade menos erudita que se pode ateacute denominar em
alguma medida popular ou humilde De fato pelo recurso aos salmos e textos escrituraacuterios
com seu respectivo campo semacircntico permeado de expressotildees da liacutengua grega vulgar (κοινή)
traduzidas ou transliteradas em latim conhecidos de toda comunidade cristatilde natildeo apenas por
serem lidos mas principalmente por sua funccedilatildeo lituacutergica eacute sem duacutevida uma linguagem
(sermo) popular ou humilis todavia pelos mecanismos retoacutericos extremamente requintados e
pelas referecircncias a toda uma cultura filosoacutefica de par com uma argumentaccedilatildeo em muitas pas-
sagens nada singela especialmente nos livros 1 8 e de 9 a 13 pode-se considerar igualmente
elevadiacutessima Portanto humilde e elevada eacute a linguagem das Confissotildees constituindo em si
mesma um oximoro
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Diante desse desafio de escrever tanto para a gente mais simples como para filoacutesofos
desafio que se exprime nesse caso pela linguagem supotildee-se que Agostinho natildeo tenha simples-
mente pretendido abaixar o registro de seu discurso descendo aos simples e pequeninos (ad
catechizandos rudes) muito ao contraacuterio ao que parece pretendia elevar-se ou melhor ser
elevado ao confessar-se arrependido penitenciando-se mas tambeacutem ao confessar sua feacute e seu
louvor enaltecendo e reconhecendo a graccedila de Deus em sua vida Em sendo assim ao ser ele-
vado por Deus pela confissatildeo pretende igualmente mover as almas incitando-lhes semelhante
elevaccedilatildeo ou quando natildeo o desejo de elevaccedilatildeo desejo de que se deixassem igualmente elevar
como ele confessava desejar o que se pode considerar sem duacutevida uma meta de caraacuteter pastoral
Portanto sua missatildeo quanto ao paacutethos eacute tambeacutem a de mover as almas agrave salvaccedilatildeo que
se pode sintetizar na vontade de ser elevado e de para lanccedilar matildeo duma contradiccedilatildeo merecer
por uma espeacutecie de ascese cataacutertica a graccedila divina a misericoacuterdia do Deus justiacutessimo Ora
disso decorre a possibilidade duma outra funccedilatildeo da linguagem extremamente comovente fruto
dos recursos da elocuccedilatildeo a que recorre Agostinho nas Confissotildees e interligada com essa funccedilatildeo
dita pastoral de elevar as almas uma funccedilatildeo que se pode compreender como simultaneamente
propedecircutica e filosoacutefica Com efeito se uma das funccedilotildees deste paacutethos que se diz de caraacuteter
pastoral pretende comover positiva e negativamente incitando a um soacute tempo o desejo de
salvaccedilatildeo e o de horror agrave perdiccedilatildeo o desejo de buscar Deus e de evitar o mal de buscar ser mais
pela proximidade do Ser supremo e de evitar ser menos ou deixar de ser pelo afastamento desse
mesmo Ser como se percebe sobremodo nos livros da parte considerada biograacutefica da obra o
que natildeo implica de modo algum a exclusatildeo dos restantes livros a outra funccedilatildeo por sua vez
relacionada intimamente agrave primeira de que se pode dizer seja consequecircncia natural que se
exacerba tambeacutem a partir dos recursos da elocuccedilatildeo e que como se disse tem caraacuteter prope-
decircutico compreende-se como uma funccedilatildeo de purificaccedilatildeo filosoacutefica de afastamento progressivo
das coisas deste mundo de afastamento da ldquocarnerdquo se se pode dizer tendo em vista o despren-
dimento rumo a uma vida mais espiritual de proximidade com o Ser o puro Inteligiacutevel que se
transubstancia por sua vez num projeto de vivecircncia cristatilde o que se destaca sobremodo a partir
do livro novo encontrando sua foz nos estertores do livro derradeiro Donde ser liacutecito afirmar
que os livros da parte biograacutefica das Confissotildees do primeiro ao oitavo tecircm tambeacutem essa fun-
ccedilatildeo de purificaccedilatildeo tanto das emoccedilotildees como da razatildeo ou seja de disciplinar ou exercitar asce-
ticamente a alma (exercitatio animi)18 a fim de que os leitores e ouvintes pudessem estar pre-
parados para o que havia de vir nos livros subsequentes E isso parece estar em harmonia com
18 Ἥ ἄσκησις ἥ τῆς ψυχῆς
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o projeto filosoacutefico platocircnico-cristatildeo que Agostinho tinha para sua vida e que colocou em praacute-
tica desde os tempos preacute-batismais de Cassiciacuteaco ateacute ser interrompido pela sua consagraccedilatildeo
sacerdotal (391 dC) um projeto propedecircutico-purificador
E de fato se se pode aventar que esse projeto cataacutertico da razatildeo encontra seu ponto de
saiacuteda no expurgo do ceticismo de tipo neoacadecircmico como se percebe nos trecircs livros intitulados
Contra Academicos desenvolve-se sobremodo nas paacuteginas do diaacutelogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monoacutelogo com os Soliloacutequios obras do mesmo periacuteodo
Formato monoloacutegico esse denominado por Dupuy-Trudelle (1998 p 1198) ldquodesdobramentordquo
que eacute bem possiacutevel tenha servido de laboratoacuterio para as proacuteprias Confissotildees sugere a autora
refletindo a intenccedilatildeo de Agostinho apesar da excelecircncia da feacute de levar as exigecircncias da razatildeo
ateacute ao limite extremo num esforccedilo de purificaccedilatildeo num ir-aleacutem das paixotildees e desiludir-se sobre
si mesmo Ora estar iludido acerca de si mesmo natildeo eacute impedimento agrave feacute mas o eacute ao acesso agrave
convicccedilatildeo intelectual verdadeira Portanto para chegar-se ao conhecimento define esta autora
(ibid pp 1198-9) faz-se mister como condiccedilatildeo uacutenica a ldquolibertaccedilatildeo da razatildeo de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesmardquo libertaccedilatildeo a que os Soliloacutequios datildeo curso
Pode-se compreender que para desenlamear a consciecircncia dos similisavoirs libertaacute-
la de toda ilusatildeo psicoloacutegica ensinaacute-la que o desejo da verdade natildeo eacute ainda a posses-
satildeo da verdade permitir-lhe ir aleacutem do conflito de interesses que leva a opiniatildeo a
revoltar-se contra a verdade seja preciso mensurar a distacircncia entre o sujeito e si
mesmo Ora fazecirc-lo eacute um convite a mensurar a distacircncia entre si e o conhecimento de
Deus Eis entatildeo todo o sentido do exerciacutecio proposto pelo ldquosoliloacutequiordquo mensurar uma
e outra19
Natildeo parece haver duacutevidas de que os Soliloacutequios trazem em si de modo embrionaacuterio o estilo
que haveria de consagrar sobretudo a partir das Confissotildees quando entatildeo dispensa o combate
direto de ideias preferindo ldquodesdobrar-serdquo e deixar-se interrogar por si mesmo ainda que de
modo proleacuteptico continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas
Todavia eacute mais que provaacutevel que esta exigecircncia natildeo tenha surgido do nada e sim pertenccedila a
um projeto filosoacutefico maior que englobe as demais obras de Cassiciacuteaco sendo-lhe entatildeo um
como que desenvolvimento natural
No proacutelogo do De ordine (13-4) Agostinho argumenta que o homem por ser um des-
conhecido de si mesmo natildeo consegue perceber a ordem que reina em todo o universo ordem
providencial em que ele estaacute inserido e que para conseguir conhecer-se seria necessaacuterio entrar
em si mesmo ali permanecendo afastado dos sentidos lugar em que poderia entatildeo curar-se das
feridas que as opiniotildees vulgares infligem agrave alma seja pelo ldquofogordquo do ldquoisolamentordquo conforme
19 DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Les Confessions Paris Gal-
limard 1998 p 1206
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se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
153
soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
154
As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
155
menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
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Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
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sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
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(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
159
articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
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ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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138
com Deus ο ldquopara quemrdquo (πρὸς ὅν) (1388b1) pois o Ser divino enquanto segunda pessoa
discursiva eacute onisciente e embora deixe-se dalgum modo misterioso comover por causa de sua
misericoacuterdia por ser igualmente justo ele cujo juiacutezo eacute inexoraacutevel torna a tarefa quanto ao
paacutethos um tanto obstada Por isso os esforccedilos de Agostinho no sentido de comover devem vol-
tar-se nem sempre e de imediato a Deus e sim aos seus leitores o auditoacuterio cristatildeo a quem o
filoacutesofo confessa de fato dirigir-se (Conf 235) ldquoA quem estou relatando estas coisas Ora
natildeo a ti meu Deus e sim na tua presenccedila relato-as aos de meu gecircnero ao gecircnero humano por
pequenina a parcela dos que possam deparar com estes meus escritosrdquo6
Quer comover portanto aleacutem de fazer converter para Deus como se viu convertido
fazendo com que as almas se elevem movidas pela penitecircncia o que natildeo se faz senatildeo tendo em
vista uma accedilatildeo futura (περὶ τῶν μελλόντων) E se para falar de Deus carece dum loacutegos apro-
priado ao louvor (ἔπαινος) que eacute tambeacutem contemplaccedilatildeo (θεωρεῖν) contemplaccedilatildeo do Belo (τὸ
καλόν) e do Bem (τὸ ἀγαθόν) a comoccedilatildeo natildeo se faz sem os recursos do paacutethos tampouco
prescindindo do ecircthos a fim de edificar um caraacuteter penitente digno do arrependimento ou con-
versatildeo mental (μετάνοια) a que todo cristatildeo deve submeter-se antes de crer no Evangelho
como admoestava Cristo (Mc 114-15) ldquoArrependei-vos [= convertei-vos] e crede no Evange-
lhordquo (μετανοεῖτε καὶ πιστεύετε ἐν τῷ εὐαγγελίῳ) Portanto Agostinho carece tambeacutem de
construir sempre pelo discurso (διὰ τοῦ λόγου) seu ecircthos discorrendo acerca daquilo que de
edificante se passou consigo (περὶ τῶν γεγενημένων) (1358b5) para os ldquojuiacutezesrdquo (δικασταί)
do auditoacuterio cristatildeo pois seu preteacuterito precisa de ser desenodoado Destarte ao narrar suas
desventuras pregressas confessando-se a Deus e aos homens potildee em destaque seja um Tu
divino que eacute tambeacutem a terceira pessoa discursiva e seu referente pois eacute dele que se fala seja
um tu humano semelhante a si seu leitor Pelo que loacutegos ecircthos e paacutethos se fazem necessaacuterios
de modo temperado segundo as tarefas e os objetivos que se desdobram a cada passo da obra
Tendo pois construiacutedo um ecircthos confiaacutevel a partir de suas gestas pregressas segundo
a taacutebua de valores cristatildeos como a humildade ou a misericoacuterdia por exemplo pode Agostinho
direcionar daiacute em diante sua atenccedilatildeo para o futuro ao modo do gecircnero deliberativo a fim de
comover as almas exortando-as (προτρέπω) seja a voltar-se para Deus o Fim uacuteltimo ou Bem
supremo que se louva pelos recursos do loacutegos seja dissuadindo-as (ἀποτρέπω) de seguir o
caminho do mal que equivale a um afastamento deste mesmo Fim uacuteltimo o que eacute tambeacutem
tarefa do paacutethos quando entatildeo o discurso potildee em destaque a segunda pessoa requerendo um
6 (Conf 235) ldquoCui narro haec neque enim tibi deus meus sed apud te narro haec generi meo generi
humano quantulacumque ex particula incidere potest in istas meas litterasrdquo
139
domiacutenio sobre as paixotildees a fim de conduzir o auditoacuterio ao objetivo (τέλος) almejado que
como se disse eacute sempre futuro (περὶ τῶν μελλόντων) Todavia se natildeo se delibera tendo em
vista o fim que se persegue (οὐ περὶ τοῦ τέλος) em conformidade com o que diz Aristoacuteteles
e sim aquilo que leva ateacute ele (ἀλλὰ περὶ τῶν πρὸς τὸ τέλος) (1352a15-19) ou seja os meios
os quais por sua vez residem nas accedilotildees (κατὰ τὰς πράξεις) tem-se como sequecircncia necessaacuteria
que 1 o uacutetil serve a um propoacutesito ulterior um fim e que 2 se o fim for bom o uacutetil natildeo apenas
levaraacute a esse bem mas seraacute tambeacutem de algum modo bom ainda que mediatamente e em menor
grau Daiacute que natildeo apenas o uacutetil em favor de que se delibera seja bom mas tambeacutem a praacuteksis
contraacuteria o seja a saber a rejeiccedilatildeo do nocivo do inuacutetil E com efeito seja para Aristoacuteteles ou
Agostinho o Bem (ἀγαθόν) uacuteltimo ou supremo pode ser definido como sendo aquilo que se
deve buscar (αἱρετόν) em vista de si mesmo (αὑτοῦ ἕκενα) e natildeo de algo ulterior (καὶ μὴ
ἄλλου) (1363b12-14) Esse Fim (τέλος) que coincide com o Bem supremo eacute aquilo em vista
de que (οὗ ἕνεκα) todo o resto (τὰ ἄλλα) se faz (1363b16-17) Em se admitindo com o autor
da Retoacuterica que esse Fim uacuteltimo embora sendo desejado natildeo seja objeto imediato de delibe-
raccedilatildeo e sim as accedilotildees (πράξεις) por meio de que se possa chegar a ele percebe-se sem muito
esforccedilo que as deliberaccedilotildees acerca deste Fim chame-se eudaimoniacutea ou Ser supremo fazem-se
sobremodo a partir de accedilotildees que podem ser virtuosas quando entatildeo se aproxima do objetivo
ou viciosas quando dele se afasta restando manifesto e inconteste o potencial tanto do ecircthos
como do paacutethos no tratamento daquilo que para Agostinho se traduz em princiacutepio pela uita
beata e posteriormente pelo Saacutebado eterno seja nas quatro virtudes cardeais justiccedila tempe-
ranccedila prudecircncia e coragem ou nas trecircs teologais feacute esperanccedila e caridade a serem praticadas
nesta vida tendo em vista o Bem uacuteltimo e supremo Deus seja por outra na comoccedilatildeo necessaacuteria
das almas que se deve aproximar desta mesma uita beata ou afastar da uita misera sem perder
de vista o fim uacuteltimo que se almeja
E se o deliberativo tem sua funccedilatildeo na exortaccedilatildeo tampouco se faz ausente da obra o
gecircnero judiciaacuterio que contempla sobremodo accedilotildees de acusaccedilatildeo (κατηγορία) e de defesa
(ἀπολογία) (1358b) De fato que faz Agostinho na parte dita biograacutefica da obra enquanto
narra suas desventuras preteacuteritas senatildeo acusar-se de seus erros como a experiecircncia entre os
maniqueus entre os ceacuteticos ou mesmo as aventuras ditas libidinosas em Cartago ou entatildeo
fazer a apologia da Graccedila divina da continecircncia da conversatildeo de sua matildee (ao contraacuterio do pai
que ele prefere acusar) Acusaccedilatildeo e defesa portanto seja de atos seus preteacuteritos (περὶ τῶν
γεγενημένων) (1358b5) seja de doutrinas ou ideias que reputa natildeo apenas inimigas do cami-
140
nho que leva ao Fim uacuteltimo por ele eleito mas tambeacutem antagocircnicas agrave proacutepria concepccedilatildeo des-
posada deste Ser supremo como o dualismo maniqueu por uma ou o ceticismo de tipo neoa-
cadecircmico por outra que perigosamente ameaccedilava uma das proacuteprias virtudes teologais a natildeo
dizer duas feacute e a esperanccedila por meio duma descrenccedila radical na possibilidade de acesso a
noccedilotildees fundamentadas acerca do verdadeiro
E se se podem perceber nuanccedilas do deliberativo e do judiciaacuterio na exortaccedilatildeo ou dissu-
asatildeo na acusaccedilatildeo e na defesa muito mais no caso do gecircnero predominante expresso pelas Con-
fissotildees o epidiacutectico que segundo Aristoacuteteles compreende tanto o louvor (ἔπαινος) como a
censura (ψόγος) (1358b12-3) De fato que faz Agostinho ao longo das Confissotildees senatildeo cen-
surar o que afasta de Deus louvando o que dele aproxima o homem censurar o pecado lou-
vando seu contraacuterio as virtudes fazer o elogio da vida feliz (beata uita) vituperando seu
oposto a infeliz (misera) E mesmo quando censura seu objetivo natildeo eacute senatildeo louvar louvar o
que se edifica como antipodal daquilo que se estaacute censurando pois natildeo se trata de discorrer
sobre o viacutecio sobre o torto sobre o caminho errado que se natildeo deve percorrer numa palavra
natildeo se trata de discorrer sobre o mal porque ele natildeo existe (entenda-se o mal ontoloacutegico) Ao
contraacuterio trata-se de louvar o que Eacute o Ser por excelecircncia Deus e toda a sua obra cujo paro-
xismo natildeo eacute outro senatildeo o momento em que cria o homem Paradoxal seria pois limitar-se ao
vitupeacuterio o que equivaleria a ressaltar apenas e tatildeo somente aquilo que natildeo possui existecircncia
real o mal ou antisser7 como quem escrevesse um livro sobre o que natildeo eacute As Confissotildees
portanto empreendem sobretudo um discurso de louvor que se bem pode denominar filosofia
do louvor a qual se enquadra perfeitamente no gecircnero epidiacutectico cuja tocircnica eacute dada pelo loacutegos
enquanto referente aquilo de que se fala (περὶ οὗ λέγει) (1358b1) referente de muacuteltiplos sen-
tidos que se pode compreender natildeo apenas como a Palavra que eacute Deus mas tambeacutem a palavra
de Deus a palavra sobre a palavra de Deus a palavra sobre o Deus que eacute Palavra e profere
palavras embora esse mesmo referente enquanto Verbo divino seja inefaacutevel donde ser neces-
saacuterio que esse loacutegos seja tambeacutem linguagem nos recursos retoacutericos precisos a que se diga o
indiziacutevel
Todos os trecircs gecircneros portanto prestam auxiacutelio reciacuteproco pois quem louva no presente
deve fazecirc-lo tambeacutem por meio das lembranccedilas do passado (ἀναμιμνήσειν τὰ γενόμενα) ou das
conjecturas e esperanccedilas futuras (προεικάζειν τὰ μέλλοντα) e o justo por sua vez objeto das
reflexotildees judiciaacuterias pode igualmente ser feio ou belo uacutetil ou inuacutetil mateacuteria dos outros dois
7 O que de esdruacutexulo possa haver neste composto se deve agraves novas regras do Acordo Ortograacutefico de 1990 O
que se quis expressar eacute o contraacuterio do ser ldquoanti-serrdquo que natildeo mais se grafa assim com hiacutefen
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gecircneros assim como uacutetil e o inuacutetil mateacuteria de deliberaccedilatildeo que podem ser justos ou seu con-
traacuterio belos ou natildeo ou ainda o bom e o mau que podem muito bem ser inuacuteteis ou natildeo justos
ou natildeo em conformidade com o que diz Aristoacuteteles justificando assim a mistura dos gecircneros
retoacutericos (1358b27-1359a4) Poreacutem o gecircnero epidiacutectico parece ser o mais completo dos trecircs
uma vez nem focar demasiado no passado como o judiciaacuterio tampouco no futuro como o
deliberativo ao contraacuterio ao discorrer acerca do presente (ὁ παρὼν χρόνος) louvando ou
censurando as coisas que de fato satildeo (κατὰ τὰ ὐπάρχοντα) eacute-lhe permitido voltar-se tanto agraves
reminiscecircncias preteacuteritas quanto ao que pode vir a ser como se percebe nitidamente do primeiro
ao derradeiro livro das Confissotildees que nem se limitam a perscrutar o passado tampouco a
especular esperanccedilosamente sobre o futuro ou mesmo sobre o presente na investigaccedilatildeo do
proacuteprio rememorar quando entatildeo empreendem o louvor do que eacute foi e haacute de ser de par com o
do que sempre e indefectivelmente eacute
Uma uacuteltima palavra acerca da retoacuterica se faz necessaacuteria antes de voltar a atenccedilatildeo para
os trecircs gecircneros de provas teacutecnicas nas Confissotildees Quando se propotildee apresentar uma resposta
diz Michel Meyer (2010 p 53) a retoacuterica tende a ocultar o problemaacutetico fazendo com que a
questatildeo de base subjacente a todo discurso questatildeo em torno de que se reuacutenem ou dispersam
as partes pareccedila resolvida No entanto isso de modo nenhum eacute o que se percebe na retoacuterica
filosoacutefica de Agostinho que opera agraves avessas natildeo projetando de modo nenhum esconder o
problemaacutetico e sim permitindo lidar com ele dizendo-o embora sua insoluacutevel inefabilidade E
de fato se se tome por base a proacutepria definiccedilatildeo da retoacuterica elaborada pelo mesmo Meyer (2012
p 21) como sendo a negociaccedilatildeo entre a distacircncia criada por um dado problema que se constitui
sua proacutepria medida percebe-se no que tange ao Ser natildeo haver distacircncia entre interlocutores
para quem a sua inefabilidade eacute paciacutefica quer se o identifique com a Divindade cristatilde ou natildeo
E em natildeo havendo essa distacircncia qual a finalidade da retoacuterica sendo ela a suposta negociaccedilatildeo
que se estabelece em funccedilatildeo dum dado problema que se mede exatamente por essa distacircncia
inexistente Logo em natildeo havendo uma distacircncia que se constituiacutesse a medida do problemaacutetico
desnecessaacuterio seria argumentar inexistindo o problema Contudo isso se refere de modo espe-
cial agraves retoacutericas forense e deliberativa natildeo agrave epidiacutectica e menos ainda a epidiacutectica com finali-
dade filosoacutefica como se daacute no caso de Agostinho Nas Confissotildees a distacircncia que se quer
negociar eacute a que se supotildee entre o conhecido desconhecimento de Deus e seu desconhecido
conhecimento ou seja a distacircncia entre o nada que se pode conhecer de Deus e o tudo que se
desconhece entre o nada que dele se pode dizer e o tudo que se natildeo diz E como essa distacircncia
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eacute inegociaacutevel resta agrave retoacuterica simular a edificaccedilatildeo duma estrutura especial a linguagem per-
mitindo que pela proacutepria expressatildeo do paradoxo do estranhamento da perplexidade se diga
sem dizer e se natildeo diga dizendo Numa palavra a retoacuterica permite que Agostinho estique a
corda do arco de seu dizer para aleacutem da tensatildeo do compreensiacutevel apodiacutectico para aleacutem do
alcance da razatildeo que seja capaz carreando o leitor consigo de tangenciar o suprarracional a
natildeo dizer irracional pois natildeo desprovido de razatildeo e sim muito aleacutem dela
A primeira das provas da arte ecircthos
Aleacutem das provas loacutegicas que envolviam mateacuterias e meacutetodos cujo apelo se voltava pri-
mordialmente a natildeo dizer exclusivamente para a razatildeo a retoacuterica reconhecia outros meios de
prova pois se dera conta havia muito de que as pessoas natildeo satildeo apenas dotadas de capacidade
racional mas tambeacutem de sentimentos e de vontade pelo que se fazia necessaacuterio lidar com elas
natildeo como deveriam ser mas como realmente eram lembram Corbett e Connors (1999 p 72)
Destarte tomando por base a definiccedilatildeo aristoteacutelica de que a retoacuterica eacute a arte de descobrir todos
os meios possiacuteveis de persuasatildeo8 torna-se oacutebvio o recurso a tudo aquilo que se comprove efi-
ciente para esse fim Neste sentido afianccedilam esses autores o apelo eacutetico pode ser mais eficaz
que o apelo agrave razatildeo pois
mesmo o mais engenhoso e sensato apelo agrave razatildeo pode fracassar diante de ouvidos
amoucos se a audiecircncia reagiu desfavoravelmente ao caraacuteter do orador O apelo eacutetico
eacute especialmente importante no discurso retoacuterico porque aqui estamos lidando com
assuntos acerca dos quais eacute impossiacutevel ter-se certeza absoluta e em que as opiniotildees
satildeo divididas
Com efeito o ecircthos prova teacutecnica que se erige a partir do caraacuteter moral do orador segundo
reconhecia Aristoacuteteles (1356a13) constitui-se no meio mais eficaz de prova (κυριωτάτην ἔχει
πίστιν τὸ ἦθος)
Quintiliano por sua vez em suas Instituiccedilotildees Oratoacuterias (3813) adotando integral-
mente a teoria aristoteacutelica argumenta que dos trecircs gecircneros de discurso o deliberativo era o que
mais necessitava do apelo eacutetico ou seja o discurso que mais se apoiava no caraacuteter do orador
que ele denominava auctoritas
Nas deliberaccedilotildees poreacutem a autoridade eacute o que possui maior valor Com efeito natildeo
apenas deve ser considerado muitiacutessimo prudente como tambeacutem muitiacutessimo virtuoso
todo aquele que deseje que todos acreditem nos seus pensamentos acerca das coisas
8 (1355b25-6) ldquoSeja entatildeo a retoacuterica a faculdade de considerar acerca de cada coisa o que eacute possivelmente
persuasivordquo (ἔστω δὴ ἡ ῥητορικὴ δύναμις περὶ ἕκαστον τοῦ θεωρῆσαι τὸ ἐνδεχόμενον πιθανόν)
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proveitosas e dignas de honra [] natildeo haacute quem negue que as deliberaccedilotildees satildeo feitas
segundo os caracteres dos oradores9
Em conformidade com o que se argumentou um pouco antes a partir das consideraccedilotildees do
proacuteprio Aristoacuteteles acerca da mistura de gecircneros retoacutericos (1358b27-1359a4) sobre a predomi-
nacircncia do gecircnero epidiacutectico nas Confissotildees eacute perceptiacutevel natildeo apenas a importacircncia do apelo
eacutetico que natildeo eacute das menores por tratar-se duma obra primordialmente na primeira pessoa e
que sob certo ponto de vista quer falar de si mas principalmente pelo que se disse acerca de
um dos objetivos da obra de caraacuteter ldquodeliberativordquo ou antes de caraacuteter ldquopastoralrdquo de mover
as almas para Deus (conuersio ad deum) ao modo dum loacutegos protreacuteptico afastando-as do pe-
cado e de tudo que as manteacutem distantes do Bem (auersio a bono) objetivo que se cumpre
escorado no caraacuteter eacutetico que se esforccedilou por burilar ao longo primordialmente dos livros ditos
autobiograacuteficos da obra De fato natildeo obteacutem ecircxito na pretensatildeo de exortar (προτρέπω) para
Deus senatildeo aquele que se deixou dissuadir (ἀποτρέπω) do caminho do pecado que compro-
vou sua humildade (humilitas) na aceitaccedilatildeo natildeo do poder de seu livre-arbiacutetrio e sim da Graccedila
divina cujas Justiccedila e Misericoacuterdia se amalgamam na Sabedoria una e indivisiacutevel do Ser ao
inveacutes de se anularem pela contradiccedilatildeo Natildeo se trata de reconhecer-se purificado trata-se mui-
tiacutessimo ao contraacuterio de reconhecer-se pecador carente da Graccedila e incapacitado de autossalva-
ccedilatildeo numa palavra trata-se de diminuir-se ao modo do ldquoesvaziamentordquo (κένωσις) de Cristo
que embora possuindo uma forma divina (ἐν μορφῇ θεοῦ) esvaziou-se a si mesmo segundo
Paulo assumindo uma forma de escravo e fazendo-se semelhante aos homens pelos quais se
humilhou e obedientemente deixou-se matar na cruz10 Esse o ecircthos cristatildeo portador das virtu-
des dignas de imitaccedilatildeo invertidas quanto pudessem parecer a um auditoacuterio pagatildeo da eacutepoca
para o qual nem a misericoacuterdia tampouco a humildade eram considerados valores morais dese-
jaacuteveis e sim fraquezas despreziacuteveis
O orador persuade por seu caraacuteter moral explicava Aristoacuteteles (1356a5) quando seu
discurso eacute de tal modo elaborado que seja capaz de tornaacute-lo digno de credibilidade um homem
em quem pareccedila ser possiacutevel confiar Essa credibilidade contudo natildeo se constroacutei por meio de
elementos extratextuais de ideias preacute-concebidas acerca da conduta eacutetica do orador e sim atra-
veacutes do discurso (1356a8) donde ser considerado o ecircthos uma prova de caraacuteter teacutecnico fruto da
9 Inst oratoriae (3813) ldquoValet autem in consiliis auctoritas plurimum nam et prudentissimus esse haberique
et optimus debet qui sententiae suae de utilibus atque honestis credere omnes uelit [] consilia nemo est qui
neget secundum mores darirdquo 10 Paulo (Fl 25-8) ldquoΤοῦτο φρονεῖτε ἐν ὑμῖν ὃ καὶ ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων οὐχ
ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ ἀλλὰ ἑαυτὸν ἐκένωσεν μορφὴν δούλου λαβών ἐν ὁμοιώματι ἀνθρώπων γενόμενοςmiddot καὶ σχήματι εὑρεθεὶς ὡς ἄνθρωπος ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν γενόμενος ὑπήκοος μέχρι θανάτου θανάτου δὲ σταυροῦrdquo
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arte Isso se daacute explica o filoacutesofo porque quando se estaacute tratando de temas de caraacuteter geral via
de regra a confianccedila se estabelece sobre as opiniotildees das pessoas cujo valor eacute notoacuterio poreacutem
quando os temas satildeo incertos duvidosos (τὸ ἀμφιδοξεῖν) aiacute entatildeo como que desprovido de
alternativas resta ao auditoacuterio tatildeo soacute a confianccedila quase que total e irrestrita (παντελῶς) na-
queles cujos caracteres ou comprovou-se destacar-se ou lograram aparentar fazecirc-lo E sobre
que versam as Confissotildees em linhas gerais como jaacute se apontou antes senatildeo sobre o tema natildeo-
apodiacutectico por excelecircncia Deus Donde ser liacutecito dizer que pelo prisma da retoacuterica Agostinho
empreende um enorme esforccedilo de construccedilatildeo dum ecircthos apropriado a falar de Deus E de fato
se se pretende falar de tema natildeo apenas duvidoso retoacuterico mas inefaacutevel como o Ser de que
modo evadir-se do estribo do ecircthos Se o tema fosse apodiacutectico o caraacuteter do orador talvez
restasse menos relevante poreacutem natildeo num tema em que as provas demonstrativas satildeo pratica-
mente inexistentes
Para ressaltar o caraacuteter moral de algueacutem que se queira elogiar seja o do proacuteprio orador
ou natildeo lembra Aristoacuteteles (1367b22-27) eacute preciso associar as suas accedilotildees (as quais se empre-
ende louvar) agraves suas intenccedilotildees a fim de demonstrar seu valor porque o louvor (ἔπαινος) se tira
das accedilotildees (ἐκ τῶν πράξεων) desde que este aja em conformidade com suas determinaccedilotildees
morais (κατὰ προαίρεσιν) E se o homem de valor age segundo suas proacuteprias determinaccedilotildees
depreende-se que o homem cujo valor eacute nulo aja determinado isto eacute conduzido pelo destino
pela sorte (ἀπὸ τύχης) e que o homem cujo valor eacute repreensiacutevel exemplo que o filoacutesofo natildeo
daacute mas cujo raciociacutenio permite avanccedilar agiria tambeacutem motivado por suas determinaccedilotildees mo-
rais as quais contudo seriam maacutes O que importa no que tange ao ecircthos eacute que se deve mostrar
que aquele que se estaacute louvando age de acordo com suas determinaccedilotildees e natildeo ao acaso o que
lhe tiraria todo o meacuterito meacuterito que caberia entatildeo agrave fortuna (τύχη) uma vez que as accedilotildees natildeo
praticadas de modo voluntaacuterio natildeo satildeo meritoacuterias em conformidade com o que Agostinho tam-
beacutem admitia11 Portanto o conselho de Aristoacuteteles ao orador que quer construir o seu proacuteprio
ecircthos ou o de algum outro eacute tornar todas as accedilotildees possiacuteveis inclusive as decorrentes da sorte
mdash o que natildeo seria nada honesto admite o filoacutesofo mdash fruto do meacuterito daquele que se quer
enaltecer o que seria sinal de homem resoluto decidido (σημεῖον ἀρετῆς εἶναι προαιρέσεως)
No entanto esse conselho natildeo apenas natildeo eacute seguido por Agostinho e pelo discurso cristatildeo de
modo geral como ao reveacutes o exato oposto eacute o que se potildee em praacutetica ao atribuir-se tudo agrave
Graccedila divina agrave bondade preexistente daquele que natildeo precisou de nenhuma das criaturas que
criou as quais jamais fizeram por merecer o dom da vida (Conf 1311) ldquoPorque antes que eu
11 O livre arbiacutetrio (11430101) ldquoIn uoluntate meritum sitrdquo
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existisse existias tu e eu nem existia para que me concedesses que eu existisserdquo12 Isso eacute feito
contudo natildeo em detrimento do ecircthos da construccedilatildeo dum caraacuteter digno de louvor e fidedigno
e sim para construir um caraacuteter cristatildeo ou seja um caraacuteter natildeo pautado pela taacutebua de valores
eacuteticos claacutessicos que atribuiacutea grande peso agrave gloacuteria agrave honra ao denodo guerreiro e agrave justiccedila
inflexiacutevel e fria da lei13 e sim para destacar o homem jaacute de tipo medieval manso e humilde de
coraccedilatildeo misericordioso ao ponto de voltar a outra face numa palavra homem cuja honra estava
na cruz e no sangue de seu Salvador e para o qual ldquoo insensato de Deusrdquo era ldquomais saacutebio que
os homens e o fraco de Deus mais forte que os homensrdquo14 O ecircthos pois que se quer construir
eacute o do homem de feacute que se deixa conduzir pela matildeo de Deus na praacutetica das virtudes ditas
teologais feacute esperanccedila e caridade (πίστις ἐλπίς ἀγάπη) (1Cor 1313) O homem comumente
se orgulha das coisas que faz por si proacuteprio (τοῖς διrsquo αὐτόν) lembra Aristoacuteteles mas natildeo se
orgulha do que o destino lhe trouxe (διὰ τύχην) (1368a3-4) Agostinho bastante ao contraacuterio
natildeo apenas natildeo se orgulha do que fez mas se arrepende amargamente preferindo ao inveacutes da
honra agradecer a Deus todo o bem que lhe sucedeu por seu intermeacutedio divino ldquoe assim Se-
nhor apagaste todos os meus merecidos males para que natildeo retribuiacutesses agraves minhas matildeos nas
quais te deixei e te antecipaste a todos os meus merecidos bens para que retribuiacutesses agraves tuas
matildeos com as quais me fizesterdquo15
Destarte das trecircs qualidades independentes de demonstraccedilatildeo (ἔξω τῶν ἀποδείξεων)
que Aristoacuteteles aponta (1378a) como necessaacuterias ao orador ainda que em aparecircncia somente a
fim de que seja convincente o que de modo principal se refere agraves assembleias ou ao conselho
instacircncias tiacutepicas de deliberaccedilatildeo na Greacutecia antiga 1 prudecircncia ou bom-senso (φρόνησις) 2
excelecircncia moral (ἀρετή) e 3 boa disposiccedilatildeo (εὔνοια) nenhuma delas guarda nas Confissotildees
a importacircncia que o estagirita lhe atribui a natildeo ser que se considerem as virtudes ditas teologais
como pertencentes ao rol das aretaiacute aristoteacutelicas o que seria no miacutenimo um grave anacronismo
Por fim a Retoacuterica destaca o papel do ecircthos na disposiccedilatildeo das mateacuterias (τάξις) de modo
especiacutefico no proecircmio (exordium) Nos discursos do gecircnero judiciaacuterio por exemplo aquele que
se defende (ἀπολογουμένῳ) deve fazecirc-lo logo no proecircmio (πρῶτον) antes da acusaccedilatildeo ao
contraacuterio de quem acusa que deve fazecirc-lo no final (τῷ ἐπιλόγῳ) porque aquele que defende
deve construir seu ecircthos no iniacutecio antes da acusaccedilatildeo (πρὸς τὴν διαβολήν) (1415a29-30) a
12 Confissotildees (1311) ldquoquia et priusquam essem tu eras nec eram cui praestares ut essemrdquo 13 Em conformidade com a ideia veiculada pela maacutexima romana ldquodura sed lexrdquo 14 Paulo (1Cor 121-25) ldquoὅτι τὸ μωρὸν τοῦ θεοῦ σοφώτερον τῶν ἀνθρώπων ἐστὶν καὶ τὸ ἀσθενὲς τοῦ
θεοῦ ἰσχυρότερον τῶν ἀνθρώπωνrdquo 15Confissotildees (1311) ldquoEtenim domine deleuisti omnia mala merita mea ne retribueres manibus meis in
quibus a te defeci et praeuenisti omnia bona merita mea ut retribueres manibus tuis quibus me fecistirdquo
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fim de livrar-se de todo impedimento ou embaraccedilo como faz Agostinho nas Confissotildees utili-
zando-se dos primeiros livros ditos biograacuteficos para tanto Se o acusador deve criar o precon-
ceito contra o acusado no fim para que permaneccedila bem presente na memoacuteria dos juiacutezes o
defendente deve desvencilhar-se do preconceito logo no iniacutecio a fim de que seus argumentos
satildeo sejam prejudicados pela imagem da pecha moral que traz consigo Natildeo eacute apenas para o
ecircthos que o proecircmio eacute importante mas tambeacutem para o paacutethos pois eacute preciso tornar o auditoacuterio
bem disposto em relaccedilatildeo ao orador se se estaacute defendendo ou tornaacute-lo indisposto contra a outra
parte (1415a-34-36) se se estaacute acusando Para isso conta muito a aparecircncia de respeitabilidade
do falante pois ldquoas pessoas respeitaacuteveis recebem mais atenccedilatildeordquo diz Aristoacuteteles Pelo que o
orador deve esforccedilar-se por conseguir duas coisas do auditoacuterio 1 amizade (φίλον) e 2 com-
paixatildeo (ἐλεεινόν) (1415b22-28) tornaacute-lo amigo e compassivo fazendo-o crer que ele mesmo
o orador sente exatamente aquilo que censura ou louva ou seja que estaacute sendo sincero
(1415b28-29) Ora como falar da Graccedila de Deus sem que se recorra ao testemunho pessoal
pois a Graccedila diferentemente da recompensa ou do salaacuterio (merces) eacute distribuiacuteda gratuitamente
para o que por paradoxal pareccedila faz-se necessaacuterio ser pecador numa palavra estar desprovido
de qualquer meacuterito que o tornaria credor ao inveacutes de devedor meacuterito que poderia confundi-la
a Graccedila com pagamento ou retribuiccedilatildeo Evidente que se trata dum exagero pois os que tecircm
meacuterito natildeo estatildeo de modo nenhum excluiacutedos da Graccedila jaacute que natildeo faz muito sentido que natildeo
receba sem meacuterito16 senatildeo quem natildeo mereccedila
Seja como for esse ecircthos de sinceridade logra construir com bastante esmero Agostinho
ao reconhecer-se pecador devedor pequenino desprovido de meacuteritos e absolutamente depen-
dente da bondade da Providecircncia divina que se expressa pela Graccedila gratis
A segunda das provas da arte paacutethos
A movimentaccedilatildeo das emoccedilotildees (πάθος) embora uma prova (πίστις) que se diz teacutecnica
ou ldquoda arterdquo (ἔντεχνος) de modo aparentemente paradoxal natildeo tem que ver diretamente com
as provas demonstrativas ou com a causa em si e sim respeita aos juiacutezes (δικασταί) explica
Aristoacuteteles (1354a4-5)17 De fato o orador alcanccedila a persuasatildeo seja em que gecircnero for (o que
16 Isto eacute gratuitamente 17 Aristoacuteteles natildeo era muito simpaacutetico nem ao apelo eacutetico tampouco ao emocional que julgava ser um mal
necessaacuterio pois considerava errado manipular os sentimentos dos juiacutezes o que equivalia a corromper a proacutepria lei
que se tentava fazer valer ou de que se queria socorrer (1356a14) Argumento muito parecido esse (de destruir a
proacutepria lei a que se deveraacute recorrer depois) com o utilizado por Soacutecrates ao negar a proposta de fuga de Criacuteton no
diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo (50a-b) Pois bem no iniacutecio do tratamento da hupoacutekrisis (1403b22-) Aristoacuteteles
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natildeo exclui nem o epidiacutectico tampouco o deliberativo) mediatamente por meio dos ouvintes
(διὰ τῶν ἀκροατῶν) aqueles aos quais se dirige quando recorre ao paacutethos despertando ou
dirigindo suas emoccedilotildees (ὅταν εἰς πάθος) o que se faz pela accedilatildeo discursiva (ὑπὸ τοῦ λόγου)
Isso porque os juiacutezos (τὰς κρίσεις) dos ouvintes objetivo da accedilatildeo persuasiva variam sob a
influecircncia das emoccedilotildees tais como a dor (λύπη) a alegria (χαρά) a amizade (φιλία) o oacutedio
(μῖσος) etc Com efeito o orador natildeo tem por escopo a emoccedilatildeo do auditoacuterio em si mesma como
finalidade e sim a sua persuasatildeo a fim de que decida em favor de sua causa para o que as
emoccedilotildees cooperam vivamente como percebeu Aristoacuteteles ao dedicar grande parte do livro
segundo da Retoacuterica ao estudo das paixotildees da alma
Um dos meios mais eficazes para a movimentaccedilatildeo do paacutethos a fim de que se tenha ecircxito
no apelo emocional em vista dum fim ulterior natildeo satildeo as provas demonstrativas recomendadas
para o gecircnero apropriado (o judiciaacuterio no caso) o entimema e as maacuteximas provas que devem
ser descobertas na invenccedilatildeo e sim os recursos pertencentes a outra parte da retoacuterica a elocuccedilatildeo
(λέξις) Com efeito depois de encontrado o que dizer (εὕρεσις) e disposto as mateacuterias de modo
apropriado (τάξις) resta saber como dizecirc-lo Esse ldquocomordquo respeita sem duacutevida agrave forma do dis-
curso que se chama tambeacutem ldquoestilordquo poreacutem de modo nenhum se limita a isso como se fosse
apenas uma sua vestimenta Os recursos da elocuccedilatildeo para muito aleacutem da ornamentaccedilatildeo tecircm
forccedila persuasiva pois argumentam seja pela concisatildeo das figuras seja pelo ritmo e paralelismo
das construccedilotildees seja pelas imagens que evocam o que fazem de modo principal pondo em
destaque tanto o ecircthos como o paacutethos O ecircthos por exemplo no emprego do leacutexico que quando
recheado de estrangeirismos (ξένην ποιεῖν τὴν διάλεκτον) (1404b10-12) diz Aristoacuteteles con-
fere um ar de dignidade ao discurso promovendo por tabela o orador que se faz parecer digno
e nobre assim como aquilo que estaacute dizendo O paacutethos por sua vez quando o discurso eacute ldquoele-
vadordquo a um niacutevel suprarracional ou sublime pelo uso de recursos poeacuteticos dentre os quais se
destacam as figuras de repeticcedilatildeo como paralelismos epanalepses anadiploses antanaacuteclases
reconhece que tudo aquilo que respeita agrave apresentaccedilatildeo do discurso como voz volume tom altura ritmo harmo-
nia entre tais e que eacute muito importante nos certames dramaacuteticos e eacutepicos (τῶν ἀγώνων) quando entatildeo faz-se
necessaacuterio equilibrar esses elementos segundo cada uma das emoccedilotildees (πρὸς ἕκαστον πάθος) embora seja tam-
beacutem utilizado nas demais atividades poliacuteticas como assembleias deliberativas e tribunais o eacute apenas de modo
deploraacutevel Isso porque conquanto seja necessaacuterio mover as paixotildees do auditoacuterio e construir o caraacuteter do orador
discursivamente essa necessidade se deve tatildeo soacute agrave corrupccedilatildeo dos cidadatildeos (διὰ τὴν μοχθηρίαν τῶν πολιτῶν)
(1403b34-35) o que equivale a dizer do auditoacuterio (τοῦ ἀκροατοῦ) Assim sendo o recurso tanto ao ecircthos como
ao paacutethos deixa de ser questatildeo de correccedilatildeo (οὐκ ὀρθῶς) de certo ou errado passando a ser uma necessidade (ἀλλrsquo
ὡς ἀναγκαίου) Com efeito o justo (δίκαιον) seria defender acusar exortar e dissuadir movido apenas pelos
fatos (ἀγωνίζεσθαι τοῖς πράγμασιν) (1404a5-6) de maneira tal que o restante que Aristoacuteteles reputa fora da
demonstraccedilatildeo (ἔξω τοῦ ἀποδεῖξαι) ο que inclui ecircthos e paacutethos seria superfluidade (περίεργα ἐστίν) (1404a8)
Infelizmente poreacutem a realidade eacute que o orador precisa conhecer estes recursos a fim de poder defender-se e atingir
seus objetivos uma vez que os adversaacuterios certamente lanccedilam matildeo deles de modo quase sempre inescrupuloso
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paronomaacutesias antimetaacuteboles poliptotos etc E fique claro que dizer que Aristoacuteteles natildeo via com
bons olhos o (mau) recurso aos apelos eacutetico e pateacutetico nos tribunais natildeo significa dizer que
desprezasse os mecanismos da elocuccedilatildeo o que implicaria dizer que cresse o homem ser dotado
apenas de razatildeo excluiacutedos sentimentos e caraacuteter a natildeo dizer da vontade Ao contraacuterio Aristoacute-
teles bem reconhecia que em todo tipo de aprendizado (ἐν πάσῃ διδασκαλίᾳ) o estilo se faz
mateacuteria de certa importacircncia uma vez que algo se torna claro (πρὸς τὸ δηλῶσαι) por meio do
modo como eacute dito (ὡδὶ ἢ ὡδὶ εἰπεῖν) embora relegasse a questatildeo do estilo ao niacutevel da aparecircn-
cia (ἀλλrsquo ἅπαντα φαντασία ταῦτrsquo εστὶ) cuja finalidade seria apenas agradar o ouvinte (πρὸς
τὸν ἀκροατήν) ouvinte esse por sua vez cuja corrupccedilatildeo (μοχθηρία) seria a verdadeira causa
de tudo que natildeo eacute apodiacutectico na retoacuterica (1404a7-8) Em assim sendo o estilo (λέξις) seria um
mal necessaacuterio uma ferramenta que embora potencialmente injusta seria uacutetil para conferir
clareza ao discurso assim como todos os demais elementos de persuasatildeo natildeo-apodiacutecticos ou
extrademonstrativos E isso se justifica diz o filoacutesofo de modo peremptoacuterio porque ningueacutem
ensina a fazer geometria desse modo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) isto eacute nem pelo
recurso ao paacutethos nem pelo ecircthos tampouco por qualquer outra ferramenta indicada para a
elocuccedilatildeo como as figuras (1404a12) Compreende-se essa visatildeo deveras depreciativa da elo-
cuccedilatildeo por parte do filoacutesofo pois como ele mesmo diz no terceiro livro de sua Retoacuterica ao
empreender o tratamento da actio ou representaccedilatildeo do discurso (ὑπόκρισις) ateacute ao tempo da
escritura da obra natildeo havia ainda nenhuma arte isto eacute nenhum manual de retoacuterica voltado para
a mateacuteria (οὔπω δὲ σύγκειται τέχνη περὶ αὐτῶν) porque a leacuteksis soacute havia sido notada pou-
quiacutessimo antes (ἐπεὶ καὶ τὸ περὶ τὴν λέξιν ὀψὲ προῆλθεν) descaso que se justificava pelo fato
de o estilo mdash considerado entatildeo como mera ornamentaccedilatildeo do discurso mdash ser julgado inferior
(φορτικὸν) tema indigno das preocupaccedilotildees dum homem livre criacutetica que natildeo evita endossar o
filoacutesofo (καλῶς ὐπολαμβανόμενον) (1403b35-6)
A despeito desta postura criacutetica adotada por Aristoacuteteles e de seu juiacutezo negativo a respeito
do ecircthos e do paacutethos postura raramente admitida pelos estudiosos atuais da retoacuterica o que
importa para os fins deste artigo contudo eacute seu poder argumentativo uma vez que sua impor-
tacircncia natildeo pode ser negada seja ela justificada ou natildeo de par com a finalidade filosoacutefica que
lhes imprime o rhetor de Hipona Portanto justo ou natildeo (nos tribunais e assembleias) o fato
admitido por Aristoacuteteles eacute que a elocuccedilatildeo afeta sobremodo o paacutethos sendo de par com o ecircthos
reconhecido como a mais persuasiva (κυριωτάτη) das provas (1356a13) altamente eficaz para
os objetivos da argumentaccedilatildeo pois resta claro que por meio do estilo se consegue mover as
emoccedilotildees (1408a16) seja quando se fala com indignaccedilatildeo audaciosa (ὕβρις) seja com raiva
149
(ὁργιζομένου) impiedade (ἀσεβή) ou vergonha (αἰσχρά) O estilo adequado (ἡ οἰκεία λέξις)
que eacute aquele em que os elementos do paacutethos (παθητική) e do ecircthos (ἠθική) satildeo proporcionais
(ἀνάλογον) aos temas subjacentes (τοῖς ὐποκειμένοις πράγμασιν) (1408a10-11) faz com
que um dado assunto seja mais persuasivo Aleacutem disso remata Aristoacuteteles o ouvinte sempre
simpatiza (συνομοπαθεῖ ὁ ἀκούων) com quem fala de modo emocional (παθητικῶς
λέγοντι) ainda que esse natildeo diga nada (κἂν μηθὲν λέγῃ) (1408a23-4)
Reconhecido o vigor (δύναμις) natildeo apenas pateacutetico mas tambeacutem argumentativo da elo-
cuccedilatildeo resta ver como Agostinho se utiliza de seus recursos nas Confissotildees a fim de atingir seus
objetivos numa palavra a fim de fazer filosofia Pois bem as descriccedilotildees que melhor instigam
as emoccedilotildees satildeo as que fazem apelo agrave imaginaccedilatildeo e aos sentidos descriccedilotildees viacutevidas de cenas e
eventos contam muito como o famigerado roubo das peras (Conf 249) a prisatildeo de Aliacutepio
(6914) ou a cena do jardim de Milatildeo (81125-27) por exemplo as inumeraacuteveis metaacuteforas e a
prosopopeia de oacutergatildeos humanos que passam a ser dotados de matildeos pernas ouvidos como as
matildeos do coraccedilatildeo que se estendem em prece a Deus os relatos de laacutegrimas pungentes que se
vertem repetidas vezes enfim descriccedilotildees essas que tecircm potencial enorme para despertar fortes
sentimentos Do mesmo modo o uso de hipeacuterboles e outras tantas figuras se faz extremamente
uacutetil para criar o efeito emocional desejado Todavia nada talvez seja tatildeo eficiente nesse sentido
quanto o vocabulaacuterio o uso de palavras carregadas de intensa conotaccedilatildeo pateacutetica E no apelo
agraves emoccedilotildees pode-se dizer esteja uma das chaves de leitura das Confissotildees ao menos retoacuterica
De fato a linguagem da obra estaacute repleta de figuras cujo efeito principal eacute o despertar dos
sentimentos Mas de quem e para quecirc A sua audiecircncia soacute pode ser depreendida de modo in-
direto por meio da linguagem do estilo e do tema o que natildeo se constitui tarefa das mais faacuteceis
por tratar-se de obra multifacetada de linguagem muito elaborada que prima pela sofisticaccedilatildeo
mas que natildeo despreza uma certa tonalidade menos erudita que se pode ateacute denominar em
alguma medida popular ou humilde De fato pelo recurso aos salmos e textos escrituraacuterios
com seu respectivo campo semacircntico permeado de expressotildees da liacutengua grega vulgar (κοινή)
traduzidas ou transliteradas em latim conhecidos de toda comunidade cristatilde natildeo apenas por
serem lidos mas principalmente por sua funccedilatildeo lituacutergica eacute sem duacutevida uma linguagem
(sermo) popular ou humilis todavia pelos mecanismos retoacutericos extremamente requintados e
pelas referecircncias a toda uma cultura filosoacutefica de par com uma argumentaccedilatildeo em muitas pas-
sagens nada singela especialmente nos livros 1 8 e de 9 a 13 pode-se considerar igualmente
elevadiacutessima Portanto humilde e elevada eacute a linguagem das Confissotildees constituindo em si
mesma um oximoro
150
Diante desse desafio de escrever tanto para a gente mais simples como para filoacutesofos
desafio que se exprime nesse caso pela linguagem supotildee-se que Agostinho natildeo tenha simples-
mente pretendido abaixar o registro de seu discurso descendo aos simples e pequeninos (ad
catechizandos rudes) muito ao contraacuterio ao que parece pretendia elevar-se ou melhor ser
elevado ao confessar-se arrependido penitenciando-se mas tambeacutem ao confessar sua feacute e seu
louvor enaltecendo e reconhecendo a graccedila de Deus em sua vida Em sendo assim ao ser ele-
vado por Deus pela confissatildeo pretende igualmente mover as almas incitando-lhes semelhante
elevaccedilatildeo ou quando natildeo o desejo de elevaccedilatildeo desejo de que se deixassem igualmente elevar
como ele confessava desejar o que se pode considerar sem duacutevida uma meta de caraacuteter pastoral
Portanto sua missatildeo quanto ao paacutethos eacute tambeacutem a de mover as almas agrave salvaccedilatildeo que
se pode sintetizar na vontade de ser elevado e de para lanccedilar matildeo duma contradiccedilatildeo merecer
por uma espeacutecie de ascese cataacutertica a graccedila divina a misericoacuterdia do Deus justiacutessimo Ora
disso decorre a possibilidade duma outra funccedilatildeo da linguagem extremamente comovente fruto
dos recursos da elocuccedilatildeo a que recorre Agostinho nas Confissotildees e interligada com essa funccedilatildeo
dita pastoral de elevar as almas uma funccedilatildeo que se pode compreender como simultaneamente
propedecircutica e filosoacutefica Com efeito se uma das funccedilotildees deste paacutethos que se diz de caraacuteter
pastoral pretende comover positiva e negativamente incitando a um soacute tempo o desejo de
salvaccedilatildeo e o de horror agrave perdiccedilatildeo o desejo de buscar Deus e de evitar o mal de buscar ser mais
pela proximidade do Ser supremo e de evitar ser menos ou deixar de ser pelo afastamento desse
mesmo Ser como se percebe sobremodo nos livros da parte considerada biograacutefica da obra o
que natildeo implica de modo algum a exclusatildeo dos restantes livros a outra funccedilatildeo por sua vez
relacionada intimamente agrave primeira de que se pode dizer seja consequecircncia natural que se
exacerba tambeacutem a partir dos recursos da elocuccedilatildeo e que como se disse tem caraacuteter prope-
decircutico compreende-se como uma funccedilatildeo de purificaccedilatildeo filosoacutefica de afastamento progressivo
das coisas deste mundo de afastamento da ldquocarnerdquo se se pode dizer tendo em vista o despren-
dimento rumo a uma vida mais espiritual de proximidade com o Ser o puro Inteligiacutevel que se
transubstancia por sua vez num projeto de vivecircncia cristatilde o que se destaca sobremodo a partir
do livro novo encontrando sua foz nos estertores do livro derradeiro Donde ser liacutecito afirmar
que os livros da parte biograacutefica das Confissotildees do primeiro ao oitavo tecircm tambeacutem essa fun-
ccedilatildeo de purificaccedilatildeo tanto das emoccedilotildees como da razatildeo ou seja de disciplinar ou exercitar asce-
ticamente a alma (exercitatio animi)18 a fim de que os leitores e ouvintes pudessem estar pre-
parados para o que havia de vir nos livros subsequentes E isso parece estar em harmonia com
18 Ἥ ἄσκησις ἥ τῆς ψυχῆς
151
o projeto filosoacutefico platocircnico-cristatildeo que Agostinho tinha para sua vida e que colocou em praacute-
tica desde os tempos preacute-batismais de Cassiciacuteaco ateacute ser interrompido pela sua consagraccedilatildeo
sacerdotal (391 dC) um projeto propedecircutico-purificador
E de fato se se pode aventar que esse projeto cataacutertico da razatildeo encontra seu ponto de
saiacuteda no expurgo do ceticismo de tipo neoacadecircmico como se percebe nos trecircs livros intitulados
Contra Academicos desenvolve-se sobremodo nas paacuteginas do diaacutelogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monoacutelogo com os Soliloacutequios obras do mesmo periacuteodo
Formato monoloacutegico esse denominado por Dupuy-Trudelle (1998 p 1198) ldquodesdobramentordquo
que eacute bem possiacutevel tenha servido de laboratoacuterio para as proacuteprias Confissotildees sugere a autora
refletindo a intenccedilatildeo de Agostinho apesar da excelecircncia da feacute de levar as exigecircncias da razatildeo
ateacute ao limite extremo num esforccedilo de purificaccedilatildeo num ir-aleacutem das paixotildees e desiludir-se sobre
si mesmo Ora estar iludido acerca de si mesmo natildeo eacute impedimento agrave feacute mas o eacute ao acesso agrave
convicccedilatildeo intelectual verdadeira Portanto para chegar-se ao conhecimento define esta autora
(ibid pp 1198-9) faz-se mister como condiccedilatildeo uacutenica a ldquolibertaccedilatildeo da razatildeo de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesmardquo libertaccedilatildeo a que os Soliloacutequios datildeo curso
Pode-se compreender que para desenlamear a consciecircncia dos similisavoirs libertaacute-
la de toda ilusatildeo psicoloacutegica ensinaacute-la que o desejo da verdade natildeo eacute ainda a posses-
satildeo da verdade permitir-lhe ir aleacutem do conflito de interesses que leva a opiniatildeo a
revoltar-se contra a verdade seja preciso mensurar a distacircncia entre o sujeito e si
mesmo Ora fazecirc-lo eacute um convite a mensurar a distacircncia entre si e o conhecimento de
Deus Eis entatildeo todo o sentido do exerciacutecio proposto pelo ldquosoliloacutequiordquo mensurar uma
e outra19
Natildeo parece haver duacutevidas de que os Soliloacutequios trazem em si de modo embrionaacuterio o estilo
que haveria de consagrar sobretudo a partir das Confissotildees quando entatildeo dispensa o combate
direto de ideias preferindo ldquodesdobrar-serdquo e deixar-se interrogar por si mesmo ainda que de
modo proleacuteptico continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas
Todavia eacute mais que provaacutevel que esta exigecircncia natildeo tenha surgido do nada e sim pertenccedila a
um projeto filosoacutefico maior que englobe as demais obras de Cassiciacuteaco sendo-lhe entatildeo um
como que desenvolvimento natural
No proacutelogo do De ordine (13-4) Agostinho argumenta que o homem por ser um des-
conhecido de si mesmo natildeo consegue perceber a ordem que reina em todo o universo ordem
providencial em que ele estaacute inserido e que para conseguir conhecer-se seria necessaacuterio entrar
em si mesmo ali permanecendo afastado dos sentidos lugar em que poderia entatildeo curar-se das
feridas que as opiniotildees vulgares infligem agrave alma seja pelo ldquofogordquo do ldquoisolamentordquo conforme
19 DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Les Confessions Paris Gal-
limard 1998 p 1206
152
se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
153
soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
154
As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
155
menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
156
Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
157
sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
158
(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
159
articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
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o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
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Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
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da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
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das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
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O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
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Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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domiacutenio sobre as paixotildees a fim de conduzir o auditoacuterio ao objetivo (τέλος) almejado que
como se disse eacute sempre futuro (περὶ τῶν μελλόντων) Todavia se natildeo se delibera tendo em
vista o fim que se persegue (οὐ περὶ τοῦ τέλος) em conformidade com o que diz Aristoacuteteles
e sim aquilo que leva ateacute ele (ἀλλὰ περὶ τῶν πρὸς τὸ τέλος) (1352a15-19) ou seja os meios
os quais por sua vez residem nas accedilotildees (κατὰ τὰς πράξεις) tem-se como sequecircncia necessaacuteria
que 1 o uacutetil serve a um propoacutesito ulterior um fim e que 2 se o fim for bom o uacutetil natildeo apenas
levaraacute a esse bem mas seraacute tambeacutem de algum modo bom ainda que mediatamente e em menor
grau Daiacute que natildeo apenas o uacutetil em favor de que se delibera seja bom mas tambeacutem a praacuteksis
contraacuteria o seja a saber a rejeiccedilatildeo do nocivo do inuacutetil E com efeito seja para Aristoacuteteles ou
Agostinho o Bem (ἀγαθόν) uacuteltimo ou supremo pode ser definido como sendo aquilo que se
deve buscar (αἱρετόν) em vista de si mesmo (αὑτοῦ ἕκενα) e natildeo de algo ulterior (καὶ μὴ
ἄλλου) (1363b12-14) Esse Fim (τέλος) que coincide com o Bem supremo eacute aquilo em vista
de que (οὗ ἕνεκα) todo o resto (τὰ ἄλλα) se faz (1363b16-17) Em se admitindo com o autor
da Retoacuterica que esse Fim uacuteltimo embora sendo desejado natildeo seja objeto imediato de delibe-
raccedilatildeo e sim as accedilotildees (πράξεις) por meio de que se possa chegar a ele percebe-se sem muito
esforccedilo que as deliberaccedilotildees acerca deste Fim chame-se eudaimoniacutea ou Ser supremo fazem-se
sobremodo a partir de accedilotildees que podem ser virtuosas quando entatildeo se aproxima do objetivo
ou viciosas quando dele se afasta restando manifesto e inconteste o potencial tanto do ecircthos
como do paacutethos no tratamento daquilo que para Agostinho se traduz em princiacutepio pela uita
beata e posteriormente pelo Saacutebado eterno seja nas quatro virtudes cardeais justiccedila tempe-
ranccedila prudecircncia e coragem ou nas trecircs teologais feacute esperanccedila e caridade a serem praticadas
nesta vida tendo em vista o Bem uacuteltimo e supremo Deus seja por outra na comoccedilatildeo necessaacuteria
das almas que se deve aproximar desta mesma uita beata ou afastar da uita misera sem perder
de vista o fim uacuteltimo que se almeja
E se o deliberativo tem sua funccedilatildeo na exortaccedilatildeo tampouco se faz ausente da obra o
gecircnero judiciaacuterio que contempla sobremodo accedilotildees de acusaccedilatildeo (κατηγορία) e de defesa
(ἀπολογία) (1358b) De fato que faz Agostinho na parte dita biograacutefica da obra enquanto
narra suas desventuras preteacuteritas senatildeo acusar-se de seus erros como a experiecircncia entre os
maniqueus entre os ceacuteticos ou mesmo as aventuras ditas libidinosas em Cartago ou entatildeo
fazer a apologia da Graccedila divina da continecircncia da conversatildeo de sua matildee (ao contraacuterio do pai
que ele prefere acusar) Acusaccedilatildeo e defesa portanto seja de atos seus preteacuteritos (περὶ τῶν
γεγενημένων) (1358b5) seja de doutrinas ou ideias que reputa natildeo apenas inimigas do cami-
140
nho que leva ao Fim uacuteltimo por ele eleito mas tambeacutem antagocircnicas agrave proacutepria concepccedilatildeo des-
posada deste Ser supremo como o dualismo maniqueu por uma ou o ceticismo de tipo neoa-
cadecircmico por outra que perigosamente ameaccedilava uma das proacuteprias virtudes teologais a natildeo
dizer duas feacute e a esperanccedila por meio duma descrenccedila radical na possibilidade de acesso a
noccedilotildees fundamentadas acerca do verdadeiro
E se se podem perceber nuanccedilas do deliberativo e do judiciaacuterio na exortaccedilatildeo ou dissu-
asatildeo na acusaccedilatildeo e na defesa muito mais no caso do gecircnero predominante expresso pelas Con-
fissotildees o epidiacutectico que segundo Aristoacuteteles compreende tanto o louvor (ἔπαινος) como a
censura (ψόγος) (1358b12-3) De fato que faz Agostinho ao longo das Confissotildees senatildeo cen-
surar o que afasta de Deus louvando o que dele aproxima o homem censurar o pecado lou-
vando seu contraacuterio as virtudes fazer o elogio da vida feliz (beata uita) vituperando seu
oposto a infeliz (misera) E mesmo quando censura seu objetivo natildeo eacute senatildeo louvar louvar o
que se edifica como antipodal daquilo que se estaacute censurando pois natildeo se trata de discorrer
sobre o viacutecio sobre o torto sobre o caminho errado que se natildeo deve percorrer numa palavra
natildeo se trata de discorrer sobre o mal porque ele natildeo existe (entenda-se o mal ontoloacutegico) Ao
contraacuterio trata-se de louvar o que Eacute o Ser por excelecircncia Deus e toda a sua obra cujo paro-
xismo natildeo eacute outro senatildeo o momento em que cria o homem Paradoxal seria pois limitar-se ao
vitupeacuterio o que equivaleria a ressaltar apenas e tatildeo somente aquilo que natildeo possui existecircncia
real o mal ou antisser7 como quem escrevesse um livro sobre o que natildeo eacute As Confissotildees
portanto empreendem sobretudo um discurso de louvor que se bem pode denominar filosofia
do louvor a qual se enquadra perfeitamente no gecircnero epidiacutectico cuja tocircnica eacute dada pelo loacutegos
enquanto referente aquilo de que se fala (περὶ οὗ λέγει) (1358b1) referente de muacuteltiplos sen-
tidos que se pode compreender natildeo apenas como a Palavra que eacute Deus mas tambeacutem a palavra
de Deus a palavra sobre a palavra de Deus a palavra sobre o Deus que eacute Palavra e profere
palavras embora esse mesmo referente enquanto Verbo divino seja inefaacutevel donde ser neces-
saacuterio que esse loacutegos seja tambeacutem linguagem nos recursos retoacutericos precisos a que se diga o
indiziacutevel
Todos os trecircs gecircneros portanto prestam auxiacutelio reciacuteproco pois quem louva no presente
deve fazecirc-lo tambeacutem por meio das lembranccedilas do passado (ἀναμιμνήσειν τὰ γενόμενα) ou das
conjecturas e esperanccedilas futuras (προεικάζειν τὰ μέλλοντα) e o justo por sua vez objeto das
reflexotildees judiciaacuterias pode igualmente ser feio ou belo uacutetil ou inuacutetil mateacuteria dos outros dois
7 O que de esdruacutexulo possa haver neste composto se deve agraves novas regras do Acordo Ortograacutefico de 1990 O
que se quis expressar eacute o contraacuterio do ser ldquoanti-serrdquo que natildeo mais se grafa assim com hiacutefen
141
gecircneros assim como uacutetil e o inuacutetil mateacuteria de deliberaccedilatildeo que podem ser justos ou seu con-
traacuterio belos ou natildeo ou ainda o bom e o mau que podem muito bem ser inuacuteteis ou natildeo justos
ou natildeo em conformidade com o que diz Aristoacuteteles justificando assim a mistura dos gecircneros
retoacutericos (1358b27-1359a4) Poreacutem o gecircnero epidiacutectico parece ser o mais completo dos trecircs
uma vez nem focar demasiado no passado como o judiciaacuterio tampouco no futuro como o
deliberativo ao contraacuterio ao discorrer acerca do presente (ὁ παρὼν χρόνος) louvando ou
censurando as coisas que de fato satildeo (κατὰ τὰ ὐπάρχοντα) eacute-lhe permitido voltar-se tanto agraves
reminiscecircncias preteacuteritas quanto ao que pode vir a ser como se percebe nitidamente do primeiro
ao derradeiro livro das Confissotildees que nem se limitam a perscrutar o passado tampouco a
especular esperanccedilosamente sobre o futuro ou mesmo sobre o presente na investigaccedilatildeo do
proacuteprio rememorar quando entatildeo empreendem o louvor do que eacute foi e haacute de ser de par com o
do que sempre e indefectivelmente eacute
Uma uacuteltima palavra acerca da retoacuterica se faz necessaacuteria antes de voltar a atenccedilatildeo para
os trecircs gecircneros de provas teacutecnicas nas Confissotildees Quando se propotildee apresentar uma resposta
diz Michel Meyer (2010 p 53) a retoacuterica tende a ocultar o problemaacutetico fazendo com que a
questatildeo de base subjacente a todo discurso questatildeo em torno de que se reuacutenem ou dispersam
as partes pareccedila resolvida No entanto isso de modo nenhum eacute o que se percebe na retoacuterica
filosoacutefica de Agostinho que opera agraves avessas natildeo projetando de modo nenhum esconder o
problemaacutetico e sim permitindo lidar com ele dizendo-o embora sua insoluacutevel inefabilidade E
de fato se se tome por base a proacutepria definiccedilatildeo da retoacuterica elaborada pelo mesmo Meyer (2012
p 21) como sendo a negociaccedilatildeo entre a distacircncia criada por um dado problema que se constitui
sua proacutepria medida percebe-se no que tange ao Ser natildeo haver distacircncia entre interlocutores
para quem a sua inefabilidade eacute paciacutefica quer se o identifique com a Divindade cristatilde ou natildeo
E em natildeo havendo essa distacircncia qual a finalidade da retoacuterica sendo ela a suposta negociaccedilatildeo
que se estabelece em funccedilatildeo dum dado problema que se mede exatamente por essa distacircncia
inexistente Logo em natildeo havendo uma distacircncia que se constituiacutesse a medida do problemaacutetico
desnecessaacuterio seria argumentar inexistindo o problema Contudo isso se refere de modo espe-
cial agraves retoacutericas forense e deliberativa natildeo agrave epidiacutectica e menos ainda a epidiacutectica com finali-
dade filosoacutefica como se daacute no caso de Agostinho Nas Confissotildees a distacircncia que se quer
negociar eacute a que se supotildee entre o conhecido desconhecimento de Deus e seu desconhecido
conhecimento ou seja a distacircncia entre o nada que se pode conhecer de Deus e o tudo que se
desconhece entre o nada que dele se pode dizer e o tudo que se natildeo diz E como essa distacircncia
142
eacute inegociaacutevel resta agrave retoacuterica simular a edificaccedilatildeo duma estrutura especial a linguagem per-
mitindo que pela proacutepria expressatildeo do paradoxo do estranhamento da perplexidade se diga
sem dizer e se natildeo diga dizendo Numa palavra a retoacuterica permite que Agostinho estique a
corda do arco de seu dizer para aleacutem da tensatildeo do compreensiacutevel apodiacutectico para aleacutem do
alcance da razatildeo que seja capaz carreando o leitor consigo de tangenciar o suprarracional a
natildeo dizer irracional pois natildeo desprovido de razatildeo e sim muito aleacutem dela
A primeira das provas da arte ecircthos
Aleacutem das provas loacutegicas que envolviam mateacuterias e meacutetodos cujo apelo se voltava pri-
mordialmente a natildeo dizer exclusivamente para a razatildeo a retoacuterica reconhecia outros meios de
prova pois se dera conta havia muito de que as pessoas natildeo satildeo apenas dotadas de capacidade
racional mas tambeacutem de sentimentos e de vontade pelo que se fazia necessaacuterio lidar com elas
natildeo como deveriam ser mas como realmente eram lembram Corbett e Connors (1999 p 72)
Destarte tomando por base a definiccedilatildeo aristoteacutelica de que a retoacuterica eacute a arte de descobrir todos
os meios possiacuteveis de persuasatildeo8 torna-se oacutebvio o recurso a tudo aquilo que se comprove efi-
ciente para esse fim Neste sentido afianccedilam esses autores o apelo eacutetico pode ser mais eficaz
que o apelo agrave razatildeo pois
mesmo o mais engenhoso e sensato apelo agrave razatildeo pode fracassar diante de ouvidos
amoucos se a audiecircncia reagiu desfavoravelmente ao caraacuteter do orador O apelo eacutetico
eacute especialmente importante no discurso retoacuterico porque aqui estamos lidando com
assuntos acerca dos quais eacute impossiacutevel ter-se certeza absoluta e em que as opiniotildees
satildeo divididas
Com efeito o ecircthos prova teacutecnica que se erige a partir do caraacuteter moral do orador segundo
reconhecia Aristoacuteteles (1356a13) constitui-se no meio mais eficaz de prova (κυριωτάτην ἔχει
πίστιν τὸ ἦθος)
Quintiliano por sua vez em suas Instituiccedilotildees Oratoacuterias (3813) adotando integral-
mente a teoria aristoteacutelica argumenta que dos trecircs gecircneros de discurso o deliberativo era o que
mais necessitava do apelo eacutetico ou seja o discurso que mais se apoiava no caraacuteter do orador
que ele denominava auctoritas
Nas deliberaccedilotildees poreacutem a autoridade eacute o que possui maior valor Com efeito natildeo
apenas deve ser considerado muitiacutessimo prudente como tambeacutem muitiacutessimo virtuoso
todo aquele que deseje que todos acreditem nos seus pensamentos acerca das coisas
8 (1355b25-6) ldquoSeja entatildeo a retoacuterica a faculdade de considerar acerca de cada coisa o que eacute possivelmente
persuasivordquo (ἔστω δὴ ἡ ῥητορικὴ δύναμις περὶ ἕκαστον τοῦ θεωρῆσαι τὸ ἐνδεχόμενον πιθανόν)
143
proveitosas e dignas de honra [] natildeo haacute quem negue que as deliberaccedilotildees satildeo feitas
segundo os caracteres dos oradores9
Em conformidade com o que se argumentou um pouco antes a partir das consideraccedilotildees do
proacuteprio Aristoacuteteles acerca da mistura de gecircneros retoacutericos (1358b27-1359a4) sobre a predomi-
nacircncia do gecircnero epidiacutectico nas Confissotildees eacute perceptiacutevel natildeo apenas a importacircncia do apelo
eacutetico que natildeo eacute das menores por tratar-se duma obra primordialmente na primeira pessoa e
que sob certo ponto de vista quer falar de si mas principalmente pelo que se disse acerca de
um dos objetivos da obra de caraacuteter ldquodeliberativordquo ou antes de caraacuteter ldquopastoralrdquo de mover
as almas para Deus (conuersio ad deum) ao modo dum loacutegos protreacuteptico afastando-as do pe-
cado e de tudo que as manteacutem distantes do Bem (auersio a bono) objetivo que se cumpre
escorado no caraacuteter eacutetico que se esforccedilou por burilar ao longo primordialmente dos livros ditos
autobiograacuteficos da obra De fato natildeo obteacutem ecircxito na pretensatildeo de exortar (προτρέπω) para
Deus senatildeo aquele que se deixou dissuadir (ἀποτρέπω) do caminho do pecado que compro-
vou sua humildade (humilitas) na aceitaccedilatildeo natildeo do poder de seu livre-arbiacutetrio e sim da Graccedila
divina cujas Justiccedila e Misericoacuterdia se amalgamam na Sabedoria una e indivisiacutevel do Ser ao
inveacutes de se anularem pela contradiccedilatildeo Natildeo se trata de reconhecer-se purificado trata-se mui-
tiacutessimo ao contraacuterio de reconhecer-se pecador carente da Graccedila e incapacitado de autossalva-
ccedilatildeo numa palavra trata-se de diminuir-se ao modo do ldquoesvaziamentordquo (κένωσις) de Cristo
que embora possuindo uma forma divina (ἐν μορφῇ θεοῦ) esvaziou-se a si mesmo segundo
Paulo assumindo uma forma de escravo e fazendo-se semelhante aos homens pelos quais se
humilhou e obedientemente deixou-se matar na cruz10 Esse o ecircthos cristatildeo portador das virtu-
des dignas de imitaccedilatildeo invertidas quanto pudessem parecer a um auditoacuterio pagatildeo da eacutepoca
para o qual nem a misericoacuterdia tampouco a humildade eram considerados valores morais dese-
jaacuteveis e sim fraquezas despreziacuteveis
O orador persuade por seu caraacuteter moral explicava Aristoacuteteles (1356a5) quando seu
discurso eacute de tal modo elaborado que seja capaz de tornaacute-lo digno de credibilidade um homem
em quem pareccedila ser possiacutevel confiar Essa credibilidade contudo natildeo se constroacutei por meio de
elementos extratextuais de ideias preacute-concebidas acerca da conduta eacutetica do orador e sim atra-
veacutes do discurso (1356a8) donde ser considerado o ecircthos uma prova de caraacuteter teacutecnico fruto da
9 Inst oratoriae (3813) ldquoValet autem in consiliis auctoritas plurimum nam et prudentissimus esse haberique
et optimus debet qui sententiae suae de utilibus atque honestis credere omnes uelit [] consilia nemo est qui
neget secundum mores darirdquo 10 Paulo (Fl 25-8) ldquoΤοῦτο φρονεῖτε ἐν ὑμῖν ὃ καὶ ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων οὐχ
ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ ἀλλὰ ἑαυτὸν ἐκένωσεν μορφὴν δούλου λαβών ἐν ὁμοιώματι ἀνθρώπων γενόμενοςmiddot καὶ σχήματι εὑρεθεὶς ὡς ἄνθρωπος ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν γενόμενος ὑπήκοος μέχρι θανάτου θανάτου δὲ σταυροῦrdquo
144
arte Isso se daacute explica o filoacutesofo porque quando se estaacute tratando de temas de caraacuteter geral via
de regra a confianccedila se estabelece sobre as opiniotildees das pessoas cujo valor eacute notoacuterio poreacutem
quando os temas satildeo incertos duvidosos (τὸ ἀμφιδοξεῖν) aiacute entatildeo como que desprovido de
alternativas resta ao auditoacuterio tatildeo soacute a confianccedila quase que total e irrestrita (παντελῶς) na-
queles cujos caracteres ou comprovou-se destacar-se ou lograram aparentar fazecirc-lo E sobre
que versam as Confissotildees em linhas gerais como jaacute se apontou antes senatildeo sobre o tema natildeo-
apodiacutectico por excelecircncia Deus Donde ser liacutecito dizer que pelo prisma da retoacuterica Agostinho
empreende um enorme esforccedilo de construccedilatildeo dum ecircthos apropriado a falar de Deus E de fato
se se pretende falar de tema natildeo apenas duvidoso retoacuterico mas inefaacutevel como o Ser de que
modo evadir-se do estribo do ecircthos Se o tema fosse apodiacutectico o caraacuteter do orador talvez
restasse menos relevante poreacutem natildeo num tema em que as provas demonstrativas satildeo pratica-
mente inexistentes
Para ressaltar o caraacuteter moral de algueacutem que se queira elogiar seja o do proacuteprio orador
ou natildeo lembra Aristoacuteteles (1367b22-27) eacute preciso associar as suas accedilotildees (as quais se empre-
ende louvar) agraves suas intenccedilotildees a fim de demonstrar seu valor porque o louvor (ἔπαινος) se tira
das accedilotildees (ἐκ τῶν πράξεων) desde que este aja em conformidade com suas determinaccedilotildees
morais (κατὰ προαίρεσιν) E se o homem de valor age segundo suas proacuteprias determinaccedilotildees
depreende-se que o homem cujo valor eacute nulo aja determinado isto eacute conduzido pelo destino
pela sorte (ἀπὸ τύχης) e que o homem cujo valor eacute repreensiacutevel exemplo que o filoacutesofo natildeo
daacute mas cujo raciociacutenio permite avanccedilar agiria tambeacutem motivado por suas determinaccedilotildees mo-
rais as quais contudo seriam maacutes O que importa no que tange ao ecircthos eacute que se deve mostrar
que aquele que se estaacute louvando age de acordo com suas determinaccedilotildees e natildeo ao acaso o que
lhe tiraria todo o meacuterito meacuterito que caberia entatildeo agrave fortuna (τύχη) uma vez que as accedilotildees natildeo
praticadas de modo voluntaacuterio natildeo satildeo meritoacuterias em conformidade com o que Agostinho tam-
beacutem admitia11 Portanto o conselho de Aristoacuteteles ao orador que quer construir o seu proacuteprio
ecircthos ou o de algum outro eacute tornar todas as accedilotildees possiacuteveis inclusive as decorrentes da sorte
mdash o que natildeo seria nada honesto admite o filoacutesofo mdash fruto do meacuterito daquele que se quer
enaltecer o que seria sinal de homem resoluto decidido (σημεῖον ἀρετῆς εἶναι προαιρέσεως)
No entanto esse conselho natildeo apenas natildeo eacute seguido por Agostinho e pelo discurso cristatildeo de
modo geral como ao reveacutes o exato oposto eacute o que se potildee em praacutetica ao atribuir-se tudo agrave
Graccedila divina agrave bondade preexistente daquele que natildeo precisou de nenhuma das criaturas que
criou as quais jamais fizeram por merecer o dom da vida (Conf 1311) ldquoPorque antes que eu
11 O livre arbiacutetrio (11430101) ldquoIn uoluntate meritum sitrdquo
145
existisse existias tu e eu nem existia para que me concedesses que eu existisserdquo12 Isso eacute feito
contudo natildeo em detrimento do ecircthos da construccedilatildeo dum caraacuteter digno de louvor e fidedigno
e sim para construir um caraacuteter cristatildeo ou seja um caraacuteter natildeo pautado pela taacutebua de valores
eacuteticos claacutessicos que atribuiacutea grande peso agrave gloacuteria agrave honra ao denodo guerreiro e agrave justiccedila
inflexiacutevel e fria da lei13 e sim para destacar o homem jaacute de tipo medieval manso e humilde de
coraccedilatildeo misericordioso ao ponto de voltar a outra face numa palavra homem cuja honra estava
na cruz e no sangue de seu Salvador e para o qual ldquoo insensato de Deusrdquo era ldquomais saacutebio que
os homens e o fraco de Deus mais forte que os homensrdquo14 O ecircthos pois que se quer construir
eacute o do homem de feacute que se deixa conduzir pela matildeo de Deus na praacutetica das virtudes ditas
teologais feacute esperanccedila e caridade (πίστις ἐλπίς ἀγάπη) (1Cor 1313) O homem comumente
se orgulha das coisas que faz por si proacuteprio (τοῖς διrsquo αὐτόν) lembra Aristoacuteteles mas natildeo se
orgulha do que o destino lhe trouxe (διὰ τύχην) (1368a3-4) Agostinho bastante ao contraacuterio
natildeo apenas natildeo se orgulha do que fez mas se arrepende amargamente preferindo ao inveacutes da
honra agradecer a Deus todo o bem que lhe sucedeu por seu intermeacutedio divino ldquoe assim Se-
nhor apagaste todos os meus merecidos males para que natildeo retribuiacutesses agraves minhas matildeos nas
quais te deixei e te antecipaste a todos os meus merecidos bens para que retribuiacutesses agraves tuas
matildeos com as quais me fizesterdquo15
Destarte das trecircs qualidades independentes de demonstraccedilatildeo (ἔξω τῶν ἀποδείξεων)
que Aristoacuteteles aponta (1378a) como necessaacuterias ao orador ainda que em aparecircncia somente a
fim de que seja convincente o que de modo principal se refere agraves assembleias ou ao conselho
instacircncias tiacutepicas de deliberaccedilatildeo na Greacutecia antiga 1 prudecircncia ou bom-senso (φρόνησις) 2
excelecircncia moral (ἀρετή) e 3 boa disposiccedilatildeo (εὔνοια) nenhuma delas guarda nas Confissotildees
a importacircncia que o estagirita lhe atribui a natildeo ser que se considerem as virtudes ditas teologais
como pertencentes ao rol das aretaiacute aristoteacutelicas o que seria no miacutenimo um grave anacronismo
Por fim a Retoacuterica destaca o papel do ecircthos na disposiccedilatildeo das mateacuterias (τάξις) de modo
especiacutefico no proecircmio (exordium) Nos discursos do gecircnero judiciaacuterio por exemplo aquele que
se defende (ἀπολογουμένῳ) deve fazecirc-lo logo no proecircmio (πρῶτον) antes da acusaccedilatildeo ao
contraacuterio de quem acusa que deve fazecirc-lo no final (τῷ ἐπιλόγῳ) porque aquele que defende
deve construir seu ecircthos no iniacutecio antes da acusaccedilatildeo (πρὸς τὴν διαβολήν) (1415a29-30) a
12 Confissotildees (1311) ldquoquia et priusquam essem tu eras nec eram cui praestares ut essemrdquo 13 Em conformidade com a ideia veiculada pela maacutexima romana ldquodura sed lexrdquo 14 Paulo (1Cor 121-25) ldquoὅτι τὸ μωρὸν τοῦ θεοῦ σοφώτερον τῶν ἀνθρώπων ἐστὶν καὶ τὸ ἀσθενὲς τοῦ
θεοῦ ἰσχυρότερον τῶν ἀνθρώπωνrdquo 15Confissotildees (1311) ldquoEtenim domine deleuisti omnia mala merita mea ne retribueres manibus meis in
quibus a te defeci et praeuenisti omnia bona merita mea ut retribueres manibus tuis quibus me fecistirdquo
146
fim de livrar-se de todo impedimento ou embaraccedilo como faz Agostinho nas Confissotildees utili-
zando-se dos primeiros livros ditos biograacuteficos para tanto Se o acusador deve criar o precon-
ceito contra o acusado no fim para que permaneccedila bem presente na memoacuteria dos juiacutezes o
defendente deve desvencilhar-se do preconceito logo no iniacutecio a fim de que seus argumentos
satildeo sejam prejudicados pela imagem da pecha moral que traz consigo Natildeo eacute apenas para o
ecircthos que o proecircmio eacute importante mas tambeacutem para o paacutethos pois eacute preciso tornar o auditoacuterio
bem disposto em relaccedilatildeo ao orador se se estaacute defendendo ou tornaacute-lo indisposto contra a outra
parte (1415a-34-36) se se estaacute acusando Para isso conta muito a aparecircncia de respeitabilidade
do falante pois ldquoas pessoas respeitaacuteveis recebem mais atenccedilatildeordquo diz Aristoacuteteles Pelo que o
orador deve esforccedilar-se por conseguir duas coisas do auditoacuterio 1 amizade (φίλον) e 2 com-
paixatildeo (ἐλεεινόν) (1415b22-28) tornaacute-lo amigo e compassivo fazendo-o crer que ele mesmo
o orador sente exatamente aquilo que censura ou louva ou seja que estaacute sendo sincero
(1415b28-29) Ora como falar da Graccedila de Deus sem que se recorra ao testemunho pessoal
pois a Graccedila diferentemente da recompensa ou do salaacuterio (merces) eacute distribuiacuteda gratuitamente
para o que por paradoxal pareccedila faz-se necessaacuterio ser pecador numa palavra estar desprovido
de qualquer meacuterito que o tornaria credor ao inveacutes de devedor meacuterito que poderia confundi-la
a Graccedila com pagamento ou retribuiccedilatildeo Evidente que se trata dum exagero pois os que tecircm
meacuterito natildeo estatildeo de modo nenhum excluiacutedos da Graccedila jaacute que natildeo faz muito sentido que natildeo
receba sem meacuterito16 senatildeo quem natildeo mereccedila
Seja como for esse ecircthos de sinceridade logra construir com bastante esmero Agostinho
ao reconhecer-se pecador devedor pequenino desprovido de meacuteritos e absolutamente depen-
dente da bondade da Providecircncia divina que se expressa pela Graccedila gratis
A segunda das provas da arte paacutethos
A movimentaccedilatildeo das emoccedilotildees (πάθος) embora uma prova (πίστις) que se diz teacutecnica
ou ldquoda arterdquo (ἔντεχνος) de modo aparentemente paradoxal natildeo tem que ver diretamente com
as provas demonstrativas ou com a causa em si e sim respeita aos juiacutezes (δικασταί) explica
Aristoacuteteles (1354a4-5)17 De fato o orador alcanccedila a persuasatildeo seja em que gecircnero for (o que
16 Isto eacute gratuitamente 17 Aristoacuteteles natildeo era muito simpaacutetico nem ao apelo eacutetico tampouco ao emocional que julgava ser um mal
necessaacuterio pois considerava errado manipular os sentimentos dos juiacutezes o que equivalia a corromper a proacutepria lei
que se tentava fazer valer ou de que se queria socorrer (1356a14) Argumento muito parecido esse (de destruir a
proacutepria lei a que se deveraacute recorrer depois) com o utilizado por Soacutecrates ao negar a proposta de fuga de Criacuteton no
diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo (50a-b) Pois bem no iniacutecio do tratamento da hupoacutekrisis (1403b22-) Aristoacuteteles
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natildeo exclui nem o epidiacutectico tampouco o deliberativo) mediatamente por meio dos ouvintes
(διὰ τῶν ἀκροατῶν) aqueles aos quais se dirige quando recorre ao paacutethos despertando ou
dirigindo suas emoccedilotildees (ὅταν εἰς πάθος) o que se faz pela accedilatildeo discursiva (ὑπὸ τοῦ λόγου)
Isso porque os juiacutezos (τὰς κρίσεις) dos ouvintes objetivo da accedilatildeo persuasiva variam sob a
influecircncia das emoccedilotildees tais como a dor (λύπη) a alegria (χαρά) a amizade (φιλία) o oacutedio
(μῖσος) etc Com efeito o orador natildeo tem por escopo a emoccedilatildeo do auditoacuterio em si mesma como
finalidade e sim a sua persuasatildeo a fim de que decida em favor de sua causa para o que as
emoccedilotildees cooperam vivamente como percebeu Aristoacuteteles ao dedicar grande parte do livro
segundo da Retoacuterica ao estudo das paixotildees da alma
Um dos meios mais eficazes para a movimentaccedilatildeo do paacutethos a fim de que se tenha ecircxito
no apelo emocional em vista dum fim ulterior natildeo satildeo as provas demonstrativas recomendadas
para o gecircnero apropriado (o judiciaacuterio no caso) o entimema e as maacuteximas provas que devem
ser descobertas na invenccedilatildeo e sim os recursos pertencentes a outra parte da retoacuterica a elocuccedilatildeo
(λέξις) Com efeito depois de encontrado o que dizer (εὕρεσις) e disposto as mateacuterias de modo
apropriado (τάξις) resta saber como dizecirc-lo Esse ldquocomordquo respeita sem duacutevida agrave forma do dis-
curso que se chama tambeacutem ldquoestilordquo poreacutem de modo nenhum se limita a isso como se fosse
apenas uma sua vestimenta Os recursos da elocuccedilatildeo para muito aleacutem da ornamentaccedilatildeo tecircm
forccedila persuasiva pois argumentam seja pela concisatildeo das figuras seja pelo ritmo e paralelismo
das construccedilotildees seja pelas imagens que evocam o que fazem de modo principal pondo em
destaque tanto o ecircthos como o paacutethos O ecircthos por exemplo no emprego do leacutexico que quando
recheado de estrangeirismos (ξένην ποιεῖν τὴν διάλεκτον) (1404b10-12) diz Aristoacuteteles con-
fere um ar de dignidade ao discurso promovendo por tabela o orador que se faz parecer digno
e nobre assim como aquilo que estaacute dizendo O paacutethos por sua vez quando o discurso eacute ldquoele-
vadordquo a um niacutevel suprarracional ou sublime pelo uso de recursos poeacuteticos dentre os quais se
destacam as figuras de repeticcedilatildeo como paralelismos epanalepses anadiploses antanaacuteclases
reconhece que tudo aquilo que respeita agrave apresentaccedilatildeo do discurso como voz volume tom altura ritmo harmo-
nia entre tais e que eacute muito importante nos certames dramaacuteticos e eacutepicos (τῶν ἀγώνων) quando entatildeo faz-se
necessaacuterio equilibrar esses elementos segundo cada uma das emoccedilotildees (πρὸς ἕκαστον πάθος) embora seja tam-
beacutem utilizado nas demais atividades poliacuteticas como assembleias deliberativas e tribunais o eacute apenas de modo
deploraacutevel Isso porque conquanto seja necessaacuterio mover as paixotildees do auditoacuterio e construir o caraacuteter do orador
discursivamente essa necessidade se deve tatildeo soacute agrave corrupccedilatildeo dos cidadatildeos (διὰ τὴν μοχθηρίαν τῶν πολιτῶν)
(1403b34-35) o que equivale a dizer do auditoacuterio (τοῦ ἀκροατοῦ) Assim sendo o recurso tanto ao ecircthos como
ao paacutethos deixa de ser questatildeo de correccedilatildeo (οὐκ ὀρθῶς) de certo ou errado passando a ser uma necessidade (ἀλλrsquo
ὡς ἀναγκαίου) Com efeito o justo (δίκαιον) seria defender acusar exortar e dissuadir movido apenas pelos
fatos (ἀγωνίζεσθαι τοῖς πράγμασιν) (1404a5-6) de maneira tal que o restante que Aristoacuteteles reputa fora da
demonstraccedilatildeo (ἔξω τοῦ ἀποδεῖξαι) ο que inclui ecircthos e paacutethos seria superfluidade (περίεργα ἐστίν) (1404a8)
Infelizmente poreacutem a realidade eacute que o orador precisa conhecer estes recursos a fim de poder defender-se e atingir
seus objetivos uma vez que os adversaacuterios certamente lanccedilam matildeo deles de modo quase sempre inescrupuloso
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paronomaacutesias antimetaacuteboles poliptotos etc E fique claro que dizer que Aristoacuteteles natildeo via com
bons olhos o (mau) recurso aos apelos eacutetico e pateacutetico nos tribunais natildeo significa dizer que
desprezasse os mecanismos da elocuccedilatildeo o que implicaria dizer que cresse o homem ser dotado
apenas de razatildeo excluiacutedos sentimentos e caraacuteter a natildeo dizer da vontade Ao contraacuterio Aristoacute-
teles bem reconhecia que em todo tipo de aprendizado (ἐν πάσῃ διδασκαλίᾳ) o estilo se faz
mateacuteria de certa importacircncia uma vez que algo se torna claro (πρὸς τὸ δηλῶσαι) por meio do
modo como eacute dito (ὡδὶ ἢ ὡδὶ εἰπεῖν) embora relegasse a questatildeo do estilo ao niacutevel da aparecircn-
cia (ἀλλrsquo ἅπαντα φαντασία ταῦτrsquo εστὶ) cuja finalidade seria apenas agradar o ouvinte (πρὸς
τὸν ἀκροατήν) ouvinte esse por sua vez cuja corrupccedilatildeo (μοχθηρία) seria a verdadeira causa
de tudo que natildeo eacute apodiacutectico na retoacuterica (1404a7-8) Em assim sendo o estilo (λέξις) seria um
mal necessaacuterio uma ferramenta que embora potencialmente injusta seria uacutetil para conferir
clareza ao discurso assim como todos os demais elementos de persuasatildeo natildeo-apodiacutecticos ou
extrademonstrativos E isso se justifica diz o filoacutesofo de modo peremptoacuterio porque ningueacutem
ensina a fazer geometria desse modo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) isto eacute nem pelo
recurso ao paacutethos nem pelo ecircthos tampouco por qualquer outra ferramenta indicada para a
elocuccedilatildeo como as figuras (1404a12) Compreende-se essa visatildeo deveras depreciativa da elo-
cuccedilatildeo por parte do filoacutesofo pois como ele mesmo diz no terceiro livro de sua Retoacuterica ao
empreender o tratamento da actio ou representaccedilatildeo do discurso (ὑπόκρισις) ateacute ao tempo da
escritura da obra natildeo havia ainda nenhuma arte isto eacute nenhum manual de retoacuterica voltado para
a mateacuteria (οὔπω δὲ σύγκειται τέχνη περὶ αὐτῶν) porque a leacuteksis soacute havia sido notada pou-
quiacutessimo antes (ἐπεὶ καὶ τὸ περὶ τὴν λέξιν ὀψὲ προῆλθεν) descaso que se justificava pelo fato
de o estilo mdash considerado entatildeo como mera ornamentaccedilatildeo do discurso mdash ser julgado inferior
(φορτικὸν) tema indigno das preocupaccedilotildees dum homem livre criacutetica que natildeo evita endossar o
filoacutesofo (καλῶς ὐπολαμβανόμενον) (1403b35-6)
A despeito desta postura criacutetica adotada por Aristoacuteteles e de seu juiacutezo negativo a respeito
do ecircthos e do paacutethos postura raramente admitida pelos estudiosos atuais da retoacuterica o que
importa para os fins deste artigo contudo eacute seu poder argumentativo uma vez que sua impor-
tacircncia natildeo pode ser negada seja ela justificada ou natildeo de par com a finalidade filosoacutefica que
lhes imprime o rhetor de Hipona Portanto justo ou natildeo (nos tribunais e assembleias) o fato
admitido por Aristoacuteteles eacute que a elocuccedilatildeo afeta sobremodo o paacutethos sendo de par com o ecircthos
reconhecido como a mais persuasiva (κυριωτάτη) das provas (1356a13) altamente eficaz para
os objetivos da argumentaccedilatildeo pois resta claro que por meio do estilo se consegue mover as
emoccedilotildees (1408a16) seja quando se fala com indignaccedilatildeo audaciosa (ὕβρις) seja com raiva
149
(ὁργιζομένου) impiedade (ἀσεβή) ou vergonha (αἰσχρά) O estilo adequado (ἡ οἰκεία λέξις)
que eacute aquele em que os elementos do paacutethos (παθητική) e do ecircthos (ἠθική) satildeo proporcionais
(ἀνάλογον) aos temas subjacentes (τοῖς ὐποκειμένοις πράγμασιν) (1408a10-11) faz com
que um dado assunto seja mais persuasivo Aleacutem disso remata Aristoacuteteles o ouvinte sempre
simpatiza (συνομοπαθεῖ ὁ ἀκούων) com quem fala de modo emocional (παθητικῶς
λέγοντι) ainda que esse natildeo diga nada (κἂν μηθὲν λέγῃ) (1408a23-4)
Reconhecido o vigor (δύναμις) natildeo apenas pateacutetico mas tambeacutem argumentativo da elo-
cuccedilatildeo resta ver como Agostinho se utiliza de seus recursos nas Confissotildees a fim de atingir seus
objetivos numa palavra a fim de fazer filosofia Pois bem as descriccedilotildees que melhor instigam
as emoccedilotildees satildeo as que fazem apelo agrave imaginaccedilatildeo e aos sentidos descriccedilotildees viacutevidas de cenas e
eventos contam muito como o famigerado roubo das peras (Conf 249) a prisatildeo de Aliacutepio
(6914) ou a cena do jardim de Milatildeo (81125-27) por exemplo as inumeraacuteveis metaacuteforas e a
prosopopeia de oacutergatildeos humanos que passam a ser dotados de matildeos pernas ouvidos como as
matildeos do coraccedilatildeo que se estendem em prece a Deus os relatos de laacutegrimas pungentes que se
vertem repetidas vezes enfim descriccedilotildees essas que tecircm potencial enorme para despertar fortes
sentimentos Do mesmo modo o uso de hipeacuterboles e outras tantas figuras se faz extremamente
uacutetil para criar o efeito emocional desejado Todavia nada talvez seja tatildeo eficiente nesse sentido
quanto o vocabulaacuterio o uso de palavras carregadas de intensa conotaccedilatildeo pateacutetica E no apelo
agraves emoccedilotildees pode-se dizer esteja uma das chaves de leitura das Confissotildees ao menos retoacuterica
De fato a linguagem da obra estaacute repleta de figuras cujo efeito principal eacute o despertar dos
sentimentos Mas de quem e para quecirc A sua audiecircncia soacute pode ser depreendida de modo in-
direto por meio da linguagem do estilo e do tema o que natildeo se constitui tarefa das mais faacuteceis
por tratar-se de obra multifacetada de linguagem muito elaborada que prima pela sofisticaccedilatildeo
mas que natildeo despreza uma certa tonalidade menos erudita que se pode ateacute denominar em
alguma medida popular ou humilde De fato pelo recurso aos salmos e textos escrituraacuterios
com seu respectivo campo semacircntico permeado de expressotildees da liacutengua grega vulgar (κοινή)
traduzidas ou transliteradas em latim conhecidos de toda comunidade cristatilde natildeo apenas por
serem lidos mas principalmente por sua funccedilatildeo lituacutergica eacute sem duacutevida uma linguagem
(sermo) popular ou humilis todavia pelos mecanismos retoacutericos extremamente requintados e
pelas referecircncias a toda uma cultura filosoacutefica de par com uma argumentaccedilatildeo em muitas pas-
sagens nada singela especialmente nos livros 1 8 e de 9 a 13 pode-se considerar igualmente
elevadiacutessima Portanto humilde e elevada eacute a linguagem das Confissotildees constituindo em si
mesma um oximoro
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Diante desse desafio de escrever tanto para a gente mais simples como para filoacutesofos
desafio que se exprime nesse caso pela linguagem supotildee-se que Agostinho natildeo tenha simples-
mente pretendido abaixar o registro de seu discurso descendo aos simples e pequeninos (ad
catechizandos rudes) muito ao contraacuterio ao que parece pretendia elevar-se ou melhor ser
elevado ao confessar-se arrependido penitenciando-se mas tambeacutem ao confessar sua feacute e seu
louvor enaltecendo e reconhecendo a graccedila de Deus em sua vida Em sendo assim ao ser ele-
vado por Deus pela confissatildeo pretende igualmente mover as almas incitando-lhes semelhante
elevaccedilatildeo ou quando natildeo o desejo de elevaccedilatildeo desejo de que se deixassem igualmente elevar
como ele confessava desejar o que se pode considerar sem duacutevida uma meta de caraacuteter pastoral
Portanto sua missatildeo quanto ao paacutethos eacute tambeacutem a de mover as almas agrave salvaccedilatildeo que
se pode sintetizar na vontade de ser elevado e de para lanccedilar matildeo duma contradiccedilatildeo merecer
por uma espeacutecie de ascese cataacutertica a graccedila divina a misericoacuterdia do Deus justiacutessimo Ora
disso decorre a possibilidade duma outra funccedilatildeo da linguagem extremamente comovente fruto
dos recursos da elocuccedilatildeo a que recorre Agostinho nas Confissotildees e interligada com essa funccedilatildeo
dita pastoral de elevar as almas uma funccedilatildeo que se pode compreender como simultaneamente
propedecircutica e filosoacutefica Com efeito se uma das funccedilotildees deste paacutethos que se diz de caraacuteter
pastoral pretende comover positiva e negativamente incitando a um soacute tempo o desejo de
salvaccedilatildeo e o de horror agrave perdiccedilatildeo o desejo de buscar Deus e de evitar o mal de buscar ser mais
pela proximidade do Ser supremo e de evitar ser menos ou deixar de ser pelo afastamento desse
mesmo Ser como se percebe sobremodo nos livros da parte considerada biograacutefica da obra o
que natildeo implica de modo algum a exclusatildeo dos restantes livros a outra funccedilatildeo por sua vez
relacionada intimamente agrave primeira de que se pode dizer seja consequecircncia natural que se
exacerba tambeacutem a partir dos recursos da elocuccedilatildeo e que como se disse tem caraacuteter prope-
decircutico compreende-se como uma funccedilatildeo de purificaccedilatildeo filosoacutefica de afastamento progressivo
das coisas deste mundo de afastamento da ldquocarnerdquo se se pode dizer tendo em vista o despren-
dimento rumo a uma vida mais espiritual de proximidade com o Ser o puro Inteligiacutevel que se
transubstancia por sua vez num projeto de vivecircncia cristatilde o que se destaca sobremodo a partir
do livro novo encontrando sua foz nos estertores do livro derradeiro Donde ser liacutecito afirmar
que os livros da parte biograacutefica das Confissotildees do primeiro ao oitavo tecircm tambeacutem essa fun-
ccedilatildeo de purificaccedilatildeo tanto das emoccedilotildees como da razatildeo ou seja de disciplinar ou exercitar asce-
ticamente a alma (exercitatio animi)18 a fim de que os leitores e ouvintes pudessem estar pre-
parados para o que havia de vir nos livros subsequentes E isso parece estar em harmonia com
18 Ἥ ἄσκησις ἥ τῆς ψυχῆς
151
o projeto filosoacutefico platocircnico-cristatildeo que Agostinho tinha para sua vida e que colocou em praacute-
tica desde os tempos preacute-batismais de Cassiciacuteaco ateacute ser interrompido pela sua consagraccedilatildeo
sacerdotal (391 dC) um projeto propedecircutico-purificador
E de fato se se pode aventar que esse projeto cataacutertico da razatildeo encontra seu ponto de
saiacuteda no expurgo do ceticismo de tipo neoacadecircmico como se percebe nos trecircs livros intitulados
Contra Academicos desenvolve-se sobremodo nas paacuteginas do diaacutelogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monoacutelogo com os Soliloacutequios obras do mesmo periacuteodo
Formato monoloacutegico esse denominado por Dupuy-Trudelle (1998 p 1198) ldquodesdobramentordquo
que eacute bem possiacutevel tenha servido de laboratoacuterio para as proacuteprias Confissotildees sugere a autora
refletindo a intenccedilatildeo de Agostinho apesar da excelecircncia da feacute de levar as exigecircncias da razatildeo
ateacute ao limite extremo num esforccedilo de purificaccedilatildeo num ir-aleacutem das paixotildees e desiludir-se sobre
si mesmo Ora estar iludido acerca de si mesmo natildeo eacute impedimento agrave feacute mas o eacute ao acesso agrave
convicccedilatildeo intelectual verdadeira Portanto para chegar-se ao conhecimento define esta autora
(ibid pp 1198-9) faz-se mister como condiccedilatildeo uacutenica a ldquolibertaccedilatildeo da razatildeo de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesmardquo libertaccedilatildeo a que os Soliloacutequios datildeo curso
Pode-se compreender que para desenlamear a consciecircncia dos similisavoirs libertaacute-
la de toda ilusatildeo psicoloacutegica ensinaacute-la que o desejo da verdade natildeo eacute ainda a posses-
satildeo da verdade permitir-lhe ir aleacutem do conflito de interesses que leva a opiniatildeo a
revoltar-se contra a verdade seja preciso mensurar a distacircncia entre o sujeito e si
mesmo Ora fazecirc-lo eacute um convite a mensurar a distacircncia entre si e o conhecimento de
Deus Eis entatildeo todo o sentido do exerciacutecio proposto pelo ldquosoliloacutequiordquo mensurar uma
e outra19
Natildeo parece haver duacutevidas de que os Soliloacutequios trazem em si de modo embrionaacuterio o estilo
que haveria de consagrar sobretudo a partir das Confissotildees quando entatildeo dispensa o combate
direto de ideias preferindo ldquodesdobrar-serdquo e deixar-se interrogar por si mesmo ainda que de
modo proleacuteptico continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas
Todavia eacute mais que provaacutevel que esta exigecircncia natildeo tenha surgido do nada e sim pertenccedila a
um projeto filosoacutefico maior que englobe as demais obras de Cassiciacuteaco sendo-lhe entatildeo um
como que desenvolvimento natural
No proacutelogo do De ordine (13-4) Agostinho argumenta que o homem por ser um des-
conhecido de si mesmo natildeo consegue perceber a ordem que reina em todo o universo ordem
providencial em que ele estaacute inserido e que para conseguir conhecer-se seria necessaacuterio entrar
em si mesmo ali permanecendo afastado dos sentidos lugar em que poderia entatildeo curar-se das
feridas que as opiniotildees vulgares infligem agrave alma seja pelo ldquofogordquo do ldquoisolamentordquo conforme
19 DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Les Confessions Paris Gal-
limard 1998 p 1206
152
se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
153
soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
154
As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
155
menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
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Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
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sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
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(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
159
articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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2001
140
nho que leva ao Fim uacuteltimo por ele eleito mas tambeacutem antagocircnicas agrave proacutepria concepccedilatildeo des-
posada deste Ser supremo como o dualismo maniqueu por uma ou o ceticismo de tipo neoa-
cadecircmico por outra que perigosamente ameaccedilava uma das proacuteprias virtudes teologais a natildeo
dizer duas feacute e a esperanccedila por meio duma descrenccedila radical na possibilidade de acesso a
noccedilotildees fundamentadas acerca do verdadeiro
E se se podem perceber nuanccedilas do deliberativo e do judiciaacuterio na exortaccedilatildeo ou dissu-
asatildeo na acusaccedilatildeo e na defesa muito mais no caso do gecircnero predominante expresso pelas Con-
fissotildees o epidiacutectico que segundo Aristoacuteteles compreende tanto o louvor (ἔπαινος) como a
censura (ψόγος) (1358b12-3) De fato que faz Agostinho ao longo das Confissotildees senatildeo cen-
surar o que afasta de Deus louvando o que dele aproxima o homem censurar o pecado lou-
vando seu contraacuterio as virtudes fazer o elogio da vida feliz (beata uita) vituperando seu
oposto a infeliz (misera) E mesmo quando censura seu objetivo natildeo eacute senatildeo louvar louvar o
que se edifica como antipodal daquilo que se estaacute censurando pois natildeo se trata de discorrer
sobre o viacutecio sobre o torto sobre o caminho errado que se natildeo deve percorrer numa palavra
natildeo se trata de discorrer sobre o mal porque ele natildeo existe (entenda-se o mal ontoloacutegico) Ao
contraacuterio trata-se de louvar o que Eacute o Ser por excelecircncia Deus e toda a sua obra cujo paro-
xismo natildeo eacute outro senatildeo o momento em que cria o homem Paradoxal seria pois limitar-se ao
vitupeacuterio o que equivaleria a ressaltar apenas e tatildeo somente aquilo que natildeo possui existecircncia
real o mal ou antisser7 como quem escrevesse um livro sobre o que natildeo eacute As Confissotildees
portanto empreendem sobretudo um discurso de louvor que se bem pode denominar filosofia
do louvor a qual se enquadra perfeitamente no gecircnero epidiacutectico cuja tocircnica eacute dada pelo loacutegos
enquanto referente aquilo de que se fala (περὶ οὗ λέγει) (1358b1) referente de muacuteltiplos sen-
tidos que se pode compreender natildeo apenas como a Palavra que eacute Deus mas tambeacutem a palavra
de Deus a palavra sobre a palavra de Deus a palavra sobre o Deus que eacute Palavra e profere
palavras embora esse mesmo referente enquanto Verbo divino seja inefaacutevel donde ser neces-
saacuterio que esse loacutegos seja tambeacutem linguagem nos recursos retoacutericos precisos a que se diga o
indiziacutevel
Todos os trecircs gecircneros portanto prestam auxiacutelio reciacuteproco pois quem louva no presente
deve fazecirc-lo tambeacutem por meio das lembranccedilas do passado (ἀναμιμνήσειν τὰ γενόμενα) ou das
conjecturas e esperanccedilas futuras (προεικάζειν τὰ μέλλοντα) e o justo por sua vez objeto das
reflexotildees judiciaacuterias pode igualmente ser feio ou belo uacutetil ou inuacutetil mateacuteria dos outros dois
7 O que de esdruacutexulo possa haver neste composto se deve agraves novas regras do Acordo Ortograacutefico de 1990 O
que se quis expressar eacute o contraacuterio do ser ldquoanti-serrdquo que natildeo mais se grafa assim com hiacutefen
141
gecircneros assim como uacutetil e o inuacutetil mateacuteria de deliberaccedilatildeo que podem ser justos ou seu con-
traacuterio belos ou natildeo ou ainda o bom e o mau que podem muito bem ser inuacuteteis ou natildeo justos
ou natildeo em conformidade com o que diz Aristoacuteteles justificando assim a mistura dos gecircneros
retoacutericos (1358b27-1359a4) Poreacutem o gecircnero epidiacutectico parece ser o mais completo dos trecircs
uma vez nem focar demasiado no passado como o judiciaacuterio tampouco no futuro como o
deliberativo ao contraacuterio ao discorrer acerca do presente (ὁ παρὼν χρόνος) louvando ou
censurando as coisas que de fato satildeo (κατὰ τὰ ὐπάρχοντα) eacute-lhe permitido voltar-se tanto agraves
reminiscecircncias preteacuteritas quanto ao que pode vir a ser como se percebe nitidamente do primeiro
ao derradeiro livro das Confissotildees que nem se limitam a perscrutar o passado tampouco a
especular esperanccedilosamente sobre o futuro ou mesmo sobre o presente na investigaccedilatildeo do
proacuteprio rememorar quando entatildeo empreendem o louvor do que eacute foi e haacute de ser de par com o
do que sempre e indefectivelmente eacute
Uma uacuteltima palavra acerca da retoacuterica se faz necessaacuteria antes de voltar a atenccedilatildeo para
os trecircs gecircneros de provas teacutecnicas nas Confissotildees Quando se propotildee apresentar uma resposta
diz Michel Meyer (2010 p 53) a retoacuterica tende a ocultar o problemaacutetico fazendo com que a
questatildeo de base subjacente a todo discurso questatildeo em torno de que se reuacutenem ou dispersam
as partes pareccedila resolvida No entanto isso de modo nenhum eacute o que se percebe na retoacuterica
filosoacutefica de Agostinho que opera agraves avessas natildeo projetando de modo nenhum esconder o
problemaacutetico e sim permitindo lidar com ele dizendo-o embora sua insoluacutevel inefabilidade E
de fato se se tome por base a proacutepria definiccedilatildeo da retoacuterica elaborada pelo mesmo Meyer (2012
p 21) como sendo a negociaccedilatildeo entre a distacircncia criada por um dado problema que se constitui
sua proacutepria medida percebe-se no que tange ao Ser natildeo haver distacircncia entre interlocutores
para quem a sua inefabilidade eacute paciacutefica quer se o identifique com a Divindade cristatilde ou natildeo
E em natildeo havendo essa distacircncia qual a finalidade da retoacuterica sendo ela a suposta negociaccedilatildeo
que se estabelece em funccedilatildeo dum dado problema que se mede exatamente por essa distacircncia
inexistente Logo em natildeo havendo uma distacircncia que se constituiacutesse a medida do problemaacutetico
desnecessaacuterio seria argumentar inexistindo o problema Contudo isso se refere de modo espe-
cial agraves retoacutericas forense e deliberativa natildeo agrave epidiacutectica e menos ainda a epidiacutectica com finali-
dade filosoacutefica como se daacute no caso de Agostinho Nas Confissotildees a distacircncia que se quer
negociar eacute a que se supotildee entre o conhecido desconhecimento de Deus e seu desconhecido
conhecimento ou seja a distacircncia entre o nada que se pode conhecer de Deus e o tudo que se
desconhece entre o nada que dele se pode dizer e o tudo que se natildeo diz E como essa distacircncia
142
eacute inegociaacutevel resta agrave retoacuterica simular a edificaccedilatildeo duma estrutura especial a linguagem per-
mitindo que pela proacutepria expressatildeo do paradoxo do estranhamento da perplexidade se diga
sem dizer e se natildeo diga dizendo Numa palavra a retoacuterica permite que Agostinho estique a
corda do arco de seu dizer para aleacutem da tensatildeo do compreensiacutevel apodiacutectico para aleacutem do
alcance da razatildeo que seja capaz carreando o leitor consigo de tangenciar o suprarracional a
natildeo dizer irracional pois natildeo desprovido de razatildeo e sim muito aleacutem dela
A primeira das provas da arte ecircthos
Aleacutem das provas loacutegicas que envolviam mateacuterias e meacutetodos cujo apelo se voltava pri-
mordialmente a natildeo dizer exclusivamente para a razatildeo a retoacuterica reconhecia outros meios de
prova pois se dera conta havia muito de que as pessoas natildeo satildeo apenas dotadas de capacidade
racional mas tambeacutem de sentimentos e de vontade pelo que se fazia necessaacuterio lidar com elas
natildeo como deveriam ser mas como realmente eram lembram Corbett e Connors (1999 p 72)
Destarte tomando por base a definiccedilatildeo aristoteacutelica de que a retoacuterica eacute a arte de descobrir todos
os meios possiacuteveis de persuasatildeo8 torna-se oacutebvio o recurso a tudo aquilo que se comprove efi-
ciente para esse fim Neste sentido afianccedilam esses autores o apelo eacutetico pode ser mais eficaz
que o apelo agrave razatildeo pois
mesmo o mais engenhoso e sensato apelo agrave razatildeo pode fracassar diante de ouvidos
amoucos se a audiecircncia reagiu desfavoravelmente ao caraacuteter do orador O apelo eacutetico
eacute especialmente importante no discurso retoacuterico porque aqui estamos lidando com
assuntos acerca dos quais eacute impossiacutevel ter-se certeza absoluta e em que as opiniotildees
satildeo divididas
Com efeito o ecircthos prova teacutecnica que se erige a partir do caraacuteter moral do orador segundo
reconhecia Aristoacuteteles (1356a13) constitui-se no meio mais eficaz de prova (κυριωτάτην ἔχει
πίστιν τὸ ἦθος)
Quintiliano por sua vez em suas Instituiccedilotildees Oratoacuterias (3813) adotando integral-
mente a teoria aristoteacutelica argumenta que dos trecircs gecircneros de discurso o deliberativo era o que
mais necessitava do apelo eacutetico ou seja o discurso que mais se apoiava no caraacuteter do orador
que ele denominava auctoritas
Nas deliberaccedilotildees poreacutem a autoridade eacute o que possui maior valor Com efeito natildeo
apenas deve ser considerado muitiacutessimo prudente como tambeacutem muitiacutessimo virtuoso
todo aquele que deseje que todos acreditem nos seus pensamentos acerca das coisas
8 (1355b25-6) ldquoSeja entatildeo a retoacuterica a faculdade de considerar acerca de cada coisa o que eacute possivelmente
persuasivordquo (ἔστω δὴ ἡ ῥητορικὴ δύναμις περὶ ἕκαστον τοῦ θεωρῆσαι τὸ ἐνδεχόμενον πιθανόν)
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proveitosas e dignas de honra [] natildeo haacute quem negue que as deliberaccedilotildees satildeo feitas
segundo os caracteres dos oradores9
Em conformidade com o que se argumentou um pouco antes a partir das consideraccedilotildees do
proacuteprio Aristoacuteteles acerca da mistura de gecircneros retoacutericos (1358b27-1359a4) sobre a predomi-
nacircncia do gecircnero epidiacutectico nas Confissotildees eacute perceptiacutevel natildeo apenas a importacircncia do apelo
eacutetico que natildeo eacute das menores por tratar-se duma obra primordialmente na primeira pessoa e
que sob certo ponto de vista quer falar de si mas principalmente pelo que se disse acerca de
um dos objetivos da obra de caraacuteter ldquodeliberativordquo ou antes de caraacuteter ldquopastoralrdquo de mover
as almas para Deus (conuersio ad deum) ao modo dum loacutegos protreacuteptico afastando-as do pe-
cado e de tudo que as manteacutem distantes do Bem (auersio a bono) objetivo que se cumpre
escorado no caraacuteter eacutetico que se esforccedilou por burilar ao longo primordialmente dos livros ditos
autobiograacuteficos da obra De fato natildeo obteacutem ecircxito na pretensatildeo de exortar (προτρέπω) para
Deus senatildeo aquele que se deixou dissuadir (ἀποτρέπω) do caminho do pecado que compro-
vou sua humildade (humilitas) na aceitaccedilatildeo natildeo do poder de seu livre-arbiacutetrio e sim da Graccedila
divina cujas Justiccedila e Misericoacuterdia se amalgamam na Sabedoria una e indivisiacutevel do Ser ao
inveacutes de se anularem pela contradiccedilatildeo Natildeo se trata de reconhecer-se purificado trata-se mui-
tiacutessimo ao contraacuterio de reconhecer-se pecador carente da Graccedila e incapacitado de autossalva-
ccedilatildeo numa palavra trata-se de diminuir-se ao modo do ldquoesvaziamentordquo (κένωσις) de Cristo
que embora possuindo uma forma divina (ἐν μορφῇ θεοῦ) esvaziou-se a si mesmo segundo
Paulo assumindo uma forma de escravo e fazendo-se semelhante aos homens pelos quais se
humilhou e obedientemente deixou-se matar na cruz10 Esse o ecircthos cristatildeo portador das virtu-
des dignas de imitaccedilatildeo invertidas quanto pudessem parecer a um auditoacuterio pagatildeo da eacutepoca
para o qual nem a misericoacuterdia tampouco a humildade eram considerados valores morais dese-
jaacuteveis e sim fraquezas despreziacuteveis
O orador persuade por seu caraacuteter moral explicava Aristoacuteteles (1356a5) quando seu
discurso eacute de tal modo elaborado que seja capaz de tornaacute-lo digno de credibilidade um homem
em quem pareccedila ser possiacutevel confiar Essa credibilidade contudo natildeo se constroacutei por meio de
elementos extratextuais de ideias preacute-concebidas acerca da conduta eacutetica do orador e sim atra-
veacutes do discurso (1356a8) donde ser considerado o ecircthos uma prova de caraacuteter teacutecnico fruto da
9 Inst oratoriae (3813) ldquoValet autem in consiliis auctoritas plurimum nam et prudentissimus esse haberique
et optimus debet qui sententiae suae de utilibus atque honestis credere omnes uelit [] consilia nemo est qui
neget secundum mores darirdquo 10 Paulo (Fl 25-8) ldquoΤοῦτο φρονεῖτε ἐν ὑμῖν ὃ καὶ ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων οὐχ
ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ ἀλλὰ ἑαυτὸν ἐκένωσεν μορφὴν δούλου λαβών ἐν ὁμοιώματι ἀνθρώπων γενόμενοςmiddot καὶ σχήματι εὑρεθεὶς ὡς ἄνθρωπος ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν γενόμενος ὑπήκοος μέχρι θανάτου θανάτου δὲ σταυροῦrdquo
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arte Isso se daacute explica o filoacutesofo porque quando se estaacute tratando de temas de caraacuteter geral via
de regra a confianccedila se estabelece sobre as opiniotildees das pessoas cujo valor eacute notoacuterio poreacutem
quando os temas satildeo incertos duvidosos (τὸ ἀμφιδοξεῖν) aiacute entatildeo como que desprovido de
alternativas resta ao auditoacuterio tatildeo soacute a confianccedila quase que total e irrestrita (παντελῶς) na-
queles cujos caracteres ou comprovou-se destacar-se ou lograram aparentar fazecirc-lo E sobre
que versam as Confissotildees em linhas gerais como jaacute se apontou antes senatildeo sobre o tema natildeo-
apodiacutectico por excelecircncia Deus Donde ser liacutecito dizer que pelo prisma da retoacuterica Agostinho
empreende um enorme esforccedilo de construccedilatildeo dum ecircthos apropriado a falar de Deus E de fato
se se pretende falar de tema natildeo apenas duvidoso retoacuterico mas inefaacutevel como o Ser de que
modo evadir-se do estribo do ecircthos Se o tema fosse apodiacutectico o caraacuteter do orador talvez
restasse menos relevante poreacutem natildeo num tema em que as provas demonstrativas satildeo pratica-
mente inexistentes
Para ressaltar o caraacuteter moral de algueacutem que se queira elogiar seja o do proacuteprio orador
ou natildeo lembra Aristoacuteteles (1367b22-27) eacute preciso associar as suas accedilotildees (as quais se empre-
ende louvar) agraves suas intenccedilotildees a fim de demonstrar seu valor porque o louvor (ἔπαινος) se tira
das accedilotildees (ἐκ τῶν πράξεων) desde que este aja em conformidade com suas determinaccedilotildees
morais (κατὰ προαίρεσιν) E se o homem de valor age segundo suas proacuteprias determinaccedilotildees
depreende-se que o homem cujo valor eacute nulo aja determinado isto eacute conduzido pelo destino
pela sorte (ἀπὸ τύχης) e que o homem cujo valor eacute repreensiacutevel exemplo que o filoacutesofo natildeo
daacute mas cujo raciociacutenio permite avanccedilar agiria tambeacutem motivado por suas determinaccedilotildees mo-
rais as quais contudo seriam maacutes O que importa no que tange ao ecircthos eacute que se deve mostrar
que aquele que se estaacute louvando age de acordo com suas determinaccedilotildees e natildeo ao acaso o que
lhe tiraria todo o meacuterito meacuterito que caberia entatildeo agrave fortuna (τύχη) uma vez que as accedilotildees natildeo
praticadas de modo voluntaacuterio natildeo satildeo meritoacuterias em conformidade com o que Agostinho tam-
beacutem admitia11 Portanto o conselho de Aristoacuteteles ao orador que quer construir o seu proacuteprio
ecircthos ou o de algum outro eacute tornar todas as accedilotildees possiacuteveis inclusive as decorrentes da sorte
mdash o que natildeo seria nada honesto admite o filoacutesofo mdash fruto do meacuterito daquele que se quer
enaltecer o que seria sinal de homem resoluto decidido (σημεῖον ἀρετῆς εἶναι προαιρέσεως)
No entanto esse conselho natildeo apenas natildeo eacute seguido por Agostinho e pelo discurso cristatildeo de
modo geral como ao reveacutes o exato oposto eacute o que se potildee em praacutetica ao atribuir-se tudo agrave
Graccedila divina agrave bondade preexistente daquele que natildeo precisou de nenhuma das criaturas que
criou as quais jamais fizeram por merecer o dom da vida (Conf 1311) ldquoPorque antes que eu
11 O livre arbiacutetrio (11430101) ldquoIn uoluntate meritum sitrdquo
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existisse existias tu e eu nem existia para que me concedesses que eu existisserdquo12 Isso eacute feito
contudo natildeo em detrimento do ecircthos da construccedilatildeo dum caraacuteter digno de louvor e fidedigno
e sim para construir um caraacuteter cristatildeo ou seja um caraacuteter natildeo pautado pela taacutebua de valores
eacuteticos claacutessicos que atribuiacutea grande peso agrave gloacuteria agrave honra ao denodo guerreiro e agrave justiccedila
inflexiacutevel e fria da lei13 e sim para destacar o homem jaacute de tipo medieval manso e humilde de
coraccedilatildeo misericordioso ao ponto de voltar a outra face numa palavra homem cuja honra estava
na cruz e no sangue de seu Salvador e para o qual ldquoo insensato de Deusrdquo era ldquomais saacutebio que
os homens e o fraco de Deus mais forte que os homensrdquo14 O ecircthos pois que se quer construir
eacute o do homem de feacute que se deixa conduzir pela matildeo de Deus na praacutetica das virtudes ditas
teologais feacute esperanccedila e caridade (πίστις ἐλπίς ἀγάπη) (1Cor 1313) O homem comumente
se orgulha das coisas que faz por si proacuteprio (τοῖς διrsquo αὐτόν) lembra Aristoacuteteles mas natildeo se
orgulha do que o destino lhe trouxe (διὰ τύχην) (1368a3-4) Agostinho bastante ao contraacuterio
natildeo apenas natildeo se orgulha do que fez mas se arrepende amargamente preferindo ao inveacutes da
honra agradecer a Deus todo o bem que lhe sucedeu por seu intermeacutedio divino ldquoe assim Se-
nhor apagaste todos os meus merecidos males para que natildeo retribuiacutesses agraves minhas matildeos nas
quais te deixei e te antecipaste a todos os meus merecidos bens para que retribuiacutesses agraves tuas
matildeos com as quais me fizesterdquo15
Destarte das trecircs qualidades independentes de demonstraccedilatildeo (ἔξω τῶν ἀποδείξεων)
que Aristoacuteteles aponta (1378a) como necessaacuterias ao orador ainda que em aparecircncia somente a
fim de que seja convincente o que de modo principal se refere agraves assembleias ou ao conselho
instacircncias tiacutepicas de deliberaccedilatildeo na Greacutecia antiga 1 prudecircncia ou bom-senso (φρόνησις) 2
excelecircncia moral (ἀρετή) e 3 boa disposiccedilatildeo (εὔνοια) nenhuma delas guarda nas Confissotildees
a importacircncia que o estagirita lhe atribui a natildeo ser que se considerem as virtudes ditas teologais
como pertencentes ao rol das aretaiacute aristoteacutelicas o que seria no miacutenimo um grave anacronismo
Por fim a Retoacuterica destaca o papel do ecircthos na disposiccedilatildeo das mateacuterias (τάξις) de modo
especiacutefico no proecircmio (exordium) Nos discursos do gecircnero judiciaacuterio por exemplo aquele que
se defende (ἀπολογουμένῳ) deve fazecirc-lo logo no proecircmio (πρῶτον) antes da acusaccedilatildeo ao
contraacuterio de quem acusa que deve fazecirc-lo no final (τῷ ἐπιλόγῳ) porque aquele que defende
deve construir seu ecircthos no iniacutecio antes da acusaccedilatildeo (πρὸς τὴν διαβολήν) (1415a29-30) a
12 Confissotildees (1311) ldquoquia et priusquam essem tu eras nec eram cui praestares ut essemrdquo 13 Em conformidade com a ideia veiculada pela maacutexima romana ldquodura sed lexrdquo 14 Paulo (1Cor 121-25) ldquoὅτι τὸ μωρὸν τοῦ θεοῦ σοφώτερον τῶν ἀνθρώπων ἐστὶν καὶ τὸ ἀσθενὲς τοῦ
θεοῦ ἰσχυρότερον τῶν ἀνθρώπωνrdquo 15Confissotildees (1311) ldquoEtenim domine deleuisti omnia mala merita mea ne retribueres manibus meis in
quibus a te defeci et praeuenisti omnia bona merita mea ut retribueres manibus tuis quibus me fecistirdquo
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fim de livrar-se de todo impedimento ou embaraccedilo como faz Agostinho nas Confissotildees utili-
zando-se dos primeiros livros ditos biograacuteficos para tanto Se o acusador deve criar o precon-
ceito contra o acusado no fim para que permaneccedila bem presente na memoacuteria dos juiacutezes o
defendente deve desvencilhar-se do preconceito logo no iniacutecio a fim de que seus argumentos
satildeo sejam prejudicados pela imagem da pecha moral que traz consigo Natildeo eacute apenas para o
ecircthos que o proecircmio eacute importante mas tambeacutem para o paacutethos pois eacute preciso tornar o auditoacuterio
bem disposto em relaccedilatildeo ao orador se se estaacute defendendo ou tornaacute-lo indisposto contra a outra
parte (1415a-34-36) se se estaacute acusando Para isso conta muito a aparecircncia de respeitabilidade
do falante pois ldquoas pessoas respeitaacuteveis recebem mais atenccedilatildeordquo diz Aristoacuteteles Pelo que o
orador deve esforccedilar-se por conseguir duas coisas do auditoacuterio 1 amizade (φίλον) e 2 com-
paixatildeo (ἐλεεινόν) (1415b22-28) tornaacute-lo amigo e compassivo fazendo-o crer que ele mesmo
o orador sente exatamente aquilo que censura ou louva ou seja que estaacute sendo sincero
(1415b28-29) Ora como falar da Graccedila de Deus sem que se recorra ao testemunho pessoal
pois a Graccedila diferentemente da recompensa ou do salaacuterio (merces) eacute distribuiacuteda gratuitamente
para o que por paradoxal pareccedila faz-se necessaacuterio ser pecador numa palavra estar desprovido
de qualquer meacuterito que o tornaria credor ao inveacutes de devedor meacuterito que poderia confundi-la
a Graccedila com pagamento ou retribuiccedilatildeo Evidente que se trata dum exagero pois os que tecircm
meacuterito natildeo estatildeo de modo nenhum excluiacutedos da Graccedila jaacute que natildeo faz muito sentido que natildeo
receba sem meacuterito16 senatildeo quem natildeo mereccedila
Seja como for esse ecircthos de sinceridade logra construir com bastante esmero Agostinho
ao reconhecer-se pecador devedor pequenino desprovido de meacuteritos e absolutamente depen-
dente da bondade da Providecircncia divina que se expressa pela Graccedila gratis
A segunda das provas da arte paacutethos
A movimentaccedilatildeo das emoccedilotildees (πάθος) embora uma prova (πίστις) que se diz teacutecnica
ou ldquoda arterdquo (ἔντεχνος) de modo aparentemente paradoxal natildeo tem que ver diretamente com
as provas demonstrativas ou com a causa em si e sim respeita aos juiacutezes (δικασταί) explica
Aristoacuteteles (1354a4-5)17 De fato o orador alcanccedila a persuasatildeo seja em que gecircnero for (o que
16 Isto eacute gratuitamente 17 Aristoacuteteles natildeo era muito simpaacutetico nem ao apelo eacutetico tampouco ao emocional que julgava ser um mal
necessaacuterio pois considerava errado manipular os sentimentos dos juiacutezes o que equivalia a corromper a proacutepria lei
que se tentava fazer valer ou de que se queria socorrer (1356a14) Argumento muito parecido esse (de destruir a
proacutepria lei a que se deveraacute recorrer depois) com o utilizado por Soacutecrates ao negar a proposta de fuga de Criacuteton no
diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo (50a-b) Pois bem no iniacutecio do tratamento da hupoacutekrisis (1403b22-) Aristoacuteteles
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natildeo exclui nem o epidiacutectico tampouco o deliberativo) mediatamente por meio dos ouvintes
(διὰ τῶν ἀκροατῶν) aqueles aos quais se dirige quando recorre ao paacutethos despertando ou
dirigindo suas emoccedilotildees (ὅταν εἰς πάθος) o que se faz pela accedilatildeo discursiva (ὑπὸ τοῦ λόγου)
Isso porque os juiacutezos (τὰς κρίσεις) dos ouvintes objetivo da accedilatildeo persuasiva variam sob a
influecircncia das emoccedilotildees tais como a dor (λύπη) a alegria (χαρά) a amizade (φιλία) o oacutedio
(μῖσος) etc Com efeito o orador natildeo tem por escopo a emoccedilatildeo do auditoacuterio em si mesma como
finalidade e sim a sua persuasatildeo a fim de que decida em favor de sua causa para o que as
emoccedilotildees cooperam vivamente como percebeu Aristoacuteteles ao dedicar grande parte do livro
segundo da Retoacuterica ao estudo das paixotildees da alma
Um dos meios mais eficazes para a movimentaccedilatildeo do paacutethos a fim de que se tenha ecircxito
no apelo emocional em vista dum fim ulterior natildeo satildeo as provas demonstrativas recomendadas
para o gecircnero apropriado (o judiciaacuterio no caso) o entimema e as maacuteximas provas que devem
ser descobertas na invenccedilatildeo e sim os recursos pertencentes a outra parte da retoacuterica a elocuccedilatildeo
(λέξις) Com efeito depois de encontrado o que dizer (εὕρεσις) e disposto as mateacuterias de modo
apropriado (τάξις) resta saber como dizecirc-lo Esse ldquocomordquo respeita sem duacutevida agrave forma do dis-
curso que se chama tambeacutem ldquoestilordquo poreacutem de modo nenhum se limita a isso como se fosse
apenas uma sua vestimenta Os recursos da elocuccedilatildeo para muito aleacutem da ornamentaccedilatildeo tecircm
forccedila persuasiva pois argumentam seja pela concisatildeo das figuras seja pelo ritmo e paralelismo
das construccedilotildees seja pelas imagens que evocam o que fazem de modo principal pondo em
destaque tanto o ecircthos como o paacutethos O ecircthos por exemplo no emprego do leacutexico que quando
recheado de estrangeirismos (ξένην ποιεῖν τὴν διάλεκτον) (1404b10-12) diz Aristoacuteteles con-
fere um ar de dignidade ao discurso promovendo por tabela o orador que se faz parecer digno
e nobre assim como aquilo que estaacute dizendo O paacutethos por sua vez quando o discurso eacute ldquoele-
vadordquo a um niacutevel suprarracional ou sublime pelo uso de recursos poeacuteticos dentre os quais se
destacam as figuras de repeticcedilatildeo como paralelismos epanalepses anadiploses antanaacuteclases
reconhece que tudo aquilo que respeita agrave apresentaccedilatildeo do discurso como voz volume tom altura ritmo harmo-
nia entre tais e que eacute muito importante nos certames dramaacuteticos e eacutepicos (τῶν ἀγώνων) quando entatildeo faz-se
necessaacuterio equilibrar esses elementos segundo cada uma das emoccedilotildees (πρὸς ἕκαστον πάθος) embora seja tam-
beacutem utilizado nas demais atividades poliacuteticas como assembleias deliberativas e tribunais o eacute apenas de modo
deploraacutevel Isso porque conquanto seja necessaacuterio mover as paixotildees do auditoacuterio e construir o caraacuteter do orador
discursivamente essa necessidade se deve tatildeo soacute agrave corrupccedilatildeo dos cidadatildeos (διὰ τὴν μοχθηρίαν τῶν πολιτῶν)
(1403b34-35) o que equivale a dizer do auditoacuterio (τοῦ ἀκροατοῦ) Assim sendo o recurso tanto ao ecircthos como
ao paacutethos deixa de ser questatildeo de correccedilatildeo (οὐκ ὀρθῶς) de certo ou errado passando a ser uma necessidade (ἀλλrsquo
ὡς ἀναγκαίου) Com efeito o justo (δίκαιον) seria defender acusar exortar e dissuadir movido apenas pelos
fatos (ἀγωνίζεσθαι τοῖς πράγμασιν) (1404a5-6) de maneira tal que o restante que Aristoacuteteles reputa fora da
demonstraccedilatildeo (ἔξω τοῦ ἀποδεῖξαι) ο que inclui ecircthos e paacutethos seria superfluidade (περίεργα ἐστίν) (1404a8)
Infelizmente poreacutem a realidade eacute que o orador precisa conhecer estes recursos a fim de poder defender-se e atingir
seus objetivos uma vez que os adversaacuterios certamente lanccedilam matildeo deles de modo quase sempre inescrupuloso
148
paronomaacutesias antimetaacuteboles poliptotos etc E fique claro que dizer que Aristoacuteteles natildeo via com
bons olhos o (mau) recurso aos apelos eacutetico e pateacutetico nos tribunais natildeo significa dizer que
desprezasse os mecanismos da elocuccedilatildeo o que implicaria dizer que cresse o homem ser dotado
apenas de razatildeo excluiacutedos sentimentos e caraacuteter a natildeo dizer da vontade Ao contraacuterio Aristoacute-
teles bem reconhecia que em todo tipo de aprendizado (ἐν πάσῃ διδασκαλίᾳ) o estilo se faz
mateacuteria de certa importacircncia uma vez que algo se torna claro (πρὸς τὸ δηλῶσαι) por meio do
modo como eacute dito (ὡδὶ ἢ ὡδὶ εἰπεῖν) embora relegasse a questatildeo do estilo ao niacutevel da aparecircn-
cia (ἀλλrsquo ἅπαντα φαντασία ταῦτrsquo εστὶ) cuja finalidade seria apenas agradar o ouvinte (πρὸς
τὸν ἀκροατήν) ouvinte esse por sua vez cuja corrupccedilatildeo (μοχθηρία) seria a verdadeira causa
de tudo que natildeo eacute apodiacutectico na retoacuterica (1404a7-8) Em assim sendo o estilo (λέξις) seria um
mal necessaacuterio uma ferramenta que embora potencialmente injusta seria uacutetil para conferir
clareza ao discurso assim como todos os demais elementos de persuasatildeo natildeo-apodiacutecticos ou
extrademonstrativos E isso se justifica diz o filoacutesofo de modo peremptoacuterio porque ningueacutem
ensina a fazer geometria desse modo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) isto eacute nem pelo
recurso ao paacutethos nem pelo ecircthos tampouco por qualquer outra ferramenta indicada para a
elocuccedilatildeo como as figuras (1404a12) Compreende-se essa visatildeo deveras depreciativa da elo-
cuccedilatildeo por parte do filoacutesofo pois como ele mesmo diz no terceiro livro de sua Retoacuterica ao
empreender o tratamento da actio ou representaccedilatildeo do discurso (ὑπόκρισις) ateacute ao tempo da
escritura da obra natildeo havia ainda nenhuma arte isto eacute nenhum manual de retoacuterica voltado para
a mateacuteria (οὔπω δὲ σύγκειται τέχνη περὶ αὐτῶν) porque a leacuteksis soacute havia sido notada pou-
quiacutessimo antes (ἐπεὶ καὶ τὸ περὶ τὴν λέξιν ὀψὲ προῆλθεν) descaso que se justificava pelo fato
de o estilo mdash considerado entatildeo como mera ornamentaccedilatildeo do discurso mdash ser julgado inferior
(φορτικὸν) tema indigno das preocupaccedilotildees dum homem livre criacutetica que natildeo evita endossar o
filoacutesofo (καλῶς ὐπολαμβανόμενον) (1403b35-6)
A despeito desta postura criacutetica adotada por Aristoacuteteles e de seu juiacutezo negativo a respeito
do ecircthos e do paacutethos postura raramente admitida pelos estudiosos atuais da retoacuterica o que
importa para os fins deste artigo contudo eacute seu poder argumentativo uma vez que sua impor-
tacircncia natildeo pode ser negada seja ela justificada ou natildeo de par com a finalidade filosoacutefica que
lhes imprime o rhetor de Hipona Portanto justo ou natildeo (nos tribunais e assembleias) o fato
admitido por Aristoacuteteles eacute que a elocuccedilatildeo afeta sobremodo o paacutethos sendo de par com o ecircthos
reconhecido como a mais persuasiva (κυριωτάτη) das provas (1356a13) altamente eficaz para
os objetivos da argumentaccedilatildeo pois resta claro que por meio do estilo se consegue mover as
emoccedilotildees (1408a16) seja quando se fala com indignaccedilatildeo audaciosa (ὕβρις) seja com raiva
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(ὁργιζομένου) impiedade (ἀσεβή) ou vergonha (αἰσχρά) O estilo adequado (ἡ οἰκεία λέξις)
que eacute aquele em que os elementos do paacutethos (παθητική) e do ecircthos (ἠθική) satildeo proporcionais
(ἀνάλογον) aos temas subjacentes (τοῖς ὐποκειμένοις πράγμασιν) (1408a10-11) faz com
que um dado assunto seja mais persuasivo Aleacutem disso remata Aristoacuteteles o ouvinte sempre
simpatiza (συνομοπαθεῖ ὁ ἀκούων) com quem fala de modo emocional (παθητικῶς
λέγοντι) ainda que esse natildeo diga nada (κἂν μηθὲν λέγῃ) (1408a23-4)
Reconhecido o vigor (δύναμις) natildeo apenas pateacutetico mas tambeacutem argumentativo da elo-
cuccedilatildeo resta ver como Agostinho se utiliza de seus recursos nas Confissotildees a fim de atingir seus
objetivos numa palavra a fim de fazer filosofia Pois bem as descriccedilotildees que melhor instigam
as emoccedilotildees satildeo as que fazem apelo agrave imaginaccedilatildeo e aos sentidos descriccedilotildees viacutevidas de cenas e
eventos contam muito como o famigerado roubo das peras (Conf 249) a prisatildeo de Aliacutepio
(6914) ou a cena do jardim de Milatildeo (81125-27) por exemplo as inumeraacuteveis metaacuteforas e a
prosopopeia de oacutergatildeos humanos que passam a ser dotados de matildeos pernas ouvidos como as
matildeos do coraccedilatildeo que se estendem em prece a Deus os relatos de laacutegrimas pungentes que se
vertem repetidas vezes enfim descriccedilotildees essas que tecircm potencial enorme para despertar fortes
sentimentos Do mesmo modo o uso de hipeacuterboles e outras tantas figuras se faz extremamente
uacutetil para criar o efeito emocional desejado Todavia nada talvez seja tatildeo eficiente nesse sentido
quanto o vocabulaacuterio o uso de palavras carregadas de intensa conotaccedilatildeo pateacutetica E no apelo
agraves emoccedilotildees pode-se dizer esteja uma das chaves de leitura das Confissotildees ao menos retoacuterica
De fato a linguagem da obra estaacute repleta de figuras cujo efeito principal eacute o despertar dos
sentimentos Mas de quem e para quecirc A sua audiecircncia soacute pode ser depreendida de modo in-
direto por meio da linguagem do estilo e do tema o que natildeo se constitui tarefa das mais faacuteceis
por tratar-se de obra multifacetada de linguagem muito elaborada que prima pela sofisticaccedilatildeo
mas que natildeo despreza uma certa tonalidade menos erudita que se pode ateacute denominar em
alguma medida popular ou humilde De fato pelo recurso aos salmos e textos escrituraacuterios
com seu respectivo campo semacircntico permeado de expressotildees da liacutengua grega vulgar (κοινή)
traduzidas ou transliteradas em latim conhecidos de toda comunidade cristatilde natildeo apenas por
serem lidos mas principalmente por sua funccedilatildeo lituacutergica eacute sem duacutevida uma linguagem
(sermo) popular ou humilis todavia pelos mecanismos retoacutericos extremamente requintados e
pelas referecircncias a toda uma cultura filosoacutefica de par com uma argumentaccedilatildeo em muitas pas-
sagens nada singela especialmente nos livros 1 8 e de 9 a 13 pode-se considerar igualmente
elevadiacutessima Portanto humilde e elevada eacute a linguagem das Confissotildees constituindo em si
mesma um oximoro
150
Diante desse desafio de escrever tanto para a gente mais simples como para filoacutesofos
desafio que se exprime nesse caso pela linguagem supotildee-se que Agostinho natildeo tenha simples-
mente pretendido abaixar o registro de seu discurso descendo aos simples e pequeninos (ad
catechizandos rudes) muito ao contraacuterio ao que parece pretendia elevar-se ou melhor ser
elevado ao confessar-se arrependido penitenciando-se mas tambeacutem ao confessar sua feacute e seu
louvor enaltecendo e reconhecendo a graccedila de Deus em sua vida Em sendo assim ao ser ele-
vado por Deus pela confissatildeo pretende igualmente mover as almas incitando-lhes semelhante
elevaccedilatildeo ou quando natildeo o desejo de elevaccedilatildeo desejo de que se deixassem igualmente elevar
como ele confessava desejar o que se pode considerar sem duacutevida uma meta de caraacuteter pastoral
Portanto sua missatildeo quanto ao paacutethos eacute tambeacutem a de mover as almas agrave salvaccedilatildeo que
se pode sintetizar na vontade de ser elevado e de para lanccedilar matildeo duma contradiccedilatildeo merecer
por uma espeacutecie de ascese cataacutertica a graccedila divina a misericoacuterdia do Deus justiacutessimo Ora
disso decorre a possibilidade duma outra funccedilatildeo da linguagem extremamente comovente fruto
dos recursos da elocuccedilatildeo a que recorre Agostinho nas Confissotildees e interligada com essa funccedilatildeo
dita pastoral de elevar as almas uma funccedilatildeo que se pode compreender como simultaneamente
propedecircutica e filosoacutefica Com efeito se uma das funccedilotildees deste paacutethos que se diz de caraacuteter
pastoral pretende comover positiva e negativamente incitando a um soacute tempo o desejo de
salvaccedilatildeo e o de horror agrave perdiccedilatildeo o desejo de buscar Deus e de evitar o mal de buscar ser mais
pela proximidade do Ser supremo e de evitar ser menos ou deixar de ser pelo afastamento desse
mesmo Ser como se percebe sobremodo nos livros da parte considerada biograacutefica da obra o
que natildeo implica de modo algum a exclusatildeo dos restantes livros a outra funccedilatildeo por sua vez
relacionada intimamente agrave primeira de que se pode dizer seja consequecircncia natural que se
exacerba tambeacutem a partir dos recursos da elocuccedilatildeo e que como se disse tem caraacuteter prope-
decircutico compreende-se como uma funccedilatildeo de purificaccedilatildeo filosoacutefica de afastamento progressivo
das coisas deste mundo de afastamento da ldquocarnerdquo se se pode dizer tendo em vista o despren-
dimento rumo a uma vida mais espiritual de proximidade com o Ser o puro Inteligiacutevel que se
transubstancia por sua vez num projeto de vivecircncia cristatilde o que se destaca sobremodo a partir
do livro novo encontrando sua foz nos estertores do livro derradeiro Donde ser liacutecito afirmar
que os livros da parte biograacutefica das Confissotildees do primeiro ao oitavo tecircm tambeacutem essa fun-
ccedilatildeo de purificaccedilatildeo tanto das emoccedilotildees como da razatildeo ou seja de disciplinar ou exercitar asce-
ticamente a alma (exercitatio animi)18 a fim de que os leitores e ouvintes pudessem estar pre-
parados para o que havia de vir nos livros subsequentes E isso parece estar em harmonia com
18 Ἥ ἄσκησις ἥ τῆς ψυχῆς
151
o projeto filosoacutefico platocircnico-cristatildeo que Agostinho tinha para sua vida e que colocou em praacute-
tica desde os tempos preacute-batismais de Cassiciacuteaco ateacute ser interrompido pela sua consagraccedilatildeo
sacerdotal (391 dC) um projeto propedecircutico-purificador
E de fato se se pode aventar que esse projeto cataacutertico da razatildeo encontra seu ponto de
saiacuteda no expurgo do ceticismo de tipo neoacadecircmico como se percebe nos trecircs livros intitulados
Contra Academicos desenvolve-se sobremodo nas paacuteginas do diaacutelogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monoacutelogo com os Soliloacutequios obras do mesmo periacuteodo
Formato monoloacutegico esse denominado por Dupuy-Trudelle (1998 p 1198) ldquodesdobramentordquo
que eacute bem possiacutevel tenha servido de laboratoacuterio para as proacuteprias Confissotildees sugere a autora
refletindo a intenccedilatildeo de Agostinho apesar da excelecircncia da feacute de levar as exigecircncias da razatildeo
ateacute ao limite extremo num esforccedilo de purificaccedilatildeo num ir-aleacutem das paixotildees e desiludir-se sobre
si mesmo Ora estar iludido acerca de si mesmo natildeo eacute impedimento agrave feacute mas o eacute ao acesso agrave
convicccedilatildeo intelectual verdadeira Portanto para chegar-se ao conhecimento define esta autora
(ibid pp 1198-9) faz-se mister como condiccedilatildeo uacutenica a ldquolibertaccedilatildeo da razatildeo de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesmardquo libertaccedilatildeo a que os Soliloacutequios datildeo curso
Pode-se compreender que para desenlamear a consciecircncia dos similisavoirs libertaacute-
la de toda ilusatildeo psicoloacutegica ensinaacute-la que o desejo da verdade natildeo eacute ainda a posses-
satildeo da verdade permitir-lhe ir aleacutem do conflito de interesses que leva a opiniatildeo a
revoltar-se contra a verdade seja preciso mensurar a distacircncia entre o sujeito e si
mesmo Ora fazecirc-lo eacute um convite a mensurar a distacircncia entre si e o conhecimento de
Deus Eis entatildeo todo o sentido do exerciacutecio proposto pelo ldquosoliloacutequiordquo mensurar uma
e outra19
Natildeo parece haver duacutevidas de que os Soliloacutequios trazem em si de modo embrionaacuterio o estilo
que haveria de consagrar sobretudo a partir das Confissotildees quando entatildeo dispensa o combate
direto de ideias preferindo ldquodesdobrar-serdquo e deixar-se interrogar por si mesmo ainda que de
modo proleacuteptico continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas
Todavia eacute mais que provaacutevel que esta exigecircncia natildeo tenha surgido do nada e sim pertenccedila a
um projeto filosoacutefico maior que englobe as demais obras de Cassiciacuteaco sendo-lhe entatildeo um
como que desenvolvimento natural
No proacutelogo do De ordine (13-4) Agostinho argumenta que o homem por ser um des-
conhecido de si mesmo natildeo consegue perceber a ordem que reina em todo o universo ordem
providencial em que ele estaacute inserido e que para conseguir conhecer-se seria necessaacuterio entrar
em si mesmo ali permanecendo afastado dos sentidos lugar em que poderia entatildeo curar-se das
feridas que as opiniotildees vulgares infligem agrave alma seja pelo ldquofogordquo do ldquoisolamentordquo conforme
19 DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Les Confessions Paris Gal-
limard 1998 p 1206
152
se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
153
soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
154
As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
155
menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
156
Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
157
sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
158
(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
159
articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
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O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
REFEREcircNCIAS
[CICERO] Rhetorica ad Herennium (Transl by Harry Caplan) Cambridge (MA) Harvard
University Press 2004 (LOEB Classical Library 403)
ARISTOTELIS Ars Rhetorica (Recognouit breuique adnotatione critica instruxit W D
Ross) Oxford Oxford University Press 2008 (Oxford Classical Texts)
ARISTOTLE The Complete Works of Aristotle (The Revised Oxford Translation Edited by
Jonathan Barnes) Sixth Printing with corrections Princeton Princeton University Press
1995 (Volumes I amp II)
AUERBACH Erich Ensaios de Literatura Ocidental Filologia e Criacutetica 1ordf ed Satildeo Paulo
Duas Cidades Editora 34 2007 pp 15-96 ldquoSacrae scripturae sermo humilisrdquo pp 15-28
ldquoSermo humilisrdquo pp 29-76 ldquoGloria Passionisrdquo pp 77-96
AUGUSTIN Confessions (Texte Eacutetabli et Traduit par Pierre de Labriolle) Seiziegraveme tirage
Paris Les Belles Lettres 2002 (Tome I livres I-VIII Tome II livres VIII-XIII)
______ IV Dialogues Philosophiques I Problegravemes fondamentaux Contra Academicos De
beata uita De ordine (Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et notes de R
Jolivet) 2me eacutedition revue et augmenteacutee Paris Descleacutee de Brouwer 1939 (Œuvres de Saint
Augustin 1re Seacuterie Opuscules)
______ V Dialogues Philosophiques II Dieu et Lrsquoame Soliloques De immortalitate
animae De quantitate animae (Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et
notes de Pierre de Labriolle) Paris Descleacutee de Brouwer 1939 (Œuvres de Saint Augustin 1re
Seacuterie Opuscules)
______ VI Dialogues Philosophiques III De lrsquoame agrave Dieu De magistro De libero arbitrio
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141
gecircneros assim como uacutetil e o inuacutetil mateacuteria de deliberaccedilatildeo que podem ser justos ou seu con-
traacuterio belos ou natildeo ou ainda o bom e o mau que podem muito bem ser inuacuteteis ou natildeo justos
ou natildeo em conformidade com o que diz Aristoacuteteles justificando assim a mistura dos gecircneros
retoacutericos (1358b27-1359a4) Poreacutem o gecircnero epidiacutectico parece ser o mais completo dos trecircs
uma vez nem focar demasiado no passado como o judiciaacuterio tampouco no futuro como o
deliberativo ao contraacuterio ao discorrer acerca do presente (ὁ παρὼν χρόνος) louvando ou
censurando as coisas que de fato satildeo (κατὰ τὰ ὐπάρχοντα) eacute-lhe permitido voltar-se tanto agraves
reminiscecircncias preteacuteritas quanto ao que pode vir a ser como se percebe nitidamente do primeiro
ao derradeiro livro das Confissotildees que nem se limitam a perscrutar o passado tampouco a
especular esperanccedilosamente sobre o futuro ou mesmo sobre o presente na investigaccedilatildeo do
proacuteprio rememorar quando entatildeo empreendem o louvor do que eacute foi e haacute de ser de par com o
do que sempre e indefectivelmente eacute
Uma uacuteltima palavra acerca da retoacuterica se faz necessaacuteria antes de voltar a atenccedilatildeo para
os trecircs gecircneros de provas teacutecnicas nas Confissotildees Quando se propotildee apresentar uma resposta
diz Michel Meyer (2010 p 53) a retoacuterica tende a ocultar o problemaacutetico fazendo com que a
questatildeo de base subjacente a todo discurso questatildeo em torno de que se reuacutenem ou dispersam
as partes pareccedila resolvida No entanto isso de modo nenhum eacute o que se percebe na retoacuterica
filosoacutefica de Agostinho que opera agraves avessas natildeo projetando de modo nenhum esconder o
problemaacutetico e sim permitindo lidar com ele dizendo-o embora sua insoluacutevel inefabilidade E
de fato se se tome por base a proacutepria definiccedilatildeo da retoacuterica elaborada pelo mesmo Meyer (2012
p 21) como sendo a negociaccedilatildeo entre a distacircncia criada por um dado problema que se constitui
sua proacutepria medida percebe-se no que tange ao Ser natildeo haver distacircncia entre interlocutores
para quem a sua inefabilidade eacute paciacutefica quer se o identifique com a Divindade cristatilde ou natildeo
E em natildeo havendo essa distacircncia qual a finalidade da retoacuterica sendo ela a suposta negociaccedilatildeo
que se estabelece em funccedilatildeo dum dado problema que se mede exatamente por essa distacircncia
inexistente Logo em natildeo havendo uma distacircncia que se constituiacutesse a medida do problemaacutetico
desnecessaacuterio seria argumentar inexistindo o problema Contudo isso se refere de modo espe-
cial agraves retoacutericas forense e deliberativa natildeo agrave epidiacutectica e menos ainda a epidiacutectica com finali-
dade filosoacutefica como se daacute no caso de Agostinho Nas Confissotildees a distacircncia que se quer
negociar eacute a que se supotildee entre o conhecido desconhecimento de Deus e seu desconhecido
conhecimento ou seja a distacircncia entre o nada que se pode conhecer de Deus e o tudo que se
desconhece entre o nada que dele se pode dizer e o tudo que se natildeo diz E como essa distacircncia
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eacute inegociaacutevel resta agrave retoacuterica simular a edificaccedilatildeo duma estrutura especial a linguagem per-
mitindo que pela proacutepria expressatildeo do paradoxo do estranhamento da perplexidade se diga
sem dizer e se natildeo diga dizendo Numa palavra a retoacuterica permite que Agostinho estique a
corda do arco de seu dizer para aleacutem da tensatildeo do compreensiacutevel apodiacutectico para aleacutem do
alcance da razatildeo que seja capaz carreando o leitor consigo de tangenciar o suprarracional a
natildeo dizer irracional pois natildeo desprovido de razatildeo e sim muito aleacutem dela
A primeira das provas da arte ecircthos
Aleacutem das provas loacutegicas que envolviam mateacuterias e meacutetodos cujo apelo se voltava pri-
mordialmente a natildeo dizer exclusivamente para a razatildeo a retoacuterica reconhecia outros meios de
prova pois se dera conta havia muito de que as pessoas natildeo satildeo apenas dotadas de capacidade
racional mas tambeacutem de sentimentos e de vontade pelo que se fazia necessaacuterio lidar com elas
natildeo como deveriam ser mas como realmente eram lembram Corbett e Connors (1999 p 72)
Destarte tomando por base a definiccedilatildeo aristoteacutelica de que a retoacuterica eacute a arte de descobrir todos
os meios possiacuteveis de persuasatildeo8 torna-se oacutebvio o recurso a tudo aquilo que se comprove efi-
ciente para esse fim Neste sentido afianccedilam esses autores o apelo eacutetico pode ser mais eficaz
que o apelo agrave razatildeo pois
mesmo o mais engenhoso e sensato apelo agrave razatildeo pode fracassar diante de ouvidos
amoucos se a audiecircncia reagiu desfavoravelmente ao caraacuteter do orador O apelo eacutetico
eacute especialmente importante no discurso retoacuterico porque aqui estamos lidando com
assuntos acerca dos quais eacute impossiacutevel ter-se certeza absoluta e em que as opiniotildees
satildeo divididas
Com efeito o ecircthos prova teacutecnica que se erige a partir do caraacuteter moral do orador segundo
reconhecia Aristoacuteteles (1356a13) constitui-se no meio mais eficaz de prova (κυριωτάτην ἔχει
πίστιν τὸ ἦθος)
Quintiliano por sua vez em suas Instituiccedilotildees Oratoacuterias (3813) adotando integral-
mente a teoria aristoteacutelica argumenta que dos trecircs gecircneros de discurso o deliberativo era o que
mais necessitava do apelo eacutetico ou seja o discurso que mais se apoiava no caraacuteter do orador
que ele denominava auctoritas
Nas deliberaccedilotildees poreacutem a autoridade eacute o que possui maior valor Com efeito natildeo
apenas deve ser considerado muitiacutessimo prudente como tambeacutem muitiacutessimo virtuoso
todo aquele que deseje que todos acreditem nos seus pensamentos acerca das coisas
8 (1355b25-6) ldquoSeja entatildeo a retoacuterica a faculdade de considerar acerca de cada coisa o que eacute possivelmente
persuasivordquo (ἔστω δὴ ἡ ῥητορικὴ δύναμις περὶ ἕκαστον τοῦ θεωρῆσαι τὸ ἐνδεχόμενον πιθανόν)
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proveitosas e dignas de honra [] natildeo haacute quem negue que as deliberaccedilotildees satildeo feitas
segundo os caracteres dos oradores9
Em conformidade com o que se argumentou um pouco antes a partir das consideraccedilotildees do
proacuteprio Aristoacuteteles acerca da mistura de gecircneros retoacutericos (1358b27-1359a4) sobre a predomi-
nacircncia do gecircnero epidiacutectico nas Confissotildees eacute perceptiacutevel natildeo apenas a importacircncia do apelo
eacutetico que natildeo eacute das menores por tratar-se duma obra primordialmente na primeira pessoa e
que sob certo ponto de vista quer falar de si mas principalmente pelo que se disse acerca de
um dos objetivos da obra de caraacuteter ldquodeliberativordquo ou antes de caraacuteter ldquopastoralrdquo de mover
as almas para Deus (conuersio ad deum) ao modo dum loacutegos protreacuteptico afastando-as do pe-
cado e de tudo que as manteacutem distantes do Bem (auersio a bono) objetivo que se cumpre
escorado no caraacuteter eacutetico que se esforccedilou por burilar ao longo primordialmente dos livros ditos
autobiograacuteficos da obra De fato natildeo obteacutem ecircxito na pretensatildeo de exortar (προτρέπω) para
Deus senatildeo aquele que se deixou dissuadir (ἀποτρέπω) do caminho do pecado que compro-
vou sua humildade (humilitas) na aceitaccedilatildeo natildeo do poder de seu livre-arbiacutetrio e sim da Graccedila
divina cujas Justiccedila e Misericoacuterdia se amalgamam na Sabedoria una e indivisiacutevel do Ser ao
inveacutes de se anularem pela contradiccedilatildeo Natildeo se trata de reconhecer-se purificado trata-se mui-
tiacutessimo ao contraacuterio de reconhecer-se pecador carente da Graccedila e incapacitado de autossalva-
ccedilatildeo numa palavra trata-se de diminuir-se ao modo do ldquoesvaziamentordquo (κένωσις) de Cristo
que embora possuindo uma forma divina (ἐν μορφῇ θεοῦ) esvaziou-se a si mesmo segundo
Paulo assumindo uma forma de escravo e fazendo-se semelhante aos homens pelos quais se
humilhou e obedientemente deixou-se matar na cruz10 Esse o ecircthos cristatildeo portador das virtu-
des dignas de imitaccedilatildeo invertidas quanto pudessem parecer a um auditoacuterio pagatildeo da eacutepoca
para o qual nem a misericoacuterdia tampouco a humildade eram considerados valores morais dese-
jaacuteveis e sim fraquezas despreziacuteveis
O orador persuade por seu caraacuteter moral explicava Aristoacuteteles (1356a5) quando seu
discurso eacute de tal modo elaborado que seja capaz de tornaacute-lo digno de credibilidade um homem
em quem pareccedila ser possiacutevel confiar Essa credibilidade contudo natildeo se constroacutei por meio de
elementos extratextuais de ideias preacute-concebidas acerca da conduta eacutetica do orador e sim atra-
veacutes do discurso (1356a8) donde ser considerado o ecircthos uma prova de caraacuteter teacutecnico fruto da
9 Inst oratoriae (3813) ldquoValet autem in consiliis auctoritas plurimum nam et prudentissimus esse haberique
et optimus debet qui sententiae suae de utilibus atque honestis credere omnes uelit [] consilia nemo est qui
neget secundum mores darirdquo 10 Paulo (Fl 25-8) ldquoΤοῦτο φρονεῖτε ἐν ὑμῖν ὃ καὶ ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων οὐχ
ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ ἀλλὰ ἑαυτὸν ἐκένωσεν μορφὴν δούλου λαβών ἐν ὁμοιώματι ἀνθρώπων γενόμενοςmiddot καὶ σχήματι εὑρεθεὶς ὡς ἄνθρωπος ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν γενόμενος ὑπήκοος μέχρι θανάτου θανάτου δὲ σταυροῦrdquo
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arte Isso se daacute explica o filoacutesofo porque quando se estaacute tratando de temas de caraacuteter geral via
de regra a confianccedila se estabelece sobre as opiniotildees das pessoas cujo valor eacute notoacuterio poreacutem
quando os temas satildeo incertos duvidosos (τὸ ἀμφιδοξεῖν) aiacute entatildeo como que desprovido de
alternativas resta ao auditoacuterio tatildeo soacute a confianccedila quase que total e irrestrita (παντελῶς) na-
queles cujos caracteres ou comprovou-se destacar-se ou lograram aparentar fazecirc-lo E sobre
que versam as Confissotildees em linhas gerais como jaacute se apontou antes senatildeo sobre o tema natildeo-
apodiacutectico por excelecircncia Deus Donde ser liacutecito dizer que pelo prisma da retoacuterica Agostinho
empreende um enorme esforccedilo de construccedilatildeo dum ecircthos apropriado a falar de Deus E de fato
se se pretende falar de tema natildeo apenas duvidoso retoacuterico mas inefaacutevel como o Ser de que
modo evadir-se do estribo do ecircthos Se o tema fosse apodiacutectico o caraacuteter do orador talvez
restasse menos relevante poreacutem natildeo num tema em que as provas demonstrativas satildeo pratica-
mente inexistentes
Para ressaltar o caraacuteter moral de algueacutem que se queira elogiar seja o do proacuteprio orador
ou natildeo lembra Aristoacuteteles (1367b22-27) eacute preciso associar as suas accedilotildees (as quais se empre-
ende louvar) agraves suas intenccedilotildees a fim de demonstrar seu valor porque o louvor (ἔπαινος) se tira
das accedilotildees (ἐκ τῶν πράξεων) desde que este aja em conformidade com suas determinaccedilotildees
morais (κατὰ προαίρεσιν) E se o homem de valor age segundo suas proacuteprias determinaccedilotildees
depreende-se que o homem cujo valor eacute nulo aja determinado isto eacute conduzido pelo destino
pela sorte (ἀπὸ τύχης) e que o homem cujo valor eacute repreensiacutevel exemplo que o filoacutesofo natildeo
daacute mas cujo raciociacutenio permite avanccedilar agiria tambeacutem motivado por suas determinaccedilotildees mo-
rais as quais contudo seriam maacutes O que importa no que tange ao ecircthos eacute que se deve mostrar
que aquele que se estaacute louvando age de acordo com suas determinaccedilotildees e natildeo ao acaso o que
lhe tiraria todo o meacuterito meacuterito que caberia entatildeo agrave fortuna (τύχη) uma vez que as accedilotildees natildeo
praticadas de modo voluntaacuterio natildeo satildeo meritoacuterias em conformidade com o que Agostinho tam-
beacutem admitia11 Portanto o conselho de Aristoacuteteles ao orador que quer construir o seu proacuteprio
ecircthos ou o de algum outro eacute tornar todas as accedilotildees possiacuteveis inclusive as decorrentes da sorte
mdash o que natildeo seria nada honesto admite o filoacutesofo mdash fruto do meacuterito daquele que se quer
enaltecer o que seria sinal de homem resoluto decidido (σημεῖον ἀρετῆς εἶναι προαιρέσεως)
No entanto esse conselho natildeo apenas natildeo eacute seguido por Agostinho e pelo discurso cristatildeo de
modo geral como ao reveacutes o exato oposto eacute o que se potildee em praacutetica ao atribuir-se tudo agrave
Graccedila divina agrave bondade preexistente daquele que natildeo precisou de nenhuma das criaturas que
criou as quais jamais fizeram por merecer o dom da vida (Conf 1311) ldquoPorque antes que eu
11 O livre arbiacutetrio (11430101) ldquoIn uoluntate meritum sitrdquo
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existisse existias tu e eu nem existia para que me concedesses que eu existisserdquo12 Isso eacute feito
contudo natildeo em detrimento do ecircthos da construccedilatildeo dum caraacuteter digno de louvor e fidedigno
e sim para construir um caraacuteter cristatildeo ou seja um caraacuteter natildeo pautado pela taacutebua de valores
eacuteticos claacutessicos que atribuiacutea grande peso agrave gloacuteria agrave honra ao denodo guerreiro e agrave justiccedila
inflexiacutevel e fria da lei13 e sim para destacar o homem jaacute de tipo medieval manso e humilde de
coraccedilatildeo misericordioso ao ponto de voltar a outra face numa palavra homem cuja honra estava
na cruz e no sangue de seu Salvador e para o qual ldquoo insensato de Deusrdquo era ldquomais saacutebio que
os homens e o fraco de Deus mais forte que os homensrdquo14 O ecircthos pois que se quer construir
eacute o do homem de feacute que se deixa conduzir pela matildeo de Deus na praacutetica das virtudes ditas
teologais feacute esperanccedila e caridade (πίστις ἐλπίς ἀγάπη) (1Cor 1313) O homem comumente
se orgulha das coisas que faz por si proacuteprio (τοῖς διrsquo αὐτόν) lembra Aristoacuteteles mas natildeo se
orgulha do que o destino lhe trouxe (διὰ τύχην) (1368a3-4) Agostinho bastante ao contraacuterio
natildeo apenas natildeo se orgulha do que fez mas se arrepende amargamente preferindo ao inveacutes da
honra agradecer a Deus todo o bem que lhe sucedeu por seu intermeacutedio divino ldquoe assim Se-
nhor apagaste todos os meus merecidos males para que natildeo retribuiacutesses agraves minhas matildeos nas
quais te deixei e te antecipaste a todos os meus merecidos bens para que retribuiacutesses agraves tuas
matildeos com as quais me fizesterdquo15
Destarte das trecircs qualidades independentes de demonstraccedilatildeo (ἔξω τῶν ἀποδείξεων)
que Aristoacuteteles aponta (1378a) como necessaacuterias ao orador ainda que em aparecircncia somente a
fim de que seja convincente o que de modo principal se refere agraves assembleias ou ao conselho
instacircncias tiacutepicas de deliberaccedilatildeo na Greacutecia antiga 1 prudecircncia ou bom-senso (φρόνησις) 2
excelecircncia moral (ἀρετή) e 3 boa disposiccedilatildeo (εὔνοια) nenhuma delas guarda nas Confissotildees
a importacircncia que o estagirita lhe atribui a natildeo ser que se considerem as virtudes ditas teologais
como pertencentes ao rol das aretaiacute aristoteacutelicas o que seria no miacutenimo um grave anacronismo
Por fim a Retoacuterica destaca o papel do ecircthos na disposiccedilatildeo das mateacuterias (τάξις) de modo
especiacutefico no proecircmio (exordium) Nos discursos do gecircnero judiciaacuterio por exemplo aquele que
se defende (ἀπολογουμένῳ) deve fazecirc-lo logo no proecircmio (πρῶτον) antes da acusaccedilatildeo ao
contraacuterio de quem acusa que deve fazecirc-lo no final (τῷ ἐπιλόγῳ) porque aquele que defende
deve construir seu ecircthos no iniacutecio antes da acusaccedilatildeo (πρὸς τὴν διαβολήν) (1415a29-30) a
12 Confissotildees (1311) ldquoquia et priusquam essem tu eras nec eram cui praestares ut essemrdquo 13 Em conformidade com a ideia veiculada pela maacutexima romana ldquodura sed lexrdquo 14 Paulo (1Cor 121-25) ldquoὅτι τὸ μωρὸν τοῦ θεοῦ σοφώτερον τῶν ἀνθρώπων ἐστὶν καὶ τὸ ἀσθενὲς τοῦ
θεοῦ ἰσχυρότερον τῶν ἀνθρώπωνrdquo 15Confissotildees (1311) ldquoEtenim domine deleuisti omnia mala merita mea ne retribueres manibus meis in
quibus a te defeci et praeuenisti omnia bona merita mea ut retribueres manibus tuis quibus me fecistirdquo
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fim de livrar-se de todo impedimento ou embaraccedilo como faz Agostinho nas Confissotildees utili-
zando-se dos primeiros livros ditos biograacuteficos para tanto Se o acusador deve criar o precon-
ceito contra o acusado no fim para que permaneccedila bem presente na memoacuteria dos juiacutezes o
defendente deve desvencilhar-se do preconceito logo no iniacutecio a fim de que seus argumentos
satildeo sejam prejudicados pela imagem da pecha moral que traz consigo Natildeo eacute apenas para o
ecircthos que o proecircmio eacute importante mas tambeacutem para o paacutethos pois eacute preciso tornar o auditoacuterio
bem disposto em relaccedilatildeo ao orador se se estaacute defendendo ou tornaacute-lo indisposto contra a outra
parte (1415a-34-36) se se estaacute acusando Para isso conta muito a aparecircncia de respeitabilidade
do falante pois ldquoas pessoas respeitaacuteveis recebem mais atenccedilatildeordquo diz Aristoacuteteles Pelo que o
orador deve esforccedilar-se por conseguir duas coisas do auditoacuterio 1 amizade (φίλον) e 2 com-
paixatildeo (ἐλεεινόν) (1415b22-28) tornaacute-lo amigo e compassivo fazendo-o crer que ele mesmo
o orador sente exatamente aquilo que censura ou louva ou seja que estaacute sendo sincero
(1415b28-29) Ora como falar da Graccedila de Deus sem que se recorra ao testemunho pessoal
pois a Graccedila diferentemente da recompensa ou do salaacuterio (merces) eacute distribuiacuteda gratuitamente
para o que por paradoxal pareccedila faz-se necessaacuterio ser pecador numa palavra estar desprovido
de qualquer meacuterito que o tornaria credor ao inveacutes de devedor meacuterito que poderia confundi-la
a Graccedila com pagamento ou retribuiccedilatildeo Evidente que se trata dum exagero pois os que tecircm
meacuterito natildeo estatildeo de modo nenhum excluiacutedos da Graccedila jaacute que natildeo faz muito sentido que natildeo
receba sem meacuterito16 senatildeo quem natildeo mereccedila
Seja como for esse ecircthos de sinceridade logra construir com bastante esmero Agostinho
ao reconhecer-se pecador devedor pequenino desprovido de meacuteritos e absolutamente depen-
dente da bondade da Providecircncia divina que se expressa pela Graccedila gratis
A segunda das provas da arte paacutethos
A movimentaccedilatildeo das emoccedilotildees (πάθος) embora uma prova (πίστις) que se diz teacutecnica
ou ldquoda arterdquo (ἔντεχνος) de modo aparentemente paradoxal natildeo tem que ver diretamente com
as provas demonstrativas ou com a causa em si e sim respeita aos juiacutezes (δικασταί) explica
Aristoacuteteles (1354a4-5)17 De fato o orador alcanccedila a persuasatildeo seja em que gecircnero for (o que
16 Isto eacute gratuitamente 17 Aristoacuteteles natildeo era muito simpaacutetico nem ao apelo eacutetico tampouco ao emocional que julgava ser um mal
necessaacuterio pois considerava errado manipular os sentimentos dos juiacutezes o que equivalia a corromper a proacutepria lei
que se tentava fazer valer ou de que se queria socorrer (1356a14) Argumento muito parecido esse (de destruir a
proacutepria lei a que se deveraacute recorrer depois) com o utilizado por Soacutecrates ao negar a proposta de fuga de Criacuteton no
diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo (50a-b) Pois bem no iniacutecio do tratamento da hupoacutekrisis (1403b22-) Aristoacuteteles
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natildeo exclui nem o epidiacutectico tampouco o deliberativo) mediatamente por meio dos ouvintes
(διὰ τῶν ἀκροατῶν) aqueles aos quais se dirige quando recorre ao paacutethos despertando ou
dirigindo suas emoccedilotildees (ὅταν εἰς πάθος) o que se faz pela accedilatildeo discursiva (ὑπὸ τοῦ λόγου)
Isso porque os juiacutezos (τὰς κρίσεις) dos ouvintes objetivo da accedilatildeo persuasiva variam sob a
influecircncia das emoccedilotildees tais como a dor (λύπη) a alegria (χαρά) a amizade (φιλία) o oacutedio
(μῖσος) etc Com efeito o orador natildeo tem por escopo a emoccedilatildeo do auditoacuterio em si mesma como
finalidade e sim a sua persuasatildeo a fim de que decida em favor de sua causa para o que as
emoccedilotildees cooperam vivamente como percebeu Aristoacuteteles ao dedicar grande parte do livro
segundo da Retoacuterica ao estudo das paixotildees da alma
Um dos meios mais eficazes para a movimentaccedilatildeo do paacutethos a fim de que se tenha ecircxito
no apelo emocional em vista dum fim ulterior natildeo satildeo as provas demonstrativas recomendadas
para o gecircnero apropriado (o judiciaacuterio no caso) o entimema e as maacuteximas provas que devem
ser descobertas na invenccedilatildeo e sim os recursos pertencentes a outra parte da retoacuterica a elocuccedilatildeo
(λέξις) Com efeito depois de encontrado o que dizer (εὕρεσις) e disposto as mateacuterias de modo
apropriado (τάξις) resta saber como dizecirc-lo Esse ldquocomordquo respeita sem duacutevida agrave forma do dis-
curso que se chama tambeacutem ldquoestilordquo poreacutem de modo nenhum se limita a isso como se fosse
apenas uma sua vestimenta Os recursos da elocuccedilatildeo para muito aleacutem da ornamentaccedilatildeo tecircm
forccedila persuasiva pois argumentam seja pela concisatildeo das figuras seja pelo ritmo e paralelismo
das construccedilotildees seja pelas imagens que evocam o que fazem de modo principal pondo em
destaque tanto o ecircthos como o paacutethos O ecircthos por exemplo no emprego do leacutexico que quando
recheado de estrangeirismos (ξένην ποιεῖν τὴν διάλεκτον) (1404b10-12) diz Aristoacuteteles con-
fere um ar de dignidade ao discurso promovendo por tabela o orador que se faz parecer digno
e nobre assim como aquilo que estaacute dizendo O paacutethos por sua vez quando o discurso eacute ldquoele-
vadordquo a um niacutevel suprarracional ou sublime pelo uso de recursos poeacuteticos dentre os quais se
destacam as figuras de repeticcedilatildeo como paralelismos epanalepses anadiploses antanaacuteclases
reconhece que tudo aquilo que respeita agrave apresentaccedilatildeo do discurso como voz volume tom altura ritmo harmo-
nia entre tais e que eacute muito importante nos certames dramaacuteticos e eacutepicos (τῶν ἀγώνων) quando entatildeo faz-se
necessaacuterio equilibrar esses elementos segundo cada uma das emoccedilotildees (πρὸς ἕκαστον πάθος) embora seja tam-
beacutem utilizado nas demais atividades poliacuteticas como assembleias deliberativas e tribunais o eacute apenas de modo
deploraacutevel Isso porque conquanto seja necessaacuterio mover as paixotildees do auditoacuterio e construir o caraacuteter do orador
discursivamente essa necessidade se deve tatildeo soacute agrave corrupccedilatildeo dos cidadatildeos (διὰ τὴν μοχθηρίαν τῶν πολιτῶν)
(1403b34-35) o que equivale a dizer do auditoacuterio (τοῦ ἀκροατοῦ) Assim sendo o recurso tanto ao ecircthos como
ao paacutethos deixa de ser questatildeo de correccedilatildeo (οὐκ ὀρθῶς) de certo ou errado passando a ser uma necessidade (ἀλλrsquo
ὡς ἀναγκαίου) Com efeito o justo (δίκαιον) seria defender acusar exortar e dissuadir movido apenas pelos
fatos (ἀγωνίζεσθαι τοῖς πράγμασιν) (1404a5-6) de maneira tal que o restante que Aristoacuteteles reputa fora da
demonstraccedilatildeo (ἔξω τοῦ ἀποδεῖξαι) ο que inclui ecircthos e paacutethos seria superfluidade (περίεργα ἐστίν) (1404a8)
Infelizmente poreacutem a realidade eacute que o orador precisa conhecer estes recursos a fim de poder defender-se e atingir
seus objetivos uma vez que os adversaacuterios certamente lanccedilam matildeo deles de modo quase sempre inescrupuloso
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paronomaacutesias antimetaacuteboles poliptotos etc E fique claro que dizer que Aristoacuteteles natildeo via com
bons olhos o (mau) recurso aos apelos eacutetico e pateacutetico nos tribunais natildeo significa dizer que
desprezasse os mecanismos da elocuccedilatildeo o que implicaria dizer que cresse o homem ser dotado
apenas de razatildeo excluiacutedos sentimentos e caraacuteter a natildeo dizer da vontade Ao contraacuterio Aristoacute-
teles bem reconhecia que em todo tipo de aprendizado (ἐν πάσῃ διδασκαλίᾳ) o estilo se faz
mateacuteria de certa importacircncia uma vez que algo se torna claro (πρὸς τὸ δηλῶσαι) por meio do
modo como eacute dito (ὡδὶ ἢ ὡδὶ εἰπεῖν) embora relegasse a questatildeo do estilo ao niacutevel da aparecircn-
cia (ἀλλrsquo ἅπαντα φαντασία ταῦτrsquo εστὶ) cuja finalidade seria apenas agradar o ouvinte (πρὸς
τὸν ἀκροατήν) ouvinte esse por sua vez cuja corrupccedilatildeo (μοχθηρία) seria a verdadeira causa
de tudo que natildeo eacute apodiacutectico na retoacuterica (1404a7-8) Em assim sendo o estilo (λέξις) seria um
mal necessaacuterio uma ferramenta que embora potencialmente injusta seria uacutetil para conferir
clareza ao discurso assim como todos os demais elementos de persuasatildeo natildeo-apodiacutecticos ou
extrademonstrativos E isso se justifica diz o filoacutesofo de modo peremptoacuterio porque ningueacutem
ensina a fazer geometria desse modo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) isto eacute nem pelo
recurso ao paacutethos nem pelo ecircthos tampouco por qualquer outra ferramenta indicada para a
elocuccedilatildeo como as figuras (1404a12) Compreende-se essa visatildeo deveras depreciativa da elo-
cuccedilatildeo por parte do filoacutesofo pois como ele mesmo diz no terceiro livro de sua Retoacuterica ao
empreender o tratamento da actio ou representaccedilatildeo do discurso (ὑπόκρισις) ateacute ao tempo da
escritura da obra natildeo havia ainda nenhuma arte isto eacute nenhum manual de retoacuterica voltado para
a mateacuteria (οὔπω δὲ σύγκειται τέχνη περὶ αὐτῶν) porque a leacuteksis soacute havia sido notada pou-
quiacutessimo antes (ἐπεὶ καὶ τὸ περὶ τὴν λέξιν ὀψὲ προῆλθεν) descaso que se justificava pelo fato
de o estilo mdash considerado entatildeo como mera ornamentaccedilatildeo do discurso mdash ser julgado inferior
(φορτικὸν) tema indigno das preocupaccedilotildees dum homem livre criacutetica que natildeo evita endossar o
filoacutesofo (καλῶς ὐπολαμβανόμενον) (1403b35-6)
A despeito desta postura criacutetica adotada por Aristoacuteteles e de seu juiacutezo negativo a respeito
do ecircthos e do paacutethos postura raramente admitida pelos estudiosos atuais da retoacuterica o que
importa para os fins deste artigo contudo eacute seu poder argumentativo uma vez que sua impor-
tacircncia natildeo pode ser negada seja ela justificada ou natildeo de par com a finalidade filosoacutefica que
lhes imprime o rhetor de Hipona Portanto justo ou natildeo (nos tribunais e assembleias) o fato
admitido por Aristoacuteteles eacute que a elocuccedilatildeo afeta sobremodo o paacutethos sendo de par com o ecircthos
reconhecido como a mais persuasiva (κυριωτάτη) das provas (1356a13) altamente eficaz para
os objetivos da argumentaccedilatildeo pois resta claro que por meio do estilo se consegue mover as
emoccedilotildees (1408a16) seja quando se fala com indignaccedilatildeo audaciosa (ὕβρις) seja com raiva
149
(ὁργιζομένου) impiedade (ἀσεβή) ou vergonha (αἰσχρά) O estilo adequado (ἡ οἰκεία λέξις)
que eacute aquele em que os elementos do paacutethos (παθητική) e do ecircthos (ἠθική) satildeo proporcionais
(ἀνάλογον) aos temas subjacentes (τοῖς ὐποκειμένοις πράγμασιν) (1408a10-11) faz com
que um dado assunto seja mais persuasivo Aleacutem disso remata Aristoacuteteles o ouvinte sempre
simpatiza (συνομοπαθεῖ ὁ ἀκούων) com quem fala de modo emocional (παθητικῶς
λέγοντι) ainda que esse natildeo diga nada (κἂν μηθὲν λέγῃ) (1408a23-4)
Reconhecido o vigor (δύναμις) natildeo apenas pateacutetico mas tambeacutem argumentativo da elo-
cuccedilatildeo resta ver como Agostinho se utiliza de seus recursos nas Confissotildees a fim de atingir seus
objetivos numa palavra a fim de fazer filosofia Pois bem as descriccedilotildees que melhor instigam
as emoccedilotildees satildeo as que fazem apelo agrave imaginaccedilatildeo e aos sentidos descriccedilotildees viacutevidas de cenas e
eventos contam muito como o famigerado roubo das peras (Conf 249) a prisatildeo de Aliacutepio
(6914) ou a cena do jardim de Milatildeo (81125-27) por exemplo as inumeraacuteveis metaacuteforas e a
prosopopeia de oacutergatildeos humanos que passam a ser dotados de matildeos pernas ouvidos como as
matildeos do coraccedilatildeo que se estendem em prece a Deus os relatos de laacutegrimas pungentes que se
vertem repetidas vezes enfim descriccedilotildees essas que tecircm potencial enorme para despertar fortes
sentimentos Do mesmo modo o uso de hipeacuterboles e outras tantas figuras se faz extremamente
uacutetil para criar o efeito emocional desejado Todavia nada talvez seja tatildeo eficiente nesse sentido
quanto o vocabulaacuterio o uso de palavras carregadas de intensa conotaccedilatildeo pateacutetica E no apelo
agraves emoccedilotildees pode-se dizer esteja uma das chaves de leitura das Confissotildees ao menos retoacuterica
De fato a linguagem da obra estaacute repleta de figuras cujo efeito principal eacute o despertar dos
sentimentos Mas de quem e para quecirc A sua audiecircncia soacute pode ser depreendida de modo in-
direto por meio da linguagem do estilo e do tema o que natildeo se constitui tarefa das mais faacuteceis
por tratar-se de obra multifacetada de linguagem muito elaborada que prima pela sofisticaccedilatildeo
mas que natildeo despreza uma certa tonalidade menos erudita que se pode ateacute denominar em
alguma medida popular ou humilde De fato pelo recurso aos salmos e textos escrituraacuterios
com seu respectivo campo semacircntico permeado de expressotildees da liacutengua grega vulgar (κοινή)
traduzidas ou transliteradas em latim conhecidos de toda comunidade cristatilde natildeo apenas por
serem lidos mas principalmente por sua funccedilatildeo lituacutergica eacute sem duacutevida uma linguagem
(sermo) popular ou humilis todavia pelos mecanismos retoacutericos extremamente requintados e
pelas referecircncias a toda uma cultura filosoacutefica de par com uma argumentaccedilatildeo em muitas pas-
sagens nada singela especialmente nos livros 1 8 e de 9 a 13 pode-se considerar igualmente
elevadiacutessima Portanto humilde e elevada eacute a linguagem das Confissotildees constituindo em si
mesma um oximoro
150
Diante desse desafio de escrever tanto para a gente mais simples como para filoacutesofos
desafio que se exprime nesse caso pela linguagem supotildee-se que Agostinho natildeo tenha simples-
mente pretendido abaixar o registro de seu discurso descendo aos simples e pequeninos (ad
catechizandos rudes) muito ao contraacuterio ao que parece pretendia elevar-se ou melhor ser
elevado ao confessar-se arrependido penitenciando-se mas tambeacutem ao confessar sua feacute e seu
louvor enaltecendo e reconhecendo a graccedila de Deus em sua vida Em sendo assim ao ser ele-
vado por Deus pela confissatildeo pretende igualmente mover as almas incitando-lhes semelhante
elevaccedilatildeo ou quando natildeo o desejo de elevaccedilatildeo desejo de que se deixassem igualmente elevar
como ele confessava desejar o que se pode considerar sem duacutevida uma meta de caraacuteter pastoral
Portanto sua missatildeo quanto ao paacutethos eacute tambeacutem a de mover as almas agrave salvaccedilatildeo que
se pode sintetizar na vontade de ser elevado e de para lanccedilar matildeo duma contradiccedilatildeo merecer
por uma espeacutecie de ascese cataacutertica a graccedila divina a misericoacuterdia do Deus justiacutessimo Ora
disso decorre a possibilidade duma outra funccedilatildeo da linguagem extremamente comovente fruto
dos recursos da elocuccedilatildeo a que recorre Agostinho nas Confissotildees e interligada com essa funccedilatildeo
dita pastoral de elevar as almas uma funccedilatildeo que se pode compreender como simultaneamente
propedecircutica e filosoacutefica Com efeito se uma das funccedilotildees deste paacutethos que se diz de caraacuteter
pastoral pretende comover positiva e negativamente incitando a um soacute tempo o desejo de
salvaccedilatildeo e o de horror agrave perdiccedilatildeo o desejo de buscar Deus e de evitar o mal de buscar ser mais
pela proximidade do Ser supremo e de evitar ser menos ou deixar de ser pelo afastamento desse
mesmo Ser como se percebe sobremodo nos livros da parte considerada biograacutefica da obra o
que natildeo implica de modo algum a exclusatildeo dos restantes livros a outra funccedilatildeo por sua vez
relacionada intimamente agrave primeira de que se pode dizer seja consequecircncia natural que se
exacerba tambeacutem a partir dos recursos da elocuccedilatildeo e que como se disse tem caraacuteter prope-
decircutico compreende-se como uma funccedilatildeo de purificaccedilatildeo filosoacutefica de afastamento progressivo
das coisas deste mundo de afastamento da ldquocarnerdquo se se pode dizer tendo em vista o despren-
dimento rumo a uma vida mais espiritual de proximidade com o Ser o puro Inteligiacutevel que se
transubstancia por sua vez num projeto de vivecircncia cristatilde o que se destaca sobremodo a partir
do livro novo encontrando sua foz nos estertores do livro derradeiro Donde ser liacutecito afirmar
que os livros da parte biograacutefica das Confissotildees do primeiro ao oitavo tecircm tambeacutem essa fun-
ccedilatildeo de purificaccedilatildeo tanto das emoccedilotildees como da razatildeo ou seja de disciplinar ou exercitar asce-
ticamente a alma (exercitatio animi)18 a fim de que os leitores e ouvintes pudessem estar pre-
parados para o que havia de vir nos livros subsequentes E isso parece estar em harmonia com
18 Ἥ ἄσκησις ἥ τῆς ψυχῆς
151
o projeto filosoacutefico platocircnico-cristatildeo que Agostinho tinha para sua vida e que colocou em praacute-
tica desde os tempos preacute-batismais de Cassiciacuteaco ateacute ser interrompido pela sua consagraccedilatildeo
sacerdotal (391 dC) um projeto propedecircutico-purificador
E de fato se se pode aventar que esse projeto cataacutertico da razatildeo encontra seu ponto de
saiacuteda no expurgo do ceticismo de tipo neoacadecircmico como se percebe nos trecircs livros intitulados
Contra Academicos desenvolve-se sobremodo nas paacuteginas do diaacutelogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monoacutelogo com os Soliloacutequios obras do mesmo periacuteodo
Formato monoloacutegico esse denominado por Dupuy-Trudelle (1998 p 1198) ldquodesdobramentordquo
que eacute bem possiacutevel tenha servido de laboratoacuterio para as proacuteprias Confissotildees sugere a autora
refletindo a intenccedilatildeo de Agostinho apesar da excelecircncia da feacute de levar as exigecircncias da razatildeo
ateacute ao limite extremo num esforccedilo de purificaccedilatildeo num ir-aleacutem das paixotildees e desiludir-se sobre
si mesmo Ora estar iludido acerca de si mesmo natildeo eacute impedimento agrave feacute mas o eacute ao acesso agrave
convicccedilatildeo intelectual verdadeira Portanto para chegar-se ao conhecimento define esta autora
(ibid pp 1198-9) faz-se mister como condiccedilatildeo uacutenica a ldquolibertaccedilatildeo da razatildeo de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesmardquo libertaccedilatildeo a que os Soliloacutequios datildeo curso
Pode-se compreender que para desenlamear a consciecircncia dos similisavoirs libertaacute-
la de toda ilusatildeo psicoloacutegica ensinaacute-la que o desejo da verdade natildeo eacute ainda a posses-
satildeo da verdade permitir-lhe ir aleacutem do conflito de interesses que leva a opiniatildeo a
revoltar-se contra a verdade seja preciso mensurar a distacircncia entre o sujeito e si
mesmo Ora fazecirc-lo eacute um convite a mensurar a distacircncia entre si e o conhecimento de
Deus Eis entatildeo todo o sentido do exerciacutecio proposto pelo ldquosoliloacutequiordquo mensurar uma
e outra19
Natildeo parece haver duacutevidas de que os Soliloacutequios trazem em si de modo embrionaacuterio o estilo
que haveria de consagrar sobretudo a partir das Confissotildees quando entatildeo dispensa o combate
direto de ideias preferindo ldquodesdobrar-serdquo e deixar-se interrogar por si mesmo ainda que de
modo proleacuteptico continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas
Todavia eacute mais que provaacutevel que esta exigecircncia natildeo tenha surgido do nada e sim pertenccedila a
um projeto filosoacutefico maior que englobe as demais obras de Cassiciacuteaco sendo-lhe entatildeo um
como que desenvolvimento natural
No proacutelogo do De ordine (13-4) Agostinho argumenta que o homem por ser um des-
conhecido de si mesmo natildeo consegue perceber a ordem que reina em todo o universo ordem
providencial em que ele estaacute inserido e que para conseguir conhecer-se seria necessaacuterio entrar
em si mesmo ali permanecendo afastado dos sentidos lugar em que poderia entatildeo curar-se das
feridas que as opiniotildees vulgares infligem agrave alma seja pelo ldquofogordquo do ldquoisolamentordquo conforme
19 DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Les Confessions Paris Gal-
limard 1998 p 1206
152
se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
153
soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
154
As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
155
menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
156
Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
157
sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
158
(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
159
articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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142
eacute inegociaacutevel resta agrave retoacuterica simular a edificaccedilatildeo duma estrutura especial a linguagem per-
mitindo que pela proacutepria expressatildeo do paradoxo do estranhamento da perplexidade se diga
sem dizer e se natildeo diga dizendo Numa palavra a retoacuterica permite que Agostinho estique a
corda do arco de seu dizer para aleacutem da tensatildeo do compreensiacutevel apodiacutectico para aleacutem do
alcance da razatildeo que seja capaz carreando o leitor consigo de tangenciar o suprarracional a
natildeo dizer irracional pois natildeo desprovido de razatildeo e sim muito aleacutem dela
A primeira das provas da arte ecircthos
Aleacutem das provas loacutegicas que envolviam mateacuterias e meacutetodos cujo apelo se voltava pri-
mordialmente a natildeo dizer exclusivamente para a razatildeo a retoacuterica reconhecia outros meios de
prova pois se dera conta havia muito de que as pessoas natildeo satildeo apenas dotadas de capacidade
racional mas tambeacutem de sentimentos e de vontade pelo que se fazia necessaacuterio lidar com elas
natildeo como deveriam ser mas como realmente eram lembram Corbett e Connors (1999 p 72)
Destarte tomando por base a definiccedilatildeo aristoteacutelica de que a retoacuterica eacute a arte de descobrir todos
os meios possiacuteveis de persuasatildeo8 torna-se oacutebvio o recurso a tudo aquilo que se comprove efi-
ciente para esse fim Neste sentido afianccedilam esses autores o apelo eacutetico pode ser mais eficaz
que o apelo agrave razatildeo pois
mesmo o mais engenhoso e sensato apelo agrave razatildeo pode fracassar diante de ouvidos
amoucos se a audiecircncia reagiu desfavoravelmente ao caraacuteter do orador O apelo eacutetico
eacute especialmente importante no discurso retoacuterico porque aqui estamos lidando com
assuntos acerca dos quais eacute impossiacutevel ter-se certeza absoluta e em que as opiniotildees
satildeo divididas
Com efeito o ecircthos prova teacutecnica que se erige a partir do caraacuteter moral do orador segundo
reconhecia Aristoacuteteles (1356a13) constitui-se no meio mais eficaz de prova (κυριωτάτην ἔχει
πίστιν τὸ ἦθος)
Quintiliano por sua vez em suas Instituiccedilotildees Oratoacuterias (3813) adotando integral-
mente a teoria aristoteacutelica argumenta que dos trecircs gecircneros de discurso o deliberativo era o que
mais necessitava do apelo eacutetico ou seja o discurso que mais se apoiava no caraacuteter do orador
que ele denominava auctoritas
Nas deliberaccedilotildees poreacutem a autoridade eacute o que possui maior valor Com efeito natildeo
apenas deve ser considerado muitiacutessimo prudente como tambeacutem muitiacutessimo virtuoso
todo aquele que deseje que todos acreditem nos seus pensamentos acerca das coisas
8 (1355b25-6) ldquoSeja entatildeo a retoacuterica a faculdade de considerar acerca de cada coisa o que eacute possivelmente
persuasivordquo (ἔστω δὴ ἡ ῥητορικὴ δύναμις περὶ ἕκαστον τοῦ θεωρῆσαι τὸ ἐνδεχόμενον πιθανόν)
143
proveitosas e dignas de honra [] natildeo haacute quem negue que as deliberaccedilotildees satildeo feitas
segundo os caracteres dos oradores9
Em conformidade com o que se argumentou um pouco antes a partir das consideraccedilotildees do
proacuteprio Aristoacuteteles acerca da mistura de gecircneros retoacutericos (1358b27-1359a4) sobre a predomi-
nacircncia do gecircnero epidiacutectico nas Confissotildees eacute perceptiacutevel natildeo apenas a importacircncia do apelo
eacutetico que natildeo eacute das menores por tratar-se duma obra primordialmente na primeira pessoa e
que sob certo ponto de vista quer falar de si mas principalmente pelo que se disse acerca de
um dos objetivos da obra de caraacuteter ldquodeliberativordquo ou antes de caraacuteter ldquopastoralrdquo de mover
as almas para Deus (conuersio ad deum) ao modo dum loacutegos protreacuteptico afastando-as do pe-
cado e de tudo que as manteacutem distantes do Bem (auersio a bono) objetivo que se cumpre
escorado no caraacuteter eacutetico que se esforccedilou por burilar ao longo primordialmente dos livros ditos
autobiograacuteficos da obra De fato natildeo obteacutem ecircxito na pretensatildeo de exortar (προτρέπω) para
Deus senatildeo aquele que se deixou dissuadir (ἀποτρέπω) do caminho do pecado que compro-
vou sua humildade (humilitas) na aceitaccedilatildeo natildeo do poder de seu livre-arbiacutetrio e sim da Graccedila
divina cujas Justiccedila e Misericoacuterdia se amalgamam na Sabedoria una e indivisiacutevel do Ser ao
inveacutes de se anularem pela contradiccedilatildeo Natildeo se trata de reconhecer-se purificado trata-se mui-
tiacutessimo ao contraacuterio de reconhecer-se pecador carente da Graccedila e incapacitado de autossalva-
ccedilatildeo numa palavra trata-se de diminuir-se ao modo do ldquoesvaziamentordquo (κένωσις) de Cristo
que embora possuindo uma forma divina (ἐν μορφῇ θεοῦ) esvaziou-se a si mesmo segundo
Paulo assumindo uma forma de escravo e fazendo-se semelhante aos homens pelos quais se
humilhou e obedientemente deixou-se matar na cruz10 Esse o ecircthos cristatildeo portador das virtu-
des dignas de imitaccedilatildeo invertidas quanto pudessem parecer a um auditoacuterio pagatildeo da eacutepoca
para o qual nem a misericoacuterdia tampouco a humildade eram considerados valores morais dese-
jaacuteveis e sim fraquezas despreziacuteveis
O orador persuade por seu caraacuteter moral explicava Aristoacuteteles (1356a5) quando seu
discurso eacute de tal modo elaborado que seja capaz de tornaacute-lo digno de credibilidade um homem
em quem pareccedila ser possiacutevel confiar Essa credibilidade contudo natildeo se constroacutei por meio de
elementos extratextuais de ideias preacute-concebidas acerca da conduta eacutetica do orador e sim atra-
veacutes do discurso (1356a8) donde ser considerado o ecircthos uma prova de caraacuteter teacutecnico fruto da
9 Inst oratoriae (3813) ldquoValet autem in consiliis auctoritas plurimum nam et prudentissimus esse haberique
et optimus debet qui sententiae suae de utilibus atque honestis credere omnes uelit [] consilia nemo est qui
neget secundum mores darirdquo 10 Paulo (Fl 25-8) ldquoΤοῦτο φρονεῖτε ἐν ὑμῖν ὃ καὶ ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων οὐχ
ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ ἀλλὰ ἑαυτὸν ἐκένωσεν μορφὴν δούλου λαβών ἐν ὁμοιώματι ἀνθρώπων γενόμενοςmiddot καὶ σχήματι εὑρεθεὶς ὡς ἄνθρωπος ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν γενόμενος ὑπήκοος μέχρι θανάτου θανάτου δὲ σταυροῦrdquo
144
arte Isso se daacute explica o filoacutesofo porque quando se estaacute tratando de temas de caraacuteter geral via
de regra a confianccedila se estabelece sobre as opiniotildees das pessoas cujo valor eacute notoacuterio poreacutem
quando os temas satildeo incertos duvidosos (τὸ ἀμφιδοξεῖν) aiacute entatildeo como que desprovido de
alternativas resta ao auditoacuterio tatildeo soacute a confianccedila quase que total e irrestrita (παντελῶς) na-
queles cujos caracteres ou comprovou-se destacar-se ou lograram aparentar fazecirc-lo E sobre
que versam as Confissotildees em linhas gerais como jaacute se apontou antes senatildeo sobre o tema natildeo-
apodiacutectico por excelecircncia Deus Donde ser liacutecito dizer que pelo prisma da retoacuterica Agostinho
empreende um enorme esforccedilo de construccedilatildeo dum ecircthos apropriado a falar de Deus E de fato
se se pretende falar de tema natildeo apenas duvidoso retoacuterico mas inefaacutevel como o Ser de que
modo evadir-se do estribo do ecircthos Se o tema fosse apodiacutectico o caraacuteter do orador talvez
restasse menos relevante poreacutem natildeo num tema em que as provas demonstrativas satildeo pratica-
mente inexistentes
Para ressaltar o caraacuteter moral de algueacutem que se queira elogiar seja o do proacuteprio orador
ou natildeo lembra Aristoacuteteles (1367b22-27) eacute preciso associar as suas accedilotildees (as quais se empre-
ende louvar) agraves suas intenccedilotildees a fim de demonstrar seu valor porque o louvor (ἔπαινος) se tira
das accedilotildees (ἐκ τῶν πράξεων) desde que este aja em conformidade com suas determinaccedilotildees
morais (κατὰ προαίρεσιν) E se o homem de valor age segundo suas proacuteprias determinaccedilotildees
depreende-se que o homem cujo valor eacute nulo aja determinado isto eacute conduzido pelo destino
pela sorte (ἀπὸ τύχης) e que o homem cujo valor eacute repreensiacutevel exemplo que o filoacutesofo natildeo
daacute mas cujo raciociacutenio permite avanccedilar agiria tambeacutem motivado por suas determinaccedilotildees mo-
rais as quais contudo seriam maacutes O que importa no que tange ao ecircthos eacute que se deve mostrar
que aquele que se estaacute louvando age de acordo com suas determinaccedilotildees e natildeo ao acaso o que
lhe tiraria todo o meacuterito meacuterito que caberia entatildeo agrave fortuna (τύχη) uma vez que as accedilotildees natildeo
praticadas de modo voluntaacuterio natildeo satildeo meritoacuterias em conformidade com o que Agostinho tam-
beacutem admitia11 Portanto o conselho de Aristoacuteteles ao orador que quer construir o seu proacuteprio
ecircthos ou o de algum outro eacute tornar todas as accedilotildees possiacuteveis inclusive as decorrentes da sorte
mdash o que natildeo seria nada honesto admite o filoacutesofo mdash fruto do meacuterito daquele que se quer
enaltecer o que seria sinal de homem resoluto decidido (σημεῖον ἀρετῆς εἶναι προαιρέσεως)
No entanto esse conselho natildeo apenas natildeo eacute seguido por Agostinho e pelo discurso cristatildeo de
modo geral como ao reveacutes o exato oposto eacute o que se potildee em praacutetica ao atribuir-se tudo agrave
Graccedila divina agrave bondade preexistente daquele que natildeo precisou de nenhuma das criaturas que
criou as quais jamais fizeram por merecer o dom da vida (Conf 1311) ldquoPorque antes que eu
11 O livre arbiacutetrio (11430101) ldquoIn uoluntate meritum sitrdquo
145
existisse existias tu e eu nem existia para que me concedesses que eu existisserdquo12 Isso eacute feito
contudo natildeo em detrimento do ecircthos da construccedilatildeo dum caraacuteter digno de louvor e fidedigno
e sim para construir um caraacuteter cristatildeo ou seja um caraacuteter natildeo pautado pela taacutebua de valores
eacuteticos claacutessicos que atribuiacutea grande peso agrave gloacuteria agrave honra ao denodo guerreiro e agrave justiccedila
inflexiacutevel e fria da lei13 e sim para destacar o homem jaacute de tipo medieval manso e humilde de
coraccedilatildeo misericordioso ao ponto de voltar a outra face numa palavra homem cuja honra estava
na cruz e no sangue de seu Salvador e para o qual ldquoo insensato de Deusrdquo era ldquomais saacutebio que
os homens e o fraco de Deus mais forte que os homensrdquo14 O ecircthos pois que se quer construir
eacute o do homem de feacute que se deixa conduzir pela matildeo de Deus na praacutetica das virtudes ditas
teologais feacute esperanccedila e caridade (πίστις ἐλπίς ἀγάπη) (1Cor 1313) O homem comumente
se orgulha das coisas que faz por si proacuteprio (τοῖς διrsquo αὐτόν) lembra Aristoacuteteles mas natildeo se
orgulha do que o destino lhe trouxe (διὰ τύχην) (1368a3-4) Agostinho bastante ao contraacuterio
natildeo apenas natildeo se orgulha do que fez mas se arrepende amargamente preferindo ao inveacutes da
honra agradecer a Deus todo o bem que lhe sucedeu por seu intermeacutedio divino ldquoe assim Se-
nhor apagaste todos os meus merecidos males para que natildeo retribuiacutesses agraves minhas matildeos nas
quais te deixei e te antecipaste a todos os meus merecidos bens para que retribuiacutesses agraves tuas
matildeos com as quais me fizesterdquo15
Destarte das trecircs qualidades independentes de demonstraccedilatildeo (ἔξω τῶν ἀποδείξεων)
que Aristoacuteteles aponta (1378a) como necessaacuterias ao orador ainda que em aparecircncia somente a
fim de que seja convincente o que de modo principal se refere agraves assembleias ou ao conselho
instacircncias tiacutepicas de deliberaccedilatildeo na Greacutecia antiga 1 prudecircncia ou bom-senso (φρόνησις) 2
excelecircncia moral (ἀρετή) e 3 boa disposiccedilatildeo (εὔνοια) nenhuma delas guarda nas Confissotildees
a importacircncia que o estagirita lhe atribui a natildeo ser que se considerem as virtudes ditas teologais
como pertencentes ao rol das aretaiacute aristoteacutelicas o que seria no miacutenimo um grave anacronismo
Por fim a Retoacuterica destaca o papel do ecircthos na disposiccedilatildeo das mateacuterias (τάξις) de modo
especiacutefico no proecircmio (exordium) Nos discursos do gecircnero judiciaacuterio por exemplo aquele que
se defende (ἀπολογουμένῳ) deve fazecirc-lo logo no proecircmio (πρῶτον) antes da acusaccedilatildeo ao
contraacuterio de quem acusa que deve fazecirc-lo no final (τῷ ἐπιλόγῳ) porque aquele que defende
deve construir seu ecircthos no iniacutecio antes da acusaccedilatildeo (πρὸς τὴν διαβολήν) (1415a29-30) a
12 Confissotildees (1311) ldquoquia et priusquam essem tu eras nec eram cui praestares ut essemrdquo 13 Em conformidade com a ideia veiculada pela maacutexima romana ldquodura sed lexrdquo 14 Paulo (1Cor 121-25) ldquoὅτι τὸ μωρὸν τοῦ θεοῦ σοφώτερον τῶν ἀνθρώπων ἐστὶν καὶ τὸ ἀσθενὲς τοῦ
θεοῦ ἰσχυρότερον τῶν ἀνθρώπωνrdquo 15Confissotildees (1311) ldquoEtenim domine deleuisti omnia mala merita mea ne retribueres manibus meis in
quibus a te defeci et praeuenisti omnia bona merita mea ut retribueres manibus tuis quibus me fecistirdquo
146
fim de livrar-se de todo impedimento ou embaraccedilo como faz Agostinho nas Confissotildees utili-
zando-se dos primeiros livros ditos biograacuteficos para tanto Se o acusador deve criar o precon-
ceito contra o acusado no fim para que permaneccedila bem presente na memoacuteria dos juiacutezes o
defendente deve desvencilhar-se do preconceito logo no iniacutecio a fim de que seus argumentos
satildeo sejam prejudicados pela imagem da pecha moral que traz consigo Natildeo eacute apenas para o
ecircthos que o proecircmio eacute importante mas tambeacutem para o paacutethos pois eacute preciso tornar o auditoacuterio
bem disposto em relaccedilatildeo ao orador se se estaacute defendendo ou tornaacute-lo indisposto contra a outra
parte (1415a-34-36) se se estaacute acusando Para isso conta muito a aparecircncia de respeitabilidade
do falante pois ldquoas pessoas respeitaacuteveis recebem mais atenccedilatildeordquo diz Aristoacuteteles Pelo que o
orador deve esforccedilar-se por conseguir duas coisas do auditoacuterio 1 amizade (φίλον) e 2 com-
paixatildeo (ἐλεεινόν) (1415b22-28) tornaacute-lo amigo e compassivo fazendo-o crer que ele mesmo
o orador sente exatamente aquilo que censura ou louva ou seja que estaacute sendo sincero
(1415b28-29) Ora como falar da Graccedila de Deus sem que se recorra ao testemunho pessoal
pois a Graccedila diferentemente da recompensa ou do salaacuterio (merces) eacute distribuiacuteda gratuitamente
para o que por paradoxal pareccedila faz-se necessaacuterio ser pecador numa palavra estar desprovido
de qualquer meacuterito que o tornaria credor ao inveacutes de devedor meacuterito que poderia confundi-la
a Graccedila com pagamento ou retribuiccedilatildeo Evidente que se trata dum exagero pois os que tecircm
meacuterito natildeo estatildeo de modo nenhum excluiacutedos da Graccedila jaacute que natildeo faz muito sentido que natildeo
receba sem meacuterito16 senatildeo quem natildeo mereccedila
Seja como for esse ecircthos de sinceridade logra construir com bastante esmero Agostinho
ao reconhecer-se pecador devedor pequenino desprovido de meacuteritos e absolutamente depen-
dente da bondade da Providecircncia divina que se expressa pela Graccedila gratis
A segunda das provas da arte paacutethos
A movimentaccedilatildeo das emoccedilotildees (πάθος) embora uma prova (πίστις) que se diz teacutecnica
ou ldquoda arterdquo (ἔντεχνος) de modo aparentemente paradoxal natildeo tem que ver diretamente com
as provas demonstrativas ou com a causa em si e sim respeita aos juiacutezes (δικασταί) explica
Aristoacuteteles (1354a4-5)17 De fato o orador alcanccedila a persuasatildeo seja em que gecircnero for (o que
16 Isto eacute gratuitamente 17 Aristoacuteteles natildeo era muito simpaacutetico nem ao apelo eacutetico tampouco ao emocional que julgava ser um mal
necessaacuterio pois considerava errado manipular os sentimentos dos juiacutezes o que equivalia a corromper a proacutepria lei
que se tentava fazer valer ou de que se queria socorrer (1356a14) Argumento muito parecido esse (de destruir a
proacutepria lei a que se deveraacute recorrer depois) com o utilizado por Soacutecrates ao negar a proposta de fuga de Criacuteton no
diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo (50a-b) Pois bem no iniacutecio do tratamento da hupoacutekrisis (1403b22-) Aristoacuteteles
147
natildeo exclui nem o epidiacutectico tampouco o deliberativo) mediatamente por meio dos ouvintes
(διὰ τῶν ἀκροατῶν) aqueles aos quais se dirige quando recorre ao paacutethos despertando ou
dirigindo suas emoccedilotildees (ὅταν εἰς πάθος) o que se faz pela accedilatildeo discursiva (ὑπὸ τοῦ λόγου)
Isso porque os juiacutezos (τὰς κρίσεις) dos ouvintes objetivo da accedilatildeo persuasiva variam sob a
influecircncia das emoccedilotildees tais como a dor (λύπη) a alegria (χαρά) a amizade (φιλία) o oacutedio
(μῖσος) etc Com efeito o orador natildeo tem por escopo a emoccedilatildeo do auditoacuterio em si mesma como
finalidade e sim a sua persuasatildeo a fim de que decida em favor de sua causa para o que as
emoccedilotildees cooperam vivamente como percebeu Aristoacuteteles ao dedicar grande parte do livro
segundo da Retoacuterica ao estudo das paixotildees da alma
Um dos meios mais eficazes para a movimentaccedilatildeo do paacutethos a fim de que se tenha ecircxito
no apelo emocional em vista dum fim ulterior natildeo satildeo as provas demonstrativas recomendadas
para o gecircnero apropriado (o judiciaacuterio no caso) o entimema e as maacuteximas provas que devem
ser descobertas na invenccedilatildeo e sim os recursos pertencentes a outra parte da retoacuterica a elocuccedilatildeo
(λέξις) Com efeito depois de encontrado o que dizer (εὕρεσις) e disposto as mateacuterias de modo
apropriado (τάξις) resta saber como dizecirc-lo Esse ldquocomordquo respeita sem duacutevida agrave forma do dis-
curso que se chama tambeacutem ldquoestilordquo poreacutem de modo nenhum se limita a isso como se fosse
apenas uma sua vestimenta Os recursos da elocuccedilatildeo para muito aleacutem da ornamentaccedilatildeo tecircm
forccedila persuasiva pois argumentam seja pela concisatildeo das figuras seja pelo ritmo e paralelismo
das construccedilotildees seja pelas imagens que evocam o que fazem de modo principal pondo em
destaque tanto o ecircthos como o paacutethos O ecircthos por exemplo no emprego do leacutexico que quando
recheado de estrangeirismos (ξένην ποιεῖν τὴν διάλεκτον) (1404b10-12) diz Aristoacuteteles con-
fere um ar de dignidade ao discurso promovendo por tabela o orador que se faz parecer digno
e nobre assim como aquilo que estaacute dizendo O paacutethos por sua vez quando o discurso eacute ldquoele-
vadordquo a um niacutevel suprarracional ou sublime pelo uso de recursos poeacuteticos dentre os quais se
destacam as figuras de repeticcedilatildeo como paralelismos epanalepses anadiploses antanaacuteclases
reconhece que tudo aquilo que respeita agrave apresentaccedilatildeo do discurso como voz volume tom altura ritmo harmo-
nia entre tais e que eacute muito importante nos certames dramaacuteticos e eacutepicos (τῶν ἀγώνων) quando entatildeo faz-se
necessaacuterio equilibrar esses elementos segundo cada uma das emoccedilotildees (πρὸς ἕκαστον πάθος) embora seja tam-
beacutem utilizado nas demais atividades poliacuteticas como assembleias deliberativas e tribunais o eacute apenas de modo
deploraacutevel Isso porque conquanto seja necessaacuterio mover as paixotildees do auditoacuterio e construir o caraacuteter do orador
discursivamente essa necessidade se deve tatildeo soacute agrave corrupccedilatildeo dos cidadatildeos (διὰ τὴν μοχθηρίαν τῶν πολιτῶν)
(1403b34-35) o que equivale a dizer do auditoacuterio (τοῦ ἀκροατοῦ) Assim sendo o recurso tanto ao ecircthos como
ao paacutethos deixa de ser questatildeo de correccedilatildeo (οὐκ ὀρθῶς) de certo ou errado passando a ser uma necessidade (ἀλλrsquo
ὡς ἀναγκαίου) Com efeito o justo (δίκαιον) seria defender acusar exortar e dissuadir movido apenas pelos
fatos (ἀγωνίζεσθαι τοῖς πράγμασιν) (1404a5-6) de maneira tal que o restante que Aristoacuteteles reputa fora da
demonstraccedilatildeo (ἔξω τοῦ ἀποδεῖξαι) ο que inclui ecircthos e paacutethos seria superfluidade (περίεργα ἐστίν) (1404a8)
Infelizmente poreacutem a realidade eacute que o orador precisa conhecer estes recursos a fim de poder defender-se e atingir
seus objetivos uma vez que os adversaacuterios certamente lanccedilam matildeo deles de modo quase sempre inescrupuloso
148
paronomaacutesias antimetaacuteboles poliptotos etc E fique claro que dizer que Aristoacuteteles natildeo via com
bons olhos o (mau) recurso aos apelos eacutetico e pateacutetico nos tribunais natildeo significa dizer que
desprezasse os mecanismos da elocuccedilatildeo o que implicaria dizer que cresse o homem ser dotado
apenas de razatildeo excluiacutedos sentimentos e caraacuteter a natildeo dizer da vontade Ao contraacuterio Aristoacute-
teles bem reconhecia que em todo tipo de aprendizado (ἐν πάσῃ διδασκαλίᾳ) o estilo se faz
mateacuteria de certa importacircncia uma vez que algo se torna claro (πρὸς τὸ δηλῶσαι) por meio do
modo como eacute dito (ὡδὶ ἢ ὡδὶ εἰπεῖν) embora relegasse a questatildeo do estilo ao niacutevel da aparecircn-
cia (ἀλλrsquo ἅπαντα φαντασία ταῦτrsquo εστὶ) cuja finalidade seria apenas agradar o ouvinte (πρὸς
τὸν ἀκροατήν) ouvinte esse por sua vez cuja corrupccedilatildeo (μοχθηρία) seria a verdadeira causa
de tudo que natildeo eacute apodiacutectico na retoacuterica (1404a7-8) Em assim sendo o estilo (λέξις) seria um
mal necessaacuterio uma ferramenta que embora potencialmente injusta seria uacutetil para conferir
clareza ao discurso assim como todos os demais elementos de persuasatildeo natildeo-apodiacutecticos ou
extrademonstrativos E isso se justifica diz o filoacutesofo de modo peremptoacuterio porque ningueacutem
ensina a fazer geometria desse modo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) isto eacute nem pelo
recurso ao paacutethos nem pelo ecircthos tampouco por qualquer outra ferramenta indicada para a
elocuccedilatildeo como as figuras (1404a12) Compreende-se essa visatildeo deveras depreciativa da elo-
cuccedilatildeo por parte do filoacutesofo pois como ele mesmo diz no terceiro livro de sua Retoacuterica ao
empreender o tratamento da actio ou representaccedilatildeo do discurso (ὑπόκρισις) ateacute ao tempo da
escritura da obra natildeo havia ainda nenhuma arte isto eacute nenhum manual de retoacuterica voltado para
a mateacuteria (οὔπω δὲ σύγκειται τέχνη περὶ αὐτῶν) porque a leacuteksis soacute havia sido notada pou-
quiacutessimo antes (ἐπεὶ καὶ τὸ περὶ τὴν λέξιν ὀψὲ προῆλθεν) descaso que se justificava pelo fato
de o estilo mdash considerado entatildeo como mera ornamentaccedilatildeo do discurso mdash ser julgado inferior
(φορτικὸν) tema indigno das preocupaccedilotildees dum homem livre criacutetica que natildeo evita endossar o
filoacutesofo (καλῶς ὐπολαμβανόμενον) (1403b35-6)
A despeito desta postura criacutetica adotada por Aristoacuteteles e de seu juiacutezo negativo a respeito
do ecircthos e do paacutethos postura raramente admitida pelos estudiosos atuais da retoacuterica o que
importa para os fins deste artigo contudo eacute seu poder argumentativo uma vez que sua impor-
tacircncia natildeo pode ser negada seja ela justificada ou natildeo de par com a finalidade filosoacutefica que
lhes imprime o rhetor de Hipona Portanto justo ou natildeo (nos tribunais e assembleias) o fato
admitido por Aristoacuteteles eacute que a elocuccedilatildeo afeta sobremodo o paacutethos sendo de par com o ecircthos
reconhecido como a mais persuasiva (κυριωτάτη) das provas (1356a13) altamente eficaz para
os objetivos da argumentaccedilatildeo pois resta claro que por meio do estilo se consegue mover as
emoccedilotildees (1408a16) seja quando se fala com indignaccedilatildeo audaciosa (ὕβρις) seja com raiva
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(ὁργιζομένου) impiedade (ἀσεβή) ou vergonha (αἰσχρά) O estilo adequado (ἡ οἰκεία λέξις)
que eacute aquele em que os elementos do paacutethos (παθητική) e do ecircthos (ἠθική) satildeo proporcionais
(ἀνάλογον) aos temas subjacentes (τοῖς ὐποκειμένοις πράγμασιν) (1408a10-11) faz com
que um dado assunto seja mais persuasivo Aleacutem disso remata Aristoacuteteles o ouvinte sempre
simpatiza (συνομοπαθεῖ ὁ ἀκούων) com quem fala de modo emocional (παθητικῶς
λέγοντι) ainda que esse natildeo diga nada (κἂν μηθὲν λέγῃ) (1408a23-4)
Reconhecido o vigor (δύναμις) natildeo apenas pateacutetico mas tambeacutem argumentativo da elo-
cuccedilatildeo resta ver como Agostinho se utiliza de seus recursos nas Confissotildees a fim de atingir seus
objetivos numa palavra a fim de fazer filosofia Pois bem as descriccedilotildees que melhor instigam
as emoccedilotildees satildeo as que fazem apelo agrave imaginaccedilatildeo e aos sentidos descriccedilotildees viacutevidas de cenas e
eventos contam muito como o famigerado roubo das peras (Conf 249) a prisatildeo de Aliacutepio
(6914) ou a cena do jardim de Milatildeo (81125-27) por exemplo as inumeraacuteveis metaacuteforas e a
prosopopeia de oacutergatildeos humanos que passam a ser dotados de matildeos pernas ouvidos como as
matildeos do coraccedilatildeo que se estendem em prece a Deus os relatos de laacutegrimas pungentes que se
vertem repetidas vezes enfim descriccedilotildees essas que tecircm potencial enorme para despertar fortes
sentimentos Do mesmo modo o uso de hipeacuterboles e outras tantas figuras se faz extremamente
uacutetil para criar o efeito emocional desejado Todavia nada talvez seja tatildeo eficiente nesse sentido
quanto o vocabulaacuterio o uso de palavras carregadas de intensa conotaccedilatildeo pateacutetica E no apelo
agraves emoccedilotildees pode-se dizer esteja uma das chaves de leitura das Confissotildees ao menos retoacuterica
De fato a linguagem da obra estaacute repleta de figuras cujo efeito principal eacute o despertar dos
sentimentos Mas de quem e para quecirc A sua audiecircncia soacute pode ser depreendida de modo in-
direto por meio da linguagem do estilo e do tema o que natildeo se constitui tarefa das mais faacuteceis
por tratar-se de obra multifacetada de linguagem muito elaborada que prima pela sofisticaccedilatildeo
mas que natildeo despreza uma certa tonalidade menos erudita que se pode ateacute denominar em
alguma medida popular ou humilde De fato pelo recurso aos salmos e textos escrituraacuterios
com seu respectivo campo semacircntico permeado de expressotildees da liacutengua grega vulgar (κοινή)
traduzidas ou transliteradas em latim conhecidos de toda comunidade cristatilde natildeo apenas por
serem lidos mas principalmente por sua funccedilatildeo lituacutergica eacute sem duacutevida uma linguagem
(sermo) popular ou humilis todavia pelos mecanismos retoacutericos extremamente requintados e
pelas referecircncias a toda uma cultura filosoacutefica de par com uma argumentaccedilatildeo em muitas pas-
sagens nada singela especialmente nos livros 1 8 e de 9 a 13 pode-se considerar igualmente
elevadiacutessima Portanto humilde e elevada eacute a linguagem das Confissotildees constituindo em si
mesma um oximoro
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Diante desse desafio de escrever tanto para a gente mais simples como para filoacutesofos
desafio que se exprime nesse caso pela linguagem supotildee-se que Agostinho natildeo tenha simples-
mente pretendido abaixar o registro de seu discurso descendo aos simples e pequeninos (ad
catechizandos rudes) muito ao contraacuterio ao que parece pretendia elevar-se ou melhor ser
elevado ao confessar-se arrependido penitenciando-se mas tambeacutem ao confessar sua feacute e seu
louvor enaltecendo e reconhecendo a graccedila de Deus em sua vida Em sendo assim ao ser ele-
vado por Deus pela confissatildeo pretende igualmente mover as almas incitando-lhes semelhante
elevaccedilatildeo ou quando natildeo o desejo de elevaccedilatildeo desejo de que se deixassem igualmente elevar
como ele confessava desejar o que se pode considerar sem duacutevida uma meta de caraacuteter pastoral
Portanto sua missatildeo quanto ao paacutethos eacute tambeacutem a de mover as almas agrave salvaccedilatildeo que
se pode sintetizar na vontade de ser elevado e de para lanccedilar matildeo duma contradiccedilatildeo merecer
por uma espeacutecie de ascese cataacutertica a graccedila divina a misericoacuterdia do Deus justiacutessimo Ora
disso decorre a possibilidade duma outra funccedilatildeo da linguagem extremamente comovente fruto
dos recursos da elocuccedilatildeo a que recorre Agostinho nas Confissotildees e interligada com essa funccedilatildeo
dita pastoral de elevar as almas uma funccedilatildeo que se pode compreender como simultaneamente
propedecircutica e filosoacutefica Com efeito se uma das funccedilotildees deste paacutethos que se diz de caraacuteter
pastoral pretende comover positiva e negativamente incitando a um soacute tempo o desejo de
salvaccedilatildeo e o de horror agrave perdiccedilatildeo o desejo de buscar Deus e de evitar o mal de buscar ser mais
pela proximidade do Ser supremo e de evitar ser menos ou deixar de ser pelo afastamento desse
mesmo Ser como se percebe sobremodo nos livros da parte considerada biograacutefica da obra o
que natildeo implica de modo algum a exclusatildeo dos restantes livros a outra funccedilatildeo por sua vez
relacionada intimamente agrave primeira de que se pode dizer seja consequecircncia natural que se
exacerba tambeacutem a partir dos recursos da elocuccedilatildeo e que como se disse tem caraacuteter prope-
decircutico compreende-se como uma funccedilatildeo de purificaccedilatildeo filosoacutefica de afastamento progressivo
das coisas deste mundo de afastamento da ldquocarnerdquo se se pode dizer tendo em vista o despren-
dimento rumo a uma vida mais espiritual de proximidade com o Ser o puro Inteligiacutevel que se
transubstancia por sua vez num projeto de vivecircncia cristatilde o que se destaca sobremodo a partir
do livro novo encontrando sua foz nos estertores do livro derradeiro Donde ser liacutecito afirmar
que os livros da parte biograacutefica das Confissotildees do primeiro ao oitavo tecircm tambeacutem essa fun-
ccedilatildeo de purificaccedilatildeo tanto das emoccedilotildees como da razatildeo ou seja de disciplinar ou exercitar asce-
ticamente a alma (exercitatio animi)18 a fim de que os leitores e ouvintes pudessem estar pre-
parados para o que havia de vir nos livros subsequentes E isso parece estar em harmonia com
18 Ἥ ἄσκησις ἥ τῆς ψυχῆς
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o projeto filosoacutefico platocircnico-cristatildeo que Agostinho tinha para sua vida e que colocou em praacute-
tica desde os tempos preacute-batismais de Cassiciacuteaco ateacute ser interrompido pela sua consagraccedilatildeo
sacerdotal (391 dC) um projeto propedecircutico-purificador
E de fato se se pode aventar que esse projeto cataacutertico da razatildeo encontra seu ponto de
saiacuteda no expurgo do ceticismo de tipo neoacadecircmico como se percebe nos trecircs livros intitulados
Contra Academicos desenvolve-se sobremodo nas paacuteginas do diaacutelogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monoacutelogo com os Soliloacutequios obras do mesmo periacuteodo
Formato monoloacutegico esse denominado por Dupuy-Trudelle (1998 p 1198) ldquodesdobramentordquo
que eacute bem possiacutevel tenha servido de laboratoacuterio para as proacuteprias Confissotildees sugere a autora
refletindo a intenccedilatildeo de Agostinho apesar da excelecircncia da feacute de levar as exigecircncias da razatildeo
ateacute ao limite extremo num esforccedilo de purificaccedilatildeo num ir-aleacutem das paixotildees e desiludir-se sobre
si mesmo Ora estar iludido acerca de si mesmo natildeo eacute impedimento agrave feacute mas o eacute ao acesso agrave
convicccedilatildeo intelectual verdadeira Portanto para chegar-se ao conhecimento define esta autora
(ibid pp 1198-9) faz-se mister como condiccedilatildeo uacutenica a ldquolibertaccedilatildeo da razatildeo de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesmardquo libertaccedilatildeo a que os Soliloacutequios datildeo curso
Pode-se compreender que para desenlamear a consciecircncia dos similisavoirs libertaacute-
la de toda ilusatildeo psicoloacutegica ensinaacute-la que o desejo da verdade natildeo eacute ainda a posses-
satildeo da verdade permitir-lhe ir aleacutem do conflito de interesses que leva a opiniatildeo a
revoltar-se contra a verdade seja preciso mensurar a distacircncia entre o sujeito e si
mesmo Ora fazecirc-lo eacute um convite a mensurar a distacircncia entre si e o conhecimento de
Deus Eis entatildeo todo o sentido do exerciacutecio proposto pelo ldquosoliloacutequiordquo mensurar uma
e outra19
Natildeo parece haver duacutevidas de que os Soliloacutequios trazem em si de modo embrionaacuterio o estilo
que haveria de consagrar sobretudo a partir das Confissotildees quando entatildeo dispensa o combate
direto de ideias preferindo ldquodesdobrar-serdquo e deixar-se interrogar por si mesmo ainda que de
modo proleacuteptico continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas
Todavia eacute mais que provaacutevel que esta exigecircncia natildeo tenha surgido do nada e sim pertenccedila a
um projeto filosoacutefico maior que englobe as demais obras de Cassiciacuteaco sendo-lhe entatildeo um
como que desenvolvimento natural
No proacutelogo do De ordine (13-4) Agostinho argumenta que o homem por ser um des-
conhecido de si mesmo natildeo consegue perceber a ordem que reina em todo o universo ordem
providencial em que ele estaacute inserido e que para conseguir conhecer-se seria necessaacuterio entrar
em si mesmo ali permanecendo afastado dos sentidos lugar em que poderia entatildeo curar-se das
feridas que as opiniotildees vulgares infligem agrave alma seja pelo ldquofogordquo do ldquoisolamentordquo conforme
19 DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Les Confessions Paris Gal-
limard 1998 p 1206
152
se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
153
soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
154
As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
155
menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
156
Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
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sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
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(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
159
articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
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gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
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todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
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o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
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Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
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da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
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das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
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O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
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Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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143
proveitosas e dignas de honra [] natildeo haacute quem negue que as deliberaccedilotildees satildeo feitas
segundo os caracteres dos oradores9
Em conformidade com o que se argumentou um pouco antes a partir das consideraccedilotildees do
proacuteprio Aristoacuteteles acerca da mistura de gecircneros retoacutericos (1358b27-1359a4) sobre a predomi-
nacircncia do gecircnero epidiacutectico nas Confissotildees eacute perceptiacutevel natildeo apenas a importacircncia do apelo
eacutetico que natildeo eacute das menores por tratar-se duma obra primordialmente na primeira pessoa e
que sob certo ponto de vista quer falar de si mas principalmente pelo que se disse acerca de
um dos objetivos da obra de caraacuteter ldquodeliberativordquo ou antes de caraacuteter ldquopastoralrdquo de mover
as almas para Deus (conuersio ad deum) ao modo dum loacutegos protreacuteptico afastando-as do pe-
cado e de tudo que as manteacutem distantes do Bem (auersio a bono) objetivo que se cumpre
escorado no caraacuteter eacutetico que se esforccedilou por burilar ao longo primordialmente dos livros ditos
autobiograacuteficos da obra De fato natildeo obteacutem ecircxito na pretensatildeo de exortar (προτρέπω) para
Deus senatildeo aquele que se deixou dissuadir (ἀποτρέπω) do caminho do pecado que compro-
vou sua humildade (humilitas) na aceitaccedilatildeo natildeo do poder de seu livre-arbiacutetrio e sim da Graccedila
divina cujas Justiccedila e Misericoacuterdia se amalgamam na Sabedoria una e indivisiacutevel do Ser ao
inveacutes de se anularem pela contradiccedilatildeo Natildeo se trata de reconhecer-se purificado trata-se mui-
tiacutessimo ao contraacuterio de reconhecer-se pecador carente da Graccedila e incapacitado de autossalva-
ccedilatildeo numa palavra trata-se de diminuir-se ao modo do ldquoesvaziamentordquo (κένωσις) de Cristo
que embora possuindo uma forma divina (ἐν μορφῇ θεοῦ) esvaziou-se a si mesmo segundo
Paulo assumindo uma forma de escravo e fazendo-se semelhante aos homens pelos quais se
humilhou e obedientemente deixou-se matar na cruz10 Esse o ecircthos cristatildeo portador das virtu-
des dignas de imitaccedilatildeo invertidas quanto pudessem parecer a um auditoacuterio pagatildeo da eacutepoca
para o qual nem a misericoacuterdia tampouco a humildade eram considerados valores morais dese-
jaacuteveis e sim fraquezas despreziacuteveis
O orador persuade por seu caraacuteter moral explicava Aristoacuteteles (1356a5) quando seu
discurso eacute de tal modo elaborado que seja capaz de tornaacute-lo digno de credibilidade um homem
em quem pareccedila ser possiacutevel confiar Essa credibilidade contudo natildeo se constroacutei por meio de
elementos extratextuais de ideias preacute-concebidas acerca da conduta eacutetica do orador e sim atra-
veacutes do discurso (1356a8) donde ser considerado o ecircthos uma prova de caraacuteter teacutecnico fruto da
9 Inst oratoriae (3813) ldquoValet autem in consiliis auctoritas plurimum nam et prudentissimus esse haberique
et optimus debet qui sententiae suae de utilibus atque honestis credere omnes uelit [] consilia nemo est qui
neget secundum mores darirdquo 10 Paulo (Fl 25-8) ldquoΤοῦτο φρονεῖτε ἐν ὑμῖν ὃ καὶ ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων οὐχ
ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ ἀλλὰ ἑαυτὸν ἐκένωσεν μορφὴν δούλου λαβών ἐν ὁμοιώματι ἀνθρώπων γενόμενοςmiddot καὶ σχήματι εὑρεθεὶς ὡς ἄνθρωπος ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν γενόμενος ὑπήκοος μέχρι θανάτου θανάτου δὲ σταυροῦrdquo
144
arte Isso se daacute explica o filoacutesofo porque quando se estaacute tratando de temas de caraacuteter geral via
de regra a confianccedila se estabelece sobre as opiniotildees das pessoas cujo valor eacute notoacuterio poreacutem
quando os temas satildeo incertos duvidosos (τὸ ἀμφιδοξεῖν) aiacute entatildeo como que desprovido de
alternativas resta ao auditoacuterio tatildeo soacute a confianccedila quase que total e irrestrita (παντελῶς) na-
queles cujos caracteres ou comprovou-se destacar-se ou lograram aparentar fazecirc-lo E sobre
que versam as Confissotildees em linhas gerais como jaacute se apontou antes senatildeo sobre o tema natildeo-
apodiacutectico por excelecircncia Deus Donde ser liacutecito dizer que pelo prisma da retoacuterica Agostinho
empreende um enorme esforccedilo de construccedilatildeo dum ecircthos apropriado a falar de Deus E de fato
se se pretende falar de tema natildeo apenas duvidoso retoacuterico mas inefaacutevel como o Ser de que
modo evadir-se do estribo do ecircthos Se o tema fosse apodiacutectico o caraacuteter do orador talvez
restasse menos relevante poreacutem natildeo num tema em que as provas demonstrativas satildeo pratica-
mente inexistentes
Para ressaltar o caraacuteter moral de algueacutem que se queira elogiar seja o do proacuteprio orador
ou natildeo lembra Aristoacuteteles (1367b22-27) eacute preciso associar as suas accedilotildees (as quais se empre-
ende louvar) agraves suas intenccedilotildees a fim de demonstrar seu valor porque o louvor (ἔπαινος) se tira
das accedilotildees (ἐκ τῶν πράξεων) desde que este aja em conformidade com suas determinaccedilotildees
morais (κατὰ προαίρεσιν) E se o homem de valor age segundo suas proacuteprias determinaccedilotildees
depreende-se que o homem cujo valor eacute nulo aja determinado isto eacute conduzido pelo destino
pela sorte (ἀπὸ τύχης) e que o homem cujo valor eacute repreensiacutevel exemplo que o filoacutesofo natildeo
daacute mas cujo raciociacutenio permite avanccedilar agiria tambeacutem motivado por suas determinaccedilotildees mo-
rais as quais contudo seriam maacutes O que importa no que tange ao ecircthos eacute que se deve mostrar
que aquele que se estaacute louvando age de acordo com suas determinaccedilotildees e natildeo ao acaso o que
lhe tiraria todo o meacuterito meacuterito que caberia entatildeo agrave fortuna (τύχη) uma vez que as accedilotildees natildeo
praticadas de modo voluntaacuterio natildeo satildeo meritoacuterias em conformidade com o que Agostinho tam-
beacutem admitia11 Portanto o conselho de Aristoacuteteles ao orador que quer construir o seu proacuteprio
ecircthos ou o de algum outro eacute tornar todas as accedilotildees possiacuteveis inclusive as decorrentes da sorte
mdash o que natildeo seria nada honesto admite o filoacutesofo mdash fruto do meacuterito daquele que se quer
enaltecer o que seria sinal de homem resoluto decidido (σημεῖον ἀρετῆς εἶναι προαιρέσεως)
No entanto esse conselho natildeo apenas natildeo eacute seguido por Agostinho e pelo discurso cristatildeo de
modo geral como ao reveacutes o exato oposto eacute o que se potildee em praacutetica ao atribuir-se tudo agrave
Graccedila divina agrave bondade preexistente daquele que natildeo precisou de nenhuma das criaturas que
criou as quais jamais fizeram por merecer o dom da vida (Conf 1311) ldquoPorque antes que eu
11 O livre arbiacutetrio (11430101) ldquoIn uoluntate meritum sitrdquo
145
existisse existias tu e eu nem existia para que me concedesses que eu existisserdquo12 Isso eacute feito
contudo natildeo em detrimento do ecircthos da construccedilatildeo dum caraacuteter digno de louvor e fidedigno
e sim para construir um caraacuteter cristatildeo ou seja um caraacuteter natildeo pautado pela taacutebua de valores
eacuteticos claacutessicos que atribuiacutea grande peso agrave gloacuteria agrave honra ao denodo guerreiro e agrave justiccedila
inflexiacutevel e fria da lei13 e sim para destacar o homem jaacute de tipo medieval manso e humilde de
coraccedilatildeo misericordioso ao ponto de voltar a outra face numa palavra homem cuja honra estava
na cruz e no sangue de seu Salvador e para o qual ldquoo insensato de Deusrdquo era ldquomais saacutebio que
os homens e o fraco de Deus mais forte que os homensrdquo14 O ecircthos pois que se quer construir
eacute o do homem de feacute que se deixa conduzir pela matildeo de Deus na praacutetica das virtudes ditas
teologais feacute esperanccedila e caridade (πίστις ἐλπίς ἀγάπη) (1Cor 1313) O homem comumente
se orgulha das coisas que faz por si proacuteprio (τοῖς διrsquo αὐτόν) lembra Aristoacuteteles mas natildeo se
orgulha do que o destino lhe trouxe (διὰ τύχην) (1368a3-4) Agostinho bastante ao contraacuterio
natildeo apenas natildeo se orgulha do que fez mas se arrepende amargamente preferindo ao inveacutes da
honra agradecer a Deus todo o bem que lhe sucedeu por seu intermeacutedio divino ldquoe assim Se-
nhor apagaste todos os meus merecidos males para que natildeo retribuiacutesses agraves minhas matildeos nas
quais te deixei e te antecipaste a todos os meus merecidos bens para que retribuiacutesses agraves tuas
matildeos com as quais me fizesterdquo15
Destarte das trecircs qualidades independentes de demonstraccedilatildeo (ἔξω τῶν ἀποδείξεων)
que Aristoacuteteles aponta (1378a) como necessaacuterias ao orador ainda que em aparecircncia somente a
fim de que seja convincente o que de modo principal se refere agraves assembleias ou ao conselho
instacircncias tiacutepicas de deliberaccedilatildeo na Greacutecia antiga 1 prudecircncia ou bom-senso (φρόνησις) 2
excelecircncia moral (ἀρετή) e 3 boa disposiccedilatildeo (εὔνοια) nenhuma delas guarda nas Confissotildees
a importacircncia que o estagirita lhe atribui a natildeo ser que se considerem as virtudes ditas teologais
como pertencentes ao rol das aretaiacute aristoteacutelicas o que seria no miacutenimo um grave anacronismo
Por fim a Retoacuterica destaca o papel do ecircthos na disposiccedilatildeo das mateacuterias (τάξις) de modo
especiacutefico no proecircmio (exordium) Nos discursos do gecircnero judiciaacuterio por exemplo aquele que
se defende (ἀπολογουμένῳ) deve fazecirc-lo logo no proecircmio (πρῶτον) antes da acusaccedilatildeo ao
contraacuterio de quem acusa que deve fazecirc-lo no final (τῷ ἐπιλόγῳ) porque aquele que defende
deve construir seu ecircthos no iniacutecio antes da acusaccedilatildeo (πρὸς τὴν διαβολήν) (1415a29-30) a
12 Confissotildees (1311) ldquoquia et priusquam essem tu eras nec eram cui praestares ut essemrdquo 13 Em conformidade com a ideia veiculada pela maacutexima romana ldquodura sed lexrdquo 14 Paulo (1Cor 121-25) ldquoὅτι τὸ μωρὸν τοῦ θεοῦ σοφώτερον τῶν ἀνθρώπων ἐστὶν καὶ τὸ ἀσθενὲς τοῦ
θεοῦ ἰσχυρότερον τῶν ἀνθρώπωνrdquo 15Confissotildees (1311) ldquoEtenim domine deleuisti omnia mala merita mea ne retribueres manibus meis in
quibus a te defeci et praeuenisti omnia bona merita mea ut retribueres manibus tuis quibus me fecistirdquo
146
fim de livrar-se de todo impedimento ou embaraccedilo como faz Agostinho nas Confissotildees utili-
zando-se dos primeiros livros ditos biograacuteficos para tanto Se o acusador deve criar o precon-
ceito contra o acusado no fim para que permaneccedila bem presente na memoacuteria dos juiacutezes o
defendente deve desvencilhar-se do preconceito logo no iniacutecio a fim de que seus argumentos
satildeo sejam prejudicados pela imagem da pecha moral que traz consigo Natildeo eacute apenas para o
ecircthos que o proecircmio eacute importante mas tambeacutem para o paacutethos pois eacute preciso tornar o auditoacuterio
bem disposto em relaccedilatildeo ao orador se se estaacute defendendo ou tornaacute-lo indisposto contra a outra
parte (1415a-34-36) se se estaacute acusando Para isso conta muito a aparecircncia de respeitabilidade
do falante pois ldquoas pessoas respeitaacuteveis recebem mais atenccedilatildeordquo diz Aristoacuteteles Pelo que o
orador deve esforccedilar-se por conseguir duas coisas do auditoacuterio 1 amizade (φίλον) e 2 com-
paixatildeo (ἐλεεινόν) (1415b22-28) tornaacute-lo amigo e compassivo fazendo-o crer que ele mesmo
o orador sente exatamente aquilo que censura ou louva ou seja que estaacute sendo sincero
(1415b28-29) Ora como falar da Graccedila de Deus sem que se recorra ao testemunho pessoal
pois a Graccedila diferentemente da recompensa ou do salaacuterio (merces) eacute distribuiacuteda gratuitamente
para o que por paradoxal pareccedila faz-se necessaacuterio ser pecador numa palavra estar desprovido
de qualquer meacuterito que o tornaria credor ao inveacutes de devedor meacuterito que poderia confundi-la
a Graccedila com pagamento ou retribuiccedilatildeo Evidente que se trata dum exagero pois os que tecircm
meacuterito natildeo estatildeo de modo nenhum excluiacutedos da Graccedila jaacute que natildeo faz muito sentido que natildeo
receba sem meacuterito16 senatildeo quem natildeo mereccedila
Seja como for esse ecircthos de sinceridade logra construir com bastante esmero Agostinho
ao reconhecer-se pecador devedor pequenino desprovido de meacuteritos e absolutamente depen-
dente da bondade da Providecircncia divina que se expressa pela Graccedila gratis
A segunda das provas da arte paacutethos
A movimentaccedilatildeo das emoccedilotildees (πάθος) embora uma prova (πίστις) que se diz teacutecnica
ou ldquoda arterdquo (ἔντεχνος) de modo aparentemente paradoxal natildeo tem que ver diretamente com
as provas demonstrativas ou com a causa em si e sim respeita aos juiacutezes (δικασταί) explica
Aristoacuteteles (1354a4-5)17 De fato o orador alcanccedila a persuasatildeo seja em que gecircnero for (o que
16 Isto eacute gratuitamente 17 Aristoacuteteles natildeo era muito simpaacutetico nem ao apelo eacutetico tampouco ao emocional que julgava ser um mal
necessaacuterio pois considerava errado manipular os sentimentos dos juiacutezes o que equivalia a corromper a proacutepria lei
que se tentava fazer valer ou de que se queria socorrer (1356a14) Argumento muito parecido esse (de destruir a
proacutepria lei a que se deveraacute recorrer depois) com o utilizado por Soacutecrates ao negar a proposta de fuga de Criacuteton no
diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo (50a-b) Pois bem no iniacutecio do tratamento da hupoacutekrisis (1403b22-) Aristoacuteteles
147
natildeo exclui nem o epidiacutectico tampouco o deliberativo) mediatamente por meio dos ouvintes
(διὰ τῶν ἀκροατῶν) aqueles aos quais se dirige quando recorre ao paacutethos despertando ou
dirigindo suas emoccedilotildees (ὅταν εἰς πάθος) o que se faz pela accedilatildeo discursiva (ὑπὸ τοῦ λόγου)
Isso porque os juiacutezos (τὰς κρίσεις) dos ouvintes objetivo da accedilatildeo persuasiva variam sob a
influecircncia das emoccedilotildees tais como a dor (λύπη) a alegria (χαρά) a amizade (φιλία) o oacutedio
(μῖσος) etc Com efeito o orador natildeo tem por escopo a emoccedilatildeo do auditoacuterio em si mesma como
finalidade e sim a sua persuasatildeo a fim de que decida em favor de sua causa para o que as
emoccedilotildees cooperam vivamente como percebeu Aristoacuteteles ao dedicar grande parte do livro
segundo da Retoacuterica ao estudo das paixotildees da alma
Um dos meios mais eficazes para a movimentaccedilatildeo do paacutethos a fim de que se tenha ecircxito
no apelo emocional em vista dum fim ulterior natildeo satildeo as provas demonstrativas recomendadas
para o gecircnero apropriado (o judiciaacuterio no caso) o entimema e as maacuteximas provas que devem
ser descobertas na invenccedilatildeo e sim os recursos pertencentes a outra parte da retoacuterica a elocuccedilatildeo
(λέξις) Com efeito depois de encontrado o que dizer (εὕρεσις) e disposto as mateacuterias de modo
apropriado (τάξις) resta saber como dizecirc-lo Esse ldquocomordquo respeita sem duacutevida agrave forma do dis-
curso que se chama tambeacutem ldquoestilordquo poreacutem de modo nenhum se limita a isso como se fosse
apenas uma sua vestimenta Os recursos da elocuccedilatildeo para muito aleacutem da ornamentaccedilatildeo tecircm
forccedila persuasiva pois argumentam seja pela concisatildeo das figuras seja pelo ritmo e paralelismo
das construccedilotildees seja pelas imagens que evocam o que fazem de modo principal pondo em
destaque tanto o ecircthos como o paacutethos O ecircthos por exemplo no emprego do leacutexico que quando
recheado de estrangeirismos (ξένην ποιεῖν τὴν διάλεκτον) (1404b10-12) diz Aristoacuteteles con-
fere um ar de dignidade ao discurso promovendo por tabela o orador que se faz parecer digno
e nobre assim como aquilo que estaacute dizendo O paacutethos por sua vez quando o discurso eacute ldquoele-
vadordquo a um niacutevel suprarracional ou sublime pelo uso de recursos poeacuteticos dentre os quais se
destacam as figuras de repeticcedilatildeo como paralelismos epanalepses anadiploses antanaacuteclases
reconhece que tudo aquilo que respeita agrave apresentaccedilatildeo do discurso como voz volume tom altura ritmo harmo-
nia entre tais e que eacute muito importante nos certames dramaacuteticos e eacutepicos (τῶν ἀγώνων) quando entatildeo faz-se
necessaacuterio equilibrar esses elementos segundo cada uma das emoccedilotildees (πρὸς ἕκαστον πάθος) embora seja tam-
beacutem utilizado nas demais atividades poliacuteticas como assembleias deliberativas e tribunais o eacute apenas de modo
deploraacutevel Isso porque conquanto seja necessaacuterio mover as paixotildees do auditoacuterio e construir o caraacuteter do orador
discursivamente essa necessidade se deve tatildeo soacute agrave corrupccedilatildeo dos cidadatildeos (διὰ τὴν μοχθηρίαν τῶν πολιτῶν)
(1403b34-35) o que equivale a dizer do auditoacuterio (τοῦ ἀκροατοῦ) Assim sendo o recurso tanto ao ecircthos como
ao paacutethos deixa de ser questatildeo de correccedilatildeo (οὐκ ὀρθῶς) de certo ou errado passando a ser uma necessidade (ἀλλrsquo
ὡς ἀναγκαίου) Com efeito o justo (δίκαιον) seria defender acusar exortar e dissuadir movido apenas pelos
fatos (ἀγωνίζεσθαι τοῖς πράγμασιν) (1404a5-6) de maneira tal que o restante que Aristoacuteteles reputa fora da
demonstraccedilatildeo (ἔξω τοῦ ἀποδεῖξαι) ο que inclui ecircthos e paacutethos seria superfluidade (περίεργα ἐστίν) (1404a8)
Infelizmente poreacutem a realidade eacute que o orador precisa conhecer estes recursos a fim de poder defender-se e atingir
seus objetivos uma vez que os adversaacuterios certamente lanccedilam matildeo deles de modo quase sempre inescrupuloso
148
paronomaacutesias antimetaacuteboles poliptotos etc E fique claro que dizer que Aristoacuteteles natildeo via com
bons olhos o (mau) recurso aos apelos eacutetico e pateacutetico nos tribunais natildeo significa dizer que
desprezasse os mecanismos da elocuccedilatildeo o que implicaria dizer que cresse o homem ser dotado
apenas de razatildeo excluiacutedos sentimentos e caraacuteter a natildeo dizer da vontade Ao contraacuterio Aristoacute-
teles bem reconhecia que em todo tipo de aprendizado (ἐν πάσῃ διδασκαλίᾳ) o estilo se faz
mateacuteria de certa importacircncia uma vez que algo se torna claro (πρὸς τὸ δηλῶσαι) por meio do
modo como eacute dito (ὡδὶ ἢ ὡδὶ εἰπεῖν) embora relegasse a questatildeo do estilo ao niacutevel da aparecircn-
cia (ἀλλrsquo ἅπαντα φαντασία ταῦτrsquo εστὶ) cuja finalidade seria apenas agradar o ouvinte (πρὸς
τὸν ἀκροατήν) ouvinte esse por sua vez cuja corrupccedilatildeo (μοχθηρία) seria a verdadeira causa
de tudo que natildeo eacute apodiacutectico na retoacuterica (1404a7-8) Em assim sendo o estilo (λέξις) seria um
mal necessaacuterio uma ferramenta que embora potencialmente injusta seria uacutetil para conferir
clareza ao discurso assim como todos os demais elementos de persuasatildeo natildeo-apodiacutecticos ou
extrademonstrativos E isso se justifica diz o filoacutesofo de modo peremptoacuterio porque ningueacutem
ensina a fazer geometria desse modo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) isto eacute nem pelo
recurso ao paacutethos nem pelo ecircthos tampouco por qualquer outra ferramenta indicada para a
elocuccedilatildeo como as figuras (1404a12) Compreende-se essa visatildeo deveras depreciativa da elo-
cuccedilatildeo por parte do filoacutesofo pois como ele mesmo diz no terceiro livro de sua Retoacuterica ao
empreender o tratamento da actio ou representaccedilatildeo do discurso (ὑπόκρισις) ateacute ao tempo da
escritura da obra natildeo havia ainda nenhuma arte isto eacute nenhum manual de retoacuterica voltado para
a mateacuteria (οὔπω δὲ σύγκειται τέχνη περὶ αὐτῶν) porque a leacuteksis soacute havia sido notada pou-
quiacutessimo antes (ἐπεὶ καὶ τὸ περὶ τὴν λέξιν ὀψὲ προῆλθεν) descaso que se justificava pelo fato
de o estilo mdash considerado entatildeo como mera ornamentaccedilatildeo do discurso mdash ser julgado inferior
(φορτικὸν) tema indigno das preocupaccedilotildees dum homem livre criacutetica que natildeo evita endossar o
filoacutesofo (καλῶς ὐπολαμβανόμενον) (1403b35-6)
A despeito desta postura criacutetica adotada por Aristoacuteteles e de seu juiacutezo negativo a respeito
do ecircthos e do paacutethos postura raramente admitida pelos estudiosos atuais da retoacuterica o que
importa para os fins deste artigo contudo eacute seu poder argumentativo uma vez que sua impor-
tacircncia natildeo pode ser negada seja ela justificada ou natildeo de par com a finalidade filosoacutefica que
lhes imprime o rhetor de Hipona Portanto justo ou natildeo (nos tribunais e assembleias) o fato
admitido por Aristoacuteteles eacute que a elocuccedilatildeo afeta sobremodo o paacutethos sendo de par com o ecircthos
reconhecido como a mais persuasiva (κυριωτάτη) das provas (1356a13) altamente eficaz para
os objetivos da argumentaccedilatildeo pois resta claro que por meio do estilo se consegue mover as
emoccedilotildees (1408a16) seja quando se fala com indignaccedilatildeo audaciosa (ὕβρις) seja com raiva
149
(ὁργιζομένου) impiedade (ἀσεβή) ou vergonha (αἰσχρά) O estilo adequado (ἡ οἰκεία λέξις)
que eacute aquele em que os elementos do paacutethos (παθητική) e do ecircthos (ἠθική) satildeo proporcionais
(ἀνάλογον) aos temas subjacentes (τοῖς ὐποκειμένοις πράγμασιν) (1408a10-11) faz com
que um dado assunto seja mais persuasivo Aleacutem disso remata Aristoacuteteles o ouvinte sempre
simpatiza (συνομοπαθεῖ ὁ ἀκούων) com quem fala de modo emocional (παθητικῶς
λέγοντι) ainda que esse natildeo diga nada (κἂν μηθὲν λέγῃ) (1408a23-4)
Reconhecido o vigor (δύναμις) natildeo apenas pateacutetico mas tambeacutem argumentativo da elo-
cuccedilatildeo resta ver como Agostinho se utiliza de seus recursos nas Confissotildees a fim de atingir seus
objetivos numa palavra a fim de fazer filosofia Pois bem as descriccedilotildees que melhor instigam
as emoccedilotildees satildeo as que fazem apelo agrave imaginaccedilatildeo e aos sentidos descriccedilotildees viacutevidas de cenas e
eventos contam muito como o famigerado roubo das peras (Conf 249) a prisatildeo de Aliacutepio
(6914) ou a cena do jardim de Milatildeo (81125-27) por exemplo as inumeraacuteveis metaacuteforas e a
prosopopeia de oacutergatildeos humanos que passam a ser dotados de matildeos pernas ouvidos como as
matildeos do coraccedilatildeo que se estendem em prece a Deus os relatos de laacutegrimas pungentes que se
vertem repetidas vezes enfim descriccedilotildees essas que tecircm potencial enorme para despertar fortes
sentimentos Do mesmo modo o uso de hipeacuterboles e outras tantas figuras se faz extremamente
uacutetil para criar o efeito emocional desejado Todavia nada talvez seja tatildeo eficiente nesse sentido
quanto o vocabulaacuterio o uso de palavras carregadas de intensa conotaccedilatildeo pateacutetica E no apelo
agraves emoccedilotildees pode-se dizer esteja uma das chaves de leitura das Confissotildees ao menos retoacuterica
De fato a linguagem da obra estaacute repleta de figuras cujo efeito principal eacute o despertar dos
sentimentos Mas de quem e para quecirc A sua audiecircncia soacute pode ser depreendida de modo in-
direto por meio da linguagem do estilo e do tema o que natildeo se constitui tarefa das mais faacuteceis
por tratar-se de obra multifacetada de linguagem muito elaborada que prima pela sofisticaccedilatildeo
mas que natildeo despreza uma certa tonalidade menos erudita que se pode ateacute denominar em
alguma medida popular ou humilde De fato pelo recurso aos salmos e textos escrituraacuterios
com seu respectivo campo semacircntico permeado de expressotildees da liacutengua grega vulgar (κοινή)
traduzidas ou transliteradas em latim conhecidos de toda comunidade cristatilde natildeo apenas por
serem lidos mas principalmente por sua funccedilatildeo lituacutergica eacute sem duacutevida uma linguagem
(sermo) popular ou humilis todavia pelos mecanismos retoacutericos extremamente requintados e
pelas referecircncias a toda uma cultura filosoacutefica de par com uma argumentaccedilatildeo em muitas pas-
sagens nada singela especialmente nos livros 1 8 e de 9 a 13 pode-se considerar igualmente
elevadiacutessima Portanto humilde e elevada eacute a linguagem das Confissotildees constituindo em si
mesma um oximoro
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Diante desse desafio de escrever tanto para a gente mais simples como para filoacutesofos
desafio que se exprime nesse caso pela linguagem supotildee-se que Agostinho natildeo tenha simples-
mente pretendido abaixar o registro de seu discurso descendo aos simples e pequeninos (ad
catechizandos rudes) muito ao contraacuterio ao que parece pretendia elevar-se ou melhor ser
elevado ao confessar-se arrependido penitenciando-se mas tambeacutem ao confessar sua feacute e seu
louvor enaltecendo e reconhecendo a graccedila de Deus em sua vida Em sendo assim ao ser ele-
vado por Deus pela confissatildeo pretende igualmente mover as almas incitando-lhes semelhante
elevaccedilatildeo ou quando natildeo o desejo de elevaccedilatildeo desejo de que se deixassem igualmente elevar
como ele confessava desejar o que se pode considerar sem duacutevida uma meta de caraacuteter pastoral
Portanto sua missatildeo quanto ao paacutethos eacute tambeacutem a de mover as almas agrave salvaccedilatildeo que
se pode sintetizar na vontade de ser elevado e de para lanccedilar matildeo duma contradiccedilatildeo merecer
por uma espeacutecie de ascese cataacutertica a graccedila divina a misericoacuterdia do Deus justiacutessimo Ora
disso decorre a possibilidade duma outra funccedilatildeo da linguagem extremamente comovente fruto
dos recursos da elocuccedilatildeo a que recorre Agostinho nas Confissotildees e interligada com essa funccedilatildeo
dita pastoral de elevar as almas uma funccedilatildeo que se pode compreender como simultaneamente
propedecircutica e filosoacutefica Com efeito se uma das funccedilotildees deste paacutethos que se diz de caraacuteter
pastoral pretende comover positiva e negativamente incitando a um soacute tempo o desejo de
salvaccedilatildeo e o de horror agrave perdiccedilatildeo o desejo de buscar Deus e de evitar o mal de buscar ser mais
pela proximidade do Ser supremo e de evitar ser menos ou deixar de ser pelo afastamento desse
mesmo Ser como se percebe sobremodo nos livros da parte considerada biograacutefica da obra o
que natildeo implica de modo algum a exclusatildeo dos restantes livros a outra funccedilatildeo por sua vez
relacionada intimamente agrave primeira de que se pode dizer seja consequecircncia natural que se
exacerba tambeacutem a partir dos recursos da elocuccedilatildeo e que como se disse tem caraacuteter prope-
decircutico compreende-se como uma funccedilatildeo de purificaccedilatildeo filosoacutefica de afastamento progressivo
das coisas deste mundo de afastamento da ldquocarnerdquo se se pode dizer tendo em vista o despren-
dimento rumo a uma vida mais espiritual de proximidade com o Ser o puro Inteligiacutevel que se
transubstancia por sua vez num projeto de vivecircncia cristatilde o que se destaca sobremodo a partir
do livro novo encontrando sua foz nos estertores do livro derradeiro Donde ser liacutecito afirmar
que os livros da parte biograacutefica das Confissotildees do primeiro ao oitavo tecircm tambeacutem essa fun-
ccedilatildeo de purificaccedilatildeo tanto das emoccedilotildees como da razatildeo ou seja de disciplinar ou exercitar asce-
ticamente a alma (exercitatio animi)18 a fim de que os leitores e ouvintes pudessem estar pre-
parados para o que havia de vir nos livros subsequentes E isso parece estar em harmonia com
18 Ἥ ἄσκησις ἥ τῆς ψυχῆς
151
o projeto filosoacutefico platocircnico-cristatildeo que Agostinho tinha para sua vida e que colocou em praacute-
tica desde os tempos preacute-batismais de Cassiciacuteaco ateacute ser interrompido pela sua consagraccedilatildeo
sacerdotal (391 dC) um projeto propedecircutico-purificador
E de fato se se pode aventar que esse projeto cataacutertico da razatildeo encontra seu ponto de
saiacuteda no expurgo do ceticismo de tipo neoacadecircmico como se percebe nos trecircs livros intitulados
Contra Academicos desenvolve-se sobremodo nas paacuteginas do diaacutelogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monoacutelogo com os Soliloacutequios obras do mesmo periacuteodo
Formato monoloacutegico esse denominado por Dupuy-Trudelle (1998 p 1198) ldquodesdobramentordquo
que eacute bem possiacutevel tenha servido de laboratoacuterio para as proacuteprias Confissotildees sugere a autora
refletindo a intenccedilatildeo de Agostinho apesar da excelecircncia da feacute de levar as exigecircncias da razatildeo
ateacute ao limite extremo num esforccedilo de purificaccedilatildeo num ir-aleacutem das paixotildees e desiludir-se sobre
si mesmo Ora estar iludido acerca de si mesmo natildeo eacute impedimento agrave feacute mas o eacute ao acesso agrave
convicccedilatildeo intelectual verdadeira Portanto para chegar-se ao conhecimento define esta autora
(ibid pp 1198-9) faz-se mister como condiccedilatildeo uacutenica a ldquolibertaccedilatildeo da razatildeo de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesmardquo libertaccedilatildeo a que os Soliloacutequios datildeo curso
Pode-se compreender que para desenlamear a consciecircncia dos similisavoirs libertaacute-
la de toda ilusatildeo psicoloacutegica ensinaacute-la que o desejo da verdade natildeo eacute ainda a posses-
satildeo da verdade permitir-lhe ir aleacutem do conflito de interesses que leva a opiniatildeo a
revoltar-se contra a verdade seja preciso mensurar a distacircncia entre o sujeito e si
mesmo Ora fazecirc-lo eacute um convite a mensurar a distacircncia entre si e o conhecimento de
Deus Eis entatildeo todo o sentido do exerciacutecio proposto pelo ldquosoliloacutequiordquo mensurar uma
e outra19
Natildeo parece haver duacutevidas de que os Soliloacutequios trazem em si de modo embrionaacuterio o estilo
que haveria de consagrar sobretudo a partir das Confissotildees quando entatildeo dispensa o combate
direto de ideias preferindo ldquodesdobrar-serdquo e deixar-se interrogar por si mesmo ainda que de
modo proleacuteptico continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas
Todavia eacute mais que provaacutevel que esta exigecircncia natildeo tenha surgido do nada e sim pertenccedila a
um projeto filosoacutefico maior que englobe as demais obras de Cassiciacuteaco sendo-lhe entatildeo um
como que desenvolvimento natural
No proacutelogo do De ordine (13-4) Agostinho argumenta que o homem por ser um des-
conhecido de si mesmo natildeo consegue perceber a ordem que reina em todo o universo ordem
providencial em que ele estaacute inserido e que para conseguir conhecer-se seria necessaacuterio entrar
em si mesmo ali permanecendo afastado dos sentidos lugar em que poderia entatildeo curar-se das
feridas que as opiniotildees vulgares infligem agrave alma seja pelo ldquofogordquo do ldquoisolamentordquo conforme
19 DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Les Confessions Paris Gal-
limard 1998 p 1206
152
se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
153
soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
154
As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
155
menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
156
Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
157
sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
158
(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
159
articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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144
arte Isso se daacute explica o filoacutesofo porque quando se estaacute tratando de temas de caraacuteter geral via
de regra a confianccedila se estabelece sobre as opiniotildees das pessoas cujo valor eacute notoacuterio poreacutem
quando os temas satildeo incertos duvidosos (τὸ ἀμφιδοξεῖν) aiacute entatildeo como que desprovido de
alternativas resta ao auditoacuterio tatildeo soacute a confianccedila quase que total e irrestrita (παντελῶς) na-
queles cujos caracteres ou comprovou-se destacar-se ou lograram aparentar fazecirc-lo E sobre
que versam as Confissotildees em linhas gerais como jaacute se apontou antes senatildeo sobre o tema natildeo-
apodiacutectico por excelecircncia Deus Donde ser liacutecito dizer que pelo prisma da retoacuterica Agostinho
empreende um enorme esforccedilo de construccedilatildeo dum ecircthos apropriado a falar de Deus E de fato
se se pretende falar de tema natildeo apenas duvidoso retoacuterico mas inefaacutevel como o Ser de que
modo evadir-se do estribo do ecircthos Se o tema fosse apodiacutectico o caraacuteter do orador talvez
restasse menos relevante poreacutem natildeo num tema em que as provas demonstrativas satildeo pratica-
mente inexistentes
Para ressaltar o caraacuteter moral de algueacutem que se queira elogiar seja o do proacuteprio orador
ou natildeo lembra Aristoacuteteles (1367b22-27) eacute preciso associar as suas accedilotildees (as quais se empre-
ende louvar) agraves suas intenccedilotildees a fim de demonstrar seu valor porque o louvor (ἔπαινος) se tira
das accedilotildees (ἐκ τῶν πράξεων) desde que este aja em conformidade com suas determinaccedilotildees
morais (κατὰ προαίρεσιν) E se o homem de valor age segundo suas proacuteprias determinaccedilotildees
depreende-se que o homem cujo valor eacute nulo aja determinado isto eacute conduzido pelo destino
pela sorte (ἀπὸ τύχης) e que o homem cujo valor eacute repreensiacutevel exemplo que o filoacutesofo natildeo
daacute mas cujo raciociacutenio permite avanccedilar agiria tambeacutem motivado por suas determinaccedilotildees mo-
rais as quais contudo seriam maacutes O que importa no que tange ao ecircthos eacute que se deve mostrar
que aquele que se estaacute louvando age de acordo com suas determinaccedilotildees e natildeo ao acaso o que
lhe tiraria todo o meacuterito meacuterito que caberia entatildeo agrave fortuna (τύχη) uma vez que as accedilotildees natildeo
praticadas de modo voluntaacuterio natildeo satildeo meritoacuterias em conformidade com o que Agostinho tam-
beacutem admitia11 Portanto o conselho de Aristoacuteteles ao orador que quer construir o seu proacuteprio
ecircthos ou o de algum outro eacute tornar todas as accedilotildees possiacuteveis inclusive as decorrentes da sorte
mdash o que natildeo seria nada honesto admite o filoacutesofo mdash fruto do meacuterito daquele que se quer
enaltecer o que seria sinal de homem resoluto decidido (σημεῖον ἀρετῆς εἶναι προαιρέσεως)
No entanto esse conselho natildeo apenas natildeo eacute seguido por Agostinho e pelo discurso cristatildeo de
modo geral como ao reveacutes o exato oposto eacute o que se potildee em praacutetica ao atribuir-se tudo agrave
Graccedila divina agrave bondade preexistente daquele que natildeo precisou de nenhuma das criaturas que
criou as quais jamais fizeram por merecer o dom da vida (Conf 1311) ldquoPorque antes que eu
11 O livre arbiacutetrio (11430101) ldquoIn uoluntate meritum sitrdquo
145
existisse existias tu e eu nem existia para que me concedesses que eu existisserdquo12 Isso eacute feito
contudo natildeo em detrimento do ecircthos da construccedilatildeo dum caraacuteter digno de louvor e fidedigno
e sim para construir um caraacuteter cristatildeo ou seja um caraacuteter natildeo pautado pela taacutebua de valores
eacuteticos claacutessicos que atribuiacutea grande peso agrave gloacuteria agrave honra ao denodo guerreiro e agrave justiccedila
inflexiacutevel e fria da lei13 e sim para destacar o homem jaacute de tipo medieval manso e humilde de
coraccedilatildeo misericordioso ao ponto de voltar a outra face numa palavra homem cuja honra estava
na cruz e no sangue de seu Salvador e para o qual ldquoo insensato de Deusrdquo era ldquomais saacutebio que
os homens e o fraco de Deus mais forte que os homensrdquo14 O ecircthos pois que se quer construir
eacute o do homem de feacute que se deixa conduzir pela matildeo de Deus na praacutetica das virtudes ditas
teologais feacute esperanccedila e caridade (πίστις ἐλπίς ἀγάπη) (1Cor 1313) O homem comumente
se orgulha das coisas que faz por si proacuteprio (τοῖς διrsquo αὐτόν) lembra Aristoacuteteles mas natildeo se
orgulha do que o destino lhe trouxe (διὰ τύχην) (1368a3-4) Agostinho bastante ao contraacuterio
natildeo apenas natildeo se orgulha do que fez mas se arrepende amargamente preferindo ao inveacutes da
honra agradecer a Deus todo o bem que lhe sucedeu por seu intermeacutedio divino ldquoe assim Se-
nhor apagaste todos os meus merecidos males para que natildeo retribuiacutesses agraves minhas matildeos nas
quais te deixei e te antecipaste a todos os meus merecidos bens para que retribuiacutesses agraves tuas
matildeos com as quais me fizesterdquo15
Destarte das trecircs qualidades independentes de demonstraccedilatildeo (ἔξω τῶν ἀποδείξεων)
que Aristoacuteteles aponta (1378a) como necessaacuterias ao orador ainda que em aparecircncia somente a
fim de que seja convincente o que de modo principal se refere agraves assembleias ou ao conselho
instacircncias tiacutepicas de deliberaccedilatildeo na Greacutecia antiga 1 prudecircncia ou bom-senso (φρόνησις) 2
excelecircncia moral (ἀρετή) e 3 boa disposiccedilatildeo (εὔνοια) nenhuma delas guarda nas Confissotildees
a importacircncia que o estagirita lhe atribui a natildeo ser que se considerem as virtudes ditas teologais
como pertencentes ao rol das aretaiacute aristoteacutelicas o que seria no miacutenimo um grave anacronismo
Por fim a Retoacuterica destaca o papel do ecircthos na disposiccedilatildeo das mateacuterias (τάξις) de modo
especiacutefico no proecircmio (exordium) Nos discursos do gecircnero judiciaacuterio por exemplo aquele que
se defende (ἀπολογουμένῳ) deve fazecirc-lo logo no proecircmio (πρῶτον) antes da acusaccedilatildeo ao
contraacuterio de quem acusa que deve fazecirc-lo no final (τῷ ἐπιλόγῳ) porque aquele que defende
deve construir seu ecircthos no iniacutecio antes da acusaccedilatildeo (πρὸς τὴν διαβολήν) (1415a29-30) a
12 Confissotildees (1311) ldquoquia et priusquam essem tu eras nec eram cui praestares ut essemrdquo 13 Em conformidade com a ideia veiculada pela maacutexima romana ldquodura sed lexrdquo 14 Paulo (1Cor 121-25) ldquoὅτι τὸ μωρὸν τοῦ θεοῦ σοφώτερον τῶν ἀνθρώπων ἐστὶν καὶ τὸ ἀσθενὲς τοῦ
θεοῦ ἰσχυρότερον τῶν ἀνθρώπωνrdquo 15Confissotildees (1311) ldquoEtenim domine deleuisti omnia mala merita mea ne retribueres manibus meis in
quibus a te defeci et praeuenisti omnia bona merita mea ut retribueres manibus tuis quibus me fecistirdquo
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fim de livrar-se de todo impedimento ou embaraccedilo como faz Agostinho nas Confissotildees utili-
zando-se dos primeiros livros ditos biograacuteficos para tanto Se o acusador deve criar o precon-
ceito contra o acusado no fim para que permaneccedila bem presente na memoacuteria dos juiacutezes o
defendente deve desvencilhar-se do preconceito logo no iniacutecio a fim de que seus argumentos
satildeo sejam prejudicados pela imagem da pecha moral que traz consigo Natildeo eacute apenas para o
ecircthos que o proecircmio eacute importante mas tambeacutem para o paacutethos pois eacute preciso tornar o auditoacuterio
bem disposto em relaccedilatildeo ao orador se se estaacute defendendo ou tornaacute-lo indisposto contra a outra
parte (1415a-34-36) se se estaacute acusando Para isso conta muito a aparecircncia de respeitabilidade
do falante pois ldquoas pessoas respeitaacuteveis recebem mais atenccedilatildeordquo diz Aristoacuteteles Pelo que o
orador deve esforccedilar-se por conseguir duas coisas do auditoacuterio 1 amizade (φίλον) e 2 com-
paixatildeo (ἐλεεινόν) (1415b22-28) tornaacute-lo amigo e compassivo fazendo-o crer que ele mesmo
o orador sente exatamente aquilo que censura ou louva ou seja que estaacute sendo sincero
(1415b28-29) Ora como falar da Graccedila de Deus sem que se recorra ao testemunho pessoal
pois a Graccedila diferentemente da recompensa ou do salaacuterio (merces) eacute distribuiacuteda gratuitamente
para o que por paradoxal pareccedila faz-se necessaacuterio ser pecador numa palavra estar desprovido
de qualquer meacuterito que o tornaria credor ao inveacutes de devedor meacuterito que poderia confundi-la
a Graccedila com pagamento ou retribuiccedilatildeo Evidente que se trata dum exagero pois os que tecircm
meacuterito natildeo estatildeo de modo nenhum excluiacutedos da Graccedila jaacute que natildeo faz muito sentido que natildeo
receba sem meacuterito16 senatildeo quem natildeo mereccedila
Seja como for esse ecircthos de sinceridade logra construir com bastante esmero Agostinho
ao reconhecer-se pecador devedor pequenino desprovido de meacuteritos e absolutamente depen-
dente da bondade da Providecircncia divina que se expressa pela Graccedila gratis
A segunda das provas da arte paacutethos
A movimentaccedilatildeo das emoccedilotildees (πάθος) embora uma prova (πίστις) que se diz teacutecnica
ou ldquoda arterdquo (ἔντεχνος) de modo aparentemente paradoxal natildeo tem que ver diretamente com
as provas demonstrativas ou com a causa em si e sim respeita aos juiacutezes (δικασταί) explica
Aristoacuteteles (1354a4-5)17 De fato o orador alcanccedila a persuasatildeo seja em que gecircnero for (o que
16 Isto eacute gratuitamente 17 Aristoacuteteles natildeo era muito simpaacutetico nem ao apelo eacutetico tampouco ao emocional que julgava ser um mal
necessaacuterio pois considerava errado manipular os sentimentos dos juiacutezes o que equivalia a corromper a proacutepria lei
que se tentava fazer valer ou de que se queria socorrer (1356a14) Argumento muito parecido esse (de destruir a
proacutepria lei a que se deveraacute recorrer depois) com o utilizado por Soacutecrates ao negar a proposta de fuga de Criacuteton no
diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo (50a-b) Pois bem no iniacutecio do tratamento da hupoacutekrisis (1403b22-) Aristoacuteteles
147
natildeo exclui nem o epidiacutectico tampouco o deliberativo) mediatamente por meio dos ouvintes
(διὰ τῶν ἀκροατῶν) aqueles aos quais se dirige quando recorre ao paacutethos despertando ou
dirigindo suas emoccedilotildees (ὅταν εἰς πάθος) o que se faz pela accedilatildeo discursiva (ὑπὸ τοῦ λόγου)
Isso porque os juiacutezos (τὰς κρίσεις) dos ouvintes objetivo da accedilatildeo persuasiva variam sob a
influecircncia das emoccedilotildees tais como a dor (λύπη) a alegria (χαρά) a amizade (φιλία) o oacutedio
(μῖσος) etc Com efeito o orador natildeo tem por escopo a emoccedilatildeo do auditoacuterio em si mesma como
finalidade e sim a sua persuasatildeo a fim de que decida em favor de sua causa para o que as
emoccedilotildees cooperam vivamente como percebeu Aristoacuteteles ao dedicar grande parte do livro
segundo da Retoacuterica ao estudo das paixotildees da alma
Um dos meios mais eficazes para a movimentaccedilatildeo do paacutethos a fim de que se tenha ecircxito
no apelo emocional em vista dum fim ulterior natildeo satildeo as provas demonstrativas recomendadas
para o gecircnero apropriado (o judiciaacuterio no caso) o entimema e as maacuteximas provas que devem
ser descobertas na invenccedilatildeo e sim os recursos pertencentes a outra parte da retoacuterica a elocuccedilatildeo
(λέξις) Com efeito depois de encontrado o que dizer (εὕρεσις) e disposto as mateacuterias de modo
apropriado (τάξις) resta saber como dizecirc-lo Esse ldquocomordquo respeita sem duacutevida agrave forma do dis-
curso que se chama tambeacutem ldquoestilordquo poreacutem de modo nenhum se limita a isso como se fosse
apenas uma sua vestimenta Os recursos da elocuccedilatildeo para muito aleacutem da ornamentaccedilatildeo tecircm
forccedila persuasiva pois argumentam seja pela concisatildeo das figuras seja pelo ritmo e paralelismo
das construccedilotildees seja pelas imagens que evocam o que fazem de modo principal pondo em
destaque tanto o ecircthos como o paacutethos O ecircthos por exemplo no emprego do leacutexico que quando
recheado de estrangeirismos (ξένην ποιεῖν τὴν διάλεκτον) (1404b10-12) diz Aristoacuteteles con-
fere um ar de dignidade ao discurso promovendo por tabela o orador que se faz parecer digno
e nobre assim como aquilo que estaacute dizendo O paacutethos por sua vez quando o discurso eacute ldquoele-
vadordquo a um niacutevel suprarracional ou sublime pelo uso de recursos poeacuteticos dentre os quais se
destacam as figuras de repeticcedilatildeo como paralelismos epanalepses anadiploses antanaacuteclases
reconhece que tudo aquilo que respeita agrave apresentaccedilatildeo do discurso como voz volume tom altura ritmo harmo-
nia entre tais e que eacute muito importante nos certames dramaacuteticos e eacutepicos (τῶν ἀγώνων) quando entatildeo faz-se
necessaacuterio equilibrar esses elementos segundo cada uma das emoccedilotildees (πρὸς ἕκαστον πάθος) embora seja tam-
beacutem utilizado nas demais atividades poliacuteticas como assembleias deliberativas e tribunais o eacute apenas de modo
deploraacutevel Isso porque conquanto seja necessaacuterio mover as paixotildees do auditoacuterio e construir o caraacuteter do orador
discursivamente essa necessidade se deve tatildeo soacute agrave corrupccedilatildeo dos cidadatildeos (διὰ τὴν μοχθηρίαν τῶν πολιτῶν)
(1403b34-35) o que equivale a dizer do auditoacuterio (τοῦ ἀκροατοῦ) Assim sendo o recurso tanto ao ecircthos como
ao paacutethos deixa de ser questatildeo de correccedilatildeo (οὐκ ὀρθῶς) de certo ou errado passando a ser uma necessidade (ἀλλrsquo
ὡς ἀναγκαίου) Com efeito o justo (δίκαιον) seria defender acusar exortar e dissuadir movido apenas pelos
fatos (ἀγωνίζεσθαι τοῖς πράγμασιν) (1404a5-6) de maneira tal que o restante que Aristoacuteteles reputa fora da
demonstraccedilatildeo (ἔξω τοῦ ἀποδεῖξαι) ο que inclui ecircthos e paacutethos seria superfluidade (περίεργα ἐστίν) (1404a8)
Infelizmente poreacutem a realidade eacute que o orador precisa conhecer estes recursos a fim de poder defender-se e atingir
seus objetivos uma vez que os adversaacuterios certamente lanccedilam matildeo deles de modo quase sempre inescrupuloso
148
paronomaacutesias antimetaacuteboles poliptotos etc E fique claro que dizer que Aristoacuteteles natildeo via com
bons olhos o (mau) recurso aos apelos eacutetico e pateacutetico nos tribunais natildeo significa dizer que
desprezasse os mecanismos da elocuccedilatildeo o que implicaria dizer que cresse o homem ser dotado
apenas de razatildeo excluiacutedos sentimentos e caraacuteter a natildeo dizer da vontade Ao contraacuterio Aristoacute-
teles bem reconhecia que em todo tipo de aprendizado (ἐν πάσῃ διδασκαλίᾳ) o estilo se faz
mateacuteria de certa importacircncia uma vez que algo se torna claro (πρὸς τὸ δηλῶσαι) por meio do
modo como eacute dito (ὡδὶ ἢ ὡδὶ εἰπεῖν) embora relegasse a questatildeo do estilo ao niacutevel da aparecircn-
cia (ἀλλrsquo ἅπαντα φαντασία ταῦτrsquo εστὶ) cuja finalidade seria apenas agradar o ouvinte (πρὸς
τὸν ἀκροατήν) ouvinte esse por sua vez cuja corrupccedilatildeo (μοχθηρία) seria a verdadeira causa
de tudo que natildeo eacute apodiacutectico na retoacuterica (1404a7-8) Em assim sendo o estilo (λέξις) seria um
mal necessaacuterio uma ferramenta que embora potencialmente injusta seria uacutetil para conferir
clareza ao discurso assim como todos os demais elementos de persuasatildeo natildeo-apodiacutecticos ou
extrademonstrativos E isso se justifica diz o filoacutesofo de modo peremptoacuterio porque ningueacutem
ensina a fazer geometria desse modo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) isto eacute nem pelo
recurso ao paacutethos nem pelo ecircthos tampouco por qualquer outra ferramenta indicada para a
elocuccedilatildeo como as figuras (1404a12) Compreende-se essa visatildeo deveras depreciativa da elo-
cuccedilatildeo por parte do filoacutesofo pois como ele mesmo diz no terceiro livro de sua Retoacuterica ao
empreender o tratamento da actio ou representaccedilatildeo do discurso (ὑπόκρισις) ateacute ao tempo da
escritura da obra natildeo havia ainda nenhuma arte isto eacute nenhum manual de retoacuterica voltado para
a mateacuteria (οὔπω δὲ σύγκειται τέχνη περὶ αὐτῶν) porque a leacuteksis soacute havia sido notada pou-
quiacutessimo antes (ἐπεὶ καὶ τὸ περὶ τὴν λέξιν ὀψὲ προῆλθεν) descaso que se justificava pelo fato
de o estilo mdash considerado entatildeo como mera ornamentaccedilatildeo do discurso mdash ser julgado inferior
(φορτικὸν) tema indigno das preocupaccedilotildees dum homem livre criacutetica que natildeo evita endossar o
filoacutesofo (καλῶς ὐπολαμβανόμενον) (1403b35-6)
A despeito desta postura criacutetica adotada por Aristoacuteteles e de seu juiacutezo negativo a respeito
do ecircthos e do paacutethos postura raramente admitida pelos estudiosos atuais da retoacuterica o que
importa para os fins deste artigo contudo eacute seu poder argumentativo uma vez que sua impor-
tacircncia natildeo pode ser negada seja ela justificada ou natildeo de par com a finalidade filosoacutefica que
lhes imprime o rhetor de Hipona Portanto justo ou natildeo (nos tribunais e assembleias) o fato
admitido por Aristoacuteteles eacute que a elocuccedilatildeo afeta sobremodo o paacutethos sendo de par com o ecircthos
reconhecido como a mais persuasiva (κυριωτάτη) das provas (1356a13) altamente eficaz para
os objetivos da argumentaccedilatildeo pois resta claro que por meio do estilo se consegue mover as
emoccedilotildees (1408a16) seja quando se fala com indignaccedilatildeo audaciosa (ὕβρις) seja com raiva
149
(ὁργιζομένου) impiedade (ἀσεβή) ou vergonha (αἰσχρά) O estilo adequado (ἡ οἰκεία λέξις)
que eacute aquele em que os elementos do paacutethos (παθητική) e do ecircthos (ἠθική) satildeo proporcionais
(ἀνάλογον) aos temas subjacentes (τοῖς ὐποκειμένοις πράγμασιν) (1408a10-11) faz com
que um dado assunto seja mais persuasivo Aleacutem disso remata Aristoacuteteles o ouvinte sempre
simpatiza (συνομοπαθεῖ ὁ ἀκούων) com quem fala de modo emocional (παθητικῶς
λέγοντι) ainda que esse natildeo diga nada (κἂν μηθὲν λέγῃ) (1408a23-4)
Reconhecido o vigor (δύναμις) natildeo apenas pateacutetico mas tambeacutem argumentativo da elo-
cuccedilatildeo resta ver como Agostinho se utiliza de seus recursos nas Confissotildees a fim de atingir seus
objetivos numa palavra a fim de fazer filosofia Pois bem as descriccedilotildees que melhor instigam
as emoccedilotildees satildeo as que fazem apelo agrave imaginaccedilatildeo e aos sentidos descriccedilotildees viacutevidas de cenas e
eventos contam muito como o famigerado roubo das peras (Conf 249) a prisatildeo de Aliacutepio
(6914) ou a cena do jardim de Milatildeo (81125-27) por exemplo as inumeraacuteveis metaacuteforas e a
prosopopeia de oacutergatildeos humanos que passam a ser dotados de matildeos pernas ouvidos como as
matildeos do coraccedilatildeo que se estendem em prece a Deus os relatos de laacutegrimas pungentes que se
vertem repetidas vezes enfim descriccedilotildees essas que tecircm potencial enorme para despertar fortes
sentimentos Do mesmo modo o uso de hipeacuterboles e outras tantas figuras se faz extremamente
uacutetil para criar o efeito emocional desejado Todavia nada talvez seja tatildeo eficiente nesse sentido
quanto o vocabulaacuterio o uso de palavras carregadas de intensa conotaccedilatildeo pateacutetica E no apelo
agraves emoccedilotildees pode-se dizer esteja uma das chaves de leitura das Confissotildees ao menos retoacuterica
De fato a linguagem da obra estaacute repleta de figuras cujo efeito principal eacute o despertar dos
sentimentos Mas de quem e para quecirc A sua audiecircncia soacute pode ser depreendida de modo in-
direto por meio da linguagem do estilo e do tema o que natildeo se constitui tarefa das mais faacuteceis
por tratar-se de obra multifacetada de linguagem muito elaborada que prima pela sofisticaccedilatildeo
mas que natildeo despreza uma certa tonalidade menos erudita que se pode ateacute denominar em
alguma medida popular ou humilde De fato pelo recurso aos salmos e textos escrituraacuterios
com seu respectivo campo semacircntico permeado de expressotildees da liacutengua grega vulgar (κοινή)
traduzidas ou transliteradas em latim conhecidos de toda comunidade cristatilde natildeo apenas por
serem lidos mas principalmente por sua funccedilatildeo lituacutergica eacute sem duacutevida uma linguagem
(sermo) popular ou humilis todavia pelos mecanismos retoacutericos extremamente requintados e
pelas referecircncias a toda uma cultura filosoacutefica de par com uma argumentaccedilatildeo em muitas pas-
sagens nada singela especialmente nos livros 1 8 e de 9 a 13 pode-se considerar igualmente
elevadiacutessima Portanto humilde e elevada eacute a linguagem das Confissotildees constituindo em si
mesma um oximoro
150
Diante desse desafio de escrever tanto para a gente mais simples como para filoacutesofos
desafio que se exprime nesse caso pela linguagem supotildee-se que Agostinho natildeo tenha simples-
mente pretendido abaixar o registro de seu discurso descendo aos simples e pequeninos (ad
catechizandos rudes) muito ao contraacuterio ao que parece pretendia elevar-se ou melhor ser
elevado ao confessar-se arrependido penitenciando-se mas tambeacutem ao confessar sua feacute e seu
louvor enaltecendo e reconhecendo a graccedila de Deus em sua vida Em sendo assim ao ser ele-
vado por Deus pela confissatildeo pretende igualmente mover as almas incitando-lhes semelhante
elevaccedilatildeo ou quando natildeo o desejo de elevaccedilatildeo desejo de que se deixassem igualmente elevar
como ele confessava desejar o que se pode considerar sem duacutevida uma meta de caraacuteter pastoral
Portanto sua missatildeo quanto ao paacutethos eacute tambeacutem a de mover as almas agrave salvaccedilatildeo que
se pode sintetizar na vontade de ser elevado e de para lanccedilar matildeo duma contradiccedilatildeo merecer
por uma espeacutecie de ascese cataacutertica a graccedila divina a misericoacuterdia do Deus justiacutessimo Ora
disso decorre a possibilidade duma outra funccedilatildeo da linguagem extremamente comovente fruto
dos recursos da elocuccedilatildeo a que recorre Agostinho nas Confissotildees e interligada com essa funccedilatildeo
dita pastoral de elevar as almas uma funccedilatildeo que se pode compreender como simultaneamente
propedecircutica e filosoacutefica Com efeito se uma das funccedilotildees deste paacutethos que se diz de caraacuteter
pastoral pretende comover positiva e negativamente incitando a um soacute tempo o desejo de
salvaccedilatildeo e o de horror agrave perdiccedilatildeo o desejo de buscar Deus e de evitar o mal de buscar ser mais
pela proximidade do Ser supremo e de evitar ser menos ou deixar de ser pelo afastamento desse
mesmo Ser como se percebe sobremodo nos livros da parte considerada biograacutefica da obra o
que natildeo implica de modo algum a exclusatildeo dos restantes livros a outra funccedilatildeo por sua vez
relacionada intimamente agrave primeira de que se pode dizer seja consequecircncia natural que se
exacerba tambeacutem a partir dos recursos da elocuccedilatildeo e que como se disse tem caraacuteter prope-
decircutico compreende-se como uma funccedilatildeo de purificaccedilatildeo filosoacutefica de afastamento progressivo
das coisas deste mundo de afastamento da ldquocarnerdquo se se pode dizer tendo em vista o despren-
dimento rumo a uma vida mais espiritual de proximidade com o Ser o puro Inteligiacutevel que se
transubstancia por sua vez num projeto de vivecircncia cristatilde o que se destaca sobremodo a partir
do livro novo encontrando sua foz nos estertores do livro derradeiro Donde ser liacutecito afirmar
que os livros da parte biograacutefica das Confissotildees do primeiro ao oitavo tecircm tambeacutem essa fun-
ccedilatildeo de purificaccedilatildeo tanto das emoccedilotildees como da razatildeo ou seja de disciplinar ou exercitar asce-
ticamente a alma (exercitatio animi)18 a fim de que os leitores e ouvintes pudessem estar pre-
parados para o que havia de vir nos livros subsequentes E isso parece estar em harmonia com
18 Ἥ ἄσκησις ἥ τῆς ψυχῆς
151
o projeto filosoacutefico platocircnico-cristatildeo que Agostinho tinha para sua vida e que colocou em praacute-
tica desde os tempos preacute-batismais de Cassiciacuteaco ateacute ser interrompido pela sua consagraccedilatildeo
sacerdotal (391 dC) um projeto propedecircutico-purificador
E de fato se se pode aventar que esse projeto cataacutertico da razatildeo encontra seu ponto de
saiacuteda no expurgo do ceticismo de tipo neoacadecircmico como se percebe nos trecircs livros intitulados
Contra Academicos desenvolve-se sobremodo nas paacuteginas do diaacutelogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monoacutelogo com os Soliloacutequios obras do mesmo periacuteodo
Formato monoloacutegico esse denominado por Dupuy-Trudelle (1998 p 1198) ldquodesdobramentordquo
que eacute bem possiacutevel tenha servido de laboratoacuterio para as proacuteprias Confissotildees sugere a autora
refletindo a intenccedilatildeo de Agostinho apesar da excelecircncia da feacute de levar as exigecircncias da razatildeo
ateacute ao limite extremo num esforccedilo de purificaccedilatildeo num ir-aleacutem das paixotildees e desiludir-se sobre
si mesmo Ora estar iludido acerca de si mesmo natildeo eacute impedimento agrave feacute mas o eacute ao acesso agrave
convicccedilatildeo intelectual verdadeira Portanto para chegar-se ao conhecimento define esta autora
(ibid pp 1198-9) faz-se mister como condiccedilatildeo uacutenica a ldquolibertaccedilatildeo da razatildeo de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesmardquo libertaccedilatildeo a que os Soliloacutequios datildeo curso
Pode-se compreender que para desenlamear a consciecircncia dos similisavoirs libertaacute-
la de toda ilusatildeo psicoloacutegica ensinaacute-la que o desejo da verdade natildeo eacute ainda a posses-
satildeo da verdade permitir-lhe ir aleacutem do conflito de interesses que leva a opiniatildeo a
revoltar-se contra a verdade seja preciso mensurar a distacircncia entre o sujeito e si
mesmo Ora fazecirc-lo eacute um convite a mensurar a distacircncia entre si e o conhecimento de
Deus Eis entatildeo todo o sentido do exerciacutecio proposto pelo ldquosoliloacutequiordquo mensurar uma
e outra19
Natildeo parece haver duacutevidas de que os Soliloacutequios trazem em si de modo embrionaacuterio o estilo
que haveria de consagrar sobretudo a partir das Confissotildees quando entatildeo dispensa o combate
direto de ideias preferindo ldquodesdobrar-serdquo e deixar-se interrogar por si mesmo ainda que de
modo proleacuteptico continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas
Todavia eacute mais que provaacutevel que esta exigecircncia natildeo tenha surgido do nada e sim pertenccedila a
um projeto filosoacutefico maior que englobe as demais obras de Cassiciacuteaco sendo-lhe entatildeo um
como que desenvolvimento natural
No proacutelogo do De ordine (13-4) Agostinho argumenta que o homem por ser um des-
conhecido de si mesmo natildeo consegue perceber a ordem que reina em todo o universo ordem
providencial em que ele estaacute inserido e que para conseguir conhecer-se seria necessaacuterio entrar
em si mesmo ali permanecendo afastado dos sentidos lugar em que poderia entatildeo curar-se das
feridas que as opiniotildees vulgares infligem agrave alma seja pelo ldquofogordquo do ldquoisolamentordquo conforme
19 DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Les Confessions Paris Gal-
limard 1998 p 1206
152
se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
153
soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
154
As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
155
menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
156
Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
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sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
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(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
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articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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145
existisse existias tu e eu nem existia para que me concedesses que eu existisserdquo12 Isso eacute feito
contudo natildeo em detrimento do ecircthos da construccedilatildeo dum caraacuteter digno de louvor e fidedigno
e sim para construir um caraacuteter cristatildeo ou seja um caraacuteter natildeo pautado pela taacutebua de valores
eacuteticos claacutessicos que atribuiacutea grande peso agrave gloacuteria agrave honra ao denodo guerreiro e agrave justiccedila
inflexiacutevel e fria da lei13 e sim para destacar o homem jaacute de tipo medieval manso e humilde de
coraccedilatildeo misericordioso ao ponto de voltar a outra face numa palavra homem cuja honra estava
na cruz e no sangue de seu Salvador e para o qual ldquoo insensato de Deusrdquo era ldquomais saacutebio que
os homens e o fraco de Deus mais forte que os homensrdquo14 O ecircthos pois que se quer construir
eacute o do homem de feacute que se deixa conduzir pela matildeo de Deus na praacutetica das virtudes ditas
teologais feacute esperanccedila e caridade (πίστις ἐλπίς ἀγάπη) (1Cor 1313) O homem comumente
se orgulha das coisas que faz por si proacuteprio (τοῖς διrsquo αὐτόν) lembra Aristoacuteteles mas natildeo se
orgulha do que o destino lhe trouxe (διὰ τύχην) (1368a3-4) Agostinho bastante ao contraacuterio
natildeo apenas natildeo se orgulha do que fez mas se arrepende amargamente preferindo ao inveacutes da
honra agradecer a Deus todo o bem que lhe sucedeu por seu intermeacutedio divino ldquoe assim Se-
nhor apagaste todos os meus merecidos males para que natildeo retribuiacutesses agraves minhas matildeos nas
quais te deixei e te antecipaste a todos os meus merecidos bens para que retribuiacutesses agraves tuas
matildeos com as quais me fizesterdquo15
Destarte das trecircs qualidades independentes de demonstraccedilatildeo (ἔξω τῶν ἀποδείξεων)
que Aristoacuteteles aponta (1378a) como necessaacuterias ao orador ainda que em aparecircncia somente a
fim de que seja convincente o que de modo principal se refere agraves assembleias ou ao conselho
instacircncias tiacutepicas de deliberaccedilatildeo na Greacutecia antiga 1 prudecircncia ou bom-senso (φρόνησις) 2
excelecircncia moral (ἀρετή) e 3 boa disposiccedilatildeo (εὔνοια) nenhuma delas guarda nas Confissotildees
a importacircncia que o estagirita lhe atribui a natildeo ser que se considerem as virtudes ditas teologais
como pertencentes ao rol das aretaiacute aristoteacutelicas o que seria no miacutenimo um grave anacronismo
Por fim a Retoacuterica destaca o papel do ecircthos na disposiccedilatildeo das mateacuterias (τάξις) de modo
especiacutefico no proecircmio (exordium) Nos discursos do gecircnero judiciaacuterio por exemplo aquele que
se defende (ἀπολογουμένῳ) deve fazecirc-lo logo no proecircmio (πρῶτον) antes da acusaccedilatildeo ao
contraacuterio de quem acusa que deve fazecirc-lo no final (τῷ ἐπιλόγῳ) porque aquele que defende
deve construir seu ecircthos no iniacutecio antes da acusaccedilatildeo (πρὸς τὴν διαβολήν) (1415a29-30) a
12 Confissotildees (1311) ldquoquia et priusquam essem tu eras nec eram cui praestares ut essemrdquo 13 Em conformidade com a ideia veiculada pela maacutexima romana ldquodura sed lexrdquo 14 Paulo (1Cor 121-25) ldquoὅτι τὸ μωρὸν τοῦ θεοῦ σοφώτερον τῶν ἀνθρώπων ἐστὶν καὶ τὸ ἀσθενὲς τοῦ
θεοῦ ἰσχυρότερον τῶν ἀνθρώπωνrdquo 15Confissotildees (1311) ldquoEtenim domine deleuisti omnia mala merita mea ne retribueres manibus meis in
quibus a te defeci et praeuenisti omnia bona merita mea ut retribueres manibus tuis quibus me fecistirdquo
146
fim de livrar-se de todo impedimento ou embaraccedilo como faz Agostinho nas Confissotildees utili-
zando-se dos primeiros livros ditos biograacuteficos para tanto Se o acusador deve criar o precon-
ceito contra o acusado no fim para que permaneccedila bem presente na memoacuteria dos juiacutezes o
defendente deve desvencilhar-se do preconceito logo no iniacutecio a fim de que seus argumentos
satildeo sejam prejudicados pela imagem da pecha moral que traz consigo Natildeo eacute apenas para o
ecircthos que o proecircmio eacute importante mas tambeacutem para o paacutethos pois eacute preciso tornar o auditoacuterio
bem disposto em relaccedilatildeo ao orador se se estaacute defendendo ou tornaacute-lo indisposto contra a outra
parte (1415a-34-36) se se estaacute acusando Para isso conta muito a aparecircncia de respeitabilidade
do falante pois ldquoas pessoas respeitaacuteveis recebem mais atenccedilatildeordquo diz Aristoacuteteles Pelo que o
orador deve esforccedilar-se por conseguir duas coisas do auditoacuterio 1 amizade (φίλον) e 2 com-
paixatildeo (ἐλεεινόν) (1415b22-28) tornaacute-lo amigo e compassivo fazendo-o crer que ele mesmo
o orador sente exatamente aquilo que censura ou louva ou seja que estaacute sendo sincero
(1415b28-29) Ora como falar da Graccedila de Deus sem que se recorra ao testemunho pessoal
pois a Graccedila diferentemente da recompensa ou do salaacuterio (merces) eacute distribuiacuteda gratuitamente
para o que por paradoxal pareccedila faz-se necessaacuterio ser pecador numa palavra estar desprovido
de qualquer meacuterito que o tornaria credor ao inveacutes de devedor meacuterito que poderia confundi-la
a Graccedila com pagamento ou retribuiccedilatildeo Evidente que se trata dum exagero pois os que tecircm
meacuterito natildeo estatildeo de modo nenhum excluiacutedos da Graccedila jaacute que natildeo faz muito sentido que natildeo
receba sem meacuterito16 senatildeo quem natildeo mereccedila
Seja como for esse ecircthos de sinceridade logra construir com bastante esmero Agostinho
ao reconhecer-se pecador devedor pequenino desprovido de meacuteritos e absolutamente depen-
dente da bondade da Providecircncia divina que se expressa pela Graccedila gratis
A segunda das provas da arte paacutethos
A movimentaccedilatildeo das emoccedilotildees (πάθος) embora uma prova (πίστις) que se diz teacutecnica
ou ldquoda arterdquo (ἔντεχνος) de modo aparentemente paradoxal natildeo tem que ver diretamente com
as provas demonstrativas ou com a causa em si e sim respeita aos juiacutezes (δικασταί) explica
Aristoacuteteles (1354a4-5)17 De fato o orador alcanccedila a persuasatildeo seja em que gecircnero for (o que
16 Isto eacute gratuitamente 17 Aristoacuteteles natildeo era muito simpaacutetico nem ao apelo eacutetico tampouco ao emocional que julgava ser um mal
necessaacuterio pois considerava errado manipular os sentimentos dos juiacutezes o que equivalia a corromper a proacutepria lei
que se tentava fazer valer ou de que se queria socorrer (1356a14) Argumento muito parecido esse (de destruir a
proacutepria lei a que se deveraacute recorrer depois) com o utilizado por Soacutecrates ao negar a proposta de fuga de Criacuteton no
diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo (50a-b) Pois bem no iniacutecio do tratamento da hupoacutekrisis (1403b22-) Aristoacuteteles
147
natildeo exclui nem o epidiacutectico tampouco o deliberativo) mediatamente por meio dos ouvintes
(διὰ τῶν ἀκροατῶν) aqueles aos quais se dirige quando recorre ao paacutethos despertando ou
dirigindo suas emoccedilotildees (ὅταν εἰς πάθος) o que se faz pela accedilatildeo discursiva (ὑπὸ τοῦ λόγου)
Isso porque os juiacutezos (τὰς κρίσεις) dos ouvintes objetivo da accedilatildeo persuasiva variam sob a
influecircncia das emoccedilotildees tais como a dor (λύπη) a alegria (χαρά) a amizade (φιλία) o oacutedio
(μῖσος) etc Com efeito o orador natildeo tem por escopo a emoccedilatildeo do auditoacuterio em si mesma como
finalidade e sim a sua persuasatildeo a fim de que decida em favor de sua causa para o que as
emoccedilotildees cooperam vivamente como percebeu Aristoacuteteles ao dedicar grande parte do livro
segundo da Retoacuterica ao estudo das paixotildees da alma
Um dos meios mais eficazes para a movimentaccedilatildeo do paacutethos a fim de que se tenha ecircxito
no apelo emocional em vista dum fim ulterior natildeo satildeo as provas demonstrativas recomendadas
para o gecircnero apropriado (o judiciaacuterio no caso) o entimema e as maacuteximas provas que devem
ser descobertas na invenccedilatildeo e sim os recursos pertencentes a outra parte da retoacuterica a elocuccedilatildeo
(λέξις) Com efeito depois de encontrado o que dizer (εὕρεσις) e disposto as mateacuterias de modo
apropriado (τάξις) resta saber como dizecirc-lo Esse ldquocomordquo respeita sem duacutevida agrave forma do dis-
curso que se chama tambeacutem ldquoestilordquo poreacutem de modo nenhum se limita a isso como se fosse
apenas uma sua vestimenta Os recursos da elocuccedilatildeo para muito aleacutem da ornamentaccedilatildeo tecircm
forccedila persuasiva pois argumentam seja pela concisatildeo das figuras seja pelo ritmo e paralelismo
das construccedilotildees seja pelas imagens que evocam o que fazem de modo principal pondo em
destaque tanto o ecircthos como o paacutethos O ecircthos por exemplo no emprego do leacutexico que quando
recheado de estrangeirismos (ξένην ποιεῖν τὴν διάλεκτον) (1404b10-12) diz Aristoacuteteles con-
fere um ar de dignidade ao discurso promovendo por tabela o orador que se faz parecer digno
e nobre assim como aquilo que estaacute dizendo O paacutethos por sua vez quando o discurso eacute ldquoele-
vadordquo a um niacutevel suprarracional ou sublime pelo uso de recursos poeacuteticos dentre os quais se
destacam as figuras de repeticcedilatildeo como paralelismos epanalepses anadiploses antanaacuteclases
reconhece que tudo aquilo que respeita agrave apresentaccedilatildeo do discurso como voz volume tom altura ritmo harmo-
nia entre tais e que eacute muito importante nos certames dramaacuteticos e eacutepicos (τῶν ἀγώνων) quando entatildeo faz-se
necessaacuterio equilibrar esses elementos segundo cada uma das emoccedilotildees (πρὸς ἕκαστον πάθος) embora seja tam-
beacutem utilizado nas demais atividades poliacuteticas como assembleias deliberativas e tribunais o eacute apenas de modo
deploraacutevel Isso porque conquanto seja necessaacuterio mover as paixotildees do auditoacuterio e construir o caraacuteter do orador
discursivamente essa necessidade se deve tatildeo soacute agrave corrupccedilatildeo dos cidadatildeos (διὰ τὴν μοχθηρίαν τῶν πολιτῶν)
(1403b34-35) o que equivale a dizer do auditoacuterio (τοῦ ἀκροατοῦ) Assim sendo o recurso tanto ao ecircthos como
ao paacutethos deixa de ser questatildeo de correccedilatildeo (οὐκ ὀρθῶς) de certo ou errado passando a ser uma necessidade (ἀλλrsquo
ὡς ἀναγκαίου) Com efeito o justo (δίκαιον) seria defender acusar exortar e dissuadir movido apenas pelos
fatos (ἀγωνίζεσθαι τοῖς πράγμασιν) (1404a5-6) de maneira tal que o restante que Aristoacuteteles reputa fora da
demonstraccedilatildeo (ἔξω τοῦ ἀποδεῖξαι) ο que inclui ecircthos e paacutethos seria superfluidade (περίεργα ἐστίν) (1404a8)
Infelizmente poreacutem a realidade eacute que o orador precisa conhecer estes recursos a fim de poder defender-se e atingir
seus objetivos uma vez que os adversaacuterios certamente lanccedilam matildeo deles de modo quase sempre inescrupuloso
148
paronomaacutesias antimetaacuteboles poliptotos etc E fique claro que dizer que Aristoacuteteles natildeo via com
bons olhos o (mau) recurso aos apelos eacutetico e pateacutetico nos tribunais natildeo significa dizer que
desprezasse os mecanismos da elocuccedilatildeo o que implicaria dizer que cresse o homem ser dotado
apenas de razatildeo excluiacutedos sentimentos e caraacuteter a natildeo dizer da vontade Ao contraacuterio Aristoacute-
teles bem reconhecia que em todo tipo de aprendizado (ἐν πάσῃ διδασκαλίᾳ) o estilo se faz
mateacuteria de certa importacircncia uma vez que algo se torna claro (πρὸς τὸ δηλῶσαι) por meio do
modo como eacute dito (ὡδὶ ἢ ὡδὶ εἰπεῖν) embora relegasse a questatildeo do estilo ao niacutevel da aparecircn-
cia (ἀλλrsquo ἅπαντα φαντασία ταῦτrsquo εστὶ) cuja finalidade seria apenas agradar o ouvinte (πρὸς
τὸν ἀκροατήν) ouvinte esse por sua vez cuja corrupccedilatildeo (μοχθηρία) seria a verdadeira causa
de tudo que natildeo eacute apodiacutectico na retoacuterica (1404a7-8) Em assim sendo o estilo (λέξις) seria um
mal necessaacuterio uma ferramenta que embora potencialmente injusta seria uacutetil para conferir
clareza ao discurso assim como todos os demais elementos de persuasatildeo natildeo-apodiacutecticos ou
extrademonstrativos E isso se justifica diz o filoacutesofo de modo peremptoacuterio porque ningueacutem
ensina a fazer geometria desse modo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) isto eacute nem pelo
recurso ao paacutethos nem pelo ecircthos tampouco por qualquer outra ferramenta indicada para a
elocuccedilatildeo como as figuras (1404a12) Compreende-se essa visatildeo deveras depreciativa da elo-
cuccedilatildeo por parte do filoacutesofo pois como ele mesmo diz no terceiro livro de sua Retoacuterica ao
empreender o tratamento da actio ou representaccedilatildeo do discurso (ὑπόκρισις) ateacute ao tempo da
escritura da obra natildeo havia ainda nenhuma arte isto eacute nenhum manual de retoacuterica voltado para
a mateacuteria (οὔπω δὲ σύγκειται τέχνη περὶ αὐτῶν) porque a leacuteksis soacute havia sido notada pou-
quiacutessimo antes (ἐπεὶ καὶ τὸ περὶ τὴν λέξιν ὀψὲ προῆλθεν) descaso que se justificava pelo fato
de o estilo mdash considerado entatildeo como mera ornamentaccedilatildeo do discurso mdash ser julgado inferior
(φορτικὸν) tema indigno das preocupaccedilotildees dum homem livre criacutetica que natildeo evita endossar o
filoacutesofo (καλῶς ὐπολαμβανόμενον) (1403b35-6)
A despeito desta postura criacutetica adotada por Aristoacuteteles e de seu juiacutezo negativo a respeito
do ecircthos e do paacutethos postura raramente admitida pelos estudiosos atuais da retoacuterica o que
importa para os fins deste artigo contudo eacute seu poder argumentativo uma vez que sua impor-
tacircncia natildeo pode ser negada seja ela justificada ou natildeo de par com a finalidade filosoacutefica que
lhes imprime o rhetor de Hipona Portanto justo ou natildeo (nos tribunais e assembleias) o fato
admitido por Aristoacuteteles eacute que a elocuccedilatildeo afeta sobremodo o paacutethos sendo de par com o ecircthos
reconhecido como a mais persuasiva (κυριωτάτη) das provas (1356a13) altamente eficaz para
os objetivos da argumentaccedilatildeo pois resta claro que por meio do estilo se consegue mover as
emoccedilotildees (1408a16) seja quando se fala com indignaccedilatildeo audaciosa (ὕβρις) seja com raiva
149
(ὁργιζομένου) impiedade (ἀσεβή) ou vergonha (αἰσχρά) O estilo adequado (ἡ οἰκεία λέξις)
que eacute aquele em que os elementos do paacutethos (παθητική) e do ecircthos (ἠθική) satildeo proporcionais
(ἀνάλογον) aos temas subjacentes (τοῖς ὐποκειμένοις πράγμασιν) (1408a10-11) faz com
que um dado assunto seja mais persuasivo Aleacutem disso remata Aristoacuteteles o ouvinte sempre
simpatiza (συνομοπαθεῖ ὁ ἀκούων) com quem fala de modo emocional (παθητικῶς
λέγοντι) ainda que esse natildeo diga nada (κἂν μηθὲν λέγῃ) (1408a23-4)
Reconhecido o vigor (δύναμις) natildeo apenas pateacutetico mas tambeacutem argumentativo da elo-
cuccedilatildeo resta ver como Agostinho se utiliza de seus recursos nas Confissotildees a fim de atingir seus
objetivos numa palavra a fim de fazer filosofia Pois bem as descriccedilotildees que melhor instigam
as emoccedilotildees satildeo as que fazem apelo agrave imaginaccedilatildeo e aos sentidos descriccedilotildees viacutevidas de cenas e
eventos contam muito como o famigerado roubo das peras (Conf 249) a prisatildeo de Aliacutepio
(6914) ou a cena do jardim de Milatildeo (81125-27) por exemplo as inumeraacuteveis metaacuteforas e a
prosopopeia de oacutergatildeos humanos que passam a ser dotados de matildeos pernas ouvidos como as
matildeos do coraccedilatildeo que se estendem em prece a Deus os relatos de laacutegrimas pungentes que se
vertem repetidas vezes enfim descriccedilotildees essas que tecircm potencial enorme para despertar fortes
sentimentos Do mesmo modo o uso de hipeacuterboles e outras tantas figuras se faz extremamente
uacutetil para criar o efeito emocional desejado Todavia nada talvez seja tatildeo eficiente nesse sentido
quanto o vocabulaacuterio o uso de palavras carregadas de intensa conotaccedilatildeo pateacutetica E no apelo
agraves emoccedilotildees pode-se dizer esteja uma das chaves de leitura das Confissotildees ao menos retoacuterica
De fato a linguagem da obra estaacute repleta de figuras cujo efeito principal eacute o despertar dos
sentimentos Mas de quem e para quecirc A sua audiecircncia soacute pode ser depreendida de modo in-
direto por meio da linguagem do estilo e do tema o que natildeo se constitui tarefa das mais faacuteceis
por tratar-se de obra multifacetada de linguagem muito elaborada que prima pela sofisticaccedilatildeo
mas que natildeo despreza uma certa tonalidade menos erudita que se pode ateacute denominar em
alguma medida popular ou humilde De fato pelo recurso aos salmos e textos escrituraacuterios
com seu respectivo campo semacircntico permeado de expressotildees da liacutengua grega vulgar (κοινή)
traduzidas ou transliteradas em latim conhecidos de toda comunidade cristatilde natildeo apenas por
serem lidos mas principalmente por sua funccedilatildeo lituacutergica eacute sem duacutevida uma linguagem
(sermo) popular ou humilis todavia pelos mecanismos retoacutericos extremamente requintados e
pelas referecircncias a toda uma cultura filosoacutefica de par com uma argumentaccedilatildeo em muitas pas-
sagens nada singela especialmente nos livros 1 8 e de 9 a 13 pode-se considerar igualmente
elevadiacutessima Portanto humilde e elevada eacute a linguagem das Confissotildees constituindo em si
mesma um oximoro
150
Diante desse desafio de escrever tanto para a gente mais simples como para filoacutesofos
desafio que se exprime nesse caso pela linguagem supotildee-se que Agostinho natildeo tenha simples-
mente pretendido abaixar o registro de seu discurso descendo aos simples e pequeninos (ad
catechizandos rudes) muito ao contraacuterio ao que parece pretendia elevar-se ou melhor ser
elevado ao confessar-se arrependido penitenciando-se mas tambeacutem ao confessar sua feacute e seu
louvor enaltecendo e reconhecendo a graccedila de Deus em sua vida Em sendo assim ao ser ele-
vado por Deus pela confissatildeo pretende igualmente mover as almas incitando-lhes semelhante
elevaccedilatildeo ou quando natildeo o desejo de elevaccedilatildeo desejo de que se deixassem igualmente elevar
como ele confessava desejar o que se pode considerar sem duacutevida uma meta de caraacuteter pastoral
Portanto sua missatildeo quanto ao paacutethos eacute tambeacutem a de mover as almas agrave salvaccedilatildeo que
se pode sintetizar na vontade de ser elevado e de para lanccedilar matildeo duma contradiccedilatildeo merecer
por uma espeacutecie de ascese cataacutertica a graccedila divina a misericoacuterdia do Deus justiacutessimo Ora
disso decorre a possibilidade duma outra funccedilatildeo da linguagem extremamente comovente fruto
dos recursos da elocuccedilatildeo a que recorre Agostinho nas Confissotildees e interligada com essa funccedilatildeo
dita pastoral de elevar as almas uma funccedilatildeo que se pode compreender como simultaneamente
propedecircutica e filosoacutefica Com efeito se uma das funccedilotildees deste paacutethos que se diz de caraacuteter
pastoral pretende comover positiva e negativamente incitando a um soacute tempo o desejo de
salvaccedilatildeo e o de horror agrave perdiccedilatildeo o desejo de buscar Deus e de evitar o mal de buscar ser mais
pela proximidade do Ser supremo e de evitar ser menos ou deixar de ser pelo afastamento desse
mesmo Ser como se percebe sobremodo nos livros da parte considerada biograacutefica da obra o
que natildeo implica de modo algum a exclusatildeo dos restantes livros a outra funccedilatildeo por sua vez
relacionada intimamente agrave primeira de que se pode dizer seja consequecircncia natural que se
exacerba tambeacutem a partir dos recursos da elocuccedilatildeo e que como se disse tem caraacuteter prope-
decircutico compreende-se como uma funccedilatildeo de purificaccedilatildeo filosoacutefica de afastamento progressivo
das coisas deste mundo de afastamento da ldquocarnerdquo se se pode dizer tendo em vista o despren-
dimento rumo a uma vida mais espiritual de proximidade com o Ser o puro Inteligiacutevel que se
transubstancia por sua vez num projeto de vivecircncia cristatilde o que se destaca sobremodo a partir
do livro novo encontrando sua foz nos estertores do livro derradeiro Donde ser liacutecito afirmar
que os livros da parte biograacutefica das Confissotildees do primeiro ao oitavo tecircm tambeacutem essa fun-
ccedilatildeo de purificaccedilatildeo tanto das emoccedilotildees como da razatildeo ou seja de disciplinar ou exercitar asce-
ticamente a alma (exercitatio animi)18 a fim de que os leitores e ouvintes pudessem estar pre-
parados para o que havia de vir nos livros subsequentes E isso parece estar em harmonia com
18 Ἥ ἄσκησις ἥ τῆς ψυχῆς
151
o projeto filosoacutefico platocircnico-cristatildeo que Agostinho tinha para sua vida e que colocou em praacute-
tica desde os tempos preacute-batismais de Cassiciacuteaco ateacute ser interrompido pela sua consagraccedilatildeo
sacerdotal (391 dC) um projeto propedecircutico-purificador
E de fato se se pode aventar que esse projeto cataacutertico da razatildeo encontra seu ponto de
saiacuteda no expurgo do ceticismo de tipo neoacadecircmico como se percebe nos trecircs livros intitulados
Contra Academicos desenvolve-se sobremodo nas paacuteginas do diaacutelogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monoacutelogo com os Soliloacutequios obras do mesmo periacuteodo
Formato monoloacutegico esse denominado por Dupuy-Trudelle (1998 p 1198) ldquodesdobramentordquo
que eacute bem possiacutevel tenha servido de laboratoacuterio para as proacuteprias Confissotildees sugere a autora
refletindo a intenccedilatildeo de Agostinho apesar da excelecircncia da feacute de levar as exigecircncias da razatildeo
ateacute ao limite extremo num esforccedilo de purificaccedilatildeo num ir-aleacutem das paixotildees e desiludir-se sobre
si mesmo Ora estar iludido acerca de si mesmo natildeo eacute impedimento agrave feacute mas o eacute ao acesso agrave
convicccedilatildeo intelectual verdadeira Portanto para chegar-se ao conhecimento define esta autora
(ibid pp 1198-9) faz-se mister como condiccedilatildeo uacutenica a ldquolibertaccedilatildeo da razatildeo de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesmardquo libertaccedilatildeo a que os Soliloacutequios datildeo curso
Pode-se compreender que para desenlamear a consciecircncia dos similisavoirs libertaacute-
la de toda ilusatildeo psicoloacutegica ensinaacute-la que o desejo da verdade natildeo eacute ainda a posses-
satildeo da verdade permitir-lhe ir aleacutem do conflito de interesses que leva a opiniatildeo a
revoltar-se contra a verdade seja preciso mensurar a distacircncia entre o sujeito e si
mesmo Ora fazecirc-lo eacute um convite a mensurar a distacircncia entre si e o conhecimento de
Deus Eis entatildeo todo o sentido do exerciacutecio proposto pelo ldquosoliloacutequiordquo mensurar uma
e outra19
Natildeo parece haver duacutevidas de que os Soliloacutequios trazem em si de modo embrionaacuterio o estilo
que haveria de consagrar sobretudo a partir das Confissotildees quando entatildeo dispensa o combate
direto de ideias preferindo ldquodesdobrar-serdquo e deixar-se interrogar por si mesmo ainda que de
modo proleacuteptico continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas
Todavia eacute mais que provaacutevel que esta exigecircncia natildeo tenha surgido do nada e sim pertenccedila a
um projeto filosoacutefico maior que englobe as demais obras de Cassiciacuteaco sendo-lhe entatildeo um
como que desenvolvimento natural
No proacutelogo do De ordine (13-4) Agostinho argumenta que o homem por ser um des-
conhecido de si mesmo natildeo consegue perceber a ordem que reina em todo o universo ordem
providencial em que ele estaacute inserido e que para conseguir conhecer-se seria necessaacuterio entrar
em si mesmo ali permanecendo afastado dos sentidos lugar em que poderia entatildeo curar-se das
feridas que as opiniotildees vulgares infligem agrave alma seja pelo ldquofogordquo do ldquoisolamentordquo conforme
19 DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Les Confessions Paris Gal-
limard 1998 p 1206
152
se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
153
soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
154
As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
155
menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
156
Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
157
sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
158
(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
159
articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
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Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
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da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
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das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
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O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
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Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
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provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
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ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
REFEREcircNCIAS
[CICERO] Rhetorica ad Herennium (Transl by Harry Caplan) Cambridge (MA) Harvard
University Press 2004 (LOEB Classical Library 403)
ARISTOTELIS Ars Rhetorica (Recognouit breuique adnotatione critica instruxit W D
Ross) Oxford Oxford University Press 2008 (Oxford Classical Texts)
ARISTOTLE The Complete Works of Aristotle (The Revised Oxford Translation Edited by
Jonathan Barnes) Sixth Printing with corrections Princeton Princeton University Press
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AUERBACH Erich Ensaios de Literatura Ocidental Filologia e Criacutetica 1ordf ed Satildeo Paulo
Duas Cidades Editora 34 2007 pp 15-96 ldquoSacrae scripturae sermo humilisrdquo pp 15-28
ldquoSermo humilisrdquo pp 29-76 ldquoGloria Passionisrdquo pp 77-96
AUGUSTIN Confessions (Texte Eacutetabli et Traduit par Pierre de Labriolle) Seiziegraveme tirage
Paris Les Belles Lettres 2002 (Tome I livres I-VIII Tome II livres VIII-XIII)
______ IV Dialogues Philosophiques I Problegravemes fondamentaux Contra Academicos De
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Augustin 1re Seacuterie Opuscules)
______ V Dialogues Philosophiques II Dieu et Lrsquoame Soliloques De immortalitate
animae De quantitate animae (Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et
notes de Pierre de Labriolle) Paris Descleacutee de Brouwer 1939 (Œuvres de Saint Augustin 1re
Seacuterie Opuscules)
______ VI Dialogues Philosophiques III De lrsquoame agrave Dieu De magistro De libero arbitrio
(Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et notes de F J Thonnard) Paris
Descleacutee de Brouwer 1952 (Œuvres de Saint Augustin 1re Seacuterie Opuscules)
BARTHES Roland A Aventura Semioloacutegica Satildeo Paulo Martins Fontes 2001
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______ On Invention Best Kind of Orator Topics (Transl by H M Hubbel) Cambridge
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______ On the Orator Book III On Fate Stoic Paradoxes Divisions of Oratory (Transl by
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REBOUL Olivier Introduccedilatildeo agrave retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes 2000
SLOANE Thomas O (Ed) Encyclopedia of Rhetoric Oxford Oxford University Press
2001
146
fim de livrar-se de todo impedimento ou embaraccedilo como faz Agostinho nas Confissotildees utili-
zando-se dos primeiros livros ditos biograacuteficos para tanto Se o acusador deve criar o precon-
ceito contra o acusado no fim para que permaneccedila bem presente na memoacuteria dos juiacutezes o
defendente deve desvencilhar-se do preconceito logo no iniacutecio a fim de que seus argumentos
satildeo sejam prejudicados pela imagem da pecha moral que traz consigo Natildeo eacute apenas para o
ecircthos que o proecircmio eacute importante mas tambeacutem para o paacutethos pois eacute preciso tornar o auditoacuterio
bem disposto em relaccedilatildeo ao orador se se estaacute defendendo ou tornaacute-lo indisposto contra a outra
parte (1415a-34-36) se se estaacute acusando Para isso conta muito a aparecircncia de respeitabilidade
do falante pois ldquoas pessoas respeitaacuteveis recebem mais atenccedilatildeordquo diz Aristoacuteteles Pelo que o
orador deve esforccedilar-se por conseguir duas coisas do auditoacuterio 1 amizade (φίλον) e 2 com-
paixatildeo (ἐλεεινόν) (1415b22-28) tornaacute-lo amigo e compassivo fazendo-o crer que ele mesmo
o orador sente exatamente aquilo que censura ou louva ou seja que estaacute sendo sincero
(1415b28-29) Ora como falar da Graccedila de Deus sem que se recorra ao testemunho pessoal
pois a Graccedila diferentemente da recompensa ou do salaacuterio (merces) eacute distribuiacuteda gratuitamente
para o que por paradoxal pareccedila faz-se necessaacuterio ser pecador numa palavra estar desprovido
de qualquer meacuterito que o tornaria credor ao inveacutes de devedor meacuterito que poderia confundi-la
a Graccedila com pagamento ou retribuiccedilatildeo Evidente que se trata dum exagero pois os que tecircm
meacuterito natildeo estatildeo de modo nenhum excluiacutedos da Graccedila jaacute que natildeo faz muito sentido que natildeo
receba sem meacuterito16 senatildeo quem natildeo mereccedila
Seja como for esse ecircthos de sinceridade logra construir com bastante esmero Agostinho
ao reconhecer-se pecador devedor pequenino desprovido de meacuteritos e absolutamente depen-
dente da bondade da Providecircncia divina que se expressa pela Graccedila gratis
A segunda das provas da arte paacutethos
A movimentaccedilatildeo das emoccedilotildees (πάθος) embora uma prova (πίστις) que se diz teacutecnica
ou ldquoda arterdquo (ἔντεχνος) de modo aparentemente paradoxal natildeo tem que ver diretamente com
as provas demonstrativas ou com a causa em si e sim respeita aos juiacutezes (δικασταί) explica
Aristoacuteteles (1354a4-5)17 De fato o orador alcanccedila a persuasatildeo seja em que gecircnero for (o que
16 Isto eacute gratuitamente 17 Aristoacuteteles natildeo era muito simpaacutetico nem ao apelo eacutetico tampouco ao emocional que julgava ser um mal
necessaacuterio pois considerava errado manipular os sentimentos dos juiacutezes o que equivalia a corromper a proacutepria lei
que se tentava fazer valer ou de que se queria socorrer (1356a14) Argumento muito parecido esse (de destruir a
proacutepria lei a que se deveraacute recorrer depois) com o utilizado por Soacutecrates ao negar a proposta de fuga de Criacuteton no
diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo (50a-b) Pois bem no iniacutecio do tratamento da hupoacutekrisis (1403b22-) Aristoacuteteles
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natildeo exclui nem o epidiacutectico tampouco o deliberativo) mediatamente por meio dos ouvintes
(διὰ τῶν ἀκροατῶν) aqueles aos quais se dirige quando recorre ao paacutethos despertando ou
dirigindo suas emoccedilotildees (ὅταν εἰς πάθος) o que se faz pela accedilatildeo discursiva (ὑπὸ τοῦ λόγου)
Isso porque os juiacutezos (τὰς κρίσεις) dos ouvintes objetivo da accedilatildeo persuasiva variam sob a
influecircncia das emoccedilotildees tais como a dor (λύπη) a alegria (χαρά) a amizade (φιλία) o oacutedio
(μῖσος) etc Com efeito o orador natildeo tem por escopo a emoccedilatildeo do auditoacuterio em si mesma como
finalidade e sim a sua persuasatildeo a fim de que decida em favor de sua causa para o que as
emoccedilotildees cooperam vivamente como percebeu Aristoacuteteles ao dedicar grande parte do livro
segundo da Retoacuterica ao estudo das paixotildees da alma
Um dos meios mais eficazes para a movimentaccedilatildeo do paacutethos a fim de que se tenha ecircxito
no apelo emocional em vista dum fim ulterior natildeo satildeo as provas demonstrativas recomendadas
para o gecircnero apropriado (o judiciaacuterio no caso) o entimema e as maacuteximas provas que devem
ser descobertas na invenccedilatildeo e sim os recursos pertencentes a outra parte da retoacuterica a elocuccedilatildeo
(λέξις) Com efeito depois de encontrado o que dizer (εὕρεσις) e disposto as mateacuterias de modo
apropriado (τάξις) resta saber como dizecirc-lo Esse ldquocomordquo respeita sem duacutevida agrave forma do dis-
curso que se chama tambeacutem ldquoestilordquo poreacutem de modo nenhum se limita a isso como se fosse
apenas uma sua vestimenta Os recursos da elocuccedilatildeo para muito aleacutem da ornamentaccedilatildeo tecircm
forccedila persuasiva pois argumentam seja pela concisatildeo das figuras seja pelo ritmo e paralelismo
das construccedilotildees seja pelas imagens que evocam o que fazem de modo principal pondo em
destaque tanto o ecircthos como o paacutethos O ecircthos por exemplo no emprego do leacutexico que quando
recheado de estrangeirismos (ξένην ποιεῖν τὴν διάλεκτον) (1404b10-12) diz Aristoacuteteles con-
fere um ar de dignidade ao discurso promovendo por tabela o orador que se faz parecer digno
e nobre assim como aquilo que estaacute dizendo O paacutethos por sua vez quando o discurso eacute ldquoele-
vadordquo a um niacutevel suprarracional ou sublime pelo uso de recursos poeacuteticos dentre os quais se
destacam as figuras de repeticcedilatildeo como paralelismos epanalepses anadiploses antanaacuteclases
reconhece que tudo aquilo que respeita agrave apresentaccedilatildeo do discurso como voz volume tom altura ritmo harmo-
nia entre tais e que eacute muito importante nos certames dramaacuteticos e eacutepicos (τῶν ἀγώνων) quando entatildeo faz-se
necessaacuterio equilibrar esses elementos segundo cada uma das emoccedilotildees (πρὸς ἕκαστον πάθος) embora seja tam-
beacutem utilizado nas demais atividades poliacuteticas como assembleias deliberativas e tribunais o eacute apenas de modo
deploraacutevel Isso porque conquanto seja necessaacuterio mover as paixotildees do auditoacuterio e construir o caraacuteter do orador
discursivamente essa necessidade se deve tatildeo soacute agrave corrupccedilatildeo dos cidadatildeos (διὰ τὴν μοχθηρίαν τῶν πολιτῶν)
(1403b34-35) o que equivale a dizer do auditoacuterio (τοῦ ἀκροατοῦ) Assim sendo o recurso tanto ao ecircthos como
ao paacutethos deixa de ser questatildeo de correccedilatildeo (οὐκ ὀρθῶς) de certo ou errado passando a ser uma necessidade (ἀλλrsquo
ὡς ἀναγκαίου) Com efeito o justo (δίκαιον) seria defender acusar exortar e dissuadir movido apenas pelos
fatos (ἀγωνίζεσθαι τοῖς πράγμασιν) (1404a5-6) de maneira tal que o restante que Aristoacuteteles reputa fora da
demonstraccedilatildeo (ἔξω τοῦ ἀποδεῖξαι) ο que inclui ecircthos e paacutethos seria superfluidade (περίεργα ἐστίν) (1404a8)
Infelizmente poreacutem a realidade eacute que o orador precisa conhecer estes recursos a fim de poder defender-se e atingir
seus objetivos uma vez que os adversaacuterios certamente lanccedilam matildeo deles de modo quase sempre inescrupuloso
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paronomaacutesias antimetaacuteboles poliptotos etc E fique claro que dizer que Aristoacuteteles natildeo via com
bons olhos o (mau) recurso aos apelos eacutetico e pateacutetico nos tribunais natildeo significa dizer que
desprezasse os mecanismos da elocuccedilatildeo o que implicaria dizer que cresse o homem ser dotado
apenas de razatildeo excluiacutedos sentimentos e caraacuteter a natildeo dizer da vontade Ao contraacuterio Aristoacute-
teles bem reconhecia que em todo tipo de aprendizado (ἐν πάσῃ διδασκαλίᾳ) o estilo se faz
mateacuteria de certa importacircncia uma vez que algo se torna claro (πρὸς τὸ δηλῶσαι) por meio do
modo como eacute dito (ὡδὶ ἢ ὡδὶ εἰπεῖν) embora relegasse a questatildeo do estilo ao niacutevel da aparecircn-
cia (ἀλλrsquo ἅπαντα φαντασία ταῦτrsquo εστὶ) cuja finalidade seria apenas agradar o ouvinte (πρὸς
τὸν ἀκροατήν) ouvinte esse por sua vez cuja corrupccedilatildeo (μοχθηρία) seria a verdadeira causa
de tudo que natildeo eacute apodiacutectico na retoacuterica (1404a7-8) Em assim sendo o estilo (λέξις) seria um
mal necessaacuterio uma ferramenta que embora potencialmente injusta seria uacutetil para conferir
clareza ao discurso assim como todos os demais elementos de persuasatildeo natildeo-apodiacutecticos ou
extrademonstrativos E isso se justifica diz o filoacutesofo de modo peremptoacuterio porque ningueacutem
ensina a fazer geometria desse modo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) isto eacute nem pelo
recurso ao paacutethos nem pelo ecircthos tampouco por qualquer outra ferramenta indicada para a
elocuccedilatildeo como as figuras (1404a12) Compreende-se essa visatildeo deveras depreciativa da elo-
cuccedilatildeo por parte do filoacutesofo pois como ele mesmo diz no terceiro livro de sua Retoacuterica ao
empreender o tratamento da actio ou representaccedilatildeo do discurso (ὑπόκρισις) ateacute ao tempo da
escritura da obra natildeo havia ainda nenhuma arte isto eacute nenhum manual de retoacuterica voltado para
a mateacuteria (οὔπω δὲ σύγκειται τέχνη περὶ αὐτῶν) porque a leacuteksis soacute havia sido notada pou-
quiacutessimo antes (ἐπεὶ καὶ τὸ περὶ τὴν λέξιν ὀψὲ προῆλθεν) descaso que se justificava pelo fato
de o estilo mdash considerado entatildeo como mera ornamentaccedilatildeo do discurso mdash ser julgado inferior
(φορτικὸν) tema indigno das preocupaccedilotildees dum homem livre criacutetica que natildeo evita endossar o
filoacutesofo (καλῶς ὐπολαμβανόμενον) (1403b35-6)
A despeito desta postura criacutetica adotada por Aristoacuteteles e de seu juiacutezo negativo a respeito
do ecircthos e do paacutethos postura raramente admitida pelos estudiosos atuais da retoacuterica o que
importa para os fins deste artigo contudo eacute seu poder argumentativo uma vez que sua impor-
tacircncia natildeo pode ser negada seja ela justificada ou natildeo de par com a finalidade filosoacutefica que
lhes imprime o rhetor de Hipona Portanto justo ou natildeo (nos tribunais e assembleias) o fato
admitido por Aristoacuteteles eacute que a elocuccedilatildeo afeta sobremodo o paacutethos sendo de par com o ecircthos
reconhecido como a mais persuasiva (κυριωτάτη) das provas (1356a13) altamente eficaz para
os objetivos da argumentaccedilatildeo pois resta claro que por meio do estilo se consegue mover as
emoccedilotildees (1408a16) seja quando se fala com indignaccedilatildeo audaciosa (ὕβρις) seja com raiva
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(ὁργιζομένου) impiedade (ἀσεβή) ou vergonha (αἰσχρά) O estilo adequado (ἡ οἰκεία λέξις)
que eacute aquele em que os elementos do paacutethos (παθητική) e do ecircthos (ἠθική) satildeo proporcionais
(ἀνάλογον) aos temas subjacentes (τοῖς ὐποκειμένοις πράγμασιν) (1408a10-11) faz com
que um dado assunto seja mais persuasivo Aleacutem disso remata Aristoacuteteles o ouvinte sempre
simpatiza (συνομοπαθεῖ ὁ ἀκούων) com quem fala de modo emocional (παθητικῶς
λέγοντι) ainda que esse natildeo diga nada (κἂν μηθὲν λέγῃ) (1408a23-4)
Reconhecido o vigor (δύναμις) natildeo apenas pateacutetico mas tambeacutem argumentativo da elo-
cuccedilatildeo resta ver como Agostinho se utiliza de seus recursos nas Confissotildees a fim de atingir seus
objetivos numa palavra a fim de fazer filosofia Pois bem as descriccedilotildees que melhor instigam
as emoccedilotildees satildeo as que fazem apelo agrave imaginaccedilatildeo e aos sentidos descriccedilotildees viacutevidas de cenas e
eventos contam muito como o famigerado roubo das peras (Conf 249) a prisatildeo de Aliacutepio
(6914) ou a cena do jardim de Milatildeo (81125-27) por exemplo as inumeraacuteveis metaacuteforas e a
prosopopeia de oacutergatildeos humanos que passam a ser dotados de matildeos pernas ouvidos como as
matildeos do coraccedilatildeo que se estendem em prece a Deus os relatos de laacutegrimas pungentes que se
vertem repetidas vezes enfim descriccedilotildees essas que tecircm potencial enorme para despertar fortes
sentimentos Do mesmo modo o uso de hipeacuterboles e outras tantas figuras se faz extremamente
uacutetil para criar o efeito emocional desejado Todavia nada talvez seja tatildeo eficiente nesse sentido
quanto o vocabulaacuterio o uso de palavras carregadas de intensa conotaccedilatildeo pateacutetica E no apelo
agraves emoccedilotildees pode-se dizer esteja uma das chaves de leitura das Confissotildees ao menos retoacuterica
De fato a linguagem da obra estaacute repleta de figuras cujo efeito principal eacute o despertar dos
sentimentos Mas de quem e para quecirc A sua audiecircncia soacute pode ser depreendida de modo in-
direto por meio da linguagem do estilo e do tema o que natildeo se constitui tarefa das mais faacuteceis
por tratar-se de obra multifacetada de linguagem muito elaborada que prima pela sofisticaccedilatildeo
mas que natildeo despreza uma certa tonalidade menos erudita que se pode ateacute denominar em
alguma medida popular ou humilde De fato pelo recurso aos salmos e textos escrituraacuterios
com seu respectivo campo semacircntico permeado de expressotildees da liacutengua grega vulgar (κοινή)
traduzidas ou transliteradas em latim conhecidos de toda comunidade cristatilde natildeo apenas por
serem lidos mas principalmente por sua funccedilatildeo lituacutergica eacute sem duacutevida uma linguagem
(sermo) popular ou humilis todavia pelos mecanismos retoacutericos extremamente requintados e
pelas referecircncias a toda uma cultura filosoacutefica de par com uma argumentaccedilatildeo em muitas pas-
sagens nada singela especialmente nos livros 1 8 e de 9 a 13 pode-se considerar igualmente
elevadiacutessima Portanto humilde e elevada eacute a linguagem das Confissotildees constituindo em si
mesma um oximoro
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Diante desse desafio de escrever tanto para a gente mais simples como para filoacutesofos
desafio que se exprime nesse caso pela linguagem supotildee-se que Agostinho natildeo tenha simples-
mente pretendido abaixar o registro de seu discurso descendo aos simples e pequeninos (ad
catechizandos rudes) muito ao contraacuterio ao que parece pretendia elevar-se ou melhor ser
elevado ao confessar-se arrependido penitenciando-se mas tambeacutem ao confessar sua feacute e seu
louvor enaltecendo e reconhecendo a graccedila de Deus em sua vida Em sendo assim ao ser ele-
vado por Deus pela confissatildeo pretende igualmente mover as almas incitando-lhes semelhante
elevaccedilatildeo ou quando natildeo o desejo de elevaccedilatildeo desejo de que se deixassem igualmente elevar
como ele confessava desejar o que se pode considerar sem duacutevida uma meta de caraacuteter pastoral
Portanto sua missatildeo quanto ao paacutethos eacute tambeacutem a de mover as almas agrave salvaccedilatildeo que
se pode sintetizar na vontade de ser elevado e de para lanccedilar matildeo duma contradiccedilatildeo merecer
por uma espeacutecie de ascese cataacutertica a graccedila divina a misericoacuterdia do Deus justiacutessimo Ora
disso decorre a possibilidade duma outra funccedilatildeo da linguagem extremamente comovente fruto
dos recursos da elocuccedilatildeo a que recorre Agostinho nas Confissotildees e interligada com essa funccedilatildeo
dita pastoral de elevar as almas uma funccedilatildeo que se pode compreender como simultaneamente
propedecircutica e filosoacutefica Com efeito se uma das funccedilotildees deste paacutethos que se diz de caraacuteter
pastoral pretende comover positiva e negativamente incitando a um soacute tempo o desejo de
salvaccedilatildeo e o de horror agrave perdiccedilatildeo o desejo de buscar Deus e de evitar o mal de buscar ser mais
pela proximidade do Ser supremo e de evitar ser menos ou deixar de ser pelo afastamento desse
mesmo Ser como se percebe sobremodo nos livros da parte considerada biograacutefica da obra o
que natildeo implica de modo algum a exclusatildeo dos restantes livros a outra funccedilatildeo por sua vez
relacionada intimamente agrave primeira de que se pode dizer seja consequecircncia natural que se
exacerba tambeacutem a partir dos recursos da elocuccedilatildeo e que como se disse tem caraacuteter prope-
decircutico compreende-se como uma funccedilatildeo de purificaccedilatildeo filosoacutefica de afastamento progressivo
das coisas deste mundo de afastamento da ldquocarnerdquo se se pode dizer tendo em vista o despren-
dimento rumo a uma vida mais espiritual de proximidade com o Ser o puro Inteligiacutevel que se
transubstancia por sua vez num projeto de vivecircncia cristatilde o que se destaca sobremodo a partir
do livro novo encontrando sua foz nos estertores do livro derradeiro Donde ser liacutecito afirmar
que os livros da parte biograacutefica das Confissotildees do primeiro ao oitavo tecircm tambeacutem essa fun-
ccedilatildeo de purificaccedilatildeo tanto das emoccedilotildees como da razatildeo ou seja de disciplinar ou exercitar asce-
ticamente a alma (exercitatio animi)18 a fim de que os leitores e ouvintes pudessem estar pre-
parados para o que havia de vir nos livros subsequentes E isso parece estar em harmonia com
18 Ἥ ἄσκησις ἥ τῆς ψυχῆς
151
o projeto filosoacutefico platocircnico-cristatildeo que Agostinho tinha para sua vida e que colocou em praacute-
tica desde os tempos preacute-batismais de Cassiciacuteaco ateacute ser interrompido pela sua consagraccedilatildeo
sacerdotal (391 dC) um projeto propedecircutico-purificador
E de fato se se pode aventar que esse projeto cataacutertico da razatildeo encontra seu ponto de
saiacuteda no expurgo do ceticismo de tipo neoacadecircmico como se percebe nos trecircs livros intitulados
Contra Academicos desenvolve-se sobremodo nas paacuteginas do diaacutelogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monoacutelogo com os Soliloacutequios obras do mesmo periacuteodo
Formato monoloacutegico esse denominado por Dupuy-Trudelle (1998 p 1198) ldquodesdobramentordquo
que eacute bem possiacutevel tenha servido de laboratoacuterio para as proacuteprias Confissotildees sugere a autora
refletindo a intenccedilatildeo de Agostinho apesar da excelecircncia da feacute de levar as exigecircncias da razatildeo
ateacute ao limite extremo num esforccedilo de purificaccedilatildeo num ir-aleacutem das paixotildees e desiludir-se sobre
si mesmo Ora estar iludido acerca de si mesmo natildeo eacute impedimento agrave feacute mas o eacute ao acesso agrave
convicccedilatildeo intelectual verdadeira Portanto para chegar-se ao conhecimento define esta autora
(ibid pp 1198-9) faz-se mister como condiccedilatildeo uacutenica a ldquolibertaccedilatildeo da razatildeo de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesmardquo libertaccedilatildeo a que os Soliloacutequios datildeo curso
Pode-se compreender que para desenlamear a consciecircncia dos similisavoirs libertaacute-
la de toda ilusatildeo psicoloacutegica ensinaacute-la que o desejo da verdade natildeo eacute ainda a posses-
satildeo da verdade permitir-lhe ir aleacutem do conflito de interesses que leva a opiniatildeo a
revoltar-se contra a verdade seja preciso mensurar a distacircncia entre o sujeito e si
mesmo Ora fazecirc-lo eacute um convite a mensurar a distacircncia entre si e o conhecimento de
Deus Eis entatildeo todo o sentido do exerciacutecio proposto pelo ldquosoliloacutequiordquo mensurar uma
e outra19
Natildeo parece haver duacutevidas de que os Soliloacutequios trazem em si de modo embrionaacuterio o estilo
que haveria de consagrar sobretudo a partir das Confissotildees quando entatildeo dispensa o combate
direto de ideias preferindo ldquodesdobrar-serdquo e deixar-se interrogar por si mesmo ainda que de
modo proleacuteptico continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas
Todavia eacute mais que provaacutevel que esta exigecircncia natildeo tenha surgido do nada e sim pertenccedila a
um projeto filosoacutefico maior que englobe as demais obras de Cassiciacuteaco sendo-lhe entatildeo um
como que desenvolvimento natural
No proacutelogo do De ordine (13-4) Agostinho argumenta que o homem por ser um des-
conhecido de si mesmo natildeo consegue perceber a ordem que reina em todo o universo ordem
providencial em que ele estaacute inserido e que para conseguir conhecer-se seria necessaacuterio entrar
em si mesmo ali permanecendo afastado dos sentidos lugar em que poderia entatildeo curar-se das
feridas que as opiniotildees vulgares infligem agrave alma seja pelo ldquofogordquo do ldquoisolamentordquo conforme
19 DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Les Confessions Paris Gal-
limard 1998 p 1206
152
se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
153
soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
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As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
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menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
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Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
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sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
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(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
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articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
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O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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147
natildeo exclui nem o epidiacutectico tampouco o deliberativo) mediatamente por meio dos ouvintes
(διὰ τῶν ἀκροατῶν) aqueles aos quais se dirige quando recorre ao paacutethos despertando ou
dirigindo suas emoccedilotildees (ὅταν εἰς πάθος) o que se faz pela accedilatildeo discursiva (ὑπὸ τοῦ λόγου)
Isso porque os juiacutezos (τὰς κρίσεις) dos ouvintes objetivo da accedilatildeo persuasiva variam sob a
influecircncia das emoccedilotildees tais como a dor (λύπη) a alegria (χαρά) a amizade (φιλία) o oacutedio
(μῖσος) etc Com efeito o orador natildeo tem por escopo a emoccedilatildeo do auditoacuterio em si mesma como
finalidade e sim a sua persuasatildeo a fim de que decida em favor de sua causa para o que as
emoccedilotildees cooperam vivamente como percebeu Aristoacuteteles ao dedicar grande parte do livro
segundo da Retoacuterica ao estudo das paixotildees da alma
Um dos meios mais eficazes para a movimentaccedilatildeo do paacutethos a fim de que se tenha ecircxito
no apelo emocional em vista dum fim ulterior natildeo satildeo as provas demonstrativas recomendadas
para o gecircnero apropriado (o judiciaacuterio no caso) o entimema e as maacuteximas provas que devem
ser descobertas na invenccedilatildeo e sim os recursos pertencentes a outra parte da retoacuterica a elocuccedilatildeo
(λέξις) Com efeito depois de encontrado o que dizer (εὕρεσις) e disposto as mateacuterias de modo
apropriado (τάξις) resta saber como dizecirc-lo Esse ldquocomordquo respeita sem duacutevida agrave forma do dis-
curso que se chama tambeacutem ldquoestilordquo poreacutem de modo nenhum se limita a isso como se fosse
apenas uma sua vestimenta Os recursos da elocuccedilatildeo para muito aleacutem da ornamentaccedilatildeo tecircm
forccedila persuasiva pois argumentam seja pela concisatildeo das figuras seja pelo ritmo e paralelismo
das construccedilotildees seja pelas imagens que evocam o que fazem de modo principal pondo em
destaque tanto o ecircthos como o paacutethos O ecircthos por exemplo no emprego do leacutexico que quando
recheado de estrangeirismos (ξένην ποιεῖν τὴν διάλεκτον) (1404b10-12) diz Aristoacuteteles con-
fere um ar de dignidade ao discurso promovendo por tabela o orador que se faz parecer digno
e nobre assim como aquilo que estaacute dizendo O paacutethos por sua vez quando o discurso eacute ldquoele-
vadordquo a um niacutevel suprarracional ou sublime pelo uso de recursos poeacuteticos dentre os quais se
destacam as figuras de repeticcedilatildeo como paralelismos epanalepses anadiploses antanaacuteclases
reconhece que tudo aquilo que respeita agrave apresentaccedilatildeo do discurso como voz volume tom altura ritmo harmo-
nia entre tais e que eacute muito importante nos certames dramaacuteticos e eacutepicos (τῶν ἀγώνων) quando entatildeo faz-se
necessaacuterio equilibrar esses elementos segundo cada uma das emoccedilotildees (πρὸς ἕκαστον πάθος) embora seja tam-
beacutem utilizado nas demais atividades poliacuteticas como assembleias deliberativas e tribunais o eacute apenas de modo
deploraacutevel Isso porque conquanto seja necessaacuterio mover as paixotildees do auditoacuterio e construir o caraacuteter do orador
discursivamente essa necessidade se deve tatildeo soacute agrave corrupccedilatildeo dos cidadatildeos (διὰ τὴν μοχθηρίαν τῶν πολιτῶν)
(1403b34-35) o que equivale a dizer do auditoacuterio (τοῦ ἀκροατοῦ) Assim sendo o recurso tanto ao ecircthos como
ao paacutethos deixa de ser questatildeo de correccedilatildeo (οὐκ ὀρθῶς) de certo ou errado passando a ser uma necessidade (ἀλλrsquo
ὡς ἀναγκαίου) Com efeito o justo (δίκαιον) seria defender acusar exortar e dissuadir movido apenas pelos
fatos (ἀγωνίζεσθαι τοῖς πράγμασιν) (1404a5-6) de maneira tal que o restante que Aristoacuteteles reputa fora da
demonstraccedilatildeo (ἔξω τοῦ ἀποδεῖξαι) ο que inclui ecircthos e paacutethos seria superfluidade (περίεργα ἐστίν) (1404a8)
Infelizmente poreacutem a realidade eacute que o orador precisa conhecer estes recursos a fim de poder defender-se e atingir
seus objetivos uma vez que os adversaacuterios certamente lanccedilam matildeo deles de modo quase sempre inescrupuloso
148
paronomaacutesias antimetaacuteboles poliptotos etc E fique claro que dizer que Aristoacuteteles natildeo via com
bons olhos o (mau) recurso aos apelos eacutetico e pateacutetico nos tribunais natildeo significa dizer que
desprezasse os mecanismos da elocuccedilatildeo o que implicaria dizer que cresse o homem ser dotado
apenas de razatildeo excluiacutedos sentimentos e caraacuteter a natildeo dizer da vontade Ao contraacuterio Aristoacute-
teles bem reconhecia que em todo tipo de aprendizado (ἐν πάσῃ διδασκαλίᾳ) o estilo se faz
mateacuteria de certa importacircncia uma vez que algo se torna claro (πρὸς τὸ δηλῶσαι) por meio do
modo como eacute dito (ὡδὶ ἢ ὡδὶ εἰπεῖν) embora relegasse a questatildeo do estilo ao niacutevel da aparecircn-
cia (ἀλλrsquo ἅπαντα φαντασία ταῦτrsquo εστὶ) cuja finalidade seria apenas agradar o ouvinte (πρὸς
τὸν ἀκροατήν) ouvinte esse por sua vez cuja corrupccedilatildeo (μοχθηρία) seria a verdadeira causa
de tudo que natildeo eacute apodiacutectico na retoacuterica (1404a7-8) Em assim sendo o estilo (λέξις) seria um
mal necessaacuterio uma ferramenta que embora potencialmente injusta seria uacutetil para conferir
clareza ao discurso assim como todos os demais elementos de persuasatildeo natildeo-apodiacutecticos ou
extrademonstrativos E isso se justifica diz o filoacutesofo de modo peremptoacuterio porque ningueacutem
ensina a fazer geometria desse modo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) isto eacute nem pelo
recurso ao paacutethos nem pelo ecircthos tampouco por qualquer outra ferramenta indicada para a
elocuccedilatildeo como as figuras (1404a12) Compreende-se essa visatildeo deveras depreciativa da elo-
cuccedilatildeo por parte do filoacutesofo pois como ele mesmo diz no terceiro livro de sua Retoacuterica ao
empreender o tratamento da actio ou representaccedilatildeo do discurso (ὑπόκρισις) ateacute ao tempo da
escritura da obra natildeo havia ainda nenhuma arte isto eacute nenhum manual de retoacuterica voltado para
a mateacuteria (οὔπω δὲ σύγκειται τέχνη περὶ αὐτῶν) porque a leacuteksis soacute havia sido notada pou-
quiacutessimo antes (ἐπεὶ καὶ τὸ περὶ τὴν λέξιν ὀψὲ προῆλθεν) descaso que se justificava pelo fato
de o estilo mdash considerado entatildeo como mera ornamentaccedilatildeo do discurso mdash ser julgado inferior
(φορτικὸν) tema indigno das preocupaccedilotildees dum homem livre criacutetica que natildeo evita endossar o
filoacutesofo (καλῶς ὐπολαμβανόμενον) (1403b35-6)
A despeito desta postura criacutetica adotada por Aristoacuteteles e de seu juiacutezo negativo a respeito
do ecircthos e do paacutethos postura raramente admitida pelos estudiosos atuais da retoacuterica o que
importa para os fins deste artigo contudo eacute seu poder argumentativo uma vez que sua impor-
tacircncia natildeo pode ser negada seja ela justificada ou natildeo de par com a finalidade filosoacutefica que
lhes imprime o rhetor de Hipona Portanto justo ou natildeo (nos tribunais e assembleias) o fato
admitido por Aristoacuteteles eacute que a elocuccedilatildeo afeta sobremodo o paacutethos sendo de par com o ecircthos
reconhecido como a mais persuasiva (κυριωτάτη) das provas (1356a13) altamente eficaz para
os objetivos da argumentaccedilatildeo pois resta claro que por meio do estilo se consegue mover as
emoccedilotildees (1408a16) seja quando se fala com indignaccedilatildeo audaciosa (ὕβρις) seja com raiva
149
(ὁργιζομένου) impiedade (ἀσεβή) ou vergonha (αἰσχρά) O estilo adequado (ἡ οἰκεία λέξις)
que eacute aquele em que os elementos do paacutethos (παθητική) e do ecircthos (ἠθική) satildeo proporcionais
(ἀνάλογον) aos temas subjacentes (τοῖς ὐποκειμένοις πράγμασιν) (1408a10-11) faz com
que um dado assunto seja mais persuasivo Aleacutem disso remata Aristoacuteteles o ouvinte sempre
simpatiza (συνομοπαθεῖ ὁ ἀκούων) com quem fala de modo emocional (παθητικῶς
λέγοντι) ainda que esse natildeo diga nada (κἂν μηθὲν λέγῃ) (1408a23-4)
Reconhecido o vigor (δύναμις) natildeo apenas pateacutetico mas tambeacutem argumentativo da elo-
cuccedilatildeo resta ver como Agostinho se utiliza de seus recursos nas Confissotildees a fim de atingir seus
objetivos numa palavra a fim de fazer filosofia Pois bem as descriccedilotildees que melhor instigam
as emoccedilotildees satildeo as que fazem apelo agrave imaginaccedilatildeo e aos sentidos descriccedilotildees viacutevidas de cenas e
eventos contam muito como o famigerado roubo das peras (Conf 249) a prisatildeo de Aliacutepio
(6914) ou a cena do jardim de Milatildeo (81125-27) por exemplo as inumeraacuteveis metaacuteforas e a
prosopopeia de oacutergatildeos humanos que passam a ser dotados de matildeos pernas ouvidos como as
matildeos do coraccedilatildeo que se estendem em prece a Deus os relatos de laacutegrimas pungentes que se
vertem repetidas vezes enfim descriccedilotildees essas que tecircm potencial enorme para despertar fortes
sentimentos Do mesmo modo o uso de hipeacuterboles e outras tantas figuras se faz extremamente
uacutetil para criar o efeito emocional desejado Todavia nada talvez seja tatildeo eficiente nesse sentido
quanto o vocabulaacuterio o uso de palavras carregadas de intensa conotaccedilatildeo pateacutetica E no apelo
agraves emoccedilotildees pode-se dizer esteja uma das chaves de leitura das Confissotildees ao menos retoacuterica
De fato a linguagem da obra estaacute repleta de figuras cujo efeito principal eacute o despertar dos
sentimentos Mas de quem e para quecirc A sua audiecircncia soacute pode ser depreendida de modo in-
direto por meio da linguagem do estilo e do tema o que natildeo se constitui tarefa das mais faacuteceis
por tratar-se de obra multifacetada de linguagem muito elaborada que prima pela sofisticaccedilatildeo
mas que natildeo despreza uma certa tonalidade menos erudita que se pode ateacute denominar em
alguma medida popular ou humilde De fato pelo recurso aos salmos e textos escrituraacuterios
com seu respectivo campo semacircntico permeado de expressotildees da liacutengua grega vulgar (κοινή)
traduzidas ou transliteradas em latim conhecidos de toda comunidade cristatilde natildeo apenas por
serem lidos mas principalmente por sua funccedilatildeo lituacutergica eacute sem duacutevida uma linguagem
(sermo) popular ou humilis todavia pelos mecanismos retoacutericos extremamente requintados e
pelas referecircncias a toda uma cultura filosoacutefica de par com uma argumentaccedilatildeo em muitas pas-
sagens nada singela especialmente nos livros 1 8 e de 9 a 13 pode-se considerar igualmente
elevadiacutessima Portanto humilde e elevada eacute a linguagem das Confissotildees constituindo em si
mesma um oximoro
150
Diante desse desafio de escrever tanto para a gente mais simples como para filoacutesofos
desafio que se exprime nesse caso pela linguagem supotildee-se que Agostinho natildeo tenha simples-
mente pretendido abaixar o registro de seu discurso descendo aos simples e pequeninos (ad
catechizandos rudes) muito ao contraacuterio ao que parece pretendia elevar-se ou melhor ser
elevado ao confessar-se arrependido penitenciando-se mas tambeacutem ao confessar sua feacute e seu
louvor enaltecendo e reconhecendo a graccedila de Deus em sua vida Em sendo assim ao ser ele-
vado por Deus pela confissatildeo pretende igualmente mover as almas incitando-lhes semelhante
elevaccedilatildeo ou quando natildeo o desejo de elevaccedilatildeo desejo de que se deixassem igualmente elevar
como ele confessava desejar o que se pode considerar sem duacutevida uma meta de caraacuteter pastoral
Portanto sua missatildeo quanto ao paacutethos eacute tambeacutem a de mover as almas agrave salvaccedilatildeo que
se pode sintetizar na vontade de ser elevado e de para lanccedilar matildeo duma contradiccedilatildeo merecer
por uma espeacutecie de ascese cataacutertica a graccedila divina a misericoacuterdia do Deus justiacutessimo Ora
disso decorre a possibilidade duma outra funccedilatildeo da linguagem extremamente comovente fruto
dos recursos da elocuccedilatildeo a que recorre Agostinho nas Confissotildees e interligada com essa funccedilatildeo
dita pastoral de elevar as almas uma funccedilatildeo que se pode compreender como simultaneamente
propedecircutica e filosoacutefica Com efeito se uma das funccedilotildees deste paacutethos que se diz de caraacuteter
pastoral pretende comover positiva e negativamente incitando a um soacute tempo o desejo de
salvaccedilatildeo e o de horror agrave perdiccedilatildeo o desejo de buscar Deus e de evitar o mal de buscar ser mais
pela proximidade do Ser supremo e de evitar ser menos ou deixar de ser pelo afastamento desse
mesmo Ser como se percebe sobremodo nos livros da parte considerada biograacutefica da obra o
que natildeo implica de modo algum a exclusatildeo dos restantes livros a outra funccedilatildeo por sua vez
relacionada intimamente agrave primeira de que se pode dizer seja consequecircncia natural que se
exacerba tambeacutem a partir dos recursos da elocuccedilatildeo e que como se disse tem caraacuteter prope-
decircutico compreende-se como uma funccedilatildeo de purificaccedilatildeo filosoacutefica de afastamento progressivo
das coisas deste mundo de afastamento da ldquocarnerdquo se se pode dizer tendo em vista o despren-
dimento rumo a uma vida mais espiritual de proximidade com o Ser o puro Inteligiacutevel que se
transubstancia por sua vez num projeto de vivecircncia cristatilde o que se destaca sobremodo a partir
do livro novo encontrando sua foz nos estertores do livro derradeiro Donde ser liacutecito afirmar
que os livros da parte biograacutefica das Confissotildees do primeiro ao oitavo tecircm tambeacutem essa fun-
ccedilatildeo de purificaccedilatildeo tanto das emoccedilotildees como da razatildeo ou seja de disciplinar ou exercitar asce-
ticamente a alma (exercitatio animi)18 a fim de que os leitores e ouvintes pudessem estar pre-
parados para o que havia de vir nos livros subsequentes E isso parece estar em harmonia com
18 Ἥ ἄσκησις ἥ τῆς ψυχῆς
151
o projeto filosoacutefico platocircnico-cristatildeo que Agostinho tinha para sua vida e que colocou em praacute-
tica desde os tempos preacute-batismais de Cassiciacuteaco ateacute ser interrompido pela sua consagraccedilatildeo
sacerdotal (391 dC) um projeto propedecircutico-purificador
E de fato se se pode aventar que esse projeto cataacutertico da razatildeo encontra seu ponto de
saiacuteda no expurgo do ceticismo de tipo neoacadecircmico como se percebe nos trecircs livros intitulados
Contra Academicos desenvolve-se sobremodo nas paacuteginas do diaacutelogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monoacutelogo com os Soliloacutequios obras do mesmo periacuteodo
Formato monoloacutegico esse denominado por Dupuy-Trudelle (1998 p 1198) ldquodesdobramentordquo
que eacute bem possiacutevel tenha servido de laboratoacuterio para as proacuteprias Confissotildees sugere a autora
refletindo a intenccedilatildeo de Agostinho apesar da excelecircncia da feacute de levar as exigecircncias da razatildeo
ateacute ao limite extremo num esforccedilo de purificaccedilatildeo num ir-aleacutem das paixotildees e desiludir-se sobre
si mesmo Ora estar iludido acerca de si mesmo natildeo eacute impedimento agrave feacute mas o eacute ao acesso agrave
convicccedilatildeo intelectual verdadeira Portanto para chegar-se ao conhecimento define esta autora
(ibid pp 1198-9) faz-se mister como condiccedilatildeo uacutenica a ldquolibertaccedilatildeo da razatildeo de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesmardquo libertaccedilatildeo a que os Soliloacutequios datildeo curso
Pode-se compreender que para desenlamear a consciecircncia dos similisavoirs libertaacute-
la de toda ilusatildeo psicoloacutegica ensinaacute-la que o desejo da verdade natildeo eacute ainda a posses-
satildeo da verdade permitir-lhe ir aleacutem do conflito de interesses que leva a opiniatildeo a
revoltar-se contra a verdade seja preciso mensurar a distacircncia entre o sujeito e si
mesmo Ora fazecirc-lo eacute um convite a mensurar a distacircncia entre si e o conhecimento de
Deus Eis entatildeo todo o sentido do exerciacutecio proposto pelo ldquosoliloacutequiordquo mensurar uma
e outra19
Natildeo parece haver duacutevidas de que os Soliloacutequios trazem em si de modo embrionaacuterio o estilo
que haveria de consagrar sobretudo a partir das Confissotildees quando entatildeo dispensa o combate
direto de ideias preferindo ldquodesdobrar-serdquo e deixar-se interrogar por si mesmo ainda que de
modo proleacuteptico continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas
Todavia eacute mais que provaacutevel que esta exigecircncia natildeo tenha surgido do nada e sim pertenccedila a
um projeto filosoacutefico maior que englobe as demais obras de Cassiciacuteaco sendo-lhe entatildeo um
como que desenvolvimento natural
No proacutelogo do De ordine (13-4) Agostinho argumenta que o homem por ser um des-
conhecido de si mesmo natildeo consegue perceber a ordem que reina em todo o universo ordem
providencial em que ele estaacute inserido e que para conseguir conhecer-se seria necessaacuterio entrar
em si mesmo ali permanecendo afastado dos sentidos lugar em que poderia entatildeo curar-se das
feridas que as opiniotildees vulgares infligem agrave alma seja pelo ldquofogordquo do ldquoisolamentordquo conforme
19 DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Les Confessions Paris Gal-
limard 1998 p 1206
152
se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
153
soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
154
As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
155
menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
156
Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
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sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
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(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
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articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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148
paronomaacutesias antimetaacuteboles poliptotos etc E fique claro que dizer que Aristoacuteteles natildeo via com
bons olhos o (mau) recurso aos apelos eacutetico e pateacutetico nos tribunais natildeo significa dizer que
desprezasse os mecanismos da elocuccedilatildeo o que implicaria dizer que cresse o homem ser dotado
apenas de razatildeo excluiacutedos sentimentos e caraacuteter a natildeo dizer da vontade Ao contraacuterio Aristoacute-
teles bem reconhecia que em todo tipo de aprendizado (ἐν πάσῃ διδασκαλίᾳ) o estilo se faz
mateacuteria de certa importacircncia uma vez que algo se torna claro (πρὸς τὸ δηλῶσαι) por meio do
modo como eacute dito (ὡδὶ ἢ ὡδὶ εἰπεῖν) embora relegasse a questatildeo do estilo ao niacutevel da aparecircn-
cia (ἀλλrsquo ἅπαντα φαντασία ταῦτrsquo εστὶ) cuja finalidade seria apenas agradar o ouvinte (πρὸς
τὸν ἀκροατήν) ouvinte esse por sua vez cuja corrupccedilatildeo (μοχθηρία) seria a verdadeira causa
de tudo que natildeo eacute apodiacutectico na retoacuterica (1404a7-8) Em assim sendo o estilo (λέξις) seria um
mal necessaacuterio uma ferramenta que embora potencialmente injusta seria uacutetil para conferir
clareza ao discurso assim como todos os demais elementos de persuasatildeo natildeo-apodiacutecticos ou
extrademonstrativos E isso se justifica diz o filoacutesofo de modo peremptoacuterio porque ningueacutem
ensina a fazer geometria desse modo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) isto eacute nem pelo
recurso ao paacutethos nem pelo ecircthos tampouco por qualquer outra ferramenta indicada para a
elocuccedilatildeo como as figuras (1404a12) Compreende-se essa visatildeo deveras depreciativa da elo-
cuccedilatildeo por parte do filoacutesofo pois como ele mesmo diz no terceiro livro de sua Retoacuterica ao
empreender o tratamento da actio ou representaccedilatildeo do discurso (ὑπόκρισις) ateacute ao tempo da
escritura da obra natildeo havia ainda nenhuma arte isto eacute nenhum manual de retoacuterica voltado para
a mateacuteria (οὔπω δὲ σύγκειται τέχνη περὶ αὐτῶν) porque a leacuteksis soacute havia sido notada pou-
quiacutessimo antes (ἐπεὶ καὶ τὸ περὶ τὴν λέξιν ὀψὲ προῆλθεν) descaso que se justificava pelo fato
de o estilo mdash considerado entatildeo como mera ornamentaccedilatildeo do discurso mdash ser julgado inferior
(φορτικὸν) tema indigno das preocupaccedilotildees dum homem livre criacutetica que natildeo evita endossar o
filoacutesofo (καλῶς ὐπολαμβανόμενον) (1403b35-6)
A despeito desta postura criacutetica adotada por Aristoacuteteles e de seu juiacutezo negativo a respeito
do ecircthos e do paacutethos postura raramente admitida pelos estudiosos atuais da retoacuterica o que
importa para os fins deste artigo contudo eacute seu poder argumentativo uma vez que sua impor-
tacircncia natildeo pode ser negada seja ela justificada ou natildeo de par com a finalidade filosoacutefica que
lhes imprime o rhetor de Hipona Portanto justo ou natildeo (nos tribunais e assembleias) o fato
admitido por Aristoacuteteles eacute que a elocuccedilatildeo afeta sobremodo o paacutethos sendo de par com o ecircthos
reconhecido como a mais persuasiva (κυριωτάτη) das provas (1356a13) altamente eficaz para
os objetivos da argumentaccedilatildeo pois resta claro que por meio do estilo se consegue mover as
emoccedilotildees (1408a16) seja quando se fala com indignaccedilatildeo audaciosa (ὕβρις) seja com raiva
149
(ὁργιζομένου) impiedade (ἀσεβή) ou vergonha (αἰσχρά) O estilo adequado (ἡ οἰκεία λέξις)
que eacute aquele em que os elementos do paacutethos (παθητική) e do ecircthos (ἠθική) satildeo proporcionais
(ἀνάλογον) aos temas subjacentes (τοῖς ὐποκειμένοις πράγμασιν) (1408a10-11) faz com
que um dado assunto seja mais persuasivo Aleacutem disso remata Aristoacuteteles o ouvinte sempre
simpatiza (συνομοπαθεῖ ὁ ἀκούων) com quem fala de modo emocional (παθητικῶς
λέγοντι) ainda que esse natildeo diga nada (κἂν μηθὲν λέγῃ) (1408a23-4)
Reconhecido o vigor (δύναμις) natildeo apenas pateacutetico mas tambeacutem argumentativo da elo-
cuccedilatildeo resta ver como Agostinho se utiliza de seus recursos nas Confissotildees a fim de atingir seus
objetivos numa palavra a fim de fazer filosofia Pois bem as descriccedilotildees que melhor instigam
as emoccedilotildees satildeo as que fazem apelo agrave imaginaccedilatildeo e aos sentidos descriccedilotildees viacutevidas de cenas e
eventos contam muito como o famigerado roubo das peras (Conf 249) a prisatildeo de Aliacutepio
(6914) ou a cena do jardim de Milatildeo (81125-27) por exemplo as inumeraacuteveis metaacuteforas e a
prosopopeia de oacutergatildeos humanos que passam a ser dotados de matildeos pernas ouvidos como as
matildeos do coraccedilatildeo que se estendem em prece a Deus os relatos de laacutegrimas pungentes que se
vertem repetidas vezes enfim descriccedilotildees essas que tecircm potencial enorme para despertar fortes
sentimentos Do mesmo modo o uso de hipeacuterboles e outras tantas figuras se faz extremamente
uacutetil para criar o efeito emocional desejado Todavia nada talvez seja tatildeo eficiente nesse sentido
quanto o vocabulaacuterio o uso de palavras carregadas de intensa conotaccedilatildeo pateacutetica E no apelo
agraves emoccedilotildees pode-se dizer esteja uma das chaves de leitura das Confissotildees ao menos retoacuterica
De fato a linguagem da obra estaacute repleta de figuras cujo efeito principal eacute o despertar dos
sentimentos Mas de quem e para quecirc A sua audiecircncia soacute pode ser depreendida de modo in-
direto por meio da linguagem do estilo e do tema o que natildeo se constitui tarefa das mais faacuteceis
por tratar-se de obra multifacetada de linguagem muito elaborada que prima pela sofisticaccedilatildeo
mas que natildeo despreza uma certa tonalidade menos erudita que se pode ateacute denominar em
alguma medida popular ou humilde De fato pelo recurso aos salmos e textos escrituraacuterios
com seu respectivo campo semacircntico permeado de expressotildees da liacutengua grega vulgar (κοινή)
traduzidas ou transliteradas em latim conhecidos de toda comunidade cristatilde natildeo apenas por
serem lidos mas principalmente por sua funccedilatildeo lituacutergica eacute sem duacutevida uma linguagem
(sermo) popular ou humilis todavia pelos mecanismos retoacutericos extremamente requintados e
pelas referecircncias a toda uma cultura filosoacutefica de par com uma argumentaccedilatildeo em muitas pas-
sagens nada singela especialmente nos livros 1 8 e de 9 a 13 pode-se considerar igualmente
elevadiacutessima Portanto humilde e elevada eacute a linguagem das Confissotildees constituindo em si
mesma um oximoro
150
Diante desse desafio de escrever tanto para a gente mais simples como para filoacutesofos
desafio que se exprime nesse caso pela linguagem supotildee-se que Agostinho natildeo tenha simples-
mente pretendido abaixar o registro de seu discurso descendo aos simples e pequeninos (ad
catechizandos rudes) muito ao contraacuterio ao que parece pretendia elevar-se ou melhor ser
elevado ao confessar-se arrependido penitenciando-se mas tambeacutem ao confessar sua feacute e seu
louvor enaltecendo e reconhecendo a graccedila de Deus em sua vida Em sendo assim ao ser ele-
vado por Deus pela confissatildeo pretende igualmente mover as almas incitando-lhes semelhante
elevaccedilatildeo ou quando natildeo o desejo de elevaccedilatildeo desejo de que se deixassem igualmente elevar
como ele confessava desejar o que se pode considerar sem duacutevida uma meta de caraacuteter pastoral
Portanto sua missatildeo quanto ao paacutethos eacute tambeacutem a de mover as almas agrave salvaccedilatildeo que
se pode sintetizar na vontade de ser elevado e de para lanccedilar matildeo duma contradiccedilatildeo merecer
por uma espeacutecie de ascese cataacutertica a graccedila divina a misericoacuterdia do Deus justiacutessimo Ora
disso decorre a possibilidade duma outra funccedilatildeo da linguagem extremamente comovente fruto
dos recursos da elocuccedilatildeo a que recorre Agostinho nas Confissotildees e interligada com essa funccedilatildeo
dita pastoral de elevar as almas uma funccedilatildeo que se pode compreender como simultaneamente
propedecircutica e filosoacutefica Com efeito se uma das funccedilotildees deste paacutethos que se diz de caraacuteter
pastoral pretende comover positiva e negativamente incitando a um soacute tempo o desejo de
salvaccedilatildeo e o de horror agrave perdiccedilatildeo o desejo de buscar Deus e de evitar o mal de buscar ser mais
pela proximidade do Ser supremo e de evitar ser menos ou deixar de ser pelo afastamento desse
mesmo Ser como se percebe sobremodo nos livros da parte considerada biograacutefica da obra o
que natildeo implica de modo algum a exclusatildeo dos restantes livros a outra funccedilatildeo por sua vez
relacionada intimamente agrave primeira de que se pode dizer seja consequecircncia natural que se
exacerba tambeacutem a partir dos recursos da elocuccedilatildeo e que como se disse tem caraacuteter prope-
decircutico compreende-se como uma funccedilatildeo de purificaccedilatildeo filosoacutefica de afastamento progressivo
das coisas deste mundo de afastamento da ldquocarnerdquo se se pode dizer tendo em vista o despren-
dimento rumo a uma vida mais espiritual de proximidade com o Ser o puro Inteligiacutevel que se
transubstancia por sua vez num projeto de vivecircncia cristatilde o que se destaca sobremodo a partir
do livro novo encontrando sua foz nos estertores do livro derradeiro Donde ser liacutecito afirmar
que os livros da parte biograacutefica das Confissotildees do primeiro ao oitavo tecircm tambeacutem essa fun-
ccedilatildeo de purificaccedilatildeo tanto das emoccedilotildees como da razatildeo ou seja de disciplinar ou exercitar asce-
ticamente a alma (exercitatio animi)18 a fim de que os leitores e ouvintes pudessem estar pre-
parados para o que havia de vir nos livros subsequentes E isso parece estar em harmonia com
18 Ἥ ἄσκησις ἥ τῆς ψυχῆς
151
o projeto filosoacutefico platocircnico-cristatildeo que Agostinho tinha para sua vida e que colocou em praacute-
tica desde os tempos preacute-batismais de Cassiciacuteaco ateacute ser interrompido pela sua consagraccedilatildeo
sacerdotal (391 dC) um projeto propedecircutico-purificador
E de fato se se pode aventar que esse projeto cataacutertico da razatildeo encontra seu ponto de
saiacuteda no expurgo do ceticismo de tipo neoacadecircmico como se percebe nos trecircs livros intitulados
Contra Academicos desenvolve-se sobremodo nas paacuteginas do diaacutelogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monoacutelogo com os Soliloacutequios obras do mesmo periacuteodo
Formato monoloacutegico esse denominado por Dupuy-Trudelle (1998 p 1198) ldquodesdobramentordquo
que eacute bem possiacutevel tenha servido de laboratoacuterio para as proacuteprias Confissotildees sugere a autora
refletindo a intenccedilatildeo de Agostinho apesar da excelecircncia da feacute de levar as exigecircncias da razatildeo
ateacute ao limite extremo num esforccedilo de purificaccedilatildeo num ir-aleacutem das paixotildees e desiludir-se sobre
si mesmo Ora estar iludido acerca de si mesmo natildeo eacute impedimento agrave feacute mas o eacute ao acesso agrave
convicccedilatildeo intelectual verdadeira Portanto para chegar-se ao conhecimento define esta autora
(ibid pp 1198-9) faz-se mister como condiccedilatildeo uacutenica a ldquolibertaccedilatildeo da razatildeo de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesmardquo libertaccedilatildeo a que os Soliloacutequios datildeo curso
Pode-se compreender que para desenlamear a consciecircncia dos similisavoirs libertaacute-
la de toda ilusatildeo psicoloacutegica ensinaacute-la que o desejo da verdade natildeo eacute ainda a posses-
satildeo da verdade permitir-lhe ir aleacutem do conflito de interesses que leva a opiniatildeo a
revoltar-se contra a verdade seja preciso mensurar a distacircncia entre o sujeito e si
mesmo Ora fazecirc-lo eacute um convite a mensurar a distacircncia entre si e o conhecimento de
Deus Eis entatildeo todo o sentido do exerciacutecio proposto pelo ldquosoliloacutequiordquo mensurar uma
e outra19
Natildeo parece haver duacutevidas de que os Soliloacutequios trazem em si de modo embrionaacuterio o estilo
que haveria de consagrar sobretudo a partir das Confissotildees quando entatildeo dispensa o combate
direto de ideias preferindo ldquodesdobrar-serdquo e deixar-se interrogar por si mesmo ainda que de
modo proleacuteptico continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas
Todavia eacute mais que provaacutevel que esta exigecircncia natildeo tenha surgido do nada e sim pertenccedila a
um projeto filosoacutefico maior que englobe as demais obras de Cassiciacuteaco sendo-lhe entatildeo um
como que desenvolvimento natural
No proacutelogo do De ordine (13-4) Agostinho argumenta que o homem por ser um des-
conhecido de si mesmo natildeo consegue perceber a ordem que reina em todo o universo ordem
providencial em que ele estaacute inserido e que para conseguir conhecer-se seria necessaacuterio entrar
em si mesmo ali permanecendo afastado dos sentidos lugar em que poderia entatildeo curar-se das
feridas que as opiniotildees vulgares infligem agrave alma seja pelo ldquofogordquo do ldquoisolamentordquo conforme
19 DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Les Confessions Paris Gal-
limard 1998 p 1206
152
se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
153
soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
154
As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
155
menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
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Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
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sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
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(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
159
articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
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ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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(ὁργιζομένου) impiedade (ἀσεβή) ou vergonha (αἰσχρά) O estilo adequado (ἡ οἰκεία λέξις)
que eacute aquele em que os elementos do paacutethos (παθητική) e do ecircthos (ἠθική) satildeo proporcionais
(ἀνάλογον) aos temas subjacentes (τοῖς ὐποκειμένοις πράγμασιν) (1408a10-11) faz com
que um dado assunto seja mais persuasivo Aleacutem disso remata Aristoacuteteles o ouvinte sempre
simpatiza (συνομοπαθεῖ ὁ ἀκούων) com quem fala de modo emocional (παθητικῶς
λέγοντι) ainda que esse natildeo diga nada (κἂν μηθὲν λέγῃ) (1408a23-4)
Reconhecido o vigor (δύναμις) natildeo apenas pateacutetico mas tambeacutem argumentativo da elo-
cuccedilatildeo resta ver como Agostinho se utiliza de seus recursos nas Confissotildees a fim de atingir seus
objetivos numa palavra a fim de fazer filosofia Pois bem as descriccedilotildees que melhor instigam
as emoccedilotildees satildeo as que fazem apelo agrave imaginaccedilatildeo e aos sentidos descriccedilotildees viacutevidas de cenas e
eventos contam muito como o famigerado roubo das peras (Conf 249) a prisatildeo de Aliacutepio
(6914) ou a cena do jardim de Milatildeo (81125-27) por exemplo as inumeraacuteveis metaacuteforas e a
prosopopeia de oacutergatildeos humanos que passam a ser dotados de matildeos pernas ouvidos como as
matildeos do coraccedilatildeo que se estendem em prece a Deus os relatos de laacutegrimas pungentes que se
vertem repetidas vezes enfim descriccedilotildees essas que tecircm potencial enorme para despertar fortes
sentimentos Do mesmo modo o uso de hipeacuterboles e outras tantas figuras se faz extremamente
uacutetil para criar o efeito emocional desejado Todavia nada talvez seja tatildeo eficiente nesse sentido
quanto o vocabulaacuterio o uso de palavras carregadas de intensa conotaccedilatildeo pateacutetica E no apelo
agraves emoccedilotildees pode-se dizer esteja uma das chaves de leitura das Confissotildees ao menos retoacuterica
De fato a linguagem da obra estaacute repleta de figuras cujo efeito principal eacute o despertar dos
sentimentos Mas de quem e para quecirc A sua audiecircncia soacute pode ser depreendida de modo in-
direto por meio da linguagem do estilo e do tema o que natildeo se constitui tarefa das mais faacuteceis
por tratar-se de obra multifacetada de linguagem muito elaborada que prima pela sofisticaccedilatildeo
mas que natildeo despreza uma certa tonalidade menos erudita que se pode ateacute denominar em
alguma medida popular ou humilde De fato pelo recurso aos salmos e textos escrituraacuterios
com seu respectivo campo semacircntico permeado de expressotildees da liacutengua grega vulgar (κοινή)
traduzidas ou transliteradas em latim conhecidos de toda comunidade cristatilde natildeo apenas por
serem lidos mas principalmente por sua funccedilatildeo lituacutergica eacute sem duacutevida uma linguagem
(sermo) popular ou humilis todavia pelos mecanismos retoacutericos extremamente requintados e
pelas referecircncias a toda uma cultura filosoacutefica de par com uma argumentaccedilatildeo em muitas pas-
sagens nada singela especialmente nos livros 1 8 e de 9 a 13 pode-se considerar igualmente
elevadiacutessima Portanto humilde e elevada eacute a linguagem das Confissotildees constituindo em si
mesma um oximoro
150
Diante desse desafio de escrever tanto para a gente mais simples como para filoacutesofos
desafio que se exprime nesse caso pela linguagem supotildee-se que Agostinho natildeo tenha simples-
mente pretendido abaixar o registro de seu discurso descendo aos simples e pequeninos (ad
catechizandos rudes) muito ao contraacuterio ao que parece pretendia elevar-se ou melhor ser
elevado ao confessar-se arrependido penitenciando-se mas tambeacutem ao confessar sua feacute e seu
louvor enaltecendo e reconhecendo a graccedila de Deus em sua vida Em sendo assim ao ser ele-
vado por Deus pela confissatildeo pretende igualmente mover as almas incitando-lhes semelhante
elevaccedilatildeo ou quando natildeo o desejo de elevaccedilatildeo desejo de que se deixassem igualmente elevar
como ele confessava desejar o que se pode considerar sem duacutevida uma meta de caraacuteter pastoral
Portanto sua missatildeo quanto ao paacutethos eacute tambeacutem a de mover as almas agrave salvaccedilatildeo que
se pode sintetizar na vontade de ser elevado e de para lanccedilar matildeo duma contradiccedilatildeo merecer
por uma espeacutecie de ascese cataacutertica a graccedila divina a misericoacuterdia do Deus justiacutessimo Ora
disso decorre a possibilidade duma outra funccedilatildeo da linguagem extremamente comovente fruto
dos recursos da elocuccedilatildeo a que recorre Agostinho nas Confissotildees e interligada com essa funccedilatildeo
dita pastoral de elevar as almas uma funccedilatildeo que se pode compreender como simultaneamente
propedecircutica e filosoacutefica Com efeito se uma das funccedilotildees deste paacutethos que se diz de caraacuteter
pastoral pretende comover positiva e negativamente incitando a um soacute tempo o desejo de
salvaccedilatildeo e o de horror agrave perdiccedilatildeo o desejo de buscar Deus e de evitar o mal de buscar ser mais
pela proximidade do Ser supremo e de evitar ser menos ou deixar de ser pelo afastamento desse
mesmo Ser como se percebe sobremodo nos livros da parte considerada biograacutefica da obra o
que natildeo implica de modo algum a exclusatildeo dos restantes livros a outra funccedilatildeo por sua vez
relacionada intimamente agrave primeira de que se pode dizer seja consequecircncia natural que se
exacerba tambeacutem a partir dos recursos da elocuccedilatildeo e que como se disse tem caraacuteter prope-
decircutico compreende-se como uma funccedilatildeo de purificaccedilatildeo filosoacutefica de afastamento progressivo
das coisas deste mundo de afastamento da ldquocarnerdquo se se pode dizer tendo em vista o despren-
dimento rumo a uma vida mais espiritual de proximidade com o Ser o puro Inteligiacutevel que se
transubstancia por sua vez num projeto de vivecircncia cristatilde o que se destaca sobremodo a partir
do livro novo encontrando sua foz nos estertores do livro derradeiro Donde ser liacutecito afirmar
que os livros da parte biograacutefica das Confissotildees do primeiro ao oitavo tecircm tambeacutem essa fun-
ccedilatildeo de purificaccedilatildeo tanto das emoccedilotildees como da razatildeo ou seja de disciplinar ou exercitar asce-
ticamente a alma (exercitatio animi)18 a fim de que os leitores e ouvintes pudessem estar pre-
parados para o que havia de vir nos livros subsequentes E isso parece estar em harmonia com
18 Ἥ ἄσκησις ἥ τῆς ψυχῆς
151
o projeto filosoacutefico platocircnico-cristatildeo que Agostinho tinha para sua vida e que colocou em praacute-
tica desde os tempos preacute-batismais de Cassiciacuteaco ateacute ser interrompido pela sua consagraccedilatildeo
sacerdotal (391 dC) um projeto propedecircutico-purificador
E de fato se se pode aventar que esse projeto cataacutertico da razatildeo encontra seu ponto de
saiacuteda no expurgo do ceticismo de tipo neoacadecircmico como se percebe nos trecircs livros intitulados
Contra Academicos desenvolve-se sobremodo nas paacuteginas do diaacutelogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monoacutelogo com os Soliloacutequios obras do mesmo periacuteodo
Formato monoloacutegico esse denominado por Dupuy-Trudelle (1998 p 1198) ldquodesdobramentordquo
que eacute bem possiacutevel tenha servido de laboratoacuterio para as proacuteprias Confissotildees sugere a autora
refletindo a intenccedilatildeo de Agostinho apesar da excelecircncia da feacute de levar as exigecircncias da razatildeo
ateacute ao limite extremo num esforccedilo de purificaccedilatildeo num ir-aleacutem das paixotildees e desiludir-se sobre
si mesmo Ora estar iludido acerca de si mesmo natildeo eacute impedimento agrave feacute mas o eacute ao acesso agrave
convicccedilatildeo intelectual verdadeira Portanto para chegar-se ao conhecimento define esta autora
(ibid pp 1198-9) faz-se mister como condiccedilatildeo uacutenica a ldquolibertaccedilatildeo da razatildeo de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesmardquo libertaccedilatildeo a que os Soliloacutequios datildeo curso
Pode-se compreender que para desenlamear a consciecircncia dos similisavoirs libertaacute-
la de toda ilusatildeo psicoloacutegica ensinaacute-la que o desejo da verdade natildeo eacute ainda a posses-
satildeo da verdade permitir-lhe ir aleacutem do conflito de interesses que leva a opiniatildeo a
revoltar-se contra a verdade seja preciso mensurar a distacircncia entre o sujeito e si
mesmo Ora fazecirc-lo eacute um convite a mensurar a distacircncia entre si e o conhecimento de
Deus Eis entatildeo todo o sentido do exerciacutecio proposto pelo ldquosoliloacutequiordquo mensurar uma
e outra19
Natildeo parece haver duacutevidas de que os Soliloacutequios trazem em si de modo embrionaacuterio o estilo
que haveria de consagrar sobretudo a partir das Confissotildees quando entatildeo dispensa o combate
direto de ideias preferindo ldquodesdobrar-serdquo e deixar-se interrogar por si mesmo ainda que de
modo proleacuteptico continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas
Todavia eacute mais que provaacutevel que esta exigecircncia natildeo tenha surgido do nada e sim pertenccedila a
um projeto filosoacutefico maior que englobe as demais obras de Cassiciacuteaco sendo-lhe entatildeo um
como que desenvolvimento natural
No proacutelogo do De ordine (13-4) Agostinho argumenta que o homem por ser um des-
conhecido de si mesmo natildeo consegue perceber a ordem que reina em todo o universo ordem
providencial em que ele estaacute inserido e que para conseguir conhecer-se seria necessaacuterio entrar
em si mesmo ali permanecendo afastado dos sentidos lugar em que poderia entatildeo curar-se das
feridas que as opiniotildees vulgares infligem agrave alma seja pelo ldquofogordquo do ldquoisolamentordquo conforme
19 DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Les Confessions Paris Gal-
limard 1998 p 1206
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se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
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soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
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As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
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menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
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Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
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sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
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(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
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articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
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O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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SLOANE Thomas O (Ed) Encyclopedia of Rhetoric Oxford Oxford University Press
2001
150
Diante desse desafio de escrever tanto para a gente mais simples como para filoacutesofos
desafio que se exprime nesse caso pela linguagem supotildee-se que Agostinho natildeo tenha simples-
mente pretendido abaixar o registro de seu discurso descendo aos simples e pequeninos (ad
catechizandos rudes) muito ao contraacuterio ao que parece pretendia elevar-se ou melhor ser
elevado ao confessar-se arrependido penitenciando-se mas tambeacutem ao confessar sua feacute e seu
louvor enaltecendo e reconhecendo a graccedila de Deus em sua vida Em sendo assim ao ser ele-
vado por Deus pela confissatildeo pretende igualmente mover as almas incitando-lhes semelhante
elevaccedilatildeo ou quando natildeo o desejo de elevaccedilatildeo desejo de que se deixassem igualmente elevar
como ele confessava desejar o que se pode considerar sem duacutevida uma meta de caraacuteter pastoral
Portanto sua missatildeo quanto ao paacutethos eacute tambeacutem a de mover as almas agrave salvaccedilatildeo que
se pode sintetizar na vontade de ser elevado e de para lanccedilar matildeo duma contradiccedilatildeo merecer
por uma espeacutecie de ascese cataacutertica a graccedila divina a misericoacuterdia do Deus justiacutessimo Ora
disso decorre a possibilidade duma outra funccedilatildeo da linguagem extremamente comovente fruto
dos recursos da elocuccedilatildeo a que recorre Agostinho nas Confissotildees e interligada com essa funccedilatildeo
dita pastoral de elevar as almas uma funccedilatildeo que se pode compreender como simultaneamente
propedecircutica e filosoacutefica Com efeito se uma das funccedilotildees deste paacutethos que se diz de caraacuteter
pastoral pretende comover positiva e negativamente incitando a um soacute tempo o desejo de
salvaccedilatildeo e o de horror agrave perdiccedilatildeo o desejo de buscar Deus e de evitar o mal de buscar ser mais
pela proximidade do Ser supremo e de evitar ser menos ou deixar de ser pelo afastamento desse
mesmo Ser como se percebe sobremodo nos livros da parte considerada biograacutefica da obra o
que natildeo implica de modo algum a exclusatildeo dos restantes livros a outra funccedilatildeo por sua vez
relacionada intimamente agrave primeira de que se pode dizer seja consequecircncia natural que se
exacerba tambeacutem a partir dos recursos da elocuccedilatildeo e que como se disse tem caraacuteter prope-
decircutico compreende-se como uma funccedilatildeo de purificaccedilatildeo filosoacutefica de afastamento progressivo
das coisas deste mundo de afastamento da ldquocarnerdquo se se pode dizer tendo em vista o despren-
dimento rumo a uma vida mais espiritual de proximidade com o Ser o puro Inteligiacutevel que se
transubstancia por sua vez num projeto de vivecircncia cristatilde o que se destaca sobremodo a partir
do livro novo encontrando sua foz nos estertores do livro derradeiro Donde ser liacutecito afirmar
que os livros da parte biograacutefica das Confissotildees do primeiro ao oitavo tecircm tambeacutem essa fun-
ccedilatildeo de purificaccedilatildeo tanto das emoccedilotildees como da razatildeo ou seja de disciplinar ou exercitar asce-
ticamente a alma (exercitatio animi)18 a fim de que os leitores e ouvintes pudessem estar pre-
parados para o que havia de vir nos livros subsequentes E isso parece estar em harmonia com
18 Ἥ ἄσκησις ἥ τῆς ψυχῆς
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o projeto filosoacutefico platocircnico-cristatildeo que Agostinho tinha para sua vida e que colocou em praacute-
tica desde os tempos preacute-batismais de Cassiciacuteaco ateacute ser interrompido pela sua consagraccedilatildeo
sacerdotal (391 dC) um projeto propedecircutico-purificador
E de fato se se pode aventar que esse projeto cataacutertico da razatildeo encontra seu ponto de
saiacuteda no expurgo do ceticismo de tipo neoacadecircmico como se percebe nos trecircs livros intitulados
Contra Academicos desenvolve-se sobremodo nas paacuteginas do diaacutelogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monoacutelogo com os Soliloacutequios obras do mesmo periacuteodo
Formato monoloacutegico esse denominado por Dupuy-Trudelle (1998 p 1198) ldquodesdobramentordquo
que eacute bem possiacutevel tenha servido de laboratoacuterio para as proacuteprias Confissotildees sugere a autora
refletindo a intenccedilatildeo de Agostinho apesar da excelecircncia da feacute de levar as exigecircncias da razatildeo
ateacute ao limite extremo num esforccedilo de purificaccedilatildeo num ir-aleacutem das paixotildees e desiludir-se sobre
si mesmo Ora estar iludido acerca de si mesmo natildeo eacute impedimento agrave feacute mas o eacute ao acesso agrave
convicccedilatildeo intelectual verdadeira Portanto para chegar-se ao conhecimento define esta autora
(ibid pp 1198-9) faz-se mister como condiccedilatildeo uacutenica a ldquolibertaccedilatildeo da razatildeo de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesmardquo libertaccedilatildeo a que os Soliloacutequios datildeo curso
Pode-se compreender que para desenlamear a consciecircncia dos similisavoirs libertaacute-
la de toda ilusatildeo psicoloacutegica ensinaacute-la que o desejo da verdade natildeo eacute ainda a posses-
satildeo da verdade permitir-lhe ir aleacutem do conflito de interesses que leva a opiniatildeo a
revoltar-se contra a verdade seja preciso mensurar a distacircncia entre o sujeito e si
mesmo Ora fazecirc-lo eacute um convite a mensurar a distacircncia entre si e o conhecimento de
Deus Eis entatildeo todo o sentido do exerciacutecio proposto pelo ldquosoliloacutequiordquo mensurar uma
e outra19
Natildeo parece haver duacutevidas de que os Soliloacutequios trazem em si de modo embrionaacuterio o estilo
que haveria de consagrar sobretudo a partir das Confissotildees quando entatildeo dispensa o combate
direto de ideias preferindo ldquodesdobrar-serdquo e deixar-se interrogar por si mesmo ainda que de
modo proleacuteptico continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas
Todavia eacute mais que provaacutevel que esta exigecircncia natildeo tenha surgido do nada e sim pertenccedila a
um projeto filosoacutefico maior que englobe as demais obras de Cassiciacuteaco sendo-lhe entatildeo um
como que desenvolvimento natural
No proacutelogo do De ordine (13-4) Agostinho argumenta que o homem por ser um des-
conhecido de si mesmo natildeo consegue perceber a ordem que reina em todo o universo ordem
providencial em que ele estaacute inserido e que para conseguir conhecer-se seria necessaacuterio entrar
em si mesmo ali permanecendo afastado dos sentidos lugar em que poderia entatildeo curar-se das
feridas que as opiniotildees vulgares infligem agrave alma seja pelo ldquofogordquo do ldquoisolamentordquo conforme
19 DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Les Confessions Paris Gal-
limard 1998 p 1206
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se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
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soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
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As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
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menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
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Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
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sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
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(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
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articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
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ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
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(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
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O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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QUINTILIAN The Oratorrsquos Education (Edited and translated by Donald A Russell)
Cambridge Harvard University Press 2001 (LOEB Classical Library Books amp volumes 1-
2 v 124 3-5 v 125 6-8 v 126 9-10 v127 11-12 V 494)
REBOUL Olivier Introduccedilatildeo agrave retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes 2000
SLOANE Thomas O (Ed) Encyclopedia of Rhetoric Oxford Oxford University Press
2001
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o projeto filosoacutefico platocircnico-cristatildeo que Agostinho tinha para sua vida e que colocou em praacute-
tica desde os tempos preacute-batismais de Cassiciacuteaco ateacute ser interrompido pela sua consagraccedilatildeo
sacerdotal (391 dC) um projeto propedecircutico-purificador
E de fato se se pode aventar que esse projeto cataacutertico da razatildeo encontra seu ponto de
saiacuteda no expurgo do ceticismo de tipo neoacadecircmico como se percebe nos trecircs livros intitulados
Contra Academicos desenvolve-se sobremodo nas paacuteginas do diaacutelogo Sobre a Ordem para
encontrar sua forma definitiva no monoacutelogo com os Soliloacutequios obras do mesmo periacuteodo
Formato monoloacutegico esse denominado por Dupuy-Trudelle (1998 p 1198) ldquodesdobramentordquo
que eacute bem possiacutevel tenha servido de laboratoacuterio para as proacuteprias Confissotildees sugere a autora
refletindo a intenccedilatildeo de Agostinho apesar da excelecircncia da feacute de levar as exigecircncias da razatildeo
ateacute ao limite extremo num esforccedilo de purificaccedilatildeo num ir-aleacutem das paixotildees e desiludir-se sobre
si mesmo Ora estar iludido acerca de si mesmo natildeo eacute impedimento agrave feacute mas o eacute ao acesso agrave
convicccedilatildeo intelectual verdadeira Portanto para chegar-se ao conhecimento define esta autora
(ibid pp 1198-9) faz-se mister como condiccedilatildeo uacutenica a ldquolibertaccedilatildeo da razatildeo de todo e qual-
quer elemento estranho a si mesmardquo libertaccedilatildeo a que os Soliloacutequios datildeo curso
Pode-se compreender que para desenlamear a consciecircncia dos similisavoirs libertaacute-
la de toda ilusatildeo psicoloacutegica ensinaacute-la que o desejo da verdade natildeo eacute ainda a posses-
satildeo da verdade permitir-lhe ir aleacutem do conflito de interesses que leva a opiniatildeo a
revoltar-se contra a verdade seja preciso mensurar a distacircncia entre o sujeito e si
mesmo Ora fazecirc-lo eacute um convite a mensurar a distacircncia entre si e o conhecimento de
Deus Eis entatildeo todo o sentido do exerciacutecio proposto pelo ldquosoliloacutequiordquo mensurar uma
e outra19
Natildeo parece haver duacutevidas de que os Soliloacutequios trazem em si de modo embrionaacuterio o estilo
que haveria de consagrar sobretudo a partir das Confissotildees quando entatildeo dispensa o combate
direto de ideias preferindo ldquodesdobrar-serdquo e deixar-se interrogar por si mesmo ainda que de
modo proleacuteptico continue combatendo agudamente as teses que julgue devam ser combatidas
Todavia eacute mais que provaacutevel que esta exigecircncia natildeo tenha surgido do nada e sim pertenccedila a
um projeto filosoacutefico maior que englobe as demais obras de Cassiciacuteaco sendo-lhe entatildeo um
como que desenvolvimento natural
No proacutelogo do De ordine (13-4) Agostinho argumenta que o homem por ser um des-
conhecido de si mesmo natildeo consegue perceber a ordem que reina em todo o universo ordem
providencial em que ele estaacute inserido e que para conseguir conhecer-se seria necessaacuterio entrar
em si mesmo ali permanecendo afastado dos sentidos lugar em que poderia entatildeo curar-se das
feridas que as opiniotildees vulgares infligem agrave alma seja pelo ldquofogordquo do ldquoisolamentordquo conforme
19 DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Les Confessions Paris Gal-
limard 1998 p 1206
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se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
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soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
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As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
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menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
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Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
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sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
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(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
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articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
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ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
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(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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SLOANE Thomas O (Ed) Encyclopedia of Rhetoric Oxford Oxford University Press
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152
se daacute nos Soliloacutequios (Sol 111)20 seja pelo estudo das disciplinas liberais como se propotildee no
De ordine Portanto o isolamento no interior de si tem a funccedilatildeo terapecircutica de ldquocauterizarrdquo
(inuro) as feridas da alma Ora cauterizar eacute aplicar cauteacuterio ou seja uma accedilatildeo terapecircutica
agressiva em que se visa a cura atraveacutes duma ulceraccedilatildeo artificial produzida esta por meio dum
agente caacuteustico que corroacutei o tecido enfermo ao queimaacute-lo e secaacute-lo Pois bem eacute exatamente
isso que faz Agostinho atraveacutes do desdobramento como se pode perceber em algumas passa-
gens (Sol 1916-) em que a Razatildeo o faz ver como ainda estaacute distante do saber que busca e
muito aqueacutem do progresso que presume jaacute ter realizado uma cauterizaccedilatildeo purificante operada
pelo isolamento da razatildeo que queima toda e qualquer ilusatildeo que inibe paixotildees que retrai o
ego amante das disputas e vitoacuterias mdash cauterizaccedilatildeo essa sem duacutevida a responsaacutevel pelas laacutegri-
mas pungentes que Agostinho verte em Sol 11426 Eis portanto no proacutelogo do De ordine
(113-4) o avant-goucirct do meacutetodo filosoacutefico que iraacute aplicar nos Soliloacutequios e posteriormente
nas Confissotildees
[3] A principal causa de cujo erro [id est dos homens menos cultos que pela tibieza
de sua mente pensam haver uma fealdade na ordem das coisas] eacute que o proacuteprio homem
eacute um desconhecido para si mesmo E para que este homem se conheccedila faz-se neces-
saacuterio [cultivar] o haacutebito firme de afastar-se dos sentidos de unir-se ao proacuteprio espiacuterito
e de permanecer em si mesmo Pois apenas aqueles que cauterizam seja pelo isola-
mento seja por meio do remeacutedio das disciplinas liberais algumas das chagas das opi-
niotildees correntes as quais o curso da vida cotidiana [nos] inflige logram fazecirc-lo21 [4]
Portanto tu lograraacutes alcanccedilar essas coisas acredita em mim quando te dedicares aos
estudos por que o espiacuterito eacute purificado e aperfeiccediloado antes [de cujo esforccedilo] o espiacute-
rito de modo nenhum estaacute apto a que se lhe confiem as divinas sementes22
Essas pois as duas principais funccedilotildees que se devem destacar nas Confissotildees no que
tange ao recurso ao paacutethos uma das trecircs provas teacutecnicas da retoacuterica 1 funccedilatildeo de caraacuteter pas-
toral de elevar as almas para Deus ao mesmo tempo em que se espera a proacutepria elevaccedilatildeo pela
confissatildeo e 2 funccedilatildeo de purificaccedilatildeo propedecircutica da alma exerciacutecio de caraacuteter asceacutetico e filo-
soacutefico que toca simultaneamente a razatildeo e as emoccedilotildees cujo escopo eacute a progressiva aproximaccedilatildeo
da vida do Espiacuterito uma vida voltada para as realidades extrafiacutesicas em detrimento de tudo o
que atrai os sentidos Diz-se purificaccedilatildeo da razatildeo e das emoccedilotildees em sentido filosoacutefico porque
natildeo basta apenas um esforccedilo exclusivamente racionalista de matiz socraacutetico em que a ciecircncia
20 Logo no preacircmbulo dos Soliloacutequios Agostinho refere-se a esse ldquoisolamentordquo ao deixar claro que a presenccedila
dos estenoacutegrafos ― o que parece referir-se de modo geral a todo e qualquer ouvinte ― natildeo eacute conveniente (nec
ista dictari debent nam solitudinem meram desiderant) (Sol 111) 21 De ordine (113) ldquoCuius erroris [magnam mdash putant minus eruditi homines imbecilla mente mdash rebus
inhaerere foeditatem] maxima causa est quod homo sibi ipse est incognitus qui tamen ut se noscat magna opus
habet consuetudine recedendi a sensibus et animum in seipsum colligendi atque in seipso retinendi quod ii tantum
assequuntur qui plagas quasdam opinionum quas uitae quotidianae cursus infligit aut solitudine inurunt aut
liberalibus medicant disciplinisrdquo
22 Id ibid (114) ldquoAssequeris ergo ista mihi crede cum eruditioni operam dederis qua purgatur et excolitur
animus nullo modo ante idoneus cui diuina semina committanturrdquo
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soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
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As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
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menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
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Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
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sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
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(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
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articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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153
soberana daria conta de curar as feridas todas da alma sendo necessaacuterio acima de tudo uma
catarse das paixotildees a comeccedilar pela libido a fim de que sejam dirigidas ao reto querer ao fim
justo ao qual foram destinadas pelo Criador segundo o ordo diuinus Mas pode-se dizer que
essa catarse da razatildeo se decirc em uacuteltima instacircncia com o auxiacutelio das proacuteprias emoccedilotildees que se
fazem mover sobremaneira pelo paacutethos o apelo emocional que se sabe muito mais eficaz que
o proacuteprio loacutegos para realizar a conversatildeo definitiva para Deus (conuersio ad deum) e a conse-
quente aversatildeo do mal (auersio a malo) como jaacute havia se dado conta muito antes Paulo23 e
depois veio a reconhecer experimentar Agostinho na proacutepria carne (Conf 8921)
Donde vem esta monstruosidade E por quecirc O espiacuterito daacute uma ordem ao corpo e eacute
obedecido prontamente o [mesmo] espiacuterito daacute uma ordem a si mesmo e se lhe opotildee
resistecircncia O espiacuterito daacute uma ordem para que a matildeo se mova e a facilidade eacute tamanha
que quase natildeo se discerne da ordem a execuccedilatildeo E o espiacuterito eacute espiacuterito poreacutem a matildeo
eacute corpo O espiacuterito daacute uma ordem para que o espiacuterito queira natildeo eacute outro [e sim o
mesmo espiacuterito] e contudo natildeo cumpre [a ordem] Donde vem esta monstruosidade
E por quecirc [O espiacuterito] daacute uma ordem repito para que queira [ele] que natildeo daria a
ordem a natildeo ser que quisesse e natildeo cumpre a ordem que daacute []24
E de fato embora reconhecesse a forccedila das provas racionais baseadas estritamente no
loacutegos Quintiliano25 situava acima destas em relaccedilatildeo a sua duacutenamis persuasiva o apelo agraves pai-
xotildees (adfectus) aquele poder de despertar sentimentos muitiacutessimo reconhecido pela retoacuterica
antiga desde muito antes da sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica Com efeito se a prova racional podia
levar o juiz a considerar a causa dum determinado litigante como superior agrave do adversaacuterio as
paixotildees todavia iam mais longe fazendo-o apaixonar-se por ela e desejar que fosse realmente
melhor do que a causa do adversaacuterio sendo por isso mesmo bem mais persuasivas do que a
proacutepria prova estritamente racional aleacutem do mais sentencia o rhetor romano aquilo que se
deseja eacute tambeacutem aquilo em que se acaba por acreditar
23 (Rm 719-23) ldquoCom efeito natildeo faccedilo o bem que quero mas o mal que natildeo quero eu o pratico E se eu faccedilo
o que natildeo quero natildeo sou mais eu quem o pratica mas o pecado que em mim habita Eis entatildeo que descubro uma
lei [operando] em mim quando quero fazer o belo eacute o mal que estaacute ao meu alcance E assim eu me deleito na lei
de Deus segundo o homem interior mas percebo uma outra lei em meus membros que estaacute em guerra [contra] a
lei da minha mente e que me toma como prisioneiro na lei do pecado que estaacute em meus membrosrdquo (οὐ γὰρ ὃ θέλω ποιῶ ἀγαθόν ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω εἰ δὲ ὃ οὐ θέλω [ἐγὼ] τοῦτο ποιῶ οὐκέτι ἐγὼ κατεργάζομαι αὐτὸ ἀλλὰ ἡ οἰκοῦσα ἐν ἐμοὶ ἁμαρτία εὑρίσκω ἄρα τὸν νόμον τῷ θέλοντι ἐμοὶ ποιεῖν τὸ καλόν ὅτι ἐμοὶ τὸ κακὸν παράκειταιmiddot συνήδομαι γὰρ τῷ νόμῳ τοῦ θεοῦ κατὰ τὸν ἔσω ἄνθρωπον βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου)
24 (Conf 8921) ldquo[hellip] unde hoc monstrum et quare istuc imperat animus corpori et paretur statim imperat
animus sibi et resistitur imperat animus ut moueatur manus et tanta est facilitas ut uix a seruitio discernatur
imperium et animus animus est manus autem corpus est imperat animus ut uelit animus nec alter est nec facit
tamen unde hoc monstrum et quare istuc imperat inquam ut uelit qui non imperaret nisi uellet et non facit
quod imperat []rdquo 25 Inst Oratoriae (625)
154
As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
155
menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
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Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
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sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
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(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
159
articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
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Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
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do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
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provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
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ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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154
As provas sem duacutevida fazem com que os juiacutezes reputem a nossa causa como sendo a
melhor mas as emoccedilotildees as superam fazendo com que tambeacutem desejem [que seja a
melhor] e o que desejam eacute tambeacutem aquilo em que creem26
Na verdade com muita perspicaacutecia o autor das Instituiccedilotildees Oratoacuterias na esteira de Aristoacuteteles
admite natildeo apenas a forccedila do paacutethos mas seu papel fulcral na arte da persuasatildeo ao reconhecer
que o ldquoespiacuteritordquo (spiritus) e a ldquoalmardquo (animus) da retoacuterica residem exatamente no despertar das
emoccedilotildees27 Portanto despertar as emoccedilotildees da audiecircncia era reconhecidamente um mecanismo
persuasivo de grande impacto em todas as partes do discurso desde que natildeo exagerado pois
segundo advertem Corbett amp Connors (1999 p 289) ldquoreconhecemos suspeitar das grandilo-
quentes exploraccedilotildees de nossas emoccedilotildeesrdquo Sugere-se aqui como em todas as partes a praacutetica da
temperanccedila Todavia se se deve ou natildeo recorrer ao apelo emocional dependeraacute em grande
medida da audiecircncia de sua natureza de suas expectativas de seu caraacuteter
A audiecircncia cristatilde tem sido desde sua formaccedilatildeo muitiacutessimo suscetiacutevel ao apelo emoci-
onal ao contraacuterio do que se poderia esperar duma audiecircncia de racionalistas ciacutenicos ou estoicos
por exemplo De fato para um grupo cujas virtudes primordiais satildeo a feacute a esperanccedila e a cari-
dade mas tambeacutem a compaixatildeo e o perdatildeo e que jaacute nasce com ecircthos fortemente associado ao
martiacuterio ao sofrimento e agrave renuacutencia humilde cujo acircmago era a proacutepria paixatildeo de Cristo donde
tambeacutem a paciecircncia se tinha como virtude enfim como natildeo estar sujeito um tal agrupamento
ao apelo emocional O paacutethos cristatildeo sempre esteve inquestionavelmente agrave flor da pele e assim
permanece ateacute ao fim da Antiguidade Relatos de martiacuterios como os de Perpeacutetua e Felicidade
por exemplo no iniacutecio do seacuteculo III na Aacutefrica e de inuacutemeros outros como os de Inaacutecio de
Antioquia e Justino no seacuteculo II em Roma ou o de Cipriano em meados seacuteculo III em Car-
tago e o de Oriacutegenes em Cesareia pela mesma eacutepoca para natildeo ir aleacutem destes motivados desde
a era apostoacutelica todos eles por perseguiccedilotildees intermitentes mais ou menos sistemaacuteticas desde o
seacuteculo I mas sobremodo pelo proacuteprio martiacuterio de Cristo de par com uma expectativa escatoloacute-
gica que incluiacutea a sua iminente parousiacutea enfim tudo isso conjugado contribui para que as
emoccedilotildees cristatildes estivessem sempre prontas ao estiacutemulo Situaccedilatildeo essa que natildeo sofre grande
modificaccedilatildeo nem mesmo depois de Constantino e do edito de toleracircncia que promulga em Mi-
latildeo em 313 pois extintas as perseguiccedilotildees do poder constituiacutedo a situaccedilatildeo geral natildeo se torna
26 Inst oratoriae (625) ldquo[hellip] probationes enim efficiant sane ut causam nostram meliorem esse iudices
putent adfectus praestant ut etiam uelint sed id quod uolunt credunt quoquerdquo 27 Id ibid (627) ldquoadeo uelut spiritus operis huius atque animus est in adfectibusrdquo
155
menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
156
Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
157
sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
158
(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
159
articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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155
menos tensa especialmente de 410 em diante com a invasatildeo de Roma pelos godos de Alarico
e a pressatildeo dos baacuterbaros nas fronteiras28
Por outro lado restringindo a anaacutelise aos aspectos puramente intelectuais vecirc-se que as
paacuteginas da Escritura satildeo feacuterteis em apelos emocionais sobremodo ao medo (φόβος) de todas
as paixotildees da alma talvez das mais intensas medo das ameaccedilas dos profetas e seus oraacuteculos da
ira divina da condenaccedilatildeo eterna etc Do lado oposto principalmente no Novo Testamento
destaca-se ο amor universal (ἀγάπη) que se estimula em diversas instacircncias seja pelas pala-
vras de Jesus no Evangelho seja no epistolaacuterio apostoacutelico Pois bem de que modo se poderia
despertar essa caritas cristatilde de par com a feacute no que se natildeo vecirc apenas se espera Por que argu-
mentos ou provas mais ou menos teacutecnicas se pode levar algueacutem a natildeo apenas aceitar mas tam-
beacutem desejar morrer por Cristo na esperanccedila da gloacuteria eterna29 Ou desejar vender tudo e entre-
gar o provento aos pobres vivendo doravante da pregaccedilatildeo da palavra escrituraacuteria e de seus
proacuteprios exemplos Ou optar por uma renuacutencia aos prazeres da vida sensual como as virgens
que se consagravam amiuacutede ou os anacoretas cenobitas e religiosos de todos os matizes e
eacutepocas ou ainda de modo mais extremo e surpreendente especialmente por tratar-se dum in-
telectual do calibre de Oriacutegenes deixar-se arrastar por zelo incontrolaacutevel e em conformidade
com o que registra a tradiccedilatildeo e confirma Euseacutebio de Cesareia mutilar-se a si mesmo pelo Reino
dos ceacuteus
E naquele tempo ocorreu a Oriacutegenes que cumpria sua obra de instruccedilatildeo catequeacutetica
em Alexandria realizar uma certa faccedilanha que envolve exemplo imenso de coraccedilatildeo
imaturo e juvenil mas igualmente de feacute e de autocontrole Compreendendo pois a
passagem ldquoHaacute eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos ceacuteusrdquo (Mt
1912)30 de modo ingecircnuo e juvenil imaginou dum lado estar cumprindo a palavra
salvadora de outro por ser ainda jovem em idade e pregando as coisas de Deus natildeo
apenas a homens mas tambeacutem a mulheres como quisesse calar toda suspeita de difa-
maccedilatildeo vergonhosa da parte dos infieacuteis apressou-se a cumprir a palavra salvadora na
praacutetica tendo cuidado que isso passasse desapercebido aos muitos conhecidos agrave sua
volta31
28 Por sua ldquoimpiedaderdquo ao recusar o culto tradicional e provocar a consequente ira dos deuses os cristatildeos
estavam sendo acusados como responsaacuteveis pela invasatildeo de Roma em 410 assim como pela derrocada militar do
Impeacuterio e a consequente pressatildeo baacuterbara nas fronteiras Essas acusaccedilotildees ao que parece eram significantes o sufi-
ciente para ter motivado Agostinho a escrever ldquocontra os pagatildeosrdquo a sua monumental Cidade de Deus 29 Ou como disse Quintiliano (625) natildeo apenas reconhecer intelectualmente a verdade cristatilde mas igualmente
apaixonar-se por ela pois o que se deseja eacute tambeacutem aquilo em que se crecirc mdash id quod uolunt credunt quoque 30 (Mt 1912) ldquoPorque haacute eunucos que desde o ventre de sua matildee assim nasceram e haacute os que foram feitos
eunucos pelos homens e eunucos haacute que se fizeram eunucos a si mesmos por causa do Reino dos ceacuteus Aquele
que eacute capaz de compreender compreendardquo (εἰσὶν γὰρ εὐνοῦχοι οἵτινες ἐκ κοιλίας μητρὸς ἐγεννήθησαν οὕτως καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνουχίσθησαν ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων καὶ εἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶν ὁ δυνάμενος χωρεῖν χωρείτω)
31 Euseacutebio de Cesareia Histoacuteria Eclesiaacutestica (681-2) ldquoἘν τούτῳ δὲ τῆς κατηχήσεως ἐπὶ τῆς Ἀλεξανδρείας τοὔργον ἐπιτελοῦντι τῷ Ὠριγένει πρᾶγμά τι πέπρακται φρενὸς μὲν ἀτελοῦς καὶ νεανικῆς πίστεώς γε μὴν ὁμοῦ καὶ σωφροσύνης μέγιστον δεῖγμα περιέχον τὸ γὰρ ldquoεἰσὶν εὐνοῦχοι οἵτινες εὐνούχισαν ἑαυτοὺς διὰ τὴν βασιλείαν τῶν οὐρανῶνrdquo ἁπλούστερον καὶ νεανικώτερον ἐκλαβών ὁμοῦ μὲν σωτεήριον φωνὴν ἀποπληροῦν οἰόμενος ὁμοῦ δὲ καὶ διὰ τὸ νέον τὴν ἡλικίαν ὄντα μὴ ἀνδράσι μόνον καὶ γυναιξὶ δὲ τὰ θεῖα
156
Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
157
sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
158
(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
159
articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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156
Percebe-se por conseguinte como desde sua gecircnese a prosa cristatilde embebe-se natural-
mente de apelo emocional imersa no sangue da paixatildeo de Cristo que desde o iniacutecio se torna
natildeo apenas o cerne do querigma (κήρυγμα) mas o centro em torno do qual gravita o discurso
patriacutestico Pode-se dizer com Corbett e Connors (1999 p 290) que se trata duma questatildeo de
suscetibilidade proacutepria a cada auditoacuterio mas que varia grandemente tambeacutem com o tema tra-
tado
A suscetibilidade duma audiecircncia a apelos emocionais pode variar sem duacutevida de
acordo com o tema tratado Um grupo de meacutedicos por exemplo poderia sentir-se
ofendido por um apelo emocional quando estivessem sendo instados a adotar uma
nova droga ou teacutecnica mas num assunto como subsiacutedio governamental para a seguri-
dade meacutedica este mesmo grupo poderia estar aberto aos apelos emocionais Entatildeo
quando os meios loacutegicos de persuasatildeo num dado tema satildeo fracos (ou ao menos mais
fracos que os do adversaacuterio) podemos constatar a utilidade do recurso agrave persuasatildeo
emocional
Ora talvez esteja exatamente aiacute a principal justificativa aleacutem das jaacute citadas do apelo intenso
ao paacutethos se natildeo no discurso cristatildeo grosso modo certamente no discurso de Agostinho nas
Confissotildees cujos objetivos jaacute se podem considerar um tanto distintos dos que se percebem na
apologeacutetica dos dois primeiros seacuteculos ou mesmo da filosofia dum Oriacutegenes que ainda viveu
num tempo de ilegalidade e de indefiniccedilotildees teoloacutegicas quase um seacuteculo antes do Conciacutelio de
Niceia Com efeito no apelo ao paacutethos para muito aleacutem de sua duacutenamis persuasiva encontra
o rhetor Agostinho recurso poderosiacutessimo para tratar de temas para os quais as provas satildeo in-
suficientes os meios loacutegicos natildeo bastam ou inexistem E natildeo eacute porque recorre ao paacutethos ela-
borando um discurso de carga emocional intensa que esteja sempre tencionando persuadir
agonisticamente como se se tratasse do gecircnero judiciaacuterio ou deliberativo pelo contraacuterio ao
recorrer a figuras e expressotildees de forte carga emotiva Agostinho transforma este recurso num
subsiacutedio interessantiacutessimo para tratar dum tema que se natildeo submete a uma linguagem exclusi-
vamente racional Na verdade o apelo emocional se daacute no mais das vezes de modo indireto
atraveacutes de figuras que aguccedilam a sensibilidade seja pelo ritmo pela assonacircncia ou aliteraccedilatildeo
seja pelas imagens que evocam pelo contraste ou pela repeticcedilatildeo pelo absurdo e perplexidade
de afirmaccedilotildees paradoxais ou pelo vocabulaacuterio carregado de conotaccedilotildees fortemente emotivas
Ao aguccedilar as sensibilidade emocional esses recursos todos transferem a prosa duma dimensatildeo
de exclusiva racionalidade a uma como que suprarracionalidade que se pode mesmo dizer ir-
racionalidade uma vez jaacute natildeo ser mais da razatildeo unicamente que se espera o entendimento e
προσομιλεῖν ὡς ἂν πᾶσαν τὴν παρὰ τοῖς ἀπίστοις αἰσχρᾶς διαβολῆς ὑπόνοιαν ἀποκλείσειεν τὴν σωτήριον φωνὴν ἔργοις ἐπιτελέσαι ὡρμήθη τοὺς πολλοὺς τῶν ἀμφ᾿ αὐτὸν γνωρίμων διαλαθεῖν φροντίσαςrdquo
157
sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
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(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
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articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
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ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
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(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
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orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
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gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
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todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
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o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
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Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
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da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
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das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
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O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
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Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
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ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
REFEREcircNCIAS
[CICERO] Rhetorica ad Herennium (Transl by Harry Caplan) Cambridge (MA) Harvard
University Press 2004 (LOEB Classical Library 403)
ARISTOTELIS Ars Rhetorica (Recognouit breuique adnotatione critica instruxit W D
Ross) Oxford Oxford University Press 2008 (Oxford Classical Texts)
ARISTOTLE The Complete Works of Aristotle (The Revised Oxford Translation Edited by
Jonathan Barnes) Sixth Printing with corrections Princeton Princeton University Press
1995 (Volumes I amp II)
AUERBACH Erich Ensaios de Literatura Ocidental Filologia e Criacutetica 1ordf ed Satildeo Paulo
Duas Cidades Editora 34 2007 pp 15-96 ldquoSacrae scripturae sermo humilisrdquo pp 15-28
ldquoSermo humilisrdquo pp 29-76 ldquoGloria Passionisrdquo pp 77-96
AUGUSTIN Confessions (Texte Eacutetabli et Traduit par Pierre de Labriolle) Seiziegraveme tirage
Paris Les Belles Lettres 2002 (Tome I livres I-VIII Tome II livres VIII-XIII)
______ IV Dialogues Philosophiques I Problegravemes fondamentaux Contra Academicos De
beata uita De ordine (Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et notes de R
Jolivet) 2me eacutedition revue et augmenteacutee Paris Descleacutee de Brouwer 1939 (Œuvres de Saint
Augustin 1re Seacuterie Opuscules)
______ V Dialogues Philosophiques II Dieu et Lrsquoame Soliloques De immortalitate
animae De quantitate animae (Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et
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157
sim dalguma fonte distinta no interior do ser humano Seja como for trata-se duma linguagem
de apelo natildeo-racional porque ao causar a irrupccedilatildeo das paixotildees subsegue-se uma como que
obliteraccedilatildeo momentacircnea da racionalidade um como que eclipse das faculdades intelectivas a
partir de que se atinge aquela dimensatildeo suprarracional muito comum no discurso miacutestico uma
dimensatildeo do silecircncio antecacircmara daquele silecircncio primordial a que se pretende chegar o si-
lecircncio inefaacutevel do Ser
A terceira das provas da arte loacutegos
Na Retoacuterica aquilo que cabe ao discurso seja por meio do ecircthos paacutethos ou loacutegos na
tarefa suasoacuteria pertence propriamente agrave arte no que Aristoacuteteles denomina provas teacutecnicas em
contraste com o que estaacute pronto fora da arte carecendo apenas de ser empregado Portanto se
se excluam os elementos probatoacuterios natildeo-teacutecnicos como testemunhos e confissotildees obtidas por
tortura por exemplo e talvez alguns aspectos da hupoacutekrisis que se prendem exclusivamente agrave
oralidade como gestual e modalizaccedilotildees da voz percebe-se que toda tarefa argumentativa eacute de
exclusiva responsabilidade do discurso (1356a19-20)
Pois bem se na dialeacutetica dois satildeo os tipos de argumentos induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e dedu-
ccedilatildeo ou silogismo (συλλογισμός) (1356a35-b6) na retoacuterica por sua vez a induccedilatildeo se faz pelo
exemplo (παράδειγμα δὲ ἐπαγωγὴν ῥητορικήν) ao passo que a deduccedilatildeo pelo entimema
(ἐνθύμημα) que eacute o tipo de silogismo apropriado ao discurso retoacuterico (ῥητορικὸν
συλλογισμόν) discurso que respeita agravequeles temas sobre os quais natildeo se tem certeza (1357a1-
5) temas passiacuteveis de deliberaccedilatildeo que se encontram fora do escopo das ciecircncias ou entatildeo caso
se digam dalgum modo cientiacuteficos limitam-se aos aspectos pouco paciacuteficos delas que admitem
mais de um modo de pensar Todos os oradores (πάντες) diz Aristoacuteteles (1356b6) produzem
provas (πίστεις ποιοῦντες) 1 ou por meio de exemplos (παραδείγματα) 2 οu por meio de
entimemas (ἐνθυμήματα) e nada aleacutem disso (καὶ παρὰ ταῦτα οὐδέν) Ora o exemplo retoacuterico
equivale agrave induccedilatildeo dialeacutetica sendo uma prova que se obteacutem a partir de um nuacutemero suficiente
de casos de modo tal que se obtenha uma como regra geral (1356b15) Numa palavra mostra-
se (δεικνύσθαι) que x eacute de tal modo (ὅτι οὕτως ἔχει) a partir dos muitos casos ou exemplos
aduzidos (τὸ ἐπὶ πολλῶν) e1 e2 e3 en O silogismo e o entimema por sua vez fazem o
percurso inverso (1356b16-18) de um certo nuacutemero de coisas existentes f1 f2 fn (τινῶν
ὄντων) algo diferente (ἕτερόν τι) c resulta Portanto se o exemplo eacute uma espeacutecie de induccedilatildeo
que vai duma parte a outra (ὡς μέρος πρὸς μέρος) da menos conhecida a outra mais conhecida
158
(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
159
articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
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o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
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Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
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da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
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das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
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O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
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Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
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do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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158
(1357b30) os entimemas por sua vez natildeo carecem de explicitar certas premissas porque diz
Aristoacuteteles (1357a15-20) elas satildeo jaacute bastante conhecidas de todo o auditoacuterio podendo restar
subentendidas As premissas de que se constituem os silogismos retoacutericos podem ateacute ser neces-
saacuterias mas via de regra satildeo verdades de caraacuteter geral dentre as quais se incluem 1 probabili-
dades ou verossimilhanccedilas (ἐξ εἰκότων) e 2 indiacutecios ou sinais (σημείων) O verossiacutemil retoacuterico
corresponde ao que ocorre com frequecircncia (1357a34) (τὸ μὲν γὰρ εἰκός ἐστι τὶ ὡς ἐπὶ τὸ
πολὺ γιγνόμενον) Os indiacutecios ou sinais por sua vez (1357b) concluem ο geral do particular
(πρὸς τὸ καθόλου) ou o particular do geral (πρὸς τὸ κατὰ μέρος) Destes apenas ο indiacutecio
necessaacuterio ou tekmḗrion (τεκμήριον σημεῖον) constitui uma prova inquestionaacutevel daiacute seu
nome pois crecirc-se que potildee um termo agrave argumentaccedilatildeo (τὸ τέκμαρ καὶ πέρας ταὐτόν ἐστι) Por
exemplo a febre constitui um indiacutecio necessaacuterio de que Soacutecrates estaacute enfermo todavia explica
Aristoacuteteles a sabedoria dele que era um homem justo natildeo eacute indiacutecio necessaacuterio de que todo
homem justo seja saacutebio Outro exemplo se uma mulher tem leite isso eacute um τεκμήριον ou
indiacutecio necessaacuterio de que deu agrave luz Trata-se pois dum argumento irrefutaacutevel No entanto por
natildeo serem abundantes os tekmḗria os entimemas se constroem em sua maior parte de toacutepicos
especiacuteficos (τόποι ἴδιοι) particulares e individuais (τῶν κατὰ μέρος καὶ ἰδίων) e apenas uma
pequena parte de lugares-comuns (ἐκ τῶν κοινῶν ἐλάττω)
Aquilo que Aristoacuteteles denomina prova (πίστις) natildeo obstante a polissemia do termo
(pois tanto o paacutethos como o ecircthos tambeacutem satildeo provas) eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo cientiacute-
fico-racional (ἀπόδειξίς τις) (1355a11) Por sua vez a demonstraccedilatildeo retoacuterica por excelecircncia eacute
o entimema (ἔστι δrsquoἀπόδειξις ῥητορικὴ ἐνθύμημα) a mais forte das provas retoacutericas
(κυριώτατον τῶν πίστεων) O entimema como se disse eacute um tipo de silogismo
(συλλογισμός τις) poreacutem enquanto o silogismo trata da verdade (ἀλήθεια) teoricamente in-
discutiacutevel cientiacutefica em seu caraacuteter o entimema resume-se agravequilo que tem a aparecircncia verdade
isto eacute que pode ou natildeo ser verdade portanto ao que eacute provaacutevel ou verossiacutemil (τὸ ὅμοιον)
como as opiniotildees (ἔνδοξα) que satildeo admitidas por toda gente ou pela maioria ou pelos saacutebios
ou por parte deles ou pelos mais notaacuteveis e estimados da sociedade Eis porque se os assuntos
retoacutericos satildeo aqueles que admitem o debate contraditoacuterio a prova retoacuterica natildeo poderia estar
baseada senatildeo no provaacutevel e natildeo no verdadeiro inquestionaacutevel sob pena de aniquilar qualquer
possibilidade do proacuteprio debate Contudo essa caracteriacutestica de verossimilhanccedila elemento fun-
damental do entimema segundo a retoacuterica aristoteacutelica potildee-se de certo modo em segundo plano
a partir de Quintiliano para quem o entimema define-se ao inveacutes natildeo pela natureza verossiacutemil
das premissas e sim por sua ldquoarticulaccedilatildeo eliacutepticardquo como bem lembra Barthes (2001 pp 57-8)
159
articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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159
articulaccedilatildeo que faz com que o entimema seja um silogismo truncado em que parece ausentar-
se alguma proposiccedilatildeo de feiccedilatildeo incontestaacutevel a qual exatamente por isso natildeo carece de ser
enunciada mantendo-se tatildeo soacute ldquono espiacuteritordquo (ἐν θυμῷ)32 Destarte trata-se antes duma pseudo-
ausecircncia que se daacute apenas au niveau du langage jamais dans lrsquoesprit Isso porque dessa mesma
ldquoausecircnciardquo ao reveacutes do que se poderia supor eacute que o entimema tira toda a sua pujanccedila deixando
a cargo do ouvinte-leitor a construccedilatildeo do argumento naquilo que a loacutegica de Port-Royal enten-
dia como le plaisir du raisonnement incomplet (id ibid pp 60-61) ldquoO entimema natildeo eacute um
silogismo truncado por carecircncia degradaccedilatildeo mas porque eacute preciso deixar ao ouvinte o prazer
de fazer tudo na construccedilatildeo do argumentordquo
Esse ldquoprazerrdquo de que fala Barthes relaciona-se mutatis mutandis ao ldquodidatismordquo que por
sua vez Reboul relaciona agrave alegoria (2000 pp 130-2) e que se pode aplicar tambeacutem aos pro-
veacuterbios (παροιμίαι) e agraves maacuteximas (γνῶμαι)33 didatismo esse que ao inveacutes de tornar mais
claros os conteuacutedos adrede os obscurece ou quando natildeo faz com que se tornem mais intrigan-
tes enigmaacuteticos Com todo o efeito alegorias como a da ldquocavernardquo ou a paraacutebola do ldquosemea-
dorrdquo intrigam os disciacutepulos diz Reboul que sentem que o texto quer dizer algo mais do que
parece estar dizendo sem contudo saber bem o quecirc e aguardam uma ldquoexplicaccedilatildeordquo que jamais
esperariam natildeo tivesse o conteuacutedo exposto sido formulado por meio duma paraacutebola ou alegoria
Trata-se diz Reboul duma forma muito antiga de ensinar uma como que ldquopedagogia do mis-
teacuteriordquo que consiste em retardar a soluccedilatildeo para incitar o disciacutepulo a buscaacute-la o que o motiva a
tomar a iniciativa e procurar aprender por suas proacuteprias forccedilas Uma forma didaacutetica indubita-
velmente que natildeo deixa de ser igualmente argumentativa pois a aceitaccedilatildeo da letra implica a
aceitaccedilatildeo do espiacuterito ou seja ao aderirem e assentirem agrave forma poeacutetica alegres por terem des-
coberto a ldquosoluccedilatildeordquo do enigma por seus proacuteprios meacuteritos os ouvintes datildeo igualmente seu as-
sentimento ao conteuacutedo34
Pois bem se Aristoacuteteles apresenta as maacuteximas ao lado dos entimemas que satildeo a prova
retoacuterica por excelecircncia uma vez ser a maacutexima parte dos entimemas (ἡ γνώμη μέρος
32 Daiacute a origem do termo ἐνθύμημα segundo o proacuteprio Barthes ἐν + θυμῷ 33 Alguns proveacuterbios satildeo tambeacutem maacuteximas (ἔτι ἔνιαι τῶν παροιμιῶν καὶ γνῶμαί εἰσιν) diz Aristoacuteteles
(1395a19) embora natildeo explique a diferenccedila comum entre eles citando o exemplo que natildeo facilita muito pela
concisatildeo ldquoVizinho aacuteticordquo (Ἀττικὸς πάροικος) que seria um alusatildeo coriacutentia agraves virtudes dos atenienses em con-
traste com a proverbial maacute-vontade dos espartanos segundo o historiador Tuciacutedides (Guerra do Peloponeso 170) 34 Reboul (2000 pp 130-2) apresenta um exemplo interessante extraiacutedo do Velho Testamento (2Sm 121-15)
ao ouvir a paraacutebola de Natatilde Davi se vecirc levado a reconhecer o crime do rico ganancioso que se apossa do uacutenico
bem de seu vizinho pobre uma ovelha reputando-o digno de morte Poreacutem ao aceitar a letra diz Reboul Davi se
vecirc obrigado a aceitar tambeacutem o espiacuterito da paraacutebola sua conclusatildeo e implicaccedilotildees reconhecendo-se culpado diante
de Natatilde (do adulteacuterio com Betsabeia e de ter causado a morte de seu marido Urias) que lhe diz ldquoEsse homem [da
paraacutebola] eacutes tu mesmordquo
160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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160
ἐνθυμήματος ἐστίν) (1393a23-6) resta evidente que o que se disse acerca da pedagogia do
misteacuterio e do poder do raciociacutenio incompleto dos entimemas serve igualmente agraves maacuteximas
como se haacute de ver e de modo muito mais eficaz
No que tange ao loacutegos nas Confissotildees retendo na memoacuteria o que se disse acerca do que
caracteriza um tema retoacuterico a saber o fato de ser passiacutevel de deliberaccedilatildeo admitindo ao menos
duas opiniotildees contraacuterias (1357a4-5) supeacuterfluo seria justificar a opccedilatildeo pelas maacuteximas em detri-
mento dos entimemas neste passo o que natildeo implica dizer que Agostinho natildeo tenha recorrido
aqui e ali a um ou outro silogismo de tipo retoacuterico Todavia natildeo se esperaria que recorresse a
expedientes de caraacuteter demonstrativo (ἀποδεικτικός) para falar do inefaacutevel Natildeo apenas porque
ldquoningueacutem ensina geometria desse modordquo (διὸ οὐδεὶς οὕτω γεωμετρεῖν διδάσκει) como diz
Aristoacuteteles (1404a12) fazendo referecircncia aos recursos ldquopoeacuteticosrdquo da elocuccedilatildeo (λέξις) como as
figuras que imprimem destaque tanto ao ecircthos como ao paacutethos a fim de construir um caraacuteter
favoraacutevel e movimentar as paixotildees (ἐπιθυμίαι) do auditoacuterio que se quer exortar (προτρέπω)
ou dissuadir (ἀποτρέπω) a seguir tal ou qual caminho mas principalmente para dar voz ao
indiziacutevel dizendo o que estaacute aleacutem da razatildeo Os recursos da elocuccedilatildeo considerados inaptos para
tratar de fatos ou certezas exatas ou cientiacuteficas como as verdades matemaacuteticas por exemplo
que teoricamente natildeo seriam passiacuteveis de contestaccedilatildeo eram considerados ao tempo de Aristoacute-
teles indignos da consideraccedilatildeo (θεωρεῖν) filosoacutefica pelo que natildeo ter havido ateacute ao tempo da
escritura do terceiro livro da Retoacuterica nenhum tratado (τέχνη) a respeito do tema como se jaacute
disse (1403b35-6) Contudo para falar do inefaacutevel dizer o indiziacutevel como percebe Agostinho
assim como para proferir oraacuteculos ou para a poesia didaacutetico-filosoacutefica (ou filosofia poeacutetico-
didaacutetica) dum Empeacutedocles por exemplo natildeo havia recurso mais apto Por isso se haacute restringir
aqui apenas ao tratamento das maacuteximas em detrimento dos toacutepicos e exemplos mateacuteria dos
entimemas As maacuteximas portanto por seu caraacuteter geneacuterico (διὰ τὸ ὅλως) (1407b1) satildeo mais
apropriadas ao dizer silencioso que empreende Agostinho nas Confissotildees35
Parte integrante do entimema (ἡ γνώμη μέρος ἐνθυμήματος) (1393a23-6) a maacutexima eacute
uma proposiccedilatildeo (ἀπόφανσις) natildeo relacionada a algo particular (οὐ περὶ τῶν καθrsquo ἕκαστον)
mas de caraacuteter universal (καθόλου) que natildeo se refere poreacutem a todo e qualquer tema e sim agraves
accedilotildees humanas (πρὸς τὸ πράττειν) ou seja agravequilo que se deve escolher (αἱρετά) ou evitar
35 Das figuras cuja δύναμις argumentativa se mencionou alhures tratamos com riqueza de detalhes em nossa
tese anteriormente citada Vale apenas dizer para justificar a siacutentese supraelaborada que a amplificaccedilatildeo
(αὔξησις) relacionada por Aristoacuteteles agrave superioridade (ὑπεροχή) (1368a23) e que para os gregos era sinal de
virtude eacute o recurso demonstrativo (que pode incluir natildeo apenas as figuras mas exemplos maacuteximas etc) que mais
conveacutem ao discurso de gecircnero epidiacutectico (ἡ αὔξησις ἐπιτηδειοτάτη τοῖς ἐπιδεικτικοῖς) (1368a26-7)
161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
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o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
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Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
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da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
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das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
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O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
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Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
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do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
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provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
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ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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161
(φευκτά) praticar No termo ldquomaacuteximasrdquo do grego gnocircmai (γνῶμαι) e do latino sententiae
incluem-se grosso modo preceitos proveacuterbios ditos ilustres enigmas epigramas truiacutesmos ca-
lembures generalizaccedilotildees concisas numa palavra todos os enunciados de cunho ldquoespirituosordquo
(τὰ ἀστεῖα) que se podem utilizar numa argumentaccedilatildeo E eacute exatamente por sua eficaacutecia argu-
mentativa que Aristoacuteteles coloca o tratamento da questatildeo (γνωμολογία) na Retoacuterica
(1394a19-30) como preluacutedio ao estudo dos entimemas pois como ele mesmo observa elas
constituem natildeo apenas as premissas (ἀρχαί) como tambeacutem a conclusatildeo (συμπέρασμα) dum
argumento silogiacutestico
No que tange ao recurso agraves maacuteximas depois de ter sido dito o que eacute uma maacutexima haacute
de se tornar especialmente manifesto a respeito de que em que momento e a quais
sujeitos conveacutem aplicar o uso das maacuteximas nos discursos A maacutexima eacute um enunciado
mas natildeo a respeito de tema particular como por exemplo que tipo de homem eacute Ifiacute-
crates e sim de caraacuteter universal e natildeo a todo e qualquer tema de caraacuteter universal
como por exemplo que o reto eacute contraacuterio ao curvo e sim a respeito das praacuteticas
humanas e o que se pode escolher ou evitar em relaccedilatildeo ao que se pratica Portanto se
os entimemas satildeo de modo aproximado o silogismo que trata destas coisas as conclu-
sotildees dos entimemas e as premissas excluiacutedo o silogismo satildeo as maacuteximas36
Todos os entimemas pois de par com os recursos da elocuccedilatildeo (καὶ λέξιν καὶ ἐνθυμήματα) diz
Aristoacuteteles (1410b20-21) constituem ditos espirituosos ou sagazes (ἀστεῖα) desde que comu-
niquem ensinamento de modo raacutepido (ὅτα ποιεῖ ἡμῖν μάθησιν ταχεῖαν) e tambeacutem conciso o
que vale igualmente para as maacuteximas cujo conteuacutedo deve ser facilmente apreendido ter uma
forma ldquoatocircmicardquo e ser memorizaacutevel com o auxiacutelio dos recursos da leacuteksis sem duacutevida a fim de
serem prontamente eficazes
Trecircs satildeo em verdade as principais utilidades das maacuteximas nos discursos de modo geral
segundo a Retoacuterica e nas Confissotildees de modo particular 1 fazer com que o leitor-ouvinte
participe do discurso 2 tornaacute-lo eacutetico 3 dizer o indiziacutevel permitindo que se fale das coisas de
Deus (no caso das Confissotildees)
Primeiro as maacuteximas permitem a ldquoparticipaccedilatildeordquo no discurso por parte do auditoacuterio por
ser este constituiacutedo de pessoas vulgares (διὰ τὴν φορτικότητα τῶν ἀκροατῶν) segundo o
juiacutezo de Aristoacuteteles (1395b2-3) pessoas que se regozijam (χαίρουσι) quando o orador univer-
saliza (καθόλου λέγων) as opiniotildees que guardam em si como particulares (τῶν δοξῶν ἃς
ἐκεῖνοι κατὰ μέρος ἔχουσιν) (1395b2-3) ou seja os ouvintes-leitores se felicitam quando o
36 (1394a19-30) ldquoΠερὶ δὲ γνωμολογίας ῥηθέντος τί ἐστι γνώμη μάλιστ᾿ ἂν γένοιτο φανερὸν περὶ ποίων
τε καὶ πότε καὶ τίσιν ἁρμόττει χρῆσθαι τῷ γνωμολογεῖν ἐν τοῖς λόγοις ἔστι δὶ γνώμη ἀπόφανσις οὐ μέντοι περὶ τῶν καθ᾿ ἕκαστον οἷον ποῖός τις Ἰφικράτης ἀλλὰ καθόλου καὶ οὐ περὶ πάντων καθόλου οἷον ὅτι τὸ εὐθὺ τῷ καμπύλῳ ἐναντίον ἀλλὰ περὶ ὅσων αἱ πράξεις εἰσί καὶ αἱρετὰ ἢ φευκτά ἐστι πρὸς τὸ πράττειν ὥστ᾿ ἐπεὶ τὰ ἐνθυμήματα ὁ περὶ τούτων συλλογισμός ἐστι σχεδόν τά τε συμπεράσματα τῶν ἐνθυμημάτων καὶ αἱ ἀρχαὶ ἀφαιρεθέντος τοῦ συλλογισμοῦ γνῶναί εἰσι []rdquo
162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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SLOANE Thomas O (Ed) Encyclopedia of Rhetoric Oxford Oxford University Press
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162
orador-escritor refere opiniotildees que eles jaacute possuem e creem suas particulares Por exemplo diz
Aristoacuteteles se um orador enuncia diante de um auditoacuterio ldquonatildeo haver nada mais estuacutepido que ter
filhosrdquo havendo algueacutem nesse auditoacuterio cujos filhos constituam algum estorvo oacutebvio que este
ficaraacute feliz acreditando que o orador pensa como ele (b7-11) O mesmo vale para os entimemas
segue o filoacutesofo (1400a26) dentre os quais satildeo preferiacuteveis os que satildeo imediatamente apreendi-
dos pelo auditoacuterio assim que se enunciam (ὅσα ἀρχόμενα) natildeo por serem superficiais mas
porque os ouvintes se sentem felizes de antecipar suas conclusotildees sentindo-se tatildeo capazes
como o orador e tambeacutem por poder participar do discurso juntamente (ἅμα) com o seu autor
como se fossem coautores (1400b26-33)
Em segundo lugar e mais importante (καὶ ἑτέραν κρείττω) segundo Aristoacuteteles por-
que as maacuteximas tornam o discurso eacutetico (ἠθικοὺς γὰρ ποιεῖ τοὺς λόγους) (1395b13) impri-
mindo-lhe um caraacuteter moral de enorme valor persuasivo Os discursos satildeo eacuteticos quando a fi-
nalidade moral estaacute manifesta (δήλη ἡ προαίρεσις) ou seja quando a intenccedilatildeo moral ou
proaiacuteresis do orador eacute de tal modo clara que o discurso possua uma feiccedilatildeo eacutetica (ἔχουσιν ἦθος)
(1395b13) Por conseguinte aquele que emprega uma maacutexima expotildee suas preferecircncias morais
o que para Aristoacuteteles constitui o grande efeito desse recurso retoacuterico Isso porque se a maacute-
xima for aproveitaacutevel ou uacutetil (ὥστrsquo ἂν χρησταὶ ὦσιν αἰ γνῶμαι) faraacute com que o orador
tambeacutem pareccedila ser um homem de boa iacutendole (καὶ χρηστοήθη φαίνεσθαι ποιοῦσι τὸν
λέγοντα) (1395b16-17) devido agrave ligaccedilatildeo que se estabelece entre o discurso eacutetico e aquele que
o profere Com efeito uma vez refiram-se a verdades universais as maacuteximas conquistam pronto
assentimento por parte da audiecircncia conferindo ao orador aquela imagem de anciatildeo cuja sa-
bedoria eacute quase que santificada veneraacutevel daiacute Aristoacuteteles natildeo recomendar o seu uso aos jovens
a fim de que natildeo soem pretensiosos parecendo falar do alto duma sabedoria que por conta da
pouca idade ainda natildeo podem possuir Portanto segundo se pode depreender das palavras do
filoacutesofo trata-se no fim duma questatildeo de auctoritas (ou ἦθος) em que o uso das maacuteximas
confere certa venerabilidade ao discurso uma vez tratarem-se de verdades de caraacuteter universal
aceitas por todos como se fossem ditos sapienciais a que se costuma conferir enorme prestiacutegio
por sua ancestralidade e aceitaccedilatildeo geral numa palavra como se fossem ditos gnocircmicos dos sete
saacutebios37
Por fim as maacuteximas satildeo uacuteteis porque ao enunciar algo em termos universais ou gerais
permitem a amplificaccedilatildeo (αὔξησις) a ferramenta argumentativa mais eficaz no discurso do
37 Os sete saacutebios da Greacutecia antiga Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Periandro de Corinto Cleoacutebulo de Lindos
Queacuteilon de Esparta Biacuteas de Priene e Piacutetaco de Mitilene
163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
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todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
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o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
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Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
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da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
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das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
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O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
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Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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163
gecircnero epidiacutectico (1368a26-7) e que nas Confissotildees de par com os paralelos elaborados entre
as virtudes absolutas de Deus e as humanas idealizadas e amplificadas (Conf 144 2613-14
et passim) serve perfeitamente ao propoacutesito de ressaltar a inefabilidade divina uma vez que
nada se pode dizer do inexprimiacutevel senatildeo de modo figurado analoacutegico obliacutequo para o que
coopera decisivamente uma figura de amplificaccedilatildeo como a hipeacuterbole (ὑπερβολή) por exemplo
(REBOUL 2000 p123-4)
[] a funccedilatildeo semacircntica da hipeacuterbole eacute dizer que de fato natildeo conseguimos dizer eacute dar
a entender que aquilo de que estamos falando eacute tatildeo grande tatildeo bonito tatildeo importante
(ou o contraacuterio) que a linguagem natildeo poderia exprimir Donde o papel fundamental
da hipeacuterbole na retoacuterica religiosa visto que soacute ela pode designar aquilo que natildeo se
pode denominar
Demais aleacutem de amplificarem pela generalizaccedilatildeo as maacuteximas exercem tambeacutem impacto ins-
tantacircneo no auditoacuterio donde serem muitiacutessimo mais eficazes que o silogismo cujo acompa-
nhamento se faz de modo lento e progressivo premissa a premissa raciociacutenio a raciociacutenio
muita vez a preccedilo de consideraacutevel esforccedilo mental De fato a maacutexima exerce impacto ao obstar
pela velocidade e concisatildeo de sua enunciaccedilatildeo a interferecircncia da razatildeo fazendo com que seu
conteuacutedo seja aceito sem reservas e de imediato pois costuma levar algum tempo a reconstru-
ccedilatildeo dum silogismo completo Portanto a maacutexima surpreende num ataque obliacutequo agrave maneira
da feliz metaacutefora de Quintiliano
E assim como nos combates armados eacute faacutecil tanto perceber como tambeacutem prevenir-se
e repelir os ataques adversaacuterios e os golpes diretos e francos os ataques obliacutequos e
encobertos satildeo menos perceptiacuteveis sendo proacuteprio da arte [beacutelica e retoacuterica] mostrar
algo diferente daquilo que se pretende de fato assim tambeacutem o discurso que carece
de habilidade potildee-se a combater apenas com peso e impacto todavia se empreendeu
simular e variegar eacute-lhe permitido avanccedilar pelos flancos e pelas costas e natildeo apenas
desviar as armas adversaacuterias mas tambeacutem como que num relance ludibriaacute-las38
E mais os conteuacutedos expressos pelas maacuteximas por serem de conhecimento comum (εἶναι
κοιναί) parecem de imediato estar corretos (ὀρθῶς ἔχειν δοκοῦσιν) (1395a11-12) Esses efei-
tos por sua vez combinados com as virtudes do discurso oral como bem destaca Reboul (2000
pp 94-5) jamais deixam de exercer impacto argumentativo consideraacutevel seja quando comuni-
cam ou quando instruem poreacutem natildeo geometricamente e sim por meio de repeticcedilotildees alitera-
ccedilotildees ritmo metaacuteforas alegorias enigmas naquilo que o autor denomina funccedilatildeo ldquopoeacuteticardquo da
linguagem e que outra coisa natildeo eacute senatildeo a elocuccedilatildeo com suas figuras os ldquoargumentos conden-
sadosrdquo de Perelman (ibid 2000 p 121) Todas as figuras mdash o que se pode expandir tambeacutem a
38 Inst oratoriae (9120) ldquoNamque ut in armorum certamine aduersos ictus et rectas ac simplices manus cum
uidere tum etiam cauere ac propulsare facile est auersae tectaeque minus sunt obseruabiles et aliud ostendisse
quam petas artis est sic oratio quae astu caret pondere modo et inpulsu proeliatur simulanti uariantique conatus
in latera atque in terga incurrere datur et arma auocare et uelut nutu fallererdquo
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
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O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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SLOANE Thomas O (Ed) Encyclopedia of Rhetoric Oxford Oxford University Press
2001
164
todos recursos do loacutegos supracitados mdash quando operam da mesma forma como as maacuteximas e
proveacuterbios aqui referidos satildeo ldquoredutorasrdquo (REBOUL 2000 p 125) porque priorizam um certo
recorte em detrimento do todo um certo valor em lugar de outros daiacute tambeacutem e principalmente
seu papel argumentativo Com efeito uma maacutexima guarda sua forccedila na proacutepria concisatildeo isto
eacute por ter uma forma ldquoatocircmicardquo no dizer de Reboul (ibid) que faz com que se guarde na me-
moacuteria com facilidade natildeo apenas o conteuacutedo mas a proacutepria forma que se a reproduza com
rapidez que se a compreenda sem grande esforccedilo isso sem mencionar que conteacutem em sua
forma atocircmica um poderoso argumento condensado que se torna decisivo exatamente por sua
concisatildeo e estilo Pois satildeo exatamente essas as caracteriacutesticas natildeo apenas dum discurso de tipo
miacutestico de modo geral que pretenda dizer o indiziacutevel mas das Confissotildees em particular espe-
ciacutefica mas natildeo exclusivamente quando pretende Agostinho falar de Deus naquilo que se houve
por bem denominar ldquoretoacuterica do silecircnciordquo
Veja-se como exemplo de maacutexima (γνώμη) o verso de Euriacutepedes (Heacutecuba 858) adu-
zido por Aristoacuteteles (1394b1-6)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
Poreacutem quando se o considera ao lado do verso seguinte diz o filoacutesofo tem-se entatildeo um enti-
mema natildeo mais uma maacutexima (πρὸς δὲ τῷ ἐχομένῳ ἐνθύμημα) (1394b5)
Natildeo existe dentre os homens quem eacute livre
porque ou dos bens eacute escravo ou da fortuna
Οὐκ ἔστιν ἀνδρῶν ὅστις ἔστrsquo ἐλεύθερος
ἢ χρημάτων γὰρ δοῦλός ἐστιν ἢ τύχης
No primeiro exemplo pode-se reescrever a maacutexima do seguinte modo ldquoNenhum homem den-
tre todos os homens eacute livrerdquo O segundo verso do seguinte modo ldquoNingueacutem eacute feliz em tudo
porque ou eacute escravo do dinheiro ou eacute escravo do destinordquo O que em forma de entimema pode-
se aproximadamente esquematizar como se segue P1 Ou o homem eacute escravo do dinheiro P2
Ou o homem eacute escravo do destino C Logo nenhum homem eacute livre39 Claro estaacute que os opera-
dores disjuntivos com que P1 e P2 se iniciam ldquoou ourdquo (ἢ ἢ) satildeo excludentes o que implica
natildeo haver uma terceira via (nihil est tertium) ou seja a humanidade se divide unicamente em
dois grupos 1 os que satildeo escravos do dinheiro 2 os que satildeo escravos do destino e nada aleacutem
39 Eacute bem verdade que se poderia considerar a disjuntiva como premissa no seguinte esquema alternativo P1
Todos os homens satildeo escravos de alguma coisa P2 Ou satildeo escravos do dinheiro ou do destino C Logo todos os
homens natildeo satildeo livres
165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
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da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
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O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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165
o que simplifica drasticamente a realidade numa generalizaccedilatildeo que se pode ateacute considerar gros-
seira Contudo eacute exatamente dessa concisatildeo desse recorte simplificado do real que o entimema
tira a sua pujanccedila argumentativa assim como a maacutexima que por ser ainda mais concisa que o
entimema exerce seu impacto com mais rapidez e eficaacutecia porque o verso ldquoNatildeo existe dentre
os homens quem eacute livrerdquo considerado por Aristoacuteteles uma maacutexima natildeo eacute outra coisa senatildeo a
proacutepria conclusatildeo do entimema
Maacuteximas haacute diz Aristoacuteteles (1394b6-) que se fazem seguir duma conclusatildeo ou epiacutelogo
(μετrsquo ἐπιλόγου) outras que natildeo carecem de epiacutelogo (ἄνευ ἐπιλόγου) Isso se daacute porque nem
tudo o que se diz eacute mateacuteria controversa que careccedila de demonstraccedilatildeo por ser contraacuterio agrave opiniatildeo
geral (παράδοξόν τι) Assim os conteuacutedos e as maacuteximas construiacutedas a partir deles que faccedilam
parte da opiniatildeo geral por serem conhecidos natildeo precisam de demonstraccedilatildeo nem de conclu-
satildeo como o seguinte verso aduzido pelo filoacutesofo provavelmente do poeta Simocircnides (c 556-
468 aC) (1394b13)
Para o homem ter sauacutede eacute a melhor coisa ao menos eacute o que nos parece
ἀνδρὶ δrsquo ὑγιαίνειν ἄριστόν ἐστιν ὡς γrsquo ἡμῖν δοκεῖ
Dentre as que necessitam de epiacutelogo algumas fazem parte do entimema (ἐνθυμήματος μέρος
εἰσίν) outras as mais estimadas (μάλιστrsquo εὐδοκιμοῦσιν) porque a causa daquilo que se diz eacute
aparente (ἐμφαίνεται τοῦ λεγομένου τὸ αἴτιον) apesar de ldquoentimemaacuteticasrdquo (ἐνθυμηματικαί)
natildeo fazem parte do proacuteprio entimema como por exemplo o seguinte verso de autor desconhe-
cido
Natildeo guardes oacutedio imortal sendo tu mortal
Ἀθάνατον ὀργὴν μὴ φύλασσε θητὸς ὤν
O primeiro hemistiacutequio que Aristoacuteteles (1394b24) reescreve como μὴ δεῖν φυλάττειν
[ἀθάνατον ὀργήν] ldquoNatildeo se deve guardar [oacutedio imortal]rdquo constitui uma maacutexima poreacutem
θνητὸν ὄντα ldquosendo mortalrdquo por sua vez constitui uma conclusatildeo que expressa o porquecirc (τὸ
διά τί) a causa (τὸ αἴτιον) do que se enunciou na primeira parte E exatamente por ser mais
evidente a toda gente de modo instantacircneo diz o filoacutesofo este tipo de maacutexima eacute mais bem
considerada O mesmo se daacute com o seguinte verso possivelmente do comedioacutegrafo e filoacutesofo
preacute-socraacutetico Epicarmo (c 560-460 aC) (1394b26)
Coisas mortais deve o mortal pensar natildeo imortais
166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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166
Θνατὰ χρὴ τὸν θνατόν οὐκ ἀθάνατα τὸν θνατὸν φρονεῖν40
O filoacutesofo natildeo explica mas pode-se arriscar que o hemistiacutequio primeiro ldquoO homem mortal
deve [pensar] coisas mortaisrdquo constitui a maacutexima sem o epiacutelogo que seria o hemistiacutequio se-
guinte ldquoporque o homem mortal natildeo [deve] pensar coisas imortaisrdquo ou seja pensar aquilo que
eacute proacuteprio aos deuses imortais apenas Neste caso contudo pela elipse dos termos principal-
mente φρονεῖν ldquopensarrdquo na primeira parte mas tambeacutem do impessoal χρή ldquodever-serdquo na
segunda se Epicarmo natildeo tivesse incluiacutedo o epiacutelogo que explicasse a causa do que se enuncia
a maacutexima restaria truncada e consequentemente incompreensiacutevel ou entatildeo para alguns muito
enigmaacutetica pois se poderia incluir qualquer verbo na primeira parte
Depreende-se sem grande dificuldade de tudo o que foi dito o motivo por que Aristoacute-
teles sugere por vezes transformar o entimema em maacutexima41 pois como se disse amiuacutede nem
sempre as provas exclusivamente racionais se impotildeem como as mais adequadas ou eficazes
como se patenteia no caso das Confissotildees especificamente para dizer o indiziacutevel O exemplo
dado pelo autor da Retoacuterica eacute bastante ilustrativo Primeiramente tem-se uma maacutexima
Eacute preciso fazer reconciliaccedilotildees os que tecircm bom-senso [estando] proacutesperos
pois deste modo obteratildeo maior vantagem
Χρή δὲ τὰς διαλλαγὰς ποιεῖν τοὺς νοῦν ἔχοντας εὐτυχοῦντας οὕτω γὰρ ἂν μέγιστα πλεονεκτοῖεν
O que em forma entimemaacutetica (ἐνθυμηματικῶς δέ) transcreve Aristoacuteteles do seguinte modo
(que se traduziu agrave letra) ldquoSe pois fazem-se necessaacuterias quando seja o mais beneacutefico e vanta-
joso possiacutevel fazer entatildeo as reconciliaccedilotildees quando se estaacute proacutespero eacute necessaacuterio reconciliar-
serdquo42 Ainda que natildeo sejam de imediato perceptiacuteveis as premissas do entimema pode-se refor-
mulaacute-lo do seguinte modo P1 Todo tempo de prosperidade oferece mais vantagens e benefiacute-
cios [P2 mdash premissa ausente tanto no entimema como na maacutexima As reconciliaccedilotildees devem
ser feitas tendo em vista vantagens e benefiacutecios] C Logo reconciliaccedilotildees devem ser feitas em
tempo de prosperidade Vecirc-se claramente como a formulaccedilatildeo gnocircmica eacute muito mais impac-
tante seja pela concisatildeo ou pela conclusatildeo raacutepida e quase irretorquiacutevel que aduz
No discurso cristatildeo como o das Confissotildees por sua vez pode-se dizer que as maacuteximas
se confundem com as citaccedilotildees biacuteblicas ainda que se compreenda a Escritura como expressatildeo
40 Α traduccedilatildeo linear seria algo como ldquoCoisas mortais deve o mortal natildeo imortais o mortal pensarrdquo 41 (1418b33-39) ldquoConveacutem tambeacutem transformar agraves vezes os entimemas tornando-os em maacuteximasrdquo (δεῖ δὲ καὶ
μεταβάλλειν τὰ ἐνθυμήματα καὶ γνώμας ποιεῖν ἐνίοτε) 42 ldquoεἰ γὰρ δεῖ ὅταν ὠφελιμώταται ὦσι καὶ πλεονεκτικώταται αἱ καταλλαγαί τότε καταλλάττεσθαι
εὐτυχοῦντας δεῖ καταλλάττεσθαιrdquo
167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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167
da Palavra de Deus seja como Palavra registrada em palavras ou como palavras sobre a Palavra
discurso que de um modo ou de outro tem-se por divinamente inspirado como por exemplo
no caso dos profetas que se faziam eles mesmos portadores dos oraacuteculos de Yahweacute Seja como
for pelo uso intenso de passagens das escrituras mdash do primeiro paraacutegrafo das Confissotildees ao
verso inicial do segundo (111-2) das 219 palavras escritas por Agostinho 46 (21) satildeo biacute-
blicas retiradas de 8 citaccedilotildees diretas das Escrituras e 13 referecircncias43 mdash Agostinho natildeo apenas
imprime um ecircthos sagrado e venerando a seu discurso o que natildeo deixa de ser um instrumento
imensamente persuasivo mas tambeacutem assume parte deste ecircthos para si cujas palavras se fazem
portadoras de altiacutessimo valor seja literaacuterio seja filosoacutefico seja religioso Aleacutem do mais a ex-
periecircncia de que fala Aristoacuteteles quando adverte que natildeo se deve falar senatildeo com conhecimento
de causa sobre algum assunto Agostinho a tinha de sobra agora especialmente depois da nar-
raccedilatildeo dos livros da parte biograacutefica em que as intensas venturas e desventuras experienciadas
em sua vida pregressa se enfileiram uma apoacutes outra numa narrativa comovente e precisa
Mas por um lado conveacutem proferir maacuteximas aqueles que tecircm mais idade por outro
proferi-las a respeito de coisas sobre as quais se eacute experimentado pois proferir maacutexi-
mas quando natildeo se eacute tatildeo vivido eacute tatildeo inconveniente como proferir faacutebulas e discorrer
sobre aquilo em que se eacute inexperiente tolice e falta de instruccedilatildeo44
Diante disso natildeo se tem por temeridade arriscar dizer que uma das funccedilotildees dos primei-
ros livros das Confissotildees eacute exatamente a construccedilatildeo dum ecircthos dum caraacuteter de experiecircncia e
adequaccedilatildeo natildeo apenas para a funccedilatildeo episcopal para agrave qual tinha sido eleito coadjutor de modo
irregular mas para sua vida eclesiaacutestica de modo geral diante de seu passado maniqueu e no-
toriamente anticatoacutelico ao menos em Cartago e vizinhanccedilas de Tagasta e Madaura Com efeito
Agostinho carecia de passar a limpo e exorcizar o seu enodoado preteacuterito e acima de tudo de
granjear para si um status respeitaacutevel diante da comunidade natildeo apenas com o fito de fazer
filosofia mas tambeacutem para ter sucesso nas polecircmicas e debates dogmaacuteticos em que se via e
havia de ver envolvido Trata-se tambeacutem duma tentativa de ldquopurificaccedilatildeordquo de deixar de ser um
outsider uma depuraccedilatildeo natildeo apenas filosoacutefica mas tambeacutem moral a fim de que pudesse falar
de Deus convenientemente e ser aceito
De volta agraves maacuteximas por mais temeraacuteria possa parecer a afirmaccedilatildeo supraefetuada de
que se confundam com as citaccedilotildees escrituraacuterias vale lembrar tatildeo somente dois detalhes de im-
portacircncia capital que venham clarear a analogia O primeiro eacute o caraacuteter primordialmente oral
43 As 13 referecircncias biacuteblicas constantes de Conf 111-2 satildeo as seguintes Sl 472 Sl 954 Sl 1443 Sl 1465
2Cor 410 Tg 46 1Pd 55 Sl 11834 Sl 11834 Sl 11834 Rm 1014 Sl 2127 Mt 77 44 (1395a1-7) ldquoἁρμόττει δὲ γνωμολογεῖν ἡλικίᾳ μὲν πρεσβύτεροις περὶ δὲ τούτων ὧν ἔμπειρός τις ἐστίν
ὡς τὸ μὲν μὴ τηλικοῦτον ὄντα γνωμολογεῖν ἀπρεπὲς ὥσπερ καὶ μυθολογεῖν περὶ δ᾿ ὧν ἄπειρος ἠλίθιον καὶ ἀπαίδευτονrdquo
168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
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168
das Escrituras salvo rariacutessimas exceccedilotildees como passagens do Evangelho de Joatildeo e do Apoca-
lipse de par com algumas construccedilotildees mais bem elaboradas das narrativas de Lucas tanto em
seu Evangelho como nos Atos dos Apoacutestolos o que se pode constatar jaacute no proacutelogo do primeiro
Pois bem sabe-se quatildeo necessaacuterios eram tanto a universalizaccedilatildeo dos temas quanto a musicali-
dade de par com outros tantos recursos ditos elocutoacuterios como por exemplo as figuras de re-
peticcedilatildeo agrave transmissatildeo oral dos conteuacutedos para o que tecircm cooperado de modo inquestionaacutevel
as sententiae em todos os tempos e culturas por tratarem-se natildeo apenas de conteuacutedos de caraacuteter
universalizante como bem explica Aristoacuteteles mdash quando satildeo utilizados natildeo apenas como pre-
missas (ἀρχαί) mas tambeacutem como conclusotildees (συμπεράσματα) para os entimemas mdash mas
principalmente por estes conteuacutedos viajarem o cadinho dos seacuteculos na forma veicular de cons-
truccedilotildees facilmente memorizaacuteveis porque agradaacuteveis tanto agrave alma quanto ao ouvido Vejam-se
apenas os seguintes exemplos duma seacuterie inumeraacutevel o que de modo nenhum configura uma
auxese tomados todos da expressatildeo popular contemporacircnea mas cuja origem eacute obviamente
biacuteblica de maacuteximas que atravessaram os seacuteculos ldquoMais vale o pouco com Deus que o muito
sem elerdquo45 ldquoQuem daacute aos pobres empresta a Deusrdquo46 ldquoOlho por olho dente por denterdquo e seu
contraacuterio ldquoDar a outra facerdquo47 ldquoA Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e a Deus o que eacute de Deusrdquo48 ldquoFaze
aos outros o que quer que os outros te faccedilamrdquo49 ldquoQuem com ferro fere com ferro seraacute feridordquo50
ldquoOs primeiros seratildeo os uacuteltimos e os uacuteltimos primeirosrdquo51 ldquoAquilo que o homem semear co-
lheraacuterdquo52 ldquoQuem estiver livre de pecado que atire a primeira pedrardquo53 etc
45 (Prv 1516) ldquoMelhor a pequena porccedilatildeo com o temor do Senhor que grandes tesouros com impiedaderdquo
(κρείσσων μικρὰ μερὶς μετὰ φόβου κυρίου ἢ θησαυροὶ μεγάλοι μετὰ ἀφοβίας) 46 (Prv 1917) ldquoempresta a Deus aquele que tem misericoacuterdia para com o pobrerdquo (δανίζει Θεῷ ὁ ἐλεῶν
πτωχόν []) 47 (Mt 538-39) ldquoOuvistes o que foi dito [Retribuiacute] olho por olho e dente[s] por dente[s] Poreacutem eu vos digo
Natildeo oponhais resistecircncia ao mal mas todo aquele que daacute um tapa em [tua] face direita volta-lhe tambeacutem a outrardquo
(ἐκούσατε ὅτι ἐρρέθηmiddot ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος ἐγὼ δὲ λέγω ὑμῖν μὴ ἀντιστῆναι τῷ πονηρῷmiddot ἀλλʼ ὅστις σε ῥαπίζει εἰς τὴν δεξιὰν σιαγόνα [σου] στρέψον αὐτῷ καὶ τὴν ἄλλην)
48 (Mt 2221) ldquoDevolvei entatildeo as coisas de Ceacutesar a Ceacutesar e as de Deus a Deusrdquo (ἀπόδοτε οὖν τὰ Καίσαρος Καίσαρι καὶ τὰ τοῦ Θεοῦ τῷ Θεῷ) (cf Mc 1217 Lc 2025)
49 (Mt 712) ldquoPortanto tudo quanto porventura queirais que vos faccedilam os homens assim tambeacutem voacutes a eles
fazeirdquo (πάντα οὖν ὅσα ἐὰν θέλητε ἵνα ποιῶσιν ὑμῖν οἱ ἄνθρωποι οὕτως καὶ ὑμεῖς ποιεῖτε αὐτοῖς) 50 (Mt 2652) ldquoRetorna a tua espada para o lugar dela porque todos os que empunham a espada pela [na]
espada satildeo mortosrdquo (ἀπόστρεψον τὴν μάχαιράν σου εἰς τὸν τόπον αὐτῆςmiddot πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται)
51 (Mt 2016) ldquoAssim seratildeo uacuteltimos os primeiros e primeiros os uacuteltimosrdquo (οὕτως ἔσονται οἱ ἔσχατοι πρῶτοι καὶ οἱ πρῶτοι ἔσχατοι)
52 (Gl 67) ldquoPois aquilo que venha o homem a semear isso mesmo tambeacutem colheraacuterdquo (ὃ γὰρ ἐὰν σπείρῃ ἄνθρωπος τοῦτο καὶ θερίσει)
53 (Jo 87) ldquoAquele que esteja sem pecado [anamaacutertētos] dentre voacutes [seja] o primeiro [que] atire nela uma
pedrardquo (ὁ ἀναμάρτητος ὑμῶν πρῶτος ἐπʼ αὐτὴν βαλέτω λίθον)
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
REFEREcircNCIAS
[CICERO] Rhetorica ad Herennium (Transl by Harry Caplan) Cambridge (MA) Harvard
University Press 2004 (LOEB Classical Library 403)
ARISTOTELIS Ars Rhetorica (Recognouit breuique adnotatione critica instruxit W D
Ross) Oxford Oxford University Press 2008 (Oxford Classical Texts)
ARISTOTLE The Complete Works of Aristotle (The Revised Oxford Translation Edited by
Jonathan Barnes) Sixth Printing with corrections Princeton Princeton University Press
1995 (Volumes I amp II)
AUERBACH Erich Ensaios de Literatura Ocidental Filologia e Criacutetica 1ordf ed Satildeo Paulo
Duas Cidades Editora 34 2007 pp 15-96 ldquoSacrae scripturae sermo humilisrdquo pp 15-28
ldquoSermo humilisrdquo pp 29-76 ldquoGloria Passionisrdquo pp 77-96
AUGUSTIN Confessions (Texte Eacutetabli et Traduit par Pierre de Labriolle) Seiziegraveme tirage
Paris Les Belles Lettres 2002 (Tome I livres I-VIII Tome II livres VIII-XIII)
______ IV Dialogues Philosophiques I Problegravemes fondamentaux Contra Academicos De
beata uita De ordine (Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et notes de R
Jolivet) 2me eacutedition revue et augmenteacutee Paris Descleacutee de Brouwer 1939 (Œuvres de Saint
Augustin 1re Seacuterie Opuscules)
______ V Dialogues Philosophiques II Dieu et Lrsquoame Soliloques De immortalitate
animae De quantitate animae (Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et
notes de Pierre de Labriolle) Paris Descleacutee de Brouwer 1939 (Œuvres de Saint Augustin 1re
Seacuterie Opuscules)
______ VI Dialogues Philosophiques III De lrsquoame agrave Dieu De magistro De libero arbitrio
(Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et notes de F J Thonnard) Paris
Descleacutee de Brouwer 1952 (Œuvres de Saint Augustin 1re Seacuterie Opuscules)
BARTHES Roland A Aventura Semioloacutegica Satildeo Paulo Martins Fontes 2001
CICERO Brutus On the Orator Books 1-2 (Transl by Sutton H Rackham) Cambridge
Harvard University Press 1948 (LOEB Classical Library 348)
______ On Invention Best Kind of Orator Topics (Transl by H M Hubbel) Cambridge
Harvard University Press 2006 (LOEB Classical Library 386)
______ On the Orator Book III On Fate Stoic Paradoxes Divisions of Oratory (Transl by
H Rackham) Cambridge Harvard University Press 2004 (LOEB Classical Library 349)
COPI Irving M COHEN Carl McMAHON Kenneth Introduction to Logic 14th ed New
York Prentice Hall 2011
CORBETT E CONNORS R Classical Rhetoric for the Modern Student 4th ed Oxford
Oxford University Press 1999
175
DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Saint Les
Confessions preacuteceacutedeacutees de Dialogues philosophiques Paris Gallimard 1998 p1195-1206
(Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Œuvres I)
EUSEBIUS Ecclesiastical History Books I-V (Translated by Kirsopp Lake) VI-X
(Translated by J E L Oulton) Cambridge Harvard University Press 2001 1932 (LOEB
Classical Library 153 265)
KENNEDY George A Invention and Method Two Rhetorical Treatises from the
Hermogenic Corpus (Translated by George Kennedy greek text edited by Hugo Rabe)
Atlanta Society of Biblical Literature 1994
MEYER Michel Principia Rhetorica Une theacuteorie geacuteneacuterale de lrsquoargumentation Paris PUF
2010
PERELMAN Chaiumlm OLBRECHTS-TYTECA Lucie Tratado da argumentaccedilatildeo A nova
retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes 2002
PLATO Complete Works (Edited with Introduction and Notes by J Cooper) Indianapolis
Cambridge Hackett Publishing Company 1997
PLEBE Armando EMANUELE Pietro Manual de Retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes
1992
QUINTILIAN The Oratorrsquos Education (Edited and translated by Donald A Russell)
Cambridge Harvard University Press 2001 (LOEB Classical Library Books amp volumes 1-
2 v 124 3-5 v 125 6-8 v 126 9-10 v127 11-12 V 494)
REBOUL Olivier Introduccedilatildeo agrave retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes 2000
SLOANE Thomas O (Ed) Encyclopedia of Rhetoric Oxford Oxford University Press
2001
169
O segundo detalhe que carece de ser lembrado eacute tatildeo mais simples quanto oacutebvio trata-
se dos livros ditos ldquosapienciaisrdquo ou ldquoproverbiaisrdquo54 do Velho Testamento que natildeo por acaso
satildeo sete e que tampouco por acaso satildeo citados amiuacutede no Novo Testamento Satildeo eles Joacute
Proveacuterbios Eclesiastes Cacircntico Sabedoria Eclesiaacutestico (ou Sirach) e por fim o proacuteprio livro
dos Salmos dos mais citados por Agostinho desde o primeiro verso das Confissotildees aos ester-
tores do livro derradeiro Pois bem se Agostinho recorre no paraacutegrafo inicial das Confissotildees a
uma citaccedilatildeo que eacute uma maacutexima que se repete natildeo apenas no livro dos Proveacuterbios (LXX 334)
ldquoO Senhor resiste aos soberbos aos humildes poreacutem daraacute graccedilasrdquo (κύριος ὑπερηφάνοις
ἀντιτάσσεται ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν) mas tambeacutem no NT (1Pd 55 Tg 46) deus
superbis resistit humilibus autem dat gratiam conclui a obra com uma admoestaccedilatildeo de Cristo
que pode muito bem ser compreendida tambeacutem como maacutexima que o filoacutesofo adapta eacute verdade
natildeo obstante manter-se facilmente reconheciacutevel por qualquer um em todas as eacutepocas desde a
sua ateacute ao presente (Conf 133853) ldquoque se busque [a partir] de ti que se procure em ti que
se bata agrave tua [porta] assim deste modo se haacute de receber se haacute de encontrar se haacute de abrirrdquo (a
te petatur in te quaeratur ad te pulsetur sic sic accipietur sic inuenietur sic aperietur)55
Duas maacuteximas que podem ser dispostas em forma entimemaacutetica do seguinte modo tentativo
No primeiro exemplo (Prv 334 1Pd 55 Tg 46) a maacutexima ldquoDeus resiste aos soberbos poreacutem
aos humildes daacute graccedilasrdquo se pode desdobrar no seguinte entimema [P1 mdash premissa ausente
A soberba eacute maacute a humildade boa] [P2 mdash prem tambeacutem ausente Deus impotildee resistecircncia (cong
i penas) aos maus e premia (cong agracia) os bons] C Logo Deus resiste aos soberbos poreacutem daacute
graccedilas aos humildes No segundo (Conf 133853 Mt 78) tatildeo mais difiacutecil de desdobrar quanto
eliacuteptico ldquoque a partir de Deus se busque procure e bata pois assim se haacute de receber encontrar
e abrirrdquo pode-se arriscar a seguinte disposiccedilatildeo entimemaacutetica a partir do espiacuterito expresso em
Mt 78 P1 Todo aquele que pede busca e bate recebe encontra e tem aberto [P2 mdash premissa
ausente Deus poreacutem daacute faz encontrar e abrir a porta se e somente se se pede busca e bate
com feacute] C Logo deve-se pedir buscar e bater agrave porta de Deus com feacute
54 O termo ldquoproveacuterbiordquo (παροιμία) utilizado no livro homocircnimo biacuteblico pode muito bem ser considerado
equivalente de gnocircmai (γνῶμαι) as ldquomaacuteximasrdquo de Aristoacuteteles de caraacuteter moral ou praacutetico Com efeito o proveacuter-
bio ou maacutexima eacute a conclusatildeo dum entimema cujas premissas (de caraacuteter proverbial tambeacutem) nem sempre satildeo
explicitadas de modo claro como explicam Irving Copi et alii (2002 p 16) ldquoOs argumentos satildeo muitas vezes
obscuros porque uma (ou mais) de suas proposiccedilotildees constituintes natildeo estaacute declarada mas assume-se que seja
compreendida [] Os argumentos do discurso cotidiano com muita frequecircncia apoiam-se em alguma proposiccedilatildeo
que eacute compreendida mas natildeo declarada Tais argumentos satildeo denominados entimemasrdquo [Grifos do autor] 55 (Mt 77-8) ldquoPedi e vos seraacute dado buscai e encontrareis batei e se vos seraacute aberto Porque todo aquele que
pede recebe e o que busca encontra e ao que bate se lhe abriraacuterdquo (αἰτεῖτε καὶ δοθήσεται ὑμῖν ζητεῖτε καὶ εὑρήσετε κρούετε καὶ ἀνοιγήσεται ὑμῖνbull πᾶς γὰρ ὁ αἰτῶν λαμβάνει καὶ ὁ ζητῶν εὑρίσκει καὶ τῷ κρούοντι ἀνοιγήσεται)
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
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provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
REFEREcircNCIAS
[CICERO] Rhetorica ad Herennium (Transl by Harry Caplan) Cambridge (MA) Harvard
University Press 2004 (LOEB Classical Library 403)
ARISTOTELIS Ars Rhetorica (Recognouit breuique adnotatione critica instruxit W D
Ross) Oxford Oxford University Press 2008 (Oxford Classical Texts)
ARISTOTLE The Complete Works of Aristotle (The Revised Oxford Translation Edited by
Jonathan Barnes) Sixth Printing with corrections Princeton Princeton University Press
1995 (Volumes I amp II)
AUERBACH Erich Ensaios de Literatura Ocidental Filologia e Criacutetica 1ordf ed Satildeo Paulo
Duas Cidades Editora 34 2007 pp 15-96 ldquoSacrae scripturae sermo humilisrdquo pp 15-28
ldquoSermo humilisrdquo pp 29-76 ldquoGloria Passionisrdquo pp 77-96
AUGUSTIN Confessions (Texte Eacutetabli et Traduit par Pierre de Labriolle) Seiziegraveme tirage
Paris Les Belles Lettres 2002 (Tome I livres I-VIII Tome II livres VIII-XIII)
______ IV Dialogues Philosophiques I Problegravemes fondamentaux Contra Academicos De
beata uita De ordine (Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et notes de R
Jolivet) 2me eacutedition revue et augmenteacutee Paris Descleacutee de Brouwer 1939 (Œuvres de Saint
Augustin 1re Seacuterie Opuscules)
______ V Dialogues Philosophiques II Dieu et Lrsquoame Soliloques De immortalitate
animae De quantitate animae (Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et
notes de Pierre de Labriolle) Paris Descleacutee de Brouwer 1939 (Œuvres de Saint Augustin 1re
Seacuterie Opuscules)
______ VI Dialogues Philosophiques III De lrsquoame agrave Dieu De magistro De libero arbitrio
(Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et notes de F J Thonnard) Paris
Descleacutee de Brouwer 1952 (Œuvres de Saint Augustin 1re Seacuterie Opuscules)
BARTHES Roland A Aventura Semioloacutegica Satildeo Paulo Martins Fontes 2001
CICERO Brutus On the Orator Books 1-2 (Transl by Sutton H Rackham) Cambridge
Harvard University Press 1948 (LOEB Classical Library 348)
______ On Invention Best Kind of Orator Topics (Transl by H M Hubbel) Cambridge
Harvard University Press 2006 (LOEB Classical Library 386)
______ On the Orator Book III On Fate Stoic Paradoxes Divisions of Oratory (Transl by
H Rackham) Cambridge Harvard University Press 2004 (LOEB Classical Library 349)
COPI Irving M COHEN Carl McMAHON Kenneth Introduction to Logic 14th ed New
York Prentice Hall 2011
CORBETT E CONNORS R Classical Rhetoric for the Modern Student 4th ed Oxford
Oxford University Press 1999
175
DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Saint Les
Confessions preacuteceacutedeacutees de Dialogues philosophiques Paris Gallimard 1998 p1195-1206
(Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Œuvres I)
EUSEBIUS Ecclesiastical History Books I-V (Translated by Kirsopp Lake) VI-X
(Translated by J E L Oulton) Cambridge Harvard University Press 2001 1932 (LOEB
Classical Library 153 265)
KENNEDY George A Invention and Method Two Rhetorical Treatises from the
Hermogenic Corpus (Translated by George Kennedy greek text edited by Hugo Rabe)
Atlanta Society of Biblical Literature 1994
MEYER Michel Principia Rhetorica Une theacuteorie geacuteneacuterale de lrsquoargumentation Paris PUF
2010
PERELMAN Chaiumlm OLBRECHTS-TYTECA Lucie Tratado da argumentaccedilatildeo A nova
retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes 2002
PLATO Complete Works (Edited with Introduction and Notes by J Cooper) Indianapolis
Cambridge Hackett Publishing Company 1997
PLEBE Armando EMANUELE Pietro Manual de Retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes
1992
QUINTILIAN The Oratorrsquos Education (Edited and translated by Donald A Russell)
Cambridge Harvard University Press 2001 (LOEB Classical Library Books amp volumes 1-
2 v 124 3-5 v 125 6-8 v 126 9-10 v127 11-12 V 494)
REBOUL Olivier Introduccedilatildeo agrave retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes 2000
SLOANE Thomas O (Ed) Encyclopedia of Rhetoric Oxford Oxford University Press
2001
170
Natildeo se constitui tarefa inexequiacutevel empreender uma breve reconstruccedilatildeo ainda que ten-
tativa de alguns entimemas de que as proposiccedilotildees de caraacuteter universal e geral que satildeo as maacute-
ximas se fazem conclusotildees Poreacutem natildeo se trata disso aqui de reconstruir os entimemas a partir
dos ditos gnocircmicos constantes da Escritura e citados amiuacutede nas Confissotildees por Agostinho O
que se pretende bastante ao inveacutes eacute dizer que as maacuteximas que satildeo construccedilotildees de caraacuteter eacutetico
repletam as Escrituras (e as Confissotildees) da primeira a uacuteltima paacutegina natildeo apenas por sua virtude
retoacuterico-poeacutetica como musicalidade concisatildeo ritmo paralelismo repeticcedilatildeo entre outras de
par com seu conteuacutedo universalizante e sua virtude mnemocircnica virtude essa por sua vez que
eacute fruto de suas caracteriacutesticas retoacuterico-poeacuteticas mas principalmente por meio de sua pujanccedila
(δύναμις) argumentativa e consequentemente filosoacutefica Tencionou fazer pois uma analogia
que se ajuizou bastante apropriada ao se ter percebido que um sem-nuacutemero de passagens biacutebli-
cas foram concebidas e construiacutedas retoricamente como gnocircmai maacuteximas de caraacuteter praacutetico
cuja utilidade de par com a mnḗmē na transmissatildeo oral dos conteuacutedos natildeo apenas imprime-
lhe uma auctoritas distintivamente divina ao modo do dizer oracular mas permite ao autor no
caso das Confissotildees expandir os recursos de seu loacutegos para muito aleacutem da demonstraccedilatildeo cien-
tiacutefico-racional (ἀπόδειξις) em direccedilatildeo agravequela suprarracionalidade indiziacutevel poreacutem que se quer
e precisa dalgum modo dizer Demais a argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo se faz senatildeo pela induccedilatildeo
seja dos exemplos ou dos entimemas sendo este uacuteltimo como explica Aristoacuteteles construiacutedo
a partir de afirmaccedilotildees de caraacuteter universalizante e geral de que satildeo partes as maacuteximas natildeo
obstante o seu caraacuteter divino e especial na Biacuteblia e consequentemente nas Confissotildees tambeacutem
Conclusatildeo
Pode ter estranhado o leitor ao deparar na tabela supraelaborada a inclusatildeo do loacutegos na
fileira do gecircnero epidiacutectico enquanto o paacutethos na do judiciaacuterio gecircnero ao qual se recomendam
as provas por excelecircncia demonstrativas como o entimema o silogismo de tipo retoacuterico que
por ser uma prova loacutegica deveria fazer parte obrigatoacuteria do loacutegos No entanto seja a estranheza
apenas aparente pois quando Aristoacuteteles se utiliza do termo ldquoprovardquo (πίστις) nem sempre se
refere especificamente aos raciociacutenios loacutegicos como o silogismo retoacuterico assim como quando
se utiliza dos termos ecircthos paacutethos e loacutegos cujas acepccedilotildees se desdobram em muacuteltiplos sentidos
embora sempre cognatos das mesmas ideias baacutesicas Grosso modo as provas ditas teacutecnicas da
retoacuterica referem-se ao acircmbito respectivamente das primeira segunda e terceira pessoas discur-
sivas 1 aquele que fala (ἦθος) 2 aquele a quem se fala (πάθος) 3 aquilo que ou de que se
fala (λόγος) o que equivale a dizer que o foco do discurso recai sobre elas seja na construccedilatildeo
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
REFEREcircNCIAS
[CICERO] Rhetorica ad Herennium (Transl by Harry Caplan) Cambridge (MA) Harvard
University Press 2004 (LOEB Classical Library 403)
ARISTOTELIS Ars Rhetorica (Recognouit breuique adnotatione critica instruxit W D
Ross) Oxford Oxford University Press 2008 (Oxford Classical Texts)
ARISTOTLE The Complete Works of Aristotle (The Revised Oxford Translation Edited by
Jonathan Barnes) Sixth Printing with corrections Princeton Princeton University Press
1995 (Volumes I amp II)
AUERBACH Erich Ensaios de Literatura Ocidental Filologia e Criacutetica 1ordf ed Satildeo Paulo
Duas Cidades Editora 34 2007 pp 15-96 ldquoSacrae scripturae sermo humilisrdquo pp 15-28
ldquoSermo humilisrdquo pp 29-76 ldquoGloria Passionisrdquo pp 77-96
AUGUSTIN Confessions (Texte Eacutetabli et Traduit par Pierre de Labriolle) Seiziegraveme tirage
Paris Les Belles Lettres 2002 (Tome I livres I-VIII Tome II livres VIII-XIII)
______ IV Dialogues Philosophiques I Problegravemes fondamentaux Contra Academicos De
beata uita De ordine (Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et notes de R
Jolivet) 2me eacutedition revue et augmenteacutee Paris Descleacutee de Brouwer 1939 (Œuvres de Saint
Augustin 1re Seacuterie Opuscules)
______ V Dialogues Philosophiques II Dieu et Lrsquoame Soliloques De immortalitate
animae De quantitate animae (Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et
notes de Pierre de Labriolle) Paris Descleacutee de Brouwer 1939 (Œuvres de Saint Augustin 1re
Seacuterie Opuscules)
______ VI Dialogues Philosophiques III De lrsquoame agrave Dieu De magistro De libero arbitrio
(Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et notes de F J Thonnard) Paris
Descleacutee de Brouwer 1952 (Œuvres de Saint Augustin 1re Seacuterie Opuscules)
BARTHES Roland A Aventura Semioloacutegica Satildeo Paulo Martins Fontes 2001
CICERO Brutus On the Orator Books 1-2 (Transl by Sutton H Rackham) Cambridge
Harvard University Press 1948 (LOEB Classical Library 348)
______ On Invention Best Kind of Orator Topics (Transl by H M Hubbel) Cambridge
Harvard University Press 2006 (LOEB Classical Library 386)
______ On the Orator Book III On Fate Stoic Paradoxes Divisions of Oratory (Transl by
H Rackham) Cambridge Harvard University Press 2004 (LOEB Classical Library 349)
COPI Irving M COHEN Carl McMAHON Kenneth Introduction to Logic 14th ed New
York Prentice Hall 2011
CORBETT E CONNORS R Classical Rhetoric for the Modern Student 4th ed Oxford
Oxford University Press 1999
175
DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Saint Les
Confessions preacuteceacutedeacutees de Dialogues philosophiques Paris Gallimard 1998 p1195-1206
(Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Œuvres I)
EUSEBIUS Ecclesiastical History Books I-V (Translated by Kirsopp Lake) VI-X
(Translated by J E L Oulton) Cambridge Harvard University Press 2001 1932 (LOEB
Classical Library 153 265)
KENNEDY George A Invention and Method Two Rhetorical Treatises from the
Hermogenic Corpus (Translated by George Kennedy greek text edited by Hugo Rabe)
Atlanta Society of Biblical Literature 1994
MEYER Michel Principia Rhetorica Une theacuteorie geacuteneacuterale de lrsquoargumentation Paris PUF
2010
PERELMAN Chaiumlm OLBRECHTS-TYTECA Lucie Tratado da argumentaccedilatildeo A nova
retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes 2002
PLATO Complete Works (Edited with Introduction and Notes by J Cooper) Indianapolis
Cambridge Hackett Publishing Company 1997
PLEBE Armando EMANUELE Pietro Manual de Retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes
1992
QUINTILIAN The Oratorrsquos Education (Edited and translated by Donald A Russell)
Cambridge Harvard University Press 2001 (LOEB Classical Library Books amp volumes 1-
2 v 124 3-5 v 125 6-8 v 126 9-10 v127 11-12 V 494)
REBOUL Olivier Introduccedilatildeo agrave retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes 2000
SLOANE Thomas O (Ed) Encyclopedia of Rhetoric Oxford Oxford University Press
2001
171
do caraacuteter do falante seja na afetaccedilatildeo das paixotildees do que ouve seja nas qualidades do que se
diz Todavia esteja uma vez e sempre manifesto que o objetivo da retoacuterica natildeo tem que ver
imediatamente nem com o caraacuteter tampouco com as paixotildees ou com o discurso e sim com a
persuasatildeo (πείθω) para cuja finalidade se fazem necessaacuterias as provas teacutecnicas que objetivam
persuadir seja pelo apelo eacutetico seja pelo apelo emocional seja pelas qualidades do proacuteprio
discurso estribadas estejam em raciociacutenios exclusivamente loacutegicos ou natildeo Isso porque como
reconhece Aristoacuteteles nem sempre a persuasatildeo se faz pelos fatos pela verdade nua e crua e
sim pelas aparecircncias de verdade ou seja pela verossimilhanccedila assim como por opiniotildees
(δόξαι) sejam estas motivadas por preferecircncias pessoais ou coletivas por sentimentos verda-
deiros ou natildeo por afinidades ou repulsas em detrimento das provas de caraacuteter loacutegico uma vez
que natildeo basta apenas ser bom como diz Aristoacuteteles mas deve-se parecer secirc-lo assim como natildeo
haacute verdade evidente para todo e qualquer assunto pois nem todo tema se submete passiva e
exclusivamente a uma abordagem apodiacutectica ou geomeacutetrica como Agostinho bem o sabia Por-
tanto quando se dizem ecircthos paacutethos e loacutegos se estaacute referindo 1 (ἦθος) (11) agraves provas teacutecni-
cas voltadas para a primeira pessoa que visam construir um caraacuteter favoraacutevel ao orador (o que
natildeo equivale a dizer que essa construccedilatildeo eacutetica seja o objetivo do discurso e sim que a persuasatildeo
se conseguiraacute mais facilmente a partir dos argumentos e opiniotildees de algueacutem cujo caraacuteter eacute con-
siderado eticamente superior) (12) ao orador e seu universo eacutetico (13) ao proacuteprio caraacuteter que
se constroacutei pelo discurso seja por meio de raciociacutenios demonstrativos (ἀπόδειξις) que tambeacutem
se denominam provas (πίστεις) os quais mais se adaptam ao objetivo da persuasatildeo acerca de
eventos futuros como ocorre no gecircnero deliberativo quais sejam os exemplos
(παραδείγματα) seja por meio de mecanismos outros da arte como as figuras da elocuccedilatildeo
2 (πάθος) (21) agraves provas teacutecnicas voltadas para a segunda pessoa discursiva provas que ob-
jetivam mover as suas paixotildees a fim de obter um juiacutezo favoraacutevel agrave causa geralmente preteacuterita
pois refere-se a algo justo ou injusto jaacute ocorrido caracteriacutestica do gecircnero judiciaacuterio para o que
se fazem mais apropriados os raciociacutenios loacutegicos que se esteiam em fatos como entimemas
(ἐνθυμήματα) e maacuteximas (γνῶμαι) sem que se excluam os demais mecanismos da arte como
as figuras (22) o proacuteprio auditoacuterio no caso do gecircnero judiciaacuterio os juiacutezes do tribunal (23) as
proacuteprias paixotildees da alma que o orador procura despertar ou mover pelo discurso 3 (λόγος)
(31) agraves provas teacutecnicas assentadas sobre a terceira pessoa aquilo de que se fala a fim de per-
suadir um auditoacuterio de espectadores acerca de algo que eacute (no presente como se daacute no gecircnero
epidiacutectico) belo ou natildeo bom ou natildeo para o que se fazem necessaacuterias provas que objetivam
amplificar a causa para cima (αὔξησις) ou para baixo (ταπείνωσις) sem exclusatildeo das demais
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
REFEREcircNCIAS
[CICERO] Rhetorica ad Herennium (Transl by Harry Caplan) Cambridge (MA) Harvard
University Press 2004 (LOEB Classical Library 403)
ARISTOTELIS Ars Rhetorica (Recognouit breuique adnotatione critica instruxit W D
Ross) Oxford Oxford University Press 2008 (Oxford Classical Texts)
ARISTOTLE The Complete Works of Aristotle (The Revised Oxford Translation Edited by
Jonathan Barnes) Sixth Printing with corrections Princeton Princeton University Press
1995 (Volumes I amp II)
AUERBACH Erich Ensaios de Literatura Ocidental Filologia e Criacutetica 1ordf ed Satildeo Paulo
Duas Cidades Editora 34 2007 pp 15-96 ldquoSacrae scripturae sermo humilisrdquo pp 15-28
ldquoSermo humilisrdquo pp 29-76 ldquoGloria Passionisrdquo pp 77-96
AUGUSTIN Confessions (Texte Eacutetabli et Traduit par Pierre de Labriolle) Seiziegraveme tirage
Paris Les Belles Lettres 2002 (Tome I livres I-VIII Tome II livres VIII-XIII)
______ IV Dialogues Philosophiques I Problegravemes fondamentaux Contra Academicos De
beata uita De ordine (Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et notes de R
Jolivet) 2me eacutedition revue et augmenteacutee Paris Descleacutee de Brouwer 1939 (Œuvres de Saint
Augustin 1re Seacuterie Opuscules)
______ V Dialogues Philosophiques II Dieu et Lrsquoame Soliloques De immortalitate
animae De quantitate animae (Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et
notes de Pierre de Labriolle) Paris Descleacutee de Brouwer 1939 (Œuvres de Saint Augustin 1re
Seacuterie Opuscules)
______ VI Dialogues Philosophiques III De lrsquoame agrave Dieu De magistro De libero arbitrio
(Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et notes de F J Thonnard) Paris
Descleacutee de Brouwer 1952 (Œuvres de Saint Augustin 1re Seacuterie Opuscules)
BARTHES Roland A Aventura Semioloacutegica Satildeo Paulo Martins Fontes 2001
CICERO Brutus On the Orator Books 1-2 (Transl by Sutton H Rackham) Cambridge
Harvard University Press 1948 (LOEB Classical Library 348)
______ On Invention Best Kind of Orator Topics (Transl by H M Hubbel) Cambridge
Harvard University Press 2006 (LOEB Classical Library 386)
______ On the Orator Book III On Fate Stoic Paradoxes Divisions of Oratory (Transl by
H Rackham) Cambridge Harvard University Press 2004 (LOEB Classical Library 349)
COPI Irving M COHEN Carl McMAHON Kenneth Introduction to Logic 14th ed New
York Prentice Hall 2011
CORBETT E CONNORS R Classical Rhetoric for the Modern Student 4th ed Oxford
Oxford University Press 1999
175
DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Saint Les
Confessions preacuteceacutedeacutees de Dialogues philosophiques Paris Gallimard 1998 p1195-1206
(Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Œuvres I)
EUSEBIUS Ecclesiastical History Books I-V (Translated by Kirsopp Lake) VI-X
(Translated by J E L Oulton) Cambridge Harvard University Press 2001 1932 (LOEB
Classical Library 153 265)
KENNEDY George A Invention and Method Two Rhetorical Treatises from the
Hermogenic Corpus (Translated by George Kennedy greek text edited by Hugo Rabe)
Atlanta Society of Biblical Literature 1994
MEYER Michel Principia Rhetorica Une theacuteorie geacuteneacuterale de lrsquoargumentation Paris PUF
2010
PERELMAN Chaiumlm OLBRECHTS-TYTECA Lucie Tratado da argumentaccedilatildeo A nova
retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes 2002
PLATO Complete Works (Edited with Introduction and Notes by J Cooper) Indianapolis
Cambridge Hackett Publishing Company 1997
PLEBE Armando EMANUELE Pietro Manual de Retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes
1992
QUINTILIAN The Oratorrsquos Education (Edited and translated by Donald A Russell)
Cambridge Harvard University Press 2001 (LOEB Classical Library Books amp volumes 1-
2 v 124 3-5 v 125 6-8 v 126 9-10 v127 11-12 V 494)
REBOUL Olivier Introduccedilatildeo agrave retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes 2000
SLOANE Thomas O (Ed) Encyclopedia of Rhetoric Oxford Oxford University Press
2001
172
provas (32) ao proacuteprio discurso aquilo de que se fala por fim (33) aos raciociacutenios ou provas
de caraacuteter exclusivamente racional ou seja que nem se ocupam do caraacuteter tampouco das pai-
xotildees do auditoacuterio ao inveacutes focam apenas no discurso naquilo que se diz a terceira pseudopes-
soa ou referente o que se daacute por meio primordialmente de raciociacutenios loacutegicos ou quaisquer
outros mecanismos voltados para a razatildeo apenas Como se percebe natildeo eacute muito faacutecil dissociar
o loacutegos tanto do ecircthos como do paacutethos neste uacuteltimo sentido (13 23 33) uma vez natildeo ser
muito exequiacutevel discurso isento das marcas de pessoa seja do que fala ou daquele a quem se
fala a despeito da utopia aristoteacutelica dum discurso de tipo geomeacutetrico
Este trabalho pois procurou destacar em continuidade agraves pesquisas que vimos desen-
volvendo acerca da retoacuterica na obra de Agostinho de Hipona de modo especial nas Confissotildees
o papel das provas ditas ldquoteacutecnicasrdquo ou ldquoda arterdquo segundo o sistema retoacuterico aristoteacutelico ecircthos
paacutethos e loacutegos que para muito aleacutem da simples construccedilatildeo de caraacuteter manipulaccedilatildeo das paixotildees
ou ornamentaccedilatildeo do discurso com finalidade exclusivamente persuasoacuteria e agoniacutestica exercem
papel fundamental tanto na arte elaborada pelo pensador macedocircnio como na filosofia do afri-
cano
Para Aristoacuteteles por um lado as provas teacutecnicas se circunscrevem aos trecircs gecircneros su-
praelencados na disposiccedilatildeo tabelar apresentada judiciaacuterio deliberativo e encomiaacutestico ou epi-
diacutectico natildeo apenas pela realidade cultural e poliacutetica em que se via imerso mas porque como
ele mesmo reconhece as questotildees relativas ao estilo (com seus possiacuteveis desdobramentos filo-
soacutefico-literaacuterios) sofressem ainda certa aversatildeo por parte dos que se propunham pensar a lin-
guagem talvez resultado das disputas de Platatildeo contra os sofistas os primeiros pensadores a
imprimir destaque natildeo apenas ao estilo mas a uma retoacuterica de cunho mais literaacuterio como Goacuter-
gias por exemplo ou Isoacutecrates que contudo natildeo foi propriamente um sofista
Influenciado pela obra retoacuterica de Ciacutecero por sua vez e vivendo numa eacutepoca cuja he-
ranccedila da segunda sofiacutestica sabe-se ter sido enorme Agostinho natildeo apenas renova como ultra-
passa o sistema de seus predecessores sistema que no caso romano estava fortemente marcado
pelos valores decorrentes das escolas heleniacutesticas de modo especial a eacutetica estoicizada que
imprimia destaque agrave retidatildeo moral do orador De fato o filoacutesofo de Hipona desenvolve uma
retoacuterica em que as provas da arte ganham colorido novo e surpreendente retomando bastante
de sua virtude elocutoacuteria ao imprimir aos recursos da arte uma finalidade inusitadamente filo-
soacutefica pautado e como que coagido pela necessidade do grande tema que vislumbrava penetrar
o Inefaacutevel Disso decorria que os valores geomeacutetricos duma retoacuterica de calibre mais euclidiano
que gorgiano carecessem ser revistos pois natildeo havia fonte de eternidade donde extrair axiomas
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
174
REFEREcircNCIAS
[CICERO] Rhetorica ad Herennium (Transl by Harry Caplan) Cambridge (MA) Harvard
University Press 2004 (LOEB Classical Library 403)
ARISTOTELIS Ars Rhetorica (Recognouit breuique adnotatione critica instruxit W D
Ross) Oxford Oxford University Press 2008 (Oxford Classical Texts)
ARISTOTLE The Complete Works of Aristotle (The Revised Oxford Translation Edited by
Jonathan Barnes) Sixth Printing with corrections Princeton Princeton University Press
1995 (Volumes I amp II)
AUERBACH Erich Ensaios de Literatura Ocidental Filologia e Criacutetica 1ordf ed Satildeo Paulo
Duas Cidades Editora 34 2007 pp 15-96 ldquoSacrae scripturae sermo humilisrdquo pp 15-28
ldquoSermo humilisrdquo pp 29-76 ldquoGloria Passionisrdquo pp 77-96
AUGUSTIN Confessions (Texte Eacutetabli et Traduit par Pierre de Labriolle) Seiziegraveme tirage
Paris Les Belles Lettres 2002 (Tome I livres I-VIII Tome II livres VIII-XIII)
______ IV Dialogues Philosophiques I Problegravemes fondamentaux Contra Academicos De
beata uita De ordine (Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et notes de R
Jolivet) 2me eacutedition revue et augmenteacutee Paris Descleacutee de Brouwer 1939 (Œuvres de Saint
Augustin 1re Seacuterie Opuscules)
______ V Dialogues Philosophiques II Dieu et Lrsquoame Soliloques De immortalitate
animae De quantitate animae (Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et
notes de Pierre de Labriolle) Paris Descleacutee de Brouwer 1939 (Œuvres de Saint Augustin 1re
Seacuterie Opuscules)
______ VI Dialogues Philosophiques III De lrsquoame agrave Dieu De magistro De libero arbitrio
(Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et notes de F J Thonnard) Paris
Descleacutee de Brouwer 1952 (Œuvres de Saint Augustin 1re Seacuterie Opuscules)
BARTHES Roland A Aventura Semioloacutegica Satildeo Paulo Martins Fontes 2001
CICERO Brutus On the Orator Books 1-2 (Transl by Sutton H Rackham) Cambridge
Harvard University Press 1948 (LOEB Classical Library 348)
______ On Invention Best Kind of Orator Topics (Transl by H M Hubbel) Cambridge
Harvard University Press 2006 (LOEB Classical Library 386)
______ On the Orator Book III On Fate Stoic Paradoxes Divisions of Oratory (Transl by
H Rackham) Cambridge Harvard University Press 2004 (LOEB Classical Library 349)
COPI Irving M COHEN Carl McMAHON Kenneth Introduction to Logic 14th ed New
York Prentice Hall 2011
CORBETT E CONNORS R Classical Rhetoric for the Modern Student 4th ed Oxford
Oxford University Press 1999
175
DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Saint Les
Confessions preacuteceacutedeacutees de Dialogues philosophiques Paris Gallimard 1998 p1195-1206
(Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Œuvres I)
EUSEBIUS Ecclesiastical History Books I-V (Translated by Kirsopp Lake) VI-X
(Translated by J E L Oulton) Cambridge Harvard University Press 2001 1932 (LOEB
Classical Library 153 265)
KENNEDY George A Invention and Method Two Rhetorical Treatises from the
Hermogenic Corpus (Translated by George Kennedy greek text edited by Hugo Rabe)
Atlanta Society of Biblical Literature 1994
MEYER Michel Principia Rhetorica Une theacuteorie geacuteneacuterale de lrsquoargumentation Paris PUF
2010
PERELMAN Chaiumlm OLBRECHTS-TYTECA Lucie Tratado da argumentaccedilatildeo A nova
retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes 2002
PLATO Complete Works (Edited with Introduction and Notes by J Cooper) Indianapolis
Cambridge Hackett Publishing Company 1997
PLEBE Armando EMANUELE Pietro Manual de Retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes
1992
QUINTILIAN The Oratorrsquos Education (Edited and translated by Donald A Russell)
Cambridge Harvard University Press 2001 (LOEB Classical Library Books amp volumes 1-
2 v 124 3-5 v 125 6-8 v 126 9-10 v127 11-12 V 494)
REBOUL Olivier Introduccedilatildeo agrave retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes 2000
SLOANE Thomas O (Ed) Encyclopedia of Rhetoric Oxford Oxford University Press
2001
173
ou verdades cientiacuteficas acerca do indiziacutevel verdades que natildeo admitissem ao menos dois modos
distintos de pensar que natildeo admitissem alguma deliberaccedilatildeo aleacutem das paacuteginas da Escritura a
qual nada paradoxalmente teceu-se e entreteceu-se duma sabedoria de modo nenhum apodiacutec-
tica repleta que estava dos recursos tiacutepicos da transmissatildeo oral que eram tambeacutem os da elocu-
ccedilatildeo os mesmos que ao tempo de Aristoacuteteles eram desprezados mdash natildeo que natildeo o sejam hoje mdash
pelos pensadores contemporacircneos seus recursos como apotegmas enigmas maacuteximas pro-
veacuterbios a natildeo dizer de outros que se dizem de modo equivocado exclusivamente poeacuteticos
isto eacute as figuras desta mesma elocuccedilatildeo como paralelismos aliteraccedilotildees assonacircncias oximoros
paradoxos quiasmos antanaacuteclases parataxes e muitos outros os quais como pronta e eficaz-
mente apercebeu-se o discurso miacutestico de todas as eacutepocas e vertentes exatamente por natildeo po-
derem ser empregados geometricamente como queria o autor da Retoacuterica eram os uacutenicos re-
cursos capazes de apreender conquanto tangencialmente algo do silecircncio inefaacutevel daquele que
se diz o proacuteprio Silecircncio
Ricardo Reali Taurisano
Satildeo Paulo 8 de maio de 2015
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REFEREcircNCIAS
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Jonathan Barnes) Sixth Printing with corrections Princeton Princeton University Press
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AUERBACH Erich Ensaios de Literatura Ocidental Filologia e Criacutetica 1ordf ed Satildeo Paulo
Duas Cidades Editora 34 2007 pp 15-96 ldquoSacrae scripturae sermo humilisrdquo pp 15-28
ldquoSermo humilisrdquo pp 29-76 ldquoGloria Passionisrdquo pp 77-96
AUGUSTIN Confessions (Texte Eacutetabli et Traduit par Pierre de Labriolle) Seiziegraveme tirage
Paris Les Belles Lettres 2002 (Tome I livres I-VIII Tome II livres VIII-XIII)
______ IV Dialogues Philosophiques I Problegravemes fondamentaux Contra Academicos De
beata uita De ordine (Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et notes de R
Jolivet) 2me eacutedition revue et augmenteacutee Paris Descleacutee de Brouwer 1939 (Œuvres de Saint
Augustin 1re Seacuterie Opuscules)
______ V Dialogues Philosophiques II Dieu et Lrsquoame Soliloques De immortalitate
animae De quantitate animae (Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et
notes de Pierre de Labriolle) Paris Descleacutee de Brouwer 1939 (Œuvres de Saint Augustin 1re
Seacuterie Opuscules)
______ VI Dialogues Philosophiques III De lrsquoame agrave Dieu De magistro De libero arbitrio
(Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et notes de F J Thonnard) Paris
Descleacutee de Brouwer 1952 (Œuvres de Saint Augustin 1re Seacuterie Opuscules)
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Confessions preacuteceacutedeacutees de Dialogues philosophiques Paris Gallimard 1998 p1195-1206
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EUSEBIUS Ecclesiastical History Books I-V (Translated by Kirsopp Lake) VI-X
(Translated by J E L Oulton) Cambridge Harvard University Press 2001 1932 (LOEB
Classical Library 153 265)
KENNEDY George A Invention and Method Two Rhetorical Treatises from the
Hermogenic Corpus (Translated by George Kennedy greek text edited by Hugo Rabe)
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MEYER Michel Principia Rhetorica Une theacuteorie geacuteneacuterale de lrsquoargumentation Paris PUF
2010
PERELMAN Chaiumlm OLBRECHTS-TYTECA Lucie Tratado da argumentaccedilatildeo A nova
retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes 2002
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Cambridge Hackett Publishing Company 1997
PLEBE Armando EMANUELE Pietro Manual de Retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes
1992
QUINTILIAN The Oratorrsquos Education (Edited and translated by Donald A Russell)
Cambridge Harvard University Press 2001 (LOEB Classical Library Books amp volumes 1-
2 v 124 3-5 v 125 6-8 v 126 9-10 v127 11-12 V 494)
REBOUL Olivier Introduccedilatildeo agrave retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes 2000
SLOANE Thomas O (Ed) Encyclopedia of Rhetoric Oxford Oxford University Press
2001
174
REFEREcircNCIAS
[CICERO] Rhetorica ad Herennium (Transl by Harry Caplan) Cambridge (MA) Harvard
University Press 2004 (LOEB Classical Library 403)
ARISTOTELIS Ars Rhetorica (Recognouit breuique adnotatione critica instruxit W D
Ross) Oxford Oxford University Press 2008 (Oxford Classical Texts)
ARISTOTLE The Complete Works of Aristotle (The Revised Oxford Translation Edited by
Jonathan Barnes) Sixth Printing with corrections Princeton Princeton University Press
1995 (Volumes I amp II)
AUERBACH Erich Ensaios de Literatura Ocidental Filologia e Criacutetica 1ordf ed Satildeo Paulo
Duas Cidades Editora 34 2007 pp 15-96 ldquoSacrae scripturae sermo humilisrdquo pp 15-28
ldquoSermo humilisrdquo pp 29-76 ldquoGloria Passionisrdquo pp 77-96
AUGUSTIN Confessions (Texte Eacutetabli et Traduit par Pierre de Labriolle) Seiziegraveme tirage
Paris Les Belles Lettres 2002 (Tome I livres I-VIII Tome II livres VIII-XIII)
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beata uita De ordine (Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et notes de R
Jolivet) 2me eacutedition revue et augmenteacutee Paris Descleacutee de Brouwer 1939 (Œuvres de Saint
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(Texte de lrsquoeacutedition beacuteneacutedictine traduction introduction et notes de F J Thonnard) Paris
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BARTHES Roland A Aventura Semioloacutegica Satildeo Paulo Martins Fontes 2001
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CORBETT E CONNORS R Classical Rhetoric for the Modern Student 4th ed Oxford
Oxford University Press 1999
175
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Confessions preacuteceacutedeacutees de Dialogues philosophiques Paris Gallimard 1998 p1195-1206
(Bibliothegraveque de la Pleacuteiade Œuvres I)
EUSEBIUS Ecclesiastical History Books I-V (Translated by Kirsopp Lake) VI-X
(Translated by J E L Oulton) Cambridge Harvard University Press 2001 1932 (LOEB
Classical Library 153 265)
KENNEDY George A Invention and Method Two Rhetorical Treatises from the
Hermogenic Corpus (Translated by George Kennedy greek text edited by Hugo Rabe)
Atlanta Society of Biblical Literature 1994
MEYER Michel Principia Rhetorica Une theacuteorie geacuteneacuterale de lrsquoargumentation Paris PUF
2010
PERELMAN Chaiumlm OLBRECHTS-TYTECA Lucie Tratado da argumentaccedilatildeo A nova
retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes 2002
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PLEBE Armando EMANUELE Pietro Manual de Retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes
1992
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Cambridge Harvard University Press 2001 (LOEB Classical Library Books amp volumes 1-
2 v 124 3-5 v 125 6-8 v 126 9-10 v127 11-12 V 494)
REBOUL Olivier Introduccedilatildeo agrave retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes 2000
SLOANE Thomas O (Ed) Encyclopedia of Rhetoric Oxford Oxford University Press
2001
175
DUPUY-TRUDELLE Sophie ldquoNotice sur Les Soliloquesrdquo In AUGUSTIN Saint Les
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(Translated by J E L Oulton) Cambridge Harvard University Press 2001 1932 (LOEB
Classical Library 153 265)
KENNEDY George A Invention and Method Two Rhetorical Treatises from the
Hermogenic Corpus (Translated by George Kennedy greek text edited by Hugo Rabe)
Atlanta Society of Biblical Literature 1994
MEYER Michel Principia Rhetorica Une theacuteorie geacuteneacuterale de lrsquoargumentation Paris PUF
2010
PERELMAN Chaiumlm OLBRECHTS-TYTECA Lucie Tratado da argumentaccedilatildeo A nova
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PLATO Complete Works (Edited with Introduction and Notes by J Cooper) Indianapolis
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PLEBE Armando EMANUELE Pietro Manual de Retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes
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QUINTILIAN The Oratorrsquos Education (Edited and translated by Donald A Russell)
Cambridge Harvard University Press 2001 (LOEB Classical Library Books amp volumes 1-
2 v 124 3-5 v 125 6-8 v 126 9-10 v127 11-12 V 494)
REBOUL Olivier Introduccedilatildeo agrave retoacuterica Satildeo Paulo Martins Fontes 2000
SLOANE Thomas O (Ed) Encyclopedia of Rhetoric Oxford Oxford University Press
2001