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Paul Fernand Milcent

Felicidade pela Ética

Como os grandes pensadores da história nos mostram que fazer o bem é o melhor caminho para a realização

pessoal e profissional.

2a edição

Edição do autor

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© Paul Fernand Milcent, 07/2014, 11/2014

Revisão: Deriana Miranda Dilah Cunha Milcent

Dione Maria Silveira Milcent Paul André Alain Milcent

Edição, preparação dos originais e capa: Paul Fernand Milcent

Milcent, Paul Fernand Felicidade pela ética: como os grandes pensadores da história nos mostram que fazer o bem é o melhor caminho para a realização pessoal e profissional / Paul Fernand Milcent. - recurso eletrônico - Curitiba, PR : Edição do Autor, 2014. 2a Edição. 296 p.; 16 x 23 cm. dados eletrônicos: 1 arquivo; .pdf; 1,9 MB ISBN 978-85-918574-2-5 1. Ética. 2. Filosofia. 3. Felicidade. I.Título

CDD 170 CDU 17:3

Todos os direitos reservados a

Paul Fernand Milcent Rua Gustavo Rattman, 860 - Curitiba / PR CEP 82520-630

Telefone: (41)3264-2827 [email protected] www.paulfmilcent.net

A difusão parcial ou total da presente edição virtual é gratuita.

Agradecimentos à preservação do sentido de seu conteúdo e a citação do autor e do título da obra.

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A existência de cada um de nós precisa ter sentido. Este livro é um presente a mim mesmo. É algo que me faz considerar que apesar das dificuldades pelas quais já passei, a razão de minha existência foi inteligível. Agradeço a Jesus Cristo e a Maria de Misericórdia. Graças aos dois, existo pelo menos desde 2002. Agradeço a meu pai Paul Milcent, minha mãe Dilah Cunha Milcent, minha esposa Dione Maria Silveira Milcent e meu filho Paul André Alain Milcent. Agradeço também aos demais irmãos na humanidade, com suas atitudes de bondade. O Amor do Pai se reflete neles e me sustenta. Agradeço aos meus ex-alunos de Ética. As nossas discussões e inter-relacionamento efetuaram significativa contribuição à obra tal como é agora apresentada. Agradeço a Deriana Miranda por sua amizade. Altruística e gratuitamente se dispôs a realizar a revisão final do presente texto. Dedico este livro a você amigo leitor. Diz-se que um amigo é um outro nós mesmos. Espero que ele lhe auxilie a ter uma vida mais feliz!

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SUMÁRIO

Uma primeira conversa. 7

Contextualizando... 11

1 Significados. 13 2 Ética é diferente de moral ! 19 3 As duas abordagens para a Ética. 27 4 Motivos para não censurar eticamente a ninguém. 43 5 Materialista ou espiritualista ? 49 Compreendendo aquele que age... 59

6 Os sofistas. Sabemos mesmo alguma coisa ? 61 7 Sócrates. Como saber como agir ? 71 8 Freud e Lacan. O homem com impulsos e censuras. 91 9 Carl Gustav Jung. Na coletividade e além dela. 99

10 A Ética evolucionária. Agindo em conformidade com a história.

119

Feliz por ser ético. 129

11 A Ética e a moral propostas por Jesus. 131 12 A moral hinduísta e budista. 155 13 Aristóteles, Ética e felicidade. 167 14 Uma pausa para conversar. 179 15 Justiça. O que pensamos dela. 185 16 Estóicos. Aceitando o que não se pode mudar. 193 17 John Stuart Mill e o melhor a fazer. 203 18 Immanuel Kant e a Boa Vontade. 211 19 Autoestima e Respeito. 229 20 A vida necessita de motivos. 245 21 Comportamentos auxiliares à felicidade. 253 22 Uma Síntese. O que vimos ? E agora ? 265

Adendos 269

Versos de Ouro de Pitágoras. 271 Mensagem dos milênios. 275 Aforismos selecionados de Benjamin Franklin. 281 Sumário de Ética. 289 Referências 293

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Felicidade pela Ética

Uma primeira conversa.

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Uma primeira conversa.

Minha atividade profissional é a de professor universitário,

servidor público federal. Formei-me em Engenharia Química e há mais de 30 anos ministro aulas na Universidade Federal do Paraná, principalmente para pretendentes à Engenharia. Nesta atividade colaborei com a formação de mais de dois mil jovens, os quais no Brasil e fora dele buscam a sua felicidade, o bem de seus amados e mesmo um maior bem estar geral em nossa civilização.

Este livro surgiu de uma reflexão semiconsciente iniciada há muitos anos atrás. A busca por uma tarefa que se revelasse a mim mesmo com maior sentido. Professores são extremamente valiosos numa sociedade. Transmitem conhecimentos às pessoas, lhes ensinam a pensar, transmitem uma visão de mundo e valores mesmo sem o emprego de palavras. Professores universitários inclusive de Engenharia, proporcionam uma profissão potencialmente útil para a realização e a concretização de sonhos. Para a busca do conforto pessoal e coletivo.

No entanto parcela significativa dos jovens que passam por nossas mãos nas Universidades jamais chegam a exercer a profissão na qual se formaram. Numerosos jamais empregam os conhecimentos que obtiveram através de um professor em particular. Provavelmente muitos ainda, apesar de formados e atuantes, jamais chegam a sentir-se efetivamente realizados.

Deste modo minha ambição e sede de sentido e heroísmo, dirigiram meus esforços a um algo mais. A tentar colaborar com a juventude não apenas enquanto estudantes de Engenharia de destino profissional incerto, mas também como seres humanos em busca de felicidade, desenvolvimento e realização.

Com base em estudos paralelos iniciados já na adolescência, adotei a prática de anexar aos textos técnicos, outros que me pareciam ser úteis para a vida. Criei também uma página na internet para a divulgação, visando auxiliar um público maior.

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Felicidade pela Ética

Uma primeira conversa.

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Numa escalada contínua de construção passei a oferecer desde há cerca de quatro anos, uma disciplina optativa a Engenheiros Químicos cujo tema é o de Ética e Moral para Engenharia, e há seis meses envidei esforços para disponibilizá-la a todos os estudantes da Universidade Federal do Paraná.

Tal disciplina se baseava em slides. Posteriormente tais slides foram transformados em textos. Tais textos, através da atividade didática de inter-relação e diálogo com os estudantes, foram em parte substituídos, vários acrescentados e sempre melhorados. O livro que você tem agora em mãos é o fruto deste trabalho.

Este livro não trata de ética aplicada ao exercício profissional. É uma expressão da parcela do curso de caráter abrangente que julgo ser de grande utilidade a qualquer bom leitor que pretenda ser um pouco mais feliz.

De pouco valor seria uma disciplina de Ética que não proporcionasse mesmo que uma pequena alteração na conduta dos que a acompanhassem. Desta forma sempre procuro incentivar a realização de atividades éticas paralelas voluntárias.

A palavra Ética significa comportamento. Um estudo da Ética é a

rigor buscar diagnosticar qual o melhor comportamento para cada um de nós. O tratamento corriqueiro deste tema é normalmente nebuloso e indefinido, baseado em inumeráveis regras de conduta variáveis com o período histórico e o local geográfico e inclusive conflitantes entre si. Tal emaranhado de conceitos; tal confusão, pode acarretar que na busca por sermos éticos, terminemos por nos comportar inadequadamente, o que é uma contradição, ou ainda nos mantermos escravos ao modo de pensar de outros.

Este livro pretende mostrar que há algo de fundamental, consistente e perene para a conduta adequada e que se este algo for obedecido seremos a um só tempo, verdadeiramente éticos, como também felizes e em contínuo processo de crescente realização e desenvolvimento.

A Ética trata do comportamento individual. O enfoque deste livro é o de entender tal tema através de todos os recursos atualmente

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Felicidade pela Ética

Uma primeira conversa.

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disponíveis e armazenados do conhecimento humano. Não nos restringimos deste modo apenas ao campo da filosofia tal como é atualmente entendida, mas também ousamos efetuar incursões nos campos da psicologia, da antropologia e do estudo comparado de religiões, dentre outros.

A obra se divide em três módulos compreendendo vinte e um capítulos, além da conclusão e dos anexos com textos considerados valiosos e complementares. O primeiro módulo é dedicado a esclarecer conceitos frequentemente ignorados ou mal entendidos referentes ao estudo em questão, inclusive os dois pontos de partida que podem ser utilizados na construção de diretrizes comportamentais. Considerando a grande influência das crenças sobre a conduta, introduzimos aí também uma análise racional comparando a convicção materialista em relação àquela espiritualista.

Como já mencionado, a Ética trata do comportamento humano. O segundo módulo, portanto, tem por ênfase ter-se uma maior compreensão daquele que age. Isto é, compreender o próprio ser humano e um pouco dos motivos de suas escolhas.

O terceiro e último módulo pode ser entendido como o detalhamento da base fundamental da Ética, suportado por notáveis expoentes do pensamento humano, para auxílio na sua aplicação cotidiana.

Quando um autor tem uma ideia é necessário que a represente

por palavras. Nesta passagem um pouco da mensagem original se altera. Quando o leitor entra em contato com tais palavras, há uma nova modificação ocasionada pelas diferenças na compreensão de tais termos pelos dois. Tais mudanças tendem a ser tanto maiores quanto maior o número de indivíduos que retransmitem os conceitos originais. Esta observação deve ser considerada como um alerta. Em todo o presente trabalho, mesmo quando um notório pensador é mencionado, sempre haverá ao menos a minha própria influência e visão de mundo. Mais claramente tal obra não pretende ser imparcial. Há a marca do meu próprio pensamento em todos os textos. Caso o leitor almeje, é até mesmo benéfico que procure explorar as ideias dos baluartes de nossa

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Felicidade pela Ética

Uma primeira conversa.

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civilização, procurando entrar em contato com os textos que eles mesmos tenham escrito, sempre que isto seja possível.

Na conversão do arquivo de texto para pdf, eventualmente uma ou outra letra pode ser omitida ou trocada. Quanto a isto desde já me desculpo.

O título deste trabalho representa muito bem a intenção que se

encontra por trás dele. Espero que você, amigo leitor, tenha uma existência um pouco mais feliz a partir de sua leitura. O comportamento adequado ao ser humano e por definição ético é aquele capaz de lhe realizar, desenvolver e lhe tornar feliz. Nele exploraremos juntos a essência e alguns detalhes quanto às diretrizes de conduta capazes de possibilitar atingir-se tal resultado.

Paul Fernand Milcent

Um seu amigo Novembro de 2014.

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Felicidade pela Ética Contextualizando...

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Contextualizando...

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Felicidade pela Ética

Significados.

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1 Significados.

Muitos de nós sabemos que as palavras que empregamos como

meio de expressão e comunicação são essencialmente sinais. Isto é, signos ou símbolos, os quais representam algo diferente e, ou além de si mesmos. Desta forma, quando as escrevemos ou pronunciamos, é como se expuséssemos ao interlocutor ou ao leitor uma pintura, esperando que este a veja de modo similar a nós. A comunicação é tanto mais eficiente quanto maior a semelhança da correspondência que os dois sujeitos tem, entre o signo e a realidade particular representada. Ou seja, é desejável que o significado das palavras empregadas seja o mais próximo possível, para todos os envolvidos.

No estabelecimento de significados, a etimologia, isto é, a origem de um dado termo bem como seu significado original, fornece uma base conceitual, uma base de conhecimento que esta palavra representa. A base é como o alicerce de um prédio, ou a raiz de uma árvore, que serve de apoio às construções mentais subsequentes.

A busca, num bom dicionário, de seus sinônimos, nos apresenta signos que expressam realidades mais ou menos próximas. Ora, o conhecimento humano não consegue surgir do nada. Conhecemos realidades complexas, a partir daquelas um pouco mais simples. Entendemos verdades desconhecidas pela realização de analogias com outras conhecidas que lhes sejam parecidas e assim por diante. Desta forma, o conhecimento humano e as realidades que o ser humano consegue perceber são representados por uma teia de signos; por sistemas de significação. Tal é o ponto de vista da assim chamada semiótica.

Quanto melhor conhecermos, numa determinada área de conhecimento, a interligação de significados, maior será o próprio conhecimento específico, bem como a comunicação. Por exemplo, um engenheiro só consegue se comunicar eficientemente em área muito

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Felicidade pela Ética

Significados.

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técnica, com outro profissional do mesmo ramo. Um japonês só se comunica com outro que conheça a mesma língua.

A dedicação de nossos esforços será focada na ética e na moral, pretendendo com isto a sua maior felicidade. Para tal é muito desejável que entendamos uma mesma 'língua'.

Deste modo, o que propomos neste capítulo inicial é análogo a uma visita guiada a uma galeria de exposições. Nela encontraremos pinturas: a pintura intitulada ética, aquela denominada moral e algumas outras. Vou tomar a liberdade de descrevê-las, discuti-las e mostrar quais pinturas estão próximas de outras. O objetivo disto é formar uma inter-relação de significados que nos serão úteis ao longo do estudo ao qual nos propomos. Estudo que pretende basicamente o seu bem.

O termo 'ética' tem sua origem no grego ethos, que por sua vez significa hábito ou costume. Daí ethiké se traduz por aquilo que tem relação com o costume. Futuramente será de alguma valia observar que é um substantivo singular.

Já moral, provém do latim mores e significa também costumes, mas é um termo plural.

Exploremos, portanto, tal base conceitual. Costumes são entendidos como atitudes habituais. Atitudes estabelecidas pela repetição, as quais formam uma tradição, transmitida de geração em geração, ou consolidadas num dado indivíduo ao longo do tempo.

Na língua francesa o termo costume assume um significado paralelo muito rico, ou seja, indica o vestuário, o traje característico do indivíduo. Isto sugere que o modo como um dado indivíduo ou uma coletividade se apresenta aos outros, e provavelmente até frente a si mesmo, se dá através das suas atitudes, sendo aquelas atitudes de mesma natureza e repetitivas, uma peça de vestuário habitual empregada perante o mundo.

Podemos observar que tais costumes podem surgir de forma fortuita, por necessidade natural, adotados por uma escolha livre ou ainda impostos por um agente qualquer.

Desta forma nos alimentamos e nos relacionamos sexualmente por necessidade natural. Podemos por livre arbítrio abandonar o sexo e

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Felicidade pela Ética

Significados.

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assim seremos celibatários. Podemos ainda ser castrados de algum modo, e assim nos tornaremos celibatários não pelo exercício da liberdade, mas sim pela imposição.

Dentre outros, três termos estão muito próximos da palavra costume, quais sejam: procedimento, conduta e comportamento.

Destes três termos, aquele de significado mais complexo me parece ser 'procedimento'; modo de proceder ou ainda de portar-se. Etimologicamente o termo advém do latim procedere, que por sua vez significa 'emanar de', ou ainda, 'ir adiante de'. Este significado sugere que nossos costumes tem origem em algo que nos é característico; nossa própria natureza. Mais uma vez surge também a ideia de que nossos costumes estão como que a nossa frente, nos caracterizando, nos definindo frente aos demais e provavelmente também, frente a nós mesmos.

Conduta provém do latim conducta e há palavras também do latim extremamente próximas. Do latim, conducto, isto é, conduto e do latim conductore, condutor. Outra interessante analogia nos sugere esta nossa visita à galeria de arte. A ideia é a de que nossas atitudes mais ou menos habituais, guiam, orientam, levam, transportam, carregam as nossas vidas. O que nos é aqui proposto é que nossas atitudes são as nossas senhoras. Por outro lado, é possível aceitar que temos a possibilidade de alterarmos numa certa medida os nossos hábitos.

Comportamento por sua vez significa o modo de comportar-se. Comportar-se é o modo de suportar-se, conter-se e compreender-se em si, admitir-se e tolerar-se. O termo sugere sermos de certo modo como um copo, incapaz de reter mais água do que a sua plena capacidade. Neste sentido os nossos hábitos demonstrariam, pelo menos num certo ponto de vista, as nossas reais capacidades interiores, nossos limites e nossa liberdade, num determinado momento de nossa história. Um copo, num determinado momento, apresenta uma capacidade máxima de conter água. Por outro lado se admitirmos que este copo possa crescer, sua capacidade aumentará.

As três palavras acima citadas, levam diretamente, pela consulta a um dicionário, aos termos portar-se, haver-se e possuir.

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Felicidade pela Ética

Significados.

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Portar-se significa carregar consigo. Haver-se se refere a ter-se em seu poder, como também o termo possuir-se. Isto nos dá a visão de que nossas atitudes indicariam como nos possuímos, bem como a amplitude desta posse.

É interessante observarmos as conotações daquilo que chamamos liberdade. Dizemos: Eu sou livre; posso ter o emprego que quiser. Eu sou livre; posso viajar quando quiser para qualquer lugar. Eu sou livre; posso morar onde quiser, e assim sucessivamente. É fácil observar, por estes e milhares de outros exemplos similares, que o conceito de liberdade individual está intrinsecamente relacionado à quantidade de poder de cada indivíduo. E fica clara a ideia de que uma medida de nossa liberdade é a medida de nosso poder de autodeterminação sobre os nossos costumes; nossas atitudes mais ou menos corriqueiras.

Neste sentido, um dos aspectos mais importantes de um curso de ética, de caráter positivo, é o da libertação individual. Libertação realizada pelo conhecimento, pelo autoconhecimento e por meio da livre reflexão individual. Dar critérios de escolha para cada um, de quais seriam os melhores comportamentos para si mesmo, que nem sempre condizem com os comportamentos que o meio social onde estamos inseridos considera adequados para cada um de nós. Devido ao título deste livro, se você o está lendo é porque está de algum modo interessado em sua felicidade. Quando falamos de ética, estamos na verdade falando de comportamento individual adequado. Quando falamos de 'felicidade pela ética', pretendemos transmitir reflexões quanto a comportamentos que tendem a conduzir a uma vida mais feliz.

O estudo da ética, no entanto, também pode ser usado para escravizar. Poderia partir do pressuposto que você não é livre para escolher o seu próprio comportamento. Poderia tentar convencê-lo a fazer ou não fazer coisas, justificando isto por afirmações que isto ou aquilo é ou não 'ético'.

Como veremos, as análises éticas propriamente ditas, ou seja, o estudo de quais seriam comportamentos adequados, pressupõem o emprego da razão. O emprego da razão do indivíduo que estuda, visando o seu aperfeiçoamento e autogestão. A autogestão obviamente é

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Felicidade pela Ética

Significados.

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incompatível com a gestão de terceiros sobre as nossas vidas. É adequado que empreguemos a autogestão para, dentre outros aspectos, conhecermos e controlarmos para o nosso próprio bem e o da coletividade, nossos impulsos interiores, nem sempre benéficos ou construtivos. Convém também, empregarmos a autogestão para colhermos, do seio da enorme cultura humana, princípios racionais adequados para conduzirmos nossas existências.

Nossa liberdade individual aumenta, pelo conhecimento crescente de tudo aquilo que nos condiciona. Cresce pelo conhecimento das implicações e das consequências oriundas das situações concretas nas quais nos encontramos. O conhecimento é requisito para que nosso poder de conservar ou de transformar nossas atitudes aumente.

De condutas impensadas, condicionadas ou impostas, podemos passar a comportamentos livres. Procurar prever aonde tais procedimentos irão nos levar me parece ser de suma importância. Podemos empregar nossa liberdade e com ela nos conduzirmos a pântanos tenebrosos ou a vales e montanhas aprazíveis. Dependerá de nós. Dependerá de nós sermos prudentes avaliando com cuidado os resultados que cada novo exercício da liberdade individual nos acarretará.

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Felicidade pela Ética

Ética é diferente de moral !

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2 Ética é diferente de moral !

Existem inumeráveis definições para a Ética, das mais restritivas e

ortodoxas até aquelas de maior abrangência de conteúdo. Tendo em vista os propósitos que pretendemos alcançar, podemos propor:

Ética pode ser conceituada como o estudo do comportamento humano no passado, no presente e numa perspectiva de futuro, bem como suas causas. A proposta racional de diretrizes para indicar os comportamentos mais adequados; o estudo de tais propostas e a análise das aplicações também racionais das mesmas à vida cotidiana. Por fim ainda, a análise dos valores que servem como seus princípios fundamentais.

Por meio de tal definição, introduzimos neste campo de estudo, o conhecimento do ser humano em si, bem como a chamada metaética, isto é, o estudo dos conceitos que fundamentam a ética propriamente dita. Englobamos também a ética conceitual, que pretende definir os princípios gerais que norteiam a opção por comportamentos humanos adequados, bem como a ética aplicada, que pode ser entendida como a aplicação dos princípios gerais a dilemas comportamentais cotidianos.

Podemos destacar dois objetivos gerais a se visar com tal estudo,

quais sejam: facilitar um aperfeiçoamento do comportamento de cada indivíduo e libertá-lo essencialmente da ignorância que todos nós portamos em alguma medida, quer reconheçamos isto ou não, através do conhecimento, do esclarecimento e do entendimento.

Entretanto cabe aqui destacar mais uma vez, que o estudo da ética pode ser empregado também para escravizar consciências a ideias supostamente 'corretas', mas não racionais. Para que o leitor se precavenha de tal risco, mesmo salientando que este absolutamente não é meu objetivo, cabe a recomendação milenar: conheça todas as opiniões, porém sempre decida com sua própria consciência.

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Felicidade pela Ética

Ética é diferente de moral !

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É razoável supor que o leitor tenha a intenção de ser ético, ou o que é mais provável, que já se suponha ético. No entanto, para se alcançar um aperfeiçoamento de conduta, a informação qualificada dos melhores rumos será sempre conveniente. Por outro lado, em matéria comportamental, o mundo oferece infinitas orientações, frequentemente discordantes entre si. Desta forma se mostra altamente oportuno classificar-se tais orientações em dois grandes grupos: a moral e a ética propriamente dita. Como já visto, moral é uma palavra de origem latina, plural, e ética uma de origem grega, singular. Aproveitando tal distinção em termos de número, podemos conceituar:

A moral trata de comportamentos defendidos por argumentos não racionais, cujas orientações tendem a variar fortemente com a coletividade considerada e o período histórico analisado. As aplicações cotidianas seguem princípios não racionais ou não seguem nenhum princípio. As orientações são seguidas pelo indivíduo de modo não racional.

A moral trata de costumes ou regras de comportamento particulares e específicos, seguidas por um povo, num determinado período histórico. Uma abordagem moral impõe regras que são altamente variáveis ao longo da história, do espaço geográfico e da cultura de uma determinada coletividade.

A ética trata de comportamentos defendidos por argumentos racionais, onde os princípios norteadores das condutas específicas se mostram essencialmente perenes, ao longo do tempo, e para qualquer coletividade humana. As aplicações cotidianas seguem princípios racionais. As orientações são seguidas pelo indivíduo racionalmente. É assim característico do campo da ética o emprego da razão, como também o é partir-se de conceitos e princípios gerais logicamente válidos na tomada de decisão quanto a um comportamento específico do dia a dia. E por serem tais conceitos testados pela lógica, passam a ser conceitos perenes e universais.

A ética busca empregar os princípios fundamentais por trás dos comportamentos benéficos e tem um enfoque racional. Almeja

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Felicidade pela Ética

Ética é diferente de moral !

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compreender a conduta humana e estabelecer qual seria o melhor comportamento frente à vida e a uma dada situação.

Assim, a título de exemplo, impor um dado comportamento sem

grandes explicações racionais, às vezes defendido com grandes ameaças de dor e ou grandes promessas de alegrias, está no campo da moralidade. Por outro lado, um determinado comportamento ou orientação moral, pode ingressar no campo da ética, desde que defensável do ponto de vista racional.

Algo considerado como moral, pode ser uma conduta baseada em superstições sem fundamento, ou instintiva ou ainda de fundo emocional. Entretanto podemos observar que a razão tem limites. Desta forma, ao contrário, algo classificado como no interior do campo da moral, pode ter sua origem em capacidades humanas que excedem a nossa capacidade intelectual normal ou que tenham natureza espiritual. Neste último caso, ousamos afirmar, tal orientação se confirmará pela lógica, enquanto que aquelas meramente supersticiosas serão refutadas.

Observe o leitor de orientação materialista, que podemos considerar como de natureza espiritual, aquilo que não pode ser experimentado através de nossos cinco sentidos convencionais, porém que todos nós reconhecemos existir, graças as nossas experiências de vida.

A principal abordagem da ética é a chamada abordagem

teleológica. O termo teleologia é pouco usual, porém estamos muito familiarizados com o conceito que transmite em nosso dia a dia. A orientação teleológica é aquela que se volta aos fins, ao propósito, ao objetivo e à finalidade de algo. Este livro, por exemplo, tem como orientação teleológica a sua maior felicidade, em maior profundidade e qualidade. Quando se diz que um sistema químico tende ao equilíbrio, se está fazendo uma abordagem teleológica do fenômeno. Do mesmo modo, a gestão de uma empresa por metas a serem atingidas, bem como muitíssimos outros exemplos que poderiam ser aqui citados.

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Felicidade pela Ética

Ética é diferente de moral !

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A abordagem teleológica da ética considera que o essencial e fundamental do comportamento ético, isto é, da conduta adequada ao ser humano, é 'fazer o bem'. Fui pela primeira vez apresentado a este conceito, que tem a propriedade de esclarecer a enorme confusão que o nosso povo tem a respeito deste tema, pelo eminente professor Rosala Garzuze. Médico que ministrou ética e várias outras disciplinas na Universidade Federal do Paraná, Brasil, além de outros estabelecimentos de ensino do Estado.

Conhecido o fundamental da ética, podemos considerar que os pensadores da área se dedicam a melhor esclarecer tal orientação geral. O melhor esclarecimento de tal fundamento, no meu entendimento, advém da moral judaico-cristã, que recomenda fazermos ao outro o que gostaríamos que fosse feito a nós mesmos, caso nos encontrássemos em situação parecida. Apesar de sua origem religiosa, em outro texto tomaremos o cuidado de demonstrá-lo rigorosamente por meio da lógica. Desta forma tal orientação apresentada inicialmente como uma orientação moral se constitui também numa orientação ética, visto ser plenamente defensável pela razão.

Neste ponto já temos assim um critério para procurar avaliar se um dado comportamento é ético ou não. Já os comportamentos morais, como já classificamos, são aqueles comumente seguidos por uma certa coletividade, num determinado período histórico. Com tais ferramentas podemos realizar algumas análises específicas, a título de ilustração:

Como uma análise ética tem sempre um caráter subjetivo,

vejamos alguns exemplos de comportamentos provavelmente tanto éticos quanto morais:

Zelar pela prole. Todos os povos e também a maioria dos animais

apresenta tal conduta. Faz, portanto, parte de nossa moral. Por outro lado, quando estávamos indefesos na situação de filhos, gostávamos e necessitávamos dos cuidados de nossos pais. Assim é uma conduta igualmente ética.

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Liberdade de expressão da opinião; de convicção religiosa. Algumas das nações modernas dão tal liberdade aos seus cidadãos. É, portanto, uma conduta que faz parte da moral de tais povos. Por outro lado, eu e você desejamos poder manifestar sem coações as nossas opiniões, como também desejamos praticar qualquer religião de nosso agrado. Desta forma é também um comportamento ético.

Tolerância; cordialidade. Vários povos apresentam condutas que

contemplam estas características. É, portanto, moral para eles. Por outro lado, eu e você desejamos receber a tolerância pelas nossas diferenças ou imperfeições ou particularidades. Desejamos também sermos tratados com cordialidade. Desta forma são também comportamentos éticos.

Ainda lembrando a subjetividade inerente às avaliações éticas,

vejamos alguns exemplos de comportamentos morais, mas, pelo menos provavelmente antiéticos:

No passado remoto, a escravização dos prisioneiros de guerra.

Apesar de ser um comportamento padrão para a época, tanto no contexto do passado, quanto no presente, nem eu nem você gostaríamos de prestar serviços contra a vontade ou como máquinas. Desta forma, apesar de moral, pode ser considerado antiético em qualquer época.

No passado recente, a escravização dos prisioneiros de guerra e a

escravidão negra. A escravidão era moral, legal e defendida por lideranças religiosas. Promover a libertação de escravos era considerado imoral e ilegal. No entanto nem eu nem você gostaríamos de sermos feitos escravos. Portanto em qualquer época a escravidão é antiética.

No passado recente, algumas tribos aborígenes abandonavam

seus idosos para a morte. No passado remoto os gregos espartanos matavam seus recém-nascidos com deformidades.

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No passado recente promoveu-se o extermínio de povos e grupos 'inferiores'. A ciência da época inclusive dava apoio a tal medida, através das ideias de eugenia. A maioria dos habitantes de certos países, considerava 'certa' e apropriada tal medida, a qual era também legal. Por outro lado, mesmo que você fosse 'inferior', você não gostaria de ser exterminado, não é?

Quando esta classificação é apresentada aos meus estudantes,

costuma gerar estranheza. O conceito de que o comportamento seguido pela maioria é o 'certo' e o emprego de ética e moral como sinônimos é muito frequente. Costuma haver grande dificuldade em realizar-se tal distinção e observar a existência de uma clara diferença em termos de qualidade dos comportamentos deste modo divididos e encarados. A própria constatação que ética e comportamento humano são uma só coisa e sua enorme abrangência igualmente costuma aturdir as pessoas. Os conceitos da maioria costumam ser relativamente superficiais. Quando se fala em não matar, todos concordam ser uma questão ética. Se falarmos, no entanto, em respeitar a vida ou boicotarmos guerras, começaremos a encontrar resistências. Quando colocamos a cordialidade como algo ético, apesar de não necessariamente uma prática social consagrada como adequada, as resistências podem mesmo ser maiores. A consideração de que o mais adequado e portanto o mais ético, não se iguala necessariamente ao comportamento e à opinião da maioria nos tira de nossa região de conforto, pois se torna um questionamento veemente de nossos valores e condutas atuais. A própria ideia de que o mais ético é o comportamento mais adequado para cada um, encontra como uma das barreiras, a tendência de censurarmos e julgarmos o comportamento de outros, a partir de nossos próprios valores, ou a partir dos valores de uma determinada coletividade.

Caso você tenha se surpreendido com o que foi aqui colocado, leve em consideração que esta obra foi escrita não com a intenção de confirmar eventuais opiniões de que você já seja portador, mas sim de enriquecer sua mente com novas, e penso, melhores conceituações. Após a leitura você sempre será livre para permanecer com as mesmas ideias

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que agora tem. Por outro lado, esta obra necessita fundamentalmente ser transformadora e não se realizam transformações sem mudança. Você quer ser mais feliz? Quer melhorar? Sua maior felicidade só será obtida com comportamentos mais adequados e para isto é importante que seu entendimento das questões comportamentais aumente em alguma medida.

A classificação que fizemos, distinguindo ética de moral pode ser

aperfeiçoada. Observemos a título de exemplo, que no passado a informação

que o europeu possuía era a de que o negro era inferior e acostumado a escravizar e ser escravizado. Sob tal base, a racionalidade ou ao menos uma rudimentar razão, poderia justificar a escravização. Em acréscimo, a história humana demonstra um aperfeiçoamento dos costumes. No passado, nos divertíamos com a luta de gladiadores até a morte ou jogando futebol com a cabeça do adversário vencido. Hoje raras são as lutas que redundam em morte acidental e a bola que empregamos é de couro animal. Frente a isto é mais razoável considerarmos que ao menos uma parte das determinações morais apresenta ao menos uma pseudo racionalidade e ainda, na medida em que nossas bases de informação melhoram em qualidade e nossos costumes são direcionados por meio de uma razão mais esclarecida, a nossa moral evolui.

Por outro lado é radical afirmarmos que os princípios éticos, por

melhores que sejam, forneçam uma solução objetiva perfeita para todas as conjunturas possíveis. A título de exemplo, no passado, quando de invasões armadas, os guerreiros vencidos eram exterminados e o restante da população normalmente escravizada. Se não houvesse a perspectiva de lucro com a venda dos escravos, provavelmente seu destino seria também a morte. Eventualmente o feito escravo iria apreciar sua situação frente à alternativa de sumariamente morrer. Por outro lado, se não houvesse o comprador, não haveria escravização e novamente surgiria a alternativa de morte a todos os vencidos. O comprador poderia comprar um escravo com a intenção de lhe salvar a vida. Gostaria do

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procedimento caso fosse ele o escravizado. O derrotado e escravizado poderia apreciar ser vendido para ter sua vida salva. Em consequência, a solução ética para um dilema constituído numa determinada conjuntura (histórica, geográfica...) pode não ser a mesma que em outra. De qualquer modo, se as soluções concretas são variáveis, é possível afirmar que os princípios éticos racionais tem a capacidade de apresentar as melhores soluções possíveis para uma conjuntura particular.

Encerraremos este capítulo adiantando um pouco do conceito

socrático fundamental: O motivo básico dos enganos do homem é a sua ignorância, o que inclui avaliar mal as consequências de suas atitudes. O entendimento dos motivos que levam a um dado comportamento - a remoção da ignorância - leva a uma alternativa melhor de conduta e gradualmente a melhor conduta possível. O estudo da ética nos incentiva a procurarmos compreender-nos racionalmente, bem como as nossas inter-relações. Como consequência diminuir-se-ia à ignorância, fazendo com que cada indivíduo, a seu tempo e frente às suas limitações, supere-se a si mesmo e adote naturalmente uma forma de viver melhor. Na ética se estuda racionalmente o homem, esperando-se que tal compreensão redunde numa melhor conduta.

Friedrich Nietzshe na obra 'Assim falou Zaratrusta' fez a seguinte

citação: 'O homem é uma corda esticada entre o animal e o super-homem ; uma corda sobre um abismo.'

E é verdade. O evolucionismo nos mostra nossas origens em animais mais primitivos e nossos olhos nos permitem perceber como próximo um horizonte no qual viveremos mais e seremos mais saudáveis e inteligentes. No entanto estamos como que num corredor longo, a maioria de nós quase que completamente às escuras. Não enxergamos as paredes nem o piso. Nem o que está adiante nem o que está atrás de nós. Tal situação pode levar tanto à angústia quanto à alienação. A ética pode ser encarada como um estudo que fornece pelo menos uma pequena vela acesa ao viajor.

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Uma linha defendida por inúmeros pensadores e fortemente

justificável, considera o bem como valor máximo e fundamental da Ética. Outra o considera a obrigação.

Quanto a este último conceito, recorramos mais uma vez a um bom dicionário, com vistas a esclarecer significados. São termos sinônimos, diretamente correlacionados à obrigação: dever (como ter obrigação de); imposição; encargo, carga, tarefa; benefício ou favor.

Por sua vez, imposto significa feito aceitar ou realizar à força. Tal apresentação de conotações faz surgir uma série de perguntas, dentre elas: Quem estabelece a obrigação, o dever, o encargo? Com qual objetivo tais deveres, obrigações e encargos são impostos? Quão lícito é se fazer realizar algo à força e com que objetivo tal força é exercida?

Quanto ao sentido de obrigação como sinônimo de benefício ou favor, o termo obrigação é empregado como sinônimo de fazer o bem.

Interessante observar que estes dois termos, obrigação e bem, ao nível de sentimento, correspondem a medo (de punição) e amor (no contexto de fazer o bem). Ao nível racional, que escolheremos para nortear nossas vidas?

Pertinente a uma discussão quanto a validade do emprego da força para coagir o indivíduo a um determinado comportamento, podemos considerar uma das mais importantes máximas do filósofo Immanuel Kant:

'Age de tal modo que sempre trates a humanidade, seja na tua própria pessoa, ou na de qualquer outro, nunca simplesmente como um meio, mas sempre também como um fim.'

Duas mensagens surgem desta diretriz geral. O fim de uma ação deve ser sempre o bem do indivíduo. Nenhuma pessoa pode ser considerada ou tratada apenas como um instrumento, uma peça de máquina ou de uma engrenagem. Nestes sentidos não seria lícito

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menosprezar ou comprometer o poder individual de efetuar escolhas racionais. Assim não é lícita a imposição, a proibição, a coação, pois cerceariam a liberdade de escolha (que é um bem superior). Também não é lícito corromper a verdade, comprometendo assim suas escolhas racionais (sendo também a verdade um bem maior).

Observa-se portanto, uma relação de ilicitude da coação frente à habilidade racional do indivíduo, como também o bem como valor primordial. Podemos conceber neste contexto uma situação cotidiana onde uma coação redunde num bem?

Digamos que um pai de um filho pequeno mora num apartamento com sacada sem proteção. Ele poderia dizer à criança: não suba na sacada, pois é perigoso; você pode se desequilibrar e cair e morrer. Tal tenra criança entenderia? Compreenderia 'sacada', 'perigo', 'desequilíbrio', 'morte'? Será que não desejaria morrer para saber como é que é? Ao contrário, o bom pai provavelmente dirá: você não deve ir à sacada; você está proibido de ir à sacada. Caso a criança mesmo assim lá fosse, seria retirada a força e correria o risco de levar umas palmadas devido a isto. À medida que a capacidade racional desta criança aumente, o que antes era seguido por coação, passa então a ser seguido visando um bem. Do mesmo modo um adulto irá à sacada quando houver motivos para isto, tomando os cuidados pertinentes que a razão apresentar para o caso.

Mas ao contrário do que este pequeno exemplo, dentre inúmeros ilustra, quanto ao comportamento de um bom e sábio pai, que podemos dizer quanto a um estranho que é apenas forte? Como distingui-los?

De qualquer forma a obrigação como valor fundamental, não tem sustentação lógica, e isto será oportunamente mais discutido.

Quando se pretende um bem através de uma determinada conduta, a conduta em si assume significado, pois é realizada pretendendo um objetivo, uma consequência. Por outro lado, a associação da conduta ética ao dever ou à obrigação, leva claramente a um pensar circular e portanto não lógico. Uma conduta adequada seria aquela que corresponderia a um dever. O dever pelo simples fato de assim ser considerado, estabeleceria uma conduta adequada.

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Uma obrigação ou um dever a rigor, apenas se sustenta por um valor mais primordial. Mesmo se o dever seja estabelecido pela consciência do indivíduo, tal consciência o dita não pela obrigação em si mesma, mas sempre visando um bem.

Assim o princípio fundamental da ética pode ser expresso: o comportamento adequado, conveniente, é fazer o bem e evitar o mal. Fazer o bem é o aspecto ativo da conduta ética individual. Evitar o mal por sua vez é um aspecto passivo desejável da conduta de cada um de nós.

Conforme Aristóteles, pensador antigo, mas cujas ideias são importantíssimas ainda nos dias de hoje, seguramente ocorrem divergências nas avaliações de atitudes específicas como boas ou más, mas claramente qualquer indivíduo nas suas ações e mesmo nas inações busca um bem. Por exemplo, um ladrão busca o bem que o resultado do roubo lhe proporcionará.

Este exemplo mostra também a importância da compreensão individual, para a adequada vivência ética, vivência ética esta, conforme o bem, que exige de cada um de nós uma reflexão constante diante de cada situação. Dentre as quais a avaliação do que é um maior bem.

A ética deontológica tem sua concepção e roupagem modernas

estabelecidas em 1930. O nome origina-se do grego deon que por sua vez significa dever ou obrigação. É uma linha de pensamento baseada e fundamentada na ideia do cumprimento da obrigação; do dever. Seu foco está colocado no juízo de valor de atitudes particulares e não em diretrizes gerais de comportamento.

Aqui as atitudes humanas são classificadas em dois grupos: Atitudes particulares que podemos praticar, ou seja, ações específicas permitidas de caráter opcional. E ações particulares que não devemos praticar. Ou seja, atitudes específicas proibidas, restrições estas efetuadas em geral de modo absoluto.

No momento que se estabelece o foco em ações particulares permitidas ou proibidas, surgem naturalmente as regras de conduta específicas.

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De modo análogo ao que já efetuamos um pouco antes, perguntamos: Quem estabelece tais proibições ou permissões? Com que intenção? Com que propriedade ou sabedoria? Com que licitude?...

Se por um lado o estabelecimento de uma linha de pensamento ética embasada em obrigações e proibições é de pouca sustentação racional, por outro podemos observar que proibições e permissões específicas tem balizado a humanidade ao longo dos séculos, como instrumento religioso ou de gestão de coletividades, entre outros. Seu uso como mecanismo de controle social é frequente. No entanto, vários avanços da humanidade foram ocasionados por meio de transgressões a estas regras; dentre elas aquela que proíbe a insurgência contra uma determinada ordem instituída.

Da disposição de proibição e morte de homossexuais, do judaísmo antigo e contido no velho testamento, caminhamos gradualmente para a tolerância à orientação sexual de cada um. Da escravatura e da segregação racial permitidas e consideradas lícitas, passamos à igualdade de direitos entre raças. Da consideração instituída da mulher como inferior migramos para a igualdade de gênero. Das monarquias e do colonialismo estamos a passar gradualmente a regimes de maior liberdade e autodeterminação do destino de cada coletividade.

Observe que em todos estes casos, temos a ação propriamente ética de indivíduos, terminando por repercutir no modo como as coletividades são geridas, ou seja, no comportamento coletivo, isto é, na política.

Na ética deontológica o bem e a obrigação estão em mesmo nível de valor, ou em alguns casos, a obrigação é supostamente superior ao bem. Nela supostamente também, existem características dos atos, que não os tornam justificáveis apenas pelo valor que trazem à existência, mas por outros tais como: manter uma promessa, ser justo, obedecer uma ordem de Deus ou do Estado. Tais justificativas são as que fazem tais atitudes se tornarem regras e se caracterizarem como obrigatórias e restritas.

Na ética deontológica os deveres, as obrigações e as regras específicas de conduta, estabelecidas por estes mesmos deveres e

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obrigações seriam intrinsecamente bons. Seriam bons por si mesmos, devido à sua própria natureza, independentemente de qualquer circunstância ou consequência. Isto é, pelo menos certas ações particulares seriam por si só certas ou erradas, boas ou más, não importando suas consequências ou as circunstâncias nas quais ocorrem. Da mesma forma, os atos proibidos seriam ruins em si mesmos.

Isto quer dizer que uma certa ação é avaliada por ela mesma. Uma ação é boa porque é boa. Outra não relacionada à primeira é ruim porque é ruim.

Julgo muito oportuno que você agora faça uma reflexão. Porventura sua mente alguma vez avaliou algo de maneira completamente isolada e fechada? Conseguimos fazer entender propriamente a um cego de nascença uma imagem visual? Se você conhece alguém com tal limitação, sabe que não. Porventura não avalia e apreende a mente humana através do contraste e da comparação? Teria para nós sentido a palavra luz se não houvesse treva? Se suas respostas são semelhantes às minhas, como seria possível à mente humana avaliar uma atitude sem qualquer referencial? Sem no caso, os referenciais de consequências ou circunstâncias?

De qualquer modo, na linha deontológica, o acerto de qualquer ação depende de que esta ação seja realizada porque é um dever, não por qualquer boa consequência decorrente da mesma. Se um indivíduo age de acordo com uma regra, porque esta é um dever, age corretamente. Se não segue uma determinada regra, mesmo que visando um bem, sua atitude seria considerada imoral.

Os comportamentos específicos podem ser avaliados por três

abordagens distintas: Por meio de suas consequências, nas circunstâncias específicas onde são praticados; considerando-os bons por si mesmos ou maus por si mesmos; e finalmente numa abordagem mista onde comportamentos supostamente maus por si mesmos se tornam éticos frente a consequências ou circunstâncias especiais.

Na linha de comportamentos considerados bons ou maus em si mesmos temos o assim chamado absolutismo deontológico ou

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absolutismo moral. É como o próprio termo indica, uma forma deontológica radical. É uma linha que não admite a relatividade ou exceções. Isto é, nela não se admite que hajam casos nos quais uma ação intrinsecamente má, por suposição que isto exista, possa vir a ser considerada moralmente correta, em vista das circunstâncias em meio às quais é praticada e/ou devido às suas consequências. Isto é, pelo menos parte das proibições é absoluta. Certas ações são absolutamente certas; outras absolutamente erradas e proibidas.

Cabível aqui um exemplo: Matar é uma das maiores proibições absolutas nesta abordagem. No entanto, como ocorre com relativa frequência mesmo nos dias de hoje, uma mãe entende mal a prescrição de um pediatra que recomenda dar ao seu bebê muita água e compreende justamente o inverso, isto é, privá-lo de água, e o bebê morre. Ou seja, a ação da mãe zelosa mas ignorante mata o bebê. Esta mãe na sua opinião foi antiética?

Na mesma linha, uma mãe atendendo a prescrição pediátrica de dar um banho morno no bebê, lhe dá um banho morno 'demais' e o bebê também morre. Esta segunda mãe foi porventura imoral?

Um pai vê seu filho na iminência de ser assassinado e podendo, impede antes o agressor. O que você acha do conceito inclusive jurídico da legítima defesa? Da tentativa de um pai de preservar a vida de seu filho?

Roubar seria uma outra importante proibição absoluta. Um pai vê seu filho na iminência de morrer de inanição. Não tendo outra alternativa, em desespero, furta um pacote de leite ou pão do supermercado. O que você acha disto?

De qualquer forma o absolutismo moral se origina diretamente de interpretações de cunho religioso, em especial, das religiões judaica e cristã. Neste tópico se insere a assim chamada teoria do comando divino, que se constitui num aglomerado de ideias relacionadas que defendem que uma dada ação específica é absolutamente certa ou errada devido à prescrição divina.

Passemos a algumas questões: Se foi Deus que efetuou tais decretos e como racionalmente não se pode negar ou confirmar a

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própria existência de Deus, qual a fundamentação racional de uma abordagem para avaliar o comportamento humano adequado (ético), com base nesta teoria? Se foi Deus que efetuou tais decretos, porque há diferenças entre tais decretos em função do povo e da época considerada? No mundo atual, cada vez mais globalizado, se tais decretos são efetuados por Deus e alguns são conflitantes e diferentes, quais somos obrigados a seguir? Quais é nosso dever seguir? Quais são intrinsecamente bons ou maus?

A partir da teoria dos mandamentos divinos, as obrigações ou os deveres morais surgem dos mandamentos de Deus. Para um materialista tal abordagem não faz sentido. Para um espiritualista surge a questão: como conhecê-los com segurança?

Observemos um exemplo: Um dos dez mandamentos fundamentais do judaísmo é guardar o sábado, que tem o significado histórico de neste dia não se executar qualquer atividade produtiva. Jesus por sua vez, há dois mil anos, se opôs francamente a este mandamento, afirmando: 'O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado.' O sábado nesta visão deixou de ser um dia consagrado a Deus e sim a serviço do homem. As lideranças do cristianismo, em particular após 300 d.C., consagraram o domingo a Deus e a Cristo. Os muçulmanos, pertencentes à mesma família religiosa, consagram a sexta-feira. Algumas facções neocristãs da atualidade retornaram, tal como ocorre no judaísmo, a consagrar o sábado.

Analisemos este caso concreto. Assumindo a possibilidade de uma sugestão superior, o que há de comum em meio a tais divergências que se manifestam ao longo do tempo e de acordo com o local considerado? Este ponto em comum se refere a um ato específico ou a uma orientação geral?

Vejamos um outro exemplo concreto pertinente: No texto básico do judaísmo, Moisés recebe diretamente de Deus os Seus dez mandamentos, dentre os quais não matar e não roubar. Um pouco adiante, exatamente no mesmo texto, o mesmo Moisés, representando supostamente a vontade da divindade, ordena e comanda a invasão, a matança e a pilhagem dos povos que até então habitavam a terra

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prometida. Concluímos deste exemplo a relatividade da própria regra, ao menos nos seus primórdios, regra esta considerada imutável e absoluta. Em síntese, mesmo num contexto religioso absolutista, as regras se mostram por meio de análise racional, a rigor relativas, indicando orientações gerais.

Na assim chamada deontologia moderada, existem atitudes por si

mesmas boas ou más, mas que frente a circunstâncias e consequências especiais se tornam más ou boas. Surge então uma questão: Como algo por si mesmo intrinsicamente mau pode logicamente se tornar fortuitamente bom? Você não concorda que é uma clara inconsistência racional ?

Tal concepção faz ainda surgir outra questão: Até onde e em que medida circunstâncias e consequências convertem um ato mau em algo bom ? Por exemplo, matar um indivíduo - mesmo um terrorista ou um tirano sanguinário - é mau em si. Por outro lado, quantos deveriam ser salvos com esta morte para converter tal ato em bom? 2, 5, 10, 100, 1000...? Este pensamento torna as regras absolutas ou relativas? Este pensamento confere um valor absoluto ou relativo às regras?

Por fim, podemos avaliar e nortear os comportamentos

específicos de nossas vidas cotidianas, por meio da previsão de suas consequências, nas circunstâncias específicas onde são praticados. Esta linha de critério de decisão de conduta não depende do uso de regras ou proibições como critérios primários de escolha.

Vejamos uma ilustração clássica: Aristóteles dentre inúmeros expoentes, observou e estabeleceu o bem como princípio fundamental a nortear o comportamento humano. Este mesmo grande pensador analisou e concluiu que o maior bem, o sumo bem para o ser humano é a eudamonia, palavra de sentido plural, que denota felicidade, auto realização e desenvolvimento pessoal. Nesta mesma linha, personalidades notáveis: Jeremy Bentham e John Stuart Mill, detalharam tais conceitos, desenvolvendo racionalmente tais ideias no princípio de que o ético é 'promover a maior felicidade, para o maior número de

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pessoas'. Ou seja, um dado comportamento individual é tanto mais adequado, quanto mais promova o bem - a felicidade - para o maior número de pessoas possível. Desta forma, pelo conhecimento, aceitação da correção e opção por este princípio geral, as decisões quanto às nossas condutas do dia, seriam efetuadas.

Observe que as decisões são tomadas visando um objetivo, qual seja, o maior bem; a maior felicidade. Desta forma as condutas não são avaliadas por si mesmas, por um processo circular ilógico, mas sim, sempre tendo em vista o contexto onde se inserem e pela previsão de suas consequências benéficas.

Observe também que tal princípio absolutamente não afasta a opção do uso de proibições, tão somente as coloca como de valor acessório e secundário. Tais proibições se justificariam por exemplo, quando está sob a guarda do indivíduo, um outro cuja capacidade racional esteja comprometida. Isto já foi ilustrado no texto anterior, quando o bom pai, visando o bem de seu pequeno filho, o proíbe de se aproximar da sacada do apartamento.

Do mesmo modo, nesta linha de reflexão filosófica é admissível o conceito de dever, porém este se torna aqui dependente do princípio básico de bem. Assim no pensamento Kantiano, os deveres devem ser estabelecidos pela consciência de cada indivíduo e esta por sua vez tem suas bases de valor, a nível de aplicações em situações particulares, quer adequadamente direcionadas quer não, sempre baseadas no bem ou na boa vontade.

Em abordagem similar, sempre visando o bem, comprovável por meio de efeitos futuros, pode-se propor a existência individual baseada em valores, tais como: os da liberdade individual ou coletiva, a igualdade no provimento dos anseios e necessidades de todos e o espírito fraternal e solidário, propugnados pelos pensadores do iluminismo do século XVIII. Ou ainda baseando também a existência, no pacifismo e na não violência, ideia que ganhou projeção e notoriedade no século XX, por meio de Mahatma Gandhi. Ou ainda no valor de veracidade e busca da verdade, que impulsiona os verdadeiros homens da ciência ao longo da história.

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Vale, no entanto, a ressalva que a cada único dia tomamos centenas senão milhares de decisões. É altamente discutível se teríamos capacidade racional para análise prévia de cada uma delas. Se é assim, necessitamos na nossa existência de uma série de comportamentos automatizados, que se estabelecem pelo hábito e que se constituem num conjunto particular de regras para a vida. É possível afirmar que o exercício da ética pressupõe liberdade e autonomia. Neste sentido é desejável que algum número de tais regras sejam estabelecidas por nossas próprias consciências, visando o bem.

Todos os deontologistas concordam, na real aplicação do termo e

na correta classificação desta linha de pensamento, que há ocasiões em que o dever deve ser cumprido por obrigação, contrariamente àquela atitude que resulte em maior bem. Neste caso não se realizaria um bem maior porque com isto estaríamos violando um dever ou uma obrigação. Pelo menos certos atos específicos seriam bons ou maus em si mesmos. Tal juízo de valor seria fixado por regras também específicas e os atos seriam avaliados independentemente das circunstâncias nas quais são efetuados e de suas consequências. Neste sentido, lembrando apenas dois exemplos históricos, militares nazistas conduziram milhares de judeus, ciganos, homossexuais e outros ao extermínio, justificando tal comportamento muitas vezes pelo cumprimento zeloso do dever. E também eventualmente em nome do dever duas bombas atômicas foram desenvolvidas e lançadas sobre milhares de civis japoneses.

Para Jeremy Bentham e inúmeros outros, a deontologia não é

racional e sim apenas uma questão de opinião não fundamentada daqueles que a defendem. Os argumentos que comprovam tal análise estão contidos no presente capítulo.

Para Robert Nozick é claramente lógico tentar minimizar as

violações ao conceito dos direitos. A ética deontológica proíbe tais tentativas, inclusive quanto aos direitos mais fundamentais. Assim a ética deontológica não é ética ou lógica. Por exemplo, se reconhece o direito

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As duas abordagens para a Ética.

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fundamental do indivíduo à vida, mas é seu dever não furtar, o que o levaria a morte caso não tenha outra alternativa para aplacar a desnutrição grave.

Para John Stuart Mill, os deontologistas não especificam as

prioridades com respeito aos deveres e as regras. A vida cotidiana está repleta de escolhas complexas. A deontologia não fornece os meios para decidir entre deveres muitas vezes conflitantes. Desta forma não é útil para fornecer uma orientação ética satisfatória. Quanto a isto um acontecimento recente é boa ilustração. Procurando forçar a que os motociclistas fizessem uso de equipamentos de segurança pessoal, foi estabelecida uma lei de trânsito proibindo o tráfego sem capacete, sem excessões, como é de costume no estabelecimento das regras. Por outro lado, frente ao número de assaltos realizados por motociclistas nos postos de gasolina da cidade de São Paulo, que permaneciam de capacete de modo a manterem-se irreconhecíveis, foi estabelecida uma lei municipal proibindo o uso de capacetes no espaço do posto. Deste modo, por força de norma, os capacetes deveriam 'desaparecer' naquela fração de distância e segundo que separa a auto pista da entrada do posto.

Para Shelly Kagan, na deontologia os indivíduos estão ligados a

restrições proibidas. Por exemplo, não matar. E permissões opcionais. Por exemplo, não fazer caridade se não quiser. Mas as restrições absolutas agridem nossas noções mais básicas de moralidade, como frente a um pai que vê passivamente um filho morrer de fome, e as opções são sentidas igualmente como profundamente imorais se não houverem restrições, como frente a alguém morrendo sem auxílio, ou em caso de fuga sem socorro, após atropelamento acidental.

Pelo exposto, um ato pode permanecer proibido, mesmo que

viesse a evitar a realização de um maior número de atos igualmente proibidos. Ou seja, a execução de um ato proibido permanece proibida mesmo que sua execução impeça violações generalizadas, como por

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exemplo a deposição de um tirano insano. Fácil observar que tal princípio com base em proibições absolutas pode resultar na extinção também absoluta de toda uma coletividade. Uma pergunta pertinente de Samuel Scheffler é: 'Como pode ser racional ou razoável proibir algo que teria como efeito diminuir ações posteriores que seriam igualmente proibidas e moralmente proibidas e que não teria outras consequências indesejáveis?' Observe que no estabelecimento da ideia de dever com valor primordial, o mesmo deve ser sempre exercido, não importando circunstâncias ou consequências. Porém tais deveres, como princípio fundamental, tem a propriedade de se auto destruir e de se inviabilizar, pois são capazes de impedir a realização até mesmo de todos os deveres subsequentes.

Uma observação cuidadosa e atenta da história da humanidade

nos esclarece que as coletividades, mesmo que cerceadas por proibições e regras diversas, sempre tem, como meio de sobrevivência, indivíduos ou uma classe detentora de uma parcela de poder, que absolutamente não se sujeita primariamente às mesmas, e sim, quando adequadamente direcionada, se baseia no princípio do bem. A observação atenta das atitudes de tais grupos ou indivíduos, do passado e do momento presente, por meio dos veículos populares da televisão e da internet por exemplo, permite testemunhar tal fato. Censuras a tal fato são frequentes, porém parte delas seriam, salvo melhor entendimento, equivocadas, pois são tais atitudes tomadas contrariamente às regras, aquelas que permitem a própria sobrevivência do tecido social, bem como o desenvolvimento da coletividade. Seriam tais perturbações aquelas que permitem o surgimento de novas e melhores regras que tendem a orientar o comportamento coletivo. Um legislador, por exemplo, jamais poderia defender uma nova regra, se este estivesse submetido à regra em vigor. Mahatma Gandhi jamais teria libertado a Índia caso se mantivesse submetido aos deveres de obediência à Inglaterra. Pode-se até mesmo, quem sabe afirmar, que o primeiro passo para a extinção ou deterioração de uma organização ou coletividade

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ocorre quando as regras se superpõe e se tornam mais relevantes que os ideais que, originalmente, as inspiraram.

Como vimos, o grande objetivo do estudo da ciência da ética é o

de facilitar a que cada um de nós determine racionalmente o comportamento adequado ou mais adequado – comportamento ético – para cada um de nós mesmos. Ou seja, é normalmente um item de utilidade para o próprio indivíduo. Podemos classificar as abordagens em dois ramos distintos: O da deontologia, baseado em deveres, proibições e permissões, com regras para um número provavelmente infinito de atos particulares específicos. E outro defendido pela esmagadora maioria dos pensadores deste campo, que defendem orientações gerais, princípios e valores, que norteiam e sugerem todas as condutas frente a todas as situações particulares.

Diversas ciências tratam direta ou indiretamente do agir humano.

Cada uma tem um ponto de atenção mais ou menos específico. Dentre elas temos a história, a antropologia, a arqueologia, a sociologia, a economia, a teologia, o estudo das religiões comparadas, o direito, a biologia e a psicologia. O estudo bem fundamentado do comportamento humano adequado permeia todas estas áreas.

Para efeitos formais, a política e a ética são ramos distintos da

ciência. A ética tem seu foco no bem do indivíduo e na tentativa da determinação de seus comportamentos mais adequados. É o estudo dos elementos e das condições do seu bem, até onde possa ser atingido por sua própria atividade racional ou ainda de outros indivíduos particulares, sem considerações quanto a estruturas, funções e atribuições de governos (exceto aquelas que seriam eventualmente baseadas nos ideais filosóficos da anarquia). A verdadeira política se volta ao bem ou ao bem-estar das coletividades humanas. Tal distinção tem sua origem na própria etimologia do termo. Política se origina do grego e significa a ética na cidade, ou seja, o estudo dos adequados comportamentos coletivos. Assim, quando falamos de ética, nos referimos ao

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comportamento individual; no bem ou no bem-estar do indivíduo e ao falarmos de política, nos reportamos adequadamente ao bem do coletivo. No entanto estes dois ramos da ciência se inter-relacionam intimamente. Não concebemos um incremento da ética de indivíduos, que não se repercuta no bem coletivo e igualmente não é possível um verdadeiro bem coletivo que não se reflita ao menos no bem de parcela significativa dos indivíduos que o compõe.

Ainda, a qualidade do comportamento individual é demonstrável basicamente em suas relações com seus semelhantes, sendo os prazeres e as dores fortemente derivados disto. O bem não é atingido pelo isolamento, sem consideração ao bem do outro.

A princípio, possivelmente foi demonstrada a relatividade das

regras específicas e também possivelmente mostrou-se a propriedade do critério de bem como valor e princípio fundamental, para reger racionalmente a conduta humana. Poderemos ainda nesta obra, analisar a correção do emprego de tal princípio, para a solução de questões específicas, por meio da observação das consequências dos atos praticados. O acerto de comportamentos específicos, baseados na busca do bem, pelos resultados angariados com as ações, bem como o nortear de cada um, pela previsão dos efeitos a serem obtidos.

Ponto muito importante necessita ser lembrado ainda neste

capítulo. Porventura as regras, as leis e os costumes estabelecidos com os quais as sociedades convivem imemorialmente seriam tolices? Aqueles que os defendem seriam mal intencionados? A resposta óbvia é não. Tal estrutura é plenamente justificável. Quantos de nós, mesmo os mais esclarecidos, pautamos nossas atitudes costumeiramente pela razão? Muito poucos, com certeza. A imensa maioria de nossas respostas a estímulos externos é automatizada. Não teríamos condições de a cada instante fazermos um raciocínio complexo de qual a melhor atitude tomar. E o que é também verdadeiro, poucos de nós teríamos condições de realizar um tal raciocínio de forma a prever adequadamente as consequências de um determinado ato. Deste modo, verdadeiramente

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necessitamos de uma base de diretrizes comportamentais estabelecida, mesmo que tal base apresente na sua aplicação, algumas imperfeições. É a partir de tal base, que nossa capacidade racional crescente, de forma madura, poderá fazer com que nossas atitudes pessoais sejam melhoradas. Erro maior do que acreditar que toda a norma seria ética, seria o de contestar indiscriminada e frequentemente qualquer norma, pressupondo que nenhuma seria válida ou adequada.

Uma esfera só é definida por suas fronteiras. Uma criança e posteriormente um jovem ou adulto só adquire identidade e humanidade graças aos limites que lhe são impostos, no convívio familiar e no processo educativo, estabelecido no meio social. São estes limites, a matéria prima indispensável que admitirá aperfeiçoamentos através de um processo gradual e cuidadoso de crescimento pessoal.

Importante também lembrar que a violação de regras reconhecidas, mesmo que não éticas, não exime o transgressor das retaliações. Exemplos disto, a história nos traz aos milhares. Neste sentido é oportuno efetuar-se a avaliação de um comportamento consagrado numa coletividade e num momento histórico como ético, não ético ou neutro, como também a conveniência e a prudência em eventualmente contestá-lo.

De qualquer modo este livro se destina a um público mais esclarecido. O seu título, forma e conteúdo, dentre outros pontos, garante isto. A Ética proposta aqui é uma ética teleológica com base na consequência do bem e da felicidade e não deontológica, fundamentada na imposição de regras.

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Felicidade pela Ética

Motivos para não censurar eticamente a ninguém.

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4 Motivos para não censurar eticamente a ninguém.

Uma intuição verdadeira sempre é confirmada pela razão. O fato

de uma ideia ter sido primariamente apresentada a uma coletividade num contexto religioso, não impede que venha a ser incorporada ao campo científico ou da ética – estudo do comportamento adequado individual – desde que satisfaça ao crivo racional.

Immanuel Kant defende que as atitudes humanas são

compreendidas em termos de intenções. Desta forma uma determinada ação seria considerada certa ou errada, não por ela mesma, mas sim pelos motivos reais do agente. A veracidade de tal conceito pode ser demonstrada pelo exemplo já apresentado, que efetivamente ocorre de tempos em tempos no cotidiano. O daquela mãe, que procurando atender à prescrição do pediatra e na tentativa de baixar a febre de seu bebê e o curar ou salvar-lhe a vida, inadvertidamente lhe dá um banho quente demais, o escalda e o mata. Observe que foi a ação desta mãe que tirou a vida de seu filho, de modo que objetivamente ela o matou. No entanto, apesar de nosso espanto com o ocorrido, não a rotulamos de assassina, pois conhecemos os profundos laços naturais de amor que ligam as mães à sua prole e deduzimos que a real intenção desta mãe era de fazer um bem à criança e não de a matar. Se por outro lado, um estranho efetuasse exatamente a mesma ação, tenderíamos a considerar que esta teve uma motivação extremamente má e seríamos levados a condená-lo. Observe mais uma vez que a ação foi exatamente a mesma, mas a suposição dos motivos que levaram a ela, efetuaram toda a diferença na sua avaliação. Por outro lado, observe também que os motivos das pessoas para as suas condutas são por norma, ignorados. Desta forma, a mãe que foi inocentada, poderia ser insana e ter realizado o ato com a intenção de tirar a vida de seu filho. Já o estranho condenado, poderia na verdade estar tentando fazer um bem ao bebê.

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Motivos para não censurar eticamente a ninguém.

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Consequentemente, na perspectiva acima exposta, não são os atos objetivos que recebem uma avaliação ética e sim os motivos que levam a eles. Mas como os reais motivos dos indivíduos são ignorados, não se pode com segurança censurar o comportamento de ninguém.

Sócrates foi um dos maiores pensadores da humanidade. Sua

importância para a filosofia é tal que, por exemplo, classifica-se a filosofia antiga em pré-socrática e pós-socrática. No campo da ética, suas conclusões estão fundamentadas no binômio: ignorância e conhecimento. Segundo ele, o mal resulta em não saber avaliar os resultados das ações, sendo em absolutamente todos os casos, fruto da ignorância. Já o conceito “conhece-te a ti mesmo”, gravado no Templo de Delfos, é a primeira espécie de sabedoria e o único caminho que leva à virtude e à ética. De qualquer modo, segundo ele, o meio de se alcançar a Ética é o conhecimento e a busca deste conhecimento é o objetivo do "método socrático" a ser apresentado oportunamente.

No contexto da presente discussão, retornando ao exemplo da mãe que mata acidentalmente seu filho, observe que tal ocorreu por sua falta de conhecimento. Falta de conhecimento dos limites da natureza humana, no caso, dos limites fisiológicos da criança. Falta de conhecimento também das reais consequências de sua atitude, ou seja, uma falha na avaliação correta da mesma. Em outras palavras, pela ignorância da natureza humana, inclusive da sua própria capacidade e pela ignorância dos reais efeitos de seu ato.

Observe que vivemos num mundo plural onde a regra é a

diversidade. Convivemos num meio onde o nível de esclarecimento apresenta enorme dispersão. Lado a lado estamos com grandes sábios e outros, pobres em esclarecimento, e o conhecimento aplicável ao adequado comportamento muito pouco ou nada tem a ver com títulos ou escolaridade. Desta forma, a princípio desconhecemos quão sábios ou ignorantes são aqueles que nos rodeiam. Da mesma forma o conhecimento utilizável para o norteamento de condutas seguramente não é o mesmo para todas as possibilidades existentes. Seria a nossa

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deficiência de conhecimento ou a de qualquer outro, um motivo de censura? Se não podemos censurar a ignorância que envolve a todos nós, quer reconheçamos isto ou não, igualmente não é racional censurar condutas inapropriadas que essencialmente são causadas por ela.

Aristóteles há 2.300 anos atrás nos fez ver, pela obra que chegou

a nós com o nome de Ética a Nicômaco, que não podemos censurar eticamente animais, pois o exercício da ética pressupõe o uso da razão e neles tal habilidade é inexistente ou muito escassa. Na mesma linha, este notável pensador nos faz ver que o mesmo se aplica às crianças, exatamente pelo mesmo motivo. Immanuel Kant, dentre outros, reafirma tal conceito, nos fazendo ver que a ética não se aplica a seres incapazes de fazer escolhas racionais. Desta forma, apesar de nos precavermos com cobras, racionalmente não as taxamos de más. O mesmo ocorre quando uma criança encontra o revolver do pai e ao brincar de policial com o amiguinho, termina por matá-lo.

Novamente podemos observar que estamos inseridos num processo evolucionário, tanto em termos coletivos quanto individuais. Os membros de comunidades indígenas são por tal fato entre outros, normalmente considerados para fins legais, como menores de idade e não criminalmente imputáveis. No contexto pessoal, a habilidade racional apresenta uma curva onde os indivíduos são seus pontos. Até mesmo um mesmo indivíduo ao longo dos anos, apresenta capacidade racional diversa.

Mais uma vez observamos assim alguns pontos pertinentes a presente discussão. Os indivíduos tem capacidade racional diferente. Se uma criança não pode ser censurada eticamente por ter sua habilidade racional não desenvolvida, a censura aos indivíduos é sempre relativa, pois tal capacidade não é uma constante em nossa espécie. Do mesmo modo indivíduos com anormalidades neurológicas ou distúrbios psiquiátricos igualmente poderão ter sérios comprometimentos ao nível intelectual.

Outra questão de grande importância é em que medida um dado indivíduo rege seu comportamento por meio da razão. Se observarmos

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as sociedades humanas, veremos que apenas uma minoria se deixa conduzir pela inteligência. Isto por sua vez nos faz reportar aos limites da natureza humana e obviamente não é racional censurarmos os limites que temos, via de regra, sempre indesejáveis. Isto é, nenhum de nós aprecia sermos criaturas limitadas ou de inteligência limitada. Mais uma vez, neste contexto, os erros que cometemos, pelo menos em grande medida, não podem ser censurados. Alguns de nós aprendemos mais facilmente e outros mais arduamente, a arte de viver.

"O essencial da ética – comportamento adequado – é fazer o bem

ao outro." Porém um problema que surge a partir deste postulado é o que é o "Bem"? Sabemos que cada um de nós pode concebê-lo de modo diferente. Pode-se esperar que nenhum comportamento extremamente inadequado possa ser efetuado com base neste princípio. Mas também é razoável esperar ao longo do cotidiano, que atitudes consideradas benéficas por uns possam ser avaliadas como maléficas por outros. Assim, por exemplo, um indivíduo que exerce no dia a dia a civilidade e a cordialidade pode eventualmente ser considerado como um falso, mal intencionado.

O comportamento de um indivíduo se faz num determinado meio específico, em relação aos que o cercam e depende de inúmeros fatores circunstanciais. Quando tentamos avaliar as atitudes de um outro, que não nós mesmos, jamais estaremos inseridos nas mesmas circunstâncias que ele. Isto é, nossa avaliação será sempre relativa, pois não somos o mesmo agente que executa a ação considerada.

Como sabemos, o foco da ética é diferente do da política. A ética busca auxiliar o indivíduo para que este encontre o comportamento mais adequado a si mesmo. Neste sentido ninguém melhor que o próprio indivíduo para decidir livremente a conduta a adotar. O contexto da ética não é o de condenação, mas sim o de auxílio.

Sigmund Freud analisou a natureza humana e concluiu existir em

nosso ser uma região da qual não temos consciência, o nosso Inconsciente. Tal inconsciente teria como uma das regiões aquela que

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denominou por Id. O Id seria a sede de nossas energias caóticas inatas: os impulsos sexuais desenfreados; os de agregação e de preservação, graças aos quais temos a esmagadora maioria das criaturas viventes sobre a Terra. Ou seja, espécies que não se reproduzem não persistem. Também residem no Id os impulsos de morte e perversos, que existem devido ao fato que novamente a grande maioria das criaturas necessita para que possa sobreviver, matar direta ou indiretamente o que irá comer. Tal necessidade é observada inclusive em muitos organismos unicelulares.

Equilibrando também tais forças no Inconsciente e controlando inclusive nossas ações a nível consciente – do Ego - existiria o Superego ou SuperEu. O Superego pode ser considerado como análogo a um juiz rigoroso e poderoso, porém tolo. Nos nossos primeiros anos de vida tal juiz redige seu código penal através da influência de tudo aquilo que o rodeia. Com o passar dos anos, nossos julgamentos conscientes são incorporados também, como base de juízo de valor do Superego. O Superego como dissemos é tolo, mas bastante criativo: pontos obscuros de seu código de julgamento são preenchidos por analogia com aquilo que já foi estabelecido.

Nos casos em que um indivíduo tem algum domínio sobre outros, pode ocorrer que os efeitos deste juiz repressor possam ser sentidos pelos dominados. Por outro lado há sempre, 24 horas ao dia e todo dia, uma pessoa sujeita a tal juiz, que é o próprio indivíduo que colaborou ativamente, mesmo que deste fato não tenha conhecimento, com a sua formação.

Desta forma, podemos dizer que todas as vezes que julgamos e condenamos aos que nos cercam e todas as vezes que lhes imputamos penas hipotéticas, estamos ensinando uma parcela inconsciente de nós mesmos como julgar, condenar e com que rigor penas imputar.

Tal fato curiosamente já era conhecido pelos sábios sacerdotes médicos da Grécia antiga, que afirmavam que a deusa justiceira e cruel denominada por Nêmesis, residia no interior de cada um de nós. Provavelmente não é necessário enfatizar os severos distúrbios de ordem psicológica que tal Superego pode ocasionar.

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Desta forma, pela abstenção de julgamentos quanto às atitudes de outros, nos preservamos de condenações por nós mesmos, passando gradualmente à esfera do Consciente racional, o controle e o equilíbrio de nossos impulsos primitivos.

Tenho a convicção que este texto é potencialmente bom para você. Entretanto, apenas a teoria, mesmo que bem fundamentada, provavelmente não será útil. Se você porventura se convenceu que não há base racional para condenações de indivíduos devido a seus comportamentos eventualmente inadequados, o passo seguinte é o de adotar um comportamento compreensivo e tolerante em relação ao outro. E para finalizar o presente capítulo, deixo algumas questões: Cada um de nós tem a tendência de se considerar sabido; inteligente; conhecer as coisas verdadeiras. Não estaríamos sendo pretensiosos? Não seria presunção nossa julgarmos que a nossa noção de ‘certo’ é única? O que você acha de transferirmos a responsabilidade por deliberar sobre o que é ‘certo’ ou ‘errado’ para um outro? Você acha que o acima exposto invalida as tentativas de mútua orientação e o diálogo quanto a questões éticas? Você acha que o acima exposto invalida manter na memória as atitudes anteriores bem como as tentativas de previsão dos comportamentos esperados daqueles que nos rodeiam? .

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Materialista ou Espiritualista ?

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5 Materialista ou Espiritualista ?

Espiritualistas são aqueles que aceitam como verdadeira a

existência de um ser eterno, causa de tudo, que não pode ser observado por meios convencionais e que em grande parte não pode ser compreendido. Os materialistas consideram esta afirmação como falsa.

Numa posição intermediária, há aqueles que pelo menos tentam manter-se neutros ou alheios a esta questão, por indiferença, por testemunho de ignorância ou outro motivo qualquer.

Além da capacidade criadora e da eternidade deste ser, outras costumam estar a ele associadas, tais como a capacidade de manter e sustentar a sua criação; a capacidade de transformá-la; sua presença em toda a obra; seu conhecimento de tudo o que nela ocorre; seu poder absoluto; seu amor ilimitado por tudo o que cria...

Tais ideias influenciam fortemente a visão do mundo e da vida dos indivíduos, bem como suas posturas diante desta mesma vida e deste mesmo mundo. Consequentemente tendem a influir significativamente no comportamento de cada um.

Tal questão, fundamental do saber humano, exerce influência maior ou menor em quase todos os ramos da Filosofia: Ética, Política, Metafísica, Filosofia da Mente, Religião, Ciência...

O debate entre materialistas e espiritualistas é antigo. Anselmo propôs o argumento chamado de ontológico: Por

definição, Deus é um ser tão grande que maior não pode ser concebido. Deus pode ser concebido como mera ideia ou como realmente existindo. Mas existir é maior que não existir. Portanto Deus existe.

Tal argumento foi rebatido, por sinal por outros espiritualistas: O argumento só prova a existência de um tudo que abarca tudo e não necessariamente a existência de Deus. Materialistas rebatem o argumento ontológico afirmando que a existência de algo tão grande que maior não

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Materialista ou Espiritualista ?

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pode ser concebido é uma definição e não um fato, de modo que a existência de um tudo pode ser falsa. Ou ainda, que a mera ideia de existir um tudo não implica que o tudo exista. Um espiritualista questionaria então, se o tudo não existe, existe então o nada e é então no nada que todos nós existimos e vivemos o que obviamente não faz sentido.

Kant observou quanto a esta polêmica, que quando dizemos que

algo existe, na verdade estamos afirmando que este algo corresponde ao seu conceito, tal como uma esfera existe por corresponder à ideia de uma esfera. Desta forma Deus existe ou não conforme o modo que o concebemos. A consequência a meu ver desta brilhante colocação de Kant é a de que pelo menos a maior parte da polêmica entre espiritualistas e materialistas não se baseia em fatos, mas sim em concepções, ou ainda no modo como tais fatos são interpretados. Mais claramente, o possível fato Deus independe de expressões tais como Deus existe ou Deus não existe.

O ponto de partida para o argumento dito cosmológico é a

questão do porque qualquer coisa ou tudo existe. Uma versão deste argumento é o argumento Kalam que indaga

sobre causas: Tudo o que existe teve uma origem, isto é, é um efeito de uma causa. Desta forma temos uma sucessão de causas que teria sua origem no início do Universo, o que pela ciência moderna ocorreu há cerca de 13 bilhões de anos. Mas pela racionalidade não é possível que algo surja do nada. Desta forma surge a pergunta, donde o Universo surgiu?

O materialismo rebate que não podemos afirmar que é impossível que algo surja do nada, porque nada sabemos quanto ao surgimento de Universos. Pragmaticamente neste sentido, Bertrand Russel afirma: "O Universo simplesmente está aí, e isso é tudo".

Um observador do debate ponderará que do mesmo modo que não podemos afirmar que é impossível que algo surja do nada, também

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podemos afirmar que é mais provável e mais simples aceitar que algo surja de uma outra coisa.

Georges Lemaître propôs o que ficou conhecido como a teoria Big Bang da origem do Universo, embora tenha chamado como Hipótese do Átomo Primordial. Por esta teoria, algo de dimensões tendendo a zero e com massa e energia tendendo ao infinito entrou em colapso e explodiu, dando origem ao Universo em expansão que temos hoje.

A mesma questão é retomada: Por que tal átomo primordial existiu?

Um materialista acrescentaria um novo aspecto à discussão: Se a divindade deu origem ao Universo e se é impossível um efeito sem causa, qual foi a causa de Deus; porque Deus existe?

O espiritualista contra-argumentaria que Deus é a Causa sem Causa. E o materialista voltaria a carga afirmando que se aceitamos que Deus seja a Causa sem Causa, porque não aceitar que o Universo, ele mesmo seja esta causa sem causa, ou a causa primordial.

A ciência levanta hipóteses de que Big Bang tenha sido precedido por outro Universo e este por sua vez por outros, numa sucessão infinita de causas. Desta forma o Universo sempre existiu e não há absolutamente um começo. O Universo existe e existirá eternamente. O Universo é auto-gerante; se cria continuamente.

Por outro lado, pelo conhecimento científico atual, com o Big Bang, o próprio espaço e o próprio tempo vieram também a existir. Assim a capacidade intelectual humana se torna totalmente impotente para analisar algo que está além do espaço e do tempo.

E claramente se chega a uma questão que me parece irrespondível, que transcende a polêmica entre materialistas e espiritualistas, na qual a observação de Kant, já transcrita, também me parece bastante pertinente: o que explica este algo além do espaço, do tempo, e de tudo o mais que conhecemos? Seria este algo essencialmente cognoscível ou incognoscível pelo ser humano ?

Quanto ao argumento cosmológico, me parece interessante destacar o pensamento do filósofo Richard Swinburne que o

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compreende como uma inferência de que Deus é a melhor explicação para a existência do Universo, assim como a melhor explicação para a existência de uma pintura é que um artista a pintou.

Interessante também observar os limites das ciências naturais, que

explicam fatos por meio de leis fundamentais ou pressupõe sua existência. Tais ciências simplesmente não tem condições ou intenção ou mesmo a percepção da importância de explicar de onde vem tais leis e por que tais leis são como são. Frente a isto um espiritualista questionaria, o que lhes sustenta e lhes permite atuar.

O argumento teleológico conclui que só a existência de uma

mente; de um projetista, pode explicar satisfatoriamente a ordenação que observamos a nossa volta e em nós mesmos. O materialista afirma que a aparência de planejamento e ordem pode ocorrer por meio de leis naturais (apesar de que não se interesse por explicar por que as referidas leis são como são), de modo que as coisas do Universo, embora pareçam projetadas, são o produto de uma série aleatória de coincidências.

O materialista defende a idéia que tudo surgiu por ação do acaso, sem nenhuma interferência inteligente.

Em defesa do espiritualismo, surge o argumento que podemos

chamar de probabilístico, oriundo do conhecimento científico atual. Por tal conhecimento, a probabilidade de que a partir do Big Bang; da explosão do átomo primordial, se forme as estrelas é de 1 para 1060. Se considerássemos a probalidade de a partir do Big Bang surgisse aleatoriamente a vida, o número no expoente seria muito maior. Para recordar a dimensão deste número, a chance de acertar a mega-sena com uma aposta única em seis algarismos é de uma em 50 milhões de tentativas ou 1 : 5 x 107. De modo que a probabilidade (apenas de existirem estrelas) por um processo aleatório é mais remota do que aquela de um único indivíduo acertar 8 vezes na mega-sena. Por outro lado, não se observa a existência de outras premiações, isto é, a existência

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Materialista ou Espiritualista ?

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dos outros Universos alternativos. De modo que aleatoriamente dever-se-ia jogar apenas 8 vezes, acertando a mega-sena em todas as oito.

Frente a isto o materialista responde que num único lance, uma das 1060 possibilidades se concretiza e foi exatamente isto que aconteceu!

Qualquer experiência perceptual é verdadeira e baseada na

realidade até prova em contrário. Quando mais de um indivíduo tem experiência perceptual similar o fato atesta a veracidade da descrição. Neste sentido, em prol do espiritualismo, personagens de nossa espécie afirmam ter passado por uma experiência mística. Como experiência mística se entende aquela na qual o indivíduo que por ela passa ter tido o conhecimento direto de Deus. No caso de experiências místicas, há notáveis similaridades mesmo ocorrendo em indivíduos e circunstâncias muito diferentes entre si, o que atestaria a sua veracidade.

William James, nos seus estudos, observou que tais experiências não envolvem o pensamento e não estão ligadas a nenhuma forma específica de órgão sensorial, como olhos ou ouvidos. São visões e audições, independentes dos órgãos sensoriais convencionais. O indivíduo fica cônscio da divindade e por vezes desaparece a distinção entre os dois, o que é conhecido como união mística. No entanto, é considerado que só uns poucos tem tal experiência mística e ainda em raras ocasiões. Desta forma o materialista contra-argumenta ponderando que por ser a experiência mística tão rara, não podemos ter certeza de sua veracidade, pois se confia numa percepção, em parte, por ser corrente, comum e informativa. O espiritualista retomaria a discussão, também ponderando que, por exemplo, a ciência mais convencional considera como verdadeira uma série inumerável de informações, que apenas uns poucos comprovaram em seu laboratórios de muito difícil acesso, por meio de equipamentos de muito trabalhosa e onerosa construção, de modo que o fato de que poucas pessoas possam testemunhar algo, não implica ou justifica duvidar do conhecimento das que podem. Ou seja, em outras palavras, não podemos atestar se algo é verdadeiro ou não, por sua frequência ou pelo número de testemunhas.

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Felicidade pela Ética

Materialista ou Espiritualista ?

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Numa linha um pouco diferente de raciocínio, o materialista salienta que a experiência mística não é comprovada por outros sentidos: não se pode, por exemplo, ver Deus ou apalpar Deus. E ainda, se por um lado a experiência mística de diferentes indivíduos em diferentes circunstâncias tem muitos pontos gerais em comum, seus detalhes são fortemente influenciados pelas crenças que carregam. Alguns podem ver anjos, outros santos, outros ainda as mais diferentes formas e entidades, de modo que em parte a experiência é condicionada pelas expectativas do sujeito. Admitir que tais experiências sejam, pelo menos em parte, uma criação nossa, suscita a possibilidade de que sejam inteiramente criação nossa. O espiritualista salienta que um grande número de indivíduos pode testemunhar exatamente um mesmo fato, mas provavelmente irão discordar em alguma medida sobre o que viram. Tal discordância não implica na falsidade do fato em si.

Freud defende a ideia de que as experiências místicas são

alucinações oníricas desencadeadas por ansiedades e desejos profundos e não expressados. São alucinações que ocorrem em indivíduos enquanto despertos, que nascem de um anseio por segurança e por um sentido à vida. Pelo emprego de argumento estatístico e em contraponto, pode-se observar que numa distribuição gaussiana de uma dada população, teremos indivíduos fora da norma não só em uma, mas sim nas duas extremidades. Por certo há a ocorrência, representada forçosamente numa destas extremidades, de obscurecimento da capacidade racional ou em outras palavras de alucinações. Mas matematicamente na outra extremidade, teremos que encontrar indivíduos que apresentam também de modo esporádico, um esclarecimento supranormal da razão. Desta forma, os modos alternativos de perceber a realidade não se explicam pela afirmação de que todos que apresentem tal característica sejam alucinados. Ou de modo mais objetivo, se há aqueles que percebem a realidade de forma mais distorcida do que a percepção da maioria, deve haver também um número de indivíduos que a percebe ocasionalmente de modo mais fiel. Suplementarmente é possível levantar a hipótese que em alguns casos, sejam semelhantes os processos que levam a uma

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Materialista ou Espiritualista ?

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percepção distorcida ou privilegiada da realidade, sendo a qualidade de tais percepções uma função das características pessoais do sujeito que as tem.

O materialista argumenta que o ser humano historicamente sente-

se vulnerável e frustrado por estar sujeito às forças e às leis naturais, basicamente fora de seu controle. Deste modo, como criança insegura, anseia por proteção e esta é dada pela crença religiosa. O espiritualista provavelmente concordaria com tal gênese histórica, mas contra-argumentaria que parcela significativa das crenças religiosas mundiais da atualidade, tais como o taoísmo e algumas formas de budismo e hinduísmo, absolutamente não tem inserida em seus corpos doutrinários qualquer conceito de proteção ou de controle sobre leis naturais. Oitenta e cinco por cento da população mundial tem alguma crença religiosa. Apenas as três citadas representam 26% da população (pesquisa da Encyclopaedia Britannica em 2005). A opção espiritualista é extremamente corrente e comum.

Existem pelo menos outras duas posturas, que podem ser

consideradas não exatamente em defesa do materialismo, mas sim de revolta ao espiritualismo.

A mais amena delas pode ser expressa: Se Deus existe porque Ele

não se mostra a mim? Salvo melhor entendimento é uma postura bem egocêntrica. Por analogia e aceitando, para efeito de raciocínio, que Deus exista, talvez seja o mesmo de julgar que um jardineiro teria vontade de se exibir para uma flor de seu jardim ou que esta flor, enquanto uma mera flor, tivesse condições de ser consciente dele.

Ou poeticamente uma situação paradoxal em que um bebê no colo de sua mãe peça que esta se mostre a ele. Daí a mãe lhe acaricia a cabeça e o bebê exclama: Que bom; mas mamãe, se mostre para mim. Daí a mãe o faz arrotar e o bebê exclama: Que ruim; mas mamãe se mostre para mim. Daí a mãe canta para ele, mas ele está agora tão distraído com a chupeta que ela lhe deu, que nem escuta.

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Materialista ou Espiritualista ?

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Tal questão passa ainda pela teoria do conhecimento, plenamente válida, de Platão: "O conhecimento é uma crença que se mostra posteriormente verdadeira." Esta frase se aplica a qualquer tipo de conhecimento. O primeiro e indispensável passo para a construção de um conhecimento é o de aceitar uma hipótese como verdadeira. Só posteriormente à sua aceitação é que a hipótese pode ser demonstrada como verdadeira ou não. Nos dois casos o conhecimento se constrói, pelo surgimento da tese ou pela refutação da mesma.

A mais severa revolta pode ser expressa: Se Deus existe, porque

existe a morte e tudo o mais que me faz sofrer? Por que alguns vivem mais e outros menos; porque alguns sofrem mais e outros menos? Tais posturas claramente não estão ligadas à existência ou não de Deus, mas sim às concepções particulares associadas a este Deus (relembre a observação de Kant já mencionada) e ainda mais à concepção vulgar do próprio ser humano em particular e de tudo o mais de modo geral. Se o sofrimento, a título de exemplo, não fosse encarado como o sumo mal, mas um mecanismo de correção de rumo ou de impulsão a um melhor estado por certo, a revolta ao espiritualismo amenizar-se-ia. Se o conceito popular da finitude e da unicidade da existência humana fosse, por exemplo, substituído pela concepção de que seríamos, de algum modo tão eternos quanto a entidade criadora, possuindo, portanto, infinitas possibilidades de sofrimentos e felicidades; que a vida não se limita a um curto lapso de tempo, igualmente a sensação de injustiça tenderia a desaparecer.

Até este ponto, você foi convidado à leitura e análise de cerca de

três páginas de texto. O que justifica o esforço e o tempo despendido? Se a motivação fosse convencê-lo a respeito de um ou outro ponto de vista a tarefa não valeria a pena. Ela se justifica para o seu esclarecimento quanto à multiplicidade de argumentos que tal controvérsia pode sustentar e ainda muito mais para mostrar que a nível racional não é possível se chegar a uma solução definitiva. Pelas características da mente humana, uma discussão deste tipo é como o combate entre dois

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Materialista ou Espiritualista ?

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espadachins imortais. Um desfere um golpe, defendido pela espada do outro. Mas no momento que o golpe é desferido se abre uma brecha nas defesas do primeiro. Assim, na sequência, o segundo desfere um golpe visando atingir tal brecha, o primeiro se defende e a batalha não tem fim.

Além do esclarecimento, o objetivo é mostrar a veracidade de um

dos aforismos de Albert Einstein (por sinal um espiritualista): "Há apenas dois modos de explicar o mundo: ou tudo é milagre ou nada o é." Ou o Universo e as leis que o regem são causas sem causas ou há uma divindade que cria, sustenta e rege a tudo. E mais uma vez salientamos que por meios racionais, o que é demonstrado pela disputa intelectiva que perdura por milhares de anos, não é possível se chegar a uma solução unânime não questionável ou não sujeita a controvérsias.

Através da pesquisa realizada pela Enciclopédia Britânica de 2005,

sabemos que o montante daqueles que se declaram ateus perfaz cerca de 2 % da população mundial. É discutível se quantificar dentre estes, quantos concordam e tem ciência que a defesa lógica de tal postura exige, como vimos, considerar-se o Universo como causa sem causa; causa primordial; eterno; auto-gerante; além do espaço e do tempo; essencialmente incognoscível.

Retornemos à teoria do conhecimento de Platão. Suponhamos

que um indivíduo venha a saber que outro afirma ter tido uma experiência sobrenatural. A ele sempre se abrirão opções: tal testemunho é falso; o indivíduo que afirma o fato teve uma alucinação ou foi enganado; o testemunho é verdadeiro. Suponhamos agora que o próprio sujeito tenha uma experiência sobrenatural. Este continua tendo opções: eu sofri uma alucinação; eu fui enganado; a experiência foi real. Se forem várias as experiências, permanece a opção de crer nelas ou não. Isto também ocorrerá se um grupo de indivíduos tiver tais experiências: O grupo foi enganado; o grupo sofreu uma alucinação coletiva; o grupo teve uma experiência autêntica.

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Materialista ou Espiritualista ?

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Diz-se que o conhecimento evolui não tanto pelas respostas, mas sim pela adequação das perguntas. Como observamos acima cada um de nós terá plenos motivos racionais para viver num mundo materialista ou espiritualista. Faço votos a você amigo leitor, que responda por si mesmo à pergunta: Por que é assim?

Por tudo o que expusemos, talvez possamos afirmar sem erro,

que a polêmica na verdade passa pela questão: No que cada um quer confiar? O que cada um escolhe acreditar?

Quanto à influência que cada uma destas duas convicções

antagônicas tem sobre o ser humano, algumas posições polêmicas, eventualmente verdadeiras, poderiam ser levantadas. (Qualquer coisa pode ser polemizada.) Com respeito a apenas uma delas observamos, que imerso na tristeza e no pessimismo de uma vida finita e débil, essencialmente sem sentido, provavelmente o mais eminente materialista brasileiro da atualidade, Oscar Niemeyer afirmou: "A vida é um sopro". Um espiritualista, no otimismo de uma vida infinita, plena de possibilidades, associada ao seu criador, o Criador do Universo, exclamaria: "A vida é uma melodia sem fim".

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Compreendendo aquele que age.

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Compreendendo aquele que age

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Os sofistas. Sabemos mesmo alguma coisa ?

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6 Os sofistas. Sabemos mesmo alguma coisa ?

Para o contexto histórico é oportuno observarmos que antes dos

sofistas no ambiente grego, os pensadores se dedicavam talvez prioritariamente a investigar questões cosmológicas e ontológicas. Ou seja, sobre o cosmos, o mundo e o ser em si. O surgimento da democracia senatorial grega generalizou as discussões quanto ao bem das comunidades (política) e ao bem do cidadão (ética) em suas relações com os demais. Antes do surgimento da sofística, os pensadores gregos desenvolveram múltiplas concepções que se contradiziam entre si, tais como o princípio de todas as coisas, do cosmos e da natureza. Apesar da discordância quanto a tais concepções, os sofistas observaram serem elas igualmente defensáveis pela razão. Dai deslocaram sua atenção para o ser humano e para tudo que é tipicamente humano. Ou seja, para aquele ser que cria e gera tais concepções, voltando-se, portanto, à cultura humanista e dentro dela à ética, à política, à arte, à religião e à educação. Outros fatores que fizeram eclodir esta escola filosófica foram: a transição do regime aristocrático para o democrático senatorial, com a valorização das discussões e do convencimento, bem como o afluxo de estrangeiros, que para espanto dos gregos tinham diferentes leis, usos e costumes, o que tornou evidente o relativismo daquilo que se pode considerar uma conduta apropriada. O que era considerado eternamente válido passou a se mostrar como relativamente adequado.

Salvo melhor juízo, os sofistas - palavra, que em grego, significa sábios - podem ser considerados precursores de algumas das concepções kantianas, apresentadas séculos depois. Por Kant, os órgãos dos sentidos através dos quais percebemos o mundo externo a nós, são os órgãos de sentido humano. O nosso cérebro, mente e outros sistemas que decifram tais sinais são igualmente sistemas humanos. Os instrumentos que desenvolvemos, são os instrumentos desenvolvidos pelo ser humano, para constatar fatos passíveis de constatação pelo próprio homem. Ou

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Os sofistas. Sabemos mesmo alguma coisa ?

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seja, absolutamente toda a informação que o homem tem notícia é uma informação moldada pelas características do próprio homem. Desta forma o homem absolutamente não conhece a realidade em si. Todo o conhecimento humano, na verdade, é um conhecimento indireto do próprio homem.

Nesta linha e em um aspecto particular, mais recentemente Albert Einstein afirma, 'Os conceitos e princípios fundamentais da ciência são invenções livres do espírito humano.'

Protágoras de Abdera (491/481 a. C. - 421/422 a. C.), o maior

dos filósofos sofistas, contemporâneo de Sócrates, estabeleceu o seu célebre dito: "O homem é a medida de todas as coisas..."

O homem avalia os fatos do modo como o homem mesmo os percebe e não como a possível realidade maior, é em si mesma. No entanto os sofistas avançaram ainda mais. Kant estabeleceu o condicionamento do conhecimento humano pelo próprio homem, enquanto coletividade. Os sofistas observaram tal condicionamento, como existente inclusive a nível individual.

Estruturalmente podemos então conceber a realidade em três níveis: A realidade tal como ela é, que o ser humano não teria condições de abarcar. O modo como a humanidade ou coletividades consonantes, enquanto grandes famílias, a percebe. E ainda neste conjunto, num terceiro nível, a realidade para cada indivíduo; as variações das percepções de cada um de nós.

Possivelmente nisto se insere a célebre afirmação socrática: 'só sei que nada sei'; 'o mais sábio é aquele que sabe que nada sabe'. Em complemento, caso um indivíduo tenha certeza de algo, não há como colocar algo diferente em seu lugar. Ou seja, somente a aceitação de alguma ignorância, dá a possibilidade de acréscimo em conhecimento.

A frase de Protágoras é na verdade mais extensa: "O homem é a medida de todas as coisas, das que são pelo que são e das que não são pelo que não são." Possivelmente podemos entender este dito, como uma afirmação de que aquilo que o indivíduo aceita ou refuta - qualquer fato - condiciona a realidade particular na qual ele vive. Pelo menos em

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certo sentido a concepção individual seria a verdade. Tal verdade seria tão mais verdadeira quanto maior o número dos que a compartilhassem. Este é o máximo princípio de relativismo que se observa no mundo ocidental. Por ele, não há critério absoluto para o que é ou o que não é. Para um homem, qualquer coisa é verdadeira ou falsa em função de seu próprio julgamento. 'Tal como as coisas me parecem, tais são para mim.' Para quem sente frio é frio, para quem não sente, não é.

Em capítulo anterior já comentamos que é corrente a afirmação

que o conhecimento evolui não tanto pelas respostas, mas sim através de perguntas adequadas. Como observamos acima, caso consideremos a ponderação de Protágoras como verdadeira, cada um de nós até certos limites razoáveis, vive na realidade que ele mesmo condiciona. Mais uma vez almejo que você amigo leitor, encontre uma resposta libertadora à pergunta: Por que é assim? Talvez você chegue através dela a uma conclusão de máximo absolutismo para o ser humano, dentro de um máximo relativismo.

Para Protágoras não há uma moral absoluta e um bem absoluto,

mas sempre algo que é mais útil, mais conveniente e por isto mais oportuno. Ao associar o bem à utilidade, foi um precursor da chamada Ética Utilitarista, surgida muitos séculos depois. O sábio não seria o que supõe conhecer valores absolutos, mas o que conhece o relativamente mais útil e sabe fazê-lo prevalecer.

Ninguém consegue pensar sobre coisas que absolutamente desconhece ou pondera sobre coisas estranhas à sua convicção no momento.

Tal concepção filosófica coloca as convicções individuais num patamar de máxima prioridade. Melhorando a opinião de um indivíduo, o próprio mundo no qual tal indivíduo vive melhorará. Melhorando a opinião de uma coletividade, pelas melhorias individuais, o mundo no qual tal coletividade vive igualmente se tornará melhor.

Protágoras afirmava haver em torno de cada coisa dois raciocínios que se contrapõem entre si. Desta forma possivelmente mostrava aos

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seus alunos tal fato e os ensinava a 'tornar mais forte o argumento mais frágil'.

Nesta mesma linha, como veremos adiante, Sócrates considerava-se um parteiro, que auxiliava o aborto de opiniões mal formadas de seus alunos e dava à luz e desenvolvia aquelas saudáveis. E aqui também podemos citar mais uma vez a pergunta que efetuamos no capítulo onde discutimos o materialismo e o espiritualismo, agora com uma aplicabilidade muito mais estendida: Em todos os casos, caso as concepções filosóficas dos sofistas seja verdadeira e dentro de limites razoáveis, em qual mundo cada um de nós quer viver. Num mundo doentio ou saudável?

Pelo que se tem notícia, Protágoras mostrava como chegar a argumentos racionais favoráveis ou desfavoráveis a qualquer coisa. Lançava, portanto, as bases da retórica, a arte da persuasão, 'o verdadeiro timão nas mãos do homem de Estado'.

A partir desta ideia, haverá uma realidade independente das convicções do homem? Se todos os homens não julgassem existir o sol, o sol existiria? Eu em particular tenho certeza que sim. O sol deve ser algo bem mais amplo e em alguma medida diferente do que as nossas percepções e entendimento indicam. Mas há muito mais, além da nossa compreensão. Se há então uma realidade independente, as conclusões dos sofistas demonstram que a mente humana é incapaz de entendê-la com clareza. Desta forma os sofistas, fazendo prevalecer um ou outro ponto de vista, ambos igualmente defensáveis pela razão, trabalharam com a existência de limites para a capacidade racional humana. Os sofistas ganharam renome como sendo professores das técnicas de convencimento quanto a qualquer dos múltiplos pontos de vista possíveis, através da retórica e da oratória.

O sofista se considera sábio para saber o que é útil num determinado momento e em determinadas circunstâncias para uma dada coletividade. Ao ensinar aos seus alunos as técnicas de convencimento, parte do pressuposto que os mesmos igualmente são detentores de tal saber e que utilizarão suas novas habilidades para o estabelecimento de

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um maior bem. Foram as imprecisões ligadas a tal pressuposto o que ocasionou a degeneração histórica da sofística.

Pelo que se sabe de seus escritos destruídos ou perdidos, Protágoras desenvolveu a 'antilógica'; a técnica de argumentação pró e contra determinada posição, sabendo de antemão que ambas seriam igualmente defensáveis, e sob certo ponto de vista, igualmente verdadeiras. Segundo alguns, a sua obra 'Antilogia' discutia sobre o bem e o mal. O bem para alguns como o mal para outros; o bem num momento como o mal em outro; o bem podendo ser um mal e o mal podendo ser um bem. E a mesma linha de raciocínio para o belo e o feio e outros conceitos considerados opostos.

No seu pensamento, os homens apresentam diferenças entre si e por isto as coisas parecem e são para um de um modo e para outro de outro. A um enfermo um dado alimento parece ruim; a um sadio parece bom. Não seria inteligente considerar que um é ignorante e outro sábio. Antes caberia converter o enfermo em sadio. Do mesmo modo um tem hábitos piores, outro melhores. O sofista pelo discurso atua sobre o homem tal qual o médico com seus remédios sobre o doente. Vislumbra-se neste pensamento a intenção de Protágoras e dos primeiros sofistas, não só em modificar as atitudes das pessoas, mas também por meio disto, alterá-las interiormente para melhor.

É o juízo individual que faz com que algo seja considerado por ele bom ou mau. No entanto, por Protágoras caberia ao sofista promover o mais útil, que é um critério objetivo. Tal mais útil objetivo é aperfeiçoável e mutável. A utilidade tem caráter empírico e depende de uma série de fatores: do sujeito ao qual o útil se refere; o fim pretendido; as circunstâncias que fazem algo ser útil; etc.

No contexto histórico, o surgimento do senado nas cidades da Grécia, tornou importantes as técnicas de convencimento, por meio das habilidades de discurso e argumentação. Os sofistas se dedicavam a ensinar a retórica e a oratória, como instrumentos eficazes de fazer prevalecer uma decisão política. Os sofistas ensinavam a técnica de fazer prevalecer qualquer ponto de vista sobre outro, através da fala.

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Protágoras priorizou seu trabalho desenvolvendo a persuasão, pelo conhecimento da defensabilidade racional de opiniões opostas.

Górgias de Leontina na Sicília (487/480 a.C. - ~380 a.C.), aluno

de Empédocles, faz uma afirmação talvez ainda mais dura: "Nada existe que possa ser conhecido; se pudesse ser conhecido não poderia ser comunicado; se pudesse ser comunicado não poderia ser compreendido."

Como já mencionamos potentes filósofos, pelo uso da razão, concluíram teses antagônicas, mas que se contradiziam entre si. Uns pelo Ser Uno, outros pelo Ser Múltiplo. Uns pelos entes gerados, outros pelos entes não gerados. A consequência é a conclusão que a razão humana não é capaz de compreender com precisão alguma coisa e não é possível, portanto, explicá-la ou fazer que outra razão realmente venha a entender algo.

Talvez possamos interpretar este dizer como transmitindo a ideia que a mente humana não é capaz de compreender a realidade tal como ela é em si e como um todo e se a compreendesse não conseguiria fazê-la ser conhecida por outras mentes. O que supomos como sendo conhecido seria relativo e tal conhecimento seria restrito e dependente do próprio homem.

Por sermos incapazes de alcançar a verdade absoluta (alethéia), nos atamos ao campo das opiniões (doxa). Caberia a nós, desta forma, analisar em cada situação, o adequado ou o inadequado. Com isto, Górgias faz uma das primeiras propostas de uma Ética de situação, dependente do sujeito, do objeto e da conjuntura.

O público foco de seus ensinos, os alunos de Górgias, já seriam, a princípio, portadores do conhecimento, dos valores morais de sua cultura, em conformidade com as convicções comuns, bem como teriam entendimento para alterá-los para comportamentos mais adequados.

Ensinava, portanto, tal como os demais sofistas da primeira fase desta escola, a retórica para que seus alunos promovessem o mais adequado para a coletividade considerando o mais adequado aquilo que a razão esclarecida defendia frente a uma determinada situação. O risco da

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decadência do sofismo na sua prática da arte da oratória foi o seu uso, não para a busca do bem coletivo, mas de interesses menores tais como o bem do próprio orador.

Górgias priorizou em seu trabalho as técnicas de persuasão em si. Platão relata a afirmação de Sócrates, de ter sido ele aluno de

Pródigo de Céos (470/460 a.C. - 395 a.C.), outro importante filósofo sofista. Há controvérsia se a afirmação foi a sério ou a título de brincadeira, tendo em vista a discordância de Sócrates em relação a algumas ideias sofistas. No entanto o anteriormente relatado permite vislumbrar um importante ponto comum entre as duas linhas filosóficas.

Pródigo desenvolveu a arte de discursar e convencer através da sinonímica, que se caracteriza pela análise das várias palavras sinônimas àquela que se refere a uma dada ideia, bem como às nuanças encontradas em tais significados. Trabalhou principalmente com a técnica de persuasão baseada na linguagem como veiculadora e transmissora de ideias presentes em cada ser humano.

A Ética de Pródigo pode ser encontrada na versão que ele elaborou do mito de Héracles (Hércules para os romanos) na encruzilhada. Na encruzilhada o semideus encontra duas damas: Kákia (o vício e a depravação) e Areté (a virtude). Kákia lhe diz: Goze dos prazeres de modo fácil e intenso; goze de tudo o que deseja; se aproveite ao máximo e sem escrúpulos do esforço e do trabalho dos outros; extraia sempre vantagens pessoais de tudo.

Já Areté diz que aconselha a Héracles, pois sabe da boa educação que este já recebeu. Se ele seguir o caminho que conduz a ela, será um realizador de ações generosas e elevadas. Nada do que é bom, verdadeiro, e belo é alcançado sem esforço. Caso deseje o afeto dos outros, deve lhes fazer bem. Caso deseje ser admirado deve fazer o bem. Caso queira que a terra seja fértil, deve cultivá-la. Caso queira enriquecer com o gado, deve cuidar do gado....

É, portanto, uma ética voltada para o que é útil. Ações adequadas específicas gerando em consequência vantagens objetivas.

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Os dois caminhos propostos pretendem o mesmo objetivo geral, porém são diametralmente opostos.

Diz Kákia: Esta mulher lhe propõe um caminho difícil e longo. Eu lhe proponho um caminho fácil e curto para alcançar a felicidade.

Comenta Areté: Desventurada! Come e bebe antes de ter fome ou sede. Dorme não por estar cansada, mas por não ter nada o que fazer. Faz sexo antes de sentir desejo. Não contempla o melhor dos espetáculos, pois nunca fez uma bela obra. Ninguém confia e ninguém socorre você.

Por outro lado, Areté falando de si, afirma com satisfação que é companhia dos homens honestos e que é a auxiliar de todas as belas obras. Que é honrada por todos os que merecem estima. Vindo o desejo e só então, seus fiéis os satisfazem com moderação. Dormem um sono mais doce. Os jovens são louvados pelos anciãos. Os anciãos são louvados pelos jovens, se recordam com prazer de seus feitos passados e tem prazer de cumprir com nobreza aos atuais. Quando chegam ao termo fatal são recordados e exaltados. E conclui afirmando: Se tu Héracles, que já recebeu boa educação, seguir os fundamentos que lhe apresento, ser-te-á possível possuir a felicidade mais duradoura.

Hípias de Élida (século V a.C.), também contemporâneo de

Sócrates, apresenta uma proposta igualitária baseada nas leis naturais frente as quais os homens pertencem a uma só espécie e onde as distinções de cidade natal, as diferenças no interior desta, a nacionalidade e outras são meramente artificiais. É uma proposta muito inovadora para a cultura grega de então. As leis humanas, o chamado direito positivo, são consideradas fruto de pura convenção e arbítrio, indignas da respeitabilidade que lhes são conferidas, essencialmente tiranas e potencialmente divisoras da humanidade. Com respeito ao desprezo de Hípias por algumas leis, possivelmente tal filósofo poderia ser taxado de radical.

Para Antifonte (século V a.C.) a verdade são as leis naturais

enquanto as leis humanas são mera opinião. Uma classe social é igual à

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outra. O aristocrata é igual ao servo. Um cidadão é igual a outro. Um grego é igual a um bárbaro. '...Todos respiramos o ar com a boca e as narinas; rimos com alegria na alma ou choramos sofrendo, e com o ouvido recebemos os sons e graças à luz vemos com a visão, e com as mãos operamos e com os pés caminhamos...'

A sofística apresenta três fases. A primeira encabeçada pelos seus

grandes pensadores, tais como Protágoras e Górgias. A segunda degenerou para a transformação da dialética sofística numa arte de exibicionismo e autopromoção, isenta da meta do emprego do convencimento para alcançar melhorias coletivas. É a erística, a destruição de qualquer concepção racional sem o objetivo de estabelecer um bem maior e deu origem ao termo 'sofisma' empregado na atualidade. A terceira ainda mais deteriorada, onde as técnicas e conceitos, desenvolvidos pelos sofistas, foram empregados visando objetivos escusos particulares. Para destruir na mente dos cidadãos, concepções universais de comportamentos adequados, princípios básicos da justiça e as leis e assim justificar sua violação.

As concepções centrais dos sofistas perturbam os pensadores até

os dias de hoje. Basicamente aqueles que supõem o conhecimento como absoluto e inquestionável. Tais filósofos frequentemente criticavam quem afirmava ter algum conhecimento específico.

A cultura grega valorizava muito o conceito da areté. Tal termo adquiriu o significado de virtude. No entanto originalmente tem a conotação de uma habilidade a ser adquirida e desenvolvida. Os sofistas ao ensinar aos seus alunos as técnicas de convencimento e mudança de opinião, se dedicaram a desenvolver a areté com este último significado. O termo sofismar, empregado de forma pejorativa, se refere à sofística. No entanto hoje profissionais do direito e políticos, pelo uso da retórica e da oratória, nada mais fazem do que empregar as técnicas das quais os sofistas foram os precursores.

Sócrates pode ser considerado como sendo em parte um fruto deste movimento e em parte um opositor .

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Sócrates (470/469 a. C.- 399 a.C.) nasceu em Atenas. Teve como

pai um escultor (Sofronisco) e como mãe uma lavadeira e parteira (Fenarete). Foi casado com Xantipa que entrou na história como sendo feia, neurótica, irascível, insatisfeita e em permanente desarmonia consigo mesma, com tudo e com todos. Sócrates com ela teve filhos e junto a ela permaneceu até o final da vida. Xantipa quando de sua morte era a mais desesperada e inconsolável...

Era um grego de aparência grosseira que não tinha cuidados com as roupas. Costumava ficar parado por horas, pensando em silêncio. Seu interesse é voltado, sobretudo, a questões éticas: como deveríamos viver e o que é uma vida boa para o homem.

Dentre seus professores está Arquelau, por sua vez aluno de Anaxágoras.

Sócrates pode ser considerado em parte um filósofo sofista. Mais popularmente é visto com um crítico deste movimento. Nada escreveu. Dedicou-se exclusivamente ao ensino oral. Seu pensamento é conhecido por meio de Platão, Xenofonte e Aristófanes. Este último o satirizou como sofista, amoral, interesseiro e andrajoso. Um naturalista, na linha de Diógenes de Apolônia. Aristófanes observa suas ideias por volta da idade de 40 anos de Sócrates.

Platão o contempla na idade de cerca de 60 anos, como precursor das sementes que ele posteriormente desenvolveu. O vê como um mestre ético, moderado, sábio e justo. Considera-se impossível separar claramente o que é de autoria de Sócrates do que é de autoria do próprio Platão. Xenofonte o retrata ao final da vida enquanto Aristóteles apesar de lhe fazer alusão, não lhe é contemporâneo.

Para Sócrates o bom político é o que cuida da alma dos outros

(conforme Górgias de Platão). Tinha forte aversão pela política militante.

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Não gostava do modo como a coisa pública era administrada e não ingressou na vida política no sentido comum do termo. Entretanto tendia à formação de homens que bem pudessem gerir a coletividade. O ensinamento socrático tinha uma natureza política, no sentido de influir na sociedade. Pode ser considerado um revolucionário pela via da não violência, empregando a arte da persuasão e este é um dos pontos de similitude com a sofística.

Era intensamente religioso, porém rejeitava a visão

antropomórfica das divindades com paixões físicas e costumes humanos. Considerava Deus Uno, múltiplo em suas manifestações e chave

geral, cosmológica e ética. O Deus sapiente disporia das coisas como Lhe agrada e seria

capaz de ocupar-se ao mesmo tempo de tudo. Os deuses invisíveis se revelariam por suas obras visíveis. Tais obras recomendariam veneração e respeito. O mesmo Deus que ordenaria e manteria todo o Universo, sede de toda a Beleza e todo o Bem, sempre ofereceria a nós as coisas intactas, sãs, imunes ao perecimento, prontas a servir com agilidade e sem falha. Deus manifestar-se-ia na produção de obras grandiosas, mas não se deixaria observar governando-as. A alma humana teria ligação, mais do que tudo o que é humano, com o divino. Segundo ele, refletindo-se sobre tudo, não se pode desprezar o invisível, mas reconhecer seu poder através de seus efeitos e honrar a divindade. (conforme Memoráveis de Xenofonte).

A Providência Divina aspiraria sempre o bem do homem. O Bem é a Suprema Realidade Universal. Deus é Amor e se manifesta por esta via.

Sócrates considerava-se um missionário. Considerava um desígnio divino sua missão de exortar os atenienses a cuidar da alma e da virtude.

Declarava ter tido experiências místicas na forma de elevações

extáticas, uma delas ao longo de todo um dia e uma noite. Para os gregos de modo geral e Sócrates em particular, a

intermediação entre Deus e o homem é efetuada por meio de entes

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denominados daimones. As lideranças cristãs posteriores, avessas a manifestações religiosas diferentes, fizeram surgir o termo demônio, com a sua conotação negativa atual. Sócrates afirmava que um daimónion o aconselhava quanto ao que devia ou não fazer. Considerava tal voz de origem divinal e poder contar com ela, um privilégio totalmente excepcional. Tal voz, certa ocasião, lhe sugeriu não acolher um candidato a aluno. Em outra, não exercer política militante e assim sucessivamente, manifestando-se em diversas ocasiões. Seguir tal orientação, segundo ele, se mostrava posteriormente algo muito adequado.

Seus sonhos esporadicamente também lhe orientavam na vida cotidiana.

A célebre frase: 'A única coisa que sei é que nada sei', é um

importante vínculo seu com o sofismo, pois é este movimento o que na época reconhecia ser impossível ao homem ter qualquer conhecimento quanto à realidade em si. O mais sábio seria aquele que sabe que nada sabe.

Também pode ser considerada uma postura estratégica. Como seu objetivo era o de melhorar o entendimento ético de seus contemporâneos, ao não defender qualquer conceito, evitava que o orgulho forçasse seu interlocutor a defender como questão de honra uma determinada concepção mais imperfeita de que fosse portador. Entretanto, os relatos demonstram e é também óbvio que Sócrates detinha conhecimento e o considerava adequado para conduzir o aprimoramento de seus alunos.

Podemos dizer que os sofistas clássicos da primeira geração, consideravam qualquer opinião benéfica como aceitável e ensinavam técnicas de convencimento para fazê-la prevalecer, visando o bem das coletividades. Sócrates visava a melhoria das concepções individuais, em primeira instância, para o bem do próprio interlocutor.

Daí a diferença entre os sofistas clássicos e Sócrates: os sofistas por sua noção de relatividade ensinavam como convencer outros de qualquer opinião que o orador julgasse oportuno defender. Facilitavam o estabelecimento de opiniões consensuais. Com base na ação de

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indivíduos, convencendo a outros quanto às suas boas opiniões, pretendiam a melhoria do coletivo. Sócrates procurava fazer com que cada um aperfeiçoasse a sua própria opinião. Promovia o aperfeiçoamento das opiniões individuais. E esta opinião seria cada vez mais aperfeiçoada, a cada vez que fosse analisada.

Seu modo de proceder parece deixar claro, dois conceitos básicos.

A realidade não pode ser compreendida pelo homem. Tal conceito pode ser observado em seus discursos, pois são sempre inconclusivos. Sobre a realidade tal como ela é, total e profunda, por Kant e por outros pensadores, nada sabemos. Entretanto podemos gradualmente nos aproximar desta realidade e esta realidade - desculpem a redundância - é real. Daí seu método e todo o seu trabalho neste sentido.

Para Sócrates o meio de aprimorar o comportamento é o da

obtenção de conhecimento. Tal aprimoramento só seria possível se o sujeito estivesse consciente e insatisfeito com a sua ignorância. Quanto mais ciente da ignorância, maior seria a abertura para procurar aproximar-se mais da verdade. Aqueles que conseguissem reconhecer a própria ignorância seriam por isto mesmo, os que estariam mais próximos da sabedoria.

O reconhecimento da ignorância seria o princípio da sabedoria. Só aquele que reconhece que seu saber é inexistente ou incompleto se abre para o saber. Somente quando nos damos conta que não sabemos o que supúnhamos saber é que iniciamos a busca por descobri-lo. O processo de aprendizagem e aperfeiçoamento do conhecimento passa pela humildade e a aceitação de novas possibilidades. O reconhecer da própria ignorância. Por outro lado o conhecimento é do nosso maior interesse e deve ser objetivo essencial.

O centro da concepção socrática está no eixo conhecimento e ignorância. O motivo é simples: seu objetivo e sua missão é o bem do homem; é a melhoria de seu comportamento na direção do mais adequado e o comportamento mais adequado é o comportamento que envolve o maior bem. Para ele todas as boas ações são fruto do

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conhecimento. Todas as más ações são ocasionadas pela ignorância. O mais valioso ao ser humano seria portar conhecimento. É esta posse autêntica que faria a alma ser do modo como deve ser e deste modo realizaria o homem que seria essencialmente alma. Sua alma é sua consciência, sua inteligência. O que atualiza esta consciência é o conhecimento, o apreender.

Minha experiência no curso de Ética que ministro há anos na

Universidade Federal do Paraná, Brasil, para estudantes de Engenharia, tem tornado evidente a resistência à concepção de que toda conduta questionável eticamente se deve unicamente à ignorância. Cabe assim investigar o significado mais profundo dos termos que costumeiramente empregamos e que estão diretamente relacionados a esta conclusão:

Ignorância provém do latim 'ignorantia'. Ignorar significa

desconhecer; ser incapaz de; não usar de; não praticar. Ou seja, o termo carrega em si a noção de uma incapacidade para fazer uso de algo bem como a incapacidade de executar e praticar uma determinada coisa. Desta forma, afirmar a ignorância de algo bom é por definição reconhecer que não a praticamos.

Ciência, de modo mais usual, se refere ao conjunto de

conhecimentos socialmente adquiridos ou produzidos, que visam compreender e orientar o homem. Neste sentido, quem é portador de ciência se conhece e é capaz de se orientar na existência. A recíproca seria verdadeira. Quem não é portador de ciência não se conhece e não está apto a conduzir-se por comportamentos que lhe sejam adequados.

A palavra conhecimento é formada pela junção de conhecer +

mento. Se refere à apropriação de um objeto pelo pensamento como definição, como percepção clara. Uma apreensão completa. Algo completamente analisado e sintetizado. Conhecimento não é, portanto, a mera 'notícia' de que algo é mau. Envolve a interiorização; a plena convicção fundamentada na razão, de que algo é bom ou mau.

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O radical mente, provem do latim 'mente'; 'mens'; 'mentis'.

Refere-se à alma ou espírito e também ao modo de ser. Conhecimento é, desta forma, o ser em conformidade com a informação que este mesmo ser detém.

O termo conhecer tem origem no latim 'cognoscere'. Significa ter

previsto, experimentado e avaliado. O vínculo de conhecer com a capacidade de previsão é igualmente importante. Ajuda analisar tal importância, a observação do significado de outro termo usual em nossa cultura que é pecado. Pecar em latim significa simplesmente tropeçar. E quais seriam as causas de nossos tropeços em nosso caminho? Não enxergarmos os obstáculos, que é essencialmente ignorância, e não prevermos que iremos cair e nos machucar, que também o é. Daí a outra ideia associada ao conhecer que é experimentar. Só nos tornamos aptos a resolver um determinado problema quando nos propomos a solucioná-lo, nos expondo à possibilidade de encontrarmos soluções inadequadas antes de chegarmos àquelas mais apropriadas.

Apreender origina-se do latim 'apprehendere'. Significa apropriar-

se, pegar, agarrar, assimilar, incorporar mentalmente, entender, compreender. Aprendizado é, deste modo, tomar posse de uma informação. Estar plenamente convencido dela e dela fazer uso.

A palavra sapiente refere-se aquele que é conhecedor; sábio. A

sabedoria é a qualidade do sábio. O sábio é o que tem o conhecimento; a ciência. ' Sábio é aquele que, conhecendo as coisas boas e belas, sabe usá-las'.

A palavra ciência provém do latim 'scientia'. Numa busca de suas

origens o termo significa 'o caminho em si'. Faz alusão à própria jornada do ser humano e encontra paralelo, a título de complementação, com a visão do cristianismo gnóstico, perseguido após a estatização da religião cristã, pelo Imperador Constantino, por volta de 300 d.C. Segundo tal

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concepção, o homem, após casar-se simbolicamente com o Amor (Christos em latim), culmina por casar-se também simbolicamente com a Sabedoria (Sophia). Numa interpretação livre poderíamos dizer que o ser humano, após fixar sua vontade em realizar o bem, termina por efetivamente concretizá-lo.

Quem faz o mal o faz só por ignorância e não porque queira o

mal sabendo que é mal. Quando um indivíduo pensa, por exemplo: eu sei que tomar tal atitude é errado, mas irei tomá-la assim mesmo, na verdade estaria considerando que tal ação é benéfica a ele. Por Sócrates, é justamente a ignorância que faz supor ao indivíduo, que uma dada atitude errada lhe será benéfica. 'Creio que todos os homens escolhem com todos os meios possíveis o que é mais vantajoso aos seus interesses e isso realizam. E penso que os que seguem um caminho errado não são nem portadores de conhecimento (sapientes) nem sábios.'

Todas as virtudes seriam a posse verdadeira de conhecimento.

Não um conhecimento exterior, mas um conhecimento já interiorizado; que já faz parte do próprio ser. Para promover tal interiorização Aristóteles nos mostra que as virtudes tem origem em raciocínios. Cada indivíduo necessita explicar e justificar a si mesmo e a seu modo cada uma delas para delas se apossar.

Para Sócrates o bem, ou a virtude, não é a adequação aos

costumes, aos hábitos e convicções de uma coletividade. É algo motivado, justificado e fundado no conhecer individual. Conhecer o que é o homem e o que é bom e útil a ele.

Qualquer indivíduo sempre almejaria o que considera ser um bem e nunca um mal. O homem frequentemente diz fazer e faz um mal, malgrado seja um mal. O homem faz o mal porque espera erroneamente tirar dele um bem. Na medida que o homem estivesse convencido, tanto como está convencido de que existe, que um bem lhe é útil e bom; que ao contrário, um mal é prejudicial e mau; neste caso jamais cometeria um erro. Fazer o mal repousa sempre sobre uma falsa avaliação do que são

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bens. Como todo o ser pretende o bem de si mesmo, não se pode conhecer o bem e deixar de fazê-lo. Não se pode fazer o bem sem propriamente, no sentido preciso do termo, conhecê-lo.

O que gera; o que move, portanto, a vontade humana? O que converte a má vontade em boa vontade? Segundo Sócrates a resposta a esta questão é conhecimento.

Para Sócrates, o bem é útil e vantajoso a quem o pratica (conforme Xenofonte e Platão). A ética de Sócrates visa o bem e a utilidade para o indivíduo.

A areté, ou virtude, é uma capacidade ou habilidade que

posteriormente Aristóteles demonstra ser obtida pela repetição; pelo hábito. A maior capacidade humana não pode ser senão a que permite a sua alma ser boa, isto é, ser aquilo que, pela sua natureza, ela deve ser. Cultivar a virtude significa tornar a alma ótima. Realizar o ser, alcançar o fim próprio do homem interior e com isto também a felicidade.

Para Sócrates só há uma virtude: conhecimento. Todas as

subclassificações incluídas neste mesmo termo, isto é, como virtudes, seriam modalidades de conhecimento ou, em outras palavras, comportamentos oriundos do conhecer. De acordo com Sócrates, é impossível conhecer em profundidade uma virtude sem com isto, conhecer as demais. O máximo bem que abarca todos os bens parciais é a ciência. Da mesma forma os vícios seriam manifestações de ignorância. O pior dos males e que abarca-os todos é a ignorância.

O que leva o homem a agir bem é ponderar os resultados que

advirão das suas ações. A este saber - conhecimento - Sócrates o denomina por 'arte do comedimento' (Prudência). Ponderar os resultados que advirão das ações, é o conhecimento do bem. Sem conhecimento não é possível a realização da “vida boa”. Viver bem obviamente é bom. Desta forma progredir em conhecimento; progredir em comportamentos virtuosos é bom e útil ao homem. Progredir em

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conhecimento e virtude é o resultado esperado de qualquer aprendizagem.

Segundo Sócrates a Virtude (aretê) não pode ser ensinada de

modo formal. A virtude tem que ser descoberta e encontrada na mente de cada um. Para ilustrar tal conceito socrático, imaginemos que o próprio Einstein deduzisse para nós em classe, no quadro negro, sua teoria da relatividade. Se você quiser dar uma olhada, olhe o artigo que ele publicou. Eu não entendo quase nada da dedução. Provavelmente você também não. O que captaríamos seria talvez apenas uma 'notícia' de uma ou outra de suas conclusões, que só seriam consideradas por nós porque Einstein é Einstein. Isto é, devido a sua credibilidade.

Desta forma nossa mente pode ser encarada simbolicamente como um copo, que só pode ser preenchido com líquido até atingir sua capacidade máxima correspondente àquela que tem em um determinado momento da existência. E qual seria a técnica mais eficiente de preencher tal copo? Incentivando e orientando o indivíduo a que ele mesmo construa o entendimento de um determinado tema até onde ele seja capaz de chegar. Embora não seja possível transmitir de modo eficaz a verdade, através do uso de uma técnica expositiva tradicional, é possível e desejável dizer aos homens que é benéfico a eles procurar encontrá-la.

A vida é uma série infindável de experiências. Tais experiências

geram conhecimento caso sejam analisadas e estudas. Para Sócrates, a existência necessita ser examinada e questionada. 'Para o homem o bem maior é refletir todo o dia sobre a virtude e sobre os argumentos sobre os quais me haveis ouvido disputar sobre mim mesmo e sobre os outros e que uma vida sem tais pesquisas não é digna de ser vivida.' (cf. Apologia, Platão).

Neste sentido, o auto exame diário proposto por Pitágoras é potencialmente útil. 'Que não se passe um dia, amigo, sem buscares saber: que fiz eu hoje e hoje que olvidei? Se foi o bem, persevera, se foi o mal, abstém-te. Meus conselhos preza, medita e pratica e te conduzirão às virtudes divinas...' (conforme Versos de Ouro de Pitágoras).

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Ao analisarmos nossas experiências, a rigor estaremos analisando,

como nós mesmos consideramos, percebemos e processamos um determinado estímulo oriundo de nosso mundo exterior. Ou seja, a relação entre o nosso ser interior e um acontecimento qualquer. Desta forma passamos a compreender gradualmente melhor a nós mesmos: o que nos fez sofrer e o que nos deixou feliz e por que. Observamos que felicidade e sofrimento são coisas internas a nós mesmos. Como nós mesmos encaramos um determinado acontecimento. E assim paulatinamente chegamos ao “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás a Deus e o Universo”, gravado no Templo de Delfos. A exortação à forma de conhecimento essencial e o caminho eficaz que conduz à virtude.

Toda doutrina socrática se resume em conhecer a si mesmo e

cuidar de si mesmo. Ensinar os homens a conhecer e a cuidar de si mesmo é a tarefa suprema da qual Sócrates considera ter sido investido como um missionário de Deus. 'Teríamos conhecido qual é a arte que torna melhor os calçados, se não conhecêssemos o calçado?...A arte que torna melhor os anéis, caso ignorássemos o anel?... Então... jamais poderemos saber qual é a arte de tornar melhores a nós mesmos, se ignorarmos o que nós mesmos somos...'

Para Sócrates o que mais importa é o próprio homem e os

problemas do homem. 'Ele por sua vez, discorria sempre sobre os valores humanos... e as outras coisas cujo conhecimento, segundo ele, tornava os homens excelentes e cuja ignorância, ao contrário, fazia merecer, justamente, o nome de escravos' (conforme Ditos... de Xenofonte).

Para Sócrates o homem é sua alma, identificada com a mente e o mundo emocional do indivíduo, bem como com suas opções comportamentais (ética). A boa vida estaria relacionada à pureza da alma. A integridade ética seria a própria recompensa de quem a tem. Para ele sempre é preferível sofrer o mal, do que praticá-lo. Fazer o mal

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prejudicaria muito mais o perpetrador do que aqueles a quem o mal é feito.

O bem não é o abandono ao prazer e não é isto o que leva à

felicidade profunda e verdadeira. O bem é a mensuração do prazer adequado, devidamente discriminado e dosado. Tal arte de escolher prazeres faz parte do que se entende por apreender e conhecimento. Quanto ao domínio de si, Sócrates sugere que sentimos prazer em beber, comer, fazer sexo, após termos suportado sede, fome e os desejos sexuais. Isto é, é o controle dos instintos que permite ter-se prazer memorável em satisfazê-los. Quem se ocupa com a satisfação de prazeres fugazes e momentâneos, se afasta da possibilidade de satisfazer prazeres maiores e duradouros. Os prazeres do corpo e exteriores não são nem um bem em si nem um mal em si. A felicidade não depende deles. São bens desde que submetidos ao auto domínio e ao conhecimento.

Autodomínio é 'o bem mais excelente para os homens' (cf.

Ditos..., Xenofonte). Autodomínio (eukratéia) é termo e conceito criado por Sócrates. É considerado por ele o poder de dispor de si mesmo, no prazer ou na dor, no cansaço ou na disposição, no impulso ou sob pressão.

A liberdade para Sócrates é o mais precioso dos bens. O

autodomínio lhe seria equivalente. Os privados do domínio sobre si , em particular em relação aos seu comportamentos, seriam aqueles submetidos a pior das servidões.

Desenvolveu o conceito de autarquia. Significa autonomia,

independência. A capacidade de saber ou poder fazer por si tudo que for necessário. Aquele que supõe depender de coisas e pessoas para se plenificar e alcançar a felicidade, está iludido. Não é livre; não alcança nem a paz nem a felicidade. A alma é a condicionadora exclusiva da felicidade. Cabe à alma governar as necessidades e impulsos físicos.

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Cabe a cada um governar e vencer os monstros que residem em

seu interior. Tal como Héracles, só aquele que após uma longuíssima jornada venceu seus monstros interiores é verdadeiramente suficiente a si mesmo e senhor de si mesmo. Aproxima-se da divindade, no sentido de nada necessitar.

O próprio Sócrates buscava alcançar a felicidade. (eudaimonia).

Seu filosofar pretendia ensinar os homens a serem verdadeiramente felizes. É nitidamente eudamonista, como por sinal, os filósofos gregos em geral. A felicidade não é dada pelos bens do corpo e exteriores, mas sim pelos bens da alma. Pelo seu aperfeiçoamento pelo conhecimento. A felicidade depende exclusivamente do interior do homem, consignada ao seu pleno domínio. A bondade gera felicidade. A maldade gera infelicidade (cf. Górgias, Platão). A infelicidade real não vem de fora nem de outros. Somente nós mesmos podemos nos fazer grandes males. (cf. Apologia, Platão). Mesmo matar é um grande mal a quem mata e pode não sê-lo a quem morre.

A condição primeira para conquistar amigos bons é a de nos

tornarmos bons nós mesmos. Só quem é bom pode ser amigo de quem é bom. Não pode surgir amizade entre o bom e o mau. Sócrates se vangloriava de ser particularmente dotado da arte do amor. Seu amor se expressava através da arte de cuidar das almas daqueles que se expunham a sua influência. Não considerava seus alunos como seguidores, mas sim, amigos.

O método socrático é o do diálogo dirigido. Os que estão abertos

a um conhecimento melhorado, através da conversação, podem encontrar significados mais profundos para a virtude, temperança, coragem, justiça, piedade, etc. Com a sucessão de perguntas adequadas e dirigidas, a reflexão pessoal para encontrar as respostas, e o uso de exemplos concretos, as controvérsias se suavizam e se chega a ideias mais verdadeiras. Os interlocutores reexaminam as suas próprias

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convicções; questionam os seus dogmas (pretensas verdades não comprovadas) e são levados a abandonar as suas crenças e opiniões inconsistentes. Os que se permitem transformar, espontaneamente substituem as ideias e opiniões inadequadas por novas ideias; opiniões e conceitos mais claros e mais próximos da verdade. A verdade absoluta final; a realidade, no entanto, não pode ser atingida. A realidade tal como ela é não está acessível às percepções e mente humanas, devido aos seus próprios limites e imperfeições.

A maior parte daqueles que se julgam sábios, nem sequer se

apercebem da sua ignorância. Pelo contrário, Sócrates dizia saber que não sabia nada e, por isso, estava em melhores condições para procurar o conhecimento. O método socrático leva a profundas reflexões pessoais e a uma crescente descoberta de verdades interiores. É também um método de auto-conhecimento.

Sócrates empregava o método da análise conceitual. Começava o

diálogo com seus alunos pela célebre forma de pergunta: o que é? (o amor, a coragem, a amizade,...).

A mente humana pode ser encarada como análoga a um pequeno

macaco, em contínuo movimento, saltando de galho em galho. Uma dúvida é um estímulo que coloca este macaco numa posição de avaliação entre duas ou mais novas posições nesta floresta imaginária. Trabalhar com contrastes é outra das características da mente. O método conceitual de Sócrates faz isto. Gera uma dúvida que por sua vez tende a gerar várias hipóteses explicativas, boa parte delas inadequadas. Quando o macaco em questão salta para um novo galho, em termos termodinâmicos e também estóicos, é como se a mente migrasse de um estado de equilíbrio a outro. O trabalho de Sócrates pode ser encarado como garantir que o novo galho; a nova concepção na mente de seu aluno estivesse repousada num galho saudável e seguro. Para isto usava seu discernimento; sua capacidade de distinguir uma solução boa de uma solução má. E neste caso o referencial básico era ele mesmo.

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Obviamente o excesso de estímulo; neste caso o excesso de dúvidas hipersensibiliza o macaco que simboliza aqui a mente. Neste caso a melhor solução, salvo melhor juízo, é a de acalmar a mente por alguma técnica científica, ou postura espiritualista ou por alguma postura filosófica tal como, por exemplo, a estóica. Mais adiante analisaremos com mais cuidado alguns dos recursos que a filosofia nos deixa à disposição.

A palavra discernimento vem do latim discernimentum, junção do verbo discernere, discernir, (separar, seccionar, dividir, decidir, distinguir) com o sufixo mentum, mento (meio, instrumento). Discernir significa também decidir, estabelecer conveniente diferença (entre coisas ou pessoas) e discriminar.

A palavra indica, portanto, o instrumento para separar e distinguir o que seja adequado do inadequado. É também a faculdade de escolher o preferível e ser portador de critérios para fazê-lo. É possuir meios de fazer distinções e escolhas, por exemplo, do pior e do melhor.

É de se esperar que a presença de algum nível de discernimento dê a possibilidade de atitudes razoavelmente adequadas frente às necessidades do momento.

Discernir se relaciona com outras palavras do latim: cribrum (peneira, peneirar), crimen (juizo) e scribere (traçar, cortar, marcar, escrever).

Alguns sinônimos de discernimento seriam: critério, discrição, tino e conhecimento.

A palavra tino, por exemplo, encontra como sinônimos os termos juízo, sensatez, prudência, cuidado, tato e habilidade de andar às escuras.

A palavra critério se relaciona à capacidade de avaliar, negar ou confirmar, um dado estímulo, tal como uma informação. A ponderar com temperança e equilíbrio. Em termos estéticos, a apreciar e distinguir o belo, bem formado e proporcional, do defeituoso, desordenado e errático.

Os critérios para expurgar más formações e cultivar as belas podem ser de vários tipos.

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Felicidade pela Ética

Sócrates. Como saber como agir ?

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O mais pertinente a este livro é o critério do bem, que será ainda muito mais analisado nos próximos capítulos. É, portanto, um critério ético-filosófico que pode ser encarado também como um critério científico e religioso como veremos adiante.

Tal critério pode ser considerado também um critério residente no mais íntimo de cada ser. Daí termos uma nova ligação agora com o exercício da vontade. Ou seja, o que se considera aceitável ou não conforme a vontade, por exemplo kantiana, ou seja a vontade boa.

Em particular para espiritualistas, a boa fé ou a boa confiança tem também a propriedade de atuar como meio de, novamente ao dizer de Sócrates, abortar as más formações da mente e dar à luz e desenvolver as belas e adequadas.

O assim chamado juízo de valor, analisa a utilidade de algo, baseado num ponto de vista pessoal. Tem uma abordagem que se enquadra filosoficamente como consequencialista. Pode referir-se a um julgamento baseado num conjunto particular de valores ou num sistema de valores determinado, tais como liberdade, auto determinação e bondade. Um significado conexo de juízo de valor é o de um recurso de avaliação para a tomada de decisões, baseado em poucas informações disponíveis.

A recomendação ao se fazer um juízo de valor, é que se considere cuidadosamente para evitar arbitrariedades e impetuosidade, e buscar consonância com as convicções mais profundas que se tenha.

Juízo de valor também pode referir-se a uma tentativa de julgamento baseada numa avaliação estudada das informações disponíveis, tomadas como sendo incompletas e em evolução. Neste caso, a qualidade do julgamento sofre porque a informação disponível é incompleta e sujeita às limitações culturais ou pessoais.

Alguns argumentam que a objetividade verdadeira é impossível, e que mesmo as mais rigorosas análises racionais fundamentam-se no conjunto dos valores aceitos no curso da análise. Consequentemente, todas as conclusões são necessariamente juízos de valor.

O bom senso pode ser encarado como a capacidade de adaptar com razoabilidade, condutas a determinadas realidades considerando as

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Sócrates. Como saber como agir ?

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prováveis consequências, e assim poder fazer bons julgamentos e escolhas. Supõe certa capacidade de organização, auto-controle e independência de quem analisa a experiência de vida cotidiana.

O bom senso é por vezes confundido com a ideia de senso comum, sendo no entanto, muitas vezes o seu oposto. Ao passo que o senso comum pode refletir muitas vezes uma opinião por vezes errônea e preconceituosa sobre determinado objeto, o bom senso é ligado à ideia de sensatez, sendo uma capacidade intuitiva de distinguir a melhor conduta em situações específicas que, muitas vezes, são difíceis de serem analisadas mais longamente.

A partir da pergunta: O que é? Sócrates então praticava a

maiêutica (palavra que significa fazer dar a luz; fazer o parto). Isto é, tal como uma parteira, auxiliava-os a dar à luz um conhecimento melhorado. Arrancava do interior dos seus interlocutores as suas monstruosidades e os fazia parir ideias sadias. Parir novos conceitos. Pressupõe o entendimento de que há uma melhor compreensão ou uma capacidade de obter uma melhor compreensão, na forma fetal, no interior de cada um de nós. Uma investigação do que cada um já tem em germe em seu interior.

A enorme maioria de nós não dispõe de um professor a altura de Sócrates. Por outro lado a realidade de cada um de nós também leva a fazer surgir em nossas mentes, vez ou outra, alguma monstruosidade mental. Uma primeira ferramenta para lidar com ela pode ser a nossa capacidade racional. Porém tais monstros podem nos parecer racionais. Os tiranos e os carrascos registrados na história da humanidade, por certo tinham argumentos 'racionais' para seus atos. Uma segunda ferramenta é a observação tranquila dos mesmos. O ato de observar é promotor de saúde e equilíbrio e usado tanto pelas técnicas meditativas orientais quanto pela psicanálise ocidental. Implica também no reconhecimento e o discernimento entre o saudável e o não saudável; o desejável e o não desejável. Outro instrumento é a força da vontade humana, explorada por filósofos como Arthur Schopenhauer. Um monstro mental só pode nos importunar e influir em nossos

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Sócrates. Como saber como agir ?

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comportamentos, em síntese, se nós assim permitirmos e em certo sentido se nós mesmos lhe dermos forças para tal. O mundo de um monstro só tem vida se nós nos permitirmos viver no mundo dele. Por fim, para os espiritualistas surge ainda a opção da boa e confiante fé. A luz de uma fé saudável dissolve qualquer má formação importuna. Onde há luz, as trevas não podem existir.

Sócrates escolhia como alunos os angustiados por respostas e gerava inquietação. Angústia e inquietação eram consideradas análogas às dores de um parto. Os não inquietos não estariam ainda prontos para dar a luz. Para os candidatos que não julgavam importante aprender mais, indicava outros professores.

A maiêutica pode ser considerada a aceitação da existência de um patrimônio apriorístico de conhecimento latente na alma humana. A existência de um conhecimento fundamental.

Pela sucessão de perguntas e respostas entende-se o emprego do

método da dialética; reunir para discutir e distinguir. A cada resposta mostrava ao interlocutor as inconsistências ou imperfeições das respostas, eventualmente fazendo uso de exemplos do cotidiano e propunha novas perguntas, conduzindo assim o modo de pensar do estudante.

A discussão era conduzida sempre a partir das bases conceituais do próprio aluno. Com as experiências e forma de pensar do próprio estudante, um melhor conhecer era gradualmente alcançado. Levava o inquirido a tomar ciência de que ele não sabia o que pensava saber e a colocar conceitos melhorados em seu lugar. Discutia e questionava os valores e atitudes da sociedade da época. Mostrava que muitas das concepções comuns levam ao paradoxo e ao absurdo. Mostrava os perigos da abertura e aceitação acrítica da ortodoxia. Ao semear dúvidas, dois comportamentos padrão encontrava. De uns o aperfeiçoamento de concepções. De outros o orgulho ferido, o que resultava em ressentimentos e antipatia.

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Sócrates. Como saber como agir ?

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O método envolve desta forma o questionamento da opinião (doxa) e das crenças. Expõe suas imprecisões, parcialidades, incompletudes e nebulosidades. E se descobria que com frequência não sabíamos aquilo que pensávamos saber. Partindo sempre de um entendimento já existente, levava o interlocutor a ir além dele, em busca de algo mais perfeito e completo. E a grande capacidade de transformação está centrada no fato de que o resultado da reflexão é obtido pelo próprio indivíduo, que descobre, a partir de sua experiência, o sentido que busca. Sócrates não respondia conclusivamente as questões que fazia. Apenas mostrava se porventura a resposta encontrada era insatisfatória e porquê. Seus diálogos eram aporéticos, isto é, inconclusivos. 'Não aprenderam nada de mim mas unicamente por si mesmos geraram muitas e belas coisas. Porém o mérito de tê-los ajudado cabe a Deus e a mim.' (cf. Teeteto, Platão). Indicava o caminho a ser percorrido pelo próprio indivíduo. A própria palavra método significa através de um caminho.

A cada vez que retornamos a um dado conhecimento, nossa

capacidade de aprofundá-lo aumenta. A cada vez que ouvimos novamente uma mesma música, percebemos maiores detalhes nela. A cada vez que relemos um livro, a leitura é diferente e melhor. A capacidade de nosso copo mental tende a aumentar à medida que este aumento é solicitado. 'Mas se você voltar a conceber, estará mais preparado após esta investigação, ou ao menos terá uma atitude mais sóbria, humilde e tolerante em relação aos outros homens, e será suficientemente modesto para não supor que sabe aquilo que não sabe.'

O objetivo geral do método é o de conduzir o interlocutor ao

conhecimento. À convicção interior de temas relacionados ao comportamento adequado: ética e virtudes. A consequência visada era o maior bem do homem por uma vida mais ética e um maior cuidado de sua própria alma. Libertá-la de concepções errôneas, aproximando-a de concepções mais verdadeiras.

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Sócrates. Como saber como agir ?

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Investigava as experiências do interlocutor, angariadas ao longo de sua vida passada. Analisava como este estaria vivendo no presente e finalmente como poderia viver melhor no futuro. Promovia o desnudamento da alma e a contemplação de si mesmo, interrogando, provando, refutando e incentivando seu aluno a esforçar-se para ser melhor.

Em síntese, Sócrates através de seu método, pretendia aumentar o

conhecimento das pessoas e consequentemente melhorá-las eticamente. Visava a promoção de comportamentos gradualmente mais adequados, através do aprofundamento das concepções quanto às virtudes.

A existência de Sócrates encontrou seu término quando da

acusação senatorial de estar corrompendo a mente da juventude ateniense com ideias revolucionárias e não ortodoxas. O caráter corrosivo e subversivo do seu método que faz pensar de modo independente e não aceitar informações tradicionais e impostas como verdades, foi o que conduziu Sócrates à condenação e à morte. A sua fuga, apesar de possível, contestaria não somente os poderosos governantes juízes, mas sim as leis, a estrutura e a ordem da cidade. Comprometeria também de certa forma, a credibilidade na veracidade de seus ensinos. Sendo sua ação através de seus ensinos para a juventude, a sua própria razão de ser, seria uma negação à sua própria vida numa perspectiva maior. Desta forma, submetendo-se à penalidade fatal imposta, permaneceu conversando e ensinando até seus últimos momentos.

A título de conclusão, o fato de conseguirmos verdadeiramente

reconhecer a nossa profunda ignorância, é o primeiro passo para nos tornarmos mais sábios. Através da reflexão e da exploração de nosso universo interior, das nossas opiniões e crenças e de nossas experiências cotidianas, nos tornamos mais cientes; mais sábios. Tais descobertas tem caráter essencialmente individual. Podem ser tutoriadas, mas dependem na verdade, do buscador e da sua abertura a novos pensamentos.

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Sócrates. Como saber como agir ?

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Todas as virtudes e toda a possibilidade de uma vida boa e de bem tem como base o conhecimento, que não é apenas ter a 'notícia de algo', mas sim ter este algo interiorizado profunda e verdadeiramente em si como verdadeiro e útil. Conhecendo-se em profundidade uma dada virtude particular e sua essência, automaticamente se passaria a conhecer o essencial de todas as demais. A virtude é o conhecimento daquilo que é bom para o homem. A virtude é útil ao homem. Uma vida virtuosa torna o homem feliz. O mal resulta em não saber avaliar os resultados das ações e é sempre fruto da ignorância.

Para o mundo ocidental até o presente, Sócrates é um dos grandes

expoentes e talvez o maior a enfatizar a importância do Saber e do Auto - Conhecimento para o homem. Jesus enfatiza o Amor como forma extraordinária de transformação do indivíduo, dentre outros aspectos, para sua felicidade e realização. O verdadeiro Saber leva ao Amor. O verdadeiro Amor leva ao Saber. Tais abordagens, portanto se complementam na construção do homem e da humanidade.

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Freud e Lacan. O homem com impulsos e censuras.

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8 Freud e Lacan. O homem com impulsos e censuras

"Te advirto, sejas tu quem fores! Oh! Tu que desejas sondar os arcanos da natureza, se não achas

dentro de ti mesmo aquilo que buscas, tão pouco poderás achar fora. Se tu ignoras as excelências de tua própria casa, como pretendes

encontrar outras excelências? Em ti está oculto o Tesouro dos Tesouros. Oh! Homem!

Conhece a ti mesmo e conhecerás o universo e os Deuses..." Tales de Mileto Já bem sabemos que podemos considerar a Ética como uma

busca do comportamento adequado do ser humano. Para fundamentar tal busca é conveniente conhecermos o que rege e condiciona tais condutas e desta forma, em primeiro lugar procurarmos compreender a nós mesmos. Neste sentido o conhecimento do próprio homem é fundamental e o valor da psicologia inestimável.

Sigismund Schlomo Freud, posteriormente conhecido como

Sigmund Freud, nasceu no Império Austríaco, atual República Tcheca, em 1856. De lar judeu, casou-se e teve 6 filhos. Quatro de suas irmãs morreram em campos de concentração nazistas. Faleceu em 1939.

Ao longo de sua carreira, chegou a empregar a hipnose terapêutica; conceituou inconsciente, mecanismos de defesa, doenças psicossomáticas, repressões psicológicas e criou a assim chamada psicanálise.

Na psicanálise o sujeito expressa com liberdade e sem censura externa, seus sentimentos e pensamentos, os quais provavelmente estão relacionados às suas angústias, dúvidas, questões e sintomas indesejáveis. O psicanalista basicamente é um bom e compreensivo ouvinte, que procura ajudar o sujeito quando oportuno, a compreender-se e

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Freud e Lacan. O homem com impulsos e censuras.

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compreender e aceitar sua realidade interior. Ao longo das sessões, tal mundo interior vai sendo conhecido, entendido e aceito e graças a este processo de exteriorização pela fala, as desordens naturalmente desaparecem. Em certo sentido, o psicanalista atua somente como uma tela de projeção aos pensamentos e sentimentos daquele que o procura. Por esta descrição podemos interpretar a psicanálise como um processo de autoconhecimento.

O entendimento do homem por Freud, pode ser considerado como uma hipótese não comprovada, mas que tem dado ao longo das décadas excelentes resultados. Para ele, são duas as energias básicas e motivacionais do ser humano: a sexualidade e a agressividade. Quase nenhum ser vivo existiria sem o sexo, de forma que a sexualidade é um impulso primitivo importantíssimo para o homem. Por outro lado, temos que matar praticamente tudo que comemos, no passado diretamente, no presente, ao menos indiretamente.

Freud entende a mente como constituída por três regiões: A região da qual temos plena consciência, denominada por Ego. Uma região da qual não temos consciência, mas que atua de forma autônoma (Id e SuperEgo). Por fim uma região de transição da qual temos uma fraca consciência ou que antecede a consciência, denominada de Pré-Consciente ou Subconsciente.

Na região do inconsciente residiriam dois elementos: O elemento denominado por Id, sede das energias caóticas inatas; dos impulsos sexuais, de agregação e de preservação e ainda dos impulsos de morte e perversos.

O segundo elemento é denominado por SuperEu ou SuperEgo e atua como repressor e censurador do Ego e do Id.

Por tal estrutura, ao nível do inconsciente podemos visualizar uma situação de contínua pressão: O Id procura se expandir enquanto o SuperEu busca continuamente reprimir tal expansão.

Através do Subconsciente, ocorre a transferência de informação entre o Inconsciente e o Consciente e vice-versa. Os sonhos por meio de sua estrutura simbólica particular e a livre associação expressam os desejos e conflitos inconscientes e os trazem a tona para o nível

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consciente. O relato de sonhos para um especialista que conheça tal simbologia, revela a natureza destes conflitos.

O modo de ser do Id é natural e comum a todos os seres humanos. O SuperEu, o juiz repressor, censurador, condenador e punidor pode ser interpretado como aquele que gradualmente aprende o código penal que empregará. Os juízos de valor e os itens de repressão são introduzidos na infância por meio das informações recebidas do meio externo, tais como aquelas oriundas dos genitores. Gradualmente, à medida que o sujeito começa a empregar tais julgamentos aos fatos do mundo exterior, ele retroalimenta tais juízos e os fortalece. Por outro lado, se é reduzida a capacidade deste SuperEu em executar ações boicotadoras e condenatórias sobre outras pessoas, há uma que está permanentemente sob o seu jugo, que é exatamente aquela que o possui e o treinou. Daí a conveniência de não julgar ao outro, evitando-se assim o treinamento do SuperEu em julgar a nós mesmos quando de nossos múltiplos e diferentes enganos ao longo da vida.

Pensamentos e sentimentos dolorosos, bem como recordações ligadas aos mesmos, caso sejam reprimidos, não analisados e não avaliados racionalmente pelo ego, são lançados ao inconsciente e lá passam a gerar perturbações. Perturbações que surgem por uma postura do tipo: não quero pensar sobre isto ou não quero enfrentar tal acontecimento. Pessoas diferentes reprimem fatos diferentes e apresentam do mesmo modo diferentes desequilíbrios. Assim sendo, a observação e análise isenta, imparcial e fria dos sentimentos e pensamentos que aleatoriamente nos ocorrem é um processo natural de autoconhecimento, saúde preventiva e catarse.

Os nossos impulsos sexuais e agressivos estão continuamente reprimidos em algum grau. No entanto fazem parte essencial de nossa natureza. Caso haja bloqueio excessivo, a tendência é o surgimento de depressões, compulsões, distúrbios de humor, síndromes como a do pânico, etc. A solução usual para esta questão na atualidade é a ingestão de fármacos, os quais neutralizam quase de imediato as manifestações inconvenientes e apresentam um custo bem menor do que um provavelmente longo tratamento psicanalítico.

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Na continuidade de tal desequilíbrio entre os impulsos e as repressões e na existência de possibilidade de alívio, o indivíduo rompe as últimas barreiras sociais e tal como uma panela de pressão que explode, comete por exemplo, crimes sexuais e violentos. Desta forma sacerdotes coagidos ao celibato podem terminar cometendo atos de pederastia. Um jovem sujeito ao bullying e tendo a sua agressividade natural reprimida, pode terminar invadindo a sua escola armado e promover a matança de todos ao seu alcance. A resposta que a sociedade atual tem dado a tais fenômenos é a de intensificar as barreiras, através de uma justiça cada vez mais opressora.

A solução geral é o equilíbrio. É por um lado o conhecimento e aceitação de nossos impulsos primitivos e caóticos fundamentais que, de um certo ponto de vista, se constituem em nossa força e energia primárias. Por outro, transferir em parte o controle de tais forças para o nível consciente e deste canalizar tais energias para atividades subjetivas de criação e auto-realização. Assim, do mesmo modo que podemos observar celibatários que se transformam em pederastas, podemos encontrar grandes expoentes da espiritualidade e de auxílio à humanidade.

A mente saudável equilibra adequadamente o id e o superego. Tal equilíbrio é obtido basicamente pelo autoconhecimento e a autoaceitação, que termina por incluir o conhecimento e a aceitação do outro. Afinal, todos nós somos seres humanos.

Numa visão ortodoxa, tal autoconhecimento pode ser obtido pela psicanálise.

De um ponto de vista menos usual, pode ser obtida também pela dedicação de algum tempo diário para observar e procurar compreender e refletir sobre os próprios sentimentos e pensamentos. Uma análise das consequências dos acontecimentos do dia sobre nosso mundo interior pode ser considerada um procedimento de saúde preventiva. A este respeito, várias culturas orientais valorizam as práticas de meditação.

Uma outra alternativa heterodoxa seria a de conversar com Deus sobre nossos conflitos, sentimentos, angústias e problemas. Deus é um

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bom ouvinte e jamais nos reprime ou censura. Orar a Deus é uma prática apreciada em inúmeras culturas ocidentais.

Jacques Lacan nasceu em Paris, em 1901 e faleceu nesta mesma

capital em 1981. De família próspera católica, casou-se por duas vezes e foi pai de 4 filhos. Formou-se em Medicina, estudando em paralelo Literatura e Filosofia.

Conta-se que em certa oportunidade uma estudante inconformada com a visão de Freud a respeito do homem, e entusiasmada com os estudos de Lacan, o abordou, e ao exprimir seus sentimentos ficou surpreendida com sua afirmação de que era um psicanalista da linha Freudiana.

Uma de suas colocações é a de que o Inconsciente é autônomo em relação ao Eu consciente e pode se revelar por gracejos, atos falhos, além de sonhos, etc...

Lacan analisou os efeitos da figura paterna sobre nós, que pode ser transferida para um outro personagem, tal como uma liderança política ou religiosa. Mais precisamente do pai presente e do pai ausente.

O pai presente é aquele que de alguma maneira se envolve com o filho. Um pai agressor, apesar de que suas agressões possam redundar em morte e tendam a gerar novos indivíduos agressores, é um pai presente: o toque físico transmite uma mensagem interior de envolvimento e importância. O pai presente ama a seu modo o filho: indica zonas de comportamento consideradas seguras e estabelece limites ditados pelo seu interesse no bem estar dos descendentes. É um pai que assume seu papel.

O pai ausente é aquele que demonstra indiferença. O verdadeiro sentimento oposto ao amor não é o ódio. O ódio é uma manifestação de amor distorcida. O oposto do amor é a indiferença. O pai ausente não demarca territórios comportamentais a princípio seguros e nem limites que caso ultrapassados possam ocasionar risco.

O pai presente tende a gerar um filho confiante e seguro. Por outro lado leva a uma situação de disputa por amor entre irmãos e juízos de valor do tipo: o meu pai é melhor do que o seu. Tais efeitos tendem a

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criar indivíduos seguros porém amantes da competição: que buscam a superioridade ou que já se consideram superiores aos demais.

O pai ausente tende a gerar indivíduos inseguros. Na medida que não receberam uma base preliminar do que pode ou não ser feito, procuram tão logo quanto possível e ao seu jeito imaturo, delimitar tais territórios através do que pode ser chamado de vida de risco; uma vida sem limites e de perigo, do tipo salve-se quem puder ou adotando comportamentos anti sociais ou exóticos.

Na busca por segurança é possível recair em qualquer tipo de fundamentalismo religioso ou político, do tipo: a minha religião ou partido é o único certo; todos devem segui-lo. A ausência de questionamentos sobre uma pretensa verdade é repousante. Opiniões diversas são detestadas tanto quanto a instabilidade interior é temida.

A solução ao problema que se apresenta: indivíduo seguro e competitivo ou inseguro e radical, estaria na capacidade de transferir ao longo do crescimento da pessoa, o papel do pai para os irmãos, isto é para a coletividade fraterna em sua humanidade. Na medida que tal transferência possa ser realizada, ao invés da competição entre filhos de diferentes pais, passa a predominar a colaboração entre irmãos. Ai ao invés da insegurança e radicalidade por um pai ausente, a segurança na coletividade e um clima de tolerância e concórdia.

O autoconhecimento permite perceber e controlar a insegurança, a intolerância a competitividade e o orgulho.

No passado, sentávamos em torno da fogueira e repartíamos a

pequena caça com todos os membros da tribo. Quando um de nós adoecia, todos nós nos uníamos numa mesma dança de cura e saíamos à cata de ervas mágicas. Nossa tribo era uma grande família que permanecia unida e se ajudava em todas as situações. Mas os clãs e as tribos se fundiram e formaram Cidades-Estado e Nações. Com isto a humanidade atingiu um patamar de prosperidade jamais alcançado anteriormente. Vivemos mais, comemos melhor e obtivemos enormes níveis de comodidade e conforto. Se a hostilidade com tribos diferentes

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Freud e Lacan. O homem com impulsos e censuras.

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diminuiu, paradoxalmente a indiferença com o vizinho aumentou e nossas famílias não raro são constituídas na prática, por uma só pessoa.

O que analisamos acima leva a um tipo de existência que

podemos denominar por vida nua. É aquela caracterizada pela competição, pela discórdia, pela vida de risco, pela insegurança e pelas repressões. Tal vida se caracteriza pela perda da dimensão de subjetividade do ser; pela coisificação do ser. São consideradas características de tal estado a preocupação obsessiva pelo corpo; afinal só isto restou. Ainda a busca insaciável de satisfação dos desejos e por prazer.

Porém há uma outra possibilidade de existência que pode ser

denominada por vida qualificada. É a vitória sobre o individualismo. É a segurança na coletividade fraterna. É a postura de colaboração e concórdia. É a retomada da dimensão da subjetividade do ser, com a canalização de suas energias para a criatividade, sonhos, poesia, literatura e o exercício do pensamento. É a dedicação ao trabalho de auto-realização no contexto da realização de todos.

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Carl Gustav Jung. Na coletividade e além dela.

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9 Carl Gustav Jung. Na coletividade e além dela.

"Aqui se ergue a pedra feia e ruim. Seu preço é muito baixo!

Quanto mais a desprezam os néscios, mais a amam os sábios." Frase do alquimista Arnaldus de Villanova, gravada em pedra por

Carl Jung. "Um círculo e no centro um homenzinho diminuto: pupila; tu

mesmo, tal como te vês na pupila do olho de um outro." Carl Jung; gravado em pedra por ele mesmo. O presente texto se insere no segundo módulo do presente curso;

o que trata do ser humano em si e que procura mostrar dentre outros pontos os condicionadores da conduta (ética) humana. No entanto o que é aqui visto, já enriquece o que será apresentado no módulo seguinte, de detalhamento, na visão de pensadores extraordinários, dos melhores caminhos para o bem de nós mesmos e dos demais.

Carl Gustav Jung (pronuncia-se Iung,) é um dos fundadores, ao lado de Freud, da psicanálise moderna; da análise sistemática da mente humana. Nasceu na Suíça em 26 de julho de 1875; produziu ao longo de toda a existência e faleceu após curta enfermidade em 6 de junho de 1961. Seus trabalhos preenchem 19 volumes e muitos ainda não foram traduzidos para o Inglês. Criou um ramo da ciência conhecido como Psicologia Analítica ou Junguiana ou ainda Complexa, que se distingue da Psicanálise Freudiana, por uma noção mais alargada da libido e pela introdução dos conceitos de inconsciente coletivo, sincronicidade e individuação. Ou seja, Freud concebe o inconsciente dentro de limites estritamente pessoais. Jung estuda o inconsciente não só a nível pessoal, mas também como inconsciente comum a toda a espécie humana e mesmo transcendente a esta. Ambos basearam suas conclusões em experimentação e observação. Freud não tinha formação filosófica e

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Carl Gustav Jung. Na coletividade e além dela.

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portava uma visão de mundo materialista. Jung era amante da filosofia, de outras áreas do conhecimento humano e profundamente espiritualista. A tendência da psicanálise no momento é basicamente freudiana.

Embora cientista renomado da área médica e médico atuante, muito de seu trabalho foi a exploração de outras áreas do conhecimento e cultura humanas, incluindo filosofia ocidental e oriental, alquimia, astrologia, antropologia, arqueologia, sociologia , bem como literatura e artes. Buscava, portanto, e tinha uma postura de integração de saberes.

Carl é filho de Paul Achilles Jung, pastor rural da Igreja Luterana

e de Emilie Preiswerk Jung, oriunda de família abastada. Emilie passava boa parte de seu tempo em seu próprio quarto, isolada e encantada com os espíritos que ela dizia que a visitavam durante a noite. Jung tinha um melhor relacionamento com seu pai, devido à excentricidade de sua mãe. Embora normal durante o dia, Jung afirmava que durante a noite a sua mãe tornava-se misteriosa. Em uma destas noites, ele viu uma figura levemente luminosa e indefinida vindo de seu quarto, com a cabeça separada do corpo e flutuando no ar frente a este.

Ainda menino, esculpiu um pequeno boneco na ponta de uma

régua de madeira e colocou-o dentro de uma caixa. Em seguida, adicionou uma pedra que ele havia pintado em duas metades: superior e inferior e escondeu a caixa no sótão. Periodicamente, visitava o boneco da caixa, muitas vezes trazendo pequenas folhas de papel com mensagens escritas sobre eles, numa língua secreta sua. Mais tarde, ele refletiu que este ato cerimonial lhe trazia uma sensação de paz e segurança internas e descobriu semelhanças entre esta experiência pessoal e o emprego de totens por civilizações primitivas. Concluiu bem mais tarde, que tal ato cerimonial era um ritual intuitivo inconsciente, praticado de forma muito semelhante em locais distantes e desconhecidos dele quando criança. Suas descobertas, dentre elas, aquelas referentes aos arquétipos da psique humana e inconsciente coletivo foram inspiradas em parte, por experiências pessoais.

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Para a escolha da futura profissão, além da questão financeira,

fazer algo de útil como ser humano lhe atraía. Após estudar medicina na Universidade de Basel, iniciou sua vida profissional em hospital psiquiátrico de Zurich. Em 1903, casou com Emma Rauschenbach e com ela teve cinco filhos. O casamento se manteve até a morte de Emma, em 1955.

Em 1906, aos 30 anos, publicou e enviou uma cópia de um de seus livros a Sigmund Freud. Os dois se encontraram pela primeira vez no ano seguinte, quando conversaram quase que sem intervalos por cerca de 13 horas. Seis meses depois Freud, então com 50 anos de idade, enviou a Jung uma coleção de seus últimos ensaios publicados, o que se constituiu no início de amizade, intensas troca de cartas e colaboração. Os dois influenciaram-se mutuamente. Jung familiarizou-se com a ideia de inconsciente e passou a defender a interpretação de sonhos e a nova abordagem psicanalítica. Freud necessitava de colaboradores para validar e difundir seus estudos; a clínica psiquiátrica de Zurique onde Jung atuava era renomada e suas pesquisas já lhe davam reconhecimento internacional. Freud chamava Jung "seu filho adotivo mais velho, seu príncipe herdeiro e sucessor".

Jung enfatizava a importância do desenvolvimento sexual e reconhecia a existência de uma parte inconsciente que contém a seu modo, a cultura de nossa espécie. A libido seria uma fonte importante para o crescimento pessoal e formação do núcleo da personalidade. Freud não aceitava tais considerações.

Jung não concordava com a abordagem personalista freudiana, que negligenciava as condições históricas e o meio onde o homem estava inserido. Argumentava que dependemos muito de nossa história. Que somos moldados através da educação e pela influência dos pais, que por sua vez não está relacionada apenas a uma questão pessoal deles. Portam preconceitos e são por sua vez influenciados por conceitos históricos e este é um fator muito importante na psicologia. Não seríamos de hoje ou ontem, mas fruto de um período histórico imenso.

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Em 1912 Jung publicou a 'Psicologia do Inconsciente', que se constituiu em marco final da dissolução da amizade e da divergência de ideias e conclusões freudianas. Em seguida Jung renunciou ao cargo de presidente da Associação Psicanalítica Internacional, para o qual tinha sido eleito com o apoio de Freud.

Como é usual entre os psicanalistas até os tempos atuais, Jung explorou ele mesmo seu inconsciente. Os sonhos são manifestações simbólicas deste universo. Sonhos seus transcritos em papel logo após o acordar eram analisados por Freud e vice versa. Pelas conclusões posteriores de Jung, nas primeiras análises, tende a aflorar o mundo inconsciente pessoal de cada um e por Freud, nele, os impulsos caóticos, os desequilíbrios e as repressões. Só mais tarde o inconsciente coletivo é mais facilmente observado, juntamente com suas características ordenadoras e pacificadoras.

Após o desentendimento com Freud, Jung passou por uma transformação psicológica fundamental e difícil, que foi agravada pela notícia da Primeira Guerra Mundial. Nela atuou como médico do exército e comandante de um campo hospitalar suíço, país tradicionalmente neutro. Jung trabalhou para melhorar as condições dos soldados refugiados das duas facções em combate e encorajou-os a participar de cursos universitários.

Em 1913, com a idade de trinta e oito anos, Jung experimentou segundo ele, um horrível 'confronto com o inconsciente'. Ele tinha visões e ouvia vozes. Supôs-se por vezes psicótico ou esquizofrênico.

Frente a qualquer dificuldade da existência, duas são as alternativas naturais: o medo, a paralisação ou a fuga ou então o combate e a confrontação.

Ele concluiu que o que vivenciava era uma experiência valiosa e terminou por induzir, observar e analisar e não reprimir suas alucinações, ou em suas palavras, sua 'imaginação ativa'. Registrou tudo o que sentia e imaginava e transcreve suas anotações em um grande livro vermelho, no qual ele trabalhou intermitentemente por 16 anos. Jung deixou instruções póstumas sobre a disposição final deste manuscrito. Por décadas menos de duas dezenas de pessoas o tinham visto e

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parcialmente fotografado, armazenado que estava em cofre bancário. Em setembro de 2009 um seu neto, gerente dos arquivos Junguianos, decidiu publicá-lo. Durante o período em que trabalhou no livro, Jung desenvolveu suas principais teorias de arquétipos, inconsciente coletivo, e processo de individuação. Dois terços das páginas trazem pinturas alusivas aos textos, criadas pela mente e fixadas pelas mãos do próprio Jung.

Em 1924 viajou ao Novo México estudando a cultura dos povos

de lá. Em 1925 para países da África Oriental, para compreender a 'psicologia primitiva', através de conversas com habitantes culturalmente isolados. Concluiu que os padrões principais eram comuns aos dele próprio e aos da psicologia dos povos europeus. Em 1937 realizou uma longa viagem para a Índia. A filosofia hindu tornou-se um elemento importante na compreensão do papel do simbolismo e da vida do inconsciente.

Na época o famoso instrutor Ramana Maharshi, focado na realização do ser, lá habitava. Jung o reconheceu como absorvido no Self, no Eu total Junguiano, mas admitiu não compreender seu processo particular de auto realização.

Jung ressaltou a importância dos direitos e dos espaços

individuais no Estado e na sociedade. O Estado frequentemente seria tratado como uma personalidade semi animada de quem tudo se espera. Tal personalidade apenas camuflaria os indivíduos que o manipulam e seria um tipo de escravizador. O Estado tenderia a se sobrepor à espiritualidade, procurando usurpar o lugar de Deus, a política partidária seria comparável a uma religião e a escravização ao Estado, basicamente uma forma de adoração. Bandas de música, bandeiras, banners, desfiles e manifestações monstro não seriam essencialmente diferentes, em princípio, a procissões eclesiásticas, e os tiros de canhões ao fogo para afugentar os demônios. Do ponto de vista de Jung, esta substituição de Deus pelo Estado em sociedades massificadas leva ao mesmo fanatismo da Era das Trevas observado no ocidente a partir do século terceiro.

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Quanto mais o Estado é adorado, mais a liberdade é reprimida. Tal repressão deixaria os indivíduos, impedidos de livre expressão, psiquicamente subdesenvolvidos e com sentimentos extremos de marginalização.

Jung propôs que a arte pode ser usada para aliviar ou conter

sentimentos desagradáveis oriundos de traumas, o medo ou a ansiedade e também para reparar, recuperar e curar. Em seu trabalho com os pacientes e nas suas próprias explorações pessoais, afirmou que a expressão artística do imaginário pessoal pode ser útil na dissolução de sofrimentos emocionais. Em momentos de estresse, ele mesmo desenhava, pintava, esculpia ou construía considerando tais atividades mais do que apenas lazer.

O trabalho de Jung exerceu significativa influência cultural. Livros de Hermann Hesse ou filmes de Federico Fellini são apenas dois dos inúmeros exemplos que poderiam ser observados.

O desacordo primário de Jung com Freud surgiu como já

mencionado, de visões diferentes do inconsciente. A teoria do inconsciente freudiana seria incompleta e desnecessariamente negativa. Freud concebeu o inconsciente apenas como um repositório de emoções reprimidas e desejos. Jung concordou em parte com tal modelo, chamado de 'inconsciente pessoal freudiano', mas ele também observou a existência de um segundo nível, muito mais profundo e subjacente a um pessoal. Este seria o inconsciente coletivo, sede de arquétipos primários fundamentais. Na psique, haveriam conteúdos que não são produzidos por nós mas que teriam vida própria.

Muitos fatos levaram Jung a tal constatação. Cita como exemplo o relato de um esquizofrênico quanto a suas observações do sol e da origem do vento, semelhantes ao descrito em papiro antigo, cujo texto só foi divulgado quatro anos depois. Um texto inédito que o doente não teria como ter tido conhecimento prévio.

A rigor Freud chegou a mencionar a existência de um nível coletivo para o funcionamento psíquico, os '...remanescentes arcaicos:

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formas mentais cuja presença não pode ser explicada por qualquer coisa na vida do próprio indivíduo e que parecem ser primitivos, inatos, e herdados... ', mas o viu como meramente secundário e marginal. Para Jung, neste nível inconsciente residem as estruturas e predisposições a partir das quais as experiências do indivíduo seriam interpretadas e organizadas. Tal dinâmica de organização seria semelhante para qualquer membro da humanidade. '... existe um segundo sistema psíquico de natureza coletiva, universal e impessoal, que é idêntico em todos os indivíduos. Este inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente, mas é herdado. Trata-se de formas pré-existentes; os arquétipos, que podem tornar-se conscientes e secundariamente dão forma definitiva a certos conteúdos psíquicos'.

A palavra arquétipo provém do latim e do grego; archetypum e arkhétypon, significando modelo ou tipo primitivo ou original. Refere-se ao modelo ou ainda paradigma a partir do qual se faz uma obra material ou intelectual. A palavra paradigma alude ao conjunto de regras, normas, procedimentos e processos. A um certo modo de interpretar fatos.

Para Platão os arquétipos seriam modelos ideais, inteligíveis, supremos e perfeitos, a partir dos quais toda a coisa sensível, perceptível pelos sentidos, seriam cópias imperfeitas. A partir dos quais tudo seria copiado.

Na resignificação Junguiana, seriam adicionalmente estruturas residentes no inconsciente de todo o indivíduo, comuns a nossa espécie, que tendem a emergir nos mitos, nos contos, nas lendas e tradições populares e em todas as produções imaginárias do homem. Imagens psíquicas e símbolos ancestrais em contínuo movimento, presentes na parte mais profunda do inconsciente humano, os arquétipos seriam herdados e basicamente independentes de grupo, etnia ou povo. Os arquétipos não seriam memórias coesas e palpáveis no contexto ou definição clássica de memória, mas são o conjunto de crenças, valores e comportamentos básicos e informações comuns, inconscientes, que nos impulsionam na existência.

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Muitos reconhecem não haver nenhuma dúvida de que Jung estava convencido de que os arquétipos proporcionam prova de alguma forma de comunhão com a divindade.

Como comentário suplementar, suponhamos que os estudos de Jung sejam corretos: que existem padrões culturais gravados indelevelmente, que se manifestam de forma simbólica ao consciente. Sabemos por outro lado, e isto já foi discutido, que as palavras e sons que usamos para comunicação são essencialmente signos de ideias residentes em nossas mentes. Constituem-se numa expressão simbólica do modo como percebemos e compreendemos as coisas do universo. Se a compreensão humana característica está gravada em arquétipos que se exteriorizam ao mundo consciente e se palavras são símbolos de nossa interpretação do mundo, natural esperar que tais palavras e sons não sejam tão somente rabiscos e balbucios estabelecidos por mera convenção, mas sim num estudo mais profundo, mostrem relação direta com os padrões primitivos característicos do ser humano. O estudo de um bom dicionário, analisando significados básicos das palavras, bem como seus sinônimos, a princípio permitiria perceber parcialmente tais padrões.

A meta final da Psicologia Analítica é a individuação. Jung considera a individuação o processo central do desenvolvimento humano. Seria o processo de passagem de conteúdos, da esfera inconsciente para o campo consciente da psique, com a manutenção do equilíbrio e da autonomia do Ser. A gradual integração do consciente com o inconsciente coincidiria com o gradual crescimento da criatura humana. Tal ampliação da consciência promoveria a evolução do ser humano de um estado infantil e indiferenciado, para outro de crescente maturidade e diferenciação. Possibilitaria a integração dos opostos e a dissolução dos conflitos.

Através desse processo, o indivíduo identificar-se-ia menos com as condutas e valores encorajados pelo meio no qual se encontra e mais com as orientações emanadas do si mesmo; da totalidade do seu ser. Entretanto Jung ressaltou que o processo de individuação não entra necessariamente em conflito com a moral geral coletiva do meio no qual

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o indivíduo se encontra, uma vez que esse processo, no seu entendimento, leva o ser humano a adaptar-se e inserir-se com sucesso dentro de seu ambiente, tornando-se um membro ativo de sua comunidade.

Eventuais resistências em permitir o desenrolar natural do processo de individuação seria uma das causas do sofrimento e da doença psíquica, uma vez que o inconsciente tenta compensar a unilateralidade do indivíduo, limitado ao seu pequeno e restrito ego.

A individuação seria um processo a rigor infindável, obtida pelo paulatino conhecimento de si mesmo, o que inclui a observação e entendimento do mundo ainda não consciente em cada um. Seria um processo de transformação, pelo qual o inconsciente pessoal e coletivo é trazido à consciência, por meio de sonhos, imaginação ativa ou livre associação, para dar alguns exemplos, para terminar por ser assimilado e compreendido por todo o ser. Seria um processo necessário para que a integração da psique tenha lugar.

Além de alcançar a saúde física e mental, as pessoas que teriam avançado em direção à individuação, tenderiam a ser harmoniosas, maduras e responsáveis. Eles incorporariam em suas vidas os valores humanos característicos, tais como liberdade e justiça e teriam um bom entendimento sobre o funcionamento da natureza humana e do Universo .

Tal pensador observou a meta da individuação como sendo equivalente à "Opus Magna", ou "Grande Obra" dos antigos e mais esclarecidos alquimistas, ou seja, à autorrealização.

O trabalho e os escritos de Jung a partir de 1940 focaram-se na alquimia . Em 1944 publicou Psicologia e Alquimia, onde analisou os símbolos alquímicos e mostrou uma relação direta com o processo psicanalítico. Argumentou que o processo alquímico é a transformação da alma impura (chumbo), através das etapas de enegrecimento, clareamento, vermelhidão e amarelecimento até a alma aperfeiçoada (ouro), e uma metáfora para o processo de individuação. Em 1963 foi publicado pela primeira vez o Mysterium Conjunctionis onde discute o arquétipo da união sagrada entre o sol e a lua.

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A estrutura do ser humano como um todo, pelas conclusões Junguianas, poderia ser descrita: O ego através da persona, interagindo com o mundo externo, na região consciente. Nas regiões mais superficiais do inconsciente, aquele pessoal, com suas forças caóticas (id), seus mecanismos repressores (superego) e seus conflitos inerentes. Por fim o inconsciente coletivo com seus arquétipos de harmonia, de luz e sombra, animus e anima e outros. Além disto, o mestre suíço constatou algo impressionante para a época. Que haveria uma ligação profunda entre toda a humanidade e entre todos os seres vivos (Unus Mundus).

Anima seria o arquétipo do feminino e animus do masculino no ser humano. Quando um homem se apaixona por uma mulher, estaria projetando nela, sua anima residente e por tal motivo ela lhe pareceria irresistível. Mecanismo complementar seria o da paixão de uma mulher por um homem.

Nenhum ser humano tolera uma vida sem significado. Temos a necessidade de autorrealização, na qual o ego seja herói, espelhando harmonia com sua realidade interior.

Ao rumarmos para o autoconhecimento que é a conscientização do ego de seu próprio self, passamos a nos confrontar com nossos aspectos mais luminosos e também com os sombrios.

O ego pode resistir ao apelo natural por realização. Por outro lado, tem a necessidade de se autoconhecer e analisar-se, de modo a explorar seu Inconsciente profundo (self) e entender o que tem a fazer para realizar-se. O sonho, a imaginação ativa, o observar de coincidências, permitiriam restabelecer o diálogo entre a consciência e o inconsciente, percebido inicialmente como ameaçador pelo ego. O ego que teria efetuado longa jornada se distanciando de sua origem, agora pretenderia um retorno proximal.

O inconsciente pessoal resultaria da história de vida de cada um enquanto o inconsciente coletivo, da história e cultura da humanidade em cada pessoa, e em nível mais profundo, de todos e de tudo vivente.

As várias imagens arquetípicas apresentam dualidade de luz e sombra; bem e mal.

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No inconsciente pessoal reside o conflito do id com o superego. No coletivo, a dualidade de luz e sombra e a própria ciência do coletivo. Quando processamos adequadamente os conflitos, as dualidades e os saberes, ocorreria integração. O processo adequado inclui conhecer, observar, enfrentar e aceitar.

Algumas pessoas podem se transtornar. Alguns abandonam completamente seu modus vivendis, com troca de emprego, casamento, fé religiosa, cidade, país, e apresentam outros comportamentos inesperados. A pressão interna oriunda da urgência por autorrealização pode ficar insuportável. Eventualmente ocorrem doenças graves, físicas ou mentais e há ainda quem não sobreviva.

Em sua teoria psicológica, que não está necessariamente ligada a uma determinada teoria de estrutura social, o ego consciente aparece como uma personalidade gerada pelo próprio indivíduo ou através da socialização, aculturação e suas experiências.

A palavra persona, como a maioria tem conhecimento, alude às mascaras, trajes característicos básicos, que os atores gregos empregavam para determinar quem representavam nas peças teatrais. O ator, por trás delas é quem lhes conferia vida. As personas como que distorciam e limitavam o ator, para fazê-lo adequado ao papel que executava.

Jung considerava tal máscara como um sistema complexo que intermedia a consciência com o meio social. Um compromisso entre o indivíduo e a sociedade, naquilo que é conveniente que um homem pareça ser. Exerceria a função de fazer uma determinada impressão para os outros e de esconder pelo menos parte da verdadeira natureza do indivíduo. A individuação seria um processo de conhecimento tanto desta máscara, quanto do que se encontra por trás dela, permitindo dentre outros pontos, modificações adequadas, a solução de conflitos e o controle dos impulsos interiores.

No campo profissional as ideias Junguianas são frequentemente empregadas com objetivo diametralmente oposto. Procura-se transformar a persona dos executivos em máscara corporativa convincente aos outros, a eles mesmos e adequada aos objetivos não do indivíduo, mas do meio empresarial no qual se encontram. A

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personalidade dos subordinados é avaliada e testada, facilitando assim seu controle e gestão. Jung, num certo sentido, pretende o afrouxamento da persona enquanto que o descrito pode ser considerado em parte um enrijecimento e afastamento do que há por trás dela. As próprias ambições profissionais de cada um são capazes de provocar tal distorção.

Cada um tende a se comportar como os demais esperam e termina por acreditar que aquela máscara que está a usar é ele mesmo. É uma máscara gerada em parte pelas expectativas sociais e em parte pelas expectativas do próprio sujeito. Mas não é absolutamente o eu real. O indivíduo pode terminar por usar uma persona em casa, outra no trabalho e assim sucessivamente e quanto mais pronunciadas as diferenças entre as máscaras que a mesma pessoa assume e dá veracidade como sendo ela própria, mais neurótica ela se torna, pois as conduta destas personas se chocam e contradizem. O indivíduo perde a unidade e se dispersa.

A vida do homem contemporâneo estaria tão voltada a exterioridades; seria de tal ordem unilateral, ignorando as realidades de seu mundo interior que o universo de cada indivíduo de hoje, encontrar-se-ia em franca rebelião contra uma forma de vida totalmente inumana. Precisariam ter algo para compensar a dissociação com sua própria natureza e continuamente recorrer a subterfúgios para pacificar seu inconsciente, em contínua comoção.

O maior conhecimento de si mesmo e a indiferença pelas expectativas do meio, possibilitaria a realização das expectativas mais profundas do próprio ser e desta forma, tendo-se nascido com potencia, o indivíduo paulatinamente torna-se aquilo que em potência já é.

De acordo com Jung, uma criança não nasce como uma 'tabla rasa' como anteriormente se supunha. A criança seria um ser muito complexo, com determinantes, predisposições e orientações que se manterão por toda a vida. É portadora, desde o nascimento, de um caráter; de uma complexidade herdada definida. Nasceríamos de um padrão e seriamos em certo sentido um padrão. Um padrão que nos faz especificamente humanos e não haveria ninguém que nascesse sem ele. Entretanto seriamos profundamente inconscientes deste fato, porque

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vivemos pelos sentidos e fora de nós mesmos. Se observássemos o mundo interior descobriríamos isto, mas tal atitude seria totalmente não usual em nossos tempos.

O padrão de funcionamento e de conduta se manifesta através de imagens arquetípicas. O costume dos povos de contar histórias seria o conhecimento da necessidade que todos tem de conhecer e agir em conformidade com tais padrões.

As fantasias do ser humano seriam fatos reais e é fato que o indivíduo as tenha. Pela fantasia de um indivíduo outro morre ou uma ponte é construída. Tudo de palpável surge de uma fantasia. Não ser palpável uma fantasia, não significa que não seja real. A fantasia tem realidade, seria uma forma de energia que ainda não poderíamos mensurar e é a manifestação de algo. Quando se observa as imagens ou fantasias da mente, se observa os fatos deste mundo interior.

Por vezes o inconsciente tem a dizer coisas tão desagradáveis ou inconvenientes que optamos por não escutar. Na maioria das vezes seríamos menos neuróticos se pudéssemos, apesar da existência de um grau usual de repressão, admitir e aceitar tais coisas.

Os sonhos são manifestação do inconsciente e este encontra-se em relação compensada com o consciente. A cada mensagem do inconsciente decifrada pelo consciente, uma nova e mais rica mensagem é gerada no inconsciente. Entendido um determinado problema cabe ao homem ajustar sua conduta. Utilizar ou não o conhecimento que gera o seu comportamento para alterá-lo adequadamente é a verdadeira questão moral.

Num contexto mais geral, podemos dizer que talvez o diagnóstico de qual seja a conduta mais adequada, não seja o problema mais difícil ou árduo, mas sim convencer-se disto e agir efetivamente de modo mais ético.

O homem sempre viveu dentro de uma estrutura de mitos. Agora ele estaria mutilado, sendo levado a viver sem mitos e sem história, a que está naturalmente conectado.

A mitologia seria uma série de imagens que constituiriam a vida dos arquétipos. São uma exteriorização dos processos mitológicos

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interiores. O homem não seria completo se não estivesse consciente de tais aspectos ligados aos fatos da existência. É o modo padrão interior natural de interpretação dos fatos pelo homem. O homem não seria completo caso enxergasse o mundo e vivesse de acordo com a visão de um mundo probabilístico e estatístico. Por outro lado, tenderia a completude se vivesse de acordo com a sua realidade humana. A visão atual é uma visão de médias. As qualidades humanas que por definição fogem da média são eliminadas e isto não seria apropriado ou saudável. Privaria as pessoas de seus valores específicos que os fazem indivíduos e o que seria a experiência mais importante da vida. O experimentar o seu próprio valor, que se encontraria na singularidade, apesar de inserida no coletivo. Viver sem mitos e sem história é totalmente anormal e doentio e abafaria os valores criativos da personalidade.

Por trás do mundo consciente de um indivíduo há um mito atuando a nível inconsciente que se estende através dos séculos. Um padrão para o ser humano e seu comportamento. Ideias arquetípicas emanando de outras. Ações promovidas por condicionantes comportamentais coletivos originam outras, do mesmo modo regidas pelas mesmas estruturas de resposta comportamentais. A capacidade de observar esta estrutura possibilitaria prever em alguma proporção o futuro das coletividades humanas. Assim, por exemplo, Jung afirmou ter previsto por volta de 1919, o advento de grandes perturbações na Alemanha, através do estudo da mente de seus pacientes alemães.

A segunda guerra mundial foi um fato histórico marcante. Diria mais tarde que Hitler parecia o dublê de uma pessoa real. O verdadeiro Hitler estaria deliberadamente escondido a fim de não perturbar o processo histórico. Não se poderia falar com ele porque não haveria ninguém lá. Ele não seria um indivíduo, mas sim uma nação inteira.

A obra de Jung sobre si mesmo e seus pacientes convenceu-o de que a vida tem um propósito espiritual, além dos objetivos materiais. Nossa principal tarefa, ele acreditava, é descobrir e cumprir o nosso potencial inato em profundidade. Baseado em seus estudos sobre cristianismo, hinduísmo, budismo, gnosticismo, taoísmo e de outras tradições, concluiu que a jornada de autotransformação, que ele chamou

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de individuação, é o centro místico de todas as religiões. É uma viagem ao encontro do Eu total e que vai além dele até o Divino. Ao contrário de visão de mundo materialista de Sigmund Freud, Jung tendia ao panteísmo e estava convencido que a experiência espiritual era essencial para nosso bem-estar. Freud encarava a religiosidade como uma doença humana necessária. Jung como um bem, relacionado à sanidade mental. A individuação é o processo de integração do consciente ao inconsciente, onde residiria o conceito profundamente arraigado de algo ordenado e ordenador que transcende ao próprio homem. Vale lembrar que a palavra religião vem do latim religare; ligar a pessoa àquilo que lhe transcende.

As conclusões de Jung sobre religião e o entendimento de seu valor prático para a individuação são um contraponto histórico ao ceticismo e censura freudianas.

Deus e o Eu, psicologicamente estariam intimamente relacionados. Isto, pelo pensamento junguiano, não significaria que Deus e o Eu seriam a mesma coisa.

As mandalas, as representações geométricas ordenadas, expressas pelo inconsciente e representadas pelas culturas humanas, seriam exemplos de arquétipos que representam ou esquematizam tanto o Eu residente no inconsciente mais profundo, quanto Deus, o Universo e a Totalidade. Em momentos de desordem do indivíduo, tais mandalas surgiriam como uma busca pela ordenação da mente. Os conflitos residentes no inconsciente pessoal freudiano seriam solucionados pela ordem observável ao nível do inconsciente coletivo. Tais representações sugerem um centro que não coincide com a personalidade e alude sim, à totalidade, ao Eu que não pode ser abarcado pela personalidade consciente. Tais mandalas seriam os arquétipos fundamentais.

A disputa por correligionários, entre espiritualistas e materialistas

costuma ser acirrada. Materialistas veem nas religiões a origem de todos os males da humanidade e nesta disputa tentam provar que grandes cientistas, principalmente os mais atuais, pretensamente mais esclarecidos e a princípio imunes à ignorância, seriam ateus. Interessante

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observar que o maior número de fatalidades humanas provocadas no século XX, foram ocasionadas por dois movimento políticos de origem em teorias racionais: o nazismo e o comunismo. O primeiro de orientação francamente egocêntrica; o segundo institucionalmente materialista. Cabe assim transcrever literalmente o testemunho de viva voz de Carl Jung para a televisão inglesa:

Entrevistador: 'E o senhor acreditava em Deus? Jung aos 84 anos: 'Oh sim!' Entrevistador: 'E acredita agora?' Jung: 'Agora? Difícil responder. Eu sei! Não preciso acreditar. Eu

sei!' Deus é uma verdade pessoal. De acordo com Platão qualquer

conhecimento é uma crença que posteriormente se confirma, de modo que sem crença inicial, nenhum conhecimento posterior se realiza.

Jung descreve um tipo de experiência pessoal que chama de numinosa. 'O numinoso, indiferentemente quanto a que causa possa ter, é uma experiência do sujeito independentemente de sua vontade... O numinoso é tanto uma qualidade pertinente a um objeto visível como a influência de uma presença invisível que causa uma peculiar alteração da consciência.' Desafia explicações, porém parece conter uma mensagem individual que, embora misteriosa e enigmática, também é profundamente impressionante. Jung observava que a crença, consciente ou inconsciente; uma disponibilidade prévia para confiar em um poder transcendente, era uma condição prévia para a experiência do numinoso. O numinoso não poderia ser conquistado; o indivíduo poderia somente abrir-se para ele. Porém, uma experiência do numinoso seria mais que uma experiência de uma força tremenda e compulsiva; é um confronto com uma força que encerra um significado ainda não revelado, atrativo e profético ou fatídico. Jung via o encontro com o numinoso como uma característica de toda experiência religiosa. A numinosidade seria um aspecto de uma imagem de Deus supraordenada, quer pessoal quer coletiva.

Investigações de experiências religiosas convenceram-no de que, em tais ocasiões, conteúdos previamente inconscientes rompem as

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barreiras do ego e dominam a personalidade consciente da mesma maneira como o fazem as invasões do inconsciente em situações patológicas. Contudo, uma experiência do numinoso não é habitualmente psicopatológica. Diante de relatos de encontros individuais com o divino, a ele apresentados, Jung sustentava que necessariamente não seriam prova da existência de Deus; porém, em todos os casos, as experiências eram de uma profundidade tal que meras descrições não poderiam dar conta de seus efeitos. A psicologia humanista contemporânea denomina tais experiências como experiências máximas dos seres. (Cf. Samuels et al.)

Por Jung as pessoas buscam uma experiência arquetípica que lhes dê um valor incorruptível. As pessoas dependeriam de condições externas: de seus desejos, de suas ambições, de outras pessoas, porque não teriam ciência de valor nelas mesmas; não teriam se apossado de um tesouro que os faria independentes. Tal valor resultaria em liberdade. Com tal experiência espiritual o indivíduo seria capaz de continuar seu caminho, sua senda, sua libertação e sua individuação. Ele se converteria naquilo que é desde o princípio.

Cada homem é chamado a tornar-se aquilo que potencialmente é, tal como uma semente se converte numa árvore. No entanto alguns teriam tal destino obstaculizado. Segundo Jung, poderia ser diferente se tivessem tido o conhecimento e informações apropriadas ou se tivessem dedicado mais tempo a si mesmos no sentido de explorar-se e conhecer-se. Mas isto não seria popular, usual, comum, propagandeado. As pessoas seriam chamadas a uma vida não refletida e superficial. O ponto de vista usual é totalmente voltado para o que ocorre fora de nós mesmos.

Por outro lado o homem não suporta uma vida sem significado; não aceita que sua vida não seja significativa.

Quanto à morte, para Jung, uma parte das faculdades da psique humana, não está limitada ao espaço e ao tempo e tal fato seria evidente e observável no presente e em todos os períodos da história da humanidade. Se há tal parcial independência, a consequência é a de que uma parcela da psique não está sujeita às leis que regem o tempo e

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espaço, o que indicaria uma continuidade prática de algo do ser humano, mesmo após o eventual desaparecimento no espaço e uma eventual interrupção no tempo.

A atitude de Jung com relação ao mal era pragmática. Como repetidamente dizia, não estava interessado nele em uma perspectiva filosófica, mas, sim, de um ponto de vista empírico. Como psicoterapeuta, era com o julgamento subjetivo da pessoa quanto àquilo que constituía o bem e o mal que ele percebia ter de lidar em primeiro lugar. O que poderia, em determinadas circunstâncias, parecer o mal ou, ao menos, sem significado e sem valor, poderia, a um nível mais elevado da consciência, parecer uma fonte de bem.

Quando menino, Jung foi levado a encarar o lado escuro, impuro e naquele tempo inadmissível de Deus em uma visão que conceituou posteriormente como a sombra do Deus cristão. Bem mais tarde observou que nas profundezas do inconsciente, luz e sombra; bem e mal formam uma unidade paradoxal.

A noção de bem e mal seriam princípios de nosso julgamento ético, e como princípios, de ordem superior e mais poderosos que o julgamento pessoal, não podendo, portanto ser relativizados. Ao ser humano não seria permitido dar-se ao luxo de direcionar-se ao mal impunemente. Os humanos têm de lidar com o mal como tal. Em diferentes épocas de sua carreira, Jung foi duramente criticado por teólogos por sua insistência na realidade do mal. Não podemos saber o que o bem e o mal são em si mesmos, insistia ele, porém os percebemos como julgamentos e em relação à experiência. Ele os via não como fatos, mas como respostas humanas a fatos e, assim, em sua opinião, nenhum dos dois poderia ser considerado como diminuição ou privação do outro. Psicologicamente, aceitava ambos como 'igualmente reais'. O mal assume seu lugar como uma realidade efetiva e ameaçadora em oposição ao bem, uma realidade psicológica que se expressa simbolicamente tanto na tradição religiosa como o demônio, como na experiência pessoal.

A contribuição de Jung no campo da ética e da moralidade era do ponto de vista de um analista e psiquiatra: 'Por trás da ação de um homem não se encontra nem a opinião pública nem o código moral, mas

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a personalidade da qual ele ainda é inconsciente'. O problema da moral se apresenta psicologicamente quando uma pessoa encara a questão de saber no que ela pode se tornar em comparação com o que ela irá se tornar se determinadas atitudes forem mantidas, decisões tomadas ou ações estimuladas. Jung reconhece deste modo a orientação natural, francamente consequencialista de toda a criatura humana. Afirmava que a moralidade real não é invenção da sociedade, mas sim inerente às leis da vida. É o homem agindo com consciência de sua própria responsabilidade para consigo mesmo.

Contrastando com o superego Freudiano, Jung sugeria que era o princípio de individualidade inato que compele toda pessoa a fazer julgamentos morais em concordância consigo própria. A responsabilidade primária com o ego, por um lado, e, por outro, as necessidades do Eu integral, relacionadas àquilo que este tem por destino se tornar é capaz de fazer as mais difíceis solicitações. Tais apelos pareceriam ter pouca ou nenhuma relação com o convencionado nos meios sociais, contudo manteriam equilíbrio com eles.

A capitulação, a renúncia e o sacrifício consciente do ego em prol das necessidades do Eu, aparentemente não traz uma satisfação exterior pessoal e imediata, mas 'funciona', usando a expressão de Jung.

Qualquer encontro com um arquétipo apresenta um problema moral. Jung parece dizer ser possível dizer um não ou ao contrário, agir em conformidade ao clamor do Self . Porém, tentar ignorar ou negar o Self seria imoral, porque nega o único potencial de alguém para ser.

Jung é de opinião que o que faz os grandes homens e a diferença entre eles está no que conhecem deles mesmos e nas coisas que ocorrem em seu interior.

'Precisamos de maior entendimento do homem; da natureza

humana. O único perigo real existe em nós mesmos e não temos consciência disto; não sabemos nada do homem.'

A natureza não cria métodos de extermínio em massa ou de destruição do meio vital. A natureza não os constrói ou aciona. A natureza não delega poder a poucos indivíduos para decidir a existência

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de todos e de tudo. 'Somos o maior perigo! A psique é o maior perigo! Quão importante é saber sobre ela! Mas não sabemos nada sobre ela!'

O Eu é meramente uma palavra que descreve a totalidade da

personalidade, mas a personalidade total de um homem é inalcançável. Sua consciência pode ser descrita, mas seu mundo inconsciente não, porque do inconsciente nada se saberia realmente. Não conhecemos nossa personalidade inconsciente; temos apenas pistas e certas ideias. Não se pode dizer onde termina o homem.

De acordo com Jung, nós necessitamos desenvolver o homem espiritual interior. O indivíduo único cujo tesouro está oculto nos símbolos de nossa tradição mitológica e em nossa mente inconsciente.

'...Não vem o Reino de Deus com uma visível aparência... Nem

dirão: Ei-lo aqui! Ou: Lá está! Porque o Reino de Deus está no meio de vós.' Lucas 17: 20-21. João 10:30. João 14:28. Mateus 11:28-30. João 10:34.

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A ética evolucionária. Agindo em conformidade com a história.

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10 A ética evolucionária. Agindo em conformidade com a

história.

A Ética Evolucionária tem sua origem, a rigor, com Charles

Darwin (1809-1882). Graças às suas observações, possibilitadas por suas viagens pelo planeta, foi desenvolvida a Teoria da Evolução a qual hoje está sobejamente comprovada. As bases de tal teoria são simples: a cada geração surge um certo grau de variação entre os indivíduos de uma dada espécie. Isto é, irmãos não são normalmente rigorosamente semelhantes entre si, de modo que indivíduos de uma mesma espécie apresentam ligeiras variações entre eles. Tais variações tendem a ser transmitidas para as próximas gerações. Os portadores de variações que num determinado meio e conjuntura se mostram mais favoráveis à sobrevivência e reprodução tendem a predominar e se estabelecer ao longo do tempo como maioria. Ou seja, as características favoráveis à sobrevivência tendem a permanecer graças à maior reprodução. Já as características desfavoráveis, por sua vez, tendem a desaparecer. Com isto as características das espécies são variáveis ao longo do tempo, conforme as variações ambientais, isolamento geográfico, colonização de novos territórios e outras razões. Por fim, o acúmulo de tais variações termina por fazer surgir novas espécies.

Em termos estritamente biológicos, pelos conhecimentos que se tem hoje, a evolução é explicada pelo mecanismo da mutação gênica e da transmissão hereditária.

Na época de Darwin, a ideia do Criacionismo era fortíssima e questão de dogma religioso indiscutível no mundo ocidental. Por tal concepção, todas as espécies do planeta surgiram numa mesma semana, que os "especialistas" localizam como tendo ocorrido a cerca de 6.000 anos atrás. Interessante observar que ainda hoje existem Criacionistas ferrenhos, o que permite inferir a força de tal concepção quando da descoberta efetuada por Darwin.

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É sabido que desde o início, o autor percebeu a aplicabilidade de sua descoberta ao ser humano, e ao ser humano não somente por sua estrutura corpórea, como também psicológica e comportamental. Ou seja, a influência do mecanismo evolucionário na alma e na ética de cada um de nós. No entanto, devido às resistências esperadas e às suas responsabilidades e conflitos interiores, num primeiro momento, a Teoria da Evolução foi divulgada apenas numa abordagem genérica para espécies não humanas. Assim, a partir de estudos iniciados em 1838, publicou 21 anos após a 'Origem das Espécies', obra que teve sua primeira edição esgotada em apenas um dia. Somente após outros 12 anos, em 1871, mostrou a abrangência da teoria aos aspectos estritamente biológicos da espécie humana, pela publicação da obra 'A Descendência Humana'. Nela demonstra o parentesco inegável entre o homem e os demais primatas, principalmente aqueles africanos de grande porte. Desta forma inferiu corretamente aquilo que a paleontologia e a genética atualmente comprovam como verdadeiro: que nossa espécie surgiu no continente africano, a partir de um ancestral comum ao homem e aos demais primatas antropóides (chimpanzé, gorila...).

Há muito, a evolução biológica e inclusive humana é comprovada como fato concreto e as ideias de Darwin de modo geral confirmadas. Em 1942, Julian Huxley publica 'Evolução: a síntese moderna.' Nesta obra, trás a Teoria de Darwin fundamentada pelos estudos de genética, paleontologia, zoologia, anatomia comparada e de outras áreas transmissoras do avanço científico até então. Tal confirmação das concepções darwinianas passaram a ser conhecidas como 'Darwinismo Renovado', ou 'Neo Darwinismo', ou ainda por 'Teoria Sintética da Evolução'.

Infelizmente parece ser regra geral que nossa espécie num primeiro momento faz muito mau uso dos avanços científicos que obtém. Isto ocorreu também com o conhecimento do processo evolucionário. Logo após a segunda publicação de Darwin, cientistas observaram que as raças aparentemente mais desenvolvidas do planeta eram as de origem europeia, digamos a branca ariana. As demais seriam

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raças evolutivamente inferiores, o que seria testemunhado devido a um desenvolvimento também inferior. Assim tornou-se científica a conclusão de que se a seleção natural é boa para a evolução da espécie, permitindo que apenas os mais aptos sobrevivessem, dever-se-ia suprimir políticas sociais de ajuda a pobres, fracos, doentes, menos capazes, deixando prevalecer os mecanismos de competição sem restrições, de modo que os mais fortes, competitivos e empreendedores fossem favorecidos. Observou-se também que tais raças pretensamente inferiores eram aquelas que tinham maior capacidade reprodutiva (que por sinal é um critério positivo na avaliação de superioridade evolucionária). Como conclusão, também científica, tal fato fazia concluir que as raças supostamente superiores (que se reproduziam menos) tendem a desaparecer em favor daquelas pretensamente inferiores (que se reproduzem em maior número).

Tais conclusões, oriundas dos homens de ciência da época, levou ao estabelecimento, velado num primeiro momento, de políticas artificiais de auxílio ao processo evolucionário humano, por meio de técnicas grosseiras de seleção artificial, análogas àquelas que os homens desde há muito executavam com espécies vegetais e animais (por exemplo, cães e pombos). Tal movimento se estabeleceu com força num primeiro momento nos EUA. Aí se principiou a esterilizar 'anormais', como por exemplo, doentes mentais. Tais ideias justificaram também em parte a segregação racial neste e em outros países dominados por povos de origem europeia. Rapidamente tais concepções científicas se estabeleceram também fortemente na Alemanha, fazendo surgir o movimento da Eugenia ou da 'Raça Pura'. Doentes mentais, ciganos, homossexuais, semitas, foram paulatinamente conduzidos ao extermínio. Tal assassinato generalizado foi considerado por longo tempo tolerável ou justificável, com a manutenção da neutralidade internacional, por estar em sintonia com os conhecimentos científicos então em vigor.

O horror devido ao extermínio em massa fez surgir após a Segunda Guerra Mundial um movimento contrário, de demonização do conceito de subespécie e de raça humana, por temor de vir a justificar o recrudescimento de práticas racistas. Censura tem sido executada ao

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pensamento pseudocientífico concernente a este tema de nosso passado recente. Tanto é que, como ilustração, há até pelo menos dois anos atrás, os textos concernentes a isto, existentes na Biblioteca Pública do Paraná, só podiam ser consultados por autorização expressa da direção ou por mandato judicial.

A ideia de Eugenia apresenta várias falhas lógicas. A fertilidade reprodutiva denota uma vantagem para a sobrevivência, e portanto, é um aspecto positivo do ponto de vista evolucionário. O conceito de que uma raça humana seja superior à outra é no mínimo muito relativo. Neste aspecto, pesquisa recente demonstra que a percepção interior de felicidade e realização dos povos costuma ser inversamente proporcional ao assim considerado progresso social, econômico e cultural. As maiores taxas de suicídio são observadas nos países e classes prósperas, e muitos dos indivíduos considerados pelos padrões atuais como bem sucedidos tornam sua existência tolerável pelo uso de medicamentos psicoativos.

Por sua vez a diversidade de raças é o que garante a sobrevivência de uma espécie e historicamente se observa que é a diversidade de espécies que tem garantido a manutenção exuberante da vida sobre o planeta. Ou seja, as variações entre os grupos de indivíduos é uma garantia de existência, frente à mutabilidade das condições ambientais e conjunturais, facilmente observável ao longo da história. Ainda podemos observar que indivíduos portadores de características significativamente distintas, num prazo curto do ponto de vista evolutivo, de uns poucos milhões de anos, são igualmente aptos e capazes de sobreviver num mesmo meio e numa mesma conjuntura. Ou seja, a estrada evolutiva não é única, mas apresenta inúmeros caminhos alternativos. Neste sentido, Darwin demonstrou que os organismos bem adaptados a um meio, apresentando boas características de reprodução e sobrevivência, permanecem a existir em tal ambiente. Como consequência, podemos observar em um mesmo local, milhares de diferentes espécies e muitos bilhões de diferentes indivíduos, que costumamos taxar de menos evoluídos, mais fracos, menos perfeitos, etc. Digno de nota é o fato que são justamente tais espécies e indivíduos considerados menos evoluídos os que sobrevivem em situações extremas.

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Apesar de comprovada, ainda há muita resistência ao reconhecimento da evolução da estrutura física humana. No entanto resistência muito maior e mesmo desinformação, intencional ou não, se observa ao reconhecimento da relação entre os mecanismos evolucionários em ação multimilionar e o comportamento humano na atualidade.

Em 1975, Edward O. Wilson publica 'Sociobiologia: a nova síntese'. Na obra propõe o estudo do comportamento dos organismos desde um ponto de vista Darwinista e a integração deste estudo com outros ramos da ciência, em especial com a Etologia (Biologia do comportamento, fundada por Nikolas Tinbergen e Konrad Lorenz) e a Ecologia, que pretende o estudo das múltiplas relações entre os organismos e seus ambientes. Também nesta obra sustenta a aplicação dos modelos que explicam o comportamento social dos animais ao estudo do comportamento social humano. Ou seja, estabelece-se assim a ligação formal entre a Lei da Evolução e a Ética, visto que sabemos que as questões éticas tratam especificamente das atitudes que os indivíduos executam nas suas relações com os outros.

A concepção da evolução permite explicar o comportamento humano em diferentes circunstâncias, bem como a origem dos valores que o balizam. Neste sentido, a Ética Evolucionária é uma teoria da Metaética, ou seja, a análise do que está além ou por detrás da conduta humana. Ou seja, explica a origem, a estrutura, o funcionamento e o comportamento dos seres vivos, inclusive o homem. Em 1978, ainda Edward O. Wilson publica 'Da Natureza Humana', onde amplia e aprofunda o estudo do comportamento humano.

Dentre os traços marcantes de origem evolutiva, temos o da sexualidade, o da autopreservação, a agressividade ou egoísmo e o altruísmo.

Tanto a força da sexualidade quanto a da agressividade já haviam sido observadas por Freud, residentes nas profundezas do inconsciente de todos nós.

A sexualidade é muito facilmente explicável do ponto de vista evolucionário, visto que os organismos que não se reproduzem

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simplesmente não se perpetuam de geração para geração. Do mesmo modo os indivíduos necessitam sobreviver para existir. Basicamente a sobrevivência de um dado indivíduo é essencial somente até a ocasião da reprodução. Em espécies mais complexas, até o momento no qual a prole possa sobreviver por si.

Nas espécies sexuadas, inclusive humanas, a busca de parceiros mais favoráveis à sobrevivência da prole e à geração de uma descendência de maior aptidão é procedimento padrão. A atração por parceiros simétricos (beleza), saudáveis, de seios grandes, quadris largos,... é um exemplo.

Quanto à agressividade e ao egoísmo existem vários níveis de justificação. Os pais tem que apresentá-la em certa medida no acasalamento e também posteriormente para garantir a sobrevivência de sua prole dentro do grupo. As fêmeas devem tê-la para com os filhos para promover o desmame e a autonomia. Já os indivíduos de nossa espécie se viam forçados a matar para comer e portanto, subsistir. O poder dentro do grupo, tanto das fêmeas quanto dos machos dominantes, permitia um maior número e uma maior opção de parceiros e a geração de filhos mais numerosos e mais aptos. Tal poder exigia a agressividade e o egoísmo para a sua manutenção e a agressividade e o egoísmo para a manutenção da estrutura social e comportamental vigente. Por fim nossa espécie ao longo da história conseguiu sobreviver, não só fugindo das situações de risco, como também superando-as, graças à agressividade que possibilitava a realização de contra-ataques e o extermínio de nossos predadores.

Historicamente, como já mencionamos, surgimos como tipo há cerca de 2 milhões de anos, na região central da África, que, inicialmente uma exuberante selva, se transformou por modificações climáticas em savanas, levando-nos de arborícolas a bípedes. Nossa estrutura social primitiva era a de 15 a 20 indivíduos de uma mesma família. Neste contexto há mais um motivo para a agressividade humana que é a relativa à defesa de território. Uma gleba de terra se mostrava essencial à sobrevivência para fornecer água e alimento através da coleta ou da caça. Enquanto a proteção e cooperação com os próximos, os indivíduos do

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mesmo grupo, era essencial, como discutiremos adiante, a agressividade, o egoísmo e a competição para com os de outras coletividades se mostrava útil e perdurável hereditariamente.

Todos os motivos acima enumerados nos tornam uma espécie com um componente inato de egoísmo.

Guerras são técnicas de agressão organizadas e historicamente endêmicas em nossa espécie, desde os primórdios, entre os bandos de coletores até o presente.

Segundo Konrad Lorenz a agressividade humana necessita ser aliviada de algum modo, por exemplo, através de esportes de competição.

Interessante observar que em condições naturais o instinto de agressividade é contrabalançado com o instinto de sobrevivência, pois a raiva e mais especificamente o combate potencialmente geram dano, do qual temos medo. Neste sentido a ameaça, a intimidação e em outros níveis, o fingimento e a dissimulação, com pouca agressão física efetiva, podem ser mais favorecidos pela seleção. Em outras palavras, estratégias intermediárias tendem a ser mais eficazes e prevalecer, em relação a estratégias extremas.

Paradoxalmente ao que discutimos quanto ao egoísmo, a investigação científica mostra que o altruísmo é uma realidade biológica, também fruto da evolução. Tal componente é uma das formas de comportamento mais ampla e sistematicamente estudadas pela Sociobiologia.

Um organismo altruísta revela-se por vezes um ser mais bem sucedido para disseminar um maior número de cópias suas, que por sua vez tenderão a continuar a apresentar comportamentos altruístas.

Como exemplo, podemos citar o 'altruísmo de parentesco' onde o comportamento de um indivíduo que favoreça a sobrevivência e reprodução de parentes próximos é o selecionado e é o que tende a perdurar, pois pela hereditariedade se tornará predominante àquele comportamento que pretenda a sobrevivência apenas do próprio indivíduo considerado. Assim, aquela conduta na qual um indivíduo do grupo se arrisque e eventualmente morra ou deixe de se reproduzir, mas

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que permita que irmãos – os nossos geneticamente mais semelhantes - sobrevivam e se reproduzam, é o favorecido pela seleção natural.

Do mesmo modo um grupo humano com traços altruístas e de conduta cooperativa tende a se perpetuar e crescer enquanto que aquele, onde os indivíduos são egoístas e competitivos entre si, se dissolve ou diminui.

Outros comportamentos que a nossa espécie está propensa a ter são demonstrações concretas de simpatia para com aqueles que concretamente beneficiam outros e demonstrações concretas de aversão àqueles que causam danos a outros. Atitudes de favorecimento para com indivíduos com pontos de semelhança e de rejeição aos diferentes, mesmo a partir de muito reduzidos dados da análise de diferenças e semelhanças e mesmo que tais informações sejam de ordem sutil. Ainda uma propensão a atos de simpatia aos agentes que punem outros agentes causadores de danos. Ou seja, a tendência à vingança é igualmente de origem evolutiva e salvo melhor entendimento o mesmo se poderá afirmar de todos os vícios e virtudes do ser humano.

A presença destas e outras tendências comportamentais, estudadas pela Sociobiologia, se deve a assim chamada 'Eficácia Darwinista', que é a capacidade de uma característica se disseminar e se perpetuar em uma dada população.

Talvez só o fato de entendermos quais são as nossas tendências

comportamentais e o mecanismo como elas se estabelecem e como podem ser explicadas, nos torne mais aptos a gerenciar os costumes por meio da razão.

A Teoria da Evolução estabeleceu provavelmente de forma definitiva uma abordagem na qual as reflexões éticas até então levadas a cabo principalmente de forma especulativa, retornassem a ser influenciadas pela inferência, na observação e experimentação. A Sociobiologia – o entendimento do comportamento humano por mecanismos biológicos – afasta uma parte da subjetividade no processo de nosso autoconhecimento. O entendimento dos motivos pelos quais os diferentes comportamentos surgem num determinado indivíduo,

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auxilia-nos em nosso processo pessoal de autoexploração, bem como pode amenizar um pouco as cargas psicológicas de culpa, erro, pecado, estabelecidas há centenas de anos por algumas religiões ocidentais.

Por outro lado a Ética Evolucionária é um conhecimento científico recente, e como já mencionamos aqui, frequentemente nossa espécie faz um mau uso inicial do seu conhecimento novo.

Neste sentido é sumamente importante salientar que o Evolucionismo como acima exposto, baseado na seleção natural, não permite o estabelecimento de qualquer obrigatoriedade comportamental. Explica a gênese de instintos que fazem haver tendência a certas atitudes específicas. Tais tendências se manifestam, influenciadas pelo ambiente e conforme o desenvolvimento e a história de cada indivíduo.

A título de conclusão deste breve capítulo e pelo que vimos,

temos uma tendência hereditária a ações egoístas para com os distantes e atitudes altruístas para com os que nos são de algum modo próximos. Aproximarmo-nos dos parecidos e rejeitarmos os diferentes. Sendo a ética a prática do bem, a disseminação e a intensificação de comportamentos éticos se dá na medida que os considerados distantes e diferentes passem a ser vistos como próximos e iguais. Na medida que nos conscientizemos sermos todos nós, os cerca de 7 bilhões de seres humanos sobre o planeta, uma só família, uma única fraternidade. Que desenvolvamos a tolerância. Que a visão das diferenças tome um lugar secundário em relação à observação das intensas semelhanças entre todos nós.

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Feliz por ser ético.

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Feliz por ser ético.

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A ética e a moral propostas por Jesus.

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11 A ética e a moral propostas por Jesus.

Os ensinos ministrados por Jesus referem-se em grande medida,

ao comportamento e tal fato justifica serem considerados aqui. Seus ensinos que tratam da conduta estão essencialmente inseridos no campo da moral, segundo a classificação já efetuada, e não da ética, no sentido que estão apresentados sem a preocupação de maiores explicações a nível racional. Por sua vez me parece mais adequado neste curso manter o enfoque principal na ética e na racionalidade. Em acréscimo, também já manifestamos o conceito de que pensamentos oriundos de esferas tais como da espiritualidade e da religião se inserem no campo da ética, desde que racionalmente justificáveis.

Interessante relembrar o fato de que a população brasileira e mundial tem de modo geral, suas atitudes fortemente influenciadas pela religião. Também de modo geral, podemos dizer que é das religiões a origem básica das regras morais. Através da pesquisa realizada pela Enciclopédia Britânica em 2005, a maioria da população mundial (33,06%) declara-se como seguidora de um dos diversos ramos do cristianismo. Segundo o censo de 2010, realizado pelo IBGE, 86,8% da população brasileira declara-se cristã.

Tendo em vista o exposto, fiz o esforço de procurar transmitir os pontos que me parecem mais importantes das orientações deste expoente de nossa espécie, o que penso justificar-se-ia por si mesmo, como também procurar analisar e discutir e justificar racionalmente, na medida de minhas limitações, suas orientações. Como já comentado, as propostas morais, defensáveis pela lógica e pela indução, passam também à esfera da ética.

Fontes não bíblicas esparsas confirmam que Jesus é um

personagem histórico bem como uma liderança judia que foi julgada e executada. As demais fontes são as bíblicas do Novo Testamento, além

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A ética e a moral propostas por Jesus.

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de inúmeras consideradas "não inspiradas" pelas lideranças cristãs, séculos após seu advento, rotuladas costumeiramente pelo termo "apócrifas".

Para a elaboração deste trabalho analisamos quatro textos que nos parecem mais pertinentes e fundamentais: O evangelho, ou boa nova de João, essencialmente místico, e as boas novas de Marcos, Lucas e Mateus, descritivas, sendo a última a mais completa. Por sua vez, estes três últimos textos, segundo parte dos estudiosos do assunto, tem sua origem em dois outros mais primitivos, atualmente perdidos e conhecidos em alguns meios, pelos nomes de Proto-Evangelho de Marcos e o Manuscrito Q. Se considera a primeira redação destes quatro textos, como tendo ocorrido nos séculos I a III d.C.

Salvo melhor juízo, a maior parte dos demais textos do Novo Testamento, refletem as práticas e os costumes das diversas comunidades cristãs e os ensinamentos veiculados por suas lideranças. É oportuno destacar que a partir do Imperador Constantino, por volta de 300 d.C., a pluralidade de interpretações quanto à doutrina do Mestre foi proibida. Até então prevalecia uma interpretação mais ou menos livre quanto aos seus ensinamentos. No entanto, a partir daquela data, apenas uma linha de pensamento foi tolerada, sendo as demais, de uma ou outra forma, suprimidas ou pelo menos perseguida. Assassinatos, coerções, queima de textos antigos foram algumas das medidas efetuadas em prol desta causa. Os cristãos discordantes da linha oficial estabelecida pelo Império Romano, foram perseguidos e eventualmente dizimados por heresia. Os não cristãos foram perseguidos e eventualmente dizimados por paganismo.

Por consequência e a princípio, o veiculado no Novo Testamento seria apenas o que não contradiz tal linha considerada oficial e a "correta", com exceções esparsas encontradas nos textos que possivelmente já não poderiam ser censurados, sob risco de extinguir o próprio fundamento bibliográfico da religião em fase de consolidação. (Para maiores esclarecimentos quanto ao acima exposto, o leitor tem a opção de consultar qualquer livro redigido por autor competente e imparcial, que trate da história do cristianismo.)

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Jesus é reconhecido como oriundo de Nazaré, da região da

Galiléia. (Mt 21,11) Entre a região da Galiléia ao norte e a Judéia ao sul, onde se encontra Jerusalém, tínhamos na época de Jesus, a Samaria. A Samaria era ocupada por um povo diferente do povo judeu, com costumes, numa certa medida, distintos. Na região da Galiléia existiam cidades com forte influência grega. Segundo alguns apócrifos, nestas cidades o pai de Jesus, juntamente com seus irmãos, exerciam com frequência a profissão de construtores. Sendo da Galiléia, Jesus era um cidadão do "interior" e como interiorano, facilmente reconhecido através do sotaque por aqueles da metrópole.

O ponto central da orientação para a conduta humana efetuada

por Jesus me parece um bom ponto de partida para este texto e felizmente há o relato literal feito por ele quanto a isto. Perguntado quanto qual seria o maior mandamento da Lei, ele respondeu: "Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é tão importante como o primeiro: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Nestes dois mandamentos se resume toda a Lei e os Profetas." (Mt 22, 37-40; Mc 12, 29-31; Lc 10,27)

Para compreender racionalmente esta orientação é essencial

entender por meio da razão o verbo amar, que tal como os verbos em geral, refere-se à ações. Ou seja, responder à pergunta, o que significa amar, da melhor maneira possível.

Para procurar entender o que amar significa, vamos analisar os sentimentos e as atitudes de algumas pessoas arquetípicas (indivíduos padrão) em relação a outras, pois amar se relaciona basicamente a um algo que é o objeto deste amor.

É bem clássica a consideração de que não há amor maior e mais

puro do que a de uma mãe por seu filho. Por que afirmamos isto ou quais são as atitudes – comportamentos - desta mãe que nos fazem

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efetuar tal afirmação? Em síntese, uma mãe é capaz de se expor e suportar qualquer sofrimento em favor da prole. Tal comportamento é observável inclusive num sem número de espécies animais. Tal sofrimento é abraçado em prol do bem, como a própria sobrevivência ou em alguma medida, em nome da felicidade de tais pósteros. Mais uma vez, em síntese, uma mãe faz bem ao seu filho, inclusive, se necessário sofrendo, e eventualmente ao preço de sua própria vida.

Analisemos agora o sentimento que envolve um casal. Para a

primeira aproximação há normalmente uma forte atração, costumeiramente calcada nas características físicas de cada um. A ciência atual tem demonstrado neste sentido a influência inconsciente de qualidades relevantes ao interesse reprodutivo, como normalidade, simetria, características estruturais (por exemplo, quadris largos e seios grandes) e até mesmo o cheiro (ao que parece numa análise automática inconsciente de compatibilidade genética). Outras características também são mais ou menos inconscientemente analisadas como tom de voz e o desenvolvimento muscular. A maioria de nós tem experiência dos passos seguintes: aproximação e alguma forma de exibicionismo, o tocar (por exemplo, pegar nas mãos e abraçar), o beijar, o apalpar o corpo e suas zonas erógenas, e o fazer sexo.

Nesta fase pode-se observar que o interesse de cada um resume-se de modo simplificado à busca egoísta por prazer. Ao sentimento associado a esta busca, podemos denominar "paixão". Tal busca pode ser considerada a intenção da realização de um importante e intenso bem para si mesmo.

Caso ambos tenham obtido um bem satisfatório e haja a possibilidade que este se repita e aumente é bem possível que novos encontros ocorram. Associada à dinâmica da paixão, outros bens podem ser acrescentados. O parceiro pode nos proporcionar alegrias, novas experiências, novos conhecimentos...

De qualquer modo surge um novo impulso no casal, que é o desejo de "ficar junto". É mais ou menos clássica a postura dos namorados em se tornarem inseparáveis, permanecendo sempre que

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possível e adequado um ao lado do outro, tanto no cotidiano como em viagens.

Por outro lado, desde a fase que denominamos por paixão, pode começar a ocorrer um gradual enriquecimento dos sentimentos: cada indivíduo não busca agora apenas a sua felicidade e seu prazer, mas também gradualmente o prazer e a felicidade do outro. Ou seja, cada um não busca agora apenas o seu bem, mas também o bem do outro.

Por fim, observemos o que sente um filho em relação a sua mãe.

Tal sentimento, quem sabe melhor denominado como impulso, pode ser visto de modo mais isento e puro em inumeráveis outras espécies animais. Os filhotes no que nascem se agarram desesperadamente às suas mães ou delas ficam o mais próximo possível. Tal conduta é essencial para sua sobrevivência. Do mesmo modo, se é que podemos dizer que um bebê quer algo, é o de estar o mais próximo possível de sua genitora. Tal proximidade pretende obvia e exclusivamente o seu próprio bem.

Tal filho, numa etapa já bem mais avançada de seu desenvolvimento pode começar a ansiar não só por seu próprio bem estar, mas também pelo bem de sua genitora. Permanece, porém, normalmente constante a vontade de não se afastar da mãe e com ela manter vínculo.

Pelo exposto podemos concluir que aquilo que chamamos por

amor é um sentimento complexo, com duas características fundamentais: uma essencialmente passiva que é a de desejar permanecer junto; unido. Outra basicamente ativa, de fazer o bem ao outro. Tanto uma como a outra forma de amor não afasta necessariamente a busca do bem a si mesmo. Em situação extrema, no entanto, como podemos observar no comportamento de uma mãe em relação ao seu filho, a ação de fazer o bem se torna prioritária em relação àquela de recebê-lo.

O relatado acima é verdadeiro e facilmente observável no presente, e obviamente na época de Jesus. Desta forma a sua recomendação moral pode ser reescrita:

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"Permaneceis unidos, em união, em comunhão e fazeis o bem ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua mente. Permaneceis unidos, em união, em comunhão e fazeis o bem ao teu próximo como a ti mesmo."

A primeira frase é uma questão que envolve comportamento, mas também a crença em Deus. Não iremos analisá-la aqui. Entretanto é oportuno comentar que o único modo de procurar fazer bem a um Ser Onipotente e Pleno é de modo indireto, fazendo bem àqueles que este Ser ama. Passemos a observar a segunda afirmação.

Pela leitura da parábola conhecida como a do bom samaritano,

pode-se entender que o termo "próximo" se refira a qualquer pessoa que estiver dentro de nossa área de atuação, independente de qualquer tipo de divergência. (Lc 10,29-37)

Tal noção de que próximos sejam todos aqueles ao nosso alcance é auxiliada pela recomendação de estarmos unidos com todos. Ou seja, sermos solidários ou termos por todos, empatia.

Em outro texto já mostramos que a principal linha de

pensamento ético tem como seu postulado fundamental o de fazer o bem. A segunda das afirmações de Jesus reescrita acima implica diretamente, frente a isto, sua recomendação a sermos éticos fazendo o bem ao outro como a nós mesmos.

Porém o que é bem? É razoável afirmar que em muitos livros de filosofia se debate tal questão. Não me parece que se tenha chegado a uma base de consenso a respeito disto. Por outro lado, em termos práticos, cada um de nós tem um conceito formado do que é bom ou mau para si mesmo. A grande maioria das pessoas considera, por exemplo, ser mal ter fome ou sede e bom ser saudável, de modo que me parece o critério mais objetivo de fazer o bem, o se fazer aquilo que julgamos um bem a nós mesmos. Ou seja, por exemplo, se virmos alguém com sede, já que nós consideramos a sede ruim para nós, aplacar tal sede na medida de nossas limitações. (Me parece oportuno confirmar se o outro efetivamente deseja ter sua sede saciada.)

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Ao que tudo indica esta era a linha de pensamento de Jesus, pois no contexto da explicação de como o "Pai que está nos céus" se comporta, ele fez a recomendação com palavras tais como: "Portanto, tudo o que quereis que os outros vos façam, fazei o mesmo também vós a eles: nisso está a Lei e os Profetas." (Mt 7,12) Ou então: "Fazei aos outros como quereis que os outros vos façam." (Lc 6,31)

Assim chegamos a uma redação mais esclarecida do princípio

fundamental da ética proposta por Jesus: Fazer ao outro o que gostaria que fosse feito a mim, caso eu me encontrasse na mesma situação que ele.

Se analisarmos criticamente o que efetuamos até aqui, me parece

que concluiremos que apenas procuramos entender melhor o significado de termos; palavras. Também me parece que conseguimos entender um pouco melhor a orientação fundamental de Jesus. No entanto, por falta de justificativa racional ainda nos encontramos no campo da moral. Não julgo que cometo algum erro, demonstrando agora que este também é um princípio ético – racional – através do emprego das técnicas de dedução e da indução.

O raciocínio dedutivo baseia-se na lógica. Por ela, duas ou mais afirmações verdadeiras chegam a uma conclusão, uma nova afirmação, verdadeira, desde que tais afirmações, premissas sejam verdadeiras e de que tais premissas acarretem logicamente na conclusão. Ou seja, a partir de duas premissas, se elas acarretam logicamente na conclusão, dizemos que o raciocínio é válido e caso as premissas sejam verdadeiras, consideramos a conclusão também verdadeira.

Passemos à argumentação: Premissa 1: "Pessoas normais - racionalmente orientadas e sadias

- almejam o bem para si mesmas." Talvez pudéssemos considerar a restrição: "racionalmente

orientadas e sadias" até mesmo um excesso de rigor em nossa argumentação, pois até anormais ou doentes, quando ao nosso ver, cometem loucuras contra si, as estão considerando um bem.

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Premissa 2: "A concepção do que é 'bem' é variável de um indivíduo para outro."

Por exemplo, alguns consideram um bem comer carne e outros não.

Conclusão 1: "A conceituação individual de bem consiste naquilo que é almejado."

Salvo melhor juízo, tais premissas acarretam logicamente na conclusão, tornando o raciocínio válido. Salvo melhor juízo também, tais premissas são verdadeiras, de modo que a conclusão também o é.

Passemos a uma próxima dedução: Façamos uma nova premissa, que é aquela que comprovamos no

raciocínio anterior: Conclusão 1 = Premissa 3: "A concepção individual de bem

consiste naquilo que é almejado." Acrescentemos agora uma nova premissa: Premissa 4: "O essencial da ética (, comportamento individual

adequado, ) é fazer o bem (a princípio ao outro). Tive a oportunidade de ouvir tal afirmação diretamente do

professor Rosala Garzuze, eminente docente de ética e de outras disciplinas da Universidade Federal do Paraná. Pelos textos já apresentados também já informamos que "fazer o bem" é considerado o fundamento mais consistente de toda a ética, pela enorme maioria dos estudiosos do assunto.

Podemos chegar então à Conclusão 2: "(Um modo de exprimir) o essencial da ética é ' fazer ao outro o que é almejado para o próprio individuo'"

É nosso entendimento, mais uma vez, que as premissas acarretam logicamente na conclusão, e como elas são verdadeiras, a conclusão também o é.

Como a última conclusão é a expressão da orientação moral fundamental efetuada por Jesus e como nos parece que está racionalmente comprovada, podemos afirmar que também é uma expressão fundamental do campo da ética propriamente dita.

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No entanto o leitor observará eventualmente a necessidade de uma complementação, referente à inserção do conceito de bem "a princípio ao outro".

Para tanto é nossa opinião a utilidade do raciocínio indutivo frente à ética evolucionária (ou natural).

O raciocínio indutivo é aquele que permite obterem-se conclusões provavelmente verdadeiras a partir da observação de fatos objetivos e é muito empregado numa série de ciências, tal como as de engenharia. É ele que nos permite considerar que se algo é verdadeiro em um determinado laboratório, provavelmente o será em todos os demais. Ou ainda, se um equipamento ou processo projetado ou desenvolvido com uma determinada técnica cumpre seus objetivos, outros do mesmo modo projetados ou desenvolvidos também o farão. É em síntese aquele que se baseia na observação.

A ética evolucionária consiste na observação da seleção e consolidação de comportamentos de seres vivos em geral e do homem em particular devido ao processo evolucionário.

No texto por nós elaborado sobre a ética evolucionária, procuramos mostrar que o altruísmo é um comportamento que vem se estabelecendo ao longo das eras nos seres vivos que vivem em coletividade, inclusive o próprio ser humano. O altruísmo individual favorece a sobrevivência dos grupos humanos e se consolida e desenvolve de geração em geração. Intensifica-se como instinto ou impulso inconsciente do ser. Tal impulso se constitui numa necessidade interior fundamental para o bem estar, a realização e a felicidade do próprio indivíduo que a pratica. Sendo a ética o estudo do comportamento adequado ao indivíduo e como o adequado a ele é o seu bem, sua realização e felicidade, justifica-se o porquê do fazer o bem ao outro. Em outros termos, fazer o bem ao outro atende um anseio fundamental do indivíduo; uma necessidade interior sua de ser útil, constituindo-se assim no bem também a si mesmo.

Fazer o bem ao outro é uma proposta vantajosa em relação àquela de fazer o bem exclusivamente a si mesmo. Num caso o benefício, se houver, é só daquele que pratica a ação. No outro, o benefício ocorre

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tanto para o agente da ação, quanto para o indivíduo foco do ato executado.

Outro ponto que me parece importante da ética de Jesus é a

recomendação de não julgar eticamente a ninguém. Isto pode ser lido no livro de Mateus (Mt 7,1-5) e também no de Lucas (Lc 6,37-42). "Não julgueis para não serdes julgados, porque com o julgamento com que julgardes sereis julgados e com a medida com que medirdes sereis medidos."

Quanto à justificativa de tal conselho frente à ética propriamente dita, já elaboramos um texto específico. Nele, dentre outros pontos, comentamos o pensamento de Kant quanto à motivação e o de Sócrates quanto à ignorância humana.

Com respeito à ideia de reciprocidade contida na recomendação, já comentamos também um ponto de vista a respeito da psicologia humana. Na tenra infância, os julgamentos nos são introduzidos pelo meio externo. Gradualmente formamos critérios adicionais de julgamento e penalização de forma autônoma, como que treinando o nosso juiz e carrasco interior (superego). Se o poder deste juiz sobre a vida dos demais é relativo, é bem claro que ninguém está mais sujeito a ele que o próprio indivíduo que o treinou. Em complementação, é interessante observar que na época de Jesus e também hoje, quem julga é também aquele que estabelece a pena e que providencia a execução da mesma.

Neste contexto nos parece estar também a recomendação de perdoar sempre a todos e a tudo, conforme Mt 18,21-22 e Lc 17,4 visto que não condenar é outra face de perdoar. É possível que possamos afirmar que o mesmo entendimento racional que nos permite não censurar eticamente a ninguém por qualquer atitude, acarreta em não desejarmos revanches nem guardarmos rancor. A propósito disto, como tem circulado nas redes sociais, guardar rancor de alguém é o mesmo que tomar veneno esperando que o outro morra.

Interessante observar que a moral mosaica defende, com a assim chamada lei do Talião (olho por olho, dente por dente...) a reciprocidade

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de males. Se considerarmos o perdão um bem, tal recomendação de Jesus pode ser encarada como a neutralização dos mesmos.

Já comentamos em outras oportunidades que ninguém pode se

considerar ético apenas em teoria. Ética é conduta adequada e conduta é ação. Este é claramente o pensamento de Jesus. "Pelos seus atos os haveis de reconhecer. Será que se colhem uvas de espinheiros, ou figos de urtigas? A árvore boa é que produz bons frutos, enquanto a árvore má é a que produz maus frutos." Mt 7,15-20 Mt 12,33 "...Todo aquele que põe em prática estas palavras é semelhante a um homem ajuizado, que constrói sua casa (a si mesmo) sobre a rocha." Mt 7,24-27 "Assim brilhe vossa Luz diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem a vosso Pai que está nos céus." Mt 5,16 "...Mais felizes são os que ouvem a palavra de Deus e a praticam." Lc 11,28.

Caridade é uma palavra originária do latim e se relaciona

diretamente à palavra amor. A beneficência é uma de suas facetas mais facilmente visíveis. A prática da caridade é amor ao próximo. Quanto a isto afirma Jesus: "Felizes os misericordiosos porque serão tratados com misericórdia." Mt 5,7 "...Vinde, benditos de meu Pai! Porque tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era um estrangeiro e me acolhestes. Estava nu e me vestistes, doente e me visitastes, na prisão e me viestes ver. Cada vez que fizestes isso a um dos menores desses meus irmãos, a mim o fizestes." Mt 25,31-46 "Dai aos outros e os outros vos retribuirão; derramarão em vosso avental uma boa medida, bem cheia, sacudida e transbordante. Porque com a medida com que medirdes sereis medidos." Lc 6,38.

Digno de nota é o fato que de acordo com Jesus, o valor absoluto da doação é irrelevante. Seu valor real é sim proporcional ao quanto se tem, conforme Lc 21,1-4. Interessante também observar que a maioria, senão a totalidade das religiões mundiais, defende a caridade como ponto importante de conduta.

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No passado e no presente vivemos numa perspectiva egoísta de vida. Almejamos que os outros nos façam coisas boas, mesmo considerando que pelas conclusões da ética evolucionária, nosso anseio inconsciente é o inverso. Ou seja, de sermos nós mesmos úteis aos demais. A postura de Jesus é a defesa do comportamento altruísta consciente, por meio da defesa do valor de servir. "Quem quiser fazer-se grande entre vós, será vosso servidor e quem quiser ser o primeiro dentre vós será o vosso empregado." Mt 20,24-28. "O maior dentre vós se faça vosso servidor. Quem se exaltar será humilhado e quem se humilhar será exaltado." Mt 23,11-12

Neste contexto o esforço produtivo humano pode ser encarado de dois modos. O primeiro como um trabalho; algo penoso e duro e cuja retribuição nunca é suficiente para recompensar o esforço que executamos em prol de nossos próprios interesses. A palavra trabalho vem do latim tripalium, que designava um instrumento de tortura, formado por três (tri) estacas agudas (palum). Esta palavra passou ao francês como travailler, que significa originariamente sofrer; sentir dor. . O segundo modo de encarar a questão, é considerar o esforço produtivo como uma prestação de serviço; como um servir ao outro e neste enfoque de esforço como uma dádiva ao outro, qualquer dádiva tem um enorme e indeterminado valor.

Nesta linha, transmitindo um pouco de minha experiência pessoal, o exercício do magistério visando interesses pessoais ocasiona um sofrimento insuportável. A mesma atividade, almejando sinceramente o bem de outros, leva a uma satisfação indescritível.

Alguns mandamentos do judaísmo foram destacados por Jesus.

Mais especificamente: não matar, não cometer adultério, não roubar, não proferir falso testemunho (mentir) e honrar pai e mãe. Tais regras facilmente se justificam através do princípio "fazer ao outro o que gostaríamos que fosse feito a nós mesmos, caso nos encontrássemos em situação semelhante". Ou melhor, se enquadra na base ética em sua forma passiva: "Não fazer o mal". Esta forma, por sua vez, gera um

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princípio também passivo: "não fazer ao outro, aquilo que não gostaríamos que fosse feito a nós mesmos".

Claramente uma pessoa normal não deseja ser assassinada, ou traída, ou roubada, ou enganada, ou ainda ser destratada e desconsiderada pelos filhos.

Cada um de nós tem sede de amor. Tal ponto também pode ser

explicado pela ética evolucionária, pois a tendência de um grupo humano é a de descartar os indivíduos indesejáveis. Todos nós tendemos a desejar sermos bem quistos e vivermos em harmonia com todos. Desta forma, podemos ler as recomendações de não matar o irmão. Mas também não odiá-lo. Não menosprezá-lo. Reconciliar-se com ele. Mt 5,21-26 Isto é, justamente o que almejamos para nós mesmos.

Há dois mil anos atrás no Oriente Médio, a sociedade tinha uma

estrutura fortemente patriarcal. As mulheres eram totalmente dependentes do pai e depois do marido. Desta forma, repudiar uma mulher, dando-lhe carta de divórcio, praticamente a condenava à miserabilidade e/ou à prostituição. Penso que neste fato está baseada a recomendação de não divorciar. Mt 5,31-32 Mt 19,1-9.

As fórmulas de comprometimento antigas tinham a estrutura: Se

eu fizer tal coisa, me aconteçam tais e tais coisas boas. Caso contrário, caso eu não as faça, me aconteçam tais e tais coisas ruins. Desta forma é uma estrutura que o próprio indivíduo impõe penas a si. No entanto o pensamento de Jesus se baseia fortemente no perdão, na não condenação e na não punição, como já mencionamos. Por outro lado podemos nos conceber como seres em contínua evolução e portanto, em contínua transformação. Consequentemente comportamentos passados tendem a ser modificados e aperfeiçoados. Uma fórmula de comprometimento tende assim mais a uma estagnação do que a uma evolução. Por fim, me parece fácil notar que com a dinâmica da vida, sujeita a contínuas modificações, jurar algo é o único e indispensável passo para se tornar perjuro.

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Estas reflexões me parecem justificar a recomendação de não fazer juramentos de forma alguma. Que vosso falar seja: sim, se for sim; não, se for não. Mt 5,33-35. De qualquer forma, juramentos praticamente já caíram em desuso na atualidade.

O orgulho pode ser considerado a raiz de todos os males

humanos. Orgulho é por definição considerar-se e crer-se mais, maior, mais importante que os demais. A crítica realizada por alguém tem sua origem em geral, no fato que este alguém considera sua opinião superior a do outro. O criticado se ofende basicamente porque considera que um indivíduo inferior o está questionando. Um exército invasor e/ou saqueador considera os interesses do seu povo mais importantes do que o do povo invadido ou pilhado. Um ladrão quer um determinado bem a despeito do querer do proprietário. Os conflitos religiosos surgem pela crença de que uma é superior a outra. A escravatura negra se justificou pelo conceito que o homem branco era superior ao homem negro. A exploração econômica e a concentração de riquezas, se estabelece pelo conceito da diferença de valor entre os homens.

O orgulhoso quando circula entre os demais, pensa consigo mesmo: me apreciem; contemplem a minha superioridade. Em geral não é isto que ocorre, quanto mais se considerarmos a flutuação das opiniões das sociedades ao longo do tempo. E neste fato talvez resida o maior sofrimento ao qual o orgulhoso esteja sujeito.

Ninguém dentro da normalidade ama qualquer forma de agressão,

quer seja física, emocional ou mental. Ninguém dentro da normalidade, diretamente envolvido numa guerra, ama a guerra. O nosso estado padrão para o bem estar e a felicidade é a ausência de conflitos. É a tranquilidade. Tal tranquilidade depende basicamente de nossa postura interior; de nossas próprias ações. Pelo menos na maior parte dos casos permanecemos numa zona de conflito porque assim desejamos. Se não há agente agressor não há conflito. O mesmo ocorre se não há resistência a este. Etimologicamente a palavra confito se origina do latim

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conflictus, particípio passado de confligere, formada por com (junto) e fligere (golpear, atacar).

Se todos amam a tranquilidade porque da discórdia? (Do latim discordia; dis = fora do cor = coração). Pelo que expusemos no parágrafo anterior, conflito e orgulho estão fortemente interrelacionados. É bem possível que uma linha de raciocínio similar seja a responsável pelo incentivo de Jesus à paz, à humildade e à mansidão. Felizes os mansos e humildes porque herdarão a terra da promessa. Mt 5,5 Felizes os promotores da Paz, porque serão chamados filhos de Deus. Mt 5,9

A comunicação é uma ação. É um procedimento. É uma conduta.

As palavras tem força: um líder político, como é fácil observar no presente e por meio da história, é capaz de mover multidões meramente através de seu discurso.

Na medida do bom senso, falamos o que pensamos e sentimos. No entanto, como ilustrado em outro texto, e recíproca é verdadeira. Terminamos por nos convencer daquilo que falamos. E na medida em que nos convencemos de algo, passamos a agir em conformidade com esta crença. Daí a importância das palavras e a origem provável do incentivo efetuado por Jesus: 'Os homens darão conta no dia do Juízo, de toda a palavra inútil ou má que tiverem pronunciado. Conforme as tuas palavras serás declarado justo ou condenado.' Mt 12,34-37

A exploração da relação existente entre nosso mundo interior,

subjetivo e o mundo exterior merece a elaboração, ao menos, de todo um capítulo. Nossos órgãos de sentidos captam os estímulos oriundos do mundo exterior, porém toda a interpretação de tais estímulos é interior. Nada do captado tem intrinsecamente algum conteúdo emocional ou alguma base racional de valor.

Sendo assim, o estudo da natureza de nossas percepções subjetivas de uma realidade essencialmente neutra, apresenta a grande utilidade de nos permitir efetuar um diagnóstico daquilo que consideramos o nosso próprio ser, isto é, da realidade interna na qual vivemos. Possivelmente para nos fornecer uma ferramenta útil de

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diagnóstico de nós mesmos, Jesus há cerca de 2000 anos, nos chama a atenção para isto. Se teus olhos estão bons (veem o lado bom dos acontecimentos; as coisas de modo positivo, de modo otimista), todo o teu corpo (ser) estará na luz. Se teus olhos estão doentes (vêem a face ruim dos acontecimentos; as coisas de modo negativo, de modo pessimista), todo o teu corpo (ser) estará nas trevas e quão grande serão estas trevas. Mt 6,22-23

Tomemos a liberdade de tentar analisar um pouco mais esta questão. Nas palavras figuradas de Jesus acima expostas, podemos conceber uma estrutura composta de três entes. O observador (os olhos do sujeito), a parte passiva do sujeito (luz e trevas) e a realidade externa (o que é observado). Com esta estrutura, pelas palavras encontradas em Mateus, o sujeito observa a realidade através de seu mundo passivo interior, colorindo a realidade exterior em conformidade com ele.

Surge então uma pergunta: o que condiciona a parte passiva do sujeito? Para respondê-la somos levados a reconhecer um quarto elemento estrutural, qual seja uma parte ativa do sujeito que promove ações adequadas ou inadequadas por meio da vontade pessoal. Um dos fatores condicionantes das características desta parte passiva, seria a frequência e a qualidade de tais atitudes e estas podem estar voltadas a duas direções. Podemos voltar nossas ações para o próprio mundo interior, cultivando sentimentos e pensamentos mais adequados.

No entanto, por mais espantoso que possa parecer, pensadores respeitáveis defendem a ideia que através de atitudes adequadas dirigidas ao mundo exterior, terminamos por tornar melhor a parte passiva de nosso mundo interno. Podemos considerar que é na resposta à questão de quais seriam as atitudes adequadas capazes de promover uma melhoria de nossas percepções subjetivas, por exemplo, o aumento de nossa felicidade e bem estar; é na resposta a esta questão, que nos dedicamos no presente curso de Ética.

Já circulou nas redes sociais um fluxograma lógico que cabe aqui

recordar: A primeira questão é: você tem um problema? Se a resposta for não, a conclusão é a de que então não há razão para se preocupar. Caso a

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resposta seja sim, surge então uma nova pergunta: Tal problema tem solução? Se a resposta for não então não há motivo lógico para se preocupar (pré - ocupar). Se a resposta for sim, poderíamos até introduzir uma nova questão: O problema vai terminar sendo resolvido? Se a resposta for sim então não há porque se preocupar. Se ao contrário, por um motivo qualquer o problema apesar de solucionável, não for resolvido, da mesma forma não há por quê; de nada adianta se preocupar.

Ou seja, as preocupações apenas ocasionam desgaste emocional e não trazem qualquer benefício concreto racional. Assim encontramos a recomendação de não se preocupar: Não se preocupe (pré – ocupar). Se dedique à Justiça (que penso poder ser traduzido por ética) e tudo se resolverá. A cada dia bastam as suas penas. Mt 6,25-34

Só há um modo de não realizar atos falhos que é o de não realizar

atos de modo algum. Se não enfrentarmos nosso medo de errar, absolutamente nada realizaremos. Por sua vez, como já comentado, é por meio de atitudes que podemos ser propriamente éticos e também é por meio de atos que podemos nos desenvolver e nos auto-realizar. Neste sentido temos a exortação de fazer crescer nossos próprios talentos, que pode ser encontrada em Mateus 25,14-30

Me parece ser fácil entender que não há nada de racional em

lamentarmos um estado presente eventualmente indesejado ou desfavorável. Por outro, igualmente não é sábio não procurarmos melhorar a qualidade deste estado desde que isto seja possível e adequado. No dizer de um antigo provérbio, que tem sido apresentado em diferentes versões ao longo dos séculos, por pensadores das mais diferentes linhas de pensamento: 'Concedei-nos, Senhor, a Serenidade necessária para aceitar as coisas que não podemos modificar. Coragem para modificar aquelas que podemos, e Sabedoria para distinguir umas das outras.' Se acreditarmos na veracidade de alguns apócrifos, o destino de Jesus seria o de construtor, por certo muito bem sucedido, tal como o de seu pai e irmãos. Ou então um líder por certo muito conceituado, de

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alguma comunidade sacerdotal. No entanto nenhum destes destinos foi de seu agrado e por meio de sua vontade e ação um outro bem diferente se descortinou. Se julgarmos verdadeiras as narrativas de cura realizadas por Jesus, estas só ocorreram porque os doentes acorreram a ele.

Por outro lado, pelas narrativas que podem ser lidas, Jesus ao efetuar a sua última viagem a Jerusalém, aceitou voluntariamente o destino de ser assassinado, o que foi doloroso e pode ser avaliado como algo desfavorável, mas que foi avaliado por ele como um acontecimento adequado. Caso contrário bastaria, por exemplo, não ter realizado tal viagem, ou então por maior segurança, ter-se mudado de nação. Daí a relevância da assim chamada Oração da Serenidade ao analisarmos os dizeres: Quem não toma sua cruz e não me segue (seus exemplos; seus ensinos) não é digno de mim. Mt 10,38

Como mencionaremos mais uma vez em outra parte desta discussão, a leitura dos textos que nos servem de referência, permite concluir, que em resumo, toda a parcela conhecida da vida de Jesus foi dedicada a amenizar alguma forma de sofrimento alheio, ou a ignorância, por meio da instrução.

Creio que já discutimos o suficiente quanto ao binômio altruísmo

e egoísmo. Neste sentido podemos ler: 'Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo (ou seja, ao egoísmo), tome a sua cruz e siga-me (seus exemplos e seus ensinos)' Mt 16,24. Cabe lembrar que o egoísmo ou egocentrismo; ter-se como foco da atenção, é condição básica para o orgulho, e como comentado, o orgulho pode ser considerado a fonte de todos os males humanos.

'Quem quiser conservar a sua vida (seus interesses egoístas, menores e materiais) a perderá; e quem, por amor de mim, perder a vida, a reencontrará.' Mt 10,39 Mt 16,25 'Que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, se com isso perder a sua vida?' Mt 16,26. Lc 12,13-21

As afirmações imputadas a Jesus, bem como o que é conhecido

de sua própria vida nos fazem crer que para ele o sentido profundo da existência se encontra nos valores humanos e não nos bens materiais. Os

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valores humanos fazem parte do mundo interior do ser. É deste mundo a origem das percepções de felicidade, bem estar, auto realização e desenvolvimento pessoal. De que a vida está fazendo algum sentido ou não. Se uma pessoa deprimida, mas com bons recursos materiais pode curtir sua depressão em Paris ou no Havaí, tal fato não altera a realidade de sua desolação.

Podemos observar pobres e ricos, tanto felizes como infelizes. Portanto não é a riqueza ou a pobreza que condiciona a qualidade da vida subjetiva de alguém. Já a riqueza tende a condicionar nossa maior ou menor liberdade e poder de ação. Como vimos, as ações por sua vez, tendem a condicionar o estado de nosso mundo interior. Assim o relevante parece ser não a pobreza ou a riqueza em si, mas sim o que fazemos com elas e por quais meios chegamos a elas.

Relacionadas a tais considerações, temos alguns pensamentos que podemos encontrar em Mateus. 'Não junteis tesouros na terra (materiais) mas no céu (espirituais). Onde estiver o teu tesouro, ali estará também o teu coração (alma).' Mt 6,19-21

'Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis (conseguireis) servir a Deus (cultivar o espírito) e a Mamom ao mesmo tempo.' Mt 6,23-24

Mamom em termos mitológicos é um dos sete servos do demônio e representa a cobiça, a ganância, a sede de lucro, que tende a resultar na avareza. O pensamento de Jesus pode ser considerado como sugerindo que não se obtem bons resultados caso nos deixemos escravizar pelo amor à riqueza material ou então que suavizemos nossas inseguranças naturais, depositando a nossa confiança nas mesmas. Num cunho absolutamente não religioso é fácil observar que inúmeros indivíduos vendem a sua própria alma, seus anseios, seus sonhos, seus ideais, sua liberdade, sua felicidade, seus amores, etc, em prol de um relativo bem estar material.

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Jesus, numa análise atenta e contrariamente ao que se propaga hoje, se opôs a uma série de regras então vigentes da fé judaica e atualmente contidas no Velho Testamento. A proposta de abolição da lei do Talião, de reciprocidade exata de males é um claro exemplo. Podemos ler nos textos: 'Ao invés disto, não resistir. Não revidar. A quem te pede uma coisa, dá.' Mt 5,38-42

Quanto a amar o próximo e odiar o inimigo: 'Ao invés disto, amar os inimigos e rezar pelos perseguidores.' Mt 5,43-48

'Fazei o bem aos que vos odeiam; falai bem dos que falam mal de vós; rezai pelos que vos difamam. A quem te bater numa face, oferece a outra. Não reclames de quem tira o que é teu.' Lc 6,27-35

O choque de seus pensamentos com a moralidade e conjuntura

vigente foi o responsável por sua condenação e morte. Caracterizou-se por uma liderança indesejável para Roma visto que grandes multidões começaram a segui-lo, conforme Mt 4,25 e outras passagens. Digno de nota é o fato histórico de que todas as lideranças contemporâneas a Jesus, ou de períodos próximos, tiveram o mesmo destino.

Violou abertamente o mandamento do sábado, um dos dez da lei mosaica. Apenas isto bastaria para sua execução. Neste sentido afirmou que o 'filho do homem' é senhor do sábado. É permitido fazer o bem em dia de sábado. Mt 12,1-14. 'O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado.' Mc 2,27 e outras passagens.

Violou as leis de pureza então vigentes, declarando que 'não é o que entra pela boca e sim o que sai dela, o que torna o homem impuro. O que sai da boca vem do coração. Do coração procedem maus pensamentos, homicídios, adultérios, prostituições, roubos, falsos testemunhos e injúrias.' Mt 15,1-17. 'Purifica primeiro o interior do corpo, para que também o exterior se torne limpo.' Mt 23,25-26

Violou a norma de executar os que violavam as normas morais então em vigor, como na passagem da adúltera prestes a ser apedrejada. ('Quem dentre vós estiver sem pecado, atire a primeira pedra...' Jo 8, 1-11)

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Aparentemente violou o primeiro mandamento, colocando-se à altura de Deus. ('Sois o Cristo, o Filho do Deus vivo.' Mt 16,16. 'Vereis o Filho do homem sentado à direita do Todo-poderoso e vindo sobre as nuvens do céu.' Mt 26,64 'És o Santo de Deus.' Mc 1,24. e outras passagens. 'Meu Pai continua a trabalhar até agora, por isso eu também trabalho.' Jo 5,17). 'Eu e o Pai somos um' ('mas o Pai é maior do que eu').

Como último exemplo, entrou em choque com o comércio no Templo de Jerusalém, que favorecia os levitas. Mt 21,12-13. Mc 11,15-19.

A observação das três diferentes correntes de pensamento que o

condenaram à morte pode ser instrutiva para nossa própria conduta na atualidade.

A primeira que se destaca é o choque com a ética deontológica então em vigor. Ou seja, como visto acima, a violação da ética prática, dos costumes e das leis vigentes (violação da moral).

A segunda é o emprego da ética utilitarista, que será apresentada em outro texto. Isto fica claro na passagem de seu julgamento relatado por João. A ética utilitarista defende que um procedimento é tanto mais ético quanto maior for o bem proporcionado para o maior número de pessoas. Tal linha de pensamento é muito empregada atualmente, principalmente pelos grupos mais esclarecidos que dirigem o destino de coletividades humanas. Por ela, por exemplo, a morte de um indivíduo é justificável caso em contrapartida se evite a morte de um grande número de outros. Exatamente foi este um dos argumentos responsáveis pela condenação do Mestre. 'Que faremos? Este homem está fazendo muitos sinais. Se o deixarmos continuar assim, todos crerão nele, depois virão os romanos e destruirão nosso lugar santo e nossa nação. É melhor para vós morrer um só homem pelo povo, do que ser destruída toda a nação.' Jo 14,47-50

A última das razões em destaque para a condenação, foi a necessidade política de descarte de uma liderança (um rei), possível precursor de um levante contra Roma. Tal caracterização fica clara

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quando de sua entrada em Jerusalém: 'Bendito o que vem em nome do Senhor, o Rei de Israel.' Jo 12,13 Ao longo de seu julgamento sua afirmação também vale a pena ser mencionada: 'Tu o dizes, eu sou rei. Para isto nasci. Para isto vim ao mundo: para dar testemunho da verdade.' Jo 18,37 Por fim a situação perigosa na qual as lideranças judaicas colocaram o representante local do poder de Roma: 'Se o soltares, não serás mais amigo de César: todo aquele que se faz rei se opõe a César.' Jo 19,12

A análise do comportamento do próprio Jesus, conforme

documentada, também me parece oportuna. Nos quatro evangelhos, em pelo menos a enorme maioria dos relatos, duas ações podem ser facilmente observadas, as quais são a remoção do sofrimento humano e o ensino. Não me parece ser questionável que a remoção do sofrimento seja uma atitude benéfica. Por outro lado a atitude de esclarecer consciências também é algo bom. Neste caso merece destaque o pensamento socrático de que todos os erros humanos e suas mazelas se devem à ignorância.

Quanto ao conteúdo ensinado, independentemente de minha convicção pessoal de que são verdadeiros, principalmente se adequadamente estudados, me parece oportuno retomar o conceito de Kant, de que o ético depende basicamente da motivação de quem realiza a ação. Como também me parece de muito difícil questionamento as boas intenções de Jesus, pode-se concluir que ao longo dos cerca de três anos em alguma medida conhecidos da sua vida, ele dedicou-se fortemente a praticar exatamente o que defendia. Ou seja, a fazer o bem. E como é bem razoável supor que ele não julgasse bom o sofrimento ou a ignorância, dedicou-se a fazer o bem ao próximo como gostaria que fosse feito a ele, caso se encontrasse na mesma situação.

Para ilustrar tal comportamento, cito dentre inúmeras opções: 'Jesus circulava por toda a Galiléia, ensinando nas sinagogas, proclamando a Boa Nova do Reino e curando toda a espécie de doença e enfermidade que havia no povo.' Mt 4, 23-24 ; Lc 6,18-19. Ou então, 'cegos recobram a vista e coxos andam; leprosos são curados e surdos

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ouvem; mortos ressuscitam e a Boa Nova é anunciada aos pobres.' Mt 11,5 ; Lc 7,21-22

Outra atitude que gostaria de destacar, seria a sua conduta compreensiva e não preconceituosa. Quanto a isto podemos observar que tinha como seguidor proeminente um ex-cobrador de impostos de Roma. Ou seja, um indivíduo que outrora auferia benefícios pessoais, auxiliando o invasor estrangeiro a sugar continuamente os recursos da colônia. Convivia com pecadores conhecidos. (Lc 7,36-39) e se aproximava de samaritanos (Jo 4,39-40), povo que, como já comentamos, era mal quisto pelos judeus, por sua etnia, religião e costumes distintos.

Outro ponto de destaque é o da universalização da ideia de próximo e de irmão, como a parábola do bom samaritano nos permite ver. Lc 10,25-37

A título de conclusão, Jesus, ao longo dos três anos conhecidos

de sua existência, se opôs a uma série de pontos do judaísmo e criou uma nova religião.

Se caracterizou como em união com o Altíssimo; como mensageiro Deste; como transmissor da Verdade; e como exemplificador do caminho que conduziria à verdadeira vida.

O ponto central de sua religião é amar o próximo como a si mesmo. Este é um princípio geral, que seguido, penso acarretaria no cumprimento da maioria das normas específicas de comportamento defendidas por Jesus, como também, por uma série de outras correntes morais e religiosas e pela maioria dos princípios éticos e filosóficos vigentes. É portanto, uma chave geral da ética e da moral. Se é o comportamento ético o caminho para a felicidade humana, a universalização e a intensificação da prática desta compacta exortação geral, tem a capacidade de consolidar um verdadeiro paraíso sobre a Terra.

Perdoar sempre, não julgar e devolver sempre amor em troca do ódio. Tais pontos, também destacados na religião de Jesus, teriam pelo menos a princípio, a capacidade de promover a plena harmonia do

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indivíduo com o seu ambiente externo e também a plena paz e tranquilidade no universo interior de cada um.

Jesus enfatiza a importância das ações e defende que é através dos atos, que podemos avaliar a nós mesmos e os demais. Defende a beneficência e a misericórdia e garante que tais condutas serão retribuídas e recompensadas. Enfatiza a importância das palavras e da despreocupação. Defende que o sentido profundo da existência é encontrado nos valores humanos e espirituais e não nos materiais. Por fim, defende também a aceitação, o que ao nosso ver não significa não tentar modificar as ocorrências objetivas da existência, eventualmente inadequadas.

Outros pontos foram destacados nos textos estudados porém não

foram expostos aqui. Dentre eles os de cunho religioso, teológico, cosmológico, bem como outros que a consciência de minha inabilidade mostrou a impossibilidade de uma adequada análise. Neste conjunto temos a recomendação de não tirar proveito da ação religiosa ou caritativa Mt 6,1-6. Mt 6,16-18; limpidez interior Mt,5,8 ; o valor da espontaneidade e inocência Mt 18,1-5 Mt 19,14 ; a recomendação de prudência e de simplicidade Mt 10,16, e a regra da retribuição, tanto pelas boas quanto pelas más ações Mt 26,52.

'Os judeus responderam-lhe: Não é por causa de alguma boa obra

que te queremos apedrejar, mas por uma blasfêmia, porque, sendo homem, te fazes Deus. Replicou-lhes Jesus: Não está escrito na vossa lei: Eu disse: Vós sois Deuses?' Jo 10,33-34

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Bem sabemos que as religiões exercem fortíssima influência sobre

a moralidade dos povos. Em 2005, respectivamente, cerca de 13% e 6% da população mundial professava o hinduísmo e o budismo. (Enciclopédia Britânica)

Em 31 de outubro de 2011 atingimos a marca de 7 bilhões de seres humanos sobre o planeta. (Wikipédia). Desta forma, no presente, somos aproximadamente 900 milhões de hinduístas e 400 milhões de budistas. O hinduísmo é a terceira religião mundial enquanto o budismo a quinta em número de seguidores. O hinduísmo é a principal religião da Índia enquanto o budismo exerce forte influência nos países localizados ao norte e a leste desta, tais como a China e o Japão. Tais países tem influência e importância econômica considerável nos dias de hoje.

As duas religiões surgiram sobre a placa tectônica indiana, que atualmente em termos políticos, é ocupada em sua maior parte pela Índia. O desenvolvimento do povo desta região seguiu as etapas clássicas, começando como tribos nômades coletoras e passando posteriormente para a fase de assentamentos permanentes graças ao desenvolvimento da agricultura e a pecuária.

A religiosidade que chegou até nós começou a ser documentada em 3.400 a.C. pela redação de textos considerados sagrados, conhecidos como os Quatro Vedas. Em 600 a.C. ocorre o advento do príncipe Siddharta Gautama e o início do Budismo.

Em 300 a.C. temos a unificação dos reinos existentes naquela região e o Rei Asoka, o Grande, decide tornar o Budismo a religião oficial da Índia, enviando missionários às nações vizinhas, promovendo deste modo sua expansão extra territorial.

Os séculos que se seguiram testemunharam um grande desenvolvimento cultural na região, observável em inúmeros campos, tais como ciências, tecnologia, arte, lógica, literatura e linguística, matemática, religião e filosofia.

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No século XII ocorre a invasão mongol e no seguinte o desaparecimento quase completo do Budismo na Índia, permanecendo, no entanto, vivo nos países vizinhos. No século XVI começa a colonização europeia e o controle político de toda a região passa a ser exercido pela Companhia Britânica das Índias Ocidentais. De modo a tentar conter a população revoltada com o colonialismo, em 1856 o controle passa ao governo britânico. No século seguinte, século XX, Mahatma Gandhi lidera a desobediência civil não violenta e em 1947 ocorre a independência. Como nesta época já era grande o número de muçulmanos na região e devido à possibilidade de choques violentos por razões de religião, a Índia foi politicamente dividida em dois países: a agora Índia propriamente dita ao sul, hinduísta e a formação do país islâmico do Paquistão ao norte.

A teologia hinduísta age diretamente sobre a moral, as leis e a

política. O hinduísta é tolerante; considera que a verdade tem muitas aparências. Tal como no cristianismo dos primeiros tempos, antes que o Imperador Romano Constantino tivesse proibido todas as outras interpretações, exceto a de uma seita em particular, o hinduísmo até hoje admite uma pluralidade de visões, diferentes conceitos filosóficos e reconhece múltiplos modos de salvação.

O Hinduísmo, e mais especificamente o Monismo Advaíta Vedanta, enxerga Deus como Brahman: o Real que se manifesta como aquilo que denominamos criação, mas que também está além; transcende a esta. O Onisciente, Onipresente e Eterno.

Na constituição do ser humano haveria o Atman; o Espírito Superior Individual, o Eu Real. Atman e Brahman, são essencialmente um só, tal como uma parte do mar é também oceano.

No entanto nós temos a consciência mergulhada em ilusões (maya) que basicamente, em uma de suas consequências, é a ilusão de separatividade.

A trindade básica hinduísta é constituída por aspectos de Brahman sobre o mundo da ilusão: Brahma, o Criador; Vishnu, o Sustentador e Preservador; Shiva, o Transformador e Destruidor.

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Tudo no mundo dos fenômenos; da ilusão, segue um ciclo interminável de eventos: criação, manutenção, destruição, repouso, criação, manutenção, etc.

Para todas as linhas de interpretação do hinduísmo há dois princípios fundamentais que regem os fenômenos: o Karma e o Samsara. O Karma se refere ao ciclo infindável de causas e efeitos. Causas gerando efeitos e efeitos sendo causas de novos efeitos. As ações passadas condicionando os acontecimentos futuros. O Samsara é a existência condicionada nas garras da ilusão; do apego, do sofrimento, da ignorância; no ciclo interminável da vida de renascimento a renascimento. Apego ocasionado pela ilusão de separatividade. Ignorância da realidade que gera o sofrimento.

A partir destas duas hipóteses o hinduísta direciona a sua vida com duas soluções éticas.

Frente à convicção de uma lei de causa e efeito, que imperaria também sobre as consequências dos comportamentos, procura adotar a postura Ahimsa. Tal posicionamento é o de não causar mal e dano a ninguém e a nada. É a de não ser violento, respeitar todas as formas de vida e cultivar a benevolência. Claramente, se a hipótese do Karma é verdadeira, tal postura seria a mais lógica a seguir de modo a evitar sofrimento futuro e favorecer o bem estar vindouro.

Já o ciclo interminável de renascimentos sucessivos é visto pelo hinduísta como algo desagradável. A criança sofre ao nascer. O jovem sofre ao crescer e se desenvolver. O adulto sofre ao se manter. O idoso sofre ao envelhecer e ao morrer. Para obter a libertação deste ciclo, a solução vista por eles é a de conseguir transferir a consciência do mundo da ilusão para o mundo da realidade. No mundo ilusório nos consideramos separados e diferentes. A ideia de separação gera o apego. A ideia de diferente gera a aversão. No mundo da realidade seriamos uma só coisa. Tal como a mente ama cada pedaço do corpo, prevaleceria o amor. No mundo da ilusão é possível o orgulho; considerar-se superior ao outro. No mundo da ilusão é possível o ódio, mas o ódio é uma manifestação da ilusão, pois só odiamos aquilo que de algum modo nos está próximo. O ódio é uma manifestação de amor disfarçada. No

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mundo da realidade, orgulho e ódio não fazem sentido, como não faria sentido tais sentimentos de uma mão ou uma perna em relação à outra.

De qualquer forma, de modo a se livrar do sofrimento, o hinduísta procura libertar-se da ignorância, isto é, da ilusão da separatividade. Obter a consciência da união da Alma Superior Individual (Atman) com a Alma Universal (Brahman), atingindo assim o consequente estado de eterna felicidade. Para tal são reconhecidos quatro caminhos para a libertação da ilusão da separatividade e dos determinantes internos que causam sofrimento:

Karma Marga: o caminho da ação. Tal caminho pode ser trilhado por meio de ações altruístas e de serviço. Poderia ser trilhado também pelo ascetismo, buscando extinguir todas as manifestações de apego ou aversão.

Jnana Marga: o caminho do conhecimento transcendental. Através do estudo, da reflexão e da meditação, seria o de buscar entender a esfera da Realidade, que estaria oculta pelos véus da ilusão.

Raja Marga: o caminho da mente. Por meio da meditação e da reflexão, conhecer-se a si mesmo e na medida deste autoconhecimento identificar-se com o Eu Real, com a Realidade, com a Realidade Universal.

Bhakti Marga: o caminho do amor. É o caminho da adoração e devoção por Brahman ou algum de seus aspectos, que levaria à identificação do devoto com a divindade. Este é considerado pelos teólogos hinduístas o caminho mais fácil de trilhar. Texto védico clássico referente a isto é o romance Mahabarata (A Grande Batalha), que tem como parte mais conhecida o Bhagavad Gita. Tal romance pode ser interpretado como a luta do ser humano, iluminado por sua consciência, para vencer gradualmente a separatividade e o egoísmo e integrar-se na união e no altruísmo.

Caso seja possível uma correspondência, podemos observar que no Cristianismo, através de seus rituais, orações e cânticos, segue-se principalmente o Bhakti Marga.

A título de conclusão a ética hinduísta se direciona a três pontos principais: Não causar mal a ninguém e se possível, a nenhum ser vivo.

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Cultivar uma conduta benevolente e pacífica. Buscar a remoção da ignorância, alcançando assim a integração, a união, a libertação, a sabedoria, e a paz.

O príncipe Siddhartha Gautama nasceu no clã Sakia, na casta dos

xátrias (guerreiros nobres) e devido a isto, também é denominado pelo termo Sakiamuni: o sábio dos Sakias. Supõe-se que tenha nascido em Lumbini, em 536 a.C., e crescido em Capilvasto, ambas localidades do atual Nepal.

Logo após o nascimento, um adivinho visitou o pai do jovem príncipe e profetizou que Siddhartha iria se tornar um grande rei e que renunciaria ao mundo material para se tornar um homem santo, se ele, porventura, visse a vida fora das paredes do palácio. O pai assim, desejando te-lo como sucessor, manteve o príncipe dentro das paredes dos palácios e cercou-o de prazeres, riquezas e beleza, mantendo-o em contato apenas com jovens saudáveis. Nestas condições Siddharta cresceu, casou e teve filhos. No entanto com grande curiosidade de como seria o mundo externo, convenceu um criado a conduzi-lo por uma visita a cidade. Nela, a lenda diz que avistou pessoas claramente indispostas na beira da estrada e indagando ao seu criado, soube que eram pessoas doentes e ficou sabendo assim da existência da doença. Na beira da estrada também avistou pessoas enrugadas e feias e com nova pergunta ficou sabendo da realidade da velhice. Ao avistar corpos inertes, tomou ciência da morte. E assim, de descoberta em descoberta (miséria, fome, feiura) e no estado perturbado em que ficou, terminou por observar um asceta; um magro e austero personagem que embora imóvel, deixava transparecer uma profunda paz interior naquele meio que lhe parecia tão desagradável.

Chocado com fatos que até então desconhecia, decide então fugir da corte e assim o faz. Anteriormente como mencionado, viu um asceta transparecendo paz, mesmo imerso naquela realidade dolorosa e começa assim a seguir o caminho do ascetismo e da mortificação. Nesta jornada faz loucuras contra sí: não toma banho ou se veste, assume posturas dolorosas e não se alimenta. Já quase à beira da morte, se convence que

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não seria este o caminho para a solução dos problemas e o de alcançar a paz. Aceita alimento de uma pessoa caridosa, senta-se debaixo de uma figueira e se dedica a pensar; meditar. A lenda diz então que Siddhartha se viu tentado pelo demônio Mara, representado pela serpente naja. Mencione-se que a serpente é um símbolo antigo que pode representar certas peculiaridades da mente humana, por exemplo a de só conseguir trabalhar por classificações, ou seja, efetuando distinções; concebendo um algo como diferente de um outro. De qualquer modo, ortodoxamente, Mara é considerada um símbolo do mundo das aparências.

Vencendo Mara, Siddhartha terminou por conseguir libertar-se das ilusões e do sofrimento interior, atingindo assim a Iluminação; o despertar para a Realidade.

O termo Buddha vem do sânscrito, uma das mais antigas línguas da família Indo-Européia, e significa 'desperto'. É um título dado no budismo àqueles que despertaram plenamente para a verdadeira natureza dos fenômenos e se puseram a divulgar tal descoberta aos demais seres, procurando amenizar seus sofrimentos.

Atingida tal realização, Buda transmite o que descobriu, primeiro aos seus próximos que seguiram com ele o caminho do ascetismo e depois, pelos cerca de 40 anos seguintes, para os povos do norte da Índia. Além de procurar ensinar o caminho que levaria à libertação do sofrimento, acrescenta a mensagem de esperança de que a Iluminação é acessível a todos.

A transmissão do budismo nos primeiros tempos foi feita exclusivamente de forma oral. Talvez devido a isto, todo o conhecimento está rigorosamente organizado, classificado e referenciado por expressões chave, o que facilita muito a memorização. O ensinamento budista começa com as chamadas Quatro Nobres Verdades.

A primeira é o diagnóstico e a constatação do problema central que envolveu Buda desde o início:

(*) A verdade do sofrimento.

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O sofrimento é algo que se abate sobre todo o ser humano, ocasionado por inúmeros fatores, tais como miséria, doença, velhice e morte.

A segunda Nobre Verdade é um diagnóstico da causa do problema:

Pelo budismo a causa básica do sofrimento é o (*) desejo e apreensão por acontecimentos agradáveis e a aversão e apreensão por acontecimentos desagradáveis. É o viver na ilusão.

Desejamos algo e como nos consideramos separados disto, sofremos. Obtemos algo e daí supomos que deste algo podemos ser separados e então sofremos. Consideramos algo como desagradável e então novamente sofremos, quer pela expectativa que venha a ocorrer conosco, quanto se este algo já se manifesta em nossas existências.

A causa básica do sofrimento também inclui a ignorância das chamadas Três Características da Existência.

(1) Nada no mundo concreto tem existência real e é independente em si mesmo. A separatividade é uma ilusão.

(2) Tudo está em constante mudança. Nada é permanente. (3) Nada pode ser satisfeito ou concluído ou realizado de forma

definitiva. Tais características apresentam validade universal. São verdadeiras

para todos os momentos, todas as coisas e todos os lugares. A Iluminação permitiria transcender (ficar além) de tais características.

A Terceira Nobre Verdade é uma mensagem de esperança. É a afirmação que o problema do sofrimento tem solução.

(*) É possível extinguir o sofrimento. É possível extinguir o desejo e a apreensão. É possível se libertar da ignorância e das ilusões.

A Quarta e última Nobre Verdade trata precisamente do que falta dizer, isto é, como resolver a questão. É a proposta do método para a solução do problema.

(*) O Sofrimento pode cessar; a ignorância pode ser extinta; a Paz Interior pode ser alcançada pelo denominado Caminho do Meio ou Nobre Caminho Óctuplo. É chamado de caminho do meio porque propõe evitar soluções extremadas: quer uma vida entregue à saciedade

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de prazeres, quanto aquela de ascetismo e mortificações. É de certa forma, em primeiro lugar uma recomendação de adotar-se a virtude da temperança, bem defendida também por Aristóteles.

O Caminho Óctuplo seria aquele que permitiria fazer cessar o sofrimento; de alcançar a libertação. Seria um caminho de iluminação; de derrotar a ignorância e fazer prevalecer o entendimento. De ver a realidade como ela é e não como parece ser. Do ponto de vista budista, a conduta adequada (ética) não se resume a agir adequadamente, mas também a falar e pensar adequadamente. Isto porque se pressupõe que pensamentos inadequados terminam por gerar palavras inadequadas e pensamentos e palavras inadequadas, terminam por gerar atitudes não apropriadas. Deste ponto de vista, os oito pontos do Caminho Óctuplo, são todos preceitos éticos ou morais.

O Caminho Óctuplo é constituído por oito condutas a serem perseguidas simultaneamente. Estes oito elementos são normalmente apresentados na forma classificada em três divisões; a Estrada Tripla. As estradas da sabedoria, da ética e da meditação.

A Estrada da Sabedoria é constituída por dois elementos: (1) Entendimento Perfeito / Compreensão Correta. Pode ser entendido como buscar entender perfeita e

profundamente as Quatro Nobres Verdades. (2) Pensamento Correto Numa interpretação consiste em buscar se desprover de ganância,

de ódio e da ignorância. Procurar ter apenas um pensamento de cada vez. Engloba também evitar os assim chamados Três Venenos da Mente.

(A) Ganância. Desejar possuir mais que os outros. Apegar-se às coisas e às pessoas. Interessante ressaltar que justamente a ganância tem motivado uma série incontável de conflitos, tanto no passado quanto no presente.

(B) Raiva. Quanto a isto mencionamos anteriormente que só sentimos raiva de pessoas que psicologicamente falando, nos estão

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próximas, de modo que o ódio, sob tal ponto de vista, é um amor disfarçado entre amantes.

(C) Ignorância e indiferença. Algumas Escolas Budistas acrescentam ainda a estes três venenos: (D) Ciúme. (E) Orgulho. Salientamos em outro texto que do ponto de

vista de grandes pensadores da humanidade, o orgulho é a origem fundamental de todos os vícios do ser humano.

Tais venenos como o leitor provavelmente notou, coincidem com vários dos chamados pecados capitais do Cristianismo; isto é, aqueles que gerariam todos os demais pecados.

Estrada da Ética contem três orientações de conduta. (3) Linguagem Correta Procurar não mentir (falar verdadeiramente). Procurar não semear

discórdia ou desunião. Procurar não empregar linguagem chula. Procurar não falar sem objetivo ou imprecisamente. Procurar não ofender. Procurar cumprir o que fala.

(4) Ação Correta Procurar agir de modo não prejudicial e assim buscar seguir os

chamados Cinco Preceitos e os Dez Mandamentos Budistas. Tais preceitos e mandamentos podem ser expressos em termos de

abstenções ou então, em termos de um número um pouco diferente, de condutas a realizar.

- Os Cinco Preceitos – (A) Esforce-se para não fazer mal a nenhum ser vivo e não lhes

tirar a vida. (Ação benevolente) (B) Procure não tomar o que não lhe pertence ou não lhe é dado.

(Ação generosa)

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(C) Procure não ter conduta sexual imprópria, ilegítima ou imoral (inclusive o adultério). Procure controlar seus impulsos. (Simplicidade, calma e alegria)

(D) Procure não usar palavras falsas, erradas, imprecisas ou enganosas. (Comunicação eficaz)

(E) Procure abster-se de álcool e outras drogas. (Sobriedade) - Os Dez Mandamentos Budistas – (A) (B) (C) (D) Os quatro primeiros dos cinco preceitos. (E) Procure não usar palavras ásperas ou ofensivas. (Propagação

da harmonia) (F) Procure não falar coisas desnecessárias. (Gentileza e cortesia) (G) Procure não caluniar. (Gentileza e cortesia) (H) Esforce-se por não cobiçar. (Propagar a Paz) (I) Procure não cultivar animosidade. (Agir com compaixão) (J) Procure não ter opiniões falsas. (Conversão da ignorância em

Sabedoria) O leitor pode constatar que tais mandamentos budistas coincidem

com vários dos mandamentos judaico - cristãos. Retornando ao Nobre Caminho Óctuplo e mais especificamente à

Estrada da Ética, a quinta conduta geral seria: (5) Vida Correta. Profissão correta. Meio de vida correto. Assim, por exemplo, seria difícil a um indivíduo obter a

Iluminação, caso de algum modo iludisse seus clientes no exercício de sua ocupação cotidiana ou exercitasse corriqueiramente a agressividade.

Por fim chegamos à ultima das Estradas e aos três últimos

comportamentos gerais necessários para extinguir o sofrimento. Estrada da Meditação / Concentração

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(6) Esforço Correto / Perseverança. Procurar superar as dificuldades e realizar o que é adequado ou

prioritário. Procure esforçar-se para melhorar. (7) Atenção Plena Correta. Procurar manter a atenção focada. Procurar manter a atenção no

que é verdadeiro e real e justo. Estar atento para enxergar as coisas com a consciência clara. Prestar atenção no seu próprio mundo interior, sem julgamentos, expectativas, desejos ou aversões.

(8) Concentração Correta (focada na Iluminação) Procurar obter a consciência clara da realidade presente em si

mesmo (auto-conhecimento). Procurar não sentir atração/desejo ou aversão/apreensão. Procurar manter-se desperto. Interessante observar que o Caminho Óctuplo pela visão budista, nunca acaba. Uma vez iluminado ou desperto, se recomenda ao indivíduo não se descuidar e evitar mergulhar novamente sua consciência nas ilusões.

Os que conseguem tal libertação da ignorância, do sofrimento e

das ilusões são denominados Budas ou Bodhisattvas (sábios despertos). Tais seres inundados pela compaixão por aqueles que ainda dormem, supõe-se que continuem suas existências procurando levar outros também à Iluminação. Supõe-se que tais seres também tenham desenvolvido em si, plenamente, as chamadas Quatro Linhas de Sentimentos Piedosos ou ainda, os Quatro Imensuráveis, pois são orientações que podem ser desenvolvidas por tempo indeterminado:

→ Benevolência Universal a tudo. → Compaixão. A benevolência tocada pelo sofrimento dos

outros. → Alegria interior e também com a felicidade dos outros. → Paz Interior sob qualquer circunstância externa. O budismo atual apresenta uma série de linhas de pensamento ou

Escolas: A Theravada (doutrina dos Anciãos), o Mahayana (Grande Veículo), o Vajrayana, que engloba os budismos tailandês, tibetano,

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chinês, Zen (Japão) e vietnamita. Em conjunto representam a religiosidade de grande parte dos povos da Ásia.

A Título de Conclusão, o budismo de certo modo é uma

continuação do hinduísmo. Principalmente na Escola Theravada tem os mesmos princípios fundamentais: a origem do sofrimento na Samsara e no encadeamento de causas e efeitos. Visa a libertação da ignorância, a Paz, a Felicidade obtida por meio da destruição das ilusões, inclusive a que causa o desejar.

Do ponto de vista do hinduísmo, quanto aos caminhos que levam à libertação da ilusão da separatividade e dos determinantes internos que causam sofrimento, o budismo na sua forma ortodoxa, pode ser considerado como fazendo uso dos caminhos da Karma Marga (caminho da ação, do altruísmo, do serviço, etc), bem como da Raja Marga (caminho da meditação, reflexão e auto conhecimento). Por outro lado, não costuma empregar os caminhos da Bhakti Marga (caminho da adoração e devoção) ou da Jnana Marga (caminho do conhecimento transcendental). Seus seguidores autênticos e avançados adotam uma bem estruturada e clara ética e são levados a uma postura altruísta. Pretendem o bem estar e a felicidade para todos os seres. Tem compaixão para com todas as formas de vida. O surgimento desta tendência comportamental já é considerada o início de um despertar; de uma Iluminação.

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'O fim não é o conhecimento da ética e sim o agir eticamente. O

pretendido é que o conhecimento se transforme em ação.' A Ética proposta por Aristóteles, apesar de antiga é uma das mais

importantes mesmo na atualidade. Aristóteles nasceu em Estagira, na região grega da Macedônia em 384 a.C. e faleceu também na Grécia, em 322 a.C. Por sua origem, também é conhecido como o Estagirita. Platão foi aluno de Sócrates e Aristóteles foi aluno de Platão, tornando-se proeminente em sua Escola. Com a morte de Platão, não sendo escolhido como sucessor, fundou em Atenas, em 333 a.C. a sua própria instituição de ensino denominada por Liceu, por se localizar próxima ao Templo consagrado ao Deus Apolo, nos seus aspectos simbólicos de lobo (licos). Aristóteles costumava instruir seus alunos enquanto caminhava. Deste modo a instituição também é conhecida como Escola Peripatética, pois em seu 'peripatos', termo grego para passeio, os estudantes e ele caminhavam e debatiam sobre os assuntos dos cursos. Lá passou 13 anos ensinando e escrevendo a maior parte de suas obras. Foi grande colecionador de textos possuindo uma biblioteca particular de grande expressão para a época. Tem cerca de 20 publicações, conhecidas graças ao seu seguidor posterior Andrônico de Rodes o qual organizou seus inumeráveis escritos. No entanto vários outros livros seus se perderam. A Ética Aristotélica está concentrada no livro 'Ética a Nicômaco', sendo Nicômaco o nome de um de seus filhos. Seu aluno mais notório foi Alexandre, o Grande, o qual tinha o sonho de criar um só povo irmão, liberto dos inúmeros conflitos bélicos comuns entre os pequenos reinos da época. Seu sonho se frustrou com a sua morte prematura e devido à ganância de seus generais.

Ao final da vida, Aristóteles foi perseguido pelos Atenienses e refugiou-se em Cálcide, onde faleceu.

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Com a transformação de uma crença particular cristã como a única tolerada pelo Império Romano no século IV e a consequente queima e destruição de textos, o pensamento grego dentre outros foi varrido do Ocidente. Após as Cruzadas tais ideias foram gradualmente reintroduzidas a partir do Oriente, apesar da grande resistência inicial e por fim o pensamento Aristotélico passou a ser relevante na Ética Cristã contemporânea.

Aristóteles observou que todo e qualquer comportamento

humano sempre tem como motivação a busca, mesmo que equivocada de um bem qualquer. Quando alguém mata, está procurando, por exemplo, satisfazer sua vingança. Quando alguém rouba, está procurando aumentar seu bem estar. 'Toda a arte e toda a investigação, bem como toda a ação e toda a escolha, visam a um bem qualquer; e por isso foi dito, não sem razão, que o bem é aquilo a que as coisas tendem.' Tudo que o homem faz visa a um bem qualquer; tudo tende para o bem.

Em acréscimo, pode-se observar que existem inúmeras coisas boas e uma hierarquia entre elas. Se há uma hierarquia, deve haver um bem maior que todos os demais e este bem maior é o mais almejado. Este bem maior, tal sumo bem, é aquilo que os homens verdadeiramente buscam quando pretendem satisfazer seus desejos menores.

Necessário então procurar diagnosticar que bem máximo é este. Como ponto de partida Aristóteles sugere começar a busca pelos desejos mais comuns da cada um. Isto é, pelas coisas boas já bem reconhecidas, tomando no entanto, o cuidado de não agir analogamente a um maratonista que corre por uma pista oval. Ao chegar ao ponto mais distante imediatamente começa a retornar ao ponto de partida. Ou seja, devemos buscar o essencial com o cuidado de, chegando a este ponto, não retornar a pontos mais superficiais.

O sumo bem deve ser o mais absoluto e incondicional. Aquilo que é sempre desejável em si mesmo e nunca no interesse de outra coisa. Como absoluto e incondicional, o sumo bem tem que resistir à prova do tempo. Ser bom para todos os antepassados, para todos os pósteros, para cada um de nós e para toda a humanidade. Isto é, ser universal.

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Aristóteles, ética e felicidade.

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Nesta busca podemos chegar à conclusão provisória que o sumo bem é uma vida de prazer. No entanto tal estilo de vida seria a de um escravo, que alterna grande prazer com grande sofrimento. Uma ilustração deste pensamento Aristotélico no contexto da pós modernidade seria a de um viciado em crack. Tal vício se dá, por mecanismo idêntico à todas as demais drogas, porque o produto no que é consumido, confere uma enorme sensação de prazer. No entanto tal prazer passa e advém ao usuário grande sofrimento e angústia o que gera um impulso premente por amenização que leva ao consumo de uma nova dose. Ocorre deste modo fenômeno exatamente como descrito por Aristóteles: um escravo que goza alternadamente grandes prazeres e grandes sofrimentos.

Nesta busca poderíamos também concluir que o sumo bem seria a honradez, ou a fama, ou a respeitabilidade, ou ainda a credibilidade ou a fortuna. Aristóteles neste caso pondera que o sumo bem deve ser algo próprio do homem, que dependa dele mesmo e que dificilmente lhe possa ser tirado. Neste caso, a honradez e os demais itens citados dependem mais de quem os concede do que de quem os recebe. Isto é, não depende do próprio indivíduo, mas sim do meio onde se encontra e daqueles que o rodeiam. É relativamente fácil observarmos pobreza, convertendo-se em riqueza e depois novamente em pobreza. Ou riqueza convertendo-se em pobreza e eventualmente mais uma vez em riqueza.

Efetuadas tais ressalvas preliminares, podemos tentar diagnosticar qual seria tal sumo bem, por uma série de auto questionamentos. Quero concluir um curso superior; isto é bom. Porém perguntemo-nos agora: Por quê? Quero obter um bom emprego. Por quê? Quero viajar. Por quê? Através de tais perguntas sucessivas quanto às nossas atitudes, terminamos por descobrir que na verdade, o que estamos realmente buscando com todas elas, segundo Aristóteles é a felicidade, o desenvolvimento pessoal e a autorrealização. A este anseio composto, se confere o termo grego Eudamonia. A Eudamonia, acima de qualquer outra coisa, é considerada como esse sumo bem.

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Aristóteles, ética e felicidade.

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Se o estudo da Ética é a busca do comportamento adequado individual e se a pretensão de todos é a Eudamonia, o comportamento adequado e portanto ético, é exatamente aquele capaz de promove-la.

Diagnosticado aquilo que cada um de nós busca, cabe agora descobrirmos como obtê-lo.

Aristóteles passa então de um raciocínio lógico e dedutivo para uma abordagem indutiva e experimental, de uso comum em diversos ramos da ciência e cita uma regra de inestimável valor, cujas aplicações transcendem em muito o escopo deste texto: 'Para explicar as coisas invisíveis, devemos recorrer à evidência das coisas sensíveis.' Ou seja, para podermos explicar o que está além e causa as manifestações, devemos recorrer ao estudo dos efeitos manifestados em si. Desta forma, como desejamos saber como nos tornarmos felizes, realizados e desenvolvidos, cabe observar como agem os homens que alcançam tais características.

Aristóteles observou que o homem feliz vive bem e age bem. Que bem viver e bem agir corresponde diretamente a ser feliz.

Em nossas vidas cotidianas frequentemente supomos que alguns indivíduos que fazem o mal, antiéticos, terminam por alcançar a felicidade. Isto talvez ocorra porque observamos apenas o mundo exterior das pessoas e não o seu mundo interior. Não vemos suas despesas com médicos e com a farmácia; seu consumo de psicoativos, seus conflitos e isolamento interpessoal. Talvez também porque nossa capacidade de estudar os acontecimentos seja limitada. Observamos o que ocorre hoje, mas hoje não somos capazes de observar o amanhã. De qualquer modo Aristóteles desconsiderou eventuais exceções.

Porém quais seriam as características destas pessoas que agem bem? Como descrever e classificar a natureza de suas atitudes? Neste ponto Aristóteles faz uma abordagem compatível com o pensamento grego então vigente. Enquadrou as atitudes destes homens felizes em classes denominadas por virtudes. No entanto seria um contrassenso que a prática de tais comportamentos fosse desagradável, pois afinal é exatamente a prática de tais virtudes que leva à felicidade e à eudamonia de modo geral.

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Os homens virtuosos são felizes e por serem felizes são classificados como éticos, de modo que os homens éticos são virtuosos. As ações virtuosas devem ser necessariamente aprazíveis em si mesmas. A Eudamonia, que é obtida agindo-se virtuosamente é portanto também, a melhor, a mais nobre e a mais aprazível coisa do mundo.

Ser louvada é característica das virtudes e da ética como um todo. Fácil observar que em geral mesmo indivíduos não éticos prezam a ética. Assim, por exemplo, um patrão desonesto e antiético desejará um empregado fiel a ele, honesto a ele e laborioso para ele. Desta forma, mesmo os não virtuosos louvam a virtude, desde que os virtuosos não se voltem contra eles e desde que coadunem com seus erros. Os filósofos e os éticos são perseguidos e assassinados não por serem éticos, mas sim por suas ações políticas, defendendo uma ética comunitária.

Pelo pensamento Aristotélico, o comportamento ético independe do meio externo. Alguns homens tornam-se éticos; amealham inúmeras virtudes. Outros não o fazem portando-se de um ou outro modo nas mesmas circunstâncias.

O estagirita considera que a alma humana tem uma parte racional e outra irracional, que são distintas porém inseparáveis por natureza. Segundo ele, o princípio racional impele para o bem e (uma parte) do princípio irracional atua no sentido inverso.

Quanto mais ético seja um indivíduo mais a irracionalidade estará em todos os casos em sintonia com o princípio racional. Desta forma o primeiro passo para atingir a Eudamonia através do comportamento virtuoso é agir racionalmente e controlar as paixões com o emprego da razão. Surgem assim duas virtudes, quais sejam o controle da impulsividade e a continência. No homem continente o elemento irracional indesejável obedece ao princípio racional. Por fim, 'em todas as coisas, contra o que mais devemos nos precaver é o prazer e o que é agradável, pois não podemos julgá-lo com imparcialidade.'

O aperfeiçoamento de nossa conduta é a rigor um processo gradual de longo prazo. Ninguém pode ou deve transformar abruptamente o seu modo de ser. Ninguém pode ou deve ficar muito diferente de uma hora para outra. De acordo com Aristóteles, para

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iniciar tal jornada é conveniente começarmos com as nossas características comportamentais já razoavelmente satisfatórias e progredirmos eticamente a partir dai.

Aristóteles toma o cuidado de indicar a estratégia a ser usada para estabelecer em nós mesmos os comportamentos Éticos; aqueles capazes de nos fazer atingir a Eudamonia. Segundo ele, confiar ao acaso o que há de melhor e de mais nobre seria um completo contrassenso.

As virtudes seriam intelectuais ou morais. A geração e o crescimento das virtudes intelectuais se devem em grande parte ao ensino e requerem experiência e tempo. As virtudes morais são obtidas pelo hábito; pela prática. Aristóteles, consonantemente à moderna Programação Neuro Linguística, considera cada um de nós, ao mesmo tempo, o treinador e aquele que é treinado por nós mesmos. Assim, por exemplo, caso desejemos nos tornar mais cordiais devemos, antes de mais nada, começar a exercitar continuamente a cordialidade, até que esta característica se torne automática em nós. Assim, tornamo-nos virtuosos praticando a virtude e é pela ação que se gera ou se destrói uma virtude. Isto é, agindo-se bem ou agindo mal nos atos que praticamos em nossas relações com outras pessoas.

Para ilustrar a importância do treinamento, Aristóteles cita que um sábio foi convidado a dar uma palestra sobre educação. Este pediu um longo prazo para se preparar, o que surpreendeu os interessados, frente à sua notoriedade e domínio sobre o assunto. Chegada a data da apresentação, o palestrante se colocou no centro do anfiteatro e sem dizer palavra chamou auxiliares que trouxeram duas gaiolas: uma com uma lebre e outra com um lobo. Após outro sinal as gaiolas foram abertas: a lebre correu e o lobo também ao seu encalço terminando por despedaçá-la frente à audiência atônita. Passados alguns momentos o sábio fez outro sinal e outras duas gaiolas foram trazidas. As portas se abriram e a plateia aguardou idêntica cena. No entanto, desta feita, a lebre e o lobo correram um em direção ao outro e começaram a brincar afetuosamente. Com isto o sábio falou: Vocês me pediram para falar sobre educação. A diferença do primeiro para o segundo par de criaturas é a de que a segunda foi educada.

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Fica claro assim que podemos alterar nossas próprias características pessoais indesejáveis com o devido treino. O primeiro passo para atingir a Eudamonia é procurar empregar a razão no direcionamento de nossas atitudes. O segundo é o de auto-condicionarmo-nos. Habituarmo-nos a agir virtuosamente. A repetição de uma ação gera um hábito; um costume; uma maneira de agir fortalecida e condicionada. Desta forma se a virtude é condicionada, o erro se torna mais difícil. Para a posse das virtudes apenas o conhecimento é de pouco ou nenhum valor. A prática reiterada de atos virtuosos e portanto éticos é de importância fundamental. É por sua prática que o homem torna-se efetivamente ético. Sem essa prática ninguém teria sequer a possibilidade de tornar-se bom. '...Porém, a maioria das pessoas não procede assim. Refugiam-se na teoria e pensam que estão sendo filósofos e dessa forma se tornarão bons, de certo modo parecendo com enfermos que escutassem atentamente os seus médicos, mas nada fizessem do que estes lhes houvessem prescrito. Assim, como a saúde destes últimos não pode restabelecer-se com esse tipo de tratamento, a alma dos primeiros não se tornará melhor com um tal curso de filosofia...'

O estagirita considera que há uma necessidade fundamental a toda a ação ética que é a sua tempestividade. Ou seja, deve ser pertinente, buscar alguma utilidade. Deve também ser realizada em momento oportuno e em local conveniente. A orientação por ações úteis permite classificar a ética Aristotélica como uma forma de utilitarismo. Por se ajustar às condições de local e época não se caracteriza pelo estabelecimento de regras específicas e sim como já foi percebido, fundamenta-se exclusivamente no agir bem, que por sua vez se realizará caso a caso, graças ao bom discernimento do indivíduo. A ética de Aristóteles frequentemente é denominada como ética das virtudes.

Após o acima exposto cabe-nos agora mencionar algumas das virtudes exploradas pelo filósofo e é difícil escolher a melhor ordem para tal.

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Felicidade pela Ética

Aristóteles, ética e felicidade.

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Aristóteles salienta o que estrutura seu modo de pensar. Em certo aspecto a principal e a rainha das virtudes é a temperança ou moderação. Por descrição pitagórica anterior, buscar em tudo o meio justo e bom.

Ele observou que a grande maioria das virtudes tem um extremo de excesso e outro de deficiência. Os pontos médios seriam as virtudes e os extremos os seus vícios correspondentes. As virtudes seriam destruídas pela deficiência ou excesso e preservadas pela mediania.

Aos extremos da temperança, tanto seu excesso quanto sua deficiência, denominamos pelo mesmo termo, intemperança.

A prudência é outra das virtudes de enorme importância, talvez equivalente ou ao menos logo após a moderação. Pitágoras quanto a ela nos sugere pensar antes de falar ou agir. A prudência e a coragem são como as duas faces de uma mesma moeda. Os excessos de ambas são respectivamente conhecidos pelos termos covardia (até eventualmente a inação) e temeridade. As deficiências, respectivamente a temeridade e a covardia. Eventualmente fosse um exercício interessante, para cada virtude, buscar encontrar os termos caracterizadores dos vícios de excesso e de deficiência. Analisando a persistência, encontraríamos a inconstância e a teimosia. A liberalidade teria os extremos de avareza e prodigalidade. Prodigalidade extrema é considerada atualmente um desarranjo psíquico e se caracteriza por dar-se aquilo que não se tem. O ponto ótimo entre o desprezo e a idolatria seria o da admiração. O equilíbrio entre a impureza e o puritanismo é a pureza. O ótimo da mansidão teria como desvios a ira e a indefensabilidade. A simplicidade estaria entre a luxuosidade e a simploriedade. A humildade entre o orgulho e a pusilaminidade. O exercício pode ser estendido para todas as afecções humanas.

O meio termo; a atitude virtuosa adequadamente distante das extremidades opostas é determinada de modo relativo. É um diagnóstico pessoal. Para auxiliar tal análise é útil observar o que é nobre versus o que é vil; o que é vantajoso versus o que é prejudicial; o que é agradável versus o que é doloroso. Observe que pelo pensamento aristotélico e pelo menos a longo prazo, não há nada que gere maior prazer do que ser ético; virtuoso. Desta forma, apesar do fato que cada um de nós

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Felicidade pela Ética

Aristóteles, ética e felicidade.

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intimamente e sempre tendamos a nos considerar suficientemente bons, caso estejamos a sofrer, tal sofrimento é evidência que nosso comportamento não tem sido tão adequado quanto poderia. A natureza de cada um de nós pode ser considerada simbolicamente análoga a nossos pés. Os sapatos como nosso comportamento individual. Caso usemos sapatos de tamanho menor, ele machucará, eventualmente até não conseguirmos andar e nossos pés se ferirão. Por outro lado, se usarmos sapatos folgados demais, será também difícil caminhar. Eles machucarão. Podem cair dos pés e estes se ferirão no caminho pedregoso da existência. Em suma cada um tem um comportamento que lhe é adequado. O ponto ótimo para cada virtude e o diagnóstico de tal ponto cabe a cada um de nós fazer, através da razão e do auto conhecimento.

Em suma, por Aristóteles, o prazer e a dor que experimentamos são indicativos da qualidade de nossos comportamentos.

A tendência natural do ser humano quando porta um determinado vício é o de considerar um outro que porta a virtude de mesma modalidade, como manifestando o vício oposto. Assim um temerário ao observar um prudente tenderá a considerá-lo covarde. Um puritano ao observar uma pessoa pura, o considerará um libertino.

Uma vez que o indivíduo consiga diagnosticar que se encontra fora do ponto médio para si, em relação a uma virtude qualquer, Aristóteles sugere um procedimento corretor. Forçar-se seguidamente na execução do comportamento contrário, também não correspondente ao ponto médio. Assim, se alguém considera que está amando de menos, deve esforçar-se por algum tempo a amar demais. Se é auto diagnosticado como pouco amigável que procure por algum tempo ser amigável além da conta. Se rigoroso demais, por algum tempo e repetidamente por atitudes, uma pessoa complacente. Aristóteles observa que este é procedimento análogo ao de endireitar uma tábua empenada. Ela é molhada e forçada repetidamente para o lado contrário ao do empenamento. Ou seja, para atingir o ponto ótimo, deve-se cultivar por algum tempo o hábito de ultrapassá-lo.

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Felicidade pela Ética

Aristóteles, ética e felicidade.

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Poderíamos considerar que alguns princípios não apresentam nem excesso nem falta. Seriam exemplos a veracidade e o amor. No entanto podemos ser verdadeiros com rudeza na hora inoportuna ou verdadeiros com gentileza na hora oportuna. Ou podemos voltar o amor exclusivamente a nós mesmos (egoísmo) ou voltá-lo exclusivamente aos outros.

A justiça, além da temperança e da prudência é outra virtude muito apreciada por Aristóteles. A temperança e a justiça são como virtudes irmãs. Aristóteles considera a justiça uma virtude completa, pois está ligada a atuação do indivíduo não somente para consigo mesmo, mas também em relação ao próximo. A justiça é também o bem de um outro. A justiça seria uma síntese de todas as virtudes. Em relação a ela, recomenda agir na consideração das leis ideais, além e acima das leis formais. Acima das leis convencionadas pelos homens, aquelas que reflitam o bem. A justiça de acordo com o estagirita é distributiva e proporcional. A reciprocidade dever-se-ia fazer de acordo com uma proporção e não na base de uma retribuição exatamente igual e seria pela retribuição proporcional que uma coletividade se manteria unida. Ou seja, se um de nós recebe algo bom é oportuno que ofereça algo em troca, proporcional às nossas possibilidades. Se um chefe nos contempla com uma promoção que jamais poderíamos dar igual a ele, que tal lembrar de seu aniversário ou lhe desejar bom dia?

O homem que age injustamente ficaria com uma parte muito grande daquilo que é bom, e o que é injustamente tratado ficaria com uma parte muito pequena. A justiça corretiva seria o meio termo entre a perda e o ganho. Deveríamos, segundo Aristóteles, tanto subtrair do que tem mais, como acrescentar ao que tem menos. Justiça seria equilibrar os pratos da balança.

Pelo exposto observamos, que tal como os demais maiores pensadores da área da ética, Aristóteles também defende a igualdade entre todos os seres humanos. Não apenas igualdade de oportunidades, mas também plena e indistinta igualdade de meios e fins.

O pensamento de Aristóteles é de extrema valia. Ele nos mostra que todas as ações humanas, normalmente impensadas e de motivação

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Felicidade pela Ética

Aristóteles, ética e felicidade.

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não consciente, pretendem a felicidade, a autorrealização e o desenvolvimento pessoal. A pessoa que se sente em autorrealização e desenvolvimento, sente-se bem. Observa que a prática de virtudes leva a tais resultados e a prática de vícios a resultados opostos. O comportamento adequado ao homem é o que lhe traz a felicidade, a autorrealização e o desenvolvimento. Como isto é alcançado por uma vida virtuosa, uma vida virtuosa é uma vida ética.

Tornamo-nos virtuosos agindo racionalmente e habituando-nos a ações virtuosas. A virtude se obtém pela prática. Se por acaso sofremos, cabe a nós observar quais virtudes não estamos praticando adequadamente e procurar nos ajustar melhor ao seu ponto de equilíbrio. Várias virtudes são comentadas por Aristóteles.

A virtude fundamental é a temperança, concebida como o meio justo e bom entre opostos de mesma natureza (vícios). Tal meio justo, bom e adequado depende de cada indivíduo. A prudência é magistralmente descrita por Pitágoras séculos antes: 'pensa antes de falar; pensa antes de agir.' A justiça é uma virtude que sintetiza as demais. Na sua ação, deve-se buscar o equilíbrio, o meio termo e a igualdade, através de ações proporcionais aos desvios. A justiça Aristotélica visa a plena e efetiva igualdade entre todos.

Mas não poderíamos encerrar este texto sem pelo menos mencionar mais umas poucas virtudes, dentre as aristotélicas.

A fortaleza ou seja, não fraquejar ante os obstáculos ou a oposição; persistir.

O auto controle e gestão, sinônimo de autonomia, termo criado e virtude valorizada anteriormente por Sócrates.

A amizade, que é dar amor a outro. A magnanimidade (bondade) e a magnificência (generosidade) tão

profundamente valorizadas pelos grandes pensadores de todos os tempos.

Se Aristóteles está certo, o que é verdadeiramente de valor na vida é obtido através das virtudes. O que é detestado por todos, através dos vícios. Cabe a cada um de nós confiar ou não no diagnóstico deste filósofo; experimentar e nos convencermos ou não que está certo.

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Felicidade pela Ética

Uma pausa para conversar.

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14 Uma pausa para conversar.

O maior bem almejável a qualquer ser humano é a sua felicidade.

Como ética justamente significa tão somente comportamento, o melhor comportamento e a melhor ética é aquela capaz de nos tornar verdadeiramente felizes. Tal afirmação é assustadora. Não seria isto uma antiética a violar todo o conceito verdadeiro da moral? Não seria a ética ao contrário, uma vida de contínuo sofrimento e desilusão?

Não! A constatação é a de que os indivíduos felizes são aqueles que agem bem. Quem age bem é ético e também feliz.

Isto vai de encontro à opinião comum. Supomos ser possível e supomos observar indivíduos não éticos felizes e indivíduos éticos infelizes. Como nós mesmos temos a forte tendência de interiormente nos considerarmos éticos, na medida que sejamos infelizes, seríamos levados a discordar. Este é justamente o primeiro ponto a considerar, a respeito da discordância entre a opinião comum e a conclusão que estamos a considerar. Será que somos tão éticos quanto pensamos, para sermos tão felizes quanto almejamos?

Quanto à observação que fazemos das pessoas ao nosso redor, concordaremos que o que vemos é apenas o mundo exterior de cada um. Vemos alguém com uma boa casa ou um bom carro e concluímos: ele é feliz. E a ideia de felicidade associada a bens de consumo nos é bombardeada a cada instante por pessoas que nos rodeiam e pela propaganda. Talvez desde pequeno nos tenham vendido a meta de estudar para ganhar dinheiro e assim ser feliz, ou ganhar dinheiro de qualquer outro modo e assim o ser. Não me parece que haja mal objetivo em possuir-se bens. Porém correlacionar bens com a felicidade é, dentre outros pontos, ignorar fatos tais como o de que por pesquisas sérias, as pessoas que se consideram mais felizes tendem a ser justamente aquelas portadoras de menor quantidade de bens.

Quando observamos pessoas ao nosso redor, com conduta que nos parece inadequada e as vemos felizes, vemos apenas exterioridades.

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Felicidade pela Ética

Uma pausa para conversar.

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Não vemos seu sofrimento interior ou não vemos a quantidade diária de medicamentos que precisam ingerir para dormir ou viver. Uma face sorridente pode esconder um inferno ardente interior. Uma face sóbria, o paraíso.

Como observadores temos ainda a limitação de ver as coisas como se apresentam no agora e não ao longo do tempo. Alguém hoje é efetivamente feliz e efetivamente apresenta um comportamento inadequado? Isto é hoje. O que podemos dizer sobre o amanhã, ou daqui a um mês ou um ano? Esta felicidade passageira não seria tal como uma brisa prenunciando uma tempestade promovida por seus atos equivocados? E o sofrer de hoje porventura não seria apenas um ajuste e arranjo a alegrias indescritíveis?

Quando observamos o comportamento de alguém e o julgamos como adequados ou inadequados, a rigor estamos empregando como padrão para comparação os modos de proceder que nós próprios preconcebemos como certos ou errados. Ou como o meio social onde nos inserimos assim considera. Não é por vezes considerado certo criticar ou fazer sofrer a outros? Não é considerado por muitos, algo totalmente independente da ética, fazer ativamente o bem? Mas será que nós estamos certos quanto a isto? Será que a opinião comum do meio social onde estamos inseridos está correta? O que achamos ético não pode ser na verdade antiético e vice-versa? Se vejo alguém feliz e eu mesmo me sinto infeliz, não seria na verdade ele o ético e eu o antiético, apesar de todos os preconceitos que carrego e toda a massa popular de opiniões e costumes concernentes a tais fatos? Eu não pago impostos porque os impostos são mal geridos e sou ético. Eu traio o consorte e sou ético. Eu sou rancoroso e vingativo e sou ético. Eu não respeito e desprezo e sou ético.... O conceito popular de ética será mesmo a melhor ética?

Figuras há na história, de ética que poderíamos considerar inquestionável. Para o mundo ocidental o mais importante nome para a maioria é o de Jesus. Mas muitas coisas terríveis foram feitas por pretensos seguidores seus. Guerras, assassinatos, fogueiras, destruições. Destruições inclusive efetuadas sobre o saber e a cultura humanas.

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Felicidade pela Ética

Uma pausa para conversar.

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Monges usando por debaixo de seus mantos faquinhas para autoflagelação; fiéis ferindo inutilmente seus joelhos em longas jornadas ou se chicoteando freneticamente. Não há uma única palavra que tenha saído da boca de Jesus e que pode ser lida em um dos quatro evangelhos que sequer sugira isto. De onde saiu tanta insanidade e ignorância e maldade? De Jesus ou daqueles que se dizem porta vozes de seus ensinos?

De qualquer forma, ao passarmos defronte de templos, o que vemos é um instrumento de suplício romano. O que relembramos em seu interior está associado às horas próximas de tal tortura. Automaticamente passamos a associar ética com dor e morte. Mas será mesmo assim? Porventura Jesus não era feliz? Porventura estava triste quando centenas acorriam a ele para ouvir um pouco de seus ensinos? Ou estava triste quando amenizando a dor de doentes os curava? Cristãos costumam crer que Jesus após a morte tornou-se um príncipe regente dos céus. Serão esta função e este local desconfortáveis? Cristãos tem em mente dias de sofrimento e dor e ignoram a felicidade de antes e depois.

E quanto ao próprio Aristóteles, refugiado longe de Atenas ao final da vida? Seria ele infeliz ao longo das décadas que ensinava aos seus alunos enquanto passeava pelo parque?

Ou Sócrates, condenado a beber veneno, estaria ele deprimido enquanto por muitos e muitos anos, ao redor das mesas de banquete e rodeado por seus admiradores, calmamente os ajudava no caminho do conhecimento?

Gandhi então, adorado quase como um deus, passeando sem seguranças e apenas apoiado em suas netas e rodeado por multidões gratas e embevecidas; como estaria se sentindo ele. No momento do assassinato elevou seu pensamento a Brahma; enquanto aprisionado pelos ingleses, mostrava ao fiar tecidos, a sua liberdade e a sua verdade a todos.

Mandela por anos aprisionado, por uma vida inteira e além dela, adorado por toda uma nação.

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Felicidade pela Ética

Uma pausa para conversar.

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Mas este ainda não é o ponto principal. O que você acha? Tais personagens e inúmeros outros reconhecidamente éticos, sofreram dificuldades por serem éticos? Por serem éticos ou na verdade por algo mais?

Médicos salvam vidas e como vidas não tem preço, recebem como retribuição um nada em comparação ao que dão. Médicos enquanto analisados estritamente como médicos podem ser considerados éticos e normalmente assim até mesmo o povo os reconhece e respeita. Pelo menos a maioria não sofre perseguições ou torturas ou assassínios ou é aprisionada.

Volto à pergunta. Os éticos tem períodos de sofrimento apenas por serem éticos? O essencial da ética é fazer o bem. Os que sofrem percalços por eles passam, apenas porque fazem o bem? Não seria a rigor devido a uma orientação particular ao bem que fazem?

Um médico é ético. Faz bem ao seu cliente. Um pai ou mãe são éticos. Fazem bem aos seus filhos e costumam ser felizes e realizados.

Mas qual bem Gandhi tentou e conseguiu fazer. O seu bem particular foi o de libertar todo um povo do império inglês. O bem de Mandela foi o de igualar negros e brancos em uma nação inteira. A uma tal ação não chamamos apropriadamente por ética e sim por política. Tais personagens não eram apenas éticos, mas alteraram em grande medida o comportamento coletivo. Foi sim esta ação política que os fez sofrer e não o fato de serem éticos.

Sócrates e Aristóteles libertaram parcialmente da ignorância a juventude de Atenas, uma das mais importantes cidades da Grécia. Alteraram seu modo de pensar. Mostraram-lhes os erros e as injustiças associadas ao pensamento comum. Procuraram não somente serem éticos, mas tornar também os que os rodeavam assim. Procuraram não somente a felicidade individual, mas também a felicidade coletiva. E pessoas que agem de modo mais esclarecido, de modo mais ético, normalmente desagradam muitos. Ambos, dentre outros tantos, acenderam inúmeros archotes e a luz perturbou as trevas e as trevas em revolta buscaram a vingança.

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Felicidade pela Ética

Uma pausa para conversar.

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Jesus foi ainda mais longe: Foi ético e feliz e procurou fazer com que outros fossem éticos e felizes. Mas além disto, incentivou seus alunos a fazer bem do mesmo tipo que ele mesmo fazia. Isto é, a fazer o bem, ensinando aos outros a também fazer o bem. E desta forma o seu trabalho, na medida que seja imitado e bem entendido - vale repetir, bem entendido - tem a possibilidade de transformar gradualmente todo o mundo, em um mundo ético; todo o mundo, em um mundo feliz.

Salvo melhor juízo, é conveniente passarmos de uma ilusão de ética para a verdadeira ética. O prêmio é um cavalo valioso e fogoso - a felicidade - que nos incentiva, conduz e impulsiona ao longo da vida.

Somos felizes com o bem. No bem somos éticos. Somos felizes recebendo amor e o único meio seguro e inabalável de recebê-lo é o doando. Num bar e numa festa com outros, compramos a felicidade com a única moeda que efetivamente existe; trocando amor. Você já foi a uma balada e conversou e dançou com outros? Interagiu afetuosamente com eles? Foi bom, não foi? Ao contrário você já foi a um lugar destes sem conhecer ninguém, não interagindo com ninguém, ninguém interagindo com você?

Pessoas não se tornam felizes com um certo trabalho. Ficam felizes na medida que consideram em seus corações que o trabalho que executam é útil, é bom, é um bem a outros. E o bem que visam aos outros alegra seus próprios corações.

Nenhum ser humano suporta bem uma vida não significativa. Temos a necessidade de sermos heróis de algum modo. O modo, compete a nós mesmos escolher. Damos sentido às nossas existências nos sentindo verdadeiramente úteis a outros. Verdadeiramente nos sentindo; não apenas racionalizando a respeito. Ser útil é uma necessidade inconsciente que a teoria da evolução ou a psicologia explicam. Dar significado à vida trás efeitos colaterais: um sentimento contínuo de bem estar e felicidade, auto realização e desenvolvimento pessoal. Quem se sente útil atua de algum modo em seu meio social e como atende ao apelo interior de ser útil, também se desenvolve. Fazer o bem é a grande receita geral para a vida, dada insistentemente pelos grandes pensadores da humanidade de todos os tempos. É o cerne

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Uma pausa para conversar.

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verdadeiro da ética. Quais bens fazer compete ao coração de cada um de nós escolher.

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Felicidade pela Ética

Justiça. O que pensamos dela.

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15 Justiça. O que pensamos dela.

O conceito básico de Justiça é a ideia de correção do erro, da

falha, do desequilíbrio e outras concepções análogas. Suas bases são encontradas dentre outros fundamentos, na moral, na Ética, nas leis, nas leis naturais e nas religiões. Descobertas recentes demonstram que o cérebro humano responde automática e naturalmente a situações justas ou injustas no campo da desigualdade das inter-relações sociais. Tal constatação sugere que um ambiente justo tenha a propriedade de satisfazer necessidades humanas básicas naturais. Da mesma forma, pesquisas também demonstram que também macacos reagem a situações justas ou injustas de igualdade ou desigualdade social. Isto sugere que o princípio da justiça está ligado aos instintos e aos sentimentos de parte dos seres vivos.

Podemos observar algumas abordagens ou concepções filosóficas

básicas no estudo da Justiça. Sócrates concebia a Justiça como Harmonia; como uma busca

para a promoção do inter-relacionamento humano harmonioso. Para Platão, para se atingir tal harmonia, seria necessário que o indivíduo retribuísse o correspondente exato de todos os benefícios que recebesse.

Outra abordagem é a da Justiça como ordem divina. Daí surge um dilema clássico conhecido como dilema Eutífron. Se Deus impõe a justiça, por impô-la é essencialmente tirano. Se Deus subordina-se à justiça, por estar subordinado, é vassalo. Uma proposta de solução é a de que Deus é bom, e por ser bom, a justiça divina é expressão de Sua bondade. Se esta é uma solução aceitável, Deus planejaria o melhor à sua criação e a Sua Justiça levaria a isto.

Na concepção de Justiça natural, as consequências resultam naturalmente, por meio de leis naturais, das ações ou das escolhas.

Na ideia de Justiça como criação humana, se afastam as concepções de harmonia natural, ordem divina, lei natural, etc.

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Justiça. O que pensamos dela.

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Na abordagem da Justiça como artifício, considera-se a Justiça como uma construção para que os detentores do poder dominem os fracos.

Na Justiça de comum acordo, considera-se a Justiça como criação humana e um pacto entre os indivíduos de uma coletividade para adequado convívio social.

Na Justiça como valor subordinado, segue-se a orientação da Ética Utilitarista e considera-se que a Justiça deve ser exercida com o único propósito de produzir a maximização do bem, através da previsão das melhores consequências.

Podemos considerar que são em número de quatro, as grandes

teorias da Justiça: Consequencialista, Distributiva, Retributiva e Restaurativa.

A Justiça Consequencialista é a aplicação direta da Ética Utilitarista. Por tal pensamento uma ação é tanto mais ética quanto promova o maior bem para o maior número de pessoas. Desta forma, o valor de qualquer ação é medido pelo resultado alcançado, frente ao objetivo de maximização do bem. Do mesmo modo, a reação a qualquer ação deve buscar do mesmo modo tal maximização; o maior bem.

Na Justiça Distributiva, o exercício da Justiça deve pretender a distribuição adequada de coisas boas entre pessoas diferentes. Como critérios de distribuição, podemos citar quatro conceitos: Igualitarismo, Meritocracia, Consequencialismo e Imparcialidade.

Pelo Igualitarismo é papel da Justiça promover plena igualdade no usufruto das coisas boas, tais como direitos, oportunidades, resultados, bens e serviços.

Pela Meritocracia, o usufruto das coisas boas deve ser proporcional ao mérito individual. Já os critérios de mérito podem ser o volume do trabalho, a qualidade do trabalho, a inteligência, a simpatia, a boa aparência e assim sucessivamente. A ideia de mérito pode possibilitar uma interessante discussão. Numa visão materialista, os critérios acima citados dependem fortemente, quando não exclusivamente de fatores genéticos e ambientais e muito pouco ou nada do indivíduo em si. O

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Felicidade pela Ética

Justiça. O que pensamos dela.

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mesmo se aplica para algumas concepções espiritualistas nas quais a situação do indivíduo no presente é essencialmente arbitrária.

Pelo Consequencialismo, o usufruto das coisas boas entre os indivíduos deve ser feito de modo a maximizar o bem.

Por fim, pelo critério da Imparcialidade, o exercício da Justiça deve se mostrar imparcial quanto à questão de usufruto de coisas boas.

Neste ponto, salvo melhor entendimento, cabe algumas reflexões

do filósofo John Rawls. Segundo ele, no exercício da Justiça, devemos nos abstrair de tudo a respeito de nossos interesses pessoais e escolher a ação, ou a reação, ou a decisão que seria melhor para todos. Devemos ainda buscar o maior benefício dos menos favorecidos e quanto ao direito de Liberdade, garantir que cada pessoa tenha a maior liberdade possível, compatível com a maior liberdade para todos.

Pela Justiça Retributiva, retribui-se uma ação individual

inadequada, com uma reação temida ou desagradável. No exercício da Justiça com tal orientação surgem três questões: Por que reagir? Como reagir? Quando reagir (ou não)? Na Justiça Retributiva há duas orientações: Novamente o Consequencialismo, com base na Ética Utilitarista e o Retributivismo, baseado na Ética Deontológica.

Pelo Consequencialismo a ameaça de punição ou a punição eventual pretende a dissuação de ações que redundem em más consequências, que poderiam ser realizadas por outros membros da coletividade. Na mesma linha, a punição exemplar ou a mais amena de cerceamento da liberdade tem por fim desencorajar a repetição de ações que redundem em más consequências, por outros indivíduos. Por fim, a reabilitação do indivíduo transgressor visa impedir a repetição da ação indesejada por este.

No Retributivismo não se pretende que a ação da Justiça interfira no comportamento da coletividade como um todo. Considera-se que a reação deva ser proporcional à ação, justamente correta e merecida, focada exclusivamente nos seus autores. Outra interessante reflexão que deixo ao amigo leitor é de como, por exemplo, retribuir um dano, aos

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moldes da lei bíblica do Talião (olho por olho...) causado digamos por um assalto: 1 ano de cadeia, 10, 20, 30 ? Como se quantificar racionalmente tal vingança?

A quarta grande teoria da Justiça é a Justiça Restaurativa. Por

meio desta orientação, a Justiça não apresenta o conceito de punição ou vingança ou ainda o papel de coersora de comportamentos da coletividade. Frente a uma ação individual inadequada ao meio social, seria papel da Justiça apenas promover adequadamente a correção do indivíduo que a praticou, através de, por exemplo, ações de caráter educativo. Nela o indivíduo que comete atos claramente danosos a outros permaneceria em processo educacional por prazo indefinido, até correção de suas tendências inadequadas.

Além destas quatro correntes principais, há outras teorias que se constituem numa mesclagem das mesmas.

As representações estéticas humanas e mais apropriadamente

nossas representações simbólicas, pela linha de pensamento junguiano e salvo melhor juízo, revelam as nossas bases conceituais comuns. Muito do pensamento contemporâneo se deve à antiga cultura grega, e por sua mitologia, a Deusa que representa a Justiça é Têmis, por sua vez, filha do Céu (Urano) e da Terra (Gaia). Têmis é prima e irmã de criação da cruel Nêmesis, a Deusa da Retribuição. É uma das esposas e conselheira de Zeus, o Deus máximo Criador, Mantenedor e Governador da criação. Têmis representa ou personifica simultaneamente a sabedoria, a ordem divina, a ordem natural, a ordem social, a estabilidade e a Justiça. Seus atributos são a beleza (ela é bela), a dignidade (ela inspira respeito) e a atratividade (ela atrai e exerce fascínio). Algumas das filhas de Têmis com Zeus ou algumas das características que surgem e ou estão relacionadas com ela, são: Astréia (Pureza e Inocência), Irene (Paz), Diké (as reflexões que levam ao comportamento justo) e Eumônia (Disciplina).

Nas representações estéticas, Têmis segura uma balança de dois pratos iguais, como que garantindo o equilíbrio preciso entre todos os aspectos de uma ou mais questões. Têmis por ser uma Deusa é

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Justiça. O que pensamos dela.

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absolutamente imparcial e plenamente sábia, estando alheia às preferências humanas. No entanto a partir do século XVI os artistas decidiram reforçar este seu aspecto, colocando uma venda sobre seus olhos. Cabe lembrar, no entanto, que pela concepção grega original, Têmis tem seus olhos bem abertos.

Outro acréscimo recente é o de uma espada. No passado, a capacidade da Deusa de corrigir o desequilíbrio e o erro e de restaurar e manter a ordem, não era de forma alguma questionada. A espada foi acrescentada para reforçar a ideia desta capacidade.

Finalizando estas rápidas noções a respeito da Justiça, podemos

enfatizar que todas as teorias visam o bom inter-relacionamento humano e todas buscam o que é certo e as melhores soluções para as nossas inúmeras questões de convívio.

As leis se constituem idealmente nas regras mais fundamentais para o atingimento do bem comum. Tendem a representar o que há de mais fundamental numa determinada moral coletiva.

No caso de legisladores não representativos; por exemplo, ditadores ou oriundos de Estados invasores, as leis representam interesses estranhos ao coletivo, eventualmente não sendo nem morais, nem éticas.

Numa democracia auto-representativa ou numa democracia representativa na qual os legisladores se constituam numa amostra rigorosamente precisa do padrão ético e moral de uma comunidade, as leis se constituem nas regras mais fundamentais da moral da nação. Daquela que representa a moralidade da maioria. Podemos dizer que neste caso, todas são morais, mas não necessariamente éticas. Em tal condição é razoável afirmar que há uma tendência de estagnação no processo de aperfeiçoamento moral da população.

Em relação a isto Aristóteles afirma que o principal papel do legislador é o de proporcionar a evolução moral de seu povo. Para que isto se concretize é necessário que os legisladores sejam portadores de padrões éticos superiores ao da média da população considerada. Com isto se estabelece uma tendência a leis éticas, mas que não correspondem

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Justiça. O que pensamos dela.

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necessariamente à moralidade vigente. A Grécia antiga nos agraciou com um notável avanço da cultura e das instituições humanas. Naquela época muitos dos legisladores eram também os grandes filósofos que estudamos ainda na atualidade.

Concluindo este rápido comentário quanto às leis, lembramos que estas cerceiam a liberdade individual em troca e a princípio, de garantir um maior bem estar coletivo.

Epiquéia é conceito de origem grega, de uma Justiça ou Ética

Superior que se sobrepõe às leis e a moral. Graças a ela, se torna lícito ao homem, frente à sua própria consciência, agir contrariamente às mesmas. Seriam exemplos que justificariam a aplicação deste conceito, o rigor exagerado de uma dada lei, seu caráter insuportável, o choque da lei com valores profundos do indivíduo, a dificuldade extrema de cumprir a lei em plenitude, ou seu caráter estranho à vida e à sobrevivência. Poderíamos simplificar tal ideia por meio da classificação que já efetuamos, afirmando que seria o agir conforme a Ética e não a moral.

Mesmo a mera citação deste conceito exige comentários: * A aplicação da Epiquéia de modo algum implica no perdão das

penalidades impostas pelos legisladores. Por exemplo, o cidadão que convocado em tempo de guerra se

recusar a guerrear, eventualmente será punido. Neste contexto é interessante observar que tal cidadão possivelmente morrerá se for guerrear, como também se for guerrear e propositalmente errar todos os tiros. Assim em muitos casos a Epiquéia é uma questão de consciência pessoal e não de resultado. No exemplo citado o de um pacifista morrer ou não em paz com sua consciência.

Sócrates poderia fugir de Atenas traindo a sua vida pela traição de seus ideais, ou beber o veneno que o Imperador lhe ordenara.

Jesus poderia se conformar às antigas leis judaicas ou ainda simplesmente fugir da Judéia, ou então enfrentar a crucificação.

* Nossa capacidade racional é facilmente comprometida por fatores psicológicos. A existência de terroristas e assassinos alucinados é

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facilmente observável. Podemos sempre estar errados em nossos julgamentos.

* A Epiquéia não se aplica para justificar a quebra de leis; cometer um delito, por interesses menores ou excusos.

* Antes de cogitar não obedecer a uma lei é da maior propriedade, trocar ideias com aquelas pessoas que nos amam e ou que admiramos e ou gozam de maior experiência vivencial, tais como os pais, avós, irmãos, professores, religiosos. Amigos respeitáveis, cultos, íntegros, experientes, sábios, inteligentes...

Como síntese, a Epiquéia sempre está voltada para o bem maior.

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De modo similar ao sofismo e a outros movimentos, o estoicismo

apresenta várias personalidades de peso. Seus principais expoentes podem ser considerados como o cipriota Zenão de Cítio (334 a.C. - 262 a.C.), o consul romano Marco Túlio Cícero (106 a.C. - 43 a.C), o senador também romano Lúcius Sêneca (4 a.C. - 65 d.C.) e o imperador-filósofo Marco Aurélio (121 d.C. - 180 d.C.). Iniciada no século IV a.C. na Grécia, tornou-se a visão filosófica dominante do Império Romano até o terceiro século da era cristã. Se há uma diretriz que caracterize esta linha de conduta é a de que deveríamos nos resignar calmamente ao que nos acontece, pois tudo está regido por uma ordem natural. Na concepção cosmológica, o Universo seria um contínuo ordenado, governado por uma Alma do Mundo. Interessante observar que nenhum grande estóico se absteve de tentar melhorar o mundo no qual vivia. Desta forma se a mudança efetivamente acontecia, ótimo! Esta estaria de acordo com um princípio ordenador maior. Caso contrário, restaria apenas aceitar os fatos, pois novamente tudo estaria em conformidade com tal ordem. Eventualmente poderíamos entrever nas concepções deste movimento, uma visão termodinâmica dos acontecimentos que se desenrolariam no tempo por uma sucessão de estados de equilíbrio.

Zenão de Cítio foi o fundador da escola denominada por Escola

do Pórtico. Segundo ele o homem deve aceitar a fatalidade universal, refugiar-se na sua interioridade da qual poderá chegar a ser dono e senhor, bem como organizá-la convenientemente. Viver adequadamente seria responder com elegância a impotência objetiva e ter ciência da própria situação. A liberdade atingir-se-ia quando as paixões estivessem controladas. Estas seriam impulsos que pretenderiam inutilmente alterar a ordem universal, mas que apenas alterariam a ordem interior do indivíduo. Seriam portanto enganosas. Caberia ao estóico dominá-las

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esforçando-se por nada desejar. Caso conseguisse tornar-se indiferente aos bens exteriores, nunca sentiria falta daquilo que não tem e permaneceria em paz e imperturbável.

Os estóicos atribuem uma natureza material a todas as realidades admitidas, tais como Deus, a alma, as virtudes, os sentimentos como o amor, as ações como o andar e assim sucessivamente para tudo. Desta forma a realidade universal seria objeto da física; das ciências naturais. Nada se encontraria além deste plano da materialidade e a metafísica seria desta forma essencialmente uma ilusão tal como seria igualmente uma ilusão considerar a divindade apartada da materialidade. A realidade considerada deste modo serve de pressuposto à ética e esta é a única divisão da filosofia que recebe a atenção dos estóicos. Para eles o supremo bem estaria em viver de acordo com a natureza.

As pessoas comuns correriam atrás de suas paixões, submeter-se-iam aos seus desejos e com isto apenas conseguiriam intranquilidade e angústia. O estóico, pelo contrário, saberia que praticamente tudo o que acontece não pode deixar de acontecer, pois quase nada se pode evitar. Desta forma, nada há a deplorar e nada o que perseguir. Ao homem fundamentalmente apenas restaria a sua liberdade em seu mundo interior. A paz nesta região só seria atingida pelo autodomínio.

Para um estóico, a responsabilidade ética de cada um se assenta naquilo que efetivamente depende dele. As deliberações éticas se relacionariam à distinção entre o que podemos ou não interferir ou atuar.

Marco Túlio Cícero foi influenciado pelos pensamentos de

Aristóteles e Platão. Colecionou muitos inimigos poderosos e foi assassinado a mando do imperador Marco Antônio.

O princípio fundamental do mundo e da realidade seria a razão. Deveríamos nos devotar ao autocontrole; ao autodomínio. Haveria um Deus único e todos nós seríamos seus filhos. Todos os homens seriam iguais, membros de uma só família. Cícero defende a ideia de um Estado Mundial e de uma Cidadania Universal. Ainda, que haveria um direito natural de origem divina.

O homem bom deveria procurar a virtude na sua ação diária.

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Quanto à política, seria na pólis que a virtude melhor poderia ser exercida. O político seria mais importante que o filósofo, porque enquanto este conseguiria persuadir apenas um pequeno número de pessoas a seguir seus conselhos, o político, através das leis que faz aprovar e do poder de comando que exerce, é capaz de levar todo um povo a fazer aquilo que os filósofos indicassem.

Quanto ao sistema de governo, a monarquia se prestaria a abusos quando houvesse um mau rei. A aristocracia seria elitista e tenderia a descuidar dos direitos do povo. A democracia é exercida pelo povo que por sua vez estaria entregue às paixões, aos apetites e à inveja. No sistema ideal, o governo deveria ter suficiente poder para governar; o parlamento, suficiente autoridade para fazer Leis; e o povo, suficiente liberdade para fiscalizar e controlar o governo e o parlamento.

Cícero defende uma postura altruísta de vida. '... o cidadão deve mostrar uma grande disponibilidade para dar generosamente à pátria sua vida, que sempre seria necessário dar um dia à natureza. Não há que hesitar, assim, em adquirir pelos nossos próprios perigos, a tranquilidade de todos os cidadãos.'

Cícero também faz distinção entre um direito natural, real, superior e anterior e o denominado direito positivo, estabelecido pelo Estado. Quanto ao direito natural afirma que há '... uma lei verdadeira, que é a reta razão, conforme a natureza, presente em todos os homens, constante e sempre eterna. Essa lei conduz-nos imperiosamente a fazer o que devemos, e proíbe-nos o mal, desviando-nos dele. O homem honesto não é nunca surdo aos seus comandos e proibições: mas estes não tem efeito sobre o perverso. A essa lei nenhuma alteração é permitida, e não é lícito revogá-la no todo ou em parte.' Tal lei natural estaria enraizada na ordem natural, que foi criada por Deus e poderia ser descoberta pela razão humana.

O pensamento acima pode ser considerado como uma antecipação de algumas consequências da ética evolucionária natural ou ainda das conclusões Junguianas. Pode também ser encarada como uma das primeiras propostas de direitos humanos independentes dos direitos estabelecidos pelos homens.

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Para Marco Túlio os deveres éticos do indivíduo, ao longo de sua vida, são fundamentais, sendo imperativo evitar-se o mal em todas as situações. Deveríamos procurar fazer com que a razão dominasse os sentimentos e os apetites, o que seria o mais importante para o cumprimento das obrigações individuais. O conhecimento ocupar-se-ia com a investigação da verdade e a vontade com as ações individuais. A educação ética ocorreria primeiramente no seio familiar. A posse das virtudes seria superior à de todos os bens materiais.

Lúcius Sêneca nasceu na província romana da Espanha. Autor da

carta intitulada 'Clemência' dirigida ao imperador Nero, na qual defendia uma monarquia moderada, sem o uso do terror e a tirania. Um pouco mais tarde foi assassinado a mando deste mesmo imperador.

Digno de nota mais uma vez o fato que os pensadores e filósofos não sofrem perseguições ou são mortos por apresentarem um comportamento ético e sim quando se veem impulsionados e atuam no sentido de promover uma ética comunitária. Ou seja, são condenados por suas ações políticas.

Para ele, apesar da formação ética individual começar no seio familiar, a interação professor-aluno igualmente seria importante.

A sabedoria estaria '... em conduzir a própria vida conforme a razão, cumprindo um programa duplo: o domínio dos afetos da alma e o saber enfrentar impassivelmente as mudanças da fortuna.'

Todas as pessoas trariam em si as sementes de uma vida honesta, embora os bons hábitos e os bons exemplos ao longo da existência tivessem um papel primordial na adoção das virtudes. A educação ética consistiria em fazer com que os atos correspondessem aos princípios éticos. Por outro lado, nem sempre o indivíduo possuiria força de vontade e sabedoria suficientes para a adoção do bem e a rejeição do mal. Desta forma justificar-se-ia a ação de um tutor espiritual, que através de sua vigilância e bons conselhos, orientaria e fortaleceria o aluno.

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Para Sêneca não é necessário que alguém seja semelhante aos melhores. Bastaria que fosse melhor que os maus e que a cada dia diminuísse um pouco seus vícios e evitasse os erros.

Conclama a que fujamos do luxo e que meçamos as coisas pela utilidade que nos proporcionam. Que aprendamos a nos apoiar em nós mesmos. '... A temperar o desejo de glória, a mitigar a ira, a olhar com bons olhos a pobreza, a praticar a frugalidade, ainda que muitos se envergonhem dela.'

Encoraja-nos também a seguir a nossa própria razão, fugir da opinião da maioria e desenvolver um pensamento superior. '... É por isso que a primeira coisa a fazer é não seguir, como uma vaca, o rebanho das pessoas que nos precedem, pois nesse caso encaminhar-nos-íamos, não para onde é necessário ir, mas para onde vai a multidão. No entanto, nada nos arrasta mais para grandes males do que a conformação à voz pública; pensar que o melhor está ligado ao assentimento de grande número, de tal modo que vivemos, não de acordo com a razão, mas por espírito de imitação... A opinião da multidão é indício do pior. Procuremos, pois, aquilo que é o melhor e não o que é mais comum; aquilo que nos colocará na posse de uma felicidade eterna e não o que tem a aprovação do vulgar, que é o pior intérprete da verdade.'

A felicidade atingir-se-ia com a conformidade com a lei natural. A vida feliz seria aquela que respeita a natureza A existência que procura a beleza no interior de tudo. As coisas verdadeiras e não as aparentes. Seria à natureza que cada um deveria dar a sua consciência, porque segundo ele, a sabedoria residiria em não nos afastarmos dela. Em nos conformarmos com a lei natural, mantendo a alma sã, o corpo saudável e afastando-nos das inquietações e dos prazeres aparentes e fugidios. Uma vida de apaziguamento da alma e de cultivo da tranquilidade. Mantendo alegria perene e não a exaltação. Guardando ausência de admiração em relação aos bens exteriores, porque o verdadeiro prazer relacionar-se-ia justamente no desprezo pelos prazeres. Na vida feliz a alma seria livre, elevada, sem medo, constante e inacessível ao receio e ao desejo. A vida feliz seria para aquele para quem só existe um bem, a beleza ética, e um

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único mal, a indignidade. A verdadeira felicidade seria encontrada numa vida enriquecida pelas virtudes.

Os bens exteriores, a fama e as honrarias não passariam de algazarras confusas que não retirariam nem acrescentariam nada à felicidade e que tendem a desaparecer tão rápido quanto surgem. Pelo contrário, os bens interiores confeririam uma satisfação contínua, uma alegria profunda que vem do fundo do ser, porque a alma satisfar-se-ia com as suas próprias riquezas interiores e nada desejaria que lhe fosse estranho. O que valeria, em comparação, as emoções: tênues, fúteis e sem duração? No dia em que fôssemos vencidos pelo prazer, seríamos também vencidos pela dor. E é por isso que o homem vencido pelos prazeres fica prisioneiro também das dores. A liberdade só poderia ser reencontrada com o repouso da alma, a elevação do espírito, o afastamento dos medos, a bondade de um coração satisfeito com o que recebe e o olhar satisfeito para o que existe no mais profundo de cada um de nós.

Ninguém pode ser feliz fora da verdade. Sem um juízo reto e firme, a alma é uma vagabunda que vagueia, sem abrigo, à procura de tudo aquilo que reluz. Mas a intensidade do brilho dos bens exteriores é apenas aparente, pois o prazer desvanece-se ao alcançar o ponto mais elevado; tem um espaço limitado e por isso o ocupa depressa; depois vem o aborrecimento e após um primeiro impulso, o prazer murcha. Quanto mais a alma se fixa na aparência das coisas, mais insatisfeita fica. Ao invés, seria feliz a alma que se contentasse com o que tem e que amasse aquilo que tem.

Sêneca salienta que o prazer é um fato tanto nos bons como nos maus. No entanto os seres baixos encontram prazer nas suas infâmias enquanto as pessoas boas, nas suas boas ações. Recomenda que se busque a vida mais virtuosa e não a mais agradável, de modo a que o prazer não seja o guia, mas sim o companheiro de uma vontade íntegra e boa. 'O homem bom terá uma vida equilibrada e ordenada, e será benévolo e magnânimo nos seus atos.' Os prazeres da alma seriam calmos e inesgotáveis, ternos, moderados e discretos.

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Dentre as virtudes recomendadas por Sêneca encontramos o autodomínio, a harmonia interior, a força de vontade, a frugalidade em seu sentido amplo, a modéstia e a moderação (temperança).

Alguns vícios enfatizados seriam a arrogância, o amor próprio exagerado, a presunção, a inveja, o orgulho a preguiça e a mordacidade.

Afirma o famoso educador e filósofo brasileiro, Paulo Freire, que o objetivo último de cada um de nós é o de que nossas ações terminem por refletir os nossos ideais. É uma tarefa árdua. Quando um pensador ousa falar sobre ideais, vez ou outra é confrontado com suas próprias atitudes, eventualmente tentando-se com isto desmerecê-lo. Ignora-se assim que raríssimos são os casos nos quais os ideais de cada um não sejam superiores às suas ações. A respeito disto, Sêneca afirma: 'É da virtude que falo e não de mim. Quando me ergo contra os vícios é antes de mais nada contra os meus mesmos que o faço. Quanto puder, viverei como deve ser.'

Marco Aurélio é denominado com razão o imperador-filósofo.

Sua tábua de virtudes é análoga a condutas propostas anteriormente por Jesus. Nesta tábua encontramos, dentre outras, a piedade, a simplicidade, o autodomínio, o respeito a si mesmo e a gentileza. Ele pretende uma integração: busca a harmonia da alma com o corpo e da razão com a ação.

A vida ética consistiria em viver de acordo com a natureza, que seria o mesmo que viver respeitando-se a razão e de acordo com a virtude. A razão seria o único instrumento de uma vida ética. Ela daria sentido à existência de cada um, ao universo e sua ordem inerente. A vida feliz seria obtida pelo controle adequado das paixões, emoções, dos instintos por parte da razão e pelo foco nos bens da alma.

Quanto à paz interior tantas vezes desejada por cada um de nós, Marco Aurélio é taxativo: 'Há quem procure lugares de retiro no campo, na praia, na montanha; e acontece também desejar estas coisas intensamente. Mas tudo isso revela uma grande simplicidade de espírito, porque podemos, sempre que assim o quisermos, encontrar retiro em nós mesmos. Em parte alguma se encontra lugar mais tranquilo, mais

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isento de ruídos, que na alma, sobretudo quando se tem dentro dela aqueles bens sobre os quais basta se inclinar para que logo se recobre toda a liberdade de espírito, e, por liberdade de espírito, outra coisa não quero dizer que o estado de uma alma bem ordenada.'

Com respeito à piedade e à veracidade, este filósofo, como usual não deixa dúvidas a respeito do modo como pensa. 'A natureza universal, tendo formado os seres racionais uns para os outros, quis que se ajudassem entre si, segundo os dons que cada um recebeu, sem se danarem de modo algum. O homem que transgride este desígnio da natureza comete evidentemente uma impiedade para com a mais venerável das divindades... A mentira é, por igual, uma impiedade para com o mesmo nome... Portanto o homem que mente voluntariamente atenta contra a piedade, pois que, intrujando, comete uma injustiça; o mesmo se diga do que mente involuntariamente, porque destoa da natureza universal enfrentando-a; hostilizando a natureza do mundo.'

Pela linha filosófica que tratamos aqui, pouco ou nada podemos

fazer quanto aos fatos objetivos da existência. Por outro lado, quase tudo podemos, com respeito ao nosso mundo interior. A Paz seria atingida quando nos desapegássemos interiormente das ocorrências sempre transitórias e fugazes da vida. É um pensamento similar à proposta comportamental budista que já analisamos, apesar de não haver evidência da influência entre a cultura romana e a indiana. Por sinal, quando estudamos o pensamento antigo dos povos, encontramos enormes similitudes, mesmo entre aqueles que pelo que se sabe, não haviam efetuado contato entre si. A razão humana chega a idênticas conclusões mesmo quando empregada por indivíduos a princípio isolados.

Existiria no universo uma lei e uma ordem natural. Caberia ao homem, criatura racional, em sintonia com tal ordem, agir pelo uso da razão. E com a razão seria possível determinar quais seriam tais leis e tal ordem natural. Caberia à razão individual igualmente dominar as emoções, os impulsos e os instintos de cada um. A felicidade e o sumo bem seriam também alcançados, desde que seguíssemos estas leis

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naturais, bem como a razão e a virtude. A felicidade se relacionaria intimamente com uma vida virtuosa; a verdadeira felicidade seria atingida com ela. Um ser humano virtuoso é também bom; o homem bom deve procurar a virtude na sua ação diária. Os maus fariam da busca do prazer seu objetivo. Os bons buscariam a virtude; a ética. Com isto alcançariam automaticamente prazeres profundos, permanentes e duráveis.

A verdadeira paz seria encontrada em nosso interior. O apego aos fatos objetivos da existência e às paixões levaria à dor e à escravidão.

As pessoas nascem essencialmente boas. Bons exemplos e bons hábitos reforçam tal tendência. A educação ética consistiria em fazer com que os atos correspondam aos princípios éticos. Bastaria ao longo de tal jornada de aperfeiçoamento, fazer a cada dia alguma poda nos vícios e evitar os erros.

Inúmeras são as virtudes defendidas pelos estóicos: simplicidade; gestão de si mesmo; respeito a si mesmo; suficiência; liberdade e independência de pensamento e opinião; autodomínio; indiferença às honrarias e aos bens materiais; calma; piedade; altruísmo; frugalidade em geral; harmonia interior; força de vontade; modéstia; moderação; gentileza; ajuda mútua; veracidade...

A ética grega e outras por ela influenciadas apresentam a

tendência de focar virtudes específicas. Isto me parece gerar uma questão objetiva relacionada à sua aplicação. Talvez possamos afirmar que à medida que as virtudes pretendidas se multiplicam, mais difícil é ter-se um rumo claro quanto ao modo de se realizar um aperfeiçoamento pessoal da conduta. É mais ou menos óbvio que existem inumeráveis virtudes desejáveis. Caso o amigo leitor pretenda uma autotransformação, eventualmente talvez caiba uma pré-seleção daquelas que sejam consideradas as mais importantes e/ou as mais fáceis e mantendo a atenção diária nelas, principiar daí.

Por outro lado quanto a minha própria atenção à ética, me parece melhor considerar o princípio geral e não detalhes: fazer o bem e não fazer o mal. Por outro lado todos nós somos falíveis e seria ilusório supor que absolutamente não façamos o mal. Quanto a isto há uma

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consideração interessante, que não chegou a ser discutida neste curso. Uma pequena quantidade de bens realizados tende a contrabalançar uma grande quantidade de males. Ilustrando por um exemplo doméstico, pais e mães costumam ser muito apreciados, apesar de suas inúmeras falhas, apenas pelo fato de terem sido verdadeiros pais e mães.

Se isto é verdadeiro e eu particularmente considero deste modo, o foco fundamental do comportamento ético é fazer o bem. Frente a uma situação de dúvida cabe então diagnosticar o que seria o bem. Para isto o método que me parece melhor é o de a cada situação tentar se colocar no lugar da pessoa ou pessoas que estarão sujeitas a nossa ação. Nisto estaria a ética voltada ao outro. A ética voltada a nós mesmos, pelo menos em grande medida me parece ser obtida através daquela. E se houvessem virtudes a sugerir a você, dentre aquelas voltadas prioritariamente a nós mesmos, eu ousaria recomendar dentre outras o consequencialismo, isto é, procurar explorar as prováveis consequências dos atos, a tempestividade, a prudência, a temperança, a auto estima e a confiança.

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A classificação usual da Ética: em Metaética, Ética Normativa e

Ética Prática, emprega termos que tendem a ocasionar confusão. O Utilitarismo trata de questões ligadas à Metaética, isto é, dos princípios básicos que fundamentam os juízos na área comportamental. Por exemplo: o que é o 'Bem'.

Trata também da chamada Ética Normativa, que apresenta os princípios gerais para o adequado comportamento racional do ser humano. Por exemplo: 'o comportamento ético é aquele que busca a maior felicidade para o maior número de pessoas'.

Não entra, no entanto, em considerações da assim chamada Ética Prática, que tem por base um conjunto de regras específicas e que de modo geral podemos chamar de 'Moral'. No entanto, na acepção exata da palavra, a 'Ética Normativa', isto é, aquela que propõe princípios gerais, é profundamente prática, pois tais princípios gerais estabelecem com precisão todos os comportamentos adequados da vida cotidiana.

Já comentei sem temor em outras oportunidades, a opinião pessoal que a transição do norteamento dos rumos da existência por regras específicas para princípios gerais estabelece uma maior libertação do ser e denota um amadurecimento da individualidade.

Parece que a associação do termo 'utilitarismo' ao termo 'ética',

tende a levar a uma primeira aversão e resistência do leitor ao tema. Desta forma é oportuno esclarecer desde já o porquê do termo. Já vimos que Aristóteles concluiu que cada um de nós almeja a felicidade e que não há coisa melhor que esta. Caso seja a felicidade o maior bem, logicamente devemos buscá-la e nossos comportamentos são tanto mais objetivos e úteis quanto mais sejam capazes de promovê-la. Ainda, no estabelecimento de uma base de comparação do valor de uma atitude em relação à outra, a atitude mais essencialmente útil é aquela capaz de

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promover a maior felicidade. Este é o assim chamado Princípio da Maior Felicidade ou ainda Princípio da Utilidade.

Desta forma o Utilitarismo tem por base o pensamento Aristotélico, e talvez pudesse ser melhor denominado como uma 'Ética da Universalização da Felicidade'. Ou seja, de forma sintética e em resumo, o bem máximo é a felicidade. Sendo assim, as atitudes mais úteis ao ser humano são aquelas que maximizam tal bem maior. Desta consideração surge o termo Utilitarismo.

Em contraponto à Ética Deontológica, a única base ou padrão de

obrigação do utilitarismo está relacionada às consequências das ações, com vistas a maximizar o bem. O “certo” ou o “errado” do ponto de vista ético seria aquilo que, avaliado por suas consequências, de forma estritamente imparcial, dê origem ao maior bem, de modo que o “certo” é maximizar a Felicidade.

Já comentamos que de acordo com Sócrates, todos os tropeços humanos se devem à ignorância, que na maioria dos casos se resume a uma previsão defeituosa das consequências oriundas das atitudes executadas. Desta forma, em sintonia ao pensamento socrático, a Ética Utilitarista é fundamentalmente consequencialista; pode ser considerada e chamada como uma expressão do Consequencialismo.

Como já comentamos de passagem em outros textos, a aplicação

do Utilitarismo na vida cotidiana dos povos é muito antiga. No passado e no presente tem sido empregado e é fácil observar nas decisões das lideranças das coletividades humanas. Por outro lado é temerário afirmar que a aplicação de um princípio racional geral de comportamento resulte em todos os casos num Bem, mesmo um de Universalização da Felicidade.

O argumento utilizado pelo sumo sacerdote israelita para a condenação à morte de Jesus, citado pelo apóstolo João, serve de exemplo: 'Se não o condenarmos, Roma nos destruirá a todos.'

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Apesar de se constituir num princípio aplicado já há muito, sua fundamentação racional para o norteamento da conduta humana, começou a ser realizada nos tempos modernos, por Jeremy Benthan (1748 - 1832). Tal fundador teve como seguidor James Mill (1773 - 1836). Por sua vez, este último teve como filho a John Stuart Mill (1806 - 1873) o qual foi preparado desde a infância para ser um filósofo defensor do pensamento de Benthan e se tornou o filósofo de referência para o Utilitarismo, sendo considerado por muitos, como o maior filósofo inglês do século XIX.

Tal como em outras conceituadas escolas filosóficas, no

Utilitarismo o prazer é considerado um bem e as diferentes formas de dor e sofrimento, um mal. Assim as ações são avaliadas pela capacidade de gerar o predomínio do prazer sobre a dor. Em aprofundamento, os prazeres são diferentes; ocasionam bens com diferentes intensidades. Há uma escala de prazeres; um tipo de prazer é superior ao outro. Desta consideração surge uma base de avaliação dos prazeres e o prazer, bem como o comportamento que o ocasiona, passa a ser avaliado por sua duração, sua intensidade, sua qualidade, ... Nesta linha, Mill concluiu pela observação dos indivíduos, que os prazeres corporais são inferiores aos emocionais e intelectuais.

Passemos agora a empregar o raciocínio lógico para assim

justificar o princípio básico do Utilitarismo: Premissa 1 - 'Ético é o agir de modo adequado.' Pouco há o que

ponderar quanto a esta primeira premissa, visto que é essencialmente a definição do termo.

Já neste ponto cabe relembrar os limites do ser humano. As considerações referentes a tais limites, já efetuadas em outros textos, dentre eles o de 'Algumas razões para não censurar eticamente a ninguém', nos leva a uma redação mais realista desta primeira premissa: 'Ético é procurar agir de modo adequado.'

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Premissa 2 - 'O comportamento adequado é fazer o bem.' Já em várias de nossas discussões anteriores cremos ter demonstrado que é esta a única base ou essência racional da ética. Nessa jornada nos acompanharam a maioria esmagadora dos grandes filósofos de todos os tempos. Complementarmente, um bem a um indivíduo é algo que direta ou indiretamente lhe é útil.

Destas duas primeiras premissas, chegamos à Conclusão A -

'Ético é procurar fazer o bem.' Consideraremos tal conclusão como nossa Premissa 3.

Na sua breve discussão na área da Metaética, Mill confirma a

conclusão de Aristóteles: 'O sumo prazer, bem e bem estar corresponde à Felicidade.' Tal afirmação já profundamente analisada ao longo dos séculos, será nossa Premissa 4. Vale a pena relembrar que o termo Felicidade na concepção Aristotélica, também envolve desenvolvimento e realização pessoais. Complementarmente, se o sumo bem é a Felicidade, nada há que possa lhe ser mais caro e útil. Ou seja, a Felicidade é de máximo valor e utilidade.

Destas duas últimas premissas, chegamos à Conclusão B - 'Ético é

procurar promover a Felicidade'. Tal conclusão passará a ser também nossa Premissa 5.

Já para a nossa sexta premissa, consideraremos que um

determinado indivíduo padrão tende a considerar o seu próprio bem como prioritário. Ou seja, cada indivíduo tende a fazer esta mesma consideração.

Se um observador imparcial e isento considerar outros dois indivíduos, tenderá a uma percepção diferente. Isto é, o bem dos dois indivíduos observados é igualmente importante. Desta forma, a concepção de prioridade com vistas a realizar o bem depende apenas de quem é o sujeito que observa. Ou seja, depende do ponto de vista. E na medida que aumenta o nível de imparcialidade e isenção, o bem de todos

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é igualmente importante. O meu bem estar e o bem estar do outro tem a mesma importância. Por meio de tais considerações, podemos estabelecer a Premissa 6 - 'A Felicidade de cada um é igualmente importante.'

Destas duas últimas premissas, obtemos a Conclusão C - 'Ético é

procurar promover generalizadamente a Felicidade.' Ou seja, a ética fundamental é a promoção imparcial da Felicidade. Faremos tal conclusão a nossa Premissa 7.

Por fim, como Premissa 8 e pelo acima exposto, uma ação é

“errada” se promove o mal; a infelicidade e “certa” se promove o bem; a felicidade. No estabelecimento de um critério de prioridades, uma atitude pode ser considerada “mais certa” se promove uma Felicidade maior e tal atitude seria “ainda mais certa” se promove uma felicidade maior para um número maior de pessoas. Esta última consideração é conhecida como o Princípio Geral do Utilitarismo e se constitui na Conclusão Final. Pode ser observado que tal princípio tem por base as premissas anteriores, dentre elas a de que a felicidade de todos é igualmente importante.

Passemos a analisar uma aplicação prática do princípio acima

mencionado. Um determinado indivíduo tem reservado em seu poder $100.000,00. Pelas condições de troca vigentes, com tal quantia o mesmo pode obter um automóvel ou então duas casas populares. O automóvel que tal indivíduo possui não é tão luxuoso e tão novo quanto aquele que poderia ser adquirido mas este já reside com sua família numa residência própria confortável. No entanto podemos considerar que o sujeito em questão vive num meio social desequilibrado que apresenta inúmeras famílias que não tem casa para morar. Se abrem, portanto, algumas opções, dentre elas (a) comprar um carro novo que trará mais conforto para si e sua família ou então (b) doar duas casas populares para duas famílias sem teto. Comparando estas duas opções através da ética utilitarista, um carro novo representa um pequeno bem para apenas uma

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família e duas casas populares representam um maior bem para duas famílias sem teto. Assim a Ética Utilitarista não afirma que a opção (a) seja necessariamente antiética, visto que se estaria realizando um bem a um grupo de pessoas, entretanto por ela, a opção (b) seria a mais ética. Por meio de tal exemplo e muitos outros que poderiam ser concebidos, podemos observar que a aplicação do Utilitarismo tende a levar, na medida que é aplicada e ao longo do tempo, à plena igualdade social. Isto é, à plena generalização da felicidade e bem estar. Os esforços dos indivíduos mais felizes seriam direcionados para promover um aumento da felicidade dos menos felizes ou infelizes.

A aplicação do princípio ético geral de Jesus, fazer ao outro aquilo que gostaríamos que fosse feito a nós mesmos, caso nos encontrássemos em situação semelhante, o qual é analisado em outro texto, leva exatamente ao mesmo resultado. O mesmo pode ser dito a respeito dos princípios éticos propostos por alguns outros pensadores.

Fácil observar que tal princípio esbarra fundamentalmente no

egoísmo dos seres humanos. Como uma resistência à conclusão a qual se chega no exemplo mencionado, surge a interposição de um pensamento do tipo: “Angariei a minha poupança com o meu esforço. Assim, vou empregá-la para a minha própria felicidade.” O egoísmo eventualmente tenderá a clamar intempestivamente também por Justiça. Entretanto, como exposto em outro texto, toda a fundamentação de Direito e de Justiça é efetuada precisamente sobre um determinado pensamento ético adotado. Ou seja, na proporção que varia a conceituação do que é "certo" e do que é "errado"; do que é "adequado" ou "inadequado", também varia o conceito do que é "direito" ou do que é "justo".

Como todo princípio ético geral, o Utilitarismo é relativo. O

conceito de felicidade, das ações que são capazes de promovê-la, o prazo para que seja obtida e outras variáveis dependem da percepção e avaliação individual. A eficácia da aplicação desta linha ética depende claramente da capacidade do indivíduo de prever as consequências de

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suas ações. Depende da sua capacidade de prever qual atitude resultará num maior bem.

O Utilitarismo se baseia no Empirismo e no Associacionismo. Por Empirismo se entende o conceito, de que o conhecimento e a ética, tem como única base os sentidos e/ou a experiência. Assim é indutivista: Os princípios éticos são obtidos por meio da experiência e observação. Assim se considera haver fatos concretos suficientes para defender o Utilitarismo. Associacionismo é o princípio que os conhecimentos são relacionados em nossas mentes, por leis gerais de associação. Tais associações governariam o comportamento humano. Em síntese, pela associação experimental de ética e felicidade; comportamento adequado e eudamonia, que Aristóteles, Mill e outros observaram, e sendo a felicidade o bem máximo almejado, o ser humano numa ação racional, procuraria adotar uma postura ética. Como já comentamos no início deste curso, o incentivo lógico que se dá para a prática do comportamento adequado é o de que, através de tal comportamento geral a qualidade de vida do indivíduo que o exerce melhorará.

O comportamento tem por base o hábito. O comportamento

popular é regido por impulsos emocionais e por conceitos arraigados de obrigação ou deontológicos, frequentemente de base religiosa. A Ética Utilitarista tem base experimental e racional, como todas as demais éticas normativas. Sabemos que todos nós desejamos ser amados pelo grupo social onde estamos inseridos. Desejamos ser úteis e aceitos por este grupo. Se atendermos aos interesses dos membros do grupo, a nossa própria vida melhora, pois nós mesmos fazemos parte do grupo.

Quanto a este tema cabe ainda uma consideração. Como vimos,

no estabelecimento de prioridades desta linha ética, uma atitude é considerada “mais certa” se promove uma felicidade maior e é “ainda mais certa” se promove uma felicidade maior para um número maior de pessoas. Tal consideração pode levar ao pensamento que a maior felicidade de um grupo maior de pessoas justificaria a infelicidade de um grupo menor. Ou um bem da maioria justifica um mal da minoria. Com

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tal leitura a Ética Utilitarista deixa de ser uma ética de universalização e generalização da felicidade, e passa a ser uma ética de promoção do bem estar de maiorias.

O Utilitarismo com tal enfoque, por exemplo, justificaria a condenação de Jesus já mencionada, como também o extermínio de um grupo terrorista, de indivíduos pertencentes a um grupo político opressor de uma população, de um ditador ou, de modo geral, de qualquer minoria incômoda. Estes e muitos outros exemplos podem ser observados nas ações políticas, tanto do passado quanto do presente.

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Segundo Stephen Law, há três principais linhas de pensamento na

Ética Normativa, enquanto encarada de modo ortodoxo: A Ética das Virtudes de Aristóteles; O Utilitarismo de John Stuart Mill; e a Ética do Dever (deontológica), em cuja categoria se insere o pensamento moral de Immanuel Kant. Por outro lado, cabe salientar desde agora, que para este eminente pensador, o dever é estabelecido pela consciência, ou como ele mesmo denomina, a Boa Vontade do sujeito que executa a ação considerada.

Kant nasceu em Königsberg, capital da então Prússia Oriental em

22 de abril de 1724, atualmente Kaliningrado, Rússia. Nesta mesma cidade permaneceu por toda a vida, não se afastando dela por mais de um dia, falecendo em 12 de fevereiro de 1804. A causa provável que levou a morte foi o que atualmente se entende como Mal de Alzheimer.

Foi o quarto de nove filhos de um artesão fabricante de correias para carroças. Nasceu em lar protestante luterano e permaneceu como cristão por toda a vida. Seguiu no entanto, um cristianismo não caracterizado pelo seguimento ou concordância com os dogmas e rituais de uma seita em particular.

Apesar de que ele próprio provavelmente não viesse a concordar e eventualmente discordasse, o motivo provável de sua orientação deontológica é a sua formação básica religiosa e sua vivência num Estado cultivador de fortes valores militares, como era a Prússia em sua época.

Viveu sob o império do rei Frederico II, considerado razoavelmente tolerante e simpatizante do Iluminismo, o qual trouxe para sua corte, vários pensadores, dentre eles Voltaire. Em 1773, tal rei concede refúgio em sua nação protestante à Ordem Católica Jesuíta banida pelo Papa. Em 1789, após a manifestação de Kant, favorável à Revolução Francesa, o rei o proíbe de se expressar sobre quaisquer temas religiosos.

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Na idade adulta apresentava um comportamento rotineiro sistemático. Todos os dias, às 15:30h saia a caminhar e sua pontualidade era tamanha, que a vizinhança podia acertar os relógios por ele. Por outro lado tinha uma conduta muito sociável e enfatizava que a companhia humana era importante para a manutenção da saúde do indivíduo. Na época da juventude não se mostrava um estudante brilhante, apreciando as ocasiões de diversão. Na maturidade ganhou notoriedade pelo brilhantismo de suas palestras. É atualmente considerado um dos mais influentes filósofos da cultura ocidental.

Em 1740 ingressou como aluno na Universidade municipal e por esta época estudou em especial, a obra filosófica de Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), aquele que dentre inúmeras outras coisas, foi um dos descobridores independentes (em paralelo a Newton) do cálculo diferencial e integral.

Leibniz escreveu obras de advocacia, geologia, física, engenharia, filosofia... Foi inventor (p. ex. uma máquina de calcular), diplomata, bibliotecário... Na área da filosofia formulou pensamentos intimamente interligados e coerentes entre todas as suas subdivisões. Ainda segundo Leibniz, em sintonia às concepções taoistas na época ignoradas na Europa, o mundo no qual vivemos é o melhor possível; tudo ocorre segundo um plano harmônico e nada pode acontecer de modo diferente do que acontece.

O pensamento filosófico de Kant também foi fortemente influenciado por Descartes, que considerava a razão como auto-referente e critério exclusivo das certezas possíveis.

Com a morte do pai em 1746, Kant é obrigado a se sustentar e passa assim a dar aulas particulares de Geografia para crianças em vilarejos próximos, permanecendo nesta atividade por seis anos.

Além de artigos, muitos foram os livros publicados de sua autoria. Em 1755 publica a "História Natural Genérica e Teoria dos Céus". Com isto consegue o título de Mestre e o direito de dar aulas na Universidade de Königsberg como docente privado, isto é, pago diretamente por seus alunos. Passa a dar aulas ligadas a matérias como: geografia, ciências, física, matemática, antropologia e filosofia. Em Geografia Moral, ensinou

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os costumes e o caráter do homem em relação ao meio ambiente. Em Geografia Teológica ensinou a distribuição das religiões no mundo.

Por esta época desenvolveu uma teoria para a formação do sistema solar, conhecida atualmente como Hipótese de Kant-Laplace. É a primeira concepção moderna, a hipótese de uma nuvem de matéria e energia que se concentra, precursora das atuais teorias de formação estelar.

Em 1770, aos 45 anos foi nomeado professor catedrático - dono da cadeira - de Lógica e Metafísica. Para a aprovação no concurso de sua cátedra, publicou a dissertação: "A Forma e os Princípios do Mundo Sensível e Inteligível". A partir daí passou 11 anos sem nada publicar.

Por esta época estudou a obra filosófica de David Hume, que defendia que o conhecimento do mundo requer experiência sensorial; que é impossível estender este conhecimento usando apenas a razão. Tais ideias perturbaram fortemente a Kant e são consideradas o ponto de partida para a produção incessante de obras a partir de seus 56 anos.

Frente ao pensamento de Hume, propôs uma fusão entre a dedução e a indução. Concluiu que podemos descobrir verdades por meio da razão pura, desde que com o auxílio da experiência.

Em 1781 publica o livro "Crítica da Razão Pura" Nesta obra aborda algumas questões: Nosso conhecimento reflete precisamente a realidade? Como a realidade influencia nosso entendimento? Analisa as condições segundo as quais a razão funciona, a maneira como opera e seu objetivo. Em suma, tal obra trata do que é possível ao homem conhecer e se constitui naquela mais lida e mais influente.

Em 1783 apresenta um resumo de suas ideias em "Prolegômenos Para Toda a Metafísica Futura que se Apresente como Ciência." Em 1784 redige o artigo "O Que é o Esclarecimento?"Em 1785 publica a sua primeira obra sobre filosofia moral: "Fundamentação da Metafísica dos Costumes". Nela analisa a ação moralmente fundamentada. Também aí apresenta pela primeira vez os conceitos de Imperativo Categórico e o da Boa Vontade. No mesmo ano publica os "Fundamentos da Metafísica da Moral". Em 1786 surgem os "Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência Natural". Em 1788 divulga a "Crítica da Razão Prática". Nesta

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obra analisa a escolha livre dos seres racionais que podem se submeter ou não a uma lei moral. Pode ser considerado o seu principal trabalho na área da filosofia moral. Em 1790 surge a "Crítica do Julgamento". Nela analisa os usos da capacidade mental no julgamento estético; daquilo que é belo e sublime e o julgamento teleológico; das coisas como tendo finalidades. Em 1792 redige a "Carta a Maria von Herbert". Neste ano também escreve a "A Vitória do Princípio Bom Sobre o Princípio Mau e a Constituição de um Reino de Deus Sobre a Terra". Nesta última obra defende a ideia de que "a passagem gradual da fé eclesiástica ao domínio exclusivo da pura fé religiosa constitui a aproximação do Reino de Deus" Ou seja, a libertação gradual do indivíduo de dogmas não racionais para a busca da comunhão direta com o divino. Tal passagem segundo ele poderia ser apressada graças ao advento da Revolução Francesa ocorrida três anos antes. Em 1793 divulga o trabalho "Sobre a Relação entre a Teoria e a Prática na Moral em Geral" como também a "Religião Dentro dos Limites da Mera Razão". Em 1795 apresenta dois trabalhos: "O Fim de Todas as Coisas" e "Para a Paz Eterna". A primeira obra tem um tom apocalíptico onde levanta a hipótese da derrota do bem pelo mal. Em 1796 publica a "Doutrina do Direito" e em 1797 a "Metafísica da Moral". Em 1798 é apresentada a "Antropologia do Ponto de Vista Pragmático".

Além do que não foi citado acima, a humanidade possui ainda obras incompletas suas, publicadas após a sua morte. Inclui aquela que Kant pretendia denominar como a "Quarta Crítica" que viria a aperfeiçoar as anteriores.

Parte das obras mais tardias, bem como as póstumas, passam a considerar, de um ponto de vista ético, as emoções e os sentimentos humanos, indo além do forte racionalismo da Crítica da Razão Prática. No entanto aqueles que estudaram e estudam este grande pensador tem a tendência de se restringir ao período de vida da obra de 1788.

Kant considera que existem quatro questões fundamentais na

Filosofia: O que posso saber? O que devo fazer? O que é lícito esperar? O que é o homem? Respectivamente tais questões seriam respondidas em quatro grandes sub-áreas: A Metafísica, a Moral, a Religião e a

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Antropologia, ou seja aquela ciência geral que estuda o próprio ser humano. De acordo com ele todas as questões na verdade podem ser respondidas pela Antropologia, pois as três primeiras questões fundamentais remetem essencialmente à última. No seu entendimento cabe à Antropologia a síntese dos conhecimentos quanto ao próprio homem e tal conhecimento seria capaz de solucionar todas as questões da Filosofia.

Na análise da natureza humana Kant observou que o que

supomos conhecer é função absolutamente dependente do nosso sistema sensorial e do nosso sistema cognitivo, o qual ordena aquilo que se percebe pela visão, audição e demais sentidos. Por sua vez qualquer experiência sensorial está ligada à sua extensão no espaço e sua sucessão no tempo. Isto é, espaço e tempo são estruturas fundamentais às nossas percepções. Já a capacidade humana de organizar aquilo que é percebido, depende de fatores tais como o de causalidade, ou seja, da ideia de relações entre causas e efeitos. Assim a concepção de causas e efeitos que se constitui num dos dois pilares da moral hinduísta é vista por Kant como uma forma própria da mente humana para compreender o mundo exterior no qual vive, bem como os fenômenos aos quais está sujeito. A partir de tais fatos, Kant conclui que espaço, tempo, causalidade e outros fatores, são as características do mundo tal como ele nos parece, mas não necessariamente como ele é em si mesmo. Cada evento nos parece conectado a outros numa sucessão de causas e efeitos. Apresenta também a eventual ilusão de estar condicionado no espaço e no tempo e assim obedecendo as leis da geometria, da aritmética e da física. Ao homem só é possível conhecer as coisas como estendidas no espaço e sucessivas no tempo enquanto se manifestam numa aparente dependência de causalidade, ou seja, enquanto fenômenos. O tempo e o espaço são as nossas formas fundamentais de percepção. São as ferramentas da mente que só podem ser usadas no mundo que se manifesta e que pode ser percebido e essencialmente nada podemos conhecer fora do espaço e do tempo. Já o entendimento nos fornece

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categorias como causa e efeito que nos permitem avaliar os fenômenos, ou seja, o mundo.

Assim devemos fazer uma distinção entre o que é; o que é em si mesmo; o que é real, que Kant denomina por "noumena" ou "númeno" e aquilo que nos parece; aquilo que aparenta ser, que Kant denomina por "phenomena" ou "fenômeno". A realidade pode não ser espaço-temporal; pode não conter materialidade ou substância; não obedecer leis de causa e efeito. Assim o ser humano nada pode dizer de preciso a seu respeito e podemos apenas aplicar a razão àquilo que nos parece. Não podemos saber com certeza as verdades do mundo como ele é em si. Mas podemos saber com certeza um grande número de coisas sobre o mundo tal como ele nos aparece. "Assim a ordem e a regularidade nas aparências, o que chamamos natureza, nós mesmos as introduzimos." Desta forma, não podemos descobrir o que nos é possível conhecer focalizando o mundo. O centro de nossas investigações deve ser a estrutura de nossas capacidades cognitivas e o modo como elas moldam o mundo que experimentamos. As mesmas características humanas que nos permitem compreender a fenômenos, removem do nosso entendimento o mundo real (o mundo numenal ou númeno) da cena da percepção humana. A validade, a legitimidade e a universalidade de um conhecimento, não depende da sensibilidade, isto é, das percepções sensoriais, mas sim do observador, do sujeito transcendental, daquilo que reside em seu interior. Isto é, o conhecimento não se condiciona pelo fato observado, mas sim, pelo modo que o observador conhece. Kant salienta assim as condições subjetivas ou transcendentais da objetividade. Como o conhecimento é uma relação entre o sujeito que conhece e o objeto conhecido, julgamos oportuno reafirmar o conceito de que não se pode conhecer as coisas em si mesmas, mas sim, as coisas como nos parecem. Desta forma ele deixa exposta a chamada 'Inversão Copernicana'. Não é o objeto que determina o sujeito, mas sim, o sujeito que determina o objeto. Um objeto só pode ser conhecido, na medida que o sujeito determina o objeto. O objeto só se torna cognoscível na medida em que o sujeito cognoscente o reveste das condições de cognoscibilidade. Na demarcação dos limites da razão desvinculada da

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experiência, Kant demonstra que esta comprova de forma totalmente indiferente conceitos tais como a Liberdade ou o Determinismo; a Existência ou a Inexistência, e Deus. Já apenas a experiência, através do raciocínio indutivo desvinculado do raciocínio lógico, corre o risco de chegar a relações de causalidade restritas e equivocadas. Apesar da postura fortemente racionalista, Kant conclui assim que isoladamente nem o empirismo nem o racionalismo são suficientes para a compreensão adequada dos fenômenos sendo necessário o emprego simultâneo das duas abordagens.

Assim, a título de exemplo, um determinado indivíduo só pode conhecer Deus a partir de algum tipo de experiência mística. Porém para que ele possa ter tal conhecimento através de tal experiência, é necessário que este crie as condições para ela a partir de uma crença inicial. O pensamento kantiano é um referendo à teoria do conhecimento de Platão: O conhecimento é primeiramente uma crença que só posteriormente se mostrará verdadeira. Ou seja, a crença preliminar condiciona totalmente o que será conhecido. A análise de Kant quanto ao conhecimento possível ao homem geraria a dificuldade humana de conhecer a Deus. O judaísmo denomina a Deus como "Aquele que É" ou aquele que é em si mesmo. A dificuldade humana de entender as coisas tais como são é a mesma de conhecer Deus. Só é possível conhecer parcialmente a Deus por Sua ação e por Suas obras...

Kant faz uma classificação clara e fundamentada da realidade: As coisas como elas são e as coisas como são para nós. Além da realidade que um materialista denominaria de natural e um espiritualista como natural e divina, há o conhecimento, a realidade ou ainda a verdade de nossa espécie como um todo e ainda há o conhecimento de cada um de nós enquanto indivíduos. Há o conhecimento humano, com base na Antropologia; no Inconsciente Coletivo de Jung e há o conhecimento do indivíduo, ditado por seu mundo interior particular. Há a verdade natural ou natural e divina. Há ainda a verdade coletiva influenciada pela primeira. Há também a verdade individual influenciada pela primeira e pela segunda. O conhecimento individual, fruto destes três níveis de realidade é essencialmente o mundo no qual cada indivíduo vive. O

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entendimento individual tem consequências neutras: ao lado de indivíduos extraordinariamente diferenciados, realizados e felizes encontramos profundos sofredores, muitos dos quais lotando nossos manicômios e presídios.

O indivíduo deve buscar a autonomia no exercício da própria

razão. Desta forma adquire a maturidade e é nestes termos que se caracteriza a liberdade. Vivemos não numa época esclarecida, ou de luz, mas sim de esclarecimento ou de iluminação. O estado de iluminação se traduz pela coragem e pela ousadia de pensar por si mesmo e de agir em conformidade com tais pensamentos. Por sua vez a maioria das pessoas encontra-se num estado infantil, que Kant denominava por menoridade, estado este caracterizado pela aceitação da autoridade de outrem para raciocinar e decidir por nós. Iluminação é fundamentalmente querer usar a própria razão, liberta das tutelas, tais como as oriundas de cleros e de políticos, como também livre do medo, da covardia, do comodismo e do egoísmo. A razão em processo de esclarecimento é aquela que quer ser autônoma, no sentido de estabelecer as suas próprias regras de viver. "O Esclarecimento (Aufklärung; Iluminismo,) é a saída do homem da condição de menoridade... Menoridade é a incapacidade de servir-se de seu entendimento sem a orientação de um outro. Esta menoridade é autoimposta quando a causa da mesma reside na carência não de entendimento, mas de decisão e coragem em fazer uso de seu próprio entendimento sem a orientação alheia ..." O lema do estado de iluminação (e não ainda de iluminado) seria o de ter a coragem de fazer uso de seu próprio entendimento. Muitos permanecem menores mesmo muito após a natureza tê-los declarado livres da orientação alheia. Por outro lado nos parece que algum nível de orientação é a princípio boa. O fundamental nesta questão me parece ser, a autodeterminação.

Depois de terem sido libertados das limitações de julgamento, a preguiça e a covardia seriam as responsáveis por se permanecer na menoridade.

É fácil que outros se tornem tutores. É cômodo ser menor. Um livro que entende por mim; um pastor que tem consciência por mim; um

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médico que zela por minha saúde... Desta forma não me é necessário pensar. Os tutores "... Após terem previamente embrutecido e cuidadosamente protegido seu gado, para que estas pacatas criaturas não ousem dar qualquer passo fora dos trilhos nos quais devem andar, os tutores lhes mostram o perigo que as ameaça caso queiram andar por conta própria. Tal perigo, porém, não é assim tão grande, pois após algumas quedas, aprenderiam finalmente a andar; basta, entretanto, o exemplo de um único tombo para intimidá-las e aterrorizá-las por completo para que não façam novas tentativas."

É possível ao povo esclarecer-se a si mesmo e apreciar racionalmente seu próprio valor. Pensar por si mesmo é tarefa de cada ser humano. Por outro lado, é provável esperar que para a grande massa ignorante, servirão de guia, apenas novos preconceitos, no lugar dos antigos impostos por seus antigos tutores.

A condição necessária ao esclarecimento é a de poder comunicar seus próprios pensamentos "Mas agora escuto em todos os cantos: não raciocineis! O militar diz: não raciocineis, exercitai-vos!...O líder espiritual: não raciocineis, crede!...Os tiranos: raciocinai o quanto quiser e sobre o que quiser, mas obedecei!"

No entanto, na medida que não haja conflito com a própria consciência, é conveniente manter-se numa posição passiva frente a ordem vigente, visando a manutenção desta mesma ordem mesmo que imperfeita, para o bem da coletividade como um todo. Ou seja, se um grande número de pessoas, ocupando posições de influência decidissem, de forma independente uma das outras, agir sobre a sociedade de modo racional, a perturbação do sistema social seria de tal ordem que o risco de malefícios seria maior do que de benefícios. Com esta linha de pensamento Kant assume uma posição claramente de prática consequencialista. Desta forma, um militar ou um sacerdote deveriam se enquadrar às suas funções de cargo, sem no entanto abrir mão de comunicar a um público seleto as suas ideias discordantes. E para evitar o risco de estagnação em comportamentos primitivos, "a pedra de toque de tudo o que pode ser decidido sobre um povo reside na pergunta: ' um povo formularia para si mesmo tal lei?' " Tal lei possível num dado

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Felicidade pela Ética

Immanuel Kant e a Boa Vontade.

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momento seria boa enquanto se aguardasse a viabilidade de outra melhor para o estabelecimento de uma nova ordem.

Em acréscimo, para qualquer ser humano; para o sujeito na sua própria pessoa e de seus descendentes, renunciar a este Esclarecimento significaria "violentar e pisar sobre os direitos sagrados da humanidade".

Para minha alegria, segundo Kant, a liberdade de expressar ideias de um professor é irrestrita, desde que não assuma outras funções que venham a influir diretamente sobre a população em geral.

Neste contexto, sabemos que os profissionais da área de direito no Brasil costumam ter boa formação teórica na área da Ética. Assim, quando um juiz condena um réu, à revelia do pensamento ético, podemos interpretar seu procedimento, como em conformidade com o pensamento kantiano acima descrito. A de que uma ordem, mesmo que muito imperfeita, é melhor do que nenhuma ordem.

Nas decisões do campo da ética imperaria um modo de ser

peculiar da vontade que Kant denomina de Boa Vontade, que teria como uma de suas características, o fato da determinação por agir estar nela mesma. Isto é, a de ser uma vontade boa. As leis da Boa Vontade estariam nela mesma e não fora dela. A Boa Vontade seguiria as leis morais derivadas da razão pura prática a qual prescreve o que deveria ser desejado por um determinado indivíduo.

Kant procura opor-se aos conceitos consequencialistas. A Boa Vontade se caracterizaria pelo próprio querer, e não em função dos resultados que sua prática poderia proporcionar. A rigor a Boa Vontade se caracteriza por um querer bem. Um querer por que é bom. Um querer porque é um maior bem e gera melhores resultados do que uma outra opção de querer ou de apenas não querer.

Se há algo bom sem limitação isto seria a Boa Vontade. Não é

boa por aquilo que promove ou realiza; por sua aptidão de ser capaz de alcançar um determinado fim. É boa pelo bem querer em si mesmo. Assim, caso uma disposição especial do destino; se por motivos naturais, faltar o poder de realizar as intenções; mesmo que nada pudesse ser

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Immanuel Kant e a Boa Vontade.

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alcançado a despeito dos maiores esforços e ao final, só restasse a Boa Vontade; só restasse a Boa Vontade após o emprego de todos os meios de que nossas forças dispusessem; a Boa Vontade continuaria a brilhar como tendo em si mesma a plenitude de valor. Desta forma Kant não considera como fundamental na ética o fazer o bem, mas de forma ainda mais básica o querer bem; o querer fazer o bem. Ou seja, mais valoroso que o ato bom é a intenção de realizá-lo. Neste querer engajado, ativo, operativo e determinado se encontraria aquilo que é essencial.

E é na verdade neste querer que reside a questão por detrás do curso que elaboramos. Após se entender os princípios que regem o comportamento adequado com razoável clareza; após termos instrumentos para decidir o que é mais ou menos ético, resta claramente o agir eticamente. E a transição entre o saber e o fazer reside exatamente no querer. Ou seja, exatamente naquilo que Kant denomina por Boa Vontade.

Somos livres e portanto mais que seres fenomênicos. Isto é, mais

que seres aprisionados a uma sucessão infindável de causalidades. O Eu numênico deve ser a fonte do livre arbítrio, enquanto o eu fenomênico está aprisionado à cadeia contínua de causas e efeitos. É o livre arbítrio que dá margem à ação ética, pois só agentes capazes de deliberar racionalmente quanto às suas escolhas poderiam ser ditos livres e, portanto, éticos. A liberdade é condição fundamental para a ação verdadeiramente ética. Desta forma não existe por abordagem filosófica básica uma ação ética quando esta for imposta ou prescrita por uma autoridade qualquer. A vontade individual não deve ser ditada por algo que lhe é exterior. Um indivíduo não age moralmente no caso de sua ação ser impulsionada pelo temor de punição ou a ambição por uma recompensa ou aceitação. Neste caso a vontade que imperaria seria a de um outro agente e não a daquele que executaria a ação. Do mesmo modo, se o motivo da ação é a necessidade de pertença e aceitação ou medo de rejeição, não poderia ser considerada moral, pois se vincularia ao império dos padrões de comportamento e costumes vigentes.

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Immanuel Kant e a Boa Vontade.

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Age moralmente aquele que é capaz de se autodeterminar. O conhecimento fisiológico investiga o que a natureza fez do homem. O conhecimento do ser humano e o estudo da ética investiga aquilo que o homem, na medida de sua liberdade faz ou pode ou deve fazer de si mesmo.

Gado conduzido por vaqueiros não pode ser considerado nem moral nem imoral. Cabe, no entanto, uma gradação e não apenas uma postura de sim ou não. Ou seja, um determinado individuo vai tomando atitudes que podem ser consideradas mais ou menos éticas na medida que for passando do estado infantil de absoluto tutoriamento para aquele de gradual autodeterminação.

O pressuposto da ética kantiana é o da autonomia da razão, pelo

menos de acordo com as suas obras mais estudadas. Sempre é oportuno lembrar que um ser humano pensador tende a alterar em certa medida seus conceitos à medida que se enriquece com novas informações e reflexões. Kant buscou um princípio universal que apontasse condutas apropriadas para qualquer ser racional em quaisquer circunstâncias. Seguindo a orientação quase que unânime nesta área do saber humano, considerava que a razão é o fundamento da ética, chamando por razão pura prática a faculdade racional de avaliar as condutas humanas e os objetivos da existência.

Pelos mesmos motivos que justificam a 'Inversão Copernicana' justificada por Kant, a avaliação de uma dada conduta como apropriada ou não, não se relaciona com aquilo que é percebido, mas sim com o mundo interno do agente. E na medida que seja válido restringir a análise ética à capacidade racional, tal avaliação se liga ao campo racional do indivíduo.

Os princípios morais poderiam ser derivados exclusivamente da razão e com ela poderíamos explicar as características da moral. A razão seria a mesma em todos os seres racionais, sendo universal. Desta forma as leis morais podem ser aplicáveis a todos os seres racionais como tal. Tanto a moralidade quanto a racionalidade seriam categóricas; isto é, incondicionais. Não mudariam conforme aquilo que desejássemos ou

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conforme nossos desejos particulares. Por outro lado, Kant concorda com o pensamento de Aristóteles e outros de que a moral não se aplica a seres incapazes de fazer escolhas racionais. Quando uma ação está desvinculada da razão, tal ação não poderia ser considerada como moral. Neste sentido Kant se afasta da realidade e ignora o fato objetivo facilmente constatável, da grande variabilidade da capacidade racional dos indivíduos. Claramente a razão não é a mesma em todos os homens e desta forma não são semelhantes as supostas leis morais que os regeriam. Se assumirmos que a capacidade de fazer escolhas racionais é variável, variável também é a aplicabilidade das regras morais.

Das considerações quanto a liberdade e a razão, surge um dos

importantes imperativos kantianos: "Age de tal modo que sempre trates a humanidade seja na tua própria pessoa ou na de qualquer outro, nunca simplesmente como um meio, mas sempre também como um fim." Devemos sempre tratar os outros como fins em si mesmos e nunca como meios para nossos fins. Devemos respeitar os objetivos dos outros ao invés de usá-los como um meio para alcançar nossas próprias metas.

Pelo termo humanidade se entende a capacidade humana de fazer escolhas racionais e livres quanto aos objetivos a serem perseguidos e adotados. Tratar a humanidade de alguém como mero meio e não como um fim é comprometer seu poder de fazer uma determinada escolha racional. A instrumentalização de um ser humano seria efetuada, por exemplo, por sua coação; por impor-lhe um determinado comportamento, ou ainda de mentir-lhe; subverter a verdade, impedindo-o de fazer uma escolha racional bem fundamentada. Ou seja, a criatura humana não deveria ser tratada como uma ferramenta ou manipulada.

Ainda na época em que os estudos da obra kantiana se

concentram, este filósofo defende que a busca pelo prazer e a fuga do sofrimento seriam agentes móveis sensíveis, do campo emocional e não seriam válidos como critério de decisão quanto as atitudes adequadas dos indivíduos. As ações que nos são adequadas deveriam ser descobertas

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Immanuel Kant e a Boa Vontade.

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por nós mesmos, mediante o uso da razão. Só a razão por Kant seria universal e poderia fazer exigências ao nosso comportamento.

Caberia ressalvar que os sentimentos superiores do homem são parcela essencial de sua humanidade. Difícil considerar que uma mãe amorosa, agindo de forma autônoma e livre não seja, devido à força motriz de sua ação frente ao filho, uma criatura ética. O texto que elaboramos sobre a ética evolucionária esclarece que em grande medida os comportamentos que nos são apropriados são inconscientes e instintivos. Afastar a dimensão da sensibilidade da análise do comportamento humano pode ser considerada uma tentativa fadada ao fracasso de apartar o ser humano de sua humanidade. Este mesmo texto mostra que a evolução é também a origem das disposições altruístas.

A regência do critério de maior felicidade para o estabelecimento de comportamentos, ao qual Kant se opunha, pode dar origem a condutas extremamente inadequadas. É razoável supor que na época na qual Kant viveu, o nível de esclarecimento a respeito disto fosse ainda menor do que se observa hoje. Um projeto de conduta baseado numa felicidade que por sua vez se fundamentasse nas circunstâncias nas quais o indivíduo vive, ou ainda em termos de suas preferências e desejos por bens concretos, como um certo emprego ou uma determinada casa, seria claramente instável. Desta forma, salvo melhor juízo, é mais conveniente realizarmos uma ação por estarmos convictos ser adequada, tendo como incentivo o fato que efetuando comportamentos adequados obteremos uma autêntica felicidade.

Por não aceitar a observação da correlação entre felicidade e conduta adequada efetuada por Aristóteles e outros pensadores, Kant optou por propositalmente auto-restringir suas avaliações éticas. Ou seja, neste campo aceita apenas o raciocínio dedutivo e de forma alguma o raciocínio indutivo, negando assim uma importante linha do pensamento iluminista contemporânea sua; a de que o conhecimento tem origem na observação. Se há a dificuldade de ser o observado inteiramente dependente do observador, por sua vez o que se pretende estabelecer é o comportamento do observador enquanto fenômeno, tal como o fato observado também o é.

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Immanuel Kant e a Boa Vontade.

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Kant afirmou que a aplicação das leis poderia ter caráter universal.

Isto é, não variaria com o momento histórico, conjuntura, o local em consideração e ainda todos os demais fatores. Seriam princípios que poderiam e deveriam ser seguidos por todos os seres humanos sem distinção. A moral verdadeira seria constituída por um conjunto de regras ou um princípio geral que seriam as mesmas a serem seguidas por todos os demais. Uma lei moral seria aquela aplicável de forma generalizada. Que permanece a mesma em todos os casos.

Como comentamos em outros textos, condutas específicas jamais tem tais características. O que é apropriado numa determinada conjuntura, para um determinado indivíduo, num determinado momento frequentemente não o é em outra situação. O que efetivamente pode ser universalizado são as orientações e os princípios gerais de conduta que, de forma flexível, orientam os comportamentos cotidianos.

Kant refuta que interesses individuais sejam bons critérios na avaliação de comportamentos. Tal imparcialidade nas avaliações é um fator bem conhecido e defendido por filósofos da antiga Grécia e de outras regiões do planeta. Kant exige desinteresse completo.

Por Kant uma lei moral deve ser obedecida por respeito ao dever e não apenas em conformidade com ele. Apenas obedecer a um dever não seria suficiente. A lei moral deve ser obedecida devido a uma vontade qualificada, ou seja, uma vontade boa. Agir em respeito pelo dever é estar movido pela vontade desinteressada. É um agir determinado exclusivamente pela própria lei que a razão e a boa vontade estabelecem.

Uma máxima seria a motivação individual. O querer individual

subjetivo. Caso ela possa ser encarada como uma lei moral, ela deveria ser seguida e realizada pelo indivíduo. Fazemos escolhas com base em máximas, isto é, em intenções. Nossos princípios pessoais que corporificariam nossas razões para fazer algo.

Um Imperativo categórico se entende como a ordem por uma ação válida em si mesma, independente de qualquer outro fim ou

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Immanuel Kant e a Boa Vontade.

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circunstância ou interesse ou consequência. Um imperativo ordenaria ou proibiria uma ação determinada. Imporia um dever. Seria diferente de um mandamento de origem em geral religiosa, exterior ao sujeito. Da mesma forma seria diferente de uma norma jurídica, que proíbe ou coage comportamentos exteriores. O imperativo seria então uma prescrição da razão individual sobre a sua própria vontade e caracterizaria uma obrigação que lhe é própria.

O dever moral é uma exigência incondicional ou "categórica" ao nosso comportamento. Não requer que façamos algo pelo que podemos ganhar; diz o que devemos fazê-lo só porque essa é a nossa obrigação.

Nossa obrigação deveria ser agir sempre como desejaríamos que todos os outros agissem, reconhecendo que o desejo de cada um é variável.

Os imperativos categóricos de Kant obviamente são relevantes no contexto do estudo da Ética. No entanto o teste real de validade de um determinado imperativo não é lógico, como superficialmente é apresentado, mas sim está ligado aos julgamentos de bem ou mal pertinentes ao indivíduo que aplica o teste. Ainda em acréscimo, só é adequadamente aplicável para imperativos cuja generalidade e flexibilidade admitam a sua universalização. Desta forma pelo menos um grande cuidado deve ser tomado na abordagem da avaliação pela ética kantiana. É exatamente o da escolha apropriada da máxima a ser seguida. Ou seja, de uma intenção de comportamento generalizada e flexível que permita a sua universalização. Somente a partir disto que a ideia de universalização pode ser apropriadamente aplicada. Por outro lado é relevante se observar que o que efetivamente está sendo considerado é o nosso julgamento de bem ou mal, que eventualmente será diferente de o de um outro. E na medida que vislumbramos sua aplicabilidade universal, tal julgamento automaticamente se insere numa dimensão consequencialista. Isto é, somos levados a vislumbrar as consequências de sua universalização. Em conformidade com isto não é admissível se tentar estabelecer uma obrigatoriedade generalizada mas tão somente, aquilo que se caracteriza na realidade como uma orientação particular de

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Felicidade pela Ética

Immanuel Kant e a Boa Vontade.

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conduta. Por fim, a postura de desapego e de não egoísmo defendida por Kant é válida e clássica entre os grandes pensadores da Ética.

Creio que o presente texto dá uma noção da grande contribuição de Kant ao entendimento humano. A máxima a ser escolhida precisa contemplar a dimensão humana como um todo, inclusive a da sua fragilidade. A conclusão ética a que se chegar precisa levar em conta as diferenças dos valores; de julgamento de certo e errado; de bom ou mau, presentes nas consciências dos indivíduos que compõe nossa coletividade de mais de 7 bilhões de criaturas.

Devemos ainda observar o caráter impositivo e portanto não esclarecido, pelas próprias concepções kantianas, de dever e de obrigação. Por fim, para que uma máxima possa ser universalizável é necessário que guarde uma razoável relatividade e flexibilidade, inclusive tendo em vista o próprio indivíduo que decida pautar sua vida por ela.

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Felicidade pela Ética

Autoestima e Respeito.

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19 Autoestima e Respeito.

Como já efetuamos em outras oportunidades, vamos procurar

explorar o significado das palavras intimamente ligadas aos conceitos correntes de estima e respeito e assim procurar compreender com maior profundidade o que representam. Seriam elas nesta análise: indiferença, consideração, reconhecimento, apresar, encarecer, apreciar, admirar, gostar, prezar, honrar, reconhecer e amar.

A palavra portuguesa respeito tem sua origem no latim, respectu, e apresenta significado original de ação de olhar mais uma vez para trás ou prestar atenção. Como já discorremos em outro capítulo, a palavra amor tem dois aspectos: um passivo de procurar estar o mais unido possível ao objeto amado e outro ativo de proporcionar-lhe coisas boas. Mencionamos igualmente o nosso entendimento de que o verdadeiro antônimo do amor não é o ódio. O ódio seria apenas uma manifestação de amor distorcida. O oposto real do amor nos parece ser a indiferença.

No contexto da palavra respeito, quando transitamos por uma rua movimentada e não prestamos atenção às pessoas que encontramos, manifestamos por elas a indiferença. Se por outro, prestamos atenção nelas ou mesmo nos voltamos para dar mais uma olhada, isto indica que nos envolvemos com ela de alguma forma. Ela nos revelou algo que merece ser considerado. Algo que merece ser mais analisado e acolhido em nosso mundo interior. Um algo que merece ser estimado.

Reconhecer significa conhecer mais uma vez e engloba também a ideia de conhecer a própria imagem, digamos em um espelho; distinguir como semelhante um dado aspecto do observado. Ter como bom, legítimo e verdadeiro.

A palavra portuguesa consideração tem também sua origem no latim, consideratio. Significa refletir, examinar mentalmente, contemplar. Examinar mentalmente é como trazer à luz de nossa consciência aquilo que nos chama a atenção. Vários filósofos defendem que a forma mais sutil e ao mesmo tempo mais elevada e gratificante de prazer está

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Felicidade pela Ética

Autoestima e Respeito.

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justamente na contemplação. Aquilo que observamos está de alguma forma em sintonia conosco; encontra algo de similar dentro de nós mesmos. Contemplar seria então ver-se de algum modo naquilo observado e assim revelar um pouco de nós mesmos.

O termo apresar tem como sentido o de tomar algo como presa, capturar, apreender, agarrar.

Tanto a palavra consideração quanto contemplação, apresentam o radical 'con' o qual indica uma ação conjunta ou uma comunhão entre o observador e o observado. Enquanto indicativas de comunhão, os dois termos podem ser considerados expressões veladas de amor.

A palavra portuguesa estima tem sua origem no latim arcaico aestumare. Supõe-se que originalmente tal termo, que indica estabelecer valor, se refira ao ato de dividir em tomos, isto é, pedaços, tal como se faz quando do estudo de um assunto qualquer, que se entende atualmente pelo termo análise. Podemos propor que seja uma busca de entendimento e compreensão daquilo que é observado, através de nossos referenciais anteriores. O termo reverenciar tem conotação análoga, incluindo aqui um gesto visível de aprovação e respeito.

Encarecer significa estabelecer alto valor a algo. A palavra apreciar tem conotações semelhantes. Indica qualificar

algo ou alguém. Efetuar um juízo de valor. Efetuar uma análise do observado comparando com os padrões de idealidade de que se é portador e inclui avaliar a adequação do observado ao seu propósito.

Neste ponto é oportuno relembrarmos a diferença sutil entre avaliar e condenar. Alguém pode apresentar uma baixa correspondência com os padrões que possuímos, mas como já amplamente discutido em outro capítulo, não é racional, apesar de compreensível no campo das emoções, julgá-lo desfavoravelmente por isto. Mais uma vez aqui surge nossa tendência primitiva de atração pelo semelhante e rejeição pelo diferente e a necessidade do cultivo da tolerância para a promoção da paz e do bem estar na enorme diversidade de sete bilhões de seres humanos sobre o planeta.

Admirar, do latim admirari denota um sentimento prazeroso ocasionado pelo espanto ou surpresa frente a algo extraordinário, belo

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Felicidade pela Ética

Autoestima e Respeito.

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ou inesperado. A olhar com grande interesse uma obra de arte ou a olhar-se ao espelho.

Admirar é sermos atraídos por algo, não ficando indiferente a ele. A admiração nos coloca em movimento para tentar compreender o que poderia ser evidente, mas que nos parece apresentar aspectos obscuros que necessitam maior esclarecimento. Tal sentimento prazeroso denota um apreciar; um gostar.

A palavra portuguesa gostar provém do latim gustare e significa o ato de saborear ou provar. Trazer para o campo de nossas percepções aquilo que entra em contato conosco, concluindo como promotor de algum nível de prazer. Trazendo após a experiência de contato, algum deleite, satisfação ou compatibilização e afinidade com algo de nós mesmos.

O termo prezar tem como sentidos o ato de almejar, ambicionar e amar.

Honrar significa distinguir ou enobrecer alguém por suas ações e qualidades. Prezá-lo e demonstrar também por atos este respeito.

O conjunto de palavras que acabamos de estudar, empregadas para expressar nossos sentimentos, sensações e pensamentos e de origem ancestral e coletiva, trazem algumas ideias gerais, dentre as quais: prestar atenção naquilo que nos atrai; que se mostra capaz de nos revelar algo e nos dar prazer. Examiná-lo, analisá-lo, contemplá-lo e avaliar seu valor. Ver-se de algum modo naquilo que é observado e desta forma aprecia-lo. Determinar se o observado corresponde aos nossos padrões e ao seu propósito. Por fim manifestar por atitudes tal apreço. Surgiram deste modo, para o acionamento da dinâmica de respeito a um outro, os critérios de semelhança, correspondência a padrões e a propósitos pré-estabelecidos.

Quanto à semelhança já estudamos no capítulo da ética evolucionária, que temos a tendência de sermos atraídos pelo semelhante e a rejeitar o diferente, primitivamente mesmo que tais diferenças sejam muito sutis. As semelhanças ou diferenças são estabelecidas por padrões de comparação.

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Autoestima e Respeito.

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O mecanismo de controle social atua, através da rejeição e do desrespeito, quanto menor for a correspondência de um indivíduo com o padrão comportamental esperado, isto é, quanto mais seja diferenciado o sujeito. Este mecanismo proporciona a estabilidade do coletivo e sua resistência à alteração.

Curiosamente no entanto, pessoas muito normais, muito correspondentes a um padrão, não nos chamam a atenção e tendemos a ser indiferentes a elas. Elas tendem a não apresentar nada a nos revelar e assim não são também respeitadas na exata acepção do termo. É possível interpretar tal constatação como uma dinâmica natural para gradativa evolução das estruturas sociais.

Os padrões de avaliação são em parte coletivos e em parte individuais. Consequentemente não é provável que sejamos apreciados por todos, todo o tempo, nem mesmo pela maioria. No decorrer de nossas existências é razoável supor que a grande maioria de nós será apreciado por alguns e por algum tempo.

É de se esperar também que aqueles que apresentem um respeito pelos demais mais duradouro, sejam os que são portadores de uma visão mais ampla da vida e do ser humano: criaturas complexas, com virtudes e vícios, muito semelhantes a cada um de nós.

Também podemos considerar que tendemos a amar aquilo que conhecemos e tendemos a conhecer o que nos é íntimo. Desta forma é razoável que tenhamos o respeito de nossos familiares e das pessoas com as quais nos relacionemos mais proximamente.

O respeito por aqueles pertencentes às mesmas associações, clubes, partidos, agremiações religiosas é esperado mais uma vez, caso aja mútua correspondência com os padrões comportamentais esperados por seus membros. Por outro lado é de se prever intolerância pelos que correspondam aos padrões das outras facções.

Sendo a Ética a ação de fazer o bem ao outro e sabendo que todos nós temos a necessidade básica de sermos amados, considerados e respeitados, cabe procurarmos agir de tal modo com os demais, seguindo a máxima de fazer ao outro o que gostaríamos que fosse feito a nós mesmos.

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Autoestima e Respeito.

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Por outro lado surge o desafio de sermos éticos em ocasiões nas quais somos rejeitados. Salvo melhor juízo tal questão pode ser solucionada, mantendo-se o referencial de bem em nossa própria consciência. Novamente pela máxima, fazer ao outro o que nós próprios gostaríamos que fosse feito a nós.

Fácil observar que a universalização do respeito e da consideração é um processo dificílimo. Tão difícil quanto a possibilidade de aplicação plena da regra de ouro da ética que acabamos de citar e o estabelecimento de uma plena fraternidade universal.

Vimos que apreciar inclui analisar o sujeito observado quanto a sua adequação ao seu propósito. Aristóteles nos esclareceu que o bem maior para todos os indivíduos é a felicidade. O propósito fundamental de cada um de nós é o de sermos felizes e a felicidade, como discorremos nesta obra, tem pouca relação com fatores externos a nós mesmos. A princípio não é uma tarefa difícil aceitarmos para nós mesmos tal constatação. O que é muito mais trabalhoso é aceitarmos tal objetivo naqueles que nos cercam, pois pelas tendências egocêntricas que possuímos, somos levados a encará-los como ferramentas ou instrumentos para a consecução de um determinado objetivo supostamente almejado, apartado de suas características de humanidade.

A intolerância com as diferenças dos demais termina por exercer censura sobre nossas próprias diferenças em relação a eles. A intolerância pela busca da felicidade pelo outro igualmente exerce censura comportamental sobre a nossa própria viagem em direção ao bem maior.

Por outro lado defendemos por várias vezes que a felicidade é obtida através do comportamento adequado e desta forma, por definição, ético. E que o comportamento ético é basicamente fazer o bem. Neste sentido quem busca apropriadamente a felicidade eventualmente não corresponde a critérios de semelhança, padronização e propósito que os demais tenham. No entanto por se apresentar como sujeito bom e útil aos demais indivíduos e à coletividade a que pertence tenderá a não ser demasiadamente rejeitado.

Cabe aqui ainda um comentário quanto ao pensamento de Immanuel Kant, que distingue claramente a realidade daquilo que

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efetivamente percebemos. Graças a isto podemos compreender que podemos nos considerar respeitados ou desrespeitados sem que tal intenção efetivamente exista naqueles que nos cercam. O respeito ou desrespeito pelos demais são basicamente percepções interiores que podem estar bem apartadas da realidade. Nosso orgulho pode nos levar a sobrevalorizar meras manifestações de indiferença.

Por outro lado, quem procura respeitar ou desrespeitar um outro, efetivamente o faz em relação a uma representação perceptiva do mesmo. Isto é, da imagem que ela formou daquele que é sujeito de sua ação. Tal imagem mais uma vez, que se procura enaltecer ou agredir pode ter muito pouca relação com o indivíduo em si.

Por fim, pelo entendimento de Aristóteles, não é sábio deixarmos nas mãos de outros a nossa própria felicidade. Sermos ou não respeitados é algo que não se encontra totalmente em nossas mãos.

Desta forma, analisemos agora os conceitos de respeito e estima, voltados a nós mesmos. Assim entraremos numa área na qual possuímos um controle bem maior.

Quem se respeita se acolhe. Carl Rogers, o maior expoente da

psicologia humanista, defende que frequentemente as pessoas que desprezam a si mesmas assim o fazem porque se consideram indignas de serem amadas. Seria a aceitação e a auto-aceitação incondicional, a melhor forma de melhorar a auto-estima. Também por esta linha psicológica o respeito é um direito inalienável de cada pessoa: "Todo ser humano, sem exceção, pelo simples fato de sê-lo, é digno de respeito incondicional de todos os outros; ele merece se estimar e ser estimado. " A alternativa mais saudável para a auto-estima de acordo com ele é auto-aceitação incondicional e incondicional aceitação do outro.

Uma pessoa com uma auto-estima saudável se aceita e se ama incondicionalmente. Reconhece tanto suas virtudes quanto seus defeitos. No entanto, apesar de tudo, é capaz de continuar a amar .

Se há sofrimento há uma causa. Supomos que se há uma causa há um culpado e o conceito de culpa nos inspira punição. Mas cabe ponderar que as causas eventualmente não poderiam ser diferentes do

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Felicidade pela Ética

Autoestima e Respeito.

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que foram e os contextos igualmente foram os determinados no tempo nos quais os acontecimentos se deram. Não é razoável culpar e pretender a punição do que não poderia ser diferente.

Podemos considerar que o auto-respeito e a autoestima sejam

construidas e facilitadas pela manutenção da fidelidade a si mesmo. Isto gera um algo mais que é a confiança em si. O termo confiança; com fé; pressupõe dois sujeitos e a existência de uma aliança entre eles. No âmbito da Ética, que os atos e as intenções sejam compatíveis com os valores mais profundos do ser. Pode ser entendido como uma relação de tolerância entre o que se manifesta externamente num mundo repleto de resistências de todas as ordens e aquilo que se idealiza ser.

Um arranhar desta aliança compromete o respeito, a estima e a confiança. Sua ruptura caracteriza uma auto-traição.

Na porta do confessionário de uma antiga igreja em Curitiba há uma representação pictórica. É notória a capacidade que as obras de arte possuem de transmitir realidades profundas sobre o ser humano. Tal representação é a de uma alma estilhaçada. No contexto que estamos a abordar, as ações que executamos, dissonantes e incompatíveis com o que portamos no mais profundo de nós mesmos, tem a capacidade de nos desestruturar e nos decepcionar conosco mesmos.

A história está repleta de biografias de personagens heróicos que preferiram até mesmo a morte física do que trair seus valores e a si mesmos, alguns deles inclusive citados neste livro. Por outro lado, a manutenção da própria vida pode se mostrar muito difícil para aquele que trai a si.

Eventualmente a psicologia nos dirá que a auto traição gera uma ânsia de morte que tende a se refletir na representação que o sujeito faz de seu mundo exterior.

Deste modo, o que há de destacar fortemente neste capítulo é a exortação de que o amigo leitor preserve a fidelidade consigo mesmo.

O termo fidelidade alude a uma precisa correspondência entre dois entes o que inclui dentre outras, a compatibilidade entre uma representação e o que é representado. Tal correspondência é a rigor o

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critério de veracidade, tema instigante e amplamente estudado na filosofia.

Aristóteles em seus estudos concluiu que o movimento - a alteração da realidade - é o que caracteriza a própria existência.

Outro tema apaixonante é buscar-se o que caracteriza a vida e na listagem do observável num ser vivente mais uma vez encontramos de forma recorrente o conceito de movimento.

Surge deste modo a conjuntura de ser-se fiel e verdadeiro consigo mesmo, mantendo ao mesmo tempo a mudança e o desenvolvimento de si mesmo, o movimento e desta forma a própria vida.

Retornando aos estudos da verdade, há dois conceitos que julgamos oportuno destacar. O primeiro é o de que a verdade se encontra em contínuo processo de desvelamento e manifestação. Neste caso a verdade se revela gradualmente e jamais chega a ser totalmente compreendida, o que não implica que não haja uma verdade última a atingir. Outro é o de que a verdade é um ponto de vista e uma interpretação reforçada na convicção de cada um.

Deste modo, ser fiel a si mesmo e verdadeiro consigo mesmo apresenta um duplo aspecto. No âmbito comportamental, ter-se atitudes sintonizadas aos valores mais fundamentais que temos. De outro, mantermos a possibilidade de aperfeiçoarmos e desenvolvermos tais valores. E sempre mantermos como valor essencial a aliança que temos conosco mesmos, e nos mantermos sempre dispostos a restaurá-la caso as fatalidades da existência a comprometam.

Tal restauração igualmente se justifica filosoficamente. Pelas palavras poéticas de Heráclito, as águas de um rio nunca são as mesmas, embora alguma coisa da água e do rio permaneçam. Há um algo num determinado rio que o faz sempre ser o mesmo rio.

Pelo pensamento de Zenão, apesar e além do movimento, há a realidade imutável.

No campo da Ética há deste modo um algo real e perene que sempre está em sintonia conosco mesmo que algum comportamento nosso venha a temporariamente romper nosso elo com nossos valores mais fundamentais.

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As experiências pregressas influenciam o desenvolvimento da

auto-estima e se pode incluir na esfera da fidelidade a si mesmo o respeito e a preservação da própria história. É patente em toda a psicanálise que nos curamos e equilibramos lembrando. É com o reavivar da memória que trazemos para toda a bagagem cognitiva e experimental que temos no presente, as nossas vivências do passado e com isto damos à nossa história um significado maior e melhor.

O conhecimento de nós mesmos e de nossas emoções passa por tomarmos posse de nossa história. A jornada para a saúde e o equilíbrio e a cura das desordens é sempre um processo de ruptura, inclusive da ignorância. Um autoexame cotidiano; a busca pelas razões que nos fizeram agir de um ou outro modo parecem ser mecanismos eficientes para a promoção do autoconhecimento de forma autônoma. A autoestima está intimamente associada à autoconsciência.

Um risco que penso o leitor desta obra estar propenso é o

desenvolvimento de um desejo por sofrer. O masoquismo é uma forma distorcida de obtenção de satisfação através da violência contra si mesmo. Segundo Freud, além do masoquismo erótico, há ainda dois outros tipos. O masoquismo 'feminino' e o masoquismo 'moral'. O primeiro se mostra em fazer-se servil, aviltar-se e humilhar-se, o que cabe lembrar a você amigo leitor, é diferente de procurar servir aos demais e cultivar a humildade. O masoquismo 'moral' revela-se pela obediência cega a regras, mesmo que não éticas, assumir culpas por erros inexistentes e boicotar-se. É o SuperEu que já mencionamos em outro capítulo, fortalecido e agindo contra o próprio indivíduo. A solução parece passar pelo autoconhecimento e racionalização bem como permitir-se um controlado nível de agressividade a agentes externos.

As nossas tendências de orgulho, egocentrismo ou narcisismo fazem-nos sentir satisfação em supormo-nos superiores e fortes. As nossas origens de vida em coletividade em sermos aprovados. Mas também pode haver satisfação caso nos coloquemos numa posição de mártires. O sofrimento pode ser gerado como mecanismo para que nos

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sintamos tanto aprovados e amparados quanto superiores e fortes. Sofrer pode ser instrumento para a obtenção da atenção dos demais.

No masoquismo há um sentimento de culpa: o indivíduo presume que cometeu algum erro e faz com que seja expiado por alguma forma de sofrimento.

O gerador deste sentimento é o SuperEu. Esta parcela do inconsciente é passível de contínua modificação e traz em si um modelo ideal de adequação ao mundo externo, tal como o próprio sujeito o percebe e lhe dá significado.

No masoquismo, a ira, a sede de dominação e de destruição de agentes externos volta-se contra o próprio indivíduo. O SuperEu abafa a agressividade e a transfere contra si mesmo.

O próprio sofrimento é o que importa: o verdadeiro masoquista sempre oferece a face onde quer que tenha a oportunidade de receber um golpe.

A fim de promover a punição o masoquista age de modo imprudente e contra seus próprios interesses e boicota suas perspectivas positivas de futuro.

Como vemos, criamos circunstâncias que promovem o nosso sofrer por uma parcela de nosso inconsciente que traz em si um modelo de ajuste ao mundo externo, tal como o concebemos. Sendo tal parcela do inconsciente passível de contínuo aperfeiçoamento, na medida que nossas percepções inocentarem o mundo no qual vivemos, seremos também inocentados por nós mesmos. Quanto mais bondosos formos, mais bondosos seremos conosco.

Num texto datado de 1692 e encontrado no interior de uma igreja

de Baltimore pode-se ler: '... Para além de uma saudável disciplina, sê gentil para contigo mesmo. És um filho do Universo, não menos que as estrelas e as árvores; tens o direito de estar aqui. E seja ou não seja clara essa ideia para o teu entendimento, não duvides de que o Universo se esteja desenvolvendo como deve. Portanto fica em paz com Deus, seja como for que o concebas, e sejam quais forem teus trabalhos e tuas aspirações, mantém na ruidosa confusão da vida, a paz com a tua alma.

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Com todos os seus penosos trabalhos e seus sonhos desfeitos, este mundo ainda é belo ...' Estrelas e árvores não necessitam de aprovação. São honradas, contempladas e admiradas por si mesmas.

Sigmund Freud revelou a aplicação do mito de narciso ao ser

humano que em síntese é a nossa propensão de estarmos voltados para nós mesmos. Tal condição é fundamental na infância para a formação da personalidade. O egoísmo tem origem evolutiva. O indivíduo necessita proteger e preservar sua integridade. O narcisismo em criaturas infantis é exacerbado. Uma criança não admite ficar em segundo lugar ou ser desvalorizada, muito menos excluída. As crianças expressam claramente as necessidades humanas: justificar-se como um objeto de valor, se destacar, ser um herói.

As bases da auto-estima provém da infância. Podemos supor que crianças não tenham auto-valoração bem estabelecida, mas numa família saudável é de se esperar que elas se estabeleçam satisfatoriamente. Afinal os pais verão nos filhos, uma metade eles mesmos e outra o reflexo do parceiro amado com o qual decidiram passar o restante da vida e constituir família. Os pais saudáveis admirarão naturalmente seus filhos, os respeitarão, gostarão deles, os amarão. A criança se sentirá amada; merecedora de amor irrestrito e formará graças a isto uma base de respeito a si duradoura.

A entrada na vida escolar é crítica. É de se esperar que aí comecem os mecanismos de controle social, eventualmente através de cerceamentos para o estabelecimento de padrões comportamentais coletivos. Em particular as diversas formas de 'bullyng' sistemático poderão vir a corromper os padrões de autoestima já estabelecidos. Provavelmente a melhor solução seja a de afastar a criança do ambiente negativo através de troca de escola. Eventualmente consultar um especialista para ensinar a criança a superar ou neutralizar tal ambiente hostil. Eventualmente também a solução passe pela liberação de alguma agressividade sobre os agentes agressores, de modo a garantir o espaço vital e a preservação de limites. Como vimos na análise do comportamento de origem evolucionária, as pessoas estão muito mais

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dispostas a efetuarem agressões simuladas para afirmar sua dominância do que arcar com o ônus de uma agressão real.

Pais geradores de autoestima básica nos filhos, são pais presentes que estabelecem limites claros, mas ao mesmo houvem a opinião dos filhos nas tomadas de decisões. Conversam com eles. Não abrem mão de seus papeis de pais apoiadores e responsáveis. As crianças precisam ser ouvidas com respeito, atenção e carinho. Ter suas realizações reconhecidas e falhas aceitas.

A crítica, as diversas formas de agressão, de física, sexual, a emocional e mental, ser ignorado, ridicularizado e não ter sua falibilidade aceita corrompem o amor próprio dos jovens.

A aceitação pelos colegas e amigos gera confiança e auto-estima elevada. A rejeição e a solidão exercem efeito contrário.

Críticas severas tais como a respeito do valor, moralidade, realizações dirigida a indivíduos com a autoestima já abalada podem ser devastadoras. Indivíduos com baixa autoestima são mais auto-críticos e mais dependentes do sucesso, da aprovação e elogios dos outros.

Fundamentada adequadamente a personalidade pelo amor

voltado para si, cabe ao homem migrar a um novo e superior patamar. Na filosofia de Rousseau, o orgulho narcisista incentiva o homem a comparar-se com os outros, criando assim, medos injustificados e levando a que os homens tenham prazer na dor ou fraqueza dos outros. Orgulho é supor-se mais que outro. Tal suposição precisa a todo momento ser confirmada. O orgulho como o gerador de ânsia por se comparar com os demais e obter seu reconhecimento sugere que tal pretensão de superioridade necessita a todo o momento de confirmação.

Também para Rosseau, as enfermidades do corpo, bem como os vícios da alma, são o efeito infalível desta competição.

Caracteriza o narcisista uma incerteza oculta de seu próprio valor que gera manobras de autoproteção e a manutenção de um sentimento e tentativa de projeção de grandeza.

Possuem uma autoestima alta. No entanto inconstante, sujeita aos episódios de aprovação ou rejeição pelos demais. A fragilidade interior é

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compensada justamente pela aparência de elevada autoestima e confiança. O narcisista é ufanista: se vangloria de seus feitos frente aos demais para velar sua fraqueza e tende a ter poucas habilidades sociais.

Os olhos dos homens comuns em sociedade, que se auto contemplam, não são os dele mas sim a maneira como supõe ou então como em certa medida os olhos de outros os veem. A busca da riqueza material, ou de um carro um pouco mais luxuoso pode ser encarada como a busca da confirmação do valor e da importância pessoal. Quanto a automóveis, se me permite o amigo leitor um comentário, um de volume de cilindro de 1000 cm3 (1.0) o leva a todos os lugares que um 3.0 ou mais o faz. Com as limitações legais de velocidade, inclusive exatamente no mesmo tempo. Já aquele que dirige um carro sempre contempla a beleza dos demais, mas sempre está impossibilitado de contemplar a beleza externa de seu carro, simplesmente pelo fato de estar em seu interior. A compra de carros luxuosos é em geral a uma nítida expressão de vaidade. A vaidade se define como a tentativa do indivíduo de aparentar ser maior do que ele conscientemente sabe que é. É curiosa a observação de residências muito humildes com carros luxuosos nas garagens e mega empresários trafegando com fuscas. Eventualmente pode ser efetuado o raciocínio: sou infeliz porém tenho um veículo luxuoso. Melhor seria que fosse feliz com um meio de transporte menos ostensivo. Para atingir tal objetivo é conveniente uma visão de mundo não convencional, mas sim realista com respeito àquilo que leva ao contentamento interior.

A comparação é uma atitude que sempre leva a frustação.

Ninguém consegue agradar a todos, todo o tempo, nem mesmo uma maioria. Ninguém se destaca em todo os aspectos da vida em comparação com os demais. Sempre haverá aqueles que supostamente são superiores a nós. A tentativa de se adaptar ao agrado dos que nos rodeiam será sempre esmagadora e apresentará sempre sentidos conflitantes.

Quem adquire sentimento de valor, tende a fazê-lo por meio de pressupostos. Através de uma certa visão de mundo. O impulso por se

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sentir um ser destacado do meio e valoroso leva o sujeito a se comparar com outros. Claramente tal comparação poderá ser dolorosa, pois que se é verdade que numa visão da existência coletiva, sempre existirão indivíduos aparentemente inferiores a nós, haverá também aqueles supostamente superiores.

Quando contemplamos uma colmeia vemos abelhas. Quando contemplamos um formigueiro vemos formigas. Cada abelha e cada formiga tem um valor inerente. Cada uma destas criaturas é importante e exerce papel relevante para si e para o meio onde se insere. Os anseios de um destes seres é tão relevante quanto os de um outro. O alcance da visão de que neste planeta somos sete bilhões de seres muito semelhantes e irmãos, na busca comum por felicidade, realização e autodesenvolvimento talvez tenha a propriedade de enfraquecer um pouco o anseio por competição e comparação.

O modo como os outros nos encaram são apenas referenciais. Referencias eventualmente úteis para um ajuste de rota. Não é conveniente no entanto que deixemos que tal modo de ver comprometa nossa conduta, basicamente a respeito daquilo que racionalmente concluímos ser adequado. Se permitirmos que a opinião de outros nos afete, comprometemos as virtudes de autogestão, autodomínio, autonomia, ... virtudes estas sobejamente enaltecidas por vários dos pensadores principais da Ética, como pudemos observar no transcorrer deste trabalho. Abalar-se com a opinião alheia tem a possibilidade inclusive de ferir o próprio amor-próprio, fundamental à saúde individual conforme os conhecimentos da psicologia humana.

Temos a tendência de nos enfeitiçar pela ilusória tentativa de agradar a todos. No entanto, essencialmente temos que agradar com as nossas existências basicamente nós mesmos.

Parece já estar comprovado que é apenas quando as pessoas se envolvem pessoalmente em esforços significativos em prol de um bem é que sentem-se bem consigo mesmas, a autoconfiança cresce e maior número de ações de sucesso se viabilizam. Isto faz com que as pessoas concordem que merecem ser felizes.

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A autoestima se relaciona a uma comparação entre como cada um se vê ou se manifesta e como gostaria de ser, bem como a correspondência com seus próprios ideais. A saúde psicológica depende desta aceitação, amor e respeito por si mesmo.

As leis que regem a evolução da raça humana, criaram a necessidade interior de fazermos coisas que intimamente consideramos verdadeiramente úteis e boas aos demais. Com isto adquirimos valor real frente aos nossos próprios olhos e desta forma nos temos em elevado apreço.

O ser humano anseia por destacar-se da natureza. Realizar ou contribuir com algo. Ser um agente modificador do meio, tornando-se filosoficamente aquilo que em potência já é. O papel natural e saudável para um ser humano é ser um herói, valoroso, útil, significativo, contribuindo de algum modo para a sociedade. A concretização desta realização heroica - ser útil - pode ser desvirtuada por uma estrutura de conceitos e convenções coletivas inapropriadas.

Creio que já mencionamos em outro capítulo que as sociedades humanas ao longo de toda sua história, jamais se ativeram apenas à sobrevivência. Sempre procuraram deixar legados mais duradouros que elas mesmas. Em termos individuais dificilmente há uma cultura coletiva que automatize tal sentimento heroico. Cabe ao indivíduo ele mesmo analisar com que olhos verá o papel representado na vida e o que realizará.

O sentimento de heroísmo pode ser equivalente, tanto para aquele que se apresenta como um líder religioso, um político ou um pai e mãe que procuram manter convenientemente seus lares. Um homem pode dedicar sua vida à sua família. Pode ser generoso ou se sacrificar. É fundamental para a felicidade no entanto, que sinta e acredite que o que faz é útil, significativo, transcendente ao tempo.

Relembrando o pensamento de Aristóteles, a felicidade pessoal sempre será extremamente volátil e transitória caso baseada em coisas tais como riqueza, fama ou poder. Tais bens tendem a ser transitórios: ir e vir de acordo com a ação de outros. Por outro lado podem ser

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empregados com vistas a ações altruístas e tais ações serão vistas como úteis e mais duradouras do que aquele que as faz.

O amor é característico do ser humano e da vida. Amor ao

próximo e a si mesmo não são independentes. Quem ama o outro é aquele que ama a si mesmo. Quem ama a si mesmo também ama outros. Quem ama a si mesmo e a outros manifesta por atos esta condição.

Em conclusão deste importante capítulo, citamos a exortação de

Pitágoras, o sábio de Samos: 'Mais que tudo a ti mesmo respeita.'

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Usando uma técnica já empregada nesta obra em outras

oportunidades, é muito pertinente iniciarmos por analisar com cuidado o título do presente capítulo.

Motivo vem do latim 'motivus'. É formada com a raiz do verbo mover e o sufixo '-ivo', que por sua vez indica uma relação passiva ou ativa. É uma palavra relacionada ao movimento. A palavra motivo está relacionada também aos termos estímulo, dilema e crise. É aquilo que faz mover e o que dá origem, determina, causa ou resulta em algo. Em termos musicais o motivo é o que caracteriza e particulariza uma melodia.

A palavra movimento igualmente tem sua origem no latim (movimentu). Se refere ao ato de se mover, ao mudar, ao agir e estar animado, isto é, com alma. Ao impulso interior promovido pela alma. À variedade e à diversidade. Em termos musicais, a cada uma das partes que apresenta andamentos contrastantes.

O termo mudança se refere à alteração, modificação ou variação. De algo a partir de um lugar, estado, condição, atitude ou sentimento, para outro.

A palavra emoção também proveniente do latim, esta relacionada ao termo motivação. É palavra derivada de 'movere'. Em emoção, 'emotione', 'emovere', a vogal 'e' indica 'para fora' e 'movere' significa 'movimento, ação, comoção, gesto'. O termo se refere ao ato de mover o mundo interior do indivíduo. A uma perturbação ou variação do espírito oriunda de diferentes situações e uma agitação da mente ou do espírito.

Como observamos, todas as palavras acima estão relacionadas ao mover. E também como já observado, o mover que origina uma modificação qualquer, se define como ser capaz de corresponder a um estímulo da alma ou do espírito, ou do mais profundo do ser, conceitos estes a serem entendidos em conformidade com as suas preferências pessoais, amigo leitor. O mover caracteriza também uma situação

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polarizada ou um dilema: O estado no momento e aquele para o qual tendemos; o que não se quer e o que se quer; e como estes dois exemplos, infinitos outros. O modo como se dá o movimento permite a diversidade e a distinção de um corpo em relação aos demais.

Salvo melhor juízo podemos afirmar que num estado absolutamente inerte não há contrastes e sem contrastes não é possível qualquer existência. Caso a existência vital não consiga corresponder minimamente aos movimentos exigidos pela psique, tal existência não se torna viável. Se a existência sem movimento não é possível, igualmente a vida sem ele, tal como a entendemos, também não o é. O que expusemos aqui deste modo particular, em sintonia com as conceituações de outros é que, muito verdadeiramente, a vida para que possa existir, necessita de alguma forma mesmo mínima de mudança e que tais mudanças basicamente se dão numa forma ativa, através das motivações individuais. Um pensar ou um sentir já são mudanças. O que dá origem ao pensar ou ao sentir é a motivação e o querer.

Heráclito de Éfeso afirmava a mudança de todas as coisas e sua

impermanência, de modo idêntico ao pensamento budista por nós já estudado. O mundo todo é visto como um fluxo incessante, onde só permanece estável e inalterável o Logos que rege a inevitável transformação de tudo. Tudo está em movimento e o movimento se processa por meio de contrários. 'Em nós, manifesta-se sempre uma e a mesma coisa: vida e morte, vigília e sono, juventude e velhice. Pois a mudança de um dá o outro e reciprocamente'. . Parmênides de Eléia afirmava a unidade e a imobilidade do ser. No poema em que expõe seu pensamento, dois caminhos são colocados: 'o que é' e 'o que não é'. O segundo revela-se impossível pois nada corresponde a 'não-ser'. A busca racional do 'ser' leva a conclusões de unicidade, imutabilidade, imobilidade e eternidade.

Aristóteles efetua a união conceitual entre a existência em movimento de Heráclito e o ser imóvel de Parmênides. O movimento manifestado é o ato determinado pela potência do ser que se encontra

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além da existência e assim é transcendente a esta. As mudanças ocorrem no substrato da realidade imutável. O ser não é apenas o que já existe, em ato. É também o que pode ser em potência. A passagem da potência ao ato é o que constitui o movimento e o devir. As construções, o aprendizado, o crescimento, o desenvolvimento são realizações de potencialidades. A potência pode em certa medida ser dirigida e possuir aptidão para efetuar uma certa transformação.

Paulo tem a potência para possuir conhecimento. Paulo possuindo conhecimento é conhecedor em ato. A passagem de potência a ato é o movimento. Isto é, a potência do ser se manifesta na existência pelo movimento; pelo motivo. Algo pode estar em potência, mas a ausência de motivo pode impedir que se manifeste em ato.

Para Aristóteles movimento é entendido por todo e qualquer tipo de mudança e o fundamento de todo movimento ou motivo é o amor.

Em relação a motivos podemos portanto analisar três casos: A sua ausência gera uma barreira a que a potência do ser se manifeste em atos. A potência dirigida de um indivíduo, atuando sobre o movimento de outros e determinando desta forma seus atos. As ações determinadas pela potência dirigida do próprio indivíduo. Quanto aos atos e motivos, retornemos ao pensamento de Parmênides: o ser é único. Isto significa, caso dermos credibilidade a este filósofo, que na mais elevada transcendência do ser, tudo é uma só coisa, inclusive eu e você. Deste modo a potência do ser está voltada a todos. Caso direcionemos a potência em detrimento de nós mesmos ou de um outro, por Parmênides, um outro nós mesmos, criamos uma incompatibilidade do ser com o existir. Caso tal potência se dirija à abstenção de prejuízos e ao benefício, ocorre uma sintonia entre o ser e o existir que resulta em felicidade, bem estar, realização e desenvolvimento pessoal.

O altruísmo é encontrado nos seres nos quais as ações de um indivíduo tendem ao beneficio de outros. São termos correlatos a solidariedade e a bondade. Como já observamos nesta obra, o altruísmo é disposição natural do ser humano. É recomendação de pelo menos a maioria das religiões mundiais. É o que há de fundamental na construção racional da Ética. É uma manifestação de amor voltada ao outro. A

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amizade é uma relação de troca de amor. O amor-próprio é uma manifestação de amor fundamental para a existência sadia que absolutamente não compromete a realização de atos de amor voltados aos demais.

Para que haja existência são necessários motivos. Para que a nossa

existência seja justificável é necessário que os motivos sejam nossos. Para que nossa existência seja feliz é necessário que os motivos sejam bons.

Assisti recentemente a um depoimento de um operário de uma

plataforma de petróleo que se gabava porque sua atividade permitia que seus patrícios tivessem combustível para poder se deslocar de um lado para outro. Ex-alunos meus diariamente, tratam de garantir o abastecimento de combustível para conjuntos inteiros de Estados do Brasil. Outros, do fornecimento de água potável. Outros ainda do fornecimento de alimentos e assim por diante.

É famoso o desempenho de um dos garis que varrem o sambódromo do Rio de Janeiro, após a passagem de cada uma das escolas de samba. Varre a avenida com alegria, sambando e sob aplausos. Caso um gari não removesse o lixo defronte de minha casa algumas vezes por semana, em muito pouco tempo haveria aqui uma montanha mal cheirosa, berço das mais diferentes pragas.

Caso os pais de, digamos, Sócrates não houvessem criado adequadamente seu filho, toda a filosofia ocidental estaria comprometida.

Em sintonia com o pensamento kantiano, o que você efetivamente faz tem um papel secundário em relação aos motivos graças aos quais você os executa.

A minha atividade laborativa é a de professor universitário e a exerço a cerca de trinta anos. No início minha postura poderia ser caracterizada por ser rigidamente deontológica. Neste sentido meu contrato de trabalho previa oito horas de trabalho ao dia. Houve época que cronometrava a minha atividade e após nove ou dez horas de permanência, chegando por vezes à exaustão mental, não me

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conformava por ter trabalhado em termos de carga horária líquida, apenas seis ou seis horas e meia. Ministrava apenas uma ou duas disciplinas com uma qualidade por vezes muito questionável e a preocupação era grande em dar aulas vistosas e relevantes.

Atualmente a minha postura ética é fortemente teleológica, apesar de obviamente me submeter a inúmeras regras razoáveis do adequado viver em coletividade. Neste semestre ministrarei pelo menos seis disciplinas e possuo atividades de pesquisa e extensão que considero razoavelmente ativas. Minha produtividade, eficiência e eficácia são muitíssimo maiores e o tempo gasto muitíssimo menor. Isto não se deve apenas ao acréscimo de experiência, mas talvez muito mais a uma mudança de postura de egoísta para altruísta. As atividades que executo em sua maior parte fazem pleno sentido para mim. As não relevantes me são valiosas porque úteis às atividades que me são importantes. E as atividades que considero importantes são aquelas que considero efetivamente úteis a ao menos um outro.

A vida precisa veementemente fazer sentido para nós. O sentido é o de realizar algo que julguemos verdadeiramente bom aos demais e pode ser, se pensarmos bem, algo que façamos sentados em nossa sala de estar. Não necessita ser mirabolante ou complicado ou difícil. Se quer o destino que sejamos levados a alguma atividade laboral, há pelo menos três alternativas: Caso não encontremos sentido em uma atividade, podemos mudar para uma outra. Podemos interpretar nossa atividade de um modo diferente, em geral uma versão mais altruísta, e passarmos a ver sentido nela. Podemos adaptar a atividade laboral que já exercemos para que ela passe a fazer sentido para nós.

Em períodos muito difíceis pelos quais passei, por vezes qualquer tipo de ação foi altamente impossibilitada. Justamente nestas condições, são as pequeníssimas ações altruístas aquelas que assumem máxima importância e são mesmo quase que essenciais para a restauração de um estado de saúde e equilíbrio.

Por algum tempo exerci atividade voluntária de assistência

material a pessoas atingidas pela carestia em instituição religiosa católica

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A Vida Necessita de Motivos.

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próxima a minha residência. Mantenho assistência financeira a algumas organizações filantrópicas. Tive uma família de professores que mantinham atividade constante em instituição espírita. Os que conhecem o perfil de tais organizações sabem que seus trabalhos abertos ao público sempre são realizados objetivando o bem. Um outro ilustre professor, juntamente com amigos apoiou por anos uma família carente, na prática adotando-a. Um outro respeitável professor, juntamente com sua esposa, exerce serviços semanais em outra organização espírita. Uma digna colega professora ajuda a manter um asilo de idosas. Um amigo se dedica a cuidar de sua mãe já bem limitada.

Na televisão observamos inúmeros padres, conselheiros, astrólogos, místicos, pastores, seguidores das mais diversas religiões, procurando dar a outros o que consideram boas orientações para a vida.

Os exemplos de serviços sociais realizados voluntariamente por pessoas ao nosso redor são inumeráveis, mesmo considerando que pelas orientações da religião cristã, seja conveniente que tais ações sejam efetuadas discretamente. Caso questionemos qualquer um destes benfeitores, por certo responderão que se sentem felizes por realizar tais ações. Suas atitudes voltadas para o bem, se não justificam totalmente a vida, ao menos colaboram para que tenham razões de existir.

Em síntese, a potência do querer gera os movimentos; os motivos que culminam em contribuições para coletividade e auxílio social. Motivos bons frutificam em felicidade, auto-realização e desenvolvimento pessoal. Cabe portanto tê-los. Querer tê-los. Envolvermos nossos corações com tais objetivos e sonharmos com sua realização.

Frequentemente nossos sonhos não correspondem às

expectativas dos que nos rodeiam. Eventualmente, por vezes, porque os que nos rodeiam almejam que os outros sirvam de instrumentos para a realização dos sonhos que eles mesmos portam. Ou eventualmente porque esperam uma concordância universal com a visão de mundo que tem. Já discutimos a tendência que temos de gostar do igual e ter aversão pelo desigual. Tendemos a nos sentir seguros quando estamos rodeados

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Felicidade pela Ética

A Vida Necessita de Motivos.

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por semelhantes a nós. Podemos conceber que todos estamos a jogar um grande jogo chamado vida. No entanto existem infinitos jogos 'vida', tantos quantos sejam os seres humanos sobre o planeta. Tendemos a algum desconforto quando um próximo joga um jogo 'vida' de modo diverso ao jogo 'vida' que jogamos. Cada um está fadado à absoluta vitória quando o jogo foi determinado por si. Cada um está fadado a longo prazo à absoluta derrota, quando procura jogar um jogo definido por um outro. Se há um grande jogo no qual está inserida toda a coletividade humana, a auto-gestão e a consideração dos padrões pessoais é o que garante uma verdadeira individualidade. A individualidade é remédio para a normose da massificação e os legítimos e necessários contraste e distinção na igualdade.

A questão de aceitação externa já foi estudada por inúmeros pensadores. A regra de não se envolver com os resultados de uma ação bem intencionada é amplamente conhecida por várias abordagens do conhecimento humano (filosofia, religião, psicologia). A contradição entre procurar ser útil ao outro e não se importar com a opinião do outro é superada quando lembramos ser impossível que nossas atitudes agradem a todos.

Os compromissos que temos são sempre conosco mesmos. Pela psicologia junguiana, todos nós já nascemos com um estado de ser definido. A meta de cada um de nós é a de nos tornarmos algo o mais próximo possível daquilo que já somos e absolutamente não de nos preocuparmos com as opiniões daqueles que nos rodeiam. As reações externas a nós são basicamente oportunidades de aprendizado; essencialmente oportunidades de nos conhecermos a nós mesmos melhor.

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Felicidade pela Ética

Comportamentos Auxiliares à Felicidade.

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21 Comportamentos Auxiliares à Felicidade.

Em um evento promovido pela Universidade de Nevada, um

jovem discutiu a questão de métodos educacionais voltados para a felicidade.

A felicidade humana foi tema extensamente analisado pelo filósofo Aristóteles e suas reflexões podem ser lidas em sua obra 'Ética a Nicômaco'. Sua conclusão, referendada posteriormente por inúmeros, é a de que o maior dos bens para qualquer ser humano é a sua felicidade. A felicidade humana é o que importa. Tudo o mais é periférico. A felicidade crescente de todos acresce a felicidade de cada um.

Quanto ao investimento de tempo e esforço para a nossa felicidade, é importante lembrar que a felicidade é o nosso objetivo essencial e nosso estado arquetípico, isto é, o estado que nossa existência tende a manifestar. Que o nosso tempo é patrimônio nosso. Que por mais incrível que possa parecer a alguns, que nossa agenda é nossa.

Na palestra acima mencionada é citado um pequeno resumo do trabalho 'Estilo de Vida e Saúde Mental' do Dr. Roger Walsh, professor de Psiquiatria, Filosofia e Antropologia da Universidade da Califórnia. Seu método, 'Terapia de Mudança no Estilo de Vida (TLC)' tem por base oito atitudes. Abaixo a citação de tal listagem com comentários pessoais:

Exercícios Físicos. No meu caso, aprecio caminhar mais de trinta

minutos ao dia ou nas imediações de casa, ou em parques ou pelo centro da cidade. Procuro realizar tal prática sempre que minha tendência ao comodismo permita. Em épocas críticas já adotei tal comportamento com chuva ou com sol, de dia ou de noite, todos os dias. Entendo como uma espécie de Hatha Yoga, onde o equilíbrio e o ritmo da alternância das passadas e do balançar dos braços bem como a segurança do apoio dos pés sobre o solo, se reflete num equilíbrio emocional e mental. Em termos bioquímicos, a liberação de alguns hormônios acresce a calma e o

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Comportamentos Auxiliares à Felicidade.

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bem estar. O apreciar do céu, da vegetação, da paisagem e dos transeuntes, eventualmente cumprimentando-os e com eles trocando palavras cordiais, provavelmente exerce igualmente efeito psicológico positivo.

Os grandes pensadores do passado não teriam razões para recomendar tal comportamento visto que a atividade física era então fato cotidiano e generalizado.

Dieta e Nutrição. Além de uma alimentação adequada, me parece

que este item inclua alguma forma de auto-gratificação. Aqueles com maior número de anos observaram os inúmeros modismos a respeito da melhor alimentação humana, inclusive revestidos por uma roupagem científica. Em tudo e inclusive neste item me parece válida a recomendação Aristotélica, Pitagórica e de outros tantos grandes pensadores da humanidade que é a da busca do meio termo.

Tempo com a Natureza. Gosto e convivo com meu cão e volta e

meia trabalho como jardineiro no quintal. Em épocas críticas sento e converso relaxadamente com os cedros que lá plantei. O contato com a terra possivelmente nos conecta às nossas raízes ancestrais e à concretude das coisas simples e calmas que realmente são importantes nas nossas existências. Somos todos nós criaturas simples, maravilhadas com as formas de vida que nos cercam. No entanto artificializadas por uma cultura repleta de complexidades frequentemente sem sentido ou importância. Animais de estimação igualmente tem a capacidade de nos conectar com tal simplicidade. Nos conectar com a espontaneidade. A espontaneidade da alegria ou da tristeza; do querer e pedir alimento ou carinho. Com a segurança oriunda exclusivamente da sensação de pertencimento a um grupo. Já é hoje bem sabido o efeito curativo, benéfico dos animais de estimação. Em rede social já observei uma charge na qual farmácias comercializavam o mais novo e potente medicamento para desordens emocionais, que era um cachorro.

Também a respeito deste item os filósofos antigos não teriam razões para recomendar, pois que atitude imensamente comum. Como

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Felicidade pela Ética

Comportamentos Auxiliares à Felicidade.

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curiosidade vale lembrar que a disciplina seguida nos monastérios ocidentais, ao longo de muitos séculos, recomendava o contato diário com a terra.

Recreação. A recreação, o sentido de vida, e o próximo item

(controle do stress), me parecem estar interligados. No meu caso faço jardinagem, caminho, pinto quadros e toco teclado. Nos três casos a atividade é minha: não há o acertar ou o errar. Para mim são atividades agradáveis simplesmente porque eu as faço. Certa vez me perguntaram 'você fez curso de jardinagem?' Eu respondi sinceramente: 'Não.' Me perguntaram também como você fez para aprender a pintar ? Eu respondi: 'Pintando.' Recreação talvez seja exatamente isto: fazer algo agradável sem qualquer cobrança por resultados. Sempre, em última análise, quem cobra resultados somos nós mesmos. Uma atividade laboral que faça sentido, sem qualquer preocupação com a aceitação dos resultados por agentes externos a nós, é também recreação.

Neste ponto, amigo leitor, talvez você esteja questionando como

ser feliz com o estilo de vida que você tem. Tal questão, penso que ficou mais esclarecida no capítulo quanto a razões para viver. Também aqui cabe lembrar que as maiores das prioridades racionais são a felicidade e a vida. Neste sentido eventualmente serão necessários ajustes de prioridades acarretando igualmente em ajustes no estilo de vida.

Consideramos como necessidades fisiológicas para a permanência da vida o respirar, o comer, o dormir. O não atendimento de tais necessidades acarreta numa vida mais curta. É razoável considerar que a colocação de pelo menos parte das recomendações deste capítulo ao nível de prioridade das necessidades fisiológicas venha a lhe ser extremamente benéfica.

Relaxamento e Controle do Estresse. Entende-se por estresse

como o conjunto de alterações no indivíduo, provocadas por estímulos externos, aos quais este mesmo indivíduo se permite submeter, como também pelo modo como tais estímulos são interpretados por ele. Em

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Comportamentos Auxiliares à Felicidade.

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condições saudáveis, tais estímulos e as reações internas a eles não chegam ao nível do mal estar. Numa condição de sobrecarga de estímulos e em conformidade com as interpretações dos mesmos, o efeito resultante é o de um desgaste geral em todos os níveis, que pode inclusive chegar a afetar a sanidade mental, emocional e física.

Neste sentido cabe a recomendação pitagórica contida em seu código comportamental: 'quanto aos males, julga-os pelo que são; procura quanto lhe seja possível o rigor abrandar-lhes.' Ou seja, o estresse tal como costumeiramente entendido é um mal e devemos procurar o mais rapidamente possível reduzir a níveis compatíveis com o bem estar e a saúde.

Os estímulos para surtirem efeito precisam de interpretação pelo indivíduo, que podem ser classificados em irrelevantes, positivos e negativos. Obviamente os causadores de dano são aqueles que classificamos como negativos. São estes os causadores de desgaste.

Salvo melhor juízo, o primeiro passo no controle do estresse é o de definir com objetividade os estímulos externos que nos perturbam. O segundo, observarmos quais são objetivamente também nossas interpretações internas a eles. Isto é, porque tais estímulos nos perturbam. Por acaso nos é possível encará-los de modo diferente? Encará-los não mais como perturbadores, mas como indiferentes ou mesmo benéficos?

Se há estímulos danosos, como podemos suprimi-los? Possivelmente uma das maiores situações estressoras é ocasionada

pelo sentimento de impotência frente a uma dada conjuntura. Neste sentido o primeiro passo é o de confiarmos em nossas capacidades de compreender, bem como de solucionar o problema. Também aqui cabe nos conscientizarmos da amplitude de soluções que sempre estão à nossa disposição. Da amplitude de adaptações possíveis e ao menos mentalmente enumerar e se possível, paulatinamente expandir o rol de soluções e adaptações, mesmo que num primeiro momento sejam consideradas improváveis.

Quais as alternativas que temos para transformarmos a conjuntura externa de desgastante para benéfica? Quais as alternativas razoáveis ao

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Felicidade pela Ética

Comportamentos Auxiliares à Felicidade.

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nosso dispor para passarmos a encarar a conjuntura externa de negativa para neutra ou positiva? Quais são as alternativas disponíveis para nos afastarmos da conjuntura estressora?

Efetuada a seleção das opções que mais nos agradam, resta o esforço para pô-las em prática. Sair de uma posição passiva e aprisionadora, para outra proativa e de libertação.

O Relaxamento é uma prática reconhecida pela ciência moderna,

onde a atuação sobre o corpo físico resulta em tranquilidade e equilíbrio interior e chega a ser empregada até mesmo como tratamento para diversos tipos de problemas.

A redução da tensão muscular a nível fisiológico atua salutarmente na estrutura da psique do indivíduo. Uma de suas técnicas recomenda que o indivíduo se deite imóvel, em local isolado e tranquilo, de costas, com braços e pernas ligeiramente entreabertos. Após um esforço mental inicial de relaxamento geral, passe a observar a regularidade da respiração e após isto, se concentre no relaxamento de cada pequena parte do corpo.

Caso tal técnica seja antecedida pelas posturas da Hatha Yoga de origem indiana milenar, a mesma se torna análoga à técnica de relaxação muscular progressiva, criada pelo médico e fisiólogo norte americano Edmund Jacobson. Um livro facilmente acessível que recomendo aos que desejem experimentar a Hatha Yoga no conforto de seus lares, através de sequência de lições claramente estabelecidas é 'Autoperfeição com a Hatha Yoga', do célebre professor brasileiro Hermógenes.

Após um relativamente curto tempo de prática, o relaxamento físico e a tranquilidade mental podem ser atingidos se estando sentado, em qualquer tipo de ambiente, bastando para tanto o exercício da vontade pessoal para tal.

Relacionamentos. Ninguém é feliz sozinho. Os nossos

relacionamentos prioritários são os nossos relacionamentos próximos. Basicamente a família. Prejudicar os relacionamentos familiares sob qualquer pretexto não é uma atitude inteligente ou saudável. O mundo

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Felicidade pela Ética

Comportamentos Auxiliares à Felicidade.

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do trabalho atual está voltado ao enriquecimento. Tal fato é uma pútrida e terrível distorção que tende a levar a uma infelicidade generalizada, até mesmo com respeito àqueles que chegam a auferir os lucros. A finalidade ética de qualquer atividade laborativa é a felicidade e o bem estar tanto daquele que a exerce quanto da coletividade onde este se insere. As atividades laborativas não tem por finalidade a tortura e são, sim, instrumentos para a eudamonia. De qualquer modo, tende a ser catastrófica a priorização do trabalho em detrimento dos interesses familiares. Os laços familiares exigem tanto qualidade quanto quantidade de empenho de seus membros. Já comentamos, a respeito disto, a importância dos pais presentes. Os pais presentes exercem atos concretos de demonstração de interesse diretamente aos seus filhos e tais demonstrações diretas são efetuadas também com frequência. O importante não é apenas a qualidade das atitudes com as quais se pretende cultivar uma relação, mas também a quantidade de tempo que cada um dedica a ela. O mesmo se aplica à relação entre esposo e esposa e vice versa, bem como a qualquer tipo de relacionamento afetivo.

Dizia Pitágoras que feliz é o homem que tem um amigo na vida. Um amigo pode ser definido como aquele que você tem certeza que o socorreria gratuitamente numa situação de dificuldade.

Cabe igualmente registrar na memória, a título de precaução, os indivíduos que lhe ocasionaram dor.

No entanto também a respeito das amizades é fundamental a tolerância pelas diferenças. Para as amizades igualmente é importante a qualidade e quantidade das manifestações de afeto e o tempo dedicado a elas.

Uma característica humana é o orgulho. A característica do orgulhoso é a de se considerar superior aos demais. A falta de controle sobre o orgulho inviabiliza qualquer amizade, mesmo aquelas não muito profundas, pois a amizade por definição é um relacionamento entre iguais. Um indivíduo que se considere muito superior ou muito inferior a um outro dificilmente com ele formará um casal saudável. A relação, se houver, tenderá a ser mais uma união de utilidade do que de amor.

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Comportamentos Auxiliares à Felicidade.

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Igualmente Pitágoras recomenda que elejamos como amigos, indivíduos virtuosos. Mesmo procurando controlar nossa tendência inata de agirmos para sermos aceitos pelo grupo onde estamos inseridos e, salvo melhor juízo, tal propensão sempre se fará presente em algum grau. Membros de uma coletividade tendem a apresentar comportamentos do mesmo tipo.

Envolvimento Religioso ou Espiritual. Concluímos o capítulo

Materialismo e Espiritualismo, com a questão: em qual mundo desejamos viver? Numa existência finita que se torna cada vez mais angustiante, tanto quanto mais nos aproximamos de seu fim ou numa existência infinita, que apesar de seus altos e baixos, apresenta possibilidades inesgotáveis de realização e felicidade. E demonstramos naquele mesmo capítulo que esta é efetivamente uma questão de escolha, eventualmente apenas obstaculizada pelo orgulho humano.

Por outro lado, nesta questão cabe igualmente ter presente os estudos do cientista da psique Lacan que igualmente abordamos em outro dos capítulos que antecedem a este, mais especificamente aqueles que explicam os mecanismos geradores dos fanatismos e do fanatismo religioso em particular.

Considero que as soluções que as religiões trazem para as crises da existência sejam insubstituíveis. Que suas orientações morais e éticas sejam fundamentais.

Por outro lado, é fácil observarmos os inúmeros danos que a intolerância, o fanatismo e o fundamentalismo religioso ocasionam e tem ocasionado ao longo da história da humanidade. É razoável afirmar que um dos melhores remédios para tais males é o conhecimento efetivo de sua própria religião e de sua história, bem como das demais, pelo menos as mais significativas. Os fanatismos, inclusive de cunho materialista se tornam claramente não razoáveis na medida em que o conhecimento aumenta.

Quando o orgulho nos permite conceber que há algo superior a nós mesmos, tanto enquanto indivíduos quanto como coletividade. Quando o entendimento nos permite reconhecer que, se dependêssemos

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Felicidade pela Ética

Comportamentos Auxiliares à Felicidade.

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exclusivamente de nós mesmos, nada, mesmo de pouco, teríamos, nem mesmo a existência, a geração de um autêntico sentimento de gratidão poderia surgir em nosso interior.

Como prática pessoal, normalmente converso com o Pai e Seus Auxiliares uma vez ao dia. E também normalmente, inicio tal prática com agradecimentos. Em épocas críticas tal conversa tende a se dar mais de uma vez ao dia.

Se o Pai é Deus, somos todos Filhos de Deus e portanto em algum grau, semelhantes a Ele e Deuses. Cabe procurarmos sempre respeitar esta nossa condição. Se Deus é Pai e Amor, quem efetivamente obstaculariza nossa felicidade somos nós mesmos. Nossa própria ignorância que Sócrates já bem diagnosticou.

Contribuições e Serviços Sociais. Os comentários referentes a este

item foram efetuados em capítulo anterior. Por um lado o mero estudo da Ética não tem grande valor caso não ocorram melhorias individuais que se reflitam em ações. Por outro, tais melhorias e atitudes são fundamentais para a felicidade e a própria razão de existir individual.

Efetuados os comentários pessoais da Terapia de Mudança no

Estilo de Vida proposta pelo Dr. Roger Walsh, me parece interessante complementar o presente capítulo com o que a escritora Chiara Fucarino postou na internet em 2012. Uma lista com cerca de 20 itens que caracterizariam pessoas felizes. Concordando com as conclusões de Aristóteles, dos estóicos e de outros tantos, menciona que o bem estar e o contentamento dependem muito pouco das circunstâncias externas a nós e estão ligadas fundamentalmente ao mundo interior de cada um. Que tal mundo interior pode ser alterado e que podemos alterar tal mundo tendo por foco a felicidade, por procedimentos relativamente simples, bastando para tanto que efetivamente queiramos tais alterações e as realizemos. Que cultivemos enxergar as coisas com um olhar positivo.

Sob certo ponto de vista, caso estejamos infelizes, isto se deve basicamente a uma opção feita por nós mesmos. Novamente Aristóteles

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Comportamentos Auxiliares à Felicidade.

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nos alerta que a infelicidade é um sintoma de conduta inadequada. Ou seja, como o comportamento adequado é gerador de felicidade, a recíproca é verdadeira. Momentos infelizes portanto, se constituem em ocasiões privilegiadas de análise, aprendizado e ajuste comportamental. Do mesmo modo, como a felicidade depende, ao menos na grande maioria dos casos, do mundo interior de cada um, é inútil, ilógico e antiproducente o dispêndio de tempo, um de nossos maiores patrimônios, na definição de indivíduos responsáveis por nossas tristezas ou então de gerarmos desculpas sempre confortáveis para as mesmas.

Podemos propor a hipótese que o mundo externo, observado por um olhar frio e realista é figuradamente observável sempre como um copo preenchido com água pela metade. A visão positiva e saudável seria a de classificá-lo como meio cheio e não como meio vazio. Alternativamente encará-lo como sempre cheio com água e com ar, o qual é uma substância igualmente salutar.

Por diversas abordagens, podemos ter uma visão polarizada de nós mesmos. Duas entidades em uma. A proposta é a de que mantenhamos a Paz e a harmonia entre as duas. Que nossos comportamentos correspondam a um acordo amoroso entre estes dois eus.

Cabe lembrar o conceito aristotélico: a necessidade de repetição para a estabilização e automatização de um dado comportamento.

Vários hábitos promotores de bem estar da listagem de Chiara já

foram comentados acima. Alguns outros seriam: Falar bem dos outros. Ao menos não julgá-los. Viver no presente. Não viver no passado e não se preocupar com

o futuro. 'Será que este problema importará daqui a uma ano?' Não se comparar com os outros. Cada um vive a seu modo. A

vida de cada um a cada um pertence. Somos todos mais ou menos

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Felicidade pela Ética

Comportamentos Auxiliares à Felicidade.

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semelhantes, com qualidades e defeitos de diferentes tipos e de diferentes intensidades. Cada um essencialmente está tentando fazer o melhor e o que quer de sua própria existência.

Dizer a verdade. Não negar a sua verdade é essencialmente respeitar e não negar a si mesmo.

Autodeterminar-se. A autodeterminação e a autogestão é

qualidade ética defendida por inúmeros renomados pensadores, como já tivemos a oportunidade de observar ao longo deste livro.

Resignar-se com o que não podemos modificar. Modificar para

melhor o que for possível. Este é o pensamento fundamental da escola estóica já obordada em outro capítulo.

Tratar a todos com bondade. A bondade permeia a totalidade

desta obra e sua análise mais objetiva é efetuada na conclusão. Não guardar rancor. Circulam nas redes sociais várias frases que

ilustram esta orientação. Uma delas comenta o fato que guardar rancor é análogo a se tomar veneno esperando que com isto o outro morra. Quando perdoamos estamos nos permitindo perdoar os nossos próprios tropeços no futuro. O maior e eventualmente único carrasco que temos é nós mesmos. Como perdoar? Por mais incrível que possa parecer, basta exercer a vontade pessoal com tal finalidade. No mais, um pouco de tempo e de racionalização são mais que suficientes.

Nunca buscar a aprovação dos outros. O pensamento de Carl

Jung exposto em capítulo anterior analisa esta questão.

Dar tempo para ouvir. O leitor há de concordar que escutar com atenção a fala dos demais lhe dá condições de analisá-la com maior profundidade. Com isto sua intervenção será mais apropriada e bem estruturada. Ouvir lhe dará tempo para exercer a virtude da Prudência e elaborar uma

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Felicidade pela Ética

Comportamentos Auxiliares à Felicidade.

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contribuição, não de conflito e antagônica, que seriam sempre indesejáveis, mas sempre que possível, de enriquecimento e colaboração.

Buscar uma vida mais simples. A pompa e o luxo encontram

motivação na vaidade. A vaidade é uma tentativa de aparentar algo maior do que se é efetivamente. A vaidade é ligeiramente diferente do orgulho. O orgulhoso é aquele que efetivamente se supõe superior aos demais. Um dos aforismos de Benjamin Franklin, figura histórica de destaque inclusive na elaboração de pensamentos éticos, é que perdemos muito mais tempo tentando aparentar o que não somos, do que aquele que seria necessário para nos tornarmos aquilo que almejamos.

Manter a ordem. Esta virtude também é altamente valorizada por

Benjamin Franklin, como se pode observar pela leitura de sua autobiografia. Em sua síntese: um lugar para cada coisa; cada coisa em seu lugar.

Aprender com as dificuldades e o sofrimento. Repetimos aqui o

pensamento aristotélico: a condição natural do ser humano é a felicidade. Caso tal estado esteja comprometido, algo em nosso comportamento deve ser analisado. O estudo de nossos sentimentos, comportamentos, pensamentos e suas causas é autoconhecimento. O conhecimento de nós mesmos, segundo inúmeros pensadores, representa o mais alto aprendizado que podemos desejar. O sofrimento sempre indesejável é uma condição privilegiada de crescimento pessoal. Pelo aforismo de Franklin, após as dores, ressurgimos mais humildes e sábios. O tempo é o remédio para todas as dores. As dores intensas apresentam curta duração. Pelo dito popular, após a tempestade vem a bonança.

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Felicidade pela Ética

Uma Síntese. O que vimos ? E agora ?

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22 Uma Síntese. O que vimos ? E agora ?

O estudo da ética pretende diagnosticar os comportamentos

adequados ao ser humano. As reflexões éticas seguem duas grandes linhas: A Ética Teleológica, onde os comportamentos visam a obtenção de boas consequências e a Ética Deontológica, que impõe o cumprimento de deveres.

As principais escolas de ética ortodoxa da atualidade são: A Ética Aristotélica, com base em virtudes; a Ética Utilitarista, de maximização da felicidade; e a Ética Kantiana, com base na Boa vontade. As duas primeiras são teleológicas e a terceira deontológica.

Na Ética Aristotélica a consequência visada é o Bem e a Felicidade de quem a pratica. Na Ética Utilitarista a consequência visada é a maximização da Felicidade e do Bem. A Ética Kantiana, surgida no Iluminismo, pretende o cumprimento de deveres impostos pela Boa Vontade (vontade boa) residente na consciência do próprio indivíduo que age. Desta forma o princípio; a diretriz que sustenta toda a ética é o de Fazer o Bem. O diagnóstico do que é o bem em cada caso faz parte do campo da Metaética (do que está além do comportamento em si). De qualquer modo, pelo que vimos, os grandes pensadores da área concluem que uma pessoa ética é aquela que se pode adjetivar como boa ou bondosa e sua característica distintiva é a manifestação de bondade.

Tal conclusão contradiz pelo menos em parte os preconceitos populares sobre o que seja ético. Esta confusão se deve ao fato de que a ética pode ser classificada em duas categorias: A Ética propriamente dita, baseada na realização do Bem, e a Moral, variável com o povo estudado, com a época analisada, etc. A situação ideal é quando os comportamentos éticos coincidem com os comportamentos morais.

As pessoas que seguem as convenções tem como prêmio, ao menos, uma posição neutra frente ao meio social no qual estão inseridas. Nenhum de nós é capaz de viver ao largo da maioria das regras da

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Felicidade pela Ética

Uma Síntese. O que vimos ? E agora ?

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sociedade onde estamos e mesmo se pudéssemos tal atitude se mostraria fortemente inadequada ou pelos menos arriscada. As pessoas éticas (boas) tendem a ser queridas, aceitas, felizes e transformadoras do meio onde se inserem.

A conclusão de Aristóteles, em suas reflexões e observações, e de outros tantos é a de que a conduta adequada leva à Felicidade, à Realização e ao Desenvolvimento Pessoal e a conduta inadequada leva à infelicidade.

Na ética, portanto, há um triângulo de conceitos fortemente interligado: Pessoas que manifestam Bondade são Éticas e pessoas Éticas são Felizes.

Cabe salientar que por nascimento e ambiente muitos enfrentam condições fortemente adversas ou favoráveis. Boa parte dos seres humanos encontra na existência uma sucessão de ciclos favoráveis e desfavoráveis.

No dizer do pensador religioso Francisco Xavier: "Aguarda as surpresas do tempo, agindo sem precipitação. Se cada noite é nova sombra, cada dia é nova Luz". Pelo dito popular, 'Após a tempestade vem a bonança.'

Nas situações de crise sempre é conveniente ponderar que todos nós tendemos a nos considerar bons o suficiente, mas que provavelmente não somos tão bons quanto pensamos, para sermos tão felizes quanto almejamos.

Todas as situações de crise são oportunidades de aprendizado. Também Aristóteles recomenda que ao passarmos por momentos infelizes é recomendável tentarmos diagnosticar dentro de nossos próprios comportamentos, o porquê. Neste sentido a recomendação pitagórica de um exame dos acontecimentos do dia se mostra útil.

Se a causa de uma condição de infelicidade é uma conduta inadequada ou uma interpretação inadequada desta conduta, em tal condição é oportuno manter e melhorar tanto a conduta quanto a sua interpretação. Se em momentos infelizes se fizer o bem possivelmente a situação melhorará. Caso ajamos pior, a tendência é a de que a situação piore.

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Felicidade pela Ética

Uma Síntese. O que vimos ? E agora ?

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Podemos considerar que em nossa existência estamos a percorrer

um caminho rodeado por espinheiros. Alguns percorrem tal caminho a noite, com a ajuda de vagalumes, estrelas e o luar com suas sombras.

Nesta jornada cabe, portanto, seguir o grande conselho de Aristóteles, 'Temperança', detalhado por Pitágoras cerca de 300 anos antes: 'busca em tudo o meio justo e bom'. Seguindo tal conselho tentamos nos manter no meio da estrada, fugindo dos espinhos que a ladeiam.

Cabe também seguir outro conceito aristotélico: 'Prudência'. Na descrição de Pitágoras: 'pensa antes de falar; pensa antes de agir'. Com tal conselho, seguiremos com cuidado pela estrada. Neste sentido é sempre oportuno avaliar o tamanho do passo que se pretende dar. Uma passada mais ampla acarreta num maior risco de dor.

Por fim é importante lembrar que nenhum grande ser da humanidade agrediu, traiu ou negou a si mesmo. Desta forma, se o objetivo do comportamento adequado é o Bem de cada um, não há sentido em agirmos em prol do nosso mal. E nesta conjuntura temos o Auto-Respeito e o conselho também de Pitágoras: 'mais que tudo a ti mesmo respeita'.

Pensemos por um instante o que faz com que as crianças sejam

naturalmente felizes. A resposta que encontro são os seus sonhos e mais do que isto, viver na imaginação tais sonhos. Viver na imaginação bons sonhos. Não permitamos portanto, que as circunstâncias que enfrentemos ao longo da existência nos tirem a capacidade de sonhar bons sonhos.

Nenhum de nós consegue propriamente viver sem um sentido para isto. Sem uma razão para estar vivo. Tal tema já foi explorado por pensadores que observando fatos concretos e reais concluíram que muito frequentemente o que mantém indivíduos biologicamente vivos em situações as mais críticas e desesperadoras é justamente a posse de algo que lhes dê razões para viver. Algo que em certo sentido seja mais forte do que a própria morte. Poderíamos chamar este algo de um ideal ou um

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Felicidade pela Ética

Uma Síntese. O que vimos ? E agora ?

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conjunto de ideais. Cultive portanto, amigo leitor, bons ideais. Ideais que pretendam beneficiar ao menos um outro ser vivente.

A força para superar qualquer questão de nosso mundo interior é a vontade. Uma vontade boa governa uma realidade individual favorável a cada um de nós. E, se porventura a nossa própria boa vontade fraqueje, há ainda o poder pleno da confiança na boa vontade de algo que seja maior que nós.

Existe uma solução geral para todos os problemas que um ser humano possa se deparar em seu mundo interior e na relação deste com o mundo exterior. Tal solução é o amor e a necessidade de sua aplicação é tanto maior quanto mais terrível é a situação pela qual passamos. Portanto em situações de crise são ainda mais importantes os ideais. Faça o bem. Pretenda com suas ações fazer o bem. Fale o bem. Pretenda com sua fala falar o bem. Ao menos pense o bem e pretenda com seus pensamentos o bem.

Em síntese: Procure ser feliz. Procure ser bondoso. Procure ser

temperante. Procure ser prudente. Procure respeitar a si mesmo. Procure não julgar. Procure perdoar.

Seja cada vez mais feliz ! Seu amigo,

Paul Fernand Milcent.

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Felicidade pela Ética

Adendos

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Adendos.

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Felicidade pela Ética

Versos de Ouro de Pitágoras.

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Versos de Ouro de Pitágoras.

Pitágoras nasceu na ilha de Samos, no século VI a.C. Diz-se que

estudou com os melhores professores da Grécia, fez-se sacerdote no Egito e posteriormente instruiu-se na Babilônia.

Com cerca de 56 anos retornou à cidade natal e depois fundou sua escola na colônia de Crótona, na Itália. Neste local ergueu-se a sede, o assim chamado Templo das Musas.

Casado, pai de três filhos, terminou morto com boa parte de seus alunos devido a uma revolta popular. Ao que se sabe, seu aluno Lysis, sintetizando o essencial da doutrina pitagórica, incluindo aí seu código ético, é o autor dos Versos de Ouro de Pitágoras. Mesmo por ser síntese, cabe uma leitura refletida.

Abaixo a transcrição dos versos, traduzidos do francês, pelo professor Dario Vellozo, idealizador do Instituto Neo-Pitagórico, com sede em Curitiba-Brasil.

VERSOS DE OURO DE PITÁGORAS Tradução do texto francês de Fabre d’Olivet, por Dario Vellozo.

(Transcrito mediante permissão do Instituto Neo-Pitagórico.) PREPARAÇÃO 1 - Aos Deuses imortais o culto consagrado 2 - Rende; e tua fé conserva. Prestigia 3 - Dos sublimes Heróis a imárcida lembrança 4 - E a memória eteral dos supernos Espíritos. PURIFICAÇÃO 5 - Bom filho, reto irmão, terno esposo e bom pai 6 - Sê; e para amigo o amigo da virtude

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Versos de Ouro de Pitágoras.

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7 - Escolhe, e cede sempre a seus dóceis conselhos; 8 - Segue de sua vida os trâmites serenos; 9 - Sê sincero e bondoso, e não o deixes nunca, 10 - Se possível te for; pois uma lei severa 11- Agrilhoa o Poder junto à Necessidade. 12 - Está em tuas mãos combater e vencer 13 - Tuas loucas paixões; aprende a dominá-las. 14 - Sê sóbrio, ativo e casto; as cóleras evita. 15 - Em público, ou só, não te permitas nunca 16 - O mal; e mais que tudo a ti mesmo respeita-te. 17 - Pensa antes de falar, pensa antes de agir; 18 - Sê justo. Rememora: um poder invencível 19 - Ordena de morrer; e os bens e as honrarias, 20 - Fáceis de adquirir, são fáceis de perder. 21 - Quanto aos males fatais que o destino acarreta, 22 - Julga-os pelo que são: suporta-os, procura, 23 - Quão possível te seja, o rigor abrandar-lhes. 24 - Os Deuses, aos mais cruéis, não entregam os sábios. 25 - Como a Verdade, o Erro adoradores conta. 26 - O filósofo aprova, ou adverte com calma. 27 - E, se o Erro triunfa, ele se afasta, e espera. 28 - Ouve, e no coração grava as minhas palavras; 29 - Fecha os olhos e o ouvido a toda prevenção; 30 - Teme o exemplo de um outro, e pensa por ti mesmo; 31 - Consulta, delibera e escolhe livremente. 32 - Deixa aos loucos o agir sem um fim e sem causa; 33 - Tu deves contemplar no presente o futuro. 34 - Não pretendas fazer aquilo que não saibas. 35 - Aprende: tudo cede à constância e ao tempo. 36 - Cuida em tua saúde, e ministra com método, 37 - Alimentos ao corpo e repouso ao espírito. 38 - Pouco ou muito cuidar evita sempre; o zelo 39 - Igualmente se prende a um e a outro excesso. 40 - Têm o luxo e a avareza efeitos semelhantes.

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Versos de Ouro de Pitágoras.

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41 - Deves buscar em tudo o meio justo e bom. PERFEIÇÃO 42 - Que se não passe um dia, amigo, sem buscares 43 - Saber: Que fiz eu hoje? E, hoje, que olvidei? 44 - Se foi o mal, abstém-te; e, se o bem, persevera. 45 - Meus conselhos medita; e os estima; e os pratica: 46 - E te conduzirão às divinas virtudes. 47 - Por esse que gravou em nossos corações 48 - A Tétrade sagrada, imenso e puro símbolo, 49 - Fonte da Natureza, e modelo dos Deuses, 50 - Juro. Antes, porém, que a tua alma, fiel 51 - A seu dever, invoque, e com fervor, os Deuses, 52 - Cujo socorro imenso, valioso e forte 53 - Te fará concluir as obras começadas, 54 - Segue-lhes o ensino, e não te iludirás: 55 - Dos seres sondarás a mais estranha essência; 56 - Conhecerás de tudo o princípio e o termo. 57 - E, se o Céu permitir, saberás que a Natura, 58 - Em tudo semelhante, é a mesma em toda parte. 59 - Conhecedor assim de todos teus direitos, 60 - Terás o coração livre de vãos desejos. 61 - E saberás que o mal que aos homens cilicia, 62 - De seu querer é fruto; e que esses infelizes 63 - Procuram longe os bens cuja fonte em si trazem. 64 - Seres que saibam ser ditosos, são mui raros. 65 - Joguetes das paixões, oscilando nas vagas, 66 - Rolam, cegos, num mar sem bordas e sem termo, 67 - Sem poder resistir nem ceder à tormenta. 68 - Salvai-os, grande Zeus, abrindo-lhes os olhos! ... 69 - Mas, não: aos Homens cabe, - eles, raça divina -, 70 - O erro discernir, e saber a Verdade. 71 - A Natureza os serve. E tu que a penetraste,

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Felicidade pela Ética

Versos de Ouro de Pitágoras.

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72 - Homem sábio e ditoso, a paz seja contigo! 73 - Observa minhas leis, abstém-te das coisas 74 - Que tua alma receie, em distinguindo-as bem; 75 - Sobre teu corpo reine e brilhe a Inteligência, 76 - Para que, te ascendendo ao Eiter fulgurante, 77 - Mesmo entre os Imortais consigas ser um Deus!

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Mensagem dos Milênios.

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Mensagem dos Milênios.

Extrato do livro “A VÓS CONFIO”. Editado pela Ordem

Rosacruz-AMORC, 2a edição, 1986. Traduzido do brâmane antigo para o chinês por volta de 1749. Autor desconhecido.

Não comeces a falar ou agir antes que tenha pesado tuas palavras

e examinado a direção de cada passo que pretendes dar. Assim, a desgraça fugirá de ti, e em tua casa a vergonha será desconhecida; o arrependimento não te visitará, nem a tristeza pousará em tua face. Escuta a voz da ponderação; suas são as palavras da sabedoria, e seus caminhos te conduzem à segurança e à verdade.

O primeiro passo para a sabedoria é saber que nasceste mortalmente ignorante.

Como os dias que passaram se foram para sempre, e os dias futuros poderão não chegar a ti, cabe a ti, ó homem! fazer uso do estado presente, sem lamentar a perda do que já passou, e sem depender demais do que ainda virá; pois nada podes saber de teus futuros estados, exceto o que tuas ações de agora disponham para eles.

A indolência é a mãe da carência e da dor; mas o trabalho pelo bem, gera prazer. A mão da diligência derrota a necessidade; a prosperidade e o sucesso acompanham o homem industrioso.

O homem ocioso é uma carga para si próprio, as horas lhe pesam na cabeça; ele perambula e não sabe o que fazer. Seus dias passam como a sombra de uma nuvem; ele não deixa nenhum sinal que o recorde. Gostaria de comer a amêndoa mas detesta o trabalho de quebrar sua casca.

Se teu coração tem sede de honrarias, se teus ouvidos sentem prazer na voz do louvor, eleva teu eu mortal do pó de que foste feito; e eleva teu propósito a alguma coisa digna de encômios. O carvalho que ora estende seus ramos para o céu já foi apenas uma semente nas entranhas da terra. Contudo, não invejes os méritos alheios e aperfeiçoa

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Mensagem dos Milênios.

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teus próprios talentos. Abstém-te também de depreciar teu competidor por qualquer método desonesto ou indigno; antes, esforça-te para te elevares acima dele unicamente tornando a ti mesmo superior. Assim, tua luta pela superioridade será coroada com honra, ainda que não o seja pelo triunfo.

Ouve as palavras da prudência, atenta para seus conselhos e guarda-os em teu coração; suas máximas são universais e todas as virtudes nela se apóiam; ela é guia e senhora da vida humana.

Põe um freio em tua língua; põe uma guarda diante de teus lábios, para que as palavras de tua boca não destruam tua paz. Da fala excessiva vem o arrependimento, mas no silêncio existe segurança. Não te gabes de ti mesmo, porque isto lançará desprezo sobre ti.

Não deixes que a prosperidade arranque os olhos da circunspecção, nem que a abundância corte as mãos da frugalidade.

Da experiência dos demais adquire sabedoria e de seus sentimentos aprende a corrigir tuas próprias falhas.

Não deixes que o medo te impeça de fazer o que é correto; assim estarás preparado para enfrentar todos os acontecimentos com a mente equilibrada.

Os terrores, inclusive da morte, não trazem proveito. Não aterrorizes tua alma com vãos temores, nem deixes que teu coração sucumba por causa dos fantasmas da imaginação. Assim como o avestruz enterra a cabeça quando perseguido, mas esquece o corpo, assim os temores do covarde o expõem ao perigo.

Se acreditas que uma coisa é impossível, teu desânimo assim a faz; mas aquele que persevera predomina sobre todas as dificuldades. Em todos os teus desejos, permita que a razão te acompanhe; desta forma, o triunfo acompanhará tua empresa, teu coração não será humilhado pelas decepções.

Tu que és pai, reflete na importância do que te foi confiado; tens o dever de sustentar o que produziste. Prepara-o desde cedo com a instrução e tempera sua mente com as máximas da verdade. Observa suas inclinações, mostra-lhe o caminho certo desde a juventude; não permitas que hábitos maus ganhem força com o correr dos anos. Assim,

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ele crescerá como o cedro na montanha; sua cabeça poderá ser vista acima das árvores da floresta. O solo é teu, não deixes que fique sem cultivo; a semente que plantares, esta também colherás. Ensina-lhe a obediência e ele te abençoará; ensina-lhe a modéstia, e ele não se envergonhará. Ensina-lhe a gratidão e ele receberá benefícios; ensina-lhe a caridade e ele ganhará amor. Ensina-lhe a temperança e ele terá saúde; ensina-lhe a prudência e a fortuna lhe advirá. Ensina-lhe a justiça e ele será honrado pelo mundo; ensina-lhe sinceridade e seu coração não te reprovará. Ensina-lhe a diligência e suas riquezas aumentarão; ensina-lhe a benevolência e sua mente será enaltecida. Ensina-lhe a ciência e sua vida será útil.

Filho, ouve as palavras do teu pai, pois são para teu bem; dá ouvidos a seus conselhos, pois eles procedem do amor.

A verdadeira sabedoria presume menos que a insensatez. O homem sábio freqüentemente duvida e muda de idéia; o tolo é obstinado e não duvida; ele conhece todas as coisas menos sua própria ignorância. O homem sábio sente suas imperfeições e é humilde; em vão se esforça por obter sua própria aprovação; mas o tolo olha o raso regato de sua própria mente e se compraz nos seixos que vê ao fundo; ele os apanha e os exibe como se fossem pérolas; deleita-se com o aplauso de seus semelhantes.

O homem sábio cultiva sua mente com os conhecimentos; seu prazer é o progresso das artes, e sua utilidade para a sociedade coroa-o de honrarias. A ciência da felicidade é o estudo de sua própria vida.

Teu alimento, tuas roupas, a comodidade de tua moradia; a proteção contra os danos, o gozo dos confortos e prazeres da vida; tudo isto deves à ajuda de outros e não poderias usufruir disto senão nos laços da sociedade. É teu dever, portanto, ser amigo da humanidade, como é de teu interesse que o homem seja teu amigo.

Em teus negócios com os homens, sê justo e imparcial, e age com eles como gostarias que agissem contigo.

Ó tu que estás enamorado das belezas da verdade, e fixaste teu coração na simplicidade de seus encantos, apega-te a tua fidelidade e não a abandones; a constância de tua virtude te coroará de glória.

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Mensagem dos Milênios.

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Os esforços que fazes para ocultar o que és são muito mais penosos do que os esforços que terias de fazer para seres o que desejas aparentar.

Tudo que possa fazer o bem também pode fazer o mal; cuida para que dirijas seu curso para a virtude.

A finalidade da busca do homem sábio é a verdade; seus meios de encontrá-la são a razão e a experiência.

A opinião geral não é prova da verdade, pois a maioria dos homens é ignorante.

Tal como o pássaro encerrado na gaiola antes de vê-la, que não lacera a carne contra as suas grades, assim também não deverás tentar fugir inutilmente do estado em que te encontras.

Aquele que negligencia a hora presente, joga fora tudo quanto possui.

O homem que se descuida de suas presentes ocupações para resolver como se comportará quando for importante, alimenta-se com o vento, enquanto outro come seu pão.

A natureza te induz à inconstância; guarda-te contra ela, portanto, a todo momento.

As virtudes estão distribuídas de forma variada. Não procures coisas impossíveis, nem te aflijas por não possuí-las todas.

Não penses em tua dor a não ser quando ela te atinja, e evitarás aquilo que mais pode te ferir. O medo é um infortúnio maior que o fato que o provoca.

Assim como a torrente que se precipita da montanha destrói tudo o que arrasta, assim a opinião comum arrasa a razão daquele que a ela se submete sem perguntar: qual o seu fundamento?

Cuida que aquilo que aceites como verdade não seja apenas uma sombra da mesma! O que aceitas como convincente muitas vezes é apenas plausível. Sê firme! Sê constante! Determina por ti mesmo! Assim, só terás que responder por tua própria fraqueza.

Não condenes o julgamento de outro porque difere do teu; não poderão ambos estar errados?

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Mensagem dos Milênios.

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Deves estar mais pronto a amar que odiar; assim serás mais amado que odiado.

Não queiras instruir um outro naquilo que ignoras. Não esperes amizade de quem te prejudicou; aquele que sofre o

mal pode perdoá-lo, mas quem faz o mal nunca se sentirá à vontade com sua vítima.

Quantas coisas foram rejeitadas e hoje são recebidas como verdades? Quantas hoje são aceitas como verdades serão por sua vez substituídas?

Faze o bem que conheces e a felicidade estará contigo. Trabalhar é mais tua tarefa que o pensamento especulativo.

Não deves dizer que a verdade é estabelecida pelos anos, ou que há certeza numa multidão de crentes.

Uma proposição humana tem tanta autoridade quanto outra, a menos que a razão as diferencie.

O desejo por aquilo que o homem considera o bem, a alegria que ele sente em possuí-lo, só tem fundamento em opinião. Não sigas o vulgar, examina tu mesmo o valor das coisas.

Aquele que se alegra com a felicidade alheia aumenta a sua própria felicidade.

A alma do homem alegre impõe um sorriso à face da aflição; mas o pessimismo do triste apaga o próprio brilho da alegria. A tristeza é inimiga de tua raça, portanto deves expulsá-la de teu coração; ela envenena a doçura de tua vida, portanto, não permitas que entre em tua morada. Não permitas que ela se disfarce com o véu da piedade; não deixes que ela te iluda com a aparência de sabedoria. A sabedoria te faz feliz; fica sabendo, então, que a tristeza é uma estranha para ela. Como a pérola é dissolvida pelo vinagre, que a princípio parece apenas obscurecer sua superfície, assim tua felicidade é engolida pela opressão interior, embora a princípio pareça apenas cobrir sua sombra.

Fica sabendo que não és tu quem deve dar leis ao mundo; o que te compete fazer é harmonizar-te com elas à medida que as encontres. Se elas te incomodam, tua lamentação só servirá para aumentar teu tormento.

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Felicidade pela Ética

Mensagem dos Milênios.

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As lágrimas podem rolar de teus olhos, embora a virtude não caia de teu coração; cuida apenas para que haja motivo, e que elas não fluam com excessiva abundância.

Não te sujeites a males onde não haja vantagens para receberes em troca.

A glória, tal como uma sombra, foge de quem a persegue, mas segue de perto os passos de quem dela foge; se tu a cortejares sem o devido mérito, jamais a alcançarás; se a mereceres, ainda que dela te escondas, jamais te abandonará.

Procura aquilo que é honroso, faze o que é direito; o aplauso de tua consciência te dará muito mais alegria que os brados de milhões que não sabem se os mereces.

Prefere acima de todas as outras a ciência que tenha maior utilidade, o conhecimento dotado de menor vaidade; e tira proveito disto em favor de teu próximo.

Cuida para que a prosperidade não exalte teu coração além da medida; tampouco deixes tua mente deprimir-se profundamente quando a fortuna for dura contigo. É difícil suportar bem a adversidade; mas ser comedido na prosperidade é sinal de sabedoria.

Não permitas que a adversidade arranque as asas da esperança; nem que a prosperidade obscureça a luz da prudência.

A dor que perdura longo tempo é moderada; a dor violenta é breve; logo verás seu fim.

Vê, está tudo escrito em teu coração; só precisas ser lembrado disto. São coisas de fácil concepção; sê atento e as reterás.

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Felicidade pela Ética

Aforismos selecionados de Benjamin Franklin.

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Aforismos selecionados de

Benjamin Franklin.

Benjamin Franklin iniciou sua vida laborativa bem jovem, como

aprendiz na tipografia de um de seus irmãos mais velhos. Devorador de livros, em poucos anos tornou-se ele mesmo um renomado escritor e depois empresário tipógrafo-editor, com publicações de influência em várias das colônias inglesas da América do Norte. Como estratégia para elevar o padrão ético de seus conterrâneos colonos, enxertava em seus escritos aforismos, alguns de sua autoria, outros literais ou adaptados de outros pensadores renomados. Filantropo ativo, fez germinar universidade, hospital e outras instituições promotoras do bem coletivo. Com muito baixa escolaridade formal, enveredou para as pesquisas científicas, com notáveis contribuições inovadoras, dentre as quais vale destacar o auxílio na fundamentação da área da eletricidade, sem a qual inumeráveis confortos da vida contemporânea seriam inviáveis. Por seu trabalho, recebeu o título de doutor por mais de uma consagrada Universidade. Mais tarde ingressou mais ativamente na política e inspirado pelos ideais dos filósofos iluministas franceses, exerceu importante papel na independência dos Estados Unidos da América. Tal independência, a liberdade em relação ao jugo inglês, a primeira inspirada em tal linha filosófica e bem sucedida, desencadeou uma sequência rápida de outras, tanto na Europa quanto nas Américas. Já ao final de sua existência, procurou promover vida mais digna aos escravos norte-americanos, bem como sua libertação, o que de fato veio a ocorrer décadas após seu falecimento.

A figura de Benjamin Franklin é profundamente respeitada nos EUA e mesmo em outras nações. Em sua autobiografia, escrita por volta dos sessenta e cinco anos, definiu-se como uma pessoa feliz.

Ao que parece, nascemos e tendemos a nos desenvolver sem noções claras e objetivas quanto aos meios efetivos para angariar o bem

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Felicidade pela Ética

Aforismos selecionados de Benjamin Franklin.

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estar interior. Neste sentido a abordagem experimental e empírica da observação de exemplos concretos pode ser considerada de grande valia. A leitura de alguma dentre as inumeráveis biografias de Franklin, que tendem a cobrir toda a sua vida e suas múltiplas facetas e áreas de atuação, se constitui numa experiência inspiradora para os jovens de todas as idades.

Na sequência uma seleção de aforismos por ele divulgados:

Se orgulhar da virtude é envenenar-se com o próprio antídoto.

Homens encontram-se, montanhas nunca.

Um zero e humildade fazem os outros algarismos e virtudes terem dez vezes mais valor.

O sábio e bravo ousa reconhecer que estava errado.

Quando o orgulho vai na carruagem, a vergonha cavalga atrás.

O orgulhoso odeia o orgulho; nos outros.

Não sejas sovina com o que não te custa nada, como cortesia, conselho e apoio.

Nada é tão popular quanto a bondade.

Amor, tosse e fumaça não podem ser bem ocultados.

Avareza e felicidade nunca se veem; como podem então se tornar familiares?

A ambição freqüentemente gasta tolamente o que a avareza perversamente coletou.

A maldade é a fonte da insolência.

É mais nobre perdoar e mais viril desprezar, do que vingar-se de uma injúria.

O que vós dais a impressão de ser, sejais realmente.

A astúcia procede da falta de capacidade.

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Aforismos selecionados de Benjamin Franklin.

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Evite o ganho desonesto; nenhum preço pode recompensar as angústias do vício.

A raiva não é nunca sem razão, mas raramente tem um bom motivo.

A preguiça é um mar morto que engole todas as virtudes; seja ativo no trabalho. Deste modo a tentação pode esquecer seu alvo. O pássaro pousado é facilmente atingido.

Trabalhe como se você fosse viver cem anos. Reze como se você fosse morrer amanhã.

Não esconda seus talentos. Eles foram feitos para o uso. O que é um relógio de sol na sombra?

A diligência supera as dificuldades. A indolência as faz.

A raposa adormecida não caça pássaros. Mova-se!

A desconfiança pode não ser uma falha, mas exibi-la pode ser uma grande.

Visite sua tia, mas não todos os dias e converse com seu irmão, mas não todas as noites.

Enxerte sempre bons frutos ou não os enxerte de modo algum.

Não fale com desrespeito com ninguém, de um escravo a um rei; a moderada abelha tem e usará o ferrão.

Faz um inimigo, quem faz uma zombaria.

Investigues os outros por suas virtudes; tu mesmo por teus vícios.

Nada seca mais rápido do que uma lágrima.

Quando o poço seca, nós conhecemos o valor da água.

A era de ouro nunca foi a era atual.

Palavras podem mostrar a inteligência de um homem, mas ações, as suas intenções.

Uma adulação nunca parece absurda. A lisonja sempre é levada a sério.

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Felicidade pela Ética

Aforismos selecionados de Benjamin Franklin.

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Caso a maioria dos homens desprezasse o que admira, veríamos a humanidade crescer mais sábia.

Agora, eu tenho uma ovelha e uma vaca; todos me oferecem bom amanhã.

A mocidade é atrevida e positiva. A maturidade modesta e com dúvidas: Assim as espigas de trigo quando jovens e leves se elevam corajosas para cima, mas inclinam suas cabeças quando pesadas, cheias e maduras. (Pensamento originariamente de Leonardo da Vinci)

Aquele que se afasta do casamento, ou se iludirá ou será iludido.

O tempo é uma erva que cura todas as doenças.

Após perdas e infortúnios, os homens crescem mais humildes e sábios.

Os homens sofrem mais sendo falsos do que se corrigindo.

Os homens sábios aprendem pelos sofrimentos dos outros; os tolos pelos seus próprios.

Um homem sábio obtém mais proveito de seus inimigos do que um tolo de seus amigos.

Um falso amigo e uma sombra estão presentes apenas enquanto o sol brilha.

Seja respeitoso com todos; sociável com muitos; familiar com poucos; amigo para um; inimigo de nenhum.

Ame seus inimigos para que eles lhe contem suas faltas.

Mantenha guerra contra seus vícios, paz com seus vizinhos e faça cada novo ano encontrá-lo um homem melhor.

A leitura plenifica o homem. A meditação aprofunda o homem. O diálogo o purifica.

É mais fácil prevenir maus hábitos do que brecá-los.

Aquele que decide emendar-se no futuro resolveu não emendar-se agora.

Negligencie a correção de uma pequena falta e em breve esta se tornará grande.

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Felicidade pela Ética

Aforismos selecionados de Benjamin Franklin.

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Aquele que produz a si mesmo é mais sábio do que o que produz livros.

Arrancar pela raiz a cada ano um hábito vicioso, em tempo fará um homem ruim, inteiramente virtuoso.

As paixões de Nick crescem gordas e bem dispostas. Seu entendimento está tuberculoso.

Cesar não mereceu o carro triunfante mais do que aquele que conquistou a si mesmo.

A Virtude e a Felicidade são mãe e filha.

Você pode ser mais feliz que um príncipe se você for mais virtuoso.

Muitos homens pensam que estão construindo Prazer, quando na verdade estão se vendendo como escravos para ele.

Não venda virtude para comprar prosperidade ou liberdade para comprar poder.

Limpe seu dedo antes de apontar as minhas manchas.

Não vá ao médico por qualquer mal estar; nem ao advogado por qualquer querela; nem ao copo por qualquer impulso.

A bebida não afoga as preocupações, mas as rega e as faz crescer mais rapidamente.

Aquele que derrama o rum perde somente a este. O que o bebe, freqüentemente perde este e a si mesmo.

Um bom exemplo é o melhor sermão.

A riqueza e a felicidade não são sempre companheiras.

Bem feito é feito duas vezes.

Se é a paixão que impulsiona, faça a razão ter o controle.

Não se considere tão esperto ao ponto de esquecer a esperteza dos outros. Um homem esperto é superado pela esperteza de um homem e meio.

Uma pessoa querelante não tem bons vizinhos.

O homem honesto sofre e então desfruta prazeres. O desonesto tem prazer e então sofre.

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Felicidade pela Ética

Aforismos selecionados de Benjamin Franklin.

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Quem faz o que não deve, sentirá o que não quer.

Muitas refeições são perdidas por se querer carne.

Maus ganhos são perdas certas.

Aquele que semeia espinheiros não deve andar de pés descalços.

O silêncio não é sempre sinal de sabedoria, mas falatório é sinal de tolice.

O contentamento é a pedra filosofal que transforma tudo que toca em ouro.

Aquele que persegue duas lebres de uma só vez, não alcança a primeira e deixa a outra escapar.

Ah! Homem simplório. Quando jovem duas pedras preciosas te foram dadas: Tempo e Bons Conselhos. Uma tu a tendes perdido e a outra, a jogastes fora.

Mantenha tua profissão e tua profissão te manterá.

Aquele que quer elevar-se até a corte, deve iniciar de baixo.

Aquele que levanta-se tarde, deverá trotar todo o dia e mal alcançará seu trabalho a noite.

Aquele que fala mal da égua, a comprará.

Quão poucos são os que tem coragem suficiente para reconhecer suas faltas, ou resolução bastante para corrigi-las!

Um camponês entre dois advogados é como um peixe entre dois gatos.

Aquele que pode viajar bem a pé mantém um bom cavalo.

Existem muitos homens esquecidos de sua própria posição e se intrometendo com a administração do governo. 'Isto é errado e isto é certo e tal lei é inteiramente fora de razão.' Assim gastam muitos pensamentos com os negócios de estado; o trabalho que lhes cabe é negligenciado. Assim apaixonados, fitando as estrelas, tropeçam na vala próxima e ganham um traseiro sujo.

Nenhuma relação melhor que um amigo fiel e prudente.

Não há amores feios nem bonitas prisões.

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Felicidade pela Ética

Aforismos selecionados de Benjamin Franklin.

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Na casa de um homem trabalhador a fome passa rapidamente e os riscos não entram.

Um bom advogado; um mau vizinho.

Coma poucos jantares e você não precisará de muitos medicamentos.

Você terá cuidado se for sábio, como tocará a religião, ou as crenças, ou os pontos de vista dos homens.

Após peixe, não se deseja leite.

Errar é humano; arrepender-se divino; persistir, perverso.

Diligência paga dívidas; desespero as aumenta.

Bem feito é melhor que bem dito.

Esquecer põe fim às injúrias; desforrar-se as aumenta.

Mantenha a consciência límpida, então nada temerá.

Fazer uma injúria lhe põe abaixo de seu inimigo; vingar-se de uma lhe põe no mesmo nível que ele; esquecê-la lhe coloca acima dele.

Grande bondade sem prudência é um grande infortúnio.

Se você quer ter hóspedes felizes e dispostos, esteja você assim ou ao menos se mostre deste modo.

O homem pobre deve caminhar para obter comida para seu estômago; o homem rico para conseguir estômago para sua refeição.

A pior roda da carroça faz o maior barulho.

Usar o dinheiro é toda a vantagem que há em ter dinheiro.

Aquele que desperdiça pequenas somas, não somente perde em vão a estas, mas todas as outras vantagens que poderiam ser obtidas se fossem transformadas em negócios, os quais no tempo em que um homem jovem se torna velho se transformariam numa confortável bagagem de dinheiro.

O queijo do rei tem muita casca. Não importa; ele é feito com o leite do povo.

Seja lento em escolher um amigo; mais lento ainda em abandoná-lo.

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Felicidade pela Ética

Aforismos selecionados de Benjamin Franklin.

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A experiência mantém-se uma estimada escola, ainda que tolos não aprendam em nenhuma outra.

Quantos observam o Natal; quão poucos os preceitos de Cristo. É mais fácil guardar feriados que mandamentos.

Quem é rico? Aquele que se alegra com seu quinhão.

Tem você algo para fazer amanhã; faça hoje.

Um advogado estando doente e extremamente mal foi movido por seus amigos a fazer seu testamento. Ele logo o fez, dando toda a riqueza que tinha a pessoas desvairadas, lunáticas e loucas. E a seus amigos a razão disto revelou, que eles puderam ver, com equidade decidiu. - Das mãos de homens loucos eu recebi minha riqueza: assim para as mãos de homens loucos eu as deixo.

Riqueza não é ter coisas, mas desfrutar delas.

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Felicidade pela Ética

Sumário de Ética.

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Sumário de Ética.

Ética, a partir do grego, significa conduta ou comportamento

(individual). Etiqueta significa pequena ética e se refere a comportamentos

considerados convenientes em situações específicas. Política também do grego (polis + ethica) se refere ao comportamento coletivo. Desta forma o estudo da Ética é a busca livre e individual da melhor conduta para si.

Pode-se provar que julgar e condenar o comportamento de

outros não apresenta sustentação lógica. No entanto, podemos analisar tais comportamentos e agirmos em conformidade com tais análises.

É um princípio e uma constatação que todos os seres humanos

(inclusive eu e você) visam, por meio de suas condutas, essencial e fundamentalmente a Felicidade. Todos os desejos humanos a rigor objetivam alcançá-la.

O Fundamento da Ética é bastante simples: 'O essencial da Ética

é fazer o Bem.' Fazer o Bem ao outro; ser útil ao outro, é necessidade interior inconsciente do ser humano, estabelecida por processo evolucionário. (Ao longo das eras os indivíduos mal quistos tendem a ser descartados. Este é um conhecimento oriundo do Darwinismo Comportamental.) Cumprida satisfatoriamente esta necessidade, o indivíduo sente-se bem. Não cumprida, sente-se mal.

O ser humano em si muda pouco ao longo dos séculos. As

principais orientações éticas da atualidade são: ARISTÓTELES: Propõe a Ética baseada em Virtudes. Virtudes

são habilidades a serem desenvolvidas pela repetição de ações. As

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Felicidade pela Ética

Sumário de Ética.

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principais podem ser consideradas: A Prudência (Pensar antes de falar e agir). A Temperança (Buscar o meio termo justo e bom em todas as ações). A Fortaleza (Agir ou não agir em conformidade com o Bem; Persistência). A Justiça (Promover a retribuição proporcional de Bens; o Equilíbrio). A Amizade (Amar).

JOHN STUART MILL: Ético é procurar promover o maior Bem

e a maior Felicidade para o maior número de pessoas. Se o Bem é maior, a ação é mais Ética. Se o Bem é maior para um maior número de pessoas, a atitude é ainda mais Ética.

IMMANUEL KANT: Ninguém deve ser tratado como um simples meio, mas sempre como um fim. Ninguém deve ser considerado como uma peça ou uma ferramenta, mas sempre como um ser humano. Mentir a ele, manipulá-lo ou coagi-lo é desrespeitar a dignidade humana.

JESUS: Procurar fazer aos outros, o que gostaríamos que fosse

feito a nós mesmos, caso nos encontrássemos em situação análoga. A base segura para sabermos o que é bom, ou seja, o melhor dos critérios é observarmos o que nós mesmos consideramos bom.

SÓCRATES: Indica porque não agimos sempre eticamente. Os

erros se devem à ignorância; à falta de conhecimento. Não basta ter a 'notícia' do que é certo ou errado. Conhecimento envolve a interiorização no ser, de que uma determinada linha de ação é realmente benéfica a ele. Envolve olhar para si mesmo; auto conhecer-se. Saber que ser bom é bom.

Pela filosofia oriental, buscar ser ético não se restringe apenas em

procurar agir bem, mas também procurar pensar bem e falar bem. Bons pensamentos geram boas palavras e bons sentimentos. Boas palavras e bons sentimentos geram boas ações.

Exercitar a melhor conduta para si; ser Ético; gera Felicidade,

Autorealização e Desenvolvimento. Ocasiona excelentes resultados para

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Felicidade pela Ética

Sumário de Ética.

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o próprio indivíduo. Desta forma fazer o Bem é um Consequencialismo Esclarecido.

'A meta de todos nós é a de que nossas ações terminem por

corresponder aos nossos ideais.' Paulo Freire.

Paul Fernand Milcent, um seu amigo.

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Felicidade pela Ética

Referências.

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Referências.

O conteúdo desta obra foi estudado e sua redação se estendeu

por ao menos três anos. Neste período os recursos de coleta de informação, disponível gratuitamente na internet, foram muito intensamente utilizados. A foco era o do processamento da informação e não o do registro das fontes. Desta forma o abaixo indicado representa apenas uma parte do material bibliográfico empregado.

Aquino, T. G. Comunicações pessoais. Outubro de 2013. Aristóteles. Ética a Nicômaco. Editora Martin Claret. 6a

edição. 2013. Bíblia Cristã. Novo Testamento. Diversos autores. Camargo, Marculino. Fundamentos de Ética Geral e

Profissional. Editora Vozes. 1999. ISBN 85.326,2131-7. Candiotto, Cesar. Ética. Abordagens e Perspectivas.

Champagnat Editora PUCPR. Brasil. 1 ed. 230p. 2010. ISBN 978-85-7292-214-2.

Carl Jung - El Mundo Interior - Documental Completo. O Mundo no Interior de Carl Jung em suas Próprias Palavras. C.G. Jung Institute of Los Angeles. 1990. 1h2min. Visualização em outubro de 2013. https://www.youtube.com/watch?v=OsMgeVZ1Qbg

Dicionario Etimológico. Motivo. http://etimologias.dechile.net/. Consulta em julho de 2014.

Dicionário de Filosofia Japiassu. http://lhjm.macrodesign.com.br/wp-content/uploads/2013/08/dicionario_de_filosofia_japiassu-1.pdf. Consulta em julho de 2014.

Dicionário Michaelis de Português Online. Movimento; mudança. http://michaelis.uol.com.br/moderno/português/. Consulta em julho de 2014.

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Felicidade pela Ética

Referências.

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Dicionário online de português. Motivo. http://www.dicio.com.br/motivo/. Consulta em julho de 2014.

Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha]. Motivo. http://www.priberam.pt/dlpo/motivo. Consulta em julho de 2014.

Face To Face com Carl Jung / Entrevista - Legenda PT/BR Entrevista com o psiquiatra Carl Gustav Jung. 22 de Outubro de 1959. Programa Face To Face da BBC. 38 min. Visualização em outubro de 2013. https://www.youtube.com/watch?v=h2WkkPtTT1w

Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio, Século XXI. O Dicionário da Língua Portuguesa. Editora Nova Fronteira. 1999. 3a Edição. ISBN 85-209-1010-6.

Ghiraldelli, Paulo Jr. Introdução à Filosofia. Editora Manole Ltda. São Paulo. 1 ed. 2003. 183p. ISBN 85.204.1680.2

Law, Stephen. Filosofia. Guia ilustrado Zahar: Filosofia. Zahar. 2009. 2a Edição. ISBN 978-85-378-0070-6

Marcondes, Danilo. Textos Básicos de Ética de Platão a Foucault. Jorge Zahar Editor. Brasil. 3 ed. 143p. 2008. ISBN 978-85-7110-967-4.

Oriolo, Edson. A teoria do movimento em Aristóteles. 18/11/2009. http://www.arautos.org/artigo/10943/A-teoria-do-movimento-em-Aristoteles.html

Reale, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Vol. 1. Edições Loyola. São Paulo. 2 ed. 1993. 419p. ISBN 85.15.00846.7 (vol. 1) (Título original: Storia della filosofia antica, in cinque lolumi, 1975)

Samuels, A.; Shorter, B.; Plaut, F. Dicionário Crítico de Análise Junguiana. Rubedo (Edição eletrônica.) http://www.rubedo.psc.br/dicjung/listaver.htm ;

Sidgwick, Henry. História da Ética. Ícone Editora. 2010.1a Edição.ISBN 978-85-274-1059-5

Simanke, Richard Theisen. Ética e Biologia Evolucionária. Em Candiotto, Cesar (Org.). Ética – Abordagens e Perspectivas. Pgs. 165-183. Editora Champagnat. 1a ed. 2010. ISBN 978-85-7292-214-2.

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Felicidade pela Ética

Referências.

295

TED. University of Nevada. Conferência: Educação para a Felicidade. https://www.youtube.com/watch?v=ayeTR3yT2oc. Consulta em junho de 2014.

Theissen, Gerd; Merz, Annette. O Jesus Histórico. [Título Original: Der historische Jesus – Ein Lehrbuch, 1996] Edições Loyola. 2a edição. 2004. ISBN 85-15-02181-1.

Wilson, Edward O. On Human Nature. Harvard University Press. 2a ed. 2004. ISBN 0-674-01638-6

A Wikipédia foi extensivamente empregada. Abaixo uma amostra

das consultas efetuadas: Wikipédia. Carl Gustav Jung. Língua inglesa:

http://en.wikipedia.org/wiki/Carl_Gustav_Jung. Consulta em outubro de 2013.

Wikipédia. Ética Deontológica. Língua inglesa e língua alemã. Consulta em março de 2.012.

Wikipédia. Immanuel Kant. Língua Portuguesa. Consulta em março de 2013.

Wikipédia. Inconsciente letivo. http://en.wikipedia.org/wiki/Collective_unconscious.

Visualizado em outubro de 2013. Wikipédia, a enciclopédia livre. Movimento, Mudança,

Emoção, Egoísmo, Altruísmo, Individuação, Relaxação muscular progressiva, Stress, Técnica de Relaxamento. Lingua Portuguesa. http://pt.wikipedia.org/wiki/ Consulta em julho de 2014

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