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COMUNIDADES ECLESIAIS DE BASE E A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO:

EXPERIÊNCIAS, MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS (MANAUS, 1980/2017)

Andreza Michelle dos Santos Alves1

ResumoA pesquisa propõe-se compreender e revalorizar as experiências de homens e mulheres de Manaus nos anos de 1980 a 2017 a partir de suas práticas junto às Comunidades Eclesiais de Base na cidade, e outros movimentos sociais articulados aos fundamentos pastorais da Teologia da Libertação. A partir das narrativas orais desses sujeitos históricos, busca-se evidenciar suas resistências contra a ditadura civil-militar na região (1964/1985), e demais injustiças sociais e econômicas que atravessam o período até o tempo presente. Pretende-se, assim, problematizar a constituição de territórios de memória e de luta engendrados de dentro dos seus modos de vida, bem como contradições, ambiguidades, e a aposta comum desses trabalhadores e trabalhadoras na realização dos seus sonhos e utopias.

Palavras–chave: Comunidades Eclesiais de Base, Manaus, ditadura civil- militar de 1964.

O presente artigo expõe resultados parciais de pesquisa de mestrado em desenvolvimento

junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas na

temática “Comunidades Eclesiais de Base e Teologia da Libertação: Experiências, Memórias e

Resistências. (Manaus, 1980/2017)”.

O atual projeto desdobra preocupações teóricas e de pesquisa em História que já vinham

sendo elaboradas em trabalho de Iniciação Científica, realizado ao longo do curso de graduação

em História daquela mesma universidade, sobre o tema “Movimentos de moradia na cidade:

imprensa, memória e vida urbana em Manaus (1985 – 1989)”.

Naquele momento, buscou-se, a partir de fontes do jornal “A Crítica” de Manaus, nos anos

de 1985 a 1989, evidenciar a resistência de trabalhadores e trabalhadoras inseridos na luta por

moradia digna e acesso à cidadania, assim como problematizar a construção social da memória

pertinente a esses movimentos, quase sempre representados de forma pejorativa e discriminatória

naquelas páginas.

Procurando entender à imprensa como “uma força constitutiva do social” (CRUZ;

PEIXOTO, 2007: 253), nesse percurso de investigação e entrosamento com as fontes

iconográficas do jornal, observamos as variadas dimensões sociais vivenciadas por homens e

mulheres, migrantes e operários reclamando por seus direitos, principalmente, cidadania e o

1 É mestranda do Programa de Pós- Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas (PPGH/UFAM), com graduação em História nessa mesma instituição. Foi bolsista de Iniciação Científica pelo Programa Nacional de Cooperação Acadêmica – PROCAD/CAPES – Projeto “Trabalho, Cultura e Cidade” (PUC-SP/UFAM/UFCG)

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seu reconhecimento como sujeitos de sua própria história, constituindo um “alargamento nas

noções de política” (SADER, 1988:312).

Com isso, nas esteiras de observações e análises dos movimentos sociais por moradia

através da imprensa na cidade de Manaus na década de 1980, percebemos uma grande

participação de leigos, agentes de pastorais e religiosos da Igreja Católica, por exemplo, a irmã

Helena, mulher negra e religiosa da ordem das adoradoras do Sangue de Cristo, sempre

referenciando seu apoio aos mais pobres e sua resistência frente às injustiças sociais e à violência

policial.

Defendia a irmã Helena perspectivas de luta em torno da ajuda aos pobres e principalmente

às crianças, catequizando e compartilhando uma visão mais política dos evangelhos através da

reflexão sobre os problemas sociais, mostrando que o pobre não está determinado pela miséria e

opressão, evidenciando a aposta desses sujeitos em seus modos de vida e de resistência no

cotidiano.

Nesse contexto, a Teologia da Libertação enfrenta debates e críticas por correntes teóricas,

no campo da igreja e fora dela, que a observam “como um momento de euforia de ideologias”

(MARTESEN, 2007), evidenciando-se nessas disputas diferentes perspectivas de entendimento

sobre o social e a conquista de direitos. Propõe-se aqui, analisar a Teologia da Libertação e as

Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) como nova concepção histórica do papel da igreja e da

prática pastoral engendrada de dentro de modos de vida de homens e mulheres latino-americanos,

como proposta de libertação do exílio da cidadania social e cultural em que se encontravam as

populações dos seus países.

Nesse sentido, o Concílio do Vaticano II (1962 – 1965), a II Conferência Episcopal de

Medellín (1968) e a III Conferência de Puebla (1979) fizeram “sentir reações profundas dos

mantenedores da situação vigente”, como aponta Leonardo Boff (BOFF, 1980:09), evidenciando

que a Teologia da libertação teve êxito a partir da ação transformadora de homens e mulheres

juntos às CEBs e a outros movimentos sociais articulados aos seus fundamentos.

Com isso, podemos demarcar nas experiências de vida e lutas articuladas de dentro do

cotidiano, uma nova concepção histórica em que o “ povo de Deus”, o povo constituído pela

“base”, os “leigos”, na sua maioria trabalhadores e trabalhadoras, ribeirinhos e excluídos, vêem-

se como sujeitos de suas próprias histórias, inseridas na cidade de Manaus na luta pela moradia

com a irmã Helena, na Comissão Pastoral da Terra- CPT, na defesa dos povos indígenas e

quilombolas, na causa dos professores, na reivindicação por melhores condições de trabalho, na

luta pelo custo de vida, na associação de moradores e nas creches comunitárias, sendo novas

composições de luta que através da história oral poderemos identificar.

Dessa maneira, buscaremos na perspectiva da história oral, compreender e revalorizar práticas

sociais, experiências cotidianas, memórias e resistências desses sujeitos inseridos na prática da

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Teologia da Libertação nas CEBs em Manaus na década de 1980, evidenciando também suas

expectativas de mudança, utopias e dimensões sociais do presente concebidas na produção da

memória. Observamos ainda várias concepções, métodos e teorias de História Oral, apostando

aqui nos entendimentos dessa metodologia que buscam a revalorização dos sujeitos históricos.

Assim, Alessandro Portelli (PORTELLI, 1997) percebe a memória não como um

depositário de dados, em que o pesquisador recolhe do narrador as informações necessárias,

apostando esse historiador no diálogo entre entrevistado e entrevistador, trocas de experiências

pelas quais percebe a memória como constituída no social, quando se pode avançar

entendimentos de memórias passadas e de pessoas, também suas crenças, trajetórias e utopias.

Dito isso, percebemos a história oral como um campo de possibilidades, principalmente, o

de fazer uma história com olhares diversificados, ampliando nossas possibilidades de

alargamento de hipóteses interpretativas sobre as comunidades eclesiais de base e a teologia da

libertação na cidade de Manaus (1980-2017), revalorizando aqui sujeitos através de suas lutas

pela superação da injustiça social e econômica durante a ditadura civil-militar (1964- 1985), e

suas permanências depois daquele período, momento em que a favelização nas grandes cidades

do país acompanha o arrocho salarial da classe trabalhadora, bem como a retirada dos seus

direitos de manifestação e organização política.

Também João Carlos de Souza (SOUZA, 1995) nos serve como referência nessa trajetória

de pesquisa, quando nos faz problematizar , a partir da constituição de seu trabalho com

migrantes inseridos nos movimentos pela terra e moradia na cidade de São Paulo perspectivas de

uma história alternativa, revalorizando as memórias de trabalhadores, agricultores e empregadas

domésticas. Busca o autor, pelo cuidado das transcrições das narrativas, perceber no processo de

construção da oralidade: as expressões, as identidades e as concepções de mundo daqueles

sujeitos históricos.

Nesse sentido, “valorizar o saber e a experiência de vida” (ROSÁRIO, VIEIRA, YARA,

1991:11) será um dos nossos objetivos, buscando nos relatos desses sujeitos evidenciar quem são,

o que fazem, e como suas experiências nas CEBs modificaram realidades de exclusão social no

seu cotidiano.

Motiva-nos também questionamentos no presente trabalho procurar entender quais são

suas expectativas de mudança e transformação social e cultural, buscando observar perspectivas

dos seus saberes e práticas de resistências articuladas de dentro dos movimentos sociais religiosos

de que fizeram parte ou ainda fazem no tempo presente. Buscamos, assim, perceber através dos

relatos dos narradores, dimensões de entendimentos e experiências, modos de vida e de trabalhar

no cotidiano no mais das vezes ocultados da uma história oficial.

Uma Nova Concepção Histórica: A Teologia Da Libertação

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O catecismo ele era já um livrinho todo já que vinha de não sei de onde, São Paulo. Você tinha que seguir à risca aquilo, então quando a Teologia da Libertação chegou, ela chegou pra abrir a mente da pessoa, sair daquele campo fechado e partir pra lutas e dentro dessas lutas havia muitos desafios como cristão né. (Carlos do Nascimento)

Isso foi assim, o que realmente muita gente falava assim: “olha, mas o poder da igreja a gente não questiona a gente somente obedece” e a Teologia da Libertação ela trouxe isso “ tudo é questionável”. (Julie Mesquita)

A América Latina, nos anos de 1950 a 1980, foi palco do nascimento de inúmeros

movimentos revolucionários, guerrilheiros e opositores contra a repressão que se abatia contra os

trabalhadores, como aponta Sandro Silva (SILVA, 2006), evidenciando essas lutas formas de

cooperação e solidariedade entre tais grupos, sobretudo através dos movimento sociais, quando

também se testemunhou o nascimento de uma nova concepção histórica, percebida na “Teologia

da Libertação”. Leonardo Boff (BOFF, 1986) busca entender que povo é esse que se fez igreja,

um povo socialmente constituído e uma igreja nascida do meio popular? Para esse autor a

Teologia da Libertação e as CEBs não podem ser pensadas separadamente, percebendo que o

estudo sobre a Teologia da Libertação é diversificado e complexo, abarcando variadas análises.

A temática da Teologia da Libertação e das CEBs no Brasil é de extrema importância para

entendermos o contexto e os objetivos dos muitos movimentos sociais que se intensificaram com

o processo da ditadura civil-militar de 1964 e, posteriormente, com a abertura política e

construção da constituição federal brasileira de 1988. Lembra- se aqui das práticas de

mobilização e articulações políticas protagonizadas por sujeitos ligados à Igreja naquele

momento, exemplos que nos farão entender o surgimento de uma nova concepção histórica e

teológica da prática pastoral.

Vera Jurkvics (JURKVICS, 2003) observa sobre a obra de Michael Lowy “A Guerra dos

Deuses: Religião e Política na América Latina” que uma gama de fatores que propiciou o

nascimento de uma teologia que se propunha libertadora não iniciou de cima para baixo com a

perda da hegemonia da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) nos territórios latino-

americanos. Ou mesmo de baixo para cima tenha se dado esse processo, mas antes de ambos os

lados, dialogando entre si, mantendo uma relação centro e periferia e construindo uma nova

prática. Nascera também tanto de elementos internos quanto externos à ICAR, como, por

exemplo, a hegemonia do capitalismo no continente americano, a forte industrialização, as

divisões sociais, estímulo do êxodo rural, crescimento urbano, a sucessão de golpes militares, a

eleição do Papa João XXIII em 1958, também a Revolução Cubana de 1959.

Esses marcos históricos, segundo o autor demonstram a intensificação das lutas sociais, o

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aparecimento de um catolicismo radical atrelado a uma nova concepção histórica ligada aos

movimentos de operários e agricultores. No Brasil, a resistência católica antecede a instalação do

regime militar, atribuída a uma diversidade de movimentos de jovens, mulheres, operários e

agricultores, desde a década de 1930.

Tal processo é identificado por Déa Ribeiro Fenelon e Yara Aun Khoury (FENELON e

KHOURY, 1987), tendo as historiadoras coletado conjunto expressivo de fontes orais,

documentos, fotografias, relacionados à atividade dos leigos da Igreja Católica Apostólica

Romana nos movimentos sociais. Assim, verificam nesta pesquisa, a Ação Católica Brasileira

(ACB) iniciando no Brasil em 1935, há também os movimentos ligados à juventude, aos

trabalhadores e à educação, tais como, Juventude Operária Católica (JOC), Juventude Feminina

Católica (JFC), Juventude Universitária Católica (JUC), o Movimento organizado profissional

(MOP), Ação Católica Operária (ACO), Movimento de educação de base (MEB), esse último

com papel importante na educação no meio rural.

Destaque-se, contudo, que muitos desses movimentos foram desaparecendo com a

repressão, e outros se reinventaram nesse processo. Muitos episódios dessas perseguições na

ditadura civil-militar de 1964 foram evidenciados pela pesquisa “Relatório Brasil Nunca Mais.

Projeto A” (ARNS, 1985). Dom Paulo Evaristo Arns, Arcebispo de São Paulo naquele momento,

junto com ampla equipe de pesquisadores e militantes no campo dos direitos humanos, denuncia

as dimensões preocupantes que o regime ditatorial então alcançava.

Com a ajuda de outros membros ligados a movimentos da igreja, inicia o processo de

constituição da seção da Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CBJP), que inicia os trabalhos em

1971, relatando, denunciando, atendendo famílias de desaparecidos e torturados, com o apoio

judicial a essas pessoas que procuravam seus parentes, desaparecidos pela repressão.

Dito isso, a Amazônia, durante a ditadura de 1964, estava imersa em planos

desenvolvimentistas e de integração nacional, promovendo a criação de órgãos fiscalizadores tais

como a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM, em 1966, e,

posteriormente, em 1969, o Instituto Nacional de Reforma Agrária – INCRA, além do Plano de

Integração Nacional – PIN em 1970. Sob o governo Médici (1969-1974), criou-se então a

ideologia do “milagre brasileiro” (BRASIL, Comissão Nacional da Verdade, 2014).

O suposto “milagre” dizimou aldeias indígenas inteiras, expulsou centenas de famílias de

suas terras para a criação de gado e a instalação de indústrias, obrigou os seringueiros e

camponeses que viviam da floresta e de meios alternativos de subsistência a venderem suas

forças de trabalho na cidade em desenvolvimento, em troca de baixos salários e acesso a formas

precárias de vida.

Nesse contexto de exploração, repressão e desigualdades sociais, que o processo da ditadura

civil- militar acentuou, a Teologia da Libertação nasce como uma prática e uma mudança na

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concepção histórica de homens e mulheres, observada como uma nova concepção “sociológica” e

“teológica” (SILVA, 2006). Deste modo, identificamos que a prática da libertação objetivada por

essa teologia, está intrinsecamente ligada às CEBS, nas suas metodologias, nas suas reuniões, nas

suas formas de reivindicar por melhorias em prol do bem comum, e também interagindo com

outros movimentos sociais não ligados à igreja, formando uma igreja popular, trazendo suas

experiências de vida e conhecimentos.

A partir dessa nova frente de lutas, chamava- se para a missão da libertação as outras

religiões, formando uma reunião ecumênica de forças, trazendo elementos como a terra, a

mística, a musicalidade, os peixes e tudo aquilo que é fruto do trabalho das famílias do campo, do

pescador, das empregadas domésticas, operárias e donas de casa. Também ganharam visibilidade

nessa experiência o marginalizado, o menor abandonado, o encarcerado e o favelado, como

imagem do próprio cristo, menino pobre, filho de pais pobres e nascido numa manjedoura.

Experiência e resistência nas CEBs em Manaus

Buscando compreender de forma mais aprofundada o que foram as CEBs e a Teologia da

Libertação, primeiramente, encontramos no trabalho “O que é Comunidade Eclesial de Base?”

(BETTO, 1981) um dimensionamento das metodologias e ações dessas comunidades espalhadas

pelo Brasil, intensamente influenciadas por aquela Teologia. Frei Betto explica que as CEBs são

dinâmicas em suas ações, e se diferem de acordo com o local e seus participantes, tendo cada uma

delas suas particularidades e formas de agir.

No trabalho de levantamento de fontes orais, pude dialogar com cinco pessoas sobre a

referida temática, sempre atenta nessas entrevistas ao que afirma Alessandro Portelli

(PORTELLI, 2010:217) sobre a história oral se diferenciar dos outros escritos das ciências sociais

ao evidenciar a relação do pesquisador e do entrevistado numa interação de diálogo, alteridade e

de aprendizado nas entrevistas. Contudo, neste trabalho iremos dar ênfase às narrativas de dois

sujeitos que nos chamam atenção pela forma como narram as suas trajetórias na igreja. E no

decorrer das nossas entrevistas tivemos a preocupação de manter uma relação de confiança com

os entrevistados, apresentando nossas propostas, objetivos e interagindo com eles.

E para tratar das experiências desses sujeitos na igreja foi importante saber das suas

concepções de mundo, ocupação profissional e como iniciaram na vida religiosa, podendo-se

assim analisar o tema de forma mais ampla, revalorizando os saberes e conhecimentos desses

sujeitos. A primeira conversa que tive foi com o Carlos Alberto Maciel Nascimento, trabalhador

de 50 anos de idade da área missionária de Santa Helena, na comunidade de São Francisco, no

bairro de Terra Nova I, zona norte da cidade de Manaus. Ainda atuante nas CEBs como

catequista de adultos e animador de encontros, Carlos ou “Carlão” como é conhecido por todos

no bairro me concedeu a entrevista na capela da comunidade, quando lá estavam muitas pessoas

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cuidando da igreja, a maioria mulheres, limpando, ornamentando com flores o espaço.

A igreja era muito modesta, mas toda colorida com fitas, balões e palhas de coqueiro, o que

nos informou então Carlos serem os preparativos para a festa junina. Iniciando a entrevista, eu lhe

indaguei sobre a sua ocupação, a fim de conhecer um pouco sobre a sua trajetória de vida. Carlos

teve muitas experiências profissionais, passou pelo distrito industrial nos anos de 1980, trabalhou

como ajudante de pintor, como encarregado de obras, sendo atualmente eletricista. Desse relato,

com Carlos sempre muito sorridente ao falar de sua experiência na área da construção civil, tive a

oportunidade de conhecer sua realidade, assim como sua iniciação na vida comunitária em

Manaus. Diz o narrador:É que as CEBs, né! Ela começou, no Brasil, na América Latina, no Caribe! Por conta de um conselho que teve dos Bispos, por volta de 1962, então... Em 1979, praticamente 78 ou 79, fiz minha primeira Eucaristia, meu pai era ministro da Eucaristia, minha mãe trabalhava na comunidade também, ajudando na liturgia, daí então, comecei dentro desses serviços de coroinha, pastoral de juventude, depois catequista, grupo de juventude e assim sucessivamente. Aí então, por volta de 1982, com uma idade de 15 anos aproximadamente, eu já estava envolvido mais pro lado da juventude, então, a irmã Helena, foi uma forte orientadora pra juventude na Compensa, que era setor três na época, que agora eu não lembro o nome do setor agora. Então, na Compensa ela tomava conta da espiritualidade da juventude, né, e por ela já ter essa espiritualidade de CEB’S, como chamamos hoje “cebiana”, não de CEBI, mas de CEBs. Então, ela passava pra juventude essa

visão, mais ampla, digamos dessa religiosidade, né. Então, a partir dos anos de 1982, mais ou menos, foi quando realmente eu comecei a me inserir nesse jeito de viver a religiosidade, através dessa questão da Teologia da Libertação e opção pelos pobres.

A fala de Carlos nos possibilita entender o início das primeiras CEBs e a influência da

Teologia da libertação na cidade de Manaus, principalmente, por mencionar o processo de forma

conjunta. Também nos faz observar através de sua experiência e de seus familiares na

comunidade a tomada de consciência por parte de membros da Igreja Católica em optar por essa

Teologia. Irmã Helena Walcott, que nesse período estava atuando nos movimentos de moradia e

de juventude na cidade de Manaus tem destacada presença frente aos jovens da cidade, sobretudo

através da Pastoral da Juventude na década de 1970. Nesse contexto, há uma forte resistência de

jovens trabalhadores frente ao processo de exploração e exclusão social que os limitavam, a ação

desses jovens e a reflexão do discurso religioso para reivindicar o direito à cidadania na sua

comunidade, como aponta Rosenildo Trindade (TRINDADE, 2015).

A segunda entrevista que realizei foi com Julie Joy de Souza Mesquita, trabalhadora de 45

anos de idade. Diferentemente de Carlos, essa narradora não atua mais nas CEBs, tendo estado

vinculada a essa frente de 1988 a 2007, como catequista nas comunidades de Santa Maria/Área

Missionária Divina Misericórdia, São Benedito, Santa Luzia, Francisca Mendes/Cidade Nova,

São Sebastião, Nossa Senhora do Rosário/Núcleo 11/Cidade Nova, na Pastoral Operária e na

CPT. De acordo com Julie, sua trajetória na igreja, como catequista, na Pastoral Operária e nas

CEBs, a ajudou na escolha da profissão que exerce atualmente, como professora de História,

tendo interesse destacado no estudo da história operária no Amazonas e no Brasil.

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A entrevista foi realizada em sua casa, rodeada de muitos livros sobre a história operária,

história das mulheres, sobre a Revolução Russa e o marxismo, dentre outros. Atualmente, Julie

está fazendo um mestrado de gestão integrada sobre meio ambiente, qualidade e prevenção,

atuando principalmente com a questão dos trabalhadores, pesquisando sobre acidentes de trabalho

e buscando evidenciar a história dos operários e suas lutas pela prevenção de acidentes

ocupacionais.Na verdade eu participei não só de, assim, tudo que se dizia a respeito à pastoral e as comunidades Eclesiais de Base. 1988 eu entrei na catequese, aí nossa catequese naquela época, aqui na Cidade Nova, não era catequese nas escolas, como em alguns lugares ainda são, o pessoal pega os prédios das escolas para fazer e ter, assim, digamos um pouco mais de conforto pra dar aula. Mas não era, naquele tempo, a catequese era nas ruas, era nas comunidades mesmo, por exemplo, eu morava no núcleo 14, da 2ª etapa da Cidade Nova e eu morava na rua 78. Lá na rua 78 era onde eu trabalhava com a catequese. A Catequese ela é o principal trabalho de base, ela é

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um principal trabalho Eclesial de Base. Por quê? Porque é através da catequese que você vai ver as dificuldades daquela criança, você vai acompanhar as dificuldades cotidianas da família daquela criança, identificar, confrontar e contextualizar, por exemplo, o quê que a igreja, que é a igreja, na verdade, que tem que ser a igreja dos pobres, uma igreja voltada para o povo que necessita. O quê que essa igreja pode fazer pra aquela família, pra aquela criança? E a igreja, essa igreja que eu falo, que é a igreja dos pobres é realmente a Comunidade Eclesial de Base. Quando a gente fala Eclesial de Base é porque a gente tem que pegar a questão bíblica e contextualizar com a realidade que aquela família está vivendo. A igreja não pode ser separada, ela não pode ser só um louvor, ela tem que ser uma prática também. Ela não pode ser só o espírito, ela tem que ser praticada, não pode ficar só em palavras, as palavras, elas têm que se transformar a prática do nosso dia-a-dia. E dentro dessas comunidades a gente trabalhava isso, a gente procurava explicar quais eram os direitos, o quê que as pessoas tinham direito e a quem elas deveriam cobrar. E a igreja estava à frente disso.

A memória de Julie sobre sua iniciação nas comunidades eclesiais de base, assim como

a de Carlos, nos dá uma dimensão das práticas concebidas nas CEBs, principalmente em

utilizar o método “ver, julgar e agir” (BETTO, 1981:29). Segundo Frei Betto, o método é

constituído nos estudos bíblicos, encontros da catequese, assembleias e mobilizações, em que

o povo de Deus, tomado por uma nova concepção, que é a da libertação, vê seus problemas

básicos e suas realidades, não como a vontade de Deus em pleno conformismo. E os Julgam

como uma construção dos homens para a manutenção das desigualdades sociais, e agem

refletindo no evangelho para que tais desigualdades não existam mais, agindo tanto como uma

nova forma de interpretar o evangelho quanto que uma nova prática desses evangelhos na

vida comunitária.

Também podemos perceber a aproximação das Ciências Humanas, como a Sociologia

e a Filosofia na Teologia da Libertação, também se apropriando o entendimento de Marx

sobre a História (MARX, 2002), como uma força transformadora da vida, no decorrer das

entrevistas, busquei ouvir atentamente a todos os detalhes mencionados por Julie,

principalmente na sua definição de CEBs:

Na minha opinião é assim, as CEBs é uma forma de viver da igreja Católica, uma forma, uma forma que a igreja tinha como trabalhar a verdadeira pastoral, a verdadeira pastoral da igreja Católica foi quando se trabalhava com as CEBs, porque dentro das CEBs, por exemplo, você pega uma “Canaranas1” desse, um bairro como esse, você vê uma série de problemas: as ruas faltando asfalto, não tem unidade básica de saúde, uma série de problemas que são problemas básicos. Aí você vai me perguntar assim: “mas a igreja ela vai...” Não, a igreja não vai resolver os problemas, mas a igreja, se a gente trabalhasse com a questão das CEBs aqui, qual seria o papel da igreja? Conscientizar as pessoas que elas teriam que sair desse marasmo que elas vivem hoje, pra agir, pra cobrar, pra cobrar das instituições. Então, as CEBs na verdade ela é uma forma de igreja, das pessoas que fazem parte da igreja, não só os dirigentes, mas a comunidade toda, uma forma libertadora de viver.

1 “Canaranas” é um conjunto habitacional do Bairro Cidade Nova, na zona norte da cidade de Manaus.

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Também Carlos fala sobre seu entendimento do que sejam as CEBs e a Teologia da

Libertação:Eu... acredito que como se fala já, a questão, Teologia da Libertação, isso volta pra uma libertação de uma forma “mais pé no chão”, como costumamos dizer assim nas CEBs, não só aquela libertação de espírito, né! De se libertar dos pecados e tudo mais, porque nos anos 60, né, ainda na época da ditadura, a Igreja Católica teve uma grande parcela muito grande de líderes que influenciaram na questão, no término da ditadura, né. Teve Leonardo Boff, eeh, Frei Tito, inclusive foi muito torturado que acabou se matando enforcado, né, teve o Frei Betto, que ainda é vivo, né, e tanto outros e tantos outros formadores de líderes, que tinham uma visãoem que para ser livre, não seria ser só livre do pecado, mas ser livre de uma forma completa. Então, foi isso que motivou, né, no meu ponto de vista, seria essa libertação por completo.

Observamos nessas narrativas “um mosaico ou colcha de retalhos” (PORTELLI,

1997:17), pois, mesmo compartilhando de ideologias e lembranças aproximadas, os dois

narradores têm percepções diferentes da realidade. Para Carlos, a Teologia da Libertação é ser

“pé no chão”, firme em sua missão, uma teologia formadora de líderes. Para Julie, é o

trabalho da pastoral, uma forma de viver da igreja católica, citando exemplos de problemas

cotidianos de seu bairro, relembrando que através do trabalho das CEBs, tal realidade poderia

ser modificada. Assim, como um mosaico, ou colcha de retalhos, que quando reunidos

conseguem nos mostrar o cotidiano das CEBs, também foram marcadas as suas experiências,

evidenciando-se ambiguidades no processo de formação dos sujeitos históricos.

As formas de luta e de resistência protagonizadas pelos sujeitos das CEBs são

dinâmicas e complexas, assim como suas experiências cotidianas. Utilizam-se de símbolos em

cerimônias da igreja e da cultura popular, para expressar as suas novas demandas. Eder Sader,

quando analisou a formação de uma nova configuração de classe no sindicalismo, Marxismo e

na Igreja, se pautou nas experiências e novas formas de luta de trabalhadores e trabalhadoras

que através da resistência modificaram suas realidades, e entraram em cena, construíram suas

histórias através dos sindicatos, das reivindicações pela moradia, na mudança de discurso dos

sujeitos e na tomada de consciência (SADER, 1988).

Exemplos de resistência popular podem ser mencionados como é o caso relatado por

João Carlos de Souza nas ocupações de terra em São Paulo em 1990, nas comissões pela

habitação, nas passeatas organizadas pelas ruas e o apoio das pastorais da terra e das CEBs

no acolhimento desses sujeitos, cadastrando famílias e auxiliando- os (SOUZA,1995).

Mas há também uma resistência cotidiana, que não é organizada na coletividade, mas

que é formada por cada indivíduo, reivindicando os espaços de lazer, cidadania, a forma como

são representados, no ato de dialogar e se organizar, compartilhando água, energia elétrica,

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construindo escolas populares para seus filhos ou emprestando seu endereço para matricular o

filho do vizinho na escola, transformando a luta pela sobrevivência em um novo contexto de

solidariedade. Nesse contexto, Carlos e Julie nos dão informações valiosas para entender o

cotidiano dessas lutas na cidade de Manaus.

Carlos comenta que chegou a Manaus bem novo “e viu a cidade evoluir”, na década de

1980, por volta de 1983 e 1984, ele inicia na catequese, então com 16 anos de idade, já

comprometido com a teologia da libertação e o trabalho na pastoral da juventude, começa a

conduzir a catequese de baixo de umas árvores no bairro da Compensa, pois a comunidade

não tinha templo. Depois atuou no bairro de São Jorge, e nesse período ele teve contato direto

com a irmã Helena nas ocupações de Terra em Manaus, que, além de cuidar da espiritualidade

dos jovens na Compensa, tinha um trabalho árduo de formar novas comunidades em novas

ocupações de terra.

Ela tirou mesmo o hábito e andava na rua, e pronto, e falava! Eu cansei de ir pra alguns movimentos com ela como jovem, né, um que teve na Compensa. Foi um motel de luxo, que teve praticamente quase na frente da minha casa, chamado “del rey”, nós fizemos manifestações lá na frente, protestos e tudo, porque era um bairro muito pobre pra ter um motel absurdo daquele, de luxo, dentro de Manaus, a Compensa era um bairro muito pobre, né, ainda é pobre, só que é muito menos ainda. Pois é, desse pessoal que foi perseguido aqui dentro de Manaus que eu lembro é a irmã Helena né. Até porque, no caso já estava amena a questão da opressão em cima dessas pessoas que lutavam por conta da libertação. Então, a irmã Helena ela começou a formar novos bairros, novas comunidades, reunia, temos como exemplo o Novo Israel, quando eu vim morar pra cá, em 1982, tinham deixado um contêiner da Prefeitura, da construção civil lá, então era guardada algumas coisas da Igreja dentro do Contêiner, e era só uma lona e com uns bancos de madeira bem “feinho mesmo” e estavam fazendo uma fossa, e botaram a irmã Helena dentro dessa fossa porque a policia tava pra matar ela nesse dia, estavam procurando por tudo que era canto da cidade de Manaus pra matar mesmo.

A lembrança de Seu Carlos referente à irmã Helena nos dá evidências do cotidiano

dessas reivindicações e ocupações de terra, protagonizados pelos membros das CEBs, pela

juventude, pelos agentes de pastorais e principalmente, pela mudança no hábito da irmã

Helena. A vestimenta litúrgica das freiras tem um significado dentro da igreja, mas nesse caso

lembra a igreja institucional, formada por hierarquias e distinções entre seus pares. No caso de

irmã Helena, na década de 1980, pode-se perceber no seu ato de abdicar do “hábito”, ou no

ato da comunidade em “esconder a Irmã Helena da polícia dentro de uma fossa" como

dimensões de resistências e compromissos históricos com a criação de uma igreja do povo

feita pelo povo, e alimentada por ele:O céu não é aquele imaginário não, o céu você pode construir aqui na terra”, partir para ações, pra atitudes concretas. Hoje em dia teve de uma forma, não puxando brasa pra minha sardinha, mas digamos assim, eu acho que foi um pouco injusta essa questão de irem pra rua pra tirar a Dilma. Apesar de o Brasil está

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passando por uma crise política muito complexa e muito delicada, mas mesmo assim eles foram. E sabemos que até hoje existe repressão por conta de muitas coisas que quando a gente fala a gente acaba tendo problemas com os militares e essas forças aí.

Carlos ao narrar suas experiências nos mostra com riquezas de detalhes dimensões

também do social, de exclusão, violência policial e de criminalização desses movimentos, que

buscavam a libertação não somente no “reino dos céus”, mas nas relações reais do cotidiano.

Também nos evidencia em seu relato a constituição da memória no ato da entrevista, o seu

lugar de fala e a sua habilidade de explicar ao seu modo e com suas expressões. Utilizando

relações vivenciadas no presente, confrontando, as injustiças ocorridas em experiências

passadas com a irmã Helen, uma mulher negra, religiosa, perseguida pela polícia com o

processo de golpe feito contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016.

Outro caso sobre as ações das CEBs em Manaus é o relatado por Julie Mesquita sobre

uma ocupação de terra que teve a oportunidade de acompanhar no mesmo período em que

estava fazendo um curso no Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação

Socioambiental (SARES). O curso tratava da formação de ação social, um curso de extensão

da Universidade Federal do Amazonas sobre Filosofia, Sociologia, História e Geografia. Para

Julie, foi um período de grande aproximação com as teorias marxistas. Para a narradora,

estudar marxismo para explicar a teologia da libertação, era um “chamado de Deus”. A

utilização das ciências humanas para ajudar a explicar o social é um ponto positivo para a

teologia da libertação (LIBANIO, 1992).

Aliam-se aí o materialismo histórico como método de análise e a percepção e prática

religiosa concreta de homens e mulheres de Manaus naquele momento. Nesse contexto, Julie

conheceu a comunidade do “CARBRAS”2, em 2007, naquela ocupação, Julie observava um

apoio muito grande da igreja no movimento de moradia dessas comunidades, contudo, o que

mais nos chama atenção é a rede de solidariedade construída pelas mulheres, dimensão

apontada por Julie quando lhe indaguei sobre suas experiências no cotidiano da ocupação de

terra.

Bom, a minha participação na verdade eu não fiquei diretamente lá, né, mas a minha participação era mais assim, ir pra lá para organizar, tentar organizar as mulheres, as mulheres têm uma força imensa, nós mulheres temos uma capacidade dinâmica muito grande, de ao mesmo tempo cuidar da casa, cuidar de filho e ter a mente aberta pra questões mesmo que estão acontecendo. E isso foi interessante porque olha, não tínhamos creche, não tínhamos com quem deixar, as pessoas não tinham com quem deixar seus filhos. E a gente conseguiu organizar, reunir as mulheres e dizer: “olha gente, muita gente aqui tem que trabalhar, muita gente

2 Segundo a narradora a comunidade do “CARBRAS”, compreende atualmente os bairros Parque Riachuelo e Parque São Pedro, no Tarumã, região oeste da cidade de Manaus.

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precisa trabalhar”, tinham manicures, tinham empregadas domésticas ali, tinham pessoas que trabalhavam no distrito e dar um apoio moral pra essas pessoas, porque as pessoas tinham medo: “—ah! Se eu for trabalhar eu vou deixar os meus filhos com quem?” quer dizer, tem muita gente nesses lugares que não trabalha, que estava desocupada talvez porque nunca teve uma oportunidade de trabalho. Então, essa pessoa vai ficar responsável em cuidar das crianças, a gente foi perguntando quem poderia fazer isso: “—ah! Eu posso fazer isso, eu gosto de cuidar de criança”. Então, as creches foi um trabalho assim que eu pude acompanhar, verificar de perto como ia se desenvolvendo, esse trabalho também tem as irmãs que fazem parte e acompanham, como organizar uma creche, de que forma elas podem acompanhar, e é isso.

A rede de solidariedade constituída por essas mulheres da ocupação de terra da

CARBRAS traz para a discussão nesta pesquisa a importância de se estudar as questões de

gênero nas CEBs, dando contribuição para futuros trabalhos sobre a relação das mulheres com

a igreja e as comunidades de base. Também amplia a temática sobre a participação feminina

nos movimentos por moradia em Manaus, na criação, instituição e manutenção de políticas

públicas, evidenciando complexas redes de solidariedade.

Tanto Julie quanto Carlos compreendem a mulher como sujeito na luta contra o

machismo, a violência sexual, o preconceito, a falta de oportunidade, sem perceberem em

qualquer momento a mulher em segundo plano, sem voz, responsável por afazeres familiares

e domésticos secundários.(ROVAI, 2017) Antes esses narradores as percebem como líderes

dos movimentos, fazendo parte dessa dinâmica com os homens, tanto na participação dos

leigos nas CEBs quanto que na colaboração de religiosas para acompanhar esses trabalhos.

Dessa forma, nos questionamos se as CEBs continuam exercendo esse papel

mobilizador e transformador na sociedade? Quais são as maiores dificuldades encontradas

pelos sujeitos que ainda permanecem na luta motivados pela teologia da libertação, e como a

igreja e as CEBs se posicionam frente às problemáticas sociais e econômicas da atualidade.

Ao dialogar com esses sujeitos sobre o trabalho atual das CEBs em Manaus, torna-se um

desafio perceber nas falas dos entrevistados posicionamentos diferenciados da importância

que essas comunidades exercem na sociedade atual, como se posicionam com relação às

injustiças na atualidade, e quais são as suas ações para que tais mudanças ocorram. Ao

indagar hoje Seu Carlos sobre a atuação das CEBs na cidade, em comparação com os anos de

1980, ele relata que,iiih... A realidade de hoje ela é totalmente diferente da dos anos 80 e da dos anos 70, né. A igreja ela ainda se posiciona em favor dessa libertação, dessa Teologia da Libertação, sendo que dentro da igreja sempre há reformas, dentro da igreja acontece reformas, dentro dessas reformas se criam outras formas de trabalho. Dizem que as CEBs já está um pouco estacionada, assim entre aspas, porque não se tem aquela luta, antigamente se focava muito mesmo em questão da ditadura, dos direitos humanos, não dos direitos, mas direitos humanos como um todo, de uma forma mesmo bem ampla, e aí então, por conta, né, do novo regime democrático que estão passando, acredito que a igreja se acomodou um pouco com relação a

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isso. É o lado da proteção ao ambiente, e então são lutas que a igreja como um todo defende ainda, então quando parte para essas lutas, a gente percebemos que as CEBs não estão mortas, né, simplesmente as pessoas adotaram outros nomes, como comunidades e comunidades pastorais, entendeu.

João Batista Libanio, ao fazer um panorama da Teologia da Libertação na América

Latina, observou que vê-se aí várias vertentes que se atualizam conforme as mudanças

políticas, culturais e econômicas ocorridas no continente. Buscando novas temáticas e novas

análises da sociedade nesse caminho observamos uma corrente muito forte voltada para o

meio ambiente, ecologia e o futuro do planeta (LIBANIO, 2017).

Tal preocupação com o meio ambiente pode ser percebida na Campanha da

Fraternidade de 2017, com o tema “biomas brasileiros e defesa da vida” e o lema “cultivar e

guardar a criação”, Tal posicionamento de cuidar do meio ambiente foi tomado pelas CEBs,

como foi mencionado por Carlos. Nesse contexto, percebemos que as novas demandas

sociais, tais como preservação do meio ambiente, proteção da fauna e da flora, não ao

desperdício dos recursos naturais, se fazem presentes nesse novo jeito de ser igreja. Entram

então no campo das discussões das CEBs, os povos ribeirinhos, pescadores e indígenas que

fazem desses recursos fonte de subsistência e meio de vida, lutando pelo respeito às suas

terras, aos seus rios que são contaminados pelo agronegócio. Julie, contudo, apresenta críticas

com relação a essa nova metodologia, que para ela poderia ser mais eficaz com escolas de fé e

política. Diz Julie queAs escolas de fé e política elas realmente são assim, elas são escolas, as pessoas se reúnem, as pessoas fazem as leituras bíblicas, mas as pessoas trazem os problemas do cotidiano, os problemas que são discutidos. Por exemplo, essa questão da corrupção, do governo do Estado, da nova eleição, isso tudo é discutido dentro das escolas. Se é um trabalho que conscientiza, que politiza... eu penso que ela poderia fazer mais, mas não é. Não faz, né, eu penso que ela poderia fazer mais um pouco, mas por que não? Porque é assim, hoje é... as escolas que são do trabalho das Comunidades Eclesiais de Base, essas escolas de fé e política elas estão muito ali voltadas só entre aquele meio, por exemplo, só nos seus dirigentes.

A falta de diálogo e as críticas que as comunidades estão sofrendo por conta de sua nova

trajetória são evidenciadas pelas memórias de Julie e de Carlos, e nessa conjuntura devemos

salientar que as CEBs, assim como a Teologia da Libertação, reinventam suas práticas.

Ao tratar da história das CEBs, devemos pensar que são dinâmicas, diferentes, mas que

ainda existem e continuam resistindo de formas de trabalhos diferentes frente às injustiças

sociais, indo também ao encontro das perspectivas históricas de Yara Aun Khoury, ao

perceber a historiadora os sujeitos históricos não como meros conceitos inertes e sem vida,

mas como agentes de construção do processo histórico, forjando significados, deixando suas

marcas no social através das experiências do seu cotidiano (KHOURY, 2001).

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CONCLUSÃO

De todo modo, o que observam os narradores aqui apresentados, é que a Teologia da

Libertação empreende leitura política dos evangelhos, buscando promover a justiça social

através da ação do povo e a conservação da dignidade humana de uma forma completa, com

direitos amplos e acesso à cidadania. Destaca-se também nas narrativas de Julie e Carlos o

processo pelo qual o fazer social se engendra simultaneamente com a sua compreensão.

Utilizando a História oral como fonte, e constituindo um trabalho de campo, tive a

oportunidade de conhecer fatos até então não localizados na historiografia, movimentos e

manifestações não mencionadas e registradas nos livros, detalhes sobre as ocupações, como

eram organizadas, a presença de mulheres e as redes de solidariedade que elas teceram

construindo creches comunitárias e nomes de pessoas que não aparecem com tanto evidência.

Assim, percebemos na cidade de Manaus, seja na Pastoral Operária, na catequese ou no

movimento de moradia a importância desses sujeitos históricos em cada comunidade, que

para Dom Paulo Evaristo Arns é como um corpo onde cada um possui a sua função (ARNS,

1981). Reforço ainda à importância desses relatos quando à intensa participação das mulheres

nas comunidades eclesiais, quando muitas têm dupla jornada de trabalho, cuidando dos filhos,

da casa, trabalhando fora, e que, não obstante, reservam seu único dia de folga para trabalhar

na igreja, cuidando e organizando os espaços, tecendo redes de solidariedade e de amizade

com as demais pessoas da comunidade.

Evidencia-se mesmo que as práticas de resistência desses sujeitos, também no campo

da memória, alargam significados de política e de solidariedade no cotidiano de seus modos

de viver e trabalhar, contribuindo para a superação e enfrentamento das formas de repressão

social a que estão submetidos por contínuas violências e ameaças aos seus direitos na cidade

de Manaus, ontem e hoje.

REFERÊNCIAS

FONTES

Narradores:

Carlos Alberto Maciel Nascimento. Entrevista em 03 de junho de 2017.

Julie Joy de Souza Mesquita. Entrevista em 22 de junho de 2017.

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