37
Dados Pessoais nas Comunicações Electrónicas: Problemática subjacente aos Dados de Tráfego Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 12 de Abril de 2010, Proc. N.º 1341/08.4TA VCT (Anselmo Lopes) Comunicações Electrónicas. Direito da Comunicação. Conceito de Dados Pessoais. Dados de Tráfego e Dados de Base. Artigo 135.º n.º 3 CPP 1 . Directiva 2002/58/CE. Lei n.º 67/98, 11 de Outubro. Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto. I. Introdução – Quadro Jurídico 1 Código de Processo Penal O presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações Electrónicas, o caso concretamente diz respeito a uma participação criminal apresentada por (A) 1

 · Web viewO presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações

  • Upload
    vobao

  • View
    213

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1:  · Web viewO presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações

Dados Pessoais nas Comunicações

Electrónicas: Problemática subjacente

aos Dados de Tráfego

Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 12 de Abril de 2010,

Proc. N.º 1341/08.4TA VCT (Anselmo Lopes)

Comunicações Electrónicas. Direito

da Comunicação. Conceito de Dados

Pessoais. Dados de Tráfego e Dados

de Base. Artigo 135.º n.º 3 CPP1.

Directiva 2002/58/CE. Lei n.º 67/98,

11 de Outubro. Lei n.º 41/2004, de 18

de Agosto.

I. Introdução – Quadro

Jurídico

O presente comentário visa analisar

as questões tidas como relevantes

no acórdão do Tribunal da Relação

de Guimarães de 12 de Abril de

2010. No âmbito das

Comunicações Electrónicas, o caso

concretamente diz respeito a uma

participação criminal apresentada

por (A) contra desconhecidos que

1 Código de Processo Penal

tiveram várias intervenções de

carácter difamatório em fóruns de

um determinado site, contra o

requerente. Foram solicitados pelo

MP (Ministério Público) à PJ

(Policia Judiciária), todos os

elementos que permitissem

identificar estas pessoas. Por sua

vez a PJ, solicitou os mesmos

elementos à PT (Portugal

Telecom), que sujeitou a sua

revelação a uma autorização do JIC

(Juiz de Instrução Criminal). O JIC

não deu autorização para serem

fornecidos esses elementos, e é isso

que se vem requerer em sede de

recurso, que o tribunal decida no

sentido de o JIC dar a sua

autorização. No entanto, em torno

1

Page 2:  · Web viewO presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações

desta questão, estão em causa

outros problemas que merecem a

nossa melhor atenção. Debruçar-

nos-emos assim nos aspectos que

podem ser relevantes face aos

elementos que pretendem ser

obtidos no caso em apreço.

Abordaremos a temática do Direito

à Reserva e Intimidade da Vida

Privada, descodificaremos o

significado do conceito de Dados

Pessoais e tudo o que lhe está

inerente e por aí entraremos nos

aspectos principais que salientamos

do caso sub judice, que se aferem à

distinção entre dados de base e

dados de tráfego. Enunciaremos

ainda a temática do Sigilo das

Comunicações que apresenta

contornos relevantes para o que se

discute no caso em apreço. Através

do que iremos abordar,

concluiremos com uma apreciação

crítica do que foi decidido pelos

Desembargadores neste acórdão,

mas para isso será, primeiramente,

necessário aferir todo o

desenvolvimento do processo em

causa.

II. Resumo do Acórdão2

2 A decisão na sua versão integral pode ser lida

em http://www.dgsi.pt/

1. Objecto

Os autos iniciaram-se em 1ª

Instância com a denúncia

apresentada por (A), na qual

participa criminalmente contra

desconhecidos por factos passíveis

de integrar a prática de um crime de

difamação (180.º n.º 1, 182.º, 183.º

n.º 1 a), 184.º do CPP com

referência ao 132.º n.º 1, do Código

Penal). De acordo com a denúncia,

os utilizadores (B), (C), (D), (E) e

(F), tiveram várias intervenções em

fóruns do site (X), onde produziram

vários textos de carácter

difamatório contra o denunciante.

No decurso do processo foi

solicitada pelo MP, à PJ, a

identificação dos referidos

utilizadores de contas que

participaram nos fóruns com

recurso a endereços de IP,

pertencentes a ISP`s (Internet

Service Provider), sedeados em

Portugal. A PJ solicitou à PT a

identificação com referência ao

grupo data-hora, associados à

colocação no site, bem como os

dados relativos à criação das

referidas contas, a identificação e

contacto do responsável do fórum.

Em resposta a PT condicionou o

fornecimento de tais dados à

existência de autorização do JIC,

2

Page 3:  · Web viewO presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações

referindo que o fornecimento dos

dados de tráfego carece de

autorização deste juiz, à

semelhança do que acontece com os

dados de conteúdo, tal como resulta

do actual quadro legal, artigo 27.º,

n.º1, alínea g) da Lei n.º 5/2004 de

10 de Fevereiro (Lei das

Comunicações Electrónicas) e do

artigo 4.º da Lei n.º 41/2004, de 18

de Agosto, Lei relativa ao

tratamento de dados pessoais e à

protecção da privacidade no sector

das comunicações electrónicas.

No seguimento do exposto, o JIC

proferiu um despacho concluindo

que não seria possível obter os

dados pretendidos pela PJ e

solicitados pelo MP, isto porque os

factos em causa nos autos não

seriam susceptíveis de integrar

nenhum dos crimes do catálogo

(artigos 187.º, 188.º e 189.º) do

CPP, nem por ser um crime punível

com pena de prisão que seja

superior, no seu máximo, de três

anos. O JIC considera ainda que os

dados pretendidos se tratam de

dados de tráfego de comunicações

electrónicas (dados relativos às

ligações do computador de um

agente e fornecedor de serviço de

acesso à Internet).

Em sede de recurso, o que se refere

é que os elementos pretendidos se

tratam de dados de bases, mas com

a evolução das directivas

comunitárias em matéria de

comunicações electrónicas tem-se

assistido a uma metamorfose no

paradigma da protecção jurídica

dos dados pessoais, em que ao lado

dos dados de tráfego, dos dados de

bases e dos dados de conteúdo,

surgem agora os dados de

localização. Então, o que se vem

pretender é que, sejam os elementos

pretendidos dados de bases ou

dados de tráfego, o respectivo

acesso seja permitido por tais dados

não estarem abrangidos pelas

restrições impostas pelos artigos

187.º a 189.º do CPP, justificando-

se assim a quebra do sigilo nas

comunicações, nos termos do artigo

135.º n.º 3 do CPP, com a prestação

das informações por parte do

operador de telecomunicações,

dada a manifesta prevalência do

interesse da vítima. Por isto se

entendeu que o JIC violou o

disposto nos artigos 26.º n.º 1 e 34.º

n.º 1 da CRP (Constituição da

República Portuguesa), os artigos

17.º, 135.º, 187.º a 190.º, 268.º e

269.º do CPP, o artigo 7.º da Lei n.º

41/2004 de 18 de Agosto, e o artigo

3

Page 4:  · Web viewO presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações

27.º n.º 1 alínea g) da Lei n.º 5/2004

de 10 de Fevereiro.

Vem então requerer-se a revogação

do despacho substituindo-o por

outro que ordene ao operador de

telecomunicações o fornecimento

dos dados de base pretendidos pelo

MP, ou caso se considere que

estejam em causa dados de tráfego,

que seja substituído o despacho

recorrido por outro que considere

legitima a quebra de protecção do

sigilo nas comunicações, nos

termos do artigo 135.º n.º 3 do CPP,

sem as restrições decorrentes dos

artigos 187.º a 190.º do mesmo

Diploma.

2. Parecer

O Procurador-Geral Adjunto

defende a procedência do recurso

referindo que em causa estará a

seguinte questão: tendo sido

participado contra desconhecidos

um crime de difamação agravada

praticada através da Internet, e

visando-se apurar a autoria do

mesmo, a identificação dos

Protocolos de Internet com

referência ao grupo data–hora,

associados à colocação dos

comentários no site (X) pelos

utilizadores (B), (C), (D), (E) e (F),

e a identificação dos Protocolos de

Internet com referência ao grupo

data–hora relativos às referidas

contas, importa saber se estamos

perante dados de base ou dados de

tráfego.

Assim, no caso, dado que o MP

pretende obter a identificação dos

autores das mensagens escritas nos

fóruns, em ambiente

comunicacional electrónico, no

parecer entende-se que se quer ir

além da identificação dos dados de

base, pretendendo-se sim que o JIC

autorize o acesso aos dados de

tráfego. Há ainda que ter em conta

que, quando no artigo 187.º n.º 1 do

CPP se alude ao crime de injúria

tem também de se considerar o

crime de difamação, isto porque,

num crime de injúria estão em

causa exactamente os mesmos bens

jurídicos que no crime de

difamação – a honra e a

consideração de alguém –

distinguindo-se ambos de uma

circunstância particular: na injúria

exige-se que a conduta seja

endereçada ao próprio ofendido e

na sua presença. Assim o que se

pretende é que o despacho do JIC

seja revogado e seja proferido outro

que conheça do pedido do MP

tendo em vista o acesso aos dados

4

Page 5:  · Web viewO presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações

de tráfego e o disposto nos artigos

187.º e 189.º do CPP.

3. Fundamentação

O Tribunal da Relação de

Guimarães vem então decidir

referindo que, em primeiro lugar,

os elementos pretendidos pelo MP,

na linguagem das comunicações

electrónicas, haverão de ser

compreendidos nos chamados

dados de tráfego, pois que apenas

são necessários ao estabelecimento

e à direcção da comunicação,

identificam ou permitem identificar

a comunicação e possibilitam a

identificação da comunicação entre

o emitente e o destinatário, a data, o

tempo e a frequência das

comunicações. Na preservação do

chamado direito à intimidade da

vida privada, prevê a lei – artigo

17.º n.º 2, da Lei n.º 91/97 e o

artigo 5.º da Lei n.º 69/98 – que

nesta área das telecomunicações, o

dever de sigilo, conexo com o

referido direito, possa ser invocado.

Contudo, quando superiores

interesses o justifiquem,

designadamente na área da

investigação criminal, esse dever de

sigilo poderá e deverá ser quebrado.

Isto resulta do disposto no artigo

135.º n.º 3 do CPP, que será sempre

aplicável aos casos omissos. Então,

releva que os elementos

documentais solicitados à PT,

sendo necessários à investigação

em curso, não traduzem uma

intromissão ou devassa, como a que

se patenteia quando se pretende o

registo do conteúdo da própria

conversação ou comunicação. E,

assim sendo, decide-se que deverá

o JIC solicitar à PT os elementos

pretendidos pelo MP, sendo que

perante uma eventual escusa,

haverá de ser accionado o

mecanismo previsto no artigo 135.º

n.º 2 e 3 do CPP. Assim, no caso

concreto dos autos, deixou-se por

economia, a alternativa pedida pelo

recorrente, e o Juiz, observado o

disposto no n.º 4 do artigo 135.º do

CPP, passar oportunamente à

prossecução do incidente previsto

n.º 3 do mesmo Diploma. Julga-se

então o recurso procedente,

revogando-se a decisão recorrida, a

substituir por outra que ordene à PT

o fornecimento dos elementos

pretendidos pelo MP e, se vier a

considerar legítima a recusa da

quebra da protecção do sigilo nas

comunicações, suscitar

oportunamente o incidente previsto

no artigo 135.º n.º 3 do CPP.

5

Page 6:  · Web viewO presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações

III. Comentário

1. Introdução e

delimitação do

Comentário

Como foco central da nossa análise

estão os Direitos Pessoais e tudo o

que lhe é inerente no âmbito das

Comunicações Electrónicas. A

Internet está, hoje, sujeita a regras

que pretendem regular a sua

utilização de vários pontos de vista,

devendo ser encarada como objecto

de disciplina jurídica. Aqui visa-se

a protecção do utilizador em si

mesmo, naquilo que de mais íntimo

e pessoal lhe possa dizer respeito, a

sua privacidade e mais

concretamente a protecção dos seus

dados pessoais face às ingerências

propiciadas pelo uso da Internet.

Focaremos as implicações que este

novo meio de comunicação tem

relativamente à privacidade dos

seus utilizadores e nas coordenadas

jurídicas a ter em conta para

disciplinar a vida na Internet com

vista à salvaguarda daquela, dando

especial atenção ao conceito de

dados de pessoais e à distinção

entre dados de base e dados de

tráfego. Em primeiro lugar,

daremos especial atenção ao tema

do Direito à Reserva da Intimidade

e da Vida Privada que

inevitavelmente tem íntima relação

com a discussão do caso do acórdão

em análise.

2. Direito à Reserva

da Intimidade e da

Vida Privada

No domínio da “utilização da

informática” renovam-se as

dificuldades suscitadas pela definição

do conteúdo e limites do conceito de

“vida privada”, expressamente previsto,

desde 1976, no âmbito do artigo 35º da

Lei Fundamental.3 Com efeito, uma das

áreas em que, por forma mais evidente e

grave, se podem revelar os

afrontamentos que, tantas vezes, opõem

o poder público e a sociedade civil, é a

que se refere ao respeito da vida privada

e das liberdades pessoais em face do

desenvolvimento da informática e das

tentações desse mesmo poder para a sua

utilização abusiva. De facto, por um

lado, as novas tecnologias, em geral, e a

informática, em especial, proporcionam

ao homem uma capacidade nova para a

expressão da sua vontade. Contudo, por

outro lado, também aumentam os riscos

de violação das liberdades individuais,

principalmente da intimidade da vida 3 Sobre o assunto pode consultar-se:

MARQUES, Garcia e MARTINS, Lourenço;

Direito da Informática; Almedina, 2000, p.97

6

Page 7:  · Web viewO presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações

privada. O direito à protecção de uma

“esfera reservada e íntima” é, dentro

dos “limites de personalidade”, o de

concepção legislativa mais recente.

Com efeito, o direito de reserva sobre a

intimidade da vida privada constitui um

direito fundamental e simultaneamente

um direito de personalidade ligado de

forma estreita, directa e incidível à

pessoa. O tema da reserva da intimidade

da vida privada tem sido geralmente

debatido no quadro de situações

conflituais com o direito à liberdade de

expressão. Neste sentido, a abordagem

desta realidade representa tarefa tanto

mais complexa quanto é certo que se

encontram tantas vezes em conflito de

interesses, direitos e deveres de

indiscutível relevância e, por vezes, de

similar dignidade jurídico -

constitucional. A lei portuguesa

consagra o direito à reserva sobre a

intimidade da vida privada, incluindo-o

entre os chamados “direitos de

personalidade” (artigos 70.º a 80.º do

Código Civil). Estabelece então o artigo

80.ºdo Código Civil que: “1. Todos

devem guardar reserva quanto à

intimidade da vida privada de outrem;

2. A extensão da reserva é definida

conforme a natureza do caso e a

condição das pessoas.”

3. Dados Pessoais

Em teoria do direito, a defesa dos

interesses individuais em face da

informática é, frequentemente,

identificada com a matéria de “direitos,

liberdades e garantias” fundamentais

dos cidadãos, mais precisamente com a

protecção da “intimidade da vida

privada”, protegida como direito

fundamental pelas Constituições e pelos

textos internacionais relativos aos

direitos do homem4. É esta qualificação

que resulta da Convenção do Conselho

da Europa para a Protecção dos

Indivíduos face ao Processamento

Automático de Dados Pessoais de 1981.

Contudo, em contraste com a protecção

da vida privada surgem os dados

pessoais informatizados que constituem

informação susceptível de ser

conhecida. A protecção dos dados é

necessária porque, com o apoio da

informática, são utilizadas informações

relativas a pessoas, para diversos fins, e

se entende que essas práticas são, em

princípio, legítimas. Maria Eduarda

Gonçalves, defende que a divulgação ou

o acesso a dados pessoais, não seria

perigoso se não fosse o risco de estes

poderem ser utilizados abusivamente. A

4 Sobre o assunto pode ler-se: GONÇALVES,

Maria Eduarda, Novos Direitos e Formas de

Regulação da Sociedade de Informação,

Almedina, 2003, página 91

7

Page 8:  · Web viewO presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações

autora argumenta que o interesse

individual que merece protecção é o

interesse numa utilização condicionada

dos dados, referindo que os regimes de

protecção de dados pessoais são

formulados tendo em conta o seu

impacto na realização do princípio da

liberdade de informação, no sentido de

livre circulação no interesse das

actividades económicas. As legislações

actuais afastaram-se desta problemática

de protecção da intimidade da vida

privada e da protecção de dados

pessoais informatizados, tendendo

actualmente a especificar e autonomizar

a protecção dos últimos. Tal é o que tem

sucedido nas legislações nacionais que

têm vindo a tipificar as situações em

que são autorizados o registo e

tratamento de informáticos de

determinadas categorias de dados

pessoais, definem as regras aplicáveis à

recolha, tratamento e circulação deste

tipo de dados, estabelecem os direitos

que cabem aos indivíduos, instituem

mecanismos de controlo institucional e

estabelecem sanções penais aplicáveis

pela violação dos princípios e regras

contidos na legislação. Os documentos

fundamentais de Direito Internacional

sobre a protecção dos Direitos do

Homem não contêm referências

expressas à salvaguarda dos dados

pessoais. Protegem, em geral, a

privacidade, tendo a sua interpretação

ao longo dos tempos assimilado esse

aspecto particular. É o caso do artigo

12.º da Declaração Universal dos

Direitos do Homem, do artigo 17.º do

Pacto Internacional relativo aos Direitos

Civis e Políticos ou do artigo 8.º da

Convenção Europeia dos Direitos do

Homem. Contudo, no inicio dos anos

80, a Convenção 108 do Conselho da

Europa – Convenção para a protecção

das pessoas relativamente ao

Tratamento Automatizado de Dados de

Carácter Pessoal), aprovado em 1981

tornou-se um dos instrumentos

fundamentais da protecção de dados

pessoais, matriz de outros que lhe

seguiram. No Direito Comunitário, a

Directiva 95/46/CE, de 24 de Outubro,

relativa à protecção de pessoas

singulares no que diz respeito ao

tratamento de dados pessoais e à livre

circulação desses dados, veio procurar

conciliar o direito sobre informação

com o direito à circulação de

informação e influenciou decisivamente

o panorama do direito interno de todos

os países da União Europeia, obrigando

à adopção de normas jurídicas de

protecção de dados pessoais onde não as

havia, e uniformizando o nível de

protecção concedido por todos os

Estados-membros. Estabelecido esse

nível comum, a circulação da

8

Page 9:  · Web viewO presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações

informação passou a ser livre entre os

Estados–membros, mas a ter de

obedecer a especiais requisitos quando

exportada para países terceiros. Impacto

semelhante teve, ao nível das

comunicações electrónicas, a Directiva

2002/58/CE5, relativa ao tratamento de

dados pessoais e à protecção da

privacidade no sector das comunicações

electrónicas. Esta Directiva prevê

especificidades no tratamento de dados

pessoais no âmbito das comunicações

electrónicas, sem prejuízo da aplicação

genérica da Directiva 95/46/CE.

É importante referir uma significativa

alteração à Directiva 2002/58/CE que

teve como objectivo impor a

conservação de dados pessoais no sector

das comunicações electrónicas para

além do período necessário para o

estabelecimento da comunicação ou

facturação. Nos termos da Lei n. º

67/98, de 26 de Outubro, são dados

pessoais as informações, de qualquer

5 Note-se que já houve uma alteração a esta

Directiva, a 15 de Março de 2006, publicada no

Jornal Oficial das Comunidades Europeias de

13 de Abril de 2006, a Directiva de 2006/24/CE

relativa à conservação de dados gerados ou

tratados no contexto da oferta de serviços de

comunicações electrónicas publicamente

disponíveis ou de redes públicas de

comunicações. A versão final manteve as

soluções que constavam do Projecto de

Directiva.

natureza e independentemente do

respectivo suporte, incluindo som e

imagem, relativas a uma pessoa singular

identificada ou identificável, que será o

titular dos dados. Em Portugal, na

matéria de protecção de dados pessoais

a matriz fundamental é o artigo 35.º da

Constituição da República Portuguesa,

que constitui também matéria integrada

na área dos direitos, liberdades e

garantias pessoais6. Basicamente, é

ainda o respeito pela "reserva da vida

privada e familiar e pelos direitos,

liberdades e garantias fundamentais do

cidadão", que subjaz nesta matéria. Daí,

e, desde logo, a proibição constitucional

objecto do citado artigo 35.º

relativamente a informações de maior

sensibilidade, quais sejam "as

convicções filosóficas ou políticas,

filiação partidária ou sindical, fé

religiosa, vida privada e origem étnica,

salvo consentimento expresso do

titular", autorização legal "com

garantias de não discriminação" ou fins

estatísticos (n.º 3), bem como e,

consequentemente, a proibição de

"acesso a dados pessoais de terceiros,

salvo os casos excepcionais previstos

na lei" (n.º 4). Assim, o artigo 35.º da

6 Veja-se o Parecer da Comissão Nacional de

Protecção de Dados Pessoais Informatizados

(Actual CNPD) N.º 29/98, de 16.04.98.

9

Page 10:  · Web viewO presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações

Constituição da República Portuguesa

consagrou de forma pioneira na Europa,

um direito à protecção dos dados

pessoais – um direito à

autodeterminação informativa7 –

incluído no texto constitucional desde a

sua versão original de 1976. Este direito

de protecção da informação pessoal

vale, não apenas em face do uso dos

dados pessoais potenciado pela

informática, mas também em relação a

outros meios de tratamento dos mesmos

dados, designadamente quando são

constituídos ficheiros manuais. O

disposto no referido artigo encontrou

expressão, num primeiro momento, na

Lei n.º 10/91, de 29 de Abril (Lei da

Protecção de Dados Pessoais face à

Informática), que foi alterada pela Lei

n.º 28/94, de 29 de Agosto. Esta lei viria

a ser substituída pela Lei n.º 67/98, de

26 de Outubro, que transpôs para a

ordem jurídica portuguesa a Directiva

Europeia relativa à protecção das

pessoas singulares no que diz respeito

ao tratamento de dados pessoais e à

livre circulação desses dados. A

legislação actual representa, em certa

medida, como afirma Maria Eduarda

Gonçalves8, “uma liberalização do

regime da protecção de dados em

7 Neste sentido, CASTRO, Catarina Sarmento

e, Protecção de dados pessoais na Internet, in

sub judice n.º 35.

Portugal, por comparação com o

regime anterior”. O leque das

excepções admitidas encontra-se em

geral mais aberto, o que se explica pela

preocupação, mais forte, de balancear a

protecção dos dados pessoais com a sua

liberdade de circulação. Os princípios

gerais em que se funda a protecção de

dados pessoais em Portugal são,

segundo a Lei n.º 67/98, os princípios

da transparência e do respeito pelos

direitos, liberdades e garantias

individuais, designadamente o da

reserva da intimidade da vida privada.

Como se pode ler no artigo 2.º da

referida lei, “o tratamento de dados

pessoais deve processar-se de forma

transparente e no estrito respeito pela

reserva da vida privada, bem como

pelos direitos, liberdades e garantias

fundamentais”. Relativamente ao sigilo

profissional, dispõe o artigo 17.º, no seu

n.º 1, que “Os responsáveis do

tratamento de dados pessoais, bem

como as pessoas que, no exercício das

suas funções, tenham conhecimento dos

dados pessoais tratados, ficam

obrigados a sigilo profissional, mesmo

após o termo das suas funções”. No

entanto, esta obrigação genérica no

8 Sobre este assunto, veja-se novamente:

GONÇALVES, Maria Eduarda, Novos Direitos

e Formas de Regulação da Sociedade de

Informação, Almedina, 2003, página 108

10

Page 11:  · Web viewO presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações

tratamento de dados pessoais, não deixa

de ter as suas excepções9. De facto,

atente-se no disposto no artigo 17.º n.º3

da mesma Lei nº 67/98, que refere que

“o disposto nos números anteriores não

exclui o dever do fornecimento das

informações obrigatórias nos termos

legais”. Por seu turno, a Lei n.º

41/2004, de 18 de Agosto, relativa à

protecção da privacidade nas

comunicações electrónicas que transpôs

para a nossa ordem jurídica a Directiva

2002/58/CE, veio nas suas disposições

especificar e complementar o

estabelecido na Lei da Protecção de

Dados e aplica-se a “qualquer

informação trocada ou enviada entre

um número finito de partes mediante a

utilização de um serviço de

comunicações electrónicas acessível ao

público”. Note-se que esta lei estabelece

uma especial regulamentação,

designadamente em matéria de dados de

tráfego e dados de localização. São,

assim, exemplos de dados pessoais, os

dados de tráfego, os dados de bases e

ainda os dados de conteúdo e dados de

localização. Note-se, ainda, que o uso

ou o tratamento que é feito destes dados

possibilitam a identificação de uma

pessoa, mas está sujeito a regras que

9 Veja-se, neste sentido, o Acórdão da Relação

de Lisboa de 11-02-2011, disponível em

http://www.dgsi.pt//

pretendem compatibilizar a necessidade

que a sociedade actual tem de recolher,

organizar, conservar e de fazer circular

informações pessoais muitas vezes no

benefício da pessoa a que respeitam,

com a privacidade do titular desses

dados. No âmbito das comunicações

electrónicas, os dados pessoais em

poder de um operador de rede ou de

prestadores de serviços têm natureza

diversa. Logo, há dados que são

fornecidos pelo assinante que se

destinam pura e simplesmente a servir

de suporte à celebração do contrato

entre o cliente e o operador: os dados de

identificação e a morada10. Iremos então

dar continuidade a esta temática

abordando em especial os dados de

tráfego e os dados de base de acordo

com a problemática que lhes subjaz.

a) Dados de Tráfego

vs Dados de Base

10 Referem, Yves Poullet e Françoise Warrant

esses elementos «são fornecidos ao explorador

do serviço para efeitos do estabelecimento do

acordo (do contrato) de ligação à respectiva

rede ou atribuídos por este àquele (número de

acesso); como dados de natureza pessoal que

são, o seu titular deve sobre eles ter o direito de

reserva, especialmente no que respeita à

inscrição de tais elementos nas listas públicas.

Tal reserva determina que a inscrição desses

elementos nas listas públicas deva ter carácter

facultativo».

11

Page 12:  · Web viewO presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações

Pretendendo-se apurar a autoria dos

comentários difamatórios, teremos que

definir claramente os conceitos e

melhor estabelecer as diferenças entre

dados de base e dados de tráfego.

Benjamin Silva Rodrigues estabelece

essas diferenças através de um exemplo

prático. Nesse exemplo, o autor supõe

que alguém celebra um contrato com

um ISP para fornecimento de acesso à

internet, aí o particular estaria a fornecer

o que se denomina de dados de base. Já

na posse de todos os elementos

necessários para a ligação à internet,

essa pessoa envia uma mensagem de

correio electrónico a um amigo com o

seguinte teor: “Amanhã vamos jantar às

21 horas. Abraço. António”. A hora do

envio, o volume dos dados transmitidos,

o IP de origem e outros, serão, assim, os

dados de tráfego. Por fim, a mensagem

enviada integra-se no conceito de dados

de conteúdo.

No caso em apreço, apenas se pretende

obter a identificação dos utilizadores já

referidos que participaram no blog e o

que se discute é, exactamente, a questão

de saber se aquilo que se pretende

apurar diz respeito a dados de base ou a

dados de tráfego, isto porque não restam

dúvidas que não se trata de dados de

conteúdo, devido à própria natureza da

definição deste conceito. Face ao que

estamos a discutir, consideramos ser

pertinente socorrermo-nos do Acórdão

486/2009, do Tribunal Constitucional,

que faz referência a dois Pareceres da

Procuradoria-Geral da República: o

Parecer N.º 16/94 e Parecer N.º

21/2000. Desta forma, e em harmonia

com estes Pareceres, no serviço das

telecomunicações, podem distinguir-se

três tipos de dados ou elementos:

Dados de Base – estes dados

constituem-se na perspectiva dos

utilizadores, constituindo

elementos necessários de acesso

à rede, designadamente através

da ligação individual e para

utilização própria do respectivo

serviço. O que interessa,

essencialmente, é o número e os

dados através dos quais o

utilizador tem acesso no serviço.

Os dados de base são elementos

necessários ao estabelecimento

para comunicação.

Dados de Tráfego – estes dados,

por sua vez, correspondem a

elementos funcionais da

comunicação. Constituem

elementos funcionalmente

necessários ao estabelecimento e

à direcção da comunicação.

Identificam ou permitem

identificar a comunicação:

quando conservados,

possibilitam a identificação das

12

Page 13:  · Web viewO presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações

comunicações entre o emitente e

o destinatário, a data, o tempo e

a frequência das ligações

efectuadas. São, assim,

elementos inerentes à própria

comunicação, na medida em que

permitem identificar, em tempo

real ou a posteriori, os

utilizadores, o relacionamento

directo entre uns e outros através

da rede, a localização, a

frequência, a data, a hora e a

duração da comunicação. Estes

dados devem participar das

garantias a que está submetida a

utilização do serviço,

especialmente tudo o que

respeite ao sigilo das

comunicações.

Dados de Conteúdo – estes

dados são relativos ao próprio

conteúdo da mensagem de

correspondência enviada através

da utilização da rede.

O Acórdão do Tribunal da Relação do

Porto, de 25-09-2002, refere: “Nos

serviços de telecomunicações

distinguem-se três espécies de dados: os

relativos à conexão à rede, ditos dados

de base; os dados funcionais

necessários ao estabelecimento de uma

ligação ou comunicação e os dados

gerados pela utilização da rede (por ex.

localização do utilizador e do

destinatário, duração de utilização,

data e hora, frequência) chamados

dados de tráfico; e os dados relativos

ao conteúdo da comunicação ou da

mensagem, os dados de conteúdo.

Os dados de base constituem os

elementos necessários ao acesso à rede,

designadamente através da ligação

individual e para utilização própria do

respectivo serviço; como dados de

natureza pessoal, o seu titular deve ter

sobre eles o direito de reserva.

Os elementos de informação relativos

aos dados de base (designadamente a

identificação do utilizador e sua

morada), tendo em consideração que o

sigilo profissional em causa releva de

um simples interesse privado do

utilizador, que não contende com a sua

esfera privada íntima, deverão ser

comunicados, a pedido de qualquer

autoridade judiciária, para fim de

investigação criminal, por apelo ao

preponderante dever de cooperação

com a justiça.” Já no Acórdão da

Relação de Évora, de 26-06-2007,

podemos ler: “1. A propósito da

protecção de dados pessoais nos

serviços de telecomunicações podem

distinguir-se fundamentalmente três

espécies de tipologias de dados ou

elementos; os dados relativos à conexão

à rede, ditos dados de base; os dados

13

Page 14:  · Web viewO presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações

funcionais necessários ao

estabelecimento de uma ligação ou

comunicação e os dados gerados pela

utilização da rede (por exemplo,

localização do utilizador, localização

do destinatário, duração da utilização,

data e hora, frequência), dados de

tráfego; dados relativos ao conteúdo da

comunicação ou da mensagem, dados

de conteúdo.

2. Os dados de base constituem os

elementos necessários ao acesso à rede,

são prévios e instrumentos de qualquer

comunicação, já os chamados “dados

de tráfego” e os “dados de conteúdo”

têm a ver directamente com a

comunicação.

3. A informação sobre os pontos de

acesso à Internet a determinada conta,

em certo período de tempo, respeita aos

chamados “dados de tráfego” e não aos

“dados de base”, na medida em que os

primeiros permitem identificar os

utilizadores da rede, a localização, a

data, a hora e a duração da

comunicação. 4. Tratando-se de

elementos inerentes à própria

comunicação, estes estão sujeitos ao

sigilo das telecomunicações e gozam

das mesmas garantias de

inviolabilidade dos dados de conteúdo,

nos termos das disposições conjugadas

dos citados artigos 34º n.º 1 e 4 da

CRP, 27º n.º 1 al. g) da Lei 5/2004 de

10/2 e 4º da Lei 41/2004 de 18/8.

5. No plano do direito processual penal

os dados em causa só poderão ser

fornecidos a pedido do juiz de instrução

ou através de autorização deste, desde

que legalmente admissíveis nos termos

previstos nos artigos 187º e 190º do

CPP (artigo 269º n.º 1 al. c) do mesmo

Código). 6. O crime de acesso ilegítimo

pelo artigo 7º n.º 1 da Lei 109/91 de

17/8, ao qual corresponde, em

abstracto, pena de prisão até 1 ano ou

pena de multa até 120 dias, não se

enquadra no catálogo de crimes

previstos no artigo 187º do CPP em

relação aos quais é admissível a

intercepção e a gravação de

conversações ou comunicações, daí que

a obtenção dos referidos elementos seja

legalmente inadmissível.”.

No caso sub judice, a pretensão do

Ministério Público, não se fica por saber

quais os protocolos de internet usados

num concreto blog. Na verdade, o

Ministério Público vai mais longe, no

sentido de apurar e obter os respectivos

grupos data-hora associados à colocação

de comentários num preciso site. Se o

Ministério Público se limitasse a querer

saber quais os IP’s usados, não

restariam dúvidas que estaríamos

perante dados de base. Porém, o

Ministério Público visa a identificação

dos respectivos utilizadores de contas

14

Page 15:  · Web viewO presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações

que participam nos blogs associados ao

mencionado site, com recurso aos

endereços de IP que pertencem a ISP’s

sedeados em Portugal. Torna-se claro

que, o Ministério Público pretende

objectivamente saber a identificação dos

autores das mensagens colocadas no

blog. Deste modo, vai-se mais além do

que os dados de base, estando, na

verdade, em causa, dados de tráfego que

comportam a identificação de quem fez

a comunicação e cujo acesso só é

possível através de autorização do JIC.

No âmbito da Directiva 2002/58/CE –

Directiva Comunitária respeitante à

Protecção de Dados Pessoais – apenas

se faz referência aos Dados de Tráfego:

estes “são quaisquer dados tratados

para efeitos do envio de uma

comunicação através de uma rede de

comunicações electrónicas ou para

efeitos da facturação da mesma” (artigo

2º alínea b). No Considerando 15 da

referida Directiva estabelece-se que os

Dados de Tráfego “podem ser,

nomeadamente, relativos ao

encaminhamento, à duração, ao tempo

ou ao volume de uma comunicação, ao

protocolo utilizado, à localização do

equipamento terminal do expedidor ou

do destinatário, à rede de onde provém

ou onde termina a comunicação, ao

início, fim ou duração de uma ligação”.

Nota-se que se incluem aqui os dados

identificativos, pois, só a possibilidade

de identificar o titular dos dados,

transformará esta informação em

informação de carácter pessoal, objecto,

por isso, de especial protecção das

Directivas Comunitárias respeitantes à

protecção de dados pessoais.

4. Sigilo das

Comunicações

O Segredo Profissional consiste na

proibição da revelação de factos ou

acontecimentos de que se teve

conhecimento por via de relação de

confiança, estabelecida no exercício de

uma actividade profissional.

Segundo o Parecer N.º 00735, da

Procuradoria - Geral da República, “o

conteúdo do direito ao sigilo da

correspondência e de outros meios de

comunicação privada abrange toda a

espécie de correspondência de pessoa a

pessoa (cartas, postais, impressos),

cobrindo mesmo as hipóteses de

encomendas que não contêm qualquer

comunicação escrita, e todas as

telecomunicações (telefone, telegrama,

telefax, etc.). A garantia do sigilo

abrange, não apenas, o conteúdo da

correspondência, mas o "tráfego" como

tal (espécie, hora, duração, intensidade

de utilização) ”.

15

Page 16:  · Web viewO presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações

O n.º 1 do artigo 135.º do CPP

estabelece que: “Os ministros de

religião ou confissão religiosa, os

advogados, os médicos, os jornalistas,

os membros de instituições de crédito e

as demais pessoas a quem a lei permitir

ou impuser que guardem segredo

profissional podem escusar-se a depor

sobre os factos abrangidos por aquele

segredo”.

Segundo o Parecer N.º 00652 da

Procuradoria - Geral da República a

garantia do sigilo estende-se não só ao

conteúdo da correspondência como

também àquilo que é designado por

tráfego, como é o caso da espécie,

tempo em que ocorre, duração e

intensidade de utilização. O referido

parecer acrescenta que “o direito ao

sigilo das telecomunicações implica a

proibição de devassa do seu conteúdo e

da sua divulgação por quem a eles

tenha acesso”. Com a proibição de

ingerência tem-se em vista a

salvaguarda da liberdade de comunicar

e a proibição de nela intervir. Só no

domínio do processo penal é que a lei

ordinária pode prever restrições à

referida garantia.

O citado parecer estabelece ainda que o

direito ao sigilo das comunicações

privadas implica, para terceiros, a

obrigação de não as devassar e, no caso

de acesso a elas, lícito ou ilícito, de não

divulgarem o seu conteúdo. O direito à

comunicação privada sem intromissões

não consentidas é, pois, em regra,

inviolável11. Contudo, este dever de

segredo profissional não é absoluto,

devendo ceder a outro dever que lhe

deva prevalecer e que com ele seja

conflituante como sucede nos casos em

que está em causa a investigação sobre a

prática de um crime. Analisado o

regime de protecção de dados pessoais,

resulta claro que existem diferentes

tipos de dados que têm níveis diferentes

de protecção.

O artigo 7.º, da já citada Lei n.º 67/98,

prevê especial protecção e dignidade

aos dados sensíveis. Esta distinção

releva, uma vez que o grau de protecção

conferido aos diversos tipos de dados é

distinto. Considera-se que o sigilo

profissional não deverá ser

sobrevalorizado ao ponto de impedir a

prestação da “identificação” e

“morada”, até porque a sua revelação

aos presentes autos não colidirá com a

ratio do regime da confidencialidade.

No caso sub judicio, estamos na

presença de dois valores em conflito: o

dever de sigilo profissional e o dever de

colaboração com a administração da

justiça (artigo 519.º CPC). Sobre esta

matéria revela-se útil a análise do

11 Veja-se o Parecer N.º 00652 da Procuradoria-

Geral da República.

16

Page 17:  · Web viewO presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações

Parecer nº 21/2000 da Procuradoria-

Geral da República12. Em fls. 52 do

referido Parecer nº 21/2000 é referido

que, “tratando-se de dados de base

abrangidos pelo sigilo profissional (…)

cabe, em regra, às entidades

requisitadas fornecer as informações

solicitadas, por apelo ao preponderante

interesse da cooperação com a

administração da justiça”. Contudo,

aqui já se reconheceu que não estamos

perante dados de base, mas sim dados

de tráfego, pelo que esta argumentação

não relevará. Efectivamente, do

conjunto de elementos legislativos

mencionados ao longo deste texto pode

afirmar-se, em termos sintéticos, que o

sigilo das telecomunicações pode

envolver uma acepção de segredo

profissional, incidindo sobre as

entidades que no exercício das suas

funções vêm a ter conhecimentos de

informações relativas aos utilizadores e

uma acepção de confidencialidade por

inviolabilidade das comunicações,

designadamente dos respectivos dados

de tráfego, salvaguardada “nos termos

da legislação aplicável.”. O artigo 34.º,

n.º 4, da Constituição da República

Portuguesa, sob a epígrafe de

inviolabilidade do domicílio e da

correspondência, estabelece que “é

proibida toda a ingerência das

12 Disponível em http:// www.dgsi.pt//

autoridades públicas na

correspondência, nas telecomunicações

e nos demais meios de comunicação,

salvos os casos previstos na lei em

matéria de processo criminal”.

Em matéria de restrições à

inviolabilidade das telecomunicações

previstas no processo criminal, o artigo

189.º do CPP, estatui o seguinte:

“1. O disposto nos artigos 187.º e 188.º

é correspondentemente aplicável às

conversações ou comunicações

transmitidas por qualquer meio técnico

diferente do telefone, designadamente

correio electrónico ou outras formas de

transmissão de dados por via

telemática, mesmo que se encontrem

guardadas em suporte digital, e à

intercepção das comunicações entre

presentes. 2. A obtenção e junção aos

autos de dados sobre a localização

celular ou de registos da realização de

conversações ou comunicações só

podem ser ordenadas ou autorizadas,

em qualquer fase do processo, por

despacho do juiz, quanto a crimes

previstos no n.º 1 do artigo 187.º e em

relação às pessoas referidas no n.º4 do

mesmo artigo.”

O registo da realização de

“comunicações”, a que se alude neste

artigo 189.º do Código de Processo

Penal, e que fica submetido às regras de

admissibilidade das escutas telefónicas,

17

Page 18:  · Web viewO presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações

previstas nos artigos 187.º e 188.º do

mesmo Código, é o registo que respeita

aos dados de tráfego das comunicações

electrónicas, isto é, às ligações do

computador a um fornecedor de serviço

de acesso à internet13. Equiparam-se,

assim, no artigo 189.º do CPP, para

efeitos de obtenção e junção aos autos,

os dados de tráfego aos dados de

conteúdo, que constituem o núcleo mais

fundamental das telecomunicações. O

disposto nos artigos 189.º e 269.º, n.º 1,

al. e), do Código de Processo Penal, está

em consonância com o artigo 9.º da Lei

n.º 32/2008, de 17 de Julho, sobre a

entidade competente e os termos em que

se podem obter dos operadores de

telecomunicações informações sobre

dados de tráfego relativos a

comunicações electrónicas. Também o

artigo 18.º, n.º 4 da Lei n.º 109/2009, de

15 de Setembro, que aprovou a Lei do

Cibercrime, estabelece que “Em tudo o

que não for contrariado pelo presente

artigo, à intercepção e registo de

transmissões de dados informáticos é

aplicável o regime da intercepção e

gravação de conversas ou

comunicações telefónicas constantes

dos artigos 187.º, 188.º e 190.º do

Código de Processo Penal.”.

13 Cfr. ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, in

Comentário do Código de Processo Penal,

UCE, pág. 518

Ainda se defendeu, no Parecer da PGR

n.º 21/2000, que na fase de inquérito, os

elementos de informação sujeitos ao

sigilo das telecomunicações “quando

atinentes a dados de tráfego ou a dados

de conteúdo, apenas poderão ser

fornecidos às autoridades judiciárias,

pelos operadores de telecomunicações,

nos termos e modos em que a lei de

processo penal permite a intercepção

das comunicações, dependendo de

ordem ou autorização do juiz de

instrução (artigos 187.º, 190.º e 269.º,

n.º1, al. c), do Código de Processo

Penal).

Conclui-se que sempre que estiver em

causa o fornecimento de dados (sejam

eles quais forem), relativos a

comunicações, como acontece no caso

em análise, apenas o Juiz de Instrução

pode ordenar o seu fornecimento,

verificados os pressupostos legais. No

caso em análise, estando perante “dados

de tráfego”, cujo acesso só é possível,

nos termos legais, através de

autorização do JIC, é-lhes aplicável o

regime do artigo 187.º, por remessa do

artigo 189.º do CPP. O argumento é

exactamente o da equiparação do crime

de difamação ao crime de injúria, sob

pena de, como refere o Tribunal da

Relação de Guimarães, doutra forma, a

prática dum crime de injúrias por via

telemática só seria possível aquando de

18

Page 19:  · Web viewO presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações

uma videoconferência, situação

completamente restritiva e injustificada.

O incidente de quebra de sigilo

profissional está dividido em duas fases,

a questão da legitimidade da escusa que

é tratada no n.º 2 do artigo 135.ºdo CPP

e a questão da justificação da escusa que

é tratada no n.º 3 do mesmo artigo. A

resolução destas questões foi

intencionalmente separada pelo

legislador, conferindo competência para

decidir a questão da legitimidade da

escusa ao tribunal de primeira instância

e competência para decidir a questão da

justificação da escusa apenas ao tribunal

superior. No presente caso, já tendo sido

suscitado o incidente de levantamento

de sigilo profissional, em primeira

instância, é pedido, agora, ao tribunal de

recurso que aprecie essa decisão.

Nos termos do n.º 3 do artigo 135.º do

Código do Processo Penal, estabelece a

referida norma que “o tribunal

imediatamente superior àquele onde o

incidente se tiver suscitado, ou, no caso

de o incidente se ter suscitado perante o

Supremo Tribunal de Justiça, o pleno

das secções criminais, pode decidir da

prestação de testemunho com quebra do

segredo profissional sempre que esta se

mostre justificada, segundo o princípio

da prevalência do interesse

preponderante, nomeadamente tendo

em conta a imprescindibilidade do

depoimento para a descoberta da

verdade, a gravidade do crime e a

necessidade de protecção de bens

jurídicos. A intervenção é suscitada

pelo juiz, oficiosamente ou a

requerimento.” Efectivamente, o n.º 3

do preceito citado debruça-se sobre uma

segunda fase do incidente de prestação

de depoimento em casos de segredo

profissional e que surge num momento

posterior, ou seja, quando a autoridade

judiciária, aceitando que a escusa de

depor é legítima, pretende, contudo,

que, dado o interesse da investigação, se

quebre o segredo profissional,

obrigando-se o escusante a depor14. Ou

seja, quando a descoberta da verdade, a

gravidade e a necessidade de protecção

de bens jurídicos, seja preponderante,

pode e deve haver quebra de sigilo

profissional. Com efeito, as

necessidades de perseguição penal, de

obtenção de provas, de que depende a

administração da justiça penal, assaz

essencial ao desenvolvimento tanto

quanto possível harmónico da sociedade

politicamente organizada, justificam, a

compressão do direito individual à

comunicação reservada, naturalmente

em razão da natureza axiológica deste

último direito e necessariamente em

termos de proporcionalidade. Foi neste

sentido o Tribunal da Relação de

14 Acórdão da Relação de Lisboa de 21-06-2006

19

Page 20:  · Web viewO presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações

Lisboa, no seu Acórdão de 27 de

Setembro de 2007, ao referir que “a

identificação de utilizador de certo

endereço de IP, que em concretas horas

e datas teve acesso ao sistema de banca

electrónica X, via Internet e que

utilizando abusivamente as credenciais

do queixoso, procedeu à transferência

de valores de contas daquele queixoso,

só pode ser obtida por acesso a dados

de tráfego”. O Tribunal refere que estes

elementos estão protegidos pelo sigilo

das telecomunicações, previsto nas Leis

n.º 91/97 e n.º 69/98. Contudo, e esta é a

parte importante, entende o Tribunal

que se justifica no caso, a quebra de

sigilo a que se refere o artigo 135.º do

CPP, com a prestação das informações

por parte da PT, por ser manifesta a

prevalência do interesse da vítima, que

figura como titular dos valores que o

sigilo dos serviços de telecomunicações

visa proteger. No caso em apreço, o

Tribunal entendeu que os elementos

documentais solicitados à PT, sendo

necessários à investigação em curso,

não traduzem uma intromissão ou

devassa, como a que se patenteia

quando se pretende o registo de

conteúdo da própria conversação ou

comunicação. Contudo, consideramos

que terá sempre de se recorrer ao

mecanismo previsto no n.º 3 do artigo

135º do CPP, dado que, é difícil

justificar a quebra de sigilo apenas com

base no n.º 2 do mesmo artigo, ou seja,

através de fundadas dúvidas acerca da

legitimidade da escusa do sigilo.

IV. Apreciação Crítica

da decisão do caso

Sub Judice

Depois de tudo o que foi exposto até

então, cumpre agora apreciar a decisão

do Acórdão analisado. Como primeira

conclusão, concordamos com o

entendimento do Acórdão de que os

dados em questão são efectivamente

dados de tráfego. Em ordem a apurar o

registo da realização das intervenções,

bem como, a identificação dos

respectivos autores, a PJ solicitou à PT

a identificação dos Protocolos de

Internet, com referência ao grupo data-

hora, associados à colocação dos

comentários no site, bem como, os

relativos à criação das contas referidas,

assim como a identificação e contacto

do responsável do fórum. Os elementos

pretendidos pelo Ministério Público, na

linguagem das telecomunicações,

devem ser compreendidos nesta

categoria de “elementos de tráfego, ou

elementos funcionais da comunicação”,

porquanto são apenas necessários ao

estabelecimento e à direcção da

comunicação, e quando conservados,

20

Page 21:  · Web viewO presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações

possibilitam a identificação das

comunicações entre o emitente e o

destinatário, a data, o tempo e a

frequência das comunicações. Quanto

ao facto de a Directiva apenas fazer

referência aos dados de tráfego, não

mencionando, sequer, os dados de base,

cremos que tal opção é feita por o

legislador comunitário entender que os

dados ditos de tráfego englobam em si

mesmo os dados de base. Quer-se com

isto dizer que o legislador terá

entendido que os dados de base não se

poderão dissociar dos dados de tráfego,

pelo que quando se tem acesso à

informação que estes últimos contêm,

ter-se-á acesso, também, à informação

relativa aos dados de base. Ao

acreditarmos que terá sido este o

espírito do legislador europeu, não

poderemos deixar de concordar com tal

entendimento, na medida em que não

fará sentido permitir o acesso aos dados

de tráfego sem a possibilidade de,

consequentemente, se aceder aos dados

de base. Aliás, o acesso a estes, não

depende de autorização, no caso

português do JIC, pelo que a questão de

tal autorização apenas se coloca, no que

diz respeito aos elementos que não

estejam já presentes nos dados de base e

que serão, assim, considerados

elementos relativos a dados de tráfego.

O fornecimento de dados de tráfego

está, deste modo, sujeito à autorização.

Importa, neste sentido, falar do sigilo

profissional a que estes dados estão

confinados, sendo que a garantia deste

segredo se estende “não só ao conteúdo

da correspondência como também

àquilo que é designado por tráfego,

como é o caso da espécie, tempo em que

ocorre, duração e intensidade de

utilização.” Num Estado de Direito

Democrático “o programa político -

criminal deve ser ponderado de modo a

garantir o conteúdo essencial dos

direitos fundamentais.”15 Além disso, a

proibição de restrições deve ser

analisada à luz do princípio da

proporcionalidade. O artigo 18.º n.º 2 da

CRP, só permite a restrição dos direitos,

liberdades e garantias, nos casos

expressamente previstos na

Constituição, devendo limitar-se ao

necessário para salvaguardar outros

direitos ou interesses

constitucionalmente protegidos. Por sua

vez, o artigo 272º da CRP, no seu n.º3,

decreta que a prevenção de crimes só

pode fazer-se com respeito pelos

direitos, liberdades e garantias dos

cidadãos.

Posto isto, se apenas tivéssemos em

conta os dois primeiros números do

15 Acórdão do Tribunal Constitucional de 12 de

Agosto de 1993

21

Page 22:  · Web viewO presente comentário visa analisar as questões tidas como relevantes no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010. No âmbito das Comunicações

artigo 135º do Código de Processo

Penal, concluiríamos que, estando

perante dados de tráfego, não seria

possível o acesso a estes, pelo que a PT

não poderia fornecê-los. Contudo, como

já mencionámos por diversas vezes, o

número 3 daquele artigo, apresenta-se

como uma excepção a este princípio,

permitindo, assim, que “sempre que se

mostre justificada, segundo o princípio

da prevalência do interesse

preponderante” pode haver quebra do

sigilo profissional. Discordamos, deste

modo, com o argumento do Tribunal da

Relação de Guimarães, de revogar a

decisão recorrida, pelo facto de os

elementos documentais solicitados

serem necessários à investigação em

curso, não se traduzindo numa

“intromissão ou devassa como a que se

patenteia quando se pretende o registo

de conteúdo da própria conversação ou

comunicação”. Entendemos que o

Tribunal não fundamenta

adequadamente a sua decisão e que o n.º

3 do 135º deve ser o meio e não o

instrumento subsidiário para a quebra

do referido incidente de sigilo

profissional.

Ana Mendonça Lopes (n.º 001224)

Patrícia Pacheco Tomé (n.º 001221)

Pedro Vaz de Almada (n.º 001294)

22