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NILO ODALIA GILBERTO FREYRE UMA INTERPRETAÇÃO ETNO-CULTURAL DO BRASIL introd01.p65 19/7/2001, 11:57 1

00185 - Gilberto Freyre - Uma Interpretação Etno-Cultural do Brasil

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N I L O O D A L I A

G I L B E R T O F R E Y R E– U M A I N T E R P R E T A Ç Ã O

E T N O - C U L T U R A L D O B R A S I L

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expediente

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S U M Á R I O

PREFÁCIO 5INTRODUÇÃO 7

CAPÍTULO ICONTEXTO HISTÓRICO 15

Gilberto Freyre e a historiografia brasileira 21

CAPÍTULO IINOS TRÓPICOS,UMA NOVA SOCIEDADE 25

CAPÍTULO IIIO HOMEM BRASILEIRO 39

i. O indígena na sociedade híbrida 41ii. O papel do português 44

a. posição geográficae heterogeneidade étnica 44

b. o papel da religião católicae de sua hierarquia 48

iii. O papel do negro 51

CAPÍTULO IVOS VALORES ETNO-CULTURAISDA NOVA SOCIEDADE 57

Considerações finais 66

BIBLIOGRAFIAS 71

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P R E F Á C I O

Este ensaio foi escrito originalmente para umacoleção destinada a oferecer ao público leitor as obrasmais significativas dos cientistas sociais brasileiros. Estaa razão pela qual este ensaio em, primeiro lugar, tem umacentuado caráter didático; em segundo, baseia-se, qua-se que exclusivamente, na obra fundamental de Gilber-to Freyre: Casa Grande & Senzala.

Como direi mais adiante, embora nosso autor te-nha uma obra vasta e diversificada, Casa Grande & Senza-la, apesar de ser seu primeiro ensaio, é, inquestionavel-mente, seu livro mais importante e significativo.

Preferi, em conseqüência, manter a forma e a es-trutura originais deste trabalho, pois espero que assimatinja um maior número de leitores, especialmente o nãoespecialista, o chamado “leigo culto” que tem interessepelos autores de seu país.

Tomo a liberdade de oferecer este livro às pessoasque me são caras, minha esposa, Therezinha, e às minhasnetas e neto, Júlia, Lucas, Izabela e a pequeninha Ana,de apenas um ano.

Obrigado,São Paulo, maio de 2001.

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I N T R O D U Ç Ã O

Á pergunta Por que lemos um determinado livro?, pode-mos dar diferentes e, às vezes, contraditórias respostas.Creio, porém, que ela deve ser constantemente formu-lada, pois é através dela que podemos recuperar nossaprópria autobiografia intelectual e tentar compreenderos problemas que vivíamos (e que vivemos). E, não me-nos importante, nos compreender como um indivíduosingular, cheio de dúvidas e incertezas, à busca de ver-dades e, talvez, de segurança, num mundo feito de areiamovediça, cujas faces se revelam diferentemente, segun-do o nosso tempo de duração.

Em nossa adolescência, José de Alencar e Joa-quim Manoel de Macedo podem estimular nossa imagi-nação romântica e instigam a que sonhemos com umamor único e eterno; Jorge Amado (Jubiabá e Capitães deAreia) nos põe frente a uma realidade que, freqüentemen-te, ou desconhecemos ou deixamos de ver, por como-dismo; na maturidade, o Machado de Assis de Dom Cas-murro, com ironia e espírito, apenas nos confirma o quea vida nos ensinara.

Com eles descobrimos a literatura e, por quenão?, nossa própria imaginação. Pelas suas mãos, trilha-mos novos caminhos que nos levam a Stendhal, Proust,

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Kafka, Faulkner, aos sempre eternos clássicos Homero,Ovídio e de cada um extraímos experiências que de ou-tra maneira não teríamos e vemos o mundo que nos ro-deia de maneira diversa, cuja complexidade e emaranha-do aguçam nossa curiosidade e inteligência, poisqueremos compreendê-lo e, se possível, explicá-lo.

Explicar o mundo, este o grande desafio a que nospropomos numa determinada fase de nossa vida, quepode variar de pessoa para pessoa, mas que fatalmenteum dia tomba sobre nossa cabeça. Quando isto aconte-ce, buscamos naqueles escritores que chamamos de ci-entistas sociais, incluindo, evidentemente, os filósofos,respostas a questões que vão desde o que é a vida, a mor-te, até, o que pode parecer mais prosaico, mas não é, ode se saber o que somos como membros de uma comu-nidade determinada, o fato de pertencer a um país, cujahistória, afinal, condiciona o que sou, ou, mais generi-camente, o que somos. Então, voltamos nossa atençãopara os historiadores, os sociólogos, os antropólogos eos outros cientistas sociais que tiveram a mesma inquie-tação, as mesmas dúvidas e incertezas, a mesma necessi-dade de explicar-se, tentando conhecer-se pelo mundoque os rodeia.

É natural que assim ajamos, pois logo percebemosque para refletir sobre um problema não é suficientecontarmos apenas com os dados que a experiência pes-soal nos fornece. Mesmo porque ao limitar sua reflexãosomente às suas próprias experiências e concepções, ohomem perde de vista a riqueza e a diversidade de vi-sões que os outros podem lhe proporcionar – e comoconseqüência podemos adquirir alguns dos piores males

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que afligem o homem: a intolerância, a intransigência eo dogmatismo.

Das ciências sociais, a história é uma das mais atra-tivas e por várias razões. Antes de mais nada, por seruma narrativa. Significativa, diz um teórico inglês e comisso ele quer dizer que o objetivo do historiador não é omesmo de um romancista. A este não importa a veraci-dade do que conta, mas o enredo, a tensão, as emoções eos sentimentos que pode despertar. Ele, sem dúvida, nosrevela o que é o homem nos seus traços fundamentais,explorando, na expressão de Sartre, as situações-limites,nas quais pode utilizar de maneira mais livre e profun-damente sua imaginação, visando o conhecimento dohomem e do humano.

As situações-limites não existem apenas na ficção,elas são uma constante na vida do homem. Todos nós jáas experimentamos, o que muito provavelmente não fi-zemos é transformá-las de uma experiência única e pes-soal num paradigma de caráter geral, – tarefa do poeta edo romancista.

A história também se interessa e vivamente pelofato ou acontecimento único, contudo, o historiador senega a generalizações e prefere dirigir seu esforço no sen-tido de reconstruir, através da gênese, desenvolvimentoe continuidade (categorias da análise histórica), o acon-tecimento. Quando o consegue, presume ter encontra-do a verdade histórica. Essa a sua principal preocupação,a de atingir a verdade histórica.

A história como todo conhecimento científicobusca a verdade; sua diferença em relação às chamadasciências exatas está em que tenta demonstrá-la, atravésde uma narrativa significativa e argumentativa.

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A racionalidade da argumentação é um traço mar-cante da narrativa histórica. Os fatos devem ser encadea-dos numa relação de causa e efeito, que pode nos auxiliara compreender o que sucedeu na história. Para ilustra-ção do que dizemos, tomemos como exemplo uma afir-mação do nosso autor, Gilberto Freyre, e vejamos comoele constrói seu raciocínio. No primeiro capítulo de CasaGrande & Senzala, ele afirma que uma das característicasdo povo português é a sua mobilidade (efeito) que, por suavez, está vinculada ao fato histórico do povo portuguêster o semita (causa) como um dos formadores de suaetnia1. Mas no caso de Gilberto Freyre podemos ir maislonge, porque diferentemente de muitos autors sua obraé construída não passo-a-passo até chegar a uma conclu-são. Ele parte de uma afirmação categórica de que por-tugueses, índios e negros, construíram nos trópicos umasociedade nova, agrária, híbrida e escravocrata, caben-do-lhe, então, a tarefa da demonstração.

Contrariamente ao que ocorre com os fenômenosfísicos, a ocorrência do fenômeno histórico está intima-mente relacionado ao contexto em que ocorre. Por isso,compreender um acontecimento social, cultural ou po-lítico relevante significa também inseri-lo no contextoem que aconteceu.

1 Convém aqui notar que a noção de causalidade na histórianão tem a mesma conotação que nas ciências físico-matemá-ticas. Nestas, o determinismo físico é um dos fundamentosda causalidade, de maneira que a uma mesma causa deve cor-responder o mesmo efeito. Essa determinação não existe nahistória. Historiadores distintos poderão apontar causas dis-tintas para a explicação de um mesmo fenômeno histórico.

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Casa Grande & Senzala não é apenas uma interpre-tação do Brasil, de um certo historiador; é uma obra quepode e deve ser lida também como a expressão, ao níveldo imaginário, dos problemas que afetaram a sociedadebrasileira num determinado momento histórico.

O historiador elabora sua obra fazendo pergun-tas ao passado que se originam dos problemas vividospor sua sociedade no presente. Ele não busca soluçõesno passado, seu interesse é em saber se problema similarjá ocorreu anteriormente, com isso ele reconstrói a ima-gem que temos da sociedade passada e amplia o repertó-rio de informações que poderão auxiliar na compreen-são e, eventualmente, na solução de um problema dasociedade a que pertence. Marrou, o historiador francês,resumiu, de maneira didática, essa relação numa fórmu-la matemática: H (história) = P/p, na qual P é o passado ep é o presente. A história é igual o passado em funçãodo presente. Contudo, essa equação de Marrou estariaincompleta senão lhe agregássemos como o faz nossoautor o futuro. Não no sentido de tentar antecipá-lo,pois isso seria temerário, mas como um gancho ao qualse apega para melhor compreender seu presente2 .

2 Ao apontar em W.I. Thomas (The relation of Research to theSocial Process) a ausência do futuro em suas considerações so-bre a história, diz o nosso autor: “compreende-se nosso repúdio aThomas na parte em que esse grande renovador dos modernos estudos soci-ais deixou de revelar essa sensibilidade moderna ao tempo, para mostrar-se apegado ao sentido clássico do passado como experiência humana socio-logicamente dependente do presente; e não interdependente com relação aomesmo presente e ao próprio futuro” (FREYRE, Gilberto. Ordem eProgresso. 4ª ed. Rio de Janeiro, Record, p. clxviii-clxix).

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Se o historiador está ou deve estar tão arraigadono presente, a fim de realizar sua obra, ele se transfor-ma, quer queira ou não, em um documento, num mo-numento, num registro de seu tempo. Ele nos dá, seaprendermos a ler as entrelinhas de sua obra, elementosque nos informam sobre os problemas e questões queafetam ou afetavam os homens de sua época. Para tan-to, se torna necessário encontrar uma metodologia ade-quada, não só ao autor, mas para nós mesmos.

Em meus livros, tenho utilizado o chamado estru-turalismo genético, método desenvolvido por LucienGoldmann, em cujo centro se encontra o conceito devisão de mundo, que nada mais é do que o conjunto deidéias, sentimentos, projetos e ideais que tornam possí-vel a existência de um grupo social.

No plano do imaginário, essa visão do mundo seconsubstancia nas obras dos escritores, de todas as espé-cies, que a revelam, de maneira geral, paulatinamente.

Na maioria dos autores, a visão de mundo apenasse completa e concretiza em suas obras da maturidade.Gilberto Freyre é uma exceção a essa regra, pois CasaGrande & Senzala é, ao mesmo tempo, sua primeira obrae onde se realiza de maneira cabal sua visão de mundo,que denominamos de etno-cultural.

Embora não seja autor de uma obra única, ele opoderia ser e assim mesmo seu lugar na historiografiabrasileira já estaria assegurado. As demais obras de Gil-berto ou são um complemento de sua obra fundamen-tal (Sobrados e Mocambos e Ordem e Progresso), ou dela se des-viam, pouco acrescentando a sua visão de mundo.

Nos meus estudos sobre Varnhagen e OliveiraVianna, afirmava que com Gilberto Freyre esses três

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INTRODUÇÃO 13

autores pertenciam a uma mesma corrente historiográ-fica, pois tinham como problema central compreendercomo se formava, ou estava se formando, a Nação, oEstado, o Homem brasileiro e, enfim, a própria socie-dade brasileira. Contudo, denominei de visão política domundo a estrutura básica das obras de Varnhagen e deOliveira Vianna e, agora, chamo de visão de mundoetno-cultural a de Gilberto Freyre.

Por que essa diferença? Em Varnhagen, a preocu-pação básica parte da premissa fundamental de que aNação, o Estado e o Homem branco brasileiro aindanão haviam se constituído e, assim sendo, a missão dohistoriador era de contribuir, através da análise históri-ca do passado brasileiro, para que se constituíssem peloseu enraizamento nas características essenciais do que eraefetivamente brasileiro. Com exceção do estado monár-quico, um legado de Portugal, que precisava, segundoesse historiador, alguns reparos, a Nação brasileira e oHomem branco brasileiro deveriam ainda se constituirpela adoção dos valores europeus e pela miscigenaçãodas três etnias. Projetava, então, para o futuro uma na-ção brasileira de valores europeus e um homem brancobrasileiro, consciente de que surgia da reunião de trêsetnias diferentes, física e culturalmente, em que deveriapredominar o branco.

Em Oliveira Vianna, sua visão de mundo políticase consubstancia tendo como centro o Estado que, comopara Varnhagen, é o instrumento necessário e impres-cindível para que a nação brasileira se concretize, aten-dendo às características básicas do espaço e da realidadehistórica brasileiros. Daí a necessidade de um Estado al-tamente centralizado e poderoso, capaz de impor sua

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orientação e educação à massa populacional. Da afirma-ção de que, no Brasil, não existiam classes sociais, elepropõe uma organização estatal corporativista, seme-lhante à do fascismo italiano.

Para Gilberto Freyre, sua premissa fundamentalé a de que a sociedade brasileira já está constituída assimcomo o homem brasileiro.

O objetivo de Gilberto Freyre é de demonstrarcomo se constituiu, no Brasil, em função das caracterís-ticas do país e da colonização portuguesa uma socieda-de tropical, híbrida e antagônica, porém harmônica eum homem brasileiro fruto da miscigenação das trêsetnias, branco, preto e indígena. A absoluta originali-dade da análise de Gilberto não se encontra nesses doisprimeiros elementos, mas sim na maneira pela qual elefundamenta a formação da sociedade e do homem bra-sileiro, utilizando para tanto os traços etno-culturais, emseu sentido mais largo, das três etnias.

Em resumo, a obra de Gilberto Freyre revela umavisão de mundo etno-cultural, cuja estrutura significanteé formada por três elementos:

1. uma sociedade tropical, híbrida e antagônica;2. o homem brasileiro;3. os valores etno-culturais da nova sociedade.

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C A P Í T U L O I

C O N T E X T O H I S T Ó R I C O

Gilberto Freyre nasceu nos estertores do séculoXIX e nos albores do século XX, em 1.900. De famíliaabastada, pode usufruir de uma educação esmerada, as-sistido por professores particulares, alguns estrangeiros,e pelo próprio pai, Dr. Alfredo Freyre. Depois de seusestudos secundários, realizados no Colégio AmericanoGilreath de Pernambuco, embarcou para os EstadosUnidos para estudar no Universidade de Baylor, ondebacharelou-se em Ciências e Letras, inscrevendo-se, emseguida, na Universidade de Colúmbia, na qual fez seumestrado e doutorado.

Casa Grande & Senzala foi escrito no final da décadade 20 e publicado em 1933, um período rico de aconte-cimentos e no qual a sociedade brasileira vivia aconteci-mentos que iriam transformá-la de maneira significativanas décadas seguintes.

Com a primeira guerra mundial (1914-1918), fin-dava-se o século XIX, o século burguês, por excelência.

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A chamada “belle époque” fora de modo brusco e catas-trófico encerrada por uma guerra que custara milhões emilhões de vidas humanas, cujas conseqüências sociais,políticas e econômicas foram muito mais sensíveis doque a destruição física causada pelas novas armas (gases,canhões e aviões) empregadas, durante o conflito. Asgrandes potências coloniais, especialmente a Inglaterra,viram reduzidas em grande parte sua influência sobre omundo.

Duas forças novas emergiam: de um lado, os Es-tados Unidos da América, cuja participação na guerrafora decisiva para o seu desfecho; de outro, a URSS, nas-cida da revolução socialista de 1917, que trouxe consigoa certeza de que os profetas sociais do século XIX, ho-mens que sonhavam com um mundo mais justo e igua-litário, tinham razão e que o mundo burguês estava pres-tes a ruir.

Sucederam-se revoluções e uma nova onda, comono século XIX depois das guerras napoleônicas, de re-voltas nos países colonizados, cujo objetivo central eralibertarem-se do jugo colonialista e autodeterminarem-se como países independentes.

O fracasso da revolução socialista alemã, em 1919,a guerra civil na nova União Soviética e sua dificuldadeem afirmar-se contribuíram fortemente para que a ondasocializante perdesse ímpeto, mas a convulsão internanos países europeus não amainou e preparou o terrenopara que o fascismo italiano e o nacional-socialismo ale-mão fossem vitoriosos na década seguinte.

No Brasil, a década de 20 foi pródiga de aconteci-mentos, mostrando que a chamada República Velha es-tava com seus dias contados. Em 1.922, assume Artur

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CONTEXTO HISTÓRICO 17

Bernardes, em substituição a Epitácio Pessoa, sob esta-do de sítio, em virtude do movimento militar de 5 dejulho, iniciado no Forte de Copacabana e se estendidopela Vila Militar e na Escola Militar do Realengo.

As insurreições político-militares se sucederam ea mais importante foi a de 1924, em que os amotinadoschegaram a ocupar parcialmente a cidade de São Paulo.A conseqüência mais significativa dessa insurreição foio fato de que dela nasceu a famosa Coluna Prestes, cujasandanças até hoje despertam curiosidade e controvérsias.

De uma maneira geral, o ideário político defendi-do pelos insurretos era um liberalismo pouco consisten-te em que o apelo à democracia e à soberania popularnão dissimulava a verdadeira luta – a luta entre facçõespolíticas burguesas, ansiosas por afirmarem sua hegemo-nia num país que se transformava1.

Transformações que ocorriam em sua infra-estru-tura pela industrialização do país que se acelerara depoisdo final da I Guerra Mundial. Com o novo surto de in-dustrialização e os problemas vividos pela Europa pós-guerra se incrementa o fluxo de imigrantes, iniciado nofinal do século XIX. Com eles, novas idéias e novos ide-ais de justiça social e de organização da sociedade. Asidéias socialistas se corporificam na criação, em 1922, doPartido Comunista Brasileiro, cuja presença no cenáriopolítico brasileiro será marcante, embora tenha sidomantido como partido clandestino durante quase todaa sua existência.

1 Ver sobre a rebelião de 24 o livro de Corrêa, Anna Marti-nez, A rebelião de 1924 em São Paulo. S.P. Hucitec, 1976.

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As disputas regionais eram uma constante no in-terior do partido hegemônico, o Partido Republicano,cuja organização federativa favorecia as disputas entre osestados com a predominância dos mais fortes.

O Partido Republicano Paulista (PRP) e o Parti-do Republicano Mineiro (PRM) durante muito tempoconservaram em suas mãos o poder de decisão – a issose chamou a política do “café com leite”. Artur Bernar-des (1922-1926) e Washington Luiz (1926-1930) serão osúltimos presidentes e o canto de cisne da República Ve-lha. A revolução de 30, comandada por Getúlio Vargas,que permanecerá no poder, criando em 1937 o chama-do Estado Novo, pôs um fim ao Brasil que nascera daproclamação da República e inicia um novo ciclo denossa história, cujo término coincide com o fim da IIGuerra Mundial e com a emergência de um novo surtode democracia, liberdade e justiça social.2

Contudo, a década de 20 não é apenas uma déca-da de inquietação política, ela é também o momento emque o país, sob a forte influência dos acontecimentomundiais e pelo surto industrial começa a mudar sua fi-sionomia socio-econômica, de um país rural, vivendoquase que exclusivamente da exportação de produtosagrícolas, especialmente o café, passa a uma incipiente,porém forte, industrialização, que modificará profunda-mente sua fisionomia, nas décadas seguintes.

Os problemas sociais começam a surgir; a emer-gência do Partido Comunista, as greves, que passam a

2 Casalecchi, José Ênio, O Partido Republicano Paulista. SP. Brasi-liense, 1987.

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ter daí em diante uma conotação política, falsa ou ver-dadeira, vinculada à criação da União Soviética, põemem guarda os conservadores. que criam duas expressões“perigo vermelho” e “doutrinas exóticas”, de muito fu-turo por terem sido repetidas à exaustão para desqualifi-car as reivindicações operárias.

É de Washington Luís a afirmação de que as agita-ções operárias, decorrentes da chamada “questão operá-ria” que nada mais seria do que “o estado de espírito dealguns operários e não o estado de uma sociedade”, eramum problema de ordem pública e não de ordem social.Em linguagem mais vulgar, traduziu-se a expressão deWashington Luís na afirmação de que a questão operá-ria (ou a questão social) era um problema de polícia.

A década de 20, contudo, não foi apenas rica emacontecimentos socio-econômicos e políticos. O mun-do cultural se agita com o término da guerra mundial eentra em ebulição. Na Europa, a revolução que come-çava a ocorrer, na primeira década deste século, na pin-tura, na escultura, na literatura, no cinema, na música,na história, bruscamente, interrompida pela guerra, re-toma fôlego e o pós-guerra é marcado por uma ebuliçãocultural em que se espelha a angústia do homem moder-no, dividido entre o céu e a terra, utópico, sonhandocom um novo tipo de sociedade, a socialista; pessimista,céptico e fragmentado, pelos horrores da guerra, pelasnovas técnicas e tecnologias, que parecia a muitos o ca-minho direto para um mundo sem liberdade.

Esse homem dilacerado, porém, contraditoria-mente, pleno de vida, experimentalista, ansioso e pron-to para novas aventuras, expõe-se, de peito aberto nasartes, pintura, poesia, romance, na música popular (jazz,

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especialmente) e erudita, no cinema. É o tempo do da-daismo, do expressionismo, do surrealismo, do cubismo,cuja revolução é tanto formal (linguagem) quanto con-teudística. Paris volta a ser o centro do mundo culturale para lá acorrem jovens do mundo inteiro na ânsia dadescoberta do novo, do insólito. Lá estão, também, osjovens brasileiros que irão transformar a paisagem cul-tural brasileira, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral,e tantos outros, que irão se reunir em São Paulo paradeflagrar o que se denominou de movimento modernis-ta, através da famosa Semana de Arte Moderna, realiza-da no Teatro Municipal.

A Semana de Arte Moderna revelará alguns no-mes que serão referência obrigatória no mundo culturale político das décadas a seguir. Uns (Menotti del Picchia,Plinio Salgado, Cassiano Ricardo) buscam formular umnovo nacionalismo, isento do ufanismo vazio e provin-ciano de Afonso Celso (Porque me ufano de meu país), porémligado às tradições da terra e dos costumes do país; ou-tros, tentarão em suas obras um caráter mais universal,mais formalista, com experiências lingüísticas que, assen-tadas no mundo mais cosmopolita de São Paulo, procu-ram refletir a realidade lingüística de uma região em queos imigrantes são uma importante presença. Oswald deAndrade com seu Marco Zero é um exemplo típico. Macu-naima, de Mario de Andrade, é um caso especial, pois nelese revela o velho e angustiante problema das três etniasque nos formaram e que dão como resultado um heróinacional sem nenhum caráter.

Tão importante quanto a Semana de Arte Moder-na, de 1922, e quase como uma resposta às suas ansieda-des, no Nordeste, um novo tipo de literatura surge, na

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qual o centro de atenção é o homem nordestino e suainserção num meio geográfico duro, hostil, áspero, ondea luta pela sobrevivência é o cotidiano de milhões dehomens, mulheres e crianças, cuja esperança de vida de-pende da chuva e dos “coronéis”.

O chamado ciclo nordestino de romances regio-nais revela um país que grande parte da população bra-sileira desconhecia. Não fora suficiente “Os Sertões”, deEuclides da Cunha, para que descobríssemos o Nordes-te, para isso foi necessário que surgissem nomes como ode José Américo de Almeida (A Bagaceira), Amando Fon-tes (A Rua do Siriri), José Lins do Rego, Graciliano Ra-mos, e tantos outros.

O Brasil estava sendo reinterpretado pelos poetase romancistas e com eles se abria um novo caminho paraos historiadores, que aceitarão o desafio de tentar inter-pretar e compreender esse multifacético Brasil, com no-vas metodologias e novos instrumentos de pesquisa.

Gilberto Freyre é um desses historiadores.

GILBERTO FREYRE

E A HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA

Antes de entrarmos propriamente na análise daobra Casa Grande & Senzala, convém, previamente, situaro seu autor no conjunto da historiografia brasileira, daqual o sorocabano Francisco Adolfo de Varnhagen(1816-7188) é, a justo título, considerado o “pai”fundador.

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A importância de Varnhagen para a historiografiabrasileira deriva de, pelo menos, duas razões principais:1o) é o primeiro historiador brasileiro a escrever duasobras sobre o Brasil (História Geral do Brasil e História da In-dependência do Brasil), cobrindo o período do seu descobri-mento à independência, lastreadas, pela primeira vez,numa pesquisa histórica documental exaustiva e compe-tente. Pesquisador infatigável, Varnhagen dedicou todaa sua vida aos arquivos, brasileiros e estrangeiros, desco-brindo e revelando uma documentação preciosa sobre anossa história;2o) é o primeiro historiador de uma corrente historio-gráfica, cuja problemática central gira em torno dos te-mas ligados à constituição da Nação brasileira, do papeldo Estado numa nação emergente e, finalmente, sobreo homem brasileiro, cuja característica básica é o de sero produto de três etnias – a branca, a índia e a negra. Naanálise deste último problema, Varnhagen dará umaatenção especial à miscigenação, que será um dos temasmais caros a Gilberto Freyre.

Até a década de 30, mais ou menos, a problemáti-ca inaugurada por Varnhagen será uma constante emnossa historiografia. Com os historiadores que surgem,nessa época, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque deHollanda e Gilberto Freyre ocorre, segundo José Honó-rio Rodrigues, uma ruptura. Prefiro nuançar a afirma-ção de José Honório Rodrigues dizendo que, pelo me-nos no que tange a Gilberto Freyre, a ruptura é antesmetodológica do que temática. E isto por uma razãosimples, todos os grandes temas de uma sociedade e cul-tura híbridas já estão presentes em Varnhagen, o que sealtera, de maneira substancial e mesmo revolucionária,

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CONTEXTO HISTÓRICO 23

é a maneira pela qual Freyre vai analisar os fenômenosde integração racial e cultural e a documentação, em seusentido mais lato, sobre a qual apoiará sua análise.

Não serão apenas os documentos escritos que ser-virão a Freyre para compor a paisagem da sociedade hí-brida brasileira; sua análise abrangerá do documento es-crito ao utensílio domiciliar, da alimentação ao gestofamiliar, da religião ao apetite sexual, do objeto pessoalaos instrumentos de trabalho, das pequenas coisas quefazem o cotidiano do homem e da mulher, que revelama sua intimidade, à estrutura psicológica de uma etnia3.Gilberto Freyre antecipa, de algumas décadas, o que setornará, depois dos anos 70, uma constante do pensa-mento historiográfico da História Nova, originária da Es-cola dos Annales4.

Uma outra característica a ser observada em nos-so autor é a sua linguagem, sua escritura. Seu estilo équase a de um romancista, por isso já foi comparado aMarcel Proust, o escritor francês, que recupera um tem-po e um mundo perdidos através do exercício da memó-ria. Casa Grande & Senzala, sem dúvida, guarda em si otom melancólico e nostálgico da ressurreição (da revi-vência) de um passado extinto. Daí, em parte, a engano-

3 Não se pode esquecer que Gilberto Freyre escreveu Ordem eProgresso, utilizando para tanto questionários por ele ela-borados, cerca de 1.000, embora nem todos tenham sidorespondidos.

4 Ver Burke, Peter. A Escola dos Annales – 1929 – 1989 – A Re-volução francesa da Historiografia. Trad. de Nilo Odalia. SP. Edi-tora Unesp., 1991.

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sa facilidade da leitura das obras de Gilberto Freyre. Eleparece ser transparente demais. É uma ilusão contra aqual devemos nos prevenir.

Mas a sua escritura não é apenas isso, ela é algomais; às vezes, pode parecer que utiliza em excesso o re-curso do antagonismo entre as idéias, as coisas e os ho-mens, o que pode, numa primeira leitura, dar a impres-são de que seu pensamento é inconsistente por sercontraditório; chocante em algumas afirmações, exces-sivamente audacioso e confiante nas análises comparati-vas dos traços psicológicos de povos e etnias e de umecletismo metodológico (aliás confessado sem mea-culpa)que arrepia os dogmáticos de plantão, Gilberto Freyreconstruiu uma obra na qual se fundem, de maneira ori-ginal, harmoniosa e consistente, o estilo de romancistae a mente de um verdadeiro cientista social.

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N O S T R Ó P I C O S ,U M A N O V A S O C I E D A D E

Ao escrever Casa Grande & Senzala, GilbertoFreyre partia de uma premissa básica, que era tambémuma certeza: a colonização portuguesa, no Brasil, foraum sucesso, pois dela nascera uma sociedade nova e di-ferente, com características próprias e peculiares.

Esta nova sociedade criada pelo concurso de trêsdiferentes etnias e civilizações – a negra, a índia e a bran-ca – possuía também uma outra originalidade, a de terflorescido no meio tropical. Era, como o diz o enuncia-do do capítulo primeiro de Casa grande & Senzala, uma“sociedade agrária, escravocrata e híbrida”, tornada pos-sível, entre outras razões, que adiante veremos, pela ex-periência portuguesa de colonização na Índia e naÁfrica.

“Quando em 1.532 se organizou econômica e ci-vilmente a sociedade brasileira, já foi depois de um séculointeiro de contato dos portugueses com os trópicos; de de-

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monstrada na Índia e na África sua aptidão para a vidatropical”1.

A afirmação tão peremptória de Gilberto Freyresobre a existência de uma sociedade constituída no Bra-sil, isto quer dizer nos trópicos, é uma resposta diretaaos cientistas europeus, como Lapouge, Buckle e tantosoutros, que, no século XIX, não admitiam a possibilida-de de terem sucesso as tentativas de constituição desociedades estáveis nos trópicos; e indireta, a todos oscientistas brasileiros, antropólogos, sociólogos e, espe-cialmente, historiadores, que ou concordavam com asopiniões expressas pelos cientistas europeus, ou tentan-do superá-las buscavam formas de ação política, atravésda atuação do Estado, visando constituir uma sociedadebrasileira, de características européias, mas sempre comouma projeção futura, e não uma realidade atual.

Não basta, contudo, a afirmação da existência deuma sociedade brasileira, construída pela “aptidão” dosportugueses em viver nos trópicos. É fundamental quese apresentem razões e argumentos que demonstrem quea sociedade colonial brasileira era algo mais do que ape-nas uma massa heterogênea de homens e mulheres, dediferentes etnias, sem vínculos sociais mais significativosentre si2. Para negros e índios, apenas os que decorriam

1 Freyre, Gilberto. Casa Grande & Senzala – Formação da FamíliaBrasileira. 17a ed. RJ., José Olympio Editora, 1975, p. 4. To-das as referências a textos do autor terão como fonte essaedição do livro. Os números pospostos às citações referem-se aos números das páginas dessa edição.

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do regime de trabalho e da servidão e, quando brancos,da dependência em relação aos senhores de escravos, ouda metrópole.

A resposta de Gilberto é pronta e rápida ao dar asrazões e fundamentos da aptidão portuguesa em coloni-zar os trópicos. Ela pode parecer a uma leitura menosatenta muito simples, para não dizer simplória, e, atécerto ponto, surpreendente, pois amalgama, sem pre-paração teórica prévia, fatores diversos e de níveisdistintos.

Em primeiro lugar, o fator econômico, a agricul-tura, base da nova sociedade, em seguida, as condiçõesque a tornaram possível: “a estabilidade da família patriarcal,a regularidade do trabalho por meio da escravidão” e, como novi-dade absoluta, “a união do português com a mulher índia, incor-porada assim à cultura econômica e social do invasor” (p. 4). Parao raciocínio do escritor, contudo, a enumeração de for-ma tão imediata dos fatores gerais que contribuíram paraa criação dessa sociedade agrária, escravocrata e híbrida,nos trópicos, é apenas um artifício metodológico que lhepermite, em seguida, ir discriminando com abundânciade detalhes outras matrizes em que se formou essa apti-dão portuguesa.

A preocupação central de Freyre é a de transmi-tir ao seu leitor uma visão global e integrada da situaçãodo colonizador português ao estabelecer-se numa nova

2 Sobre uma visão bastante pessimista da sociedade colonialbrasileira, ver ABREU, Capistrano de. Capítulos de HistóriaColonial (1500-1800). 6ª ed. Revista, anotada e prefaciada porJosé Honório Rodrigues. RJ., Civilização Brasileira, 1976.

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terra, cuja excentricidade lhe é menos penosa do que aoutros colonizadores europeus, pois ele é, por sua for-mação histórica, um homem europeu em que a África,de diferentes maneiras, exerceu uma influência prepon-derante. Por isso, o conceito de antagonismo3 é um dosconceitos-chave para a compreensão de Casa Grande &Senzala. Antagonismo que nasce dessa complexa misturade Europa e África que resulta, expressão surpreenden-te desse autor, numa “indecisão étnica e cultural”, como que abicontinentalidade “correspondesse em população assim vaga eincerta à bissexualidade no indivíduo” (p. 6). É ele ainda quepermite compreender o caráter especial que assumiu acolonização portuguesa, resultando na “formação sui generisda sociedade brasileira, igualmente equilibrada nos seus começos e ain-da hoje sobre antagonismos” (p. 8).

Uma vez assentada a premissa maior, a do suces-so do povo português em criar um novo tipo de socie-dade nos trópicos, empresa na qual falharam outros po-vos europeus, cabe ao nosso autor a tarefa de detalhar edemonstrar como isso foi possível.

Na formação histórica do povo português devedestacar-se a presença do semita, cujas características po-dem ser encontradas no “português navegador e cosmopolita doséculo XV”: mobilidade, adaptabilidade, de fácil aclimata-

3 Ao enfatizar o conceito de antagonismo, Gilberto Freyreestá se opondo a Varnhagen e Oliveira Vianna, cuja preo-cupação fundamental é o conflito. Esses autores, especial-mente Varnhagen, temiam que os conflitos, quaisquer quefossem suas causas, provocassem a fragmentação política eterritorial do país.

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ção em meios geográficos diferentes e, não menos impor-tante, capazes de um “realismo econômico que desde cedo corrigiuos excessos de espírito militar e religioso na formação brasileira” (p. 8).

Por outro lado, uma nação cuja população era tãorala e escassa teria que superar a falta de homens por suamobilidade, que não seria suficiente, não estivesse elaapoiada numa outra característica do português, amiscibilidade. Miscibilidade possível graças a uma mo-ral sexual “mais frouxa, mais relassa que a dos homens do Norte”,mas que, na colônia, por falta de mulheres brancas, nãoestá apenas adstrita à necessidade biológica natural, po-rém, também, à uma política deliberada e incentivadapelo governo português.

“A escassez de capital-homem, supriram-na os portu-gueses com extremos de mobilidade e miscibilidade: domi-nando espaços enormes e onde quer que pousassem, naÁfrica ou na América, emprenhando mulheres e fazendofilhos, numa atividade genésica que tanto tinha de violen-tamente instintiva da parte do indivíduo quanto de políti-ca, de calculada, de estimulada por evidentes razões econô-micas e políticas da parte do Estado” (p. 8).

Se o intercurso sexual com a índia e a negra trou-xe para o português colonizador a possibilidade de su-prir as deficiências demográficas da metrópole, o clima,o regime de águas, a fauna e a flora da colônia, obrigou-o a transformar-se de maneira radical a fim de adaptar-se às novas condições mesológicas do espaço territorialque conquistara. Assim, um povo de pouca tradição ru-ral soube como criar como suporte para a colonização,e não simplesmente a exploração comercial dos recur-

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sos naturais do Brasil, uma infra-estrutura de base agrá-ria permanente, na qual, se a mão de obra era escrava,índia ou negra, ele conservava para si a gerência do em-preendimento, de caráter essencialmente particular, sus-tentado na organização familiar.

Ao Estado cabia estabelecer as normas e as exigên-cias; ao proprietário, a obrigação de investir, povoar edefender militarmente a colônia.

“A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estadonem nenhuma companhia de comércio, é desde o séculoXVI o grande fator colonizador no Brasil, a unidade pro-dutiva, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas,compra escravos, bois, ferramentas, a força social que sedesdobra em política, constituindo-se na aristocracia colo-nial mais poderosa da América” (p. 18-9).

Fixar-se à terra, esta a grande diferença entre ocolonizador português e os outros povos que tambémse aventuraram em expedições d´além mar e esta fixa-ção significou na prática uma profunda transformaçãode hábitos e costumes sexuais, religiosos e alimentares.

Uma das originalidades da interpretação deFreyre está exatamente nessa maneira peculiar de asso-ciar antagonicamente, positiva ou negativamente, os di-versos elementos da realidade social, buscando nelesuma explicação do passado brasileiro, que se amplia aobuscar compreender também seus efeitos em nossa situ-ação presente.

É à alimentação precária, e pouco diversificada,que atinge indistintamente senhores e escravos, em ra-zão da monocultura, por exemplo, que ele atribui as

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“importantes diferenças somáticas e psíquicas” existen-tes “entre o europeu e o brasileiro” e não pela miscige-nação e pelo clima – como pretendem muitos. Mas foidessa mesma economia latifundiária, assentada namonocultura e na mão de obra escrava, que se originoua relativa estabilidade da colônia, em contraste com oque ocorria nos países vizinhos. Mas ele vai mais longee confere ao abuso de jejuns religiosos uma parte da res-ponsabilidade por ser o brasileiro “um dos povos modernosmais desprestigiados na sua eugenia e mais comprometidos na sua ca-pacidade econômica pela deficiência de alimento” (p. 42).

Ainda no capítulo da alimentação, ao qual Freyredá um relevo especial, é necessário ressaltar a influêncianegra, por duas razões principais: em primeiro lugar,por ter trazido para a colônia novos costumes alimenta-res, por exemplo os vegetais; em segundo lugar, por terum regime alimentar mais equilibrado, em virtude de serescravo, uma mão de obra que deveria ser preservada,por ser cara. Se o escravo deveria ser preservado e sendoduras as condições de trabalho, nada mais adequado doque uma alimentação energizante e revigorante. Naspalavras de Gilberto Freyre:

“A alimentação do negro nos engenhos brasileiros po-dia não ser um primor de culinária; mas faltar nunca fal-tava. E sua abundância de milho, toucinho e feijão reco-menda-a como regime apropriado ao duro esforço exigidodo escravo agrícola” (p. 44).

Ainda sobre o negro e a alimentação, diz-nos oautor que o escravo por ser o “melhor elemento nutri-do” da sociedade patriarcal legou aos seus descendentes

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bons costumes alimentares, “explicando-se em grande parte pelofator dieta (...) serem em geral de ascendência africana muitas das me-lhores expressões de vigor ou de beleza física em nosso país: as mula-tas, as baianas, as crioulas, as quadraronas, ....” (p. 44).

Na seqüência de seu pensamento, estabelece umanítida diferença entre o negro e os mestiços das diversasetnias, ressaltando ainda uma vez a superioridade daque-le em termos de energia física, pelo menos, até a aboli-ção, quando então a má alimentação passou a ser um tra-ço comum a todos.

“Os escravos negros gozaram sobre os caboclos ebrancarões livres da vantagem de condições de vida antesconservadoras que desprestigiadoras de sua eugenia: pude-ram resistir melhor às influências patogênicas, sociais e domeio físico, e perpetuar-se assim em descendências, maissadias e vigorosas” (p. 46-7).

Talvez seja conveniente aqui lembrar que, no Pre-fácio à 1a. edição, nosso autor confessa que depois deviver mais de 3 (três) anos nos Estados Unidos, viu des-cerem de uma nave brasileira marinheiros, que lhe de-ram a impressão de serem caricaturas de homens e acres-centa que lhe faltou, na ocasião, quem o alertasse “comoem 1929 Roquete Pinto aos arianistas do Congresso Brasileiro deEugenia, que não eram simplesmente mulatos ou cafuzos os indivídu-os que eu julgava representarem o Brasil, mas cafuzos e mulatos doen-tes”.4 E completa seu pensamento declinando seu débitoem relação a Franz Boas que o ensinou a diferenciar en-

4 Prefácio à 1a ed., op. cit., p. lvii.

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tre raça e cultura, diferença sobre a qual repousa toda aestrutura de Casa Grande & Senzala5, segundo suas própri-as palavras.

Em cada linha desse livro podemos facilmenteconstatar o peso dessa diferença, que lhe permite inovarna maneira bastante peculiar de apresentar os fundamen-tos de sua interpretação da sociedade híbrida brasileira.Já dissemos, em nossa introdução, e agora repetimos,que a novidade freiriana não estava na temática, mas simem sua metodologia e no arranjo singular que seu racio-cínio arma para a demonstração de suas teses.

Depois de nos falar sobre as vantagens do negroem relação aos demais componentes étnicos da socieda-de patriarcal, seu raciocínio volta-se para as razões dadecadência física do brasileiro, para a qual atribui umpapel destacado à sífilis, “a doença por excelência das casas gran-des e das senzalas”, cuja disseminação era facilitada pelo fatode que as marcas por ela deixada no corpo eram um si-nal de orgulho, tal como uma condecoração de guerra.

Miscigenação e sifilização correram paralelas nodecurso de nossa história; às vantagens da primeiracorresponderam, infelizmente, as desvantagens da outra,pois, depois da má-alimentação, a sífilis talvez tenha sido“a mais deformadora da plástica e a mais depauperadora da energiaeconômica do mestiço brasileiro” e numa frase de efeito afirma:

“Costuma dizer-se que a civilização e a sifilizaçãoandam juntas: o Brasil, entretanto, parece ter-se sifilizadoantes de se haver civilizado” (p. 47).

5 Idem, p. lviii.

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Miscigenação e sifilização iniciam-se no Brasil noalvorecer de seu povoamento, pois ambas contribuírampara a formação da única sociedade possível, nestas pa-ragens tropicais, a híbrida. E mais do que isso, os primei-ros colonizadores que se perderam no meio dos índios,prepararam o caminho para os novos colonizadores “ain-da virgens de experiências exóticas”. Contudo, a sifilização dopaís não foi obra apenas dos portugueses, mas teve tam-bém a contribuição de aventureiros espanhóis e france-ses que “acabavam muitas vezes tomando gosto pela vida desregradano meio de mulher fácil e à sombra de cajueiros e araçazeiros”.

Nessa corrente de surpresas que é o pensamentode Gilberto Freyre, não apenas por sua linguagem quenos soa suavemente desbocada, por ser um cientista so-cial que a emprega, ele nos conduz da miscigenação esifilização ao sadismo e masoquismo.

O primeiro uma das características da casa gran-de, onde o mandonismo patriarcal se faz sentir sobre osnegros e as negras, influenciando o comportamento dosfilhos, cujo sadismo se exercerá quer sobre as negras quersobre o “moleque leva-pancadas”, muitas vezes a vítimados primeiros impulsos sexuais do jovem senhor. Po-rém, esse sadismo se origina do intercurso sexual do con-quistador branco com a índia, primeiramente, e com anegra, posteriormente, tendo como contrapartida o ma-soquismo de ambas. E vai mais longe nosso autor, quevê na submissão da mulher na sociedade brasileira umaherança desse sadismo, cuja influência se estende ao cam-po social e político.

Daí que de alguma maneira nos atraia o dirigentede punho firme, Floriano Peixoto, por exemplo, e serda tradição conservadora brasileira um mandonismo sá-

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dico que se recobre de grandes palavras o “princípio deAutoridade”, ou a “defesa da Ordem”6.

“Entre essas duas místicas – a da Ordem e a da Li-berdade, a da Autoridade e a da Democracia – é que sevem equilibrando entre nós a vida política, precocementesaída do regime de senhores e escravos. Na verdade, o equi-líbrio continua a ser entre as realidades tradicionais e pro-fundas: sadistas e masoquistas, senhores e escravos, douto-res e analfabetos, indivíduos de cultura predominantementeeuropéia e outros de cultura principalmente africana eameríndia” (p. 52).

Não há, para o nosso autor, uma predominânciada cultura européia na formação de nossa sociedade.Não nos esqueçamos que ela é uma sociedade híbrida,na qual a tradição européia... “Em vez de ser dura e seca, ran-gendo do esforço de adaptar-se a condições inteiramente estranhas, acultura européia se pôs em contacto com a indígena, amaciada peloóleo da mediação africana”.7

Esse amalgama de culturas, fez-se sentir até mes-mo entre os jesuítas, cuja catequese adaptou-se às nossascondições, pois a cristianização dos indígenas se fez atra-vés de cantos, músicas e danças, enfatizando o lado mís-tico e festivo do cristianismo, embora estejam na Áfricae no “voluptuoso misticismo dos árabes” as raízes dos ExercíciosEspirituais jesuíticos.

6 O assunto é retomado e ampliado em Ordem e Progresso.7 Casa Grande & Senzala, p. 52

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Um novo mundo, um novo homem, uma novasociedade. O trópico de natureza exuberante e desconhe-cida, cuja beleza feita de uma fauna, de uma flora, demassas de água e de acidentes geográficos, de maneirageral, profundamente diferentes dos da Europa, camu-fla um ecossistema no qual o homem europeu deve adap-tar-se, modificando todos os seus hábitos e costumes devida anterior. Sejam eles alimentares ou sexuais, pois éatravés destes que se intercomunica com as mulheresíndia e negra, ao mesmo tempo em que assegura, pelaescravidão, uma mão de obra necessária para o seu lati-fúndio. Com isso um novo homem nasce, mais adaptá-vel ao meio ambiente e com uma cultura que semiscigena como ele próprio. No seio dos antagonismosque brota quase naturalmente da mistura de raça e cul-tura surge uma nova sociedade – híbrida, estável,maleável e adaptada aos trópicos.

“Considerada de modo geral, a formação brasileira temsido... um processo de antagonismos. Antagonismos de eco-nomia e cultura. A cultura européia e a indígena. A euro-péia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrá-ria e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege.O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de enge-nho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mas-cate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o anal-fabeto. Mas predominando sobre todos os antagonismos, omais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo.” (p. 53).

Neste mosaico de antagonismos permitindo e ab-sorvendo os choques violentos atuam, entre outros fa-tores, a miscigenação, o cristianismo lírico à portugue-

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sa8, a tolerância moral, a facilidade de comunicações en-tre as diferentes regiões geográficas do país9, embora ti-vesse o colonizador que lutar contra os excessos da na-tureza.

Finalmente, não devemos esquecer que somenteapós a bem sucedida colonização portuguesa no Brasil éque se modificou de maneira radical o procedimento decolonização européia das terras tropicais, que se reduziam,até então, em feitorias e extração das riquezas naturais.10

8 “Sociedade que se desenvolveria defendida menos pela cons-ciência de raça, quase nenhuma no português cosmopolitae plástico, do que pelo exclusivismo religioso desdobradoem sistema de profilaxia social e política” (id., ibidem, p. 4).

9 “É verdade que agindo sempre, entre tantos antagonismoscontundentes, amortecendo-lhes o choque ou harmonizan-do-os, condições de confraternização e de mobilidade socialpeculiares ao Brasil: a miscigenação, a dispersão da herança,a fácil e freqüente mudança de profissão e de residência, ofácil e freqüente acesso a cargos e a elevadas posições polí-ticas e sociais de mestiços e de filhos naturais, o cristianis-mo lírico à portuguesa, a tolerância moral, a hospitalidadea estrangeiros, a intercomunicação entre as diferentes zonasdo país. Esta, menos por facilidades técnicas do que pelasfísicas: a ausência de um sistema de montanhas ou de riosverdadeiramente perturbador da unidade brasileira ou da re-ciprocidade cultural e econômica entre os extremos geográ-ficos” (id, ibidem, p. 54).

10 “Antes de vitoriosa a colonização portuguesa do Brasil, nãose compreendia outro tipo de domínio europeu nas regiõestropicais que não fosse o da exploração comercial atravésde feitorias ou da pura extração de riqueza mineral” (id.,ibidem, p. 16)

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O H O M E M B R A S I L E I R O

Toda sociedade é híbrida, pois nenhuma das exis-tentes permaneceu incólume às mutações raciais ou cul-turais impostas por invasões e domínios estrangeiros, oupela presença ou proximidade de grupos étnica e cultu-ralmente diferentes.

A intercomunicação étnica e cultural entre povosdiferentes é um fenômeno tão antigo quanto a existên-cia do homem. Mesmo o mais profundo ódio, que pos-sa existir entre povos distintos quanto as suas origensracial e cultural, jamais impediu que ela ocorresse.

As influências, por outro lado, nunca tiverammão única, ela é sempre intercambiante; por mais queum povo seja dominante sempre assimilará algo da cul-tura e dos costumes do povo dominado.

Os povos mais antigos mostram, de maneira clarae insofismável, a inter-relação que ocorre quando etnias,tradições e costumes entram em contato. A assimilaçãodos vencedores a sua cultura parece ter sido sempre umaarma dos vencidos. Isto não quer dizer que a intercomu-

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nicação não se faça sem conflitos e sem a presença de se-qüelas, muitas vezes cruéis e, infelizmente, duradouras.

O racismo, o fanatismo político ou religioso, quesão algumas dessas seqüelas não são privilégios ou exclu-sividades de um tempo, de uma região, ou de um país.Eles se distribuem pelos quatro cantos do mundo e é,com tristeza e comoção, que vemos, nos dias de hoje,um renascimento dessa intolerância que surge, daquiloque, ao contrário, deveria unir ainda mais o homem: aintercomunicação racial e cultural.

Gilberto Freyre ao definir a sociedade que se for-mou no Brasil como híbrida não trazia nada de novo ouoriginal. Ele apenas constatava que aqui nascera umanova sociedade, cujas características raciais e culturais seoriginavam de três diferentes etnias e culturas e cujosantagonismos que poderiam ter conduzido ao conflitoe à desinteligência, ao racismo e à intolerância, foram –aqui está o novo – aplainados e mesmo superados pelosatributos naturais ou históricos de cada uma das etniase culturas em presença, ou em função das condiçõessocio-econômicas em que se produziu sua interação.

Varnhagen anunciara e preconizara uma nova so-ciedade brasileira, na qual a miscigenação deveria seruma preocupação do Estado, a fim de que os conflitosraciais não assumissem o caráter violento que em outrospaíses predominava; sua maior preocupação era que aquinão se reproduzisse o que acontecia nos Estados Unidosda América1.

1 Ver VARNHAGEN, F. A de. História Geral do Brasil. 4ª ed.R.J., J.E. & Laemmert Ltd. s.d. 5 v. e ODALIA, Nilo. Asformas do Mesmo. SP. Edunesp, 1997.

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Gilberto Freyre faz a constatação de que essa so-ciedade híbrida, antagônica, porém não violenta, já exis-tia e que dela nascia um novo homem, fruto de cada umadas etnias e de cada uma das culturas aqui presentes.Cabia a ele explicitar como esse fato histórico ocorrera.

I. O INDÍGENA NA SOCIEDADE HÍBRIDA

O processo de explicitação se inicia pelo indíge-na, o elemento autóctone da nova sociedade. Quandoaqui chegaram os portugueses, encontraram uma socie-dade de bases rudimentares e primitivas, ao contráriodos espanhóis que encontraram, no Peru e no México,sociedades altamente desenvolvidas. Maias, incas e azte-cas opuseram ao invasor uma resistência que se prolon-gou no tempo, impedindo que lá ocorresse uma proces-so similar de adaptação ao conseguido pelo português noBrasil. Por outro lado, nas colônias espanholas, a cobiçae a avidez do invasor pode, desde logo, dirigir-se ao quemais desejavam, o ouro e a prata.

Muito depressa, o português compreendeu que ascondições de sua nova colônia não lhe permitiria viverapenas da coleta do que lhe poderia oferecer uma natu-reza exuberante, na qual, porém, não encontrava o quemais ambicionava, os metais preciosos.

Frente a uma sociedade indígena nômade, que vi-via da coleta, da caça e da pesca, ao português não res-tou outra opção, senão a de construir uma base eco-nômica – a agricultura ligada à cana de açúcar, quesustentasse um processo de colonização das novas terrasconquistadas.

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A frágil oposição do indígena, que, na expressãodo nosso autor, foi apenas uma resistência vegetal, seexpressava basicamente pelo seu retraimento para o in-terior das matas, em razão de sua incapacidade de adap-tar-se “à nova técnica econômica e ao novo regime moral e social”trazidos pelo invasor português.

Nova técnica econômica que exigia o trabalho diá-rio e constante a um homem cujas funções em sua socie-dade eram primordialmente o de guerreiro, o de caça-dor e o de pescador.

Novo regime moral e social que lhes era impostopelos portugueses, entre os quais se sobressaíam os pa-dres jesuítas, que lhes trouxeram um novo Deus, umanova religião. Que não apenas tentava substituir a quelhes era própria, mas também a destruía pelo deboche epelo menosprezo.

Novos costumes sociais em que a sedentarizaçãoera um fator preponderante; em que seus hábitos, comoo de andar nu, passavam a ser ridicularizados e vistoscomo um pecado a ser evitado.

O homem indígena em virtude de sua absolutaincapacidade de adaptar-se ao mundo novo que esboça-va ser criado pelo português, teve um papel menos im-portante do que a mulher índia no processo de consti-tuição do homem e da sociedade híbrida brasileira. Foiatravés dela que muitas das tradições e costumes, alimen-tos e utensílios da cultura indígena, passaram a ser inte-grados na nova sociedade em gestação2.

2 “Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas daAmérica a que se constituiu mais harmoniosamente quanto

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O sexo é o primeiro fato relevante, pois é a mu-lher índia que suprirá a falta da mulher branca e seráatravés dela que se constituirá uma população demamelucos que desempenhará no futuro um papel im-portante no desbravamento dos sertões, com a expan-são territorial da colônia; serão eles ainda que se encar-regarão das expedições punitivas ou para a apreensão demão de obra escrava indígena.

A presença das mulheres índias com seus corposnus e limpos desencadeia um furor sexual entre os por-tugueses que produz, como escreve Gilberto Freyre,uma “quase intoxicação sexual”, da qual não estavamisentos nem mesmo os padres jesuítas.

Contudo, para Gilberto Freyre, o que mais im-porta para o tipo de estudo que faz é o que denomina de“cultura moral” do indígena, ou seja, as “relações sexuaise de família; a magia e a mítica”. E isto porque são traçosque permanecem “no fundo de nossa organização social, moral ereligiosa, quebrando-lhe ou pelo menos comprometendo-lhe seriamentea suposta uniformidade do padrão católico ou europeu” (p. 99). E

às relações de raça; dentro de um ambiente de quase reci-procidade cultural que resultou no máximo de aproveita-mento dos valores e experiências dos povos atrasados peloadiantado; no máximo de contemporização da cultura ad-ventícia com a nativa, da do conquistador com a do con-quistado. Organizou-se uma sociedade cristã na superestru-tura, com a mulher indígena, recém-batizada, por esposa emãe de família; e servindo-se em sua economia e vida do-méstica de muitas das tradições, experiências e utensílios dagente autóctone” (FREYRE, Gilberto, op. cit., p. 91).

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isso é o fundamental para uma sociedade híbrida, anta-gônica, porém não conflitante.

II. O PAPEL DO PORTUGUÊS

A. POSIÇÃO GEOGRÁFICA E

HETEROGENEIDADE ÉTNICA

As razões que explicam, segundo o nosso autor,o êxito da colonização portuguesa no Brasil, estão inti-mamente vinculadas ao processo de formação históricado povo português e à peculiar situação geográfica daPenínsula Ibérica.

No que tange à localização geográfica de Portu-gal, uma simples olhada num mapa da Europa permiteperceber-se que esse país, como também a Espanha,apresenta como característica marcante o de ser um pon-to de passagem, de contato e de encontro.

A Península Ibérica é uma das portas de entradaou de saída da Europa, como o é a Itália, no extremosul. Esta uma das razões de terem sido os países dessasduas penínsulas potências marítimas. Em tais condiçõesgeográficas, é natural que Portugal tenha sido um terri-tório no qual a intercomunicação entre povos diferen-tes, quer vindos do interior da Europa, quer sejam a elaestranhos, árabes e mouros, se efetuou tanto pacifica-mente, por razões comerciais ou outras quaisquer, quan-to através da violência pela conquista guerreira, numpassado remoto: visigodos, romanos ou árabes; moder-namente, os franceses comandados por Napoleão.

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“Predisposto pela sua situação geográfica a ponto decontato, de trânsito, de intercomunicação e de conflito entreelementos diversos, quer étnicos, quer sociais, Portugal acu-sa em sua antropologia, tanto quanto em sua cultura, umagrande variedade de antagonismos, uns em equilíbrio, ou-tros em conflito. Esses antagonismos em conflito são ape-nas a parte indigesta da formação portuguesa: a partemaior se mostra harmoniosa nos seus contrastes, forman-do um todo social plástico, que é o carateristicamente por-tuguês” (p. 201).

Essa plasticidade do povo português, insistente-mente utilizada por Gilberto Freyre para explicar suacapacidade de absorção de conflitos, através de seu espí-rito conciliador e tolerante, está intimamente associadaà heterogeneidade étnica e cultural do povo portuguêsque, por sua vez, vincula-se às características geográficasde Portugal. Há como que uma “indecisão do peninsu-lar entre a Europa e a África” (p. 6), pois desde o paleo-lítico e o paleolítico superior, passando pelos períodosneoneolítico e o neolítico, se sucederam invasões de po-vos vindos da África, cujos traços étnicos e culturais, jána idade de bronze, na ausência de novas invasões, sesedimentaram.

“No período neoneolítico e neolítico continua naPenínsula o íntimo contato entre a Europa e a África.Segue-se um período – o da idade de bronze – que algunsconsideram de estabilização. O homem da Penínsulapassado pela primeira fervura de miscigenação, teria sidodeixado a esfriar por alguns séculos, sem invasões africa-nas ou do Norte que perturbassem o processo como que de

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endurecimento de cultura e de definição do tipo físico.”(p. 201).

Contudo, os contatos com povos de fora não pa-raram, sejam por meio de novas invasões, sejam por ra-zões comerciais ou de navegação. Dessa maneira, gregos,cartagineses e celtas contribuíram para que o povo por-tuguês, quando da invasão dos romanos, apresentasseuma dualidade de formas de cultura, “sendo entretanto pro-vável que o tipo moreno e de cabelo crespo fosse o mais caraterístico,encarnando formas de cultura porventura mais mediterrâneas do quenórdicas; mais africanas do que européias” (p. 202).

O que o autor deseja ressaltar e enfatizar é que acaracterística básica do povo português é não possuir“nenhum exclusivismo de tipo no passado étnico” e que “a sua an-tropologia (é) mista desde remotos tempos pré e proto-históricos; (ecomplementarmente) a extrema mobilidade que tem caraterizado(sua) formação social”. Esta afirmação tanto vale para o pas-sado mais remoto dos portugueses quanto ao que ocor-reu mais modernamente com a presença de judeus,berberes, mouros, alemães, negros, flamengos e ingleses.

Essa mescla de etnias tem como uma de suas con-seqüências o fato de Portugal ser “o país europeu do louro tran-sitório ou do meio-louro” e não possuir “nenhuma elite loura ounórdica, branca pura: nem gente toda morena e de cabelo preto. Nemos dólico-louros de Oliveira Viana, nem os judeus de Sombart, nemos moçárabes de Debbané, mas portugueses típicos. Gente mista nasua antropologia e na sua cultura” (p. 202-4).

A romanização ou a latinização da Península Ibé-rica, se não deixou traços sensíveis em sua composiçãoétnica, pois sua influência foi mais de caráter econômi-co e político, trouxe ao povo vencido as vantagens de

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uma técnica superior de trabalho que se traduziu em es-tradas, termas, aquedutos, arcos, fábricas de louças, aexploração do seu subsolo (minas) e novas formas dehabitação. Muitas instituições tomaram as feições roma-nas e a fala latinizou-se e os deuses romanos foram in-troduzidos e aceitos.

Depois dos romanos vieram os alanos, os vânda-los, os suevos e os visigodos, sendo que estes últimospermaneceram dominantes por cerca de três séculos,sem que destruíssem as estruturas latinas deixadas pelosromanos, antes adaptando-se a elas e, em especial, aoDireito romano.

A longa e exaustiva peregrinação do nosso autor,assinalando cada um dos povos e cada uma das etnias queestão à raiz da formação do povo português, tem comoobjetivo central demonstrar que sua “aptidão” para colo-nizar os trópicos é decorrente dele ser constituído por“gente mista na sua antropologia e na sua cultura”. “Gente mista”,expressão que eqüivale a dizer não existir predominân-cia marcante de nenhuma das etnias ou culturas que aformaram. Nem o tipo negróide (africano) nem o tipolouro (europeu), nenhum dos dois firmou-se como otipo predominante, pois como no Brasil, onde são maisfreqüentes, o “louro transitório, o meio-louro e o falsolouro” (p. 206) já existiam em Portugal.

Não havendo um tipo predominante, cada umadas etnias que colaboraram na formação do povo portu-guês deixaram traços genéticos que o predispunham nãosó a mobilidade – contribuição dos semitas –, mas, fun-damentalmente, a uma fácil adaptação a novos meiosgeográficos e a novas condições de vida. Sua adaptabili-dade se concretiza em todos os setores da vida, do sexo

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à alimentação, da conquista de espaços à criação de umestilo de vida próprio e peculiar3.

B. O PAPEL DA RELIGIÃO CATÓLICA

E DE SUA HIERARQUIA

Nessa mistura de raças e culturas, um pontoenfatizado, por nosso autor, é a inexistência de antago-nismos provocados pela religião. Mesmo a adoção docatolicismo não correspondeu a um repúdio total dosdeuses romanos que haviam penetrado profundamentenos sentimentos religiosos da “população indígena”. Os no-vos santos católicos deles tomaram muitos de seus atri-butos e semelhanças para se tornarem populares (p. 204).Se os invasores arianos, por um lado, converteram-se aocatolicismo, abandonando suas crenças religiosas origi-nais, legaram a Portugal, por outro, costumes que “cria-riam definitivas raízes na antiga província romana”. En-tre as influências provocadas pelo Direito romano epelos costumes arianos, imiscuiu-se de maneira sutil uma

3 “A colonização do Brasil se processou aristocraticamente –mais do que a de qualquer outra parte da América.... Masonde o processo de colonização européia afirmou-se essen-cialmente aristocrático foi no norte do Brasil. Aristocráti-co, patriarcal, escravocrata. O português fez-se aqui senhorde terras mais vastas, dono de homens mais numerosos quequalquer outro colonizador da América. Essencialmenteplebeu, ele teria falhado na esfera aristocrática em que tevede desenvolver-se seu domínio colonial no Brasil. Não fa-lhou, antes fundou a maior civilização moderna nos trópi-cos” (idem, ibidem, p. 190).

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terceira influência, o Direito Canônico, cujo efeito foio de amaciar os antagonismos entre aquelas. Com isso:

“Estabeleceu-se uma nobreza episcopal com gestos dequem abençoa ou pacifica, mas na verdade de quem mandae domina. Domínio efetivo, através da autoridade conferidaaos bispos de decidirem em causas civis” (p. 206).

Isto quer dizer que, em Portugal, os padres obti-veram não apenas prestígio místico e moral, como tam-bém o jurídico, além de tomarem para si grande partedo poder político e intelectual. É ainda em terras portu-guesas que se formam ordens religiosas que eram tam-bém militares e que tiveram grande relevância nas guer-ras de reconquista das terras aos mouros, do que seaproveitaram para se tornarem grandes latifundiários. Aíestá como que o início do tipo de colonização latifundi-ária e semi-feudal realizada no Brasil pelos portugueses(p. 206-7). A diferença entre uma e outra, porém, resideno fato de que a colonização, no Brasil, foi realizada porparticulares e aos padres coube vincular-se ao latifúndiocomo um dos tantos agregados ao senhor de engenho.

Coube às ordens religiosas, também, um papel de-cisivo na reorganização econômica das terras retomadasaos mouros e na reorganização política de populaçõestão heterogêneas. Com isso a nação portuguesa consti-tuiu-se religiosamente. E diz mais nosso autor, quandoafirma que “por tolerância política da maioria” duas grandesdissidências permaneceram intocadas, os judeus e osmouriscos. Mas essa tolerância terminou, pelo menosem relação aos judeus, quando estes tornaram-se “os deten-tores das grandes fortunas peninsulares” . E completa seu pensa-

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mento afirmando: “Foi quando a maioria se apercebeu de que suatolerância estava sendo abusada. Pelo menos pelos judeus” (p. 207).

A conseqüência maior desse enriquecimento dosjudeus e do ódio que despertou foi a criação do Tribu-nal do Santo Ofício, cujas funções tanto incluíam o exa-me das consciências como o exame minucioso dos bensque haviam acumulado (p. 207-8).

Contudo, segundo nosso autor o ódio verdadeirofoi aquele que o português sentiu em relação ao mouro,que ele compara ao ódio do colonizador português aobugre ou ao herege, principalmente em relação este. Poiscontra este conjugaram seus esforços para expulsá-losjesuítas e senhores de engenho. Como diz Gilberto:

“Sem esse grande espantalho comum talvez nunca setivesse desenvolvido “consciências de espécie” entre grupostão distantes uns dos outros, tão sem nexo político entre si,como os primeiros focos de colonização lusitana no Brasil.A unificação moral e política realizou-se em grande partepela solidariedade dos diferentes grupos contra a heresia,ora encarnada pelo francês, ora pelo inglês, ou holandês; àsvezes, simplesmente pelo bugre” (p. 192).

Segue-se daí que o ódio se manifesta contra o pe-cado e não contra o homem pecador. O que se buscaevitar é que na colônia entre o pecado, pois este é verda-deiramente o inimigo. Não o indígena ou o estrangeiro,qualquer que seja sua etnia ou cor4.

4 “Seu ódio (o dos padres) é profilático. Contra o pecado e nãocontra o pecador, diria o teólogo. É o pecado, a heresia, a

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“Na falta de sentimento ou da consciência da superio-ridade da raça, tão salientes nos colonizadores ingleses, ocolonizador do Brasil apoiou-se no critério da pureza dafé. Em vez de ser o sangue foi a fé que se defendeu a todotranse da infecção ou contaminação com os hereges. Fez-seda ortodoxia uma condição da unidade política. Mas nãose deve confundir esse critério de profilaxia e de seleção, tãolegítimo à luz das idéias do tempo como o eugênico dos po-vos modernos, com a pura xenofobia” (p. 195-6)

III. O PAPEL DO NEGRO

A grande importância atribuída por GF. à presen-ça do escravo negro na sociedade híbrida brasileiraexplicita-se, materialmente, desde logo, por dedicar-lhedois dos cinco capítulos de sua obra. Este, contudo, éapenas um sinal visual imediato do quanto nosso autoré sensível ao papel exercido pelo negro na constituiçãode nossa sociedade e na formação do homem brasileiro.Influência que tem origem nos peitos da negra ama-de-leite que sugados pelo bebê branco vão condicionar suavida sexual futura.

Contudo, o que realmente interessa ao escritorpernambucano é mostrar e demonstrar em quê e nocomo o negro acabou por se constituir num importante

infidelidade que não se deixa entrar na colônia, e não o es-trangeiro. É o infiel que se trata como inimigo no indígena,e não o indivíduo de raça diversa, ou de cor diferente” (idem,ibidem, p. 193).

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componente na criação do homem brasileiro. Não ape-nas na economia da sociedade em gestação, aspecto quemenos interessa a Gilberto Freyre, nem sua contribui-ção à vida estética da nova sociedade5. O que realmentelhe interessa é demonstrar a presença marcante e decisi-va do negro no que hoje é o homem brasileiro. Não épor outra razão que inicia o IV capítulo de Casa Grande& Senzala, com esta afirmação categórica:

“Todo o brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, trazna alma, quando não na alma e no corpo – há muita gen-te de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil – a som-bra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. Nolitoral, do Maranhão ao Rio Grande do Sul e em MinasGerais, principalmente do negro. A influência direta, ouvaga e remota, do africano” (p. 283)

Se lhe interessa menos as contribuições estéticas eeconômicas do negro, embora sem despreza-las oudesconhecê-las, restam como principais objetivos de aná-lise sua contribuição biológica e cultural. Não é suficien-te atentar para o fato de que em quase todos os brasilei-ros de hoje a “sombra” do negro é facilmente detectável,é preciso limpar essa contribuição de todo biologismo

5 “Não nos interessa, senão indiretamente, neste ensaio, aimportância do negro na vida estética, muito menos nopuro progresso econômico, do Brasil. Devemos, entretan-to, recordar que foi imensa. No litoral agrário, muito maior,ao nosso ver, que a do indígena. Maior, em certo sentido,que a do português” (idem, ibidem, p. 284).

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que vê no negro um ser inferior, física e intelectualmen-te, quer em relação ao indígena ou ao branco português.

Em sua valorização do negro, numa longa digres-são, apoiada em autores diversos, Gilberto Freyre afir-ma a superioridade negra em relação ao indígena. Essasuperioridade se afirma tanto no plano cultural6 quantonas características físicas, que são muito mais adequadasao clima tropical7.

O mesmo raciocínio se aplica em relação branco,pois este, de maneira alguma, apresenta superioridadefísica ou mental sobre o negro. Sua demonstração é ex-tensa e exaustiva e o fio de argumentação segue a técni-ca de contrapor experiências distintas de diferentes ci-entistas que se contradizem.

6 “ Porque nada mais anticientífico que falar-se da inferiori-dade do africano em relação ao ameríndio sem discriminar-se antes que ameríndio; sem distinguir-se que negro. Se otapuio; se o banto; se o hotentote. Nada mais absurdo doque negar-se ao negro sudanês, por exemplo, importado emnúmero considerável para o Brasil, cultura superior à doindígena mais adiantado. Escrever que “ nem pelos artefa-tos, nem pela cultura dos vegetais, nem pela domesticaçãodas espécies zoológicas, nem pela constituição da família oudas tribos, nem pelos conhecimentos astronômicos, nempela criação da linguagem e das lendas, eram os pretos supe-riores aos nossos silvícolas”, é produzir uma afirmativa quevirada pelo avesso é que dá certo” (idem, ibidem, p. 285).

7 “Pode-se juntar, a essa superioridade técnica e de cultura dosnegros, sua predisposição como que biológica e psíquicapara a vida nos trópicos. Sua maior fertilidade nas regiõesquentes. Seu gosto de sol. Sua energia sempre fresca quan-do em contato com a floresta tropical” (idem, ibidem, p. 286).

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Nada ou quase nada escapa ao crivo crítico de GF.Da forma do crânio ao peso do cérebro, dos lábios gros-sos e narizes achatados aos pelos do corpo, do pensa-mento reflexivo ao instintivo, da hereditariedade ao ca-ráter adquirido, tudo, enfim, é manejado habilmentepelo nosso autor de maneira a nos demonstrar a impos-sibilidade de afirmar-se a superioridade de uma raça so-bre a outra.

Gilberto Freyre, ao encarecer a contribuição doafricano nos diferentes setores da sociedade agrária bra-sileira, enfatiza que as razões disso devem ser buscadasno fato de que, ao contrário do que ocorreu nos Esta-dos Unidos da América, para o Brasil não vieram ape-nas escravos cuja qualidade fundamental era a força físicacomo para aquele país. As necessidades da colonizaçãoportuguesa eram outras e incluíam a falta de mulheres ede técnicos, quando do início da mineração (p. 306). Poroutro lado, não deixa ele de lembrar, baseando-se noabade Étienne, que muitos dos africanos vindos para acolônia eram letrados, como pode ser comprovado pelomovimento malê, em 1835, na Bahia. Em suas palavras,o movimento revela “aspectos que quase identificam essasuposta revolta de escravos com o desabafo ou a erup-ção de cultura adiantada, oprimida por outra, menosnobre”8.

8 “Não romantizamos. Fosse esse movimento puramentemalê ou maometano, ou combinação de vários grupos soblíderes muçulmanos, o certo é que se destaca das simplesrevoltas de escravos dos tempos coloniais. Merece lugar en-tre as revoluções libertárias, de sentido religioso, social oucultural” (idem, ibidem, p. 299)

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Tão importante é, também, a sua afirmação deque o negro por sua adaptabilidade aos trópicos foi “omaior e mais plástico colaborador do branco na obra de colonizaçãoagrária”, chegando a ser um precioso auxiliar na europei-zação do indígena9.

As razões dessa importância do negro em quasetodas as áreas da então colônia devem ser buscadas nofato de que muitos dos africanos que aqui vieram eramislamitas, com uma cultura superior quer em relação aonativo, quer em relação ao português. Este último anal-fabeto, ou semi-alfabetizado, incapaz mesmo de escreveruma carta.

“A formação brasileira foi beneficiada pelo melhor dacultura negra da África, absorvendo elementos por assimdizer da elite que faltaram na mesma proporção ao Suldos Estados Unidos” (p. 299-300).

9 “Tais contrastes de disposição psíquica e de adaptação tal-vez biológica ao clima quente explicam em parte ter sido onegro na América Portuguesa o maior e o mais plástico co-laborador do branco na obra de colonização agrária; o fatode haver até desempenhado entre os indígenas uma missãocivilizadora no sentido europeizante” (idem, ibidem, p. 289).

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C A P Í T U L O I V

O S V A L O R E S E T N O - C U L T U R A I SD A N O V A S O C I E D A D E

Toda sociedade necessita para sua existência e so-brevivência que seus membros mantenham, entre si, nãoapenas relações de trabalho, sejam livres ou escravistas,como no início de nossa colonização, mas partilhem va-lores sejam materiais ou culturais que cimentem e dêemum sentido comunitário a tais relações. É o que algunsautores denominam de capital social.

Os portugueses quando aqui chegaram encontra-ram uma natureza exuberante e uma terra “em que plan-tando tudo dá”, mas uma sociedade indígena que dissoainda não se apercebera, vivendo exclusivamente dacaça, da pesca e da coleta.

Sem uma estrutura agrária adequada, os coloniza-dores logo se deram conta de que a simples pilhagem ti-nha fôlego curto e que não podiam sobreviver adaptan-do-se a um modo de produção primitivo, e que lhescabia a tarefa de construir um modo de produção con-

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dizente com suas expectativas econômicas. Diferente-mente do que acontecia com os colonizadores espa-nhóis, o ouro e a prata eram apenas uma esperança, umautopia que se traduzia em eldorados imaginários.

Essa sociedade indígena nômade, refratária ao tra-balho constante e diário, ao português oferecia, em con-trapartida, em abundância, a mulher dócil e higiênica,que facilitou e incentivou sua fixação na terra, e foi atra-vés dela que começa a esboçar-se a sociedade híbrida deque fala nosso autor, daí uma das razões de sua ênfasena análise das relações sexuais.

É pelo contacto constante e íntimo com a mulherindígena que o colonizador, longe de seu país e de seushábitos e costumes, adquire novas maneiras de ser, no-vos comportamentos e uma maneira nova de pensar.Nesse sentido, o português ao tomar a indígena comoesposa, amante ou serviçal, fazia muito mais do que sim-plesmente dar vazão a sua sensualidade: dava os passosiniciais para a construção de uma nova sociedade em queos valores sexuais desempenhariam um decisivo papel.

Como esposa, mãe, amante ou serviçal (menos efi-ciente do que a negra, que, posteriormente, veio a subs-tituí-la com vantagens), a cunhã legou aos portugueses ea seus descendentes novos costumes, novas drogas e há-bitos alimentares, principalmente, a mandioca, o caju,o milho; a um povo – como todo europeu pouco assea-do em que a higiene corporal pouca ou nenhuma impor-tância possuía – ensinou, pelo exemplo, as delícias demanter o corpo cuidado e limpo pelo banho diário; edeu-lhe filhos, muitos filhos, os curumins, que não apenasajudaram a povoar a terra, como serviram para que osjesuítas, no afã de transformá-los em bons cristãos e bons

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cidadãos, deles se servissem para desacreditar e desmo-ralizar os costumes socio-religiosos dos indígenas.

É a ela também que se deve o ter se incorporadona vida do país mil e uma pequenas coisas como o min-gau que saboreamos, a rede em que embalamos o nossoócio e nossa volúpia, o óleo de coco, para besuntar oscabelos, o gosto pelos animais domésticos, e a cerâmica.

As relações sexuais facilitaram e incentivaram oportuguês tanto a fixar-se na terra pela generosa abun-dância de mulheres quanto lhe permitiu uma incursãono mundo sexual do indígena – diverso e mais descon-traído do que do adventício, pleno de proibições e detabus, impostos por uma religião que em tudo vê peca-do e ofensas, mas que, historicamente, sofre a influênciade uma moralidade moçárabe, mais tolerante e permis-siva que aqui encontra campo para se exprimir. Até mes-mo a homossexualidade tão combatida pela inquisição epelos padres se manifesta livremente na sociedade indí-gena, a tal ponto que o autor classifica os invertidos se-xuais, por suas atribuições, entre as mulheres, jovens ouvelhas. É tão normal entre eles a inversão sexual, tem-porária ou permanente, que passam a ser chamados debugres (bougre), um termo francês utilizado para designaro homossexual. Até mesmo a instituição da couvade é pos-sível interpretar-se tendo por fundamento a bissexua-lidade, ou seja o desejo do homem invertido sentir emsi por sua “identificação com a mulher a alegria da maternidade”1.

Como a mulher tem um valor econômico, porrepresentar o trabalho diário e constante da agricultura

1 FREYRE, Gilberto. Casa grande & Senzala, p. 117.

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e da indústria, a poligamia indígena é menos uma decor-rência das necessidades sexuais do homem do que de seudesejo de agregar novos valores econômicos pela possede mais de uma mulher2.

Em suma, como ressalta nosso autor, o homemindígena, quando da descoberta do Brasil, levava umavida parasitária, lançando sobre os ombros da mulher apesada carga dos serviços da agricultura, da indústria eda arte. Enquanto que aos invertidos, muito provavel-mente, estavam reservadas as tarefas da magia e do mis-ticismo, do aconselhamento e do curandeirismo.

O homossexualismo nas tribos indígenas nãoocorria, ao que parece, por uma perversão congênita, oupor escassez de mulheres, mas antes pelo tipo de vidasocial que levavam, na qual os homens se segregavam eminstituições próprias e reservadas, que favoreciam ahomomixia (p. 119).

Era também nessas associações secretas, reserva-das exclusivamente aos homens, que se dava a iniciaçãoe a educação das crianças pelos homens mais velhos. Eraaí que a criança, em contato com os mais velhos da tribo,se iniciava nos mistérios e tradições de seu povo, atravésde uma educação técnica e moral, durante a qual lheeram transmitidos todos os conhecimentos técnicos, re-lativos à construção, à caça, à pesca e à guerra, acoplados

2 “Entre os seus era a mulher índia o principal valor econô-mico e técnico. Um pouco besta de carga e um pouco es-crava do homem. Mas superior a ele na capacidade de utili-zar as cousas e de produzir o necessário à vida e ao confortocomuns.” (Idem, ibidem, p. 116).

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à música e ao canto, bem como aos mistérios da magia eda religião, suscetíveis de serem ensinados aos leigos.

A criança indígena, assinala o nosso autor, nãovive num paraíso, nem desfrutava de uma liberdade semrestrições. Toda uma cultura do medo se desenvolvia emtorno dele, a fim de controlar sua espontaneidade esubmetê-lo a autoridade dos mais velhos, ou paraprotegê-lo de espíritos ou de influências malignas. Dan-ças e cantos auxiliavam nessa pedagogia e profilaxia,onde não faltavam as figuras de bichos e papões, pron-tos a castigar o menino mau e desobediente.

A preocupação do autor ao analisar minuciosa-mente os papéis desempenhados pela criança, a mulhere o homem na sociedade indígena tem como objetivofundamental demonstrar por que caminhos sua cultura,hábitos e costumes, alimentares e sexuais, mágicos emíticos, integraram-se no novo homem que surgia nanova sociedade em formação.

Integração que se fez por processos, muitas vezes,violentos e dolorosos, nos quais a exterminação física doíndio era uma constante, quer pela escravidão ou destrui-ção das suas aldeias, quer pela disseminação de doenças,desconhecidas, até então.

Por sua incapacidade de atender às exigências dotrabalho sedentário e rotineiro, o índio teve um papelbem menos importante do que o da mulher nesse pro-cesso de adaptação dos valores indígenas à nova socieda-de em constituição. Por outro lado, é preciso tambémlembrar que a sociedade indígena tem na mulher o seu ele-mento mais significativo e operante, pois sua cultura “qua-se que era só feminina na sua organização técnica, mais complexa, o ho-mem limitando-se a caçar, pescar, a remar e a fazer a guerra” (p. 159).

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Se a nossa sociedade é híbrida, como tantas outras,sua originalidade está em que aqui não se desenvolveram“bolões duros, secos, indigestos, inassimiláveis ao sistema social do eu-ropeu. Muito menos estratificando-se em arcaísmos e curiosidadesetnográficas”.

A cultura indígena é uma “presença viva, útil, ativa, enão apenas pitoresca, de elementos com atuação criadora no desenvol-vimento nacional”. Não temos também o ódio e a antipatiaentre as duas raças que observamos nos países de coloni-zação protestante e anglo-saxônica. Nossas relações fo-ram suavizadas pelo “óleo lúbrico da profunda miscigenação, quera livre e danada, quer a regular e cristã sob a benção dos padres, peloincitamento da Igreja e do Estado” (p. 160).

Se a mulher indígena foi a grande artífice no iní-cio de nossa colonização para a formação do novo ho-mem brasileiro, é o negro, nas suas diversas proveniên-cias, que desempenhará, por sua capacidade de trabalhoe cultura, um papel decisivo na fixação do português ena construção da nova sociedade.

Gilberto Freyre, desde logo, afirma que não o “in-teressa, senão indiretamente, neste ensaio, a importância do negro navida estética, muito menos no puro progresso econômico do Brasil. De-vemos, entretanto, recordar que foi imensa. No litoral agrário, muitomaior, ao nosso ver, que a do indígena. Maior, em certo sentido, que ado português. / Idéia extravagante para os meios ortodoxos e oficiaisdo Brasil, essa do negro superior ao indígena e até ao português. Emvários aspectos de cultura material e moral. Superior em capacidadetécnica e artística.” (p. 284).

Ao afirmar, de maneira taxativa, de que apenasindiretamente lhe interessa a contribuição do negro navida estética e no progresso econômico do Brasil, mes-mo que ela tenha sido imensa, Gilberto Freyre mostra

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que sua obra quer, na realidade, circunscrever-se aos as-pectos biológicos e culturais de sua participação na cons-trução da sociedade híbrida, antagônica e não conflituo-sa, e do homem brasileiro. Sua superioridade sobre oindígena e o português aparece, desde logo, por sua faci-lidade em adaptar-se ao clima tropical e se completa porser “superior em capacidade técnica e artística” e em muitos “aspectosde cultura material e moral” (p. 284).

Essa é uma idéia extravagante, diz o nosso autor,e sua tarefa é a demonstração dessa idéia extravagante,ao longo dos dois longos capítulos que dedica à contri-buição do negro na “vida sexual e de família do brasileiro”.

Talvez devamos nos perguntar o porquê da esco-lha da vida sexual como chave para o desvendamento dohomem brasileiro e da sociedade híbrida nacional. A res-posta parece estar no fato de que o ato sexual é o maisíntimo dos atos humanos; é aquele em que deixamos deser um aristocrata, um senhor de engenho, um escra-vo(a), um menino, uma mulher, para sermos apenas ho-mens e mulheres. Que se entregam ao sexo, não apenaspelo desejo, mas para se sentir vivo, confessando, muitasvezes, suas fraquezas e transmitindo valores que de ou-tra forma, talvez, nunca viessem à tona. O sexo semprefoi uma arma dos conquistados, nem sempre consciente,para superar os sofrimentos do domínio e para a trans-missão de seus valores culturais, pois são estes que po-dem mostrar ao Outro que são também seres humanos.

A ama negra que oferece seus peitos fartos ao bebêbranco não lhe dá apenas o leite que o faz viver, mas lhetransmite pelo canto e pelas palavras carinhosas umaconcepção de mundo diferente daquele de seus pais; aescrava negra, bela e jovem, que se deita com o jovem

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senhor não lhe dá apenas o seu corpo e seus cheiros, es-tes são os meios de que dispõe para afirmar sua feminili-dade, em sua trágica condição.

O sexo assim deixa de ser um fato íntimo e pesso-al, ele se transforma num instrumento fundamental deintercomunicação cultural, no qual seus participantesdão e recebem sem uma consciência clara de que issoacontece.

O português sujo e carente que vê a indígena nuae limpa, o senhor de escravos, ou o menino da casa gran-de, que buscam na senzala, este a iniciação, aquele o quelhe falta no quarto do casal, rompem sem o saber as fron-teiras culturais que deviam segrega-los. Então se abremas portas para uma sociedade híbrida, antagônica emulticultural.

Contudo, nosso autor jamais deixa de enfatizarque a promiscuidade sexual, da qual resultam para osseus participantes sérias conseqüências, das quais asifilização, transmitida pelo branco, é apenas uma delas,não é fruto da baixa moral do africano, mas sim um dosmuitos amargos produtos do sistema escravista. Não éo africano, homem ou mulher, que impõe sua sensuali-dade, é o sistema que a abriga como uma de suas formasde ser3. Mas ao abriga-la, esse sistema permite que os va-lores etno-culturais dos dois parceiros se intercomuni-

3 “É absurdo responsabilizar-se o negro pelo que não foi obrasua nem do índio mas do sistema social e econômico emque funcionaram passiva e mecanicamente. Não há escravi-dão sem depravação sexual. É da essência do regime.” (Idem,ibidem, p. 316).

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quem, de maneira que a preta velha, não é apenas umaescrava que dá seu leite ao menino branco; por ser bati-zada, ela lhe transmite sua forma de ser católica, diferen-te da de seus pais. Os africanos, homens e mulheres, re-criam a religião que recebem do branco e ao a recriaremmesclam seus próprios valores culturais, que serão, porsua vez, absorvidos pelos brancos e neles se sentirão tãoà vontade quanto aqueles.

Obrigados a aprender o português, a língua dosenhor, adaptam-na às idiossincrasias de sua língua na-tal. Nesse processo, as línguas africanas acabam por sedissolver na língua portuguesa, enriquecendo-a com ter-mos, vocábulos e, mais importante, dando-lhe uma dic-ção bem diferente do falar português. A dureza deste naboca do escravo e da escrava se transmuda num falar gen-til e adocicado. Um diga-me autoritário e impositivo setransforma num suave me diga. E por mais que os mes-tres da língua portuguesa, especialmente os jesuítas,combatam o linguajar africano, junto aos filhos dos se-nhores, não conseguem impedir que eles também utili-zem os novos vocábulos e as novas maneiras de dizer oportuguês. É como que uma nova língua, cuja expres-sividade, quase infantil, está em seu amolecimento, nasua doçura, que transforma sujeira em cacá, bunda embumbum, urinar em pipi. Mesmo os nomes próprios seadaptam à nova forma de dizer e então surgem asDondons, as Toninhas, Totonhas, Tetés, etc.4 Essa influência

4 “No ambiente relasso da escravidão brasileira, as línguasafricanas sem motivos para subsistirem à parte, em oposi-ção à dos brancos, dissolveram nela, enriquecendo-a de ex-

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amolecedora das línguas dos seus senhores ocorre tam-bém nos Estados Unidos da América, especialmente emLouisiana, e no francês das Antilhas.

É tão marcante a presença do africano no desen-volvimento da língua portuguesa no Brasil que nossoautor não vacila em afirmar que “nossa língua nacional resul-ta da interpenetração das duas tendências” (p. 334).

Contudo, não devemos nos enganar, por interpe-netração não se deve compreender uma fusão das duasmaneiras de falar numa só. Para Gilberto Freyre, utili-zando João Ribeiro que nos ensina não haver nenhuminteresse “em reduzir duas fórmulas em uma única e emcomprimir dois sentimentos em um só”, a preservaçãode duas formas de dizer mais uma vez confirma que

“A força e a potencialidade da cultura brasileira pare-ce-nos residir toda na riqueza dos antagonismos equilibra-dos; o caso dos pronomes que sirva de exemplo” (p. 335).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível concluir-se um estudo sobre GilbertoFreyre, especialmente quando se utiliza basicamente suaobra primeira e mais importante, Casa Grande & Senzala?A indagação e a dúvida procedem, pois Freyre não é um

pressivos modos de dizer; de toda uma série de palavras de-liciosas de pitoresco; agrestes e novas no seu sabor; muitasvezes, substituindo com vantagem vocábulos portugueses,como que gastos e puídos pelo uso” (Idem, ibidem, p. 333).

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autor que conclui sua obra, ele demonstra o que querprovar. E o que ele deseja demonstrar? Que nos trópi-cos se constituiu uma sociedade tropical, híbrida e anta-gônica, que renegava o que diziam os Buckle, Lapouge,Gobineau, e tantos outros que acreditavam nessa possi-bilidade. Porém, mais do que isso, ele demonstrou queo terror do conflito que preocupara tanto os políticos ehistoriadores do século XIX e início do século XX, eraminfundados porque a sociedade que se formara era anta-gônica, porém não conflituosa. Por conflituosa, deve-mos entender as sociedades que não sabem ou não con-seguem manipular seus conflitos internos, sociais,econômicos e étnicos, a não ser pela violência física.

Os conflitos raciais nos Estados Unidos até as dé-cadas de 60 e 70, as violências étnicas entre negros naÁfrica, a guerra entre sérvios, muçulmanos, croatas ealbaneses na Iugoslávia, nos dias de hoje, mostram comclareza o que Freyre considera uma sociedade antagôni-ca, onde as oposições raciais, religiosas, sociais, jamaisatingem esses cumes de violência.

Preconceitos existem em todos os quadrantes; elesnão se exprimem apenas nas relações entre brancos enegros. Os conflitos étnicos não são causados pela corda pele, eles envolvem frustrações de distintas origens,ou sociais, ou culturais, ou religiosas ou econômicas, oude qualquer outra coisa que conduz o homem à agres-são e ao genocídio.

Se essa violência étnica não aconteceu no Brasilfoi porque, vimos, espero, nas análises anteriores, o ho-mem brasileiro, anunciado por Varnhagen, e demons-trado por Freyre, é a somatória de valores biológicos eculturais das três etnias que o constituíram e disso ele é

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consciente. Contudo, isso que me parece o maior méri-to de Freyre é, freqüentemente, lançado ao seu rostocomo uma ofensa, para alguns, porque é apenas umademonstração de seu conservadorismo político; paraoutros, porque sua análise da escravatura no Brasil dáum retrato excessivamente complacente das verdadeirasrelações entre o escravo e o seu senhor. Faria apenasduas observações:

1a) os autores dessas críticas dão a impressão deque não leram Gilberto Freyre, pois esquecem sua in-sistência em mostrar que o fato fundamental que deter-mina, em grande parte, a natureza das relações entrebrancos e africanos é o sistema escravista. E o sistemaescravista, aqui ou nos Estados Unidos, é sempre trági-co e doloroso.

A diferença aqui está no fato, já anunciado porVarnhagen, que o homem brasileiro deveria saber que éo resultado da fusão e miscigenação das três etnias. Oque não aconteceu nos Estados Unidos da América,onde o negro, ou qualquer outra etnia, que não fosse abranca, de origem anglo-saxônica, era escorraçada, comouma moléstia contagiosa, como algo que deveria ser evi-tado, jamais se compreendendo que essas etnias tambémiriam e estão contribuindo para o surgimento do ho-mem norte-americano;

2a) alguns brasilianistas, quando vêm ao Brasilpara estudar o sistema escravista5, parecem vir com uma

5 Ver Karasch, Mary. C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro –1808-1850. Trad. De Pedro Maia Soares. SP., Cia. das Le-tras, 2000.

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única preocupação: saber por quê os conflitos raciais noBrasil não são tão violentos quanto nos Estados Unidos.Frustrados por não entenderem esse fenômeno, criticamautores como Gilberto Freyre e, talvez, se conhecessemcriticariam Varnhagen, porque ambos estão empenha-dos em mostrar que o homem brasileiro é o fruto damiscigenação biológica e cultural das três etnias. E nissoforam coadjuvados, no século XIX, pelos políticos con-servadores, cujo maior temor era a fragmentação dopaís, se aqui ocorresse o que ocorreu nos Estados Uni-dos – discriminação racial – e nas colônias espanholas –lutas pela libertação. Seria conveniente, eles estudaremse houve nos Estados Unidos, antes da guerra de seces-são, autores com as mesmas preocupações. Com issocompreenderiam melhor o Brasil e o seu próprio país.

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B I B L I O G R A F I A S E L E T AD E G I L B E R T O F R E Y R E

Como a bibliografia de Gilberto Freyre é extensae variada, darei aqui apenas alguns dos seus títulos. Nasnovas edições de seus principais livros existem bibliogra-fias completas.

Casa Grande & Senzala. 17ª ed. R. J., José Olympio, 1975.

Sobrados e Mucambos. 5ª ed. R.J., José Olympio, INL-MEC,1977.

Ordem e Progresso. 4ª ed. R. J., Record, 1990.

Nordeste,4ª ed., R.J., José Olympio, 1967.

B I B L I O G R A F I A G E R A L

ABREU, Capistrano de, Capítulos de História Colonial(1500-1800) – 6ª edição, revista, anotada e prefaciada porJosé Honório Rodrigues. RJ., Civilização Brasilei-ra, 1976.

BURKE, Peter, A escola dos Annales – 1929 – 1989 – A Re-volução francesa da Historiografia. Trad. de Nilo Odalia.S.P., Editora Unesp, 1991.

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CASALECCHI, José Ênio, O Partido Republicano Paulista.S.P., Brasiliense, 1987.

CORRÊA, Anna Martinez, A rebelião de 1924 em São Pau-lo. S.P. Hucitec, 1976.

KARASCH, Mary, C., A vida dos escravos no Rio de Janeiro –1808 – 1850. Trad. de Pedro Maia Soares. S.P. Cia.das Letras, 2.000.

ODALIA, Nilo, As formas do Mesmo. S.P., Edunesp, 1997.

VARNHAGEN, F.ª de – História Geral do Brasil, 4ª edi-ção, R.J., J.E.& Laemmert Ltd., s.d., 5 volumes

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