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A Origem (Ursprung) como alvo e o método interpretativo de Walter Benjamin Anna Luiza Coli UFMG Resumo: O presente artigo tem por objetivo a análise do método interpretativo proposto por Walter Benjamin no prefácio à obra Origem do drama barroco alemão sob a perspectiva do conceito de Origem (Ursprung) e de sua importância central na compreensão do pensamento sobre a história, presente no texto tardio intitulado “Sobre o conceito da história”. A conexão entre a obra sobre o drama trágico do século XVII e o estudo sobre a história consiste na elucidação do conceito de Origem como categoria sobretudo estrutural, em detrimento da leitura que a compreende a partir de um ponto de vista genético, como uma categoria meramente histórica e arcaizante. Palavras-Chave: Origem, método interpretativo, história. Arqueologias “Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado”, escreve Walter Benjamin em um fragmento de seus ensaios literários, “deve agir como um homem que escava. Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo. Pois ‘fatos’ nada são além de camadas que apenas à exploração mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação.” 1 A imagem da escavação intermitente, paciente, da atenção exaltada ao objeto e da pormenorização de seus elementos: essa é a efígie da atividade filosófica, tal como esboçada por Benjamin no prefácio ao livro sobre o drama barroco do século XVII. 2 Representar a verdade que adormece nos objetos, restaurar-lhes a dimensão expressiva e significativa: esse é o propósito de seu método. O presente artigo tem como objetivo analisar o método interpretativo apresentado no “Prefácio” em sua conexão necessária com a reflexão acerca da história, tendo como ponto de referência a elucidação do conceito de Origem (Ursprung), não apenas como uma categoria histórica, mas como uma categoria de agudo apelo

03 Anna Luiza Coli

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  • A Origem (Ursprung) como alvo e o mtodo interpretativo de Walter Benjamin

    Anna Luiza Coli

    UFMG

    Resumo: O presente artigo tem por objetivo a anlise do mtodo interpretativo proposto

    por Walter Benjamin no prefcio obra Origem do drama barroco alemo sob a

    perspectiva do conceito de Origem (Ursprung) e de sua importncia central na

    compreenso do pensamento sobre a histria, presente no texto tardio intitulado Sobre

    o conceito da histria. A conexo entre a obra sobre o drama trgico do sculo XVII e

    o estudo sobre a histria consiste na elucidao do conceito de Origem como categoria

    sobretudo estrutural, em detrimento da leitura que a compreende a partir de um ponto de

    vista gentico, como uma categoria meramente histrica e arcaizante.

    Palavras-Chave: Origem, mtodo interpretativo, histria.

    Arqueologias

    Quem pretende se aproximar do prprio passado soterrado, escreve Walter

    Benjamin em um fragmento de seus ensaios literrios, deve agir como um homem que

    escava. Antes de tudo, no deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalh-lo como se

    espalha a terra, revolv-lo como se revolve o solo. Pois fatos nada so alm de

    camadas que apenas explorao mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa a

    escavao.1 A imagem da escavao intermitente, paciente, da ateno exaltada ao

    objeto e da pormenorizao de seus elementos: essa a efgie da atividade filosfica, tal

    como esboada por Benjamin no prefcio ao livro sobre o drama barroco do sculo

    XVII.2 Representar a verdade que adormece nos objetos, restaurar-lhes a dimenso

    expressiva e significativa: esse o propsito de seu mtodo.

    O presente artigo tem como objetivo analisar o mtodo interpretativo

    apresentado no Prefcio em sua conexo necessria com a reflexo acerca da histria,

    tendo como ponto de referncia a elucidao do conceito de Origem (Ursprung), no

    apenas como uma categoria histrica, mas como uma categoria de agudo apelo

  • estrutural. O primeiro passo dado no sentido de contextualizar a discusso

    metodolgica e seus interlocutores. Em seguida pretendo explicitar a distino

    conceitual entre saber e verdade, como o primeiro passo para a abordagem do mtodo

    propriamente dito. O ltimo passo consiste na anlise do conceito de origem e das

    conseqncias de uma interpretao que privilegia seu carter estrutural, em detrimento

    da leitura cannica que a entende como uma categoria essencialmente histrica,

    arcaizante.

    Cuidado: Atalhos!

    Mtodo caminho indireto, desvio.3 O mtodo interpretativo se apresenta no

    Prefcio epistemolgico-crtico como uma instncia preliminar que estabelece as

    diretrizes do acesso verdade. At aqui nada de novo. A discusso acerca dos mtodos

    cientficos e sua legitimidade roubaram a cena filosfica no perodo de transio entre

    os sculos XIX e XX. De maneira at mesmo irnica, entretanto, Benjamin desenvolve

    um percurso metodolgico que provocativamente se apresenta como um no-mtodo:

    desvio, intermitncia, discurso em curto circuito que a meio caminho interrompe a si

    mesmo a fim de renovar contato com seus objetos.4

    A provocao tem alvo preciso: de um lado os positivistas e seus principais

    representantes exaltavam os fatos e a realidade emprica como o ponto seguro do

    conhecimento verdadeiro acerca do mundo. De outro, os neokantianos mais

    especificamente, os tericos da escola de Marburg buscavam nas categorias a priori

    do Entendimento os preceitos da legitimao do conhecimento emprico. De um lado,

    temos o que Benjamin entende como a crena em uma facticidade pura, que postula a

    existncia de um experimentum crucis capaz de decidir a validade de uma teoria

    cientfica, e com ela a legitimidade do conhecimento; de outro uma conscincia pura,

    que fundamenta o real a partir de um princpio explicativo transcendental e esttico. De

    um lado a exaltao unilateral e extrema do objeto; de outro, a do sujeito.

    O esforo de delimitar um mtodo [meta (o que est para alm) hodos

    (caminho)] como via direta de acesso ao conhecimento legtimo, segundo o diagnstico

    de Benjamin, imps-se em todas as pocas que tiveram conscincia do Ser indefinvel

    da verdade.5 Entretanto, no instante em que o exerccio filosfico volta-se a uma

    tentativa de fundamentao do conhecimento, seja no emprico puro, seja numa

    conscincia transcendental, a filosofia destituda de seu lugar de representao da

    2

  • verdade,6 e passa a funcionar como uma espcie de propedutica. Seu papel limita-se,

    assim, a buscar as condies e pressupostos cognitivos sobre os quais devem se basear o

    mtodo, no sendo ela prpria o caminho da verdade.

    Se a filosofia quiser permanecer fiel lei de sua forma, como representao da

    verdade e no como guia para o conhecimento, deve-se atribuir importncia ao

    exerccio dessa forma, e no sua antecipao como sistema.7 O exerccio da

    representao da verdade: esse o sentido de um mtodo que revolve impetuosamente

    seus objetos, que os percorre com rigor at que seus elementos concretos, numerveis,

    desdobrem-se na representao daquilo que neles h de indizvel e de inaproprivel: sua

    verdade. Benjamin entende que o mtodo no procura comunicar essencialmente pela

    enunciao,8 pois a verdade que emana da demorada contemplao dos objetos ela

    mesma essencialmente contemplativa, e no cativa da apreenso categorial. Afinal, o

    que a verdade? No ser isto aquilo que [em um poema] se reconhece em geral como

    o inapreensvel, o misterioso, o potico? Aquilo que o tradutor s pode restituir ao

    tornar-se, ele mesmo, um poeta?.9

    A nova histria da Bela Adormecida

    Se a verdade o contedo inefvel e imagtico proporcionado pela

    contemplao do objeto, como o caso que podemos comunicar ou mesmo detalhar

    conceitualmente esse mesmo objeto? Para resolver esse impasse, Benjamin reafirma a

    diferena entre saber e verdade, no apenas enquanto atividades cognitivas distintas,

    mas principalmente enquanto atividades cognitivas distintas que atuam sobre objetos

    distintos. Trocando em midos, Benjamin defende a idia de que o objeto do saber no

    coincide com o objeto da verdade, a despeito do fato de que ambos se refiram a um

    nico ente. A verdade, presente no bailado das idias representadas, esquiva-se a

    qualquer tipo de projeo do reino do saber. O saber posse.10

    O saber no preexiste ao seu objeto, e existe somente na medida em que

    apropriado por uma conscincia. Pode-se dizer que o saber a parcela essencialmente

    apreensvel e comunicvel de nossa atividade cognitiva. Ele o signo do trato imediato

    com o objeto: seu contedo econmico,11 unilateral, desatento s suas

    particularidades enquanto objeto nico, bruto.12 a mxima de uma atividade

    intelectiva desatenta, descuidada, que busca no real e em seus objetos a identificao

    extrema, a sntese exagerada, a reduo de todo o conjunto de fenmenos empricos a

    3

  • uma meia dzia de princpios racionalmente computveis. A sistematizao que parte

    do objeto de saber prescreve uma aplicao arbitrria a todo e qualquer objeto, um

    fenmeno histrico ou social ou mesmo dedues de leis naturais. Essa indistino,

    muito cara s pretenses universalistas de algumas correntes cientificistas, no seno

    um esquecimento, um abandono do objeto em prol da forosa conformao do real aos

    limites da conscincia.

    A verdade, ao contrrio, escapa a qualquer tentativa de captura, e o esforo

    intelectivo persecutrio a aniquila por completo. Sua manifestao, quando exaurido o

    contedo material dos objetos, pode ser caracterizada metaforicamente como um

    incndio, no qual o invlucro do objeto, ao penetrar na esfera das idias, consome-se em

    chamas, uma destruio, pelo fogo, da obra, durante a qual sua forma atinge o ponto

    mais alto de sua intensidade luminosa.13 A compreenso do problema da verdade

    exige, no entanto, maior familiaridade com as etapas do mtodo epistemolgico

    propriamente dito.

    Eu gostaria de contar, por uma segunda vez, a histria da Bela Adormecida.14

    Assim comea o irnico prefcio no qual Benjamin apresenta suas consideraes de

    carter epistemolgico sob o aspecto de uma releitura da fbula infantil. Na narrativa, a

    princesa desfeita em magia um belo dia acorda de seu leito. Mas no o beijo de seu

    prncipe que a desperta, e sim a sonora bofetada com que seu cozinheiro desmaia o

    suposto heri. A verdade a linda criana que adormece no interior dos objetos. O

    prncipe abastado aparece como o vilo que enfeitado com o deslumbrante

    equipamento cientfico,15 deseja apossar-se da bela princesa. O cozinheiro a figura

    que encarna o papel do mtodo, e faz despertar a verdade sem sequer toc-la, mantendo-

    a protegida das garras aniquiladoras da cincia.

    As constelaes e seu segredo

    O mtodo, que para o saber uma via para a aquisio do objeto (mesmo que atravs da sua produo na conscincia) para a verdade representao de si mesma e portanto, como forma, dado juntamente com ela. Essa forma no inerente a uma estrutura da conscincia, como o caso da metodologia do saber, mas a um Ser.16

    Desse ponto de vista, saber e verdade aparecem no apenas como atividades

    distintas, mas at mesmo contrrias: Benjamin considera que seu contedo de

    4

  • conhecimento [i.e., contedo da verdade, e no do saber] ser tanto maior quanto mais o

    que pretendiam enunciar estiver destrudo. S ento seu tnus de verdade pode

    manifestar-se.17 O saber, como fruto do contato descuidado com o objeto, a

    apreenso que o considera como um todo orgnico. Entretanto, esse suposto todo

    compreendido pelo mtodo benjaminiano como uma fraude, uma apreenso parcial e

    econmica que tem em vista uma exigncia metodolgica de invariabilidade e

    ordenao. O problema que o imobilismo da compreenso e conceitualizao do

    objeto contradizem a nossa experincia ordinria. No temos a experincia de um

    pedao de cera que se mantm sempre o mesmo, mas que se deixa modelar, que

    amolece na proximidade do fogo e que passvel de outras tantas modificaes.18 So

    estes objetos fenmenos distintos, ou no nos dado conhec-lo em sua essncia?

    Benjamin responde que, pelo contrrio, esse tipo de fragmentao significativa, de

    diferenciao fomentada no seio de uma identidade estabelecida o que propriamente

    caracteriza os objetos. O objeto apreendido pelo saber uma espcie de sntese, de

    equacionamento dessas mltiplas facetas sob uma carapaa de imutabilidade, de pura

    identidade.

    A verdade como morte da inteno,19 como impossibilidade de enunciao,

    cativa apenas do esforo contemplativo, o resultado de um processo reflexivo que atua

    fragmentando os objetos em seus diversos elementos constituintes e reagrupando-os sob

    diferentes perspectivas, at extrair deles todo o potencial significativo encoberto por sua

    aparente unicidade de acepo. Da a idia de que o mtodo deve partir da mutilao de

    seus objetos (ou bem da queima de seu invlucro material) para restaurar-lhes a

    verdade: o contedo de verdade s pode ser captado pela mais exata das imerses nos

    pormenores do contedo material.20

    O mtodo que tem como diretiva mimetizar a estrutura do objeto analisado e no

    a da conscincia analisadora deve, portanto, apresentar-se como digresso, como

    afastamento-aproximao que escava e fragmenta seus objetos. A cada movimento

    retrgrado da reflexo, novas facetas e significaes vo surgindo e se sobrepondo, de

    modo que o objeto aparentemente unificado percepo imediata, revela-se como um

    mosaico de elementos, como um ser que pela mediao da reflexo aparece como

    essencialmente fragmentado.

    O fenmeno assim implodido pela atividade metodolgica reunido sob as

    idias, que conferem uma nova organizao a esse emaranhado de elementos. O termo

    idia aqui compreendido, na esteira da teoria platnica das Idias, como uma

    5

  • instncia resguardada da corrupo e do vir-a-ser, e que em funo dessa permanncia

    salva os fenmenos da mera efemeridade. Contrariamente a Plato, no entanto,

    idia aqui no a elevao numnica dos elementos universalizveis do fenmeno,

    mas sua reorganizao concreta. Nisso reside sua capacidade de representar a verdade

    neles encerrada. Longe das idias, a verdade das coisas estaria condenada morte e

    disperso, inaptas formao de uma unidade significativa, e por isso sujeitas

    disperso no pensamento abstrato, que aniquila toda e qualquer particularidade. Da

    mesma forma, longe dos fenmenos, as idias no passariam de elementos abstratos e

    vazios.

    As idias se relacionam com os fenmenos como as constelaes se relacionam

    com as estrelas.21 Idia que representa a verdade aquela que acolhe os elementos de

    um fenmeno particular e efmero e, ao disp-los de maneira fragmentria, como uma

    espcie de constelao, faz aparecer a verdade neles adormecida. Esse o nobre segredo

    encerrado nos recnditos materiais de cada constelao de idias.

    Origem o Alvo 22

    A Origem aparece no contexto do Prefcio como uma espcie de ponto de

    chegada do mtodo interpretativo. Tal importncia deve-se a dois motivos em especial,

    a saber, (1) enquanto categoria histrica, a Origem o que torna as idias capazes de

    refletir a totalidade, e dessa maneira representar a verdade dos objetos; e (2) ainda

    uma categoria estrutural responsvel por fornecer o contedo e a configurao das

    idias. Tornemos isso mais palpvel.

    Enquanto categoria histrica a Origem se distingue claramente da gnese, posto

    que no pode ser compreendida como o instante em que um objeto passa da inexistncia

    existncia, mas como algo que emerge do vir-a-ser e da extino23. A Origem uma

    espcie de cristalizao do momento histrico da gnese que interrompe o curso da

    histria e absorve uma dada configurao (Sprung, salto; Ursprung, salto originrio,

    primevo. Aqui como salto para fora da cronologia histrica, do fluxo e do devir).

    Podemos conceber a Origem como uma categoria que absorve e mimetiza essa dada

    configurao histrica assim como o recm-nascido pode ser concebido (...) em um

    estado de perfeita adequao configurao atual do cosmo.24

    Ao mesmo tempo e, em funo de ser a origem uma categoria histrica, ela,

    igualmente, uma categoria estrutural do fenmeno originado. E isso porque a

    6

  • momentnea interrupo do fluxo do vir-a-ser pelo instante do salto originrio o

    movimento constituinte das idias. Elas so geradas juntamente com o fenmeno, e em

    conformidade com o teor histrico determinado pela Origem. Entretanto, por ser de

    natureza distinta do fenmeno, as idias surgem no como efetividade espontnea, mas

    como potncias a ser atualizadas pelo fenmeno, no decurso de sua histria. Depois de

    originadas, as idias permanecem em um estado de latncia, como uma espcie de

    objetivo cuja realizao o propsito mesmo do objeto. Por essa razo, em cada

    fenmeno de origem se determina a forma com a qual uma idia se confronta com o

    mundo histrico at que ela atinja a plenitude na totalidade da histria.25

    A partir dos elementos acima expostos podemos concluir que todo objetivo

    almejado no instante histrico, toda meta a partir da qual o objeto se origina o que

    permanece como uma promessa de realizao interna sua estrutura. Essa meta

    originria, e portanto incorruptvel. Origem o alvo: o significado dessa enigmtica

    frase de Karl Kraus pode ser agora entendido: o objeto definido em termos de

    estrutura e, assim, simultaneamente em termos de histria pelos alvos almejados em

    seu instante originrio. Todo objeto tende a um fim, que a atualizao das metas

    estabelecidas estruturalmente pela configurao histrica que o produziu. Com outras

    palavras, todo objeto tende atualizao de sua Origem.

    Quanto tempo/ vo durar as obras? Vo durar/ Enquanto no estiverem prontas(B. Brecht, De como construir obras duradouras)26

    por sua caracterstica de categoria estrutural, no entanto, que a Origem aparece

    como elemento determinante na reflexo de Benjamin sobre a histria. preciso, para

    tanto, compreender tanto seu carter indestrutvel quanto seu carter de totalidade como

    traos distintivos.

    O que original indestrutvel porque est para alm da transitoriedade e da

    corrupo. atemporal, porque no instante em que suas idias absorvem um momento

    histrico especfico e a partir disso projetam o percurso histrico ideal de seu objeto, o

    original encerra em sua estrutura tanto a pr-histria quanto a ps-histria do objeto

    dado. Enquanto pr-histria, o originrio mostra-se como restaurao do passado;

    enquanto ps-histria, mostra-se como incompletude, inacabamento. A dinmica da

    origem no se esgota na restaurao de um estdio primeiro, quer que tenha realmente

    existido ou que seja somente uma projeo mtica no passado; porque tambm

    7

  • inacabamento e abertura histria, surgimento histrico privilegiado o Ursprung no

    simplesmente restaurao do idntico esquecido, mas igualmente, de maneira

    inseparvel, emergncia do diferente.27 A possibilidade da diferena e da re-

    significao de um passado esquecido

    A noo de Origem particularmente importante para a reflexo acerca da

    histria porque permite apreender o tempo histrico em termos de intensidade e no de

    cronologia.28 Essa apreenso intensiva do tempo no objeto transforma-o em uma

    totalidade, em uma imagem abreviada do mundo.29 Ao mesmo tempo, o retira da

    causalidade histrica linear, na qual o significado de um determinado fenmeno

    compreendido somente enquanto este estabelece conexes lgicas com os fatos

    anteriores e posteriores. O objeto , assim, transportado para uma outra espcie de

    temporalidade. Esse novo mbito o espao no do tempo homogneo e vazio,

    encadeado numa cronologia pr-estabelecida, mas de um tempo que pura significao,

    que se desprende das amarras da sucesso dos fatos e estabelece para si um significado

    que lhe imanente. Os objetos histricos assim isolados so apresentados na sua

    unicidade e excentricidade como as peas de um museu.30

    O movimento de constituio da Origem, i.e., interrupo cronolgica e

    cristalizao da configurao histrica, o que garante a possibilidade de reabilitao

    dessa nova ordem interpretativa do real. Mas ela s fornece essa dimenso de

    ressignificao porque tambm incompletude, e no mera arcaicidade, mero retorno a

    um passado esquecido:

    Ela ao mesmo tempo indcio da totalidade e marca notria de sua falta; nesse sentido ela remete, sim, a uma temporalidade inicial e resplandecente, a da promessa e do possvel que surgem na histria. Mas nada garante nem o final feliz da histria nem da redeno do passado.31

    No momento em que a anlise de um fenmeno f-lo aparecer com tanta

    essencialidade que ele se revela como Origem, nos dada a possibilidade de resgatar as

    "promessas" recalcadas e no realizadas de seu momento originrio e, a partir dessa

    quebra da estrutura sucessiva da histria, atribuir um novo significado no apenas ao

    fenmeno, mas a toda a realidade.

    Quando o pensamento pra, bruscamente, numa configurao saturada de tenses, ele lhes comunica um choque, atravs do

    8

  • qual essa configurao se cristaliza enquanto mnada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal de uma imobilizao messinica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de uma oportunidade revolucionria de lutar por um passado oprimido.32

    A verdadeira revoluo, para Benjamin, aquela que volta ao passado para

    restituir as promessas soterradas pelo amontoado de runas,33 trazendo tona os

    anseios e as esperanas uma vez instigados pelos oprimidos, pelos que foram

    derrotados. Nisso consiste a frgil fora messinica para a qual o passado dirige um

    apelo.34

    Somente na histria, portanto, pode o conceito de Origem ser compreendido,

    pois a Origem seria, por assim dizer, uma idia que s pode se realizar,

    verdadeiramente (e eu acrescentaria, essencialmente), na histria.35 Uma vez dada essa

    conexo, evidente se torna que a compreenso desse conceito central Ursprung o

    que traz superfcie a relao estruturante e necessria entre a reflexo metdico-

    epistemolgica e a reflexo histrica. E, assim, a exigncia de rememorao do

    passado no implica simplesmente a restaurao do passado, mas tambm uma

    transformao do presente tal que, se o passado perdido a for reencontrado, ele no

    fique o mesmo, mas seja, ele tambm, retomado e transformado.36

    Abstract: The present paper intends to analyse the interpretative method proposed by

    Walter Benjamin in the preface to The origin of German tragic drama from the

    perspective of the concept of Origin (Ursprung) and its paramount importance for the

    comprehension of the reflection on history, present in the later text entitled Thesis on

    the concept of history. The connection between the work on the seventeenth century

    tragic drama and the study on history consists of the clarification of the concept of

    Origin as a mainly structural category, to the detriment of the reading that comprehends

    it from a genetical point of view, as a merely historical and archaicising category.

    Keywords: Origin, interpretative method, history

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    9

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    Notas

    10

  • 1 BENJAMIN. Imagens de Pensamento, p. 239.2 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemo. 3 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemo, p. 50.4 MATOS. O Iluminismo visionrio, p. 10.5 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemo, p. 50.6 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemo, p 50.7 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemo, p. 50.8 MATOS. O Iluminismo visionrio, p. 11.9 BENJAMIN. The task of the translator, p. 13 10 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemo, p. 53.11 Conceito tirado de: MACH, Ernst. The economy of science. In: NEWMAN, James R. (Org.). The World of Mathematics. vol. III, New York: Simon & Schuster, 1988, p. 1759-1767.12 GAGNEBIN. Histria e Narrao em Walter Benjamin, p. 11.13 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemo, p. 54.14 BUCK-MORSS. Dialtica do Olhar, p. 46.15 BUCK-MORSS. Dialtica do Olhar, p. 46.16 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemo, p. 52.17 MATOS. O Iluminismo visionrio, p. 11.18 Exemplo de Descartes em: DESCARTES. Meditaes, p.272.19 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemo, p. 58.20 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemo, p. 51.21 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemo, p. 56.22 Karl Kraus, Palavras em verso. Apud: BENJAMIN. Teses sobre o conceito de histria, p. 229.23 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemo, p. 68.24 BENJAMIN. On the mimetic faculty, p. 334.25 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemo, p. 68.26 BRECHT. Poems. Part II: 1929-1933, p. 193.27 GAGNEBIN, Histria e Narrao em Walter Benjamin, p. 18.28 GAGNEBIN. Histria e Narrao em Walter Benjamin, p. 8.29 BENJAMIN. Origem do drama barroco alemo, p. 70.30 GAGNEBIN. Histria e Narrao em Walter Benjamin, p. 10.31 GAGNEBIN. Histria e Narrao em Walter Benjamin, p. 14.32 BENJAMIN. Teses sobre o conceito de histria, tese 17, p. 231.33 BENJAMIN. Teses sobre o conceito de histria, tese 9, p 226.34 BENJAMIN. Teses sobre o conceito de histria, tese 2, p. 223.35 GAGNEBIN. Histria e Narrao em Walter Benjamin, p.15. 36 GAGNEBIN. Histria e Narrao em Walter Benjamin, p. 16.

    Quanto tempo/ vo durar as obras? Vo durar/ Enquanto no estiverem prontas