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1ª edição 2017

1ª edição - Travessa.com.br€¦ · gloriosamente ordinário. Comi a fatia de bolo e mal sabia eu que era a fatia de bolo que me comia a mim. Naquela noite fui ter com o diabo

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Nogy, GustavoN717s Saudades dos cigarros que nunca fumarei / Gustavo Nogy – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2017.

ISBN: 978-85-01-11084-8

1. Ensaios. I. Título.

CDD: 869.817-41298 CDU: 821.134.3(81)-8

Copyright © Gustavo Nogy, 2017

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissãode partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Direitos exclusivos desta edição reservados pelaEDITORA RECORD LTDA.Rua Argentina, 171 – 20921-380 – Rio de Janeiro, RJ – Tel.: (21) 2585-2000.

Impresso no Brasil

ISBN 978-85-01-11084-8

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Atendimento e venda direta ao leitor:[email protected] ou (21) 2585-2002.

ABDRASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DIREITOS REPROGRÁFICOS

EDITORA AFILIADA

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ÉCR

IME

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Sumário

Apresentação, por Alexandre Soares Silva 15

Meu amigo Max Brod 19As cólicas de Michel de Montaigne 21Que rei sou eu? 27O futuro de uma ilusão 29Do ateísmo geográfico 35Pais e filhos 37Sociedade dos Ateus Anônimos 43Baseado em fatos reais 47A coisa pública 53Do aborto ao botox 55Magia negra 61A bola parada 65Como vieram ao mundo 69Suspeitei desde o princípio 73Pra não dizer que não falei dos beagles 79Não seja você mesmo, por favor 81Profissão não é mérito 85O sétimo dia 89Nazi baby 91Sísifo on the beach 95Condenar o pecado, perdoar a literatura do pecador 101Democracia: modos de usar 103

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Milagres que se repetem 107Toda nudez será ignorada 111A cultura brasileira (não) existe 115Da medicina como corte e costura 123Escravos de Jó 125No pictures 129Crime sem castigo 131Que argumento, afinal de contas, é um par de tetas? 135O cru e o cozido 139Mula sem cabeça 141Ao infinito e além 145O verdadeiro desporto nacional 149Pôneis malditos 151O último bípede 157O taxista metafísico 159Risco de vida 161Onde vivem os monstros 165Ler não é crime 167A identidade na época de sua reprodutibilidade técnica 173Teatro mágico 177Preço não é valor 179Capeletti gay 183Caminho suave 187Esse tal de espírito olímpico 191Uma nota de rodapé ao golpe de 1964 197Reler é preciso, ler não é preciso 199Toda forma de amor 205Educação sentimental 207Eu, leitor 213Esta cidade não merece um verso 215Vida de artista 221O fator Hitler 225Capitalistas, graças a Deus 229O doente imaginário 233

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É isto um livro? 235Síndrome de Estocolmo 239Em briga de mulher e mulher, homem não mete a colher 241A natureza não é mãe; é madrasta 245Je suis quem, exatamente? 249Meu mel, não diga adeus 255A vida secreta dos livros 259Memento mori 263

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Meu amigo Max Brod

Jorge Luis Borges dizia: “Que outros se orgulhem dos livros que escre-veram; eu me jacto dos livros que li.” Entre o escritor e seus leitores não existe hierarquia. A arte da escrita, nobre o quanto pareça, depende da leitura. E não falo de técnicas arcanas, educação liberal, vanguardas teóricas de anteontem (nascidas velhas), mas sim da leitura amorosa, conscienciosa e inteligente — despida de escrúpulos e exagerada sub-missão —, que não é nem mais nem menos que uma delicada conversa entre o autor e seus leitores. Se for o caso: entre o autor e seu único leitor.

Não raro me comovo, escritor de obra nenhuma, escritor de obra que há de vir — se boa ou ruim, se desprezível ou valorosa, Deus saberá —, com as manifestações de leitores fiéis, cúmplices. Há os que, menos tímidos, agradecem-me por supostamente terem aprendido algo com o que escrevo. Outros, mais reservados, acompanham cada texto com entusiasmo e minuciosa discrição. Eu me comovo e me surpreendo.

Ainda que cultivem (ou simulem) proverbial misantropia, os escrito-res querem ser lidos. Querem comunicar algo a alguém — ou não escre-veriam. Se Franz Kafka desejasse, de fato, que sua obra fosse destruída pelas chamas, não a teria confiado a Max Brod. Escrever não é ensinar o que quer que seja, e ler não é estar sentado, como garoto em sala de aula, a aprender de mestres cheios de gravidade e indisfarçável soberba. Escrever é, tão somente, entabular conversa com amigos — e, admita-se, inimigos — que não podemos ver. A eles todos deixo consignados meu compromisso e minha gratidão. Todos os leitores, em seu anonimato e em sua generosa prudência, são Max Brod.

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As cólicas de Michel de Montaigne

Falar de si mesmo aborrece, e eu deveria me ocupar de metafísicas, revoluções, céus e infernos, todos os grandes temas que desde o Gê-nesis dão assunto e emprego para cronistas, poetas e historiadores, mas resolvi falar das minhas agruras muito íntimas e muito desim-portantes porque, como dizia Montaigne, que não sabia fazer outra coisa, “estudo a mim mesmo mais que a outro assunto. É a minha metafísica, é a minha física”.

E se Michel de Montaigne falava do tamanho modesto do próprio pênis, dos arroubos amorosos, da velhice, das cólicas de que sofria e de tantas outras bobagens, eu, que nada percebo de físicas e metafísicas, que sou incapaz de acompanhar as discussões seríssimas dos filósofos acadêmicos, tenho de falar de mim mesmo para ter assunto. Na falta de especulações ontológicas estritas, especulo sobre minhas circunvoluções gástricas, e minha Crítica da razão prática começaria assim:

“Certas vezes, o estômago me vai mal.”Escrevo e, de imediato, corrijo: quase sempre o estômago me vai mal.

É o tipo de incômodo que não me chega a indispor contra a vida, mas, quando o estômago me vai mal, a vida parece ser menos do que é. Menos de qualquer coisa que ignoro. De tal modo estou habituado que já não sei o que seria de mim se meu estômago não se me indispusesse tantas vezes. Não me lembro de como é passar dias inteiros, ou sequências inteiras de dias inteiros, sem saber do estômago que tenho. Há doenças piores, nojentas, mortais. Há doenças que, sem serem mortais, são tão hostis quanto os mais hostis dos homens-bomba.

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Relutantemente, convivo com meu modesto homem-bomba interior. Um terrorista íntimo, que muitas vezes chega a ser amigável, mas está sempre à espreita de oportunidades. Nunca sei ao certo, depois das refeições, se aquele será meu 11 de Setembro.

O que sei é que começou com uma fatia de bolo. A essa altura eu devia ter 24, 25 anos, e tudo ia bem. O futuro me parecia glorioso ou, se não glorioso, porque não havia motivos para acreditar na glória, gloriosamente ordinário. Comi a fatia de bolo e mal sabia eu que era a fatia de bolo que me comia a mim.

Naquela noite fui ter com o diabo e o diabo me disse, muito diabolica-mente, que aquela era a fatia de bolo, e não o pão, que ele havia acabado de amassar. Depois daquela noite em que fui ter com o maligno, tantas outras noites se seguiram, e seguem. Uma indisposição persistente, ora ligeira, ora demorada, me acompanha desde então.

Quando, num almoço, dizem “Comi até passar mal!”, isso me atinge com a força de trezentas bofetadas. Porque para mim essa frase tem sentido muito mais preciso, mot juste, que para o comum dos mortais. Não sabem as pessoas o que é “comer até passar mal!” como sei quase todos os dias. Comer até passar mal, para mim, é comer até passar mal.

O leitor que me acompanha até aqui deve estar a se perguntar: “Que tem esse puto, afinal?” Não sei ao certo. Sei que há um desajuste qualquer no estômago, ou no restante do corpo, ou na mente, ou no arranjo entre o estômago, o restante do corpo e a mente, que me faz sentir a (falta de) digestão. Se as mulheres se orgulham das dores do parto, eu posso me orgulhar de lhes saber os enjoos de grávidas. Disso eu sei bem, sem estar grávido.

Não sou melancólico, pessimista, vegetariano. Nietzsche sofria de mal parecido, somado às enxaquecas, e não era melancólico. Gostava da vida. Ao modo dele, um tanto histérico, um tanto desesperado, mas parecia gostar. Nietzsche era um menino cujo bigode cresceu demais, só isso. Mas sabia se divertir.

E esse “mal de Nietzsche”, esse sentir o estômago como soldado que sentisse as dores na perna que lhe foi amputada, as dores imaginárias na perna que não está mais no lugar devido, me faz sentir o estômago

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como uma presença tão constante quanto a presença do melhor amigo. Da mulher que amo. Do cachorro que adotei.

Meu estômago só não é mais fiel do que meu cão, diga-se logo. Já procurei especialistas. Vendi meu corpo à ciência e o devolveram por falta de préstimos. Voltou de lá esquadrinhado, medido, pesado, auscultado, fotografado. Não parece haver nada. O que parece haver é um transtorno qualquer de ansiedade, ou maldição semelhante, sapo enterrado nalguma encruzilhada.

Aflições digestivas, a propósito, me fazem pensar nas relações sutis entre mente e corpo; no quanto esqueleto e espírito estão imbricados. Sempre desconfiei das doenças chamadas psicossomáticas. A ideia de que a mente pudesse adoecer o corpo, ou, por outro lado, de que pudesse curar as doenças do corpo, não me convencia. Coisa de quem escreve livros de autoajuda ou vende florais de Bach. É reconfortante acreditar que um ajuste na mente curará sua embolia pulmonar.

Entretanto, desde que sofro com esses achaques, tenho de reconhe-cer que a proximidade entre carne e alma é maior do que se imagina. A depender das descargas emocionais ou psíquicas de que sou autor e vítima, meu estômago reage com tal prontidão que mais parece ser ele, e não meu cérebro, a produzir as descargas emocionais e psíquicas. Como se me fossem indicados psiquiatra para o estômago e gastroen-terologista para o cérebro.

Metafísica à parte, também as relações entre corpo e caráter têm lugar. Convidam-me para almoços e jantares e vou logo perguntando: “A que horas será o jantar? O que haverá para comer?” Tenho res-trições. Não que o mal-estar decorra de comidas muito específicas, porque não é o caso, mas a perspectiva de comer coisas de que não gosto invoca os demônios, digo, provoca a ansiedade que depois me fará das suas.

Porque se de ordinário já sou bastante objetivo nos meus gostos e desgostos, nas minhas alegrias e aflições, esse mal de estômago me fez encurtar os caminhos, dizer logo as coisas que precisam ser ditas, reclamar das que precisam ser reclamadas, sem tempo nem jeito para muitas cerimônias. Dizem que você é o que você come. Eu sou o que

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não como, ou o que não consigo comer. Em tempo: desapareçam com as cebolas da minha frente se me quiserem para o jantar.

Mas ter aflições com isso — sentir-se incomodado com a digestão, não esperar refeições como toda a gente espera: com a ansiedade das coisas muito boas, das coisas prazerosas — tem suas vantagens. Acre-ditem: há vantagens em tudo na vida.

Antes de dizer as vantagens, um parêntese: não pensem os fiscais da alimentação que dietas me servem ou serviriam; que abuso das gorduras; que como carne quando deveria comer vegetais; que bebo leite quando deveria beber sucos verdes; que me bastaria cortar isso ou aquilo, evitar isso ou aquilo, para que tudo se resolvesse. Estão enganados (como sempre estão).

As vantagens, eu dizia, de se ter aflições com o estômago. Além de não engordar facilmente, o que é óbvio e faria inveja a muitas mulheres que dão mais valor aos ossos que às carnes, a outra vantagem é a seguinte: sentir-se profundamente feliz quando não se está a sentir o estômago. Banal, isso. Mas é verdade, por ser banal não deixa de ser verdade.

Porque já tive (e ainda tenho) medo. Minha mãe morreu de câncer, trezentos outros membros da minha família morreram de câncer e a intimidade é tão grande que sempre penso nele. Tratamo-nos por “tu”. E atormento a um primo — médico, psiquiatra, santo, exorcista — para que me peça exames de toda ordem: de imagem, de sangue, de urina, de fezes, de hormônios, de neurônios. Tudo para prevenir o que temo. Como se fosse possível prevenir a vida de qualquer coisa. Cânceres são superproduções de células. Vida demais para corpo de menos. Dá no que dá.

Ter medo da morte, e de certo tipo especial de morte, às vezes cansa.Baruch Spinoza dizia que um filósofo não deve se ocupar da morte.

Eu, que não sou filósofo, ocupo-me da morte. Mas Spinoza propunha um universo em que Deus se confundia com tudo o que há, e tudo o que há — nós, inclusos — confundia-se com Deus. Em sua hipótese, a morte seria mesmo de uma insignificância ridícula. Não se morre individualmente, porque não há nada de suficientemente individual para morrer. Eu acredito que Spinoza estivesse errado.

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Não sou filósofo.E, não sendo filósofo, ocupo-me da morte — dos que amo, dos que

não amo, da minha própria morte — com insistência vulgar.O estômago me faz sentir essa realidade tão próxima e tão desco-

nhecida. Sabê-lo, quando algo não vai bem, é sentir que meu corpo é frágil, estranho, precário, fugaz, provisório — é pó. Passar mal do estômago é uma forma negativa de sentir que a vida está ali, pulsando, querendo manter-se, querendo durar em seu ser. “Tudo o que é quer durar em seu ser.”

Mas o fato é que algumas alegrias nos estão reservadas, e se revelam para nós, justamente quando afastam a tristeza, as dores, os mal-estares. O que é normal, ordinário e não precisa ser constantemente mencio-nado — isso é o que faz da vida uma experiência gratificante e que se quer preservar. Esquecer-se de si, da própria corporeidade, não como um anjo que não tivesse corpo material, mas como um homem cujo corpo material não chamasse mais atenção do que precisa.

Porque ser feliz é só isso. Ser feliz é se esquecer de que se tem estô-mago.

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