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Sem santo nem senha
1 OR J ()A Q u 1 M -LEITAO
•
DR. LUIZ TELLES DE VASCO t~CE lll! S Prezo duas vezes, npós a Primeira e a Segunda Incursão monarchieas, o que, depois de atirado
de cadeia em cadeia se evadiu do presidio de S. Barnabé, ern Braga.
N.º 14 - Numero avulso 60 reis - 18 - li - 1914 Editor e proprietario: MAR I O A N TUNES L E I T À O
Composto e impresso na Typographia de A. J. da Sllva Teixeira, SucceHor - Rua da Can· cella Velha, 70 - PORTO.
T odos Olil diroiws d e reproduc ç rto re~~t·v atlvs
~.
' . -
Numeras publicados:
Numero 1. - Entrevista com JOlO If AZEVEDO COUTINHO. Numero 2. - Entrevista com o notabilisc:;imo estadista hcspanhol D. EU
(i l~Xro 1\IOXTERO RIOS. Numero 3. - Entrevista com o Sr. CONDE DE fiIANGü.ALDE. Numero 4. - Entrc,·ista· com o antigo Ministro do ~[exico em Paris1 D . .JII-
G l'í l~L DL\i LO.J1BARDO. . Numero 5. - l~ntrcdsta com o DR CUNIL\.. J~ COSTA. Numero 6. - l~ntrcvista com FEH,RI~IRA DJ~ 1\IESQlHTA1 ajudante do
Sr. C'0ndc dr. Mangualde. Numero 7. Entrevü;ta com o PADRE DOMINGOS ·- O guerrilheiro de
C dwcc'i 1·;t'i de Basto~. Nu mero 8. - 8ntrcvista com: a Senhora ~farq ueza. de Hio-Maior sobre a
Sl·~~[[OIL\ D. JULIA DE BRlTO E CUNIJA . Numero 9. - I~ntrPvi~ta com o Sr. Conselheiro .J OS8 D'A7JEVEDO CAS
TELLO Bl{ \ NCO. Numero 10. - Entre\'ista com o PADRE A:\IADEG DE YASCONCELLOS
PL\ H fOTTE). Numero 11. - J~ntrerista com :JlARIOTTE - As arcusações do sr . .João de
FrPita"' e os ultimos parlamentos monarchicos - Porqne devemos ser mona rr h ieos - Ex p0sição da doutrina monarch ira.
Numero 12. - Entre\'ista com JOAQU IM 081RAS -A cobardia dos gran dPs e a coragrm dos peque1ros- O '.Zü de Janeiro e o Sr. Affonso Costallistoria. cl'unrn P\'asão do presidio d'Elva~.
Numero 13. - f~ntrevista rorn o C .. \.Pl'L\O-TEN"ENTE DA A lUJADA BHiAiI Ll~ l H.\. SR A~JERICO PBll~~T~L - Com memorando a RetinHla. do 8r. Bernardino Machado - A Hepublica Purtugueza e a RPpuul ica Brazileira.
A E NTREVISTA occupa-se exclusivamente de assu111ptos portuguezes.
Ili lustração Catholica
Ilerista 1itteraria srmanal de informação graphica1 col laborada pelos principaes escriptores portugurzes. Heproduz em formosas e m1rn erosas gravllras os factos mais importantes do paiz e do estrangeiro.
Asúynalura amaral, 2$100 - Semestre, 1$200 -- Arnlso, 60 reis
Pedidos ao proprietario JJ;. q:ú-:1 Ar.tonlc Perc:r~ \'i ll e:a, TI. :\ rartyres <la Republica- Brõga
A ENTREVISTA Sem Santo nem Senha
POR
JOAQUIM LEITÃO
N.º 14 18. 2 -1914 1 • 11 • li • U • li• 11• li• 1t• 11 • 11 + 11 • 11 • li +li• 11 • U • U• U• ll • ll + 11 + 11 • 11 • li• li • 11• U• U • tl + O • t1+ 11 • U• 11• 11+ li+ li+ li+ ll + U + tl + li + li + li + li+ li + li + li + ti + li + li + ll+ fl + H + ll + ll + 11 + 11 + 11 + 11+ 1
A AMNISTIA NÃO BASTA Revelação das torturas praticadas pelo sr. Rodrigo Rodrigues, n'um prêso confiado á sua guarda - E' preciso cassar a carta de medico ao sr. Rodrigo Rodrigues e levai-o aos tribunaes communs - Se não ha plena t~erdade para o alto exercido da magistratura, a consciencia publica que castigue esse homem-féra - O caso «Thalamas » em frança - Se a amnistia não tiver essa logica conclusão, a paz não surgirá nem momentaneamente, o odio ficará empoçado.
Tínhamos já escripto para este numero a entrevista que constitue a segunda parte do assumpto apresentado ao nosso 13, sob o titulo A Republica P ortugueza e a R epublica Brazileira, quando urna negra revelação revoltou todo o nosso ser. E' a mais indignante, a mais espantosa de todas as crueldades commettidas em Portugal na sombra traiçoeira das cadeias.
Puzémos de parte o assumpto marcado, que não perde por ficar para o numero seguinte, e resolvemos dedicar o presente numero á revelação d'esse attentado a todos os direitos e a todos os sentimentos da alma hu-
mana, acompanhando-a de uma entrevista com um preso.
O facto conta-se em duas palavras, e, sem dispensar que mais tarde se pormenorise, sobretudo perante os tribunaes, por agora basta narrar-se na sua synthese macábra: José Augusto da Silva, prêso 425 da Penitenciaria de Lisboa, foi insultado e mettido n'uma camisa de forças pelo sr. Rodrigo Rodrigues, medico e director da Penitenciaria. Durante um mez teve de comer como os cães, deitando-se no chão ao lado da tigella da comida. Se queria beber agua tinha de afastar com a cabeça a torneira da agua. Quando lhe tiraram
220 A ENTREVIST .\.
a camisa de força, das partes do corpo onde lhe passavam as correias sahia-lhe pús. •
O sr. Rodrigo Rodrigues é um medico.
E' preciso que as auctoridades o suspendam desde já de toda e qualquer funcção que exerça; que emquanto não é julgado seja prohibido de exercer clinica, se é que a exerce, e de apresentar-se em qualquer parte onde tenha de evocar esse titulo ; se é deputado ou senador, que os proprios collegas o convidem a esperar a resolução dos tribunaes communs; e que uma commissão de todos os homens de bem, de todos os homens de honra, sem disti11cção de cathegorias nem de côres politicas se organise para dar a José Augusto da Silva os meios de chamar aos tribunaes esse homem-féra que a politica pôz a dirigir a Penitenciaria e que os tribonaes criminaes teem de recambiar para lá como revoltante prêso commum.
A amnistia não bas ta 1 A amnistia é insufficiente, perante
ferocidades vesanicas como a que prat icou o sr. Rodrigo Rodrigues.
Aos mesmos jornaes que teem feito a propaganda da amnistia : o Intransigente, a Vanguarda, a Republica compete abrir desde já subscripções para sustentar esse pleito nos tribunaes communs.
Aberta uma subscripção para esse fim ninguem deixará de concorrer.
E uma vez arrastado aos tribunaes communs o sr . Rodrigo Rodrigues por um crime que deshonra o homem e condemna para sempre o funccionario, crime que não é menos repugnante do que o de satyro,-se n'este paiz a magistratura fôr coacta por um bando politiqueiro influente, a consciencia publica que se substitua á magistratura na sua inclemente e justiceira sentença.
Teem em França um caso que lhes
serve para ser seguido - o caso Tha-1 amas.
Thalamas era um professor de historia n'um dos Lyceus de Paris; um dia marcou para ponto escripto Joanne d'Arc; houve um dos alnmnos que encarou Joanne d'Arc sob o ponto de vista religioso; Thalamas disse que aquillo não era critica histo1 ica e insultou Joanne d'Arc. Os estudantes patearam-o, quando ouviram o professor insultar a heroina nacional. Ha 3 annos, já ninguem falla va em Thalamas, appareceu elle a fazer um curso livre de historia, na Sorbonne.
Os Cam.elots du roi levan taram a campanha. Encheram a sala da Sorbonne, e a primeira, segunda, terceira tenta tiva de Thalamas foi suffocada. A Sorbonne e todo o Bairro Latino foi cercado de tropa para o prof. Thalamas poder emfim inaugurar o seu curso. Pois quando elle entrou na sala para falar, já lá es tavam os Camelots du roí qne o ati raram á rua, e em vez d'elle fizeram n'oma prelecção o elogio de Joanne d'Arc.
Thalamas não pôde levantar a voz: a licença para o seu curso foi retirada pelo Governo .
Se os tribunaes não condemnarem esse doido máu, que a consciencia publica o condemne.
Mas an tes de nos convencermos de que já não ha juizes em Lisboa é preciso tentar.
E' preciso ir á primeirn, á segunda estancia, ao Supremo Tribunal, e pedir o internamento n'uma casa de alienados ou na Penitenciaria ;
E' preciso que esse malfazejo e bai· xo criminoso nunca mais possa exercer uma funcção publica, a mais humilde;
E' preciso que a sua carta de medico lhe seja cassada ;
E' preciso que em Portugal não torne a ser possível a reproducção d'uma ferocidade identica.
A ENTREVISTA 221.
O que os camelots du roi fizeram em França para um caso moral e intellectual, é indispensavel que em Portugal par a este caso bem mais grave, o façam aquelles 40.üOO homens que acompanharam o sr. Machado Santos a Belem.
Senão, a ferocidade, a malvadez do sr. Rod1igo Rodrigues que o deshonrou já a elle, deshonrará o paiz inteiro.
Ao sr. Pedro Muralha, ao sr. Machado Santos, e ao sr. Antonio José d' Almeida, que dispõem de trez jornaes diarios, entregamos es!:>e criminoso de baixa esphera.
Sem a condemnaçào, e a exautoração pessoal cl'essa féra, a amnistia provar-se·ha que foi apenas um inst rumento polilico na mão d'alguns homens que entreviram, na espessura do sectarismo demagogico, o sentimento nacional, e o exploraram.
A amnistia, sem a sua conclusão logica, que é o castigo jurídico das auctoridades que não exerceram .a sua funcção mas o seu oclio e os seus negros instinctos de alienados, seria
um recurso para fazer esquecer todos esses crimes.
Mas, nao ! Portugal pôde não ter , u·m exercito, pôde não ter parlamen
to, pôde 11ão ter um governo decente, póde não ter ordem nem nos espíritos nem nas ruas, póde não ter liberdade, mas eu não creio, eu não quero crer, nem convencer-me de que no meu paiz já não ha uns restos de vergonha e de respeito que permittam ter-se a noção de que a revelação que aqui fazemos para não deshonrar o paiz, é preciso que fique apenas deshonrando o criminoso.
E para isso é preciso que a deshonra do sr. Rodrigo Rodrigues conste da sentença de um tribunal commum. 1
1 A Vanguat•da de 12 do corrente occupa·se já nobremente d'este sensacional caso que está apaixonando a opioião publica. O auctor d' A Eri frevista, porém, não tinha ainda conhecimento d'esse numero da Va11guat•da á data de nos enviar o seu original. Mas vêse que conhecia bem os sentimentos do sr. Pedro Muralha quando para esses sentimentos appellava u'este numero.
O Eàito1'.
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EXUERPTO IlAS MEMORIAS Il'UM PRISIONEIRO MONARGHIGO
ENTREVISTA co:u o
Dr. Luiz Telles de Vasconcellos
Duas vezes prêso - Percorrendo nove cadeias, algumas d'ellas duas vezes - Uma enxovia horrorosa - Na Trafaria: - despedida commovente d'um tuberculoso que, ao sentir-se morrer, quer confessar-se -Manifestação macabra ao cada ver do tenente d' armada Alberto Soares, morto em Lisboa-Narrativa d'alguns horrores dos carceres - A fuga do presidio de S. Barnabé - Illusões e enthusias-......_
mos - Desilludido.
Luiz Telles de Vasconcellos, um dos filhos do fallecido ministro da Justiça e Par do Reino, Telles de Vasconcellos, é um rapaz novo, alto, elegante e moreno, que depois de ter sido arrastado - pelo odio á influencia politica que os Telles tinham e teem no districto da Guarda-, por cadeias e presídios do paiz, se encontra hoje no exilio.
A Universidade bacharelou-o em Direito, chegando a exercer a advocacia em Lisboa. -
No exitio tirou as luvas, despiu a sobrecasaca, vestiu uma blusa de ganga e, depois de ter praticado nas usinas madrilenas e adquirido a sua carta de mechanico, está hoje á testa d'uma importante ga'ragc, entregue
corajosamente a uma carreira pratica, batendo-se com galharda e nobre ::.implicidade na lucta pela vida. As suas actuaes occupações, para as quaes se ergue ás sete da manhã, já com difficuldade lhe permittiram distrahir o tempo d'esta entrevista. Depois de marcada e addiada, por vezes, a sua palavra de fidalgo cumpriu emfim, e tão depressa pôde, a gentilíssima promessa.
Depois da primeira incur-são monarchica.
- Tenho pena de não lhe poder reproduzir de memoria tudo quanto observei e registei atravez a minha peregrinação por nove cadeias do paiz,
~24 A ENTREVISTA
algumasdasquaes visitei duas vezes-, começa por dizer o dr. Luiz Telles de Vasconcellos - Tudo isso eu tenho archivado, em mais de mil p::iginas de apontamentos, entre as quaes ha notas edificantes sobre a degrada· ção moral do nosso paiz, sob o actual regimen, e do que passaram aquelles que cahiram nas garras republicanas.
- Não faz mal. Contento-me com um excerpto das suas memorias de
• presioneiro politico. - O que quizer: em resumo, o
que me lembrar. Fui preso. . . a data em que se é
preso e em que se sahe da cadeia são numeras que o homem não esquece! fui preso a primeira vez em Vizeu, em 17 de outubro de 1911, á requisição do governador civil da Guarda, e por um irmão adhesivissimo prestimoso, que era ao t empo administrador de Sabugal.
- P01qt1e? -Pseudo-intenção de levantar o
concelho n'um dado momento, e proclamar a l\louarchia. Isto era o pretexto; as intenções eram manifestamente outras. O go\'emador, Irmão & C.'1, sociedade sem responsabilidade, pretendiam, prendendo-me, pôr em cheque a influencia que a mim e a meus irmãos nos legára meu pae. Em Vizeu, á frente de cujo districto estava o dr. Sobrinho, fui attenciosarnente tratado, e dois dias depois era requisitado da Guarda, para onde fui. Uma vez lâ, o governador civil da Guarda declarou aos agentes qne me foram entregar e cobrar o recibo da minha pessoa! O gajo vae lá para baixo.
- O que queria dizer com isso esse chefe do djstricto que se exprime em calão?
- O gajo era eu, e o lá pam baixo era a esquadra onde fiqu ei incommunicavel e com guarda á vista. Fui re-
vistado, apalpado, etc., etc., e não calcula a furia com que se precipitaram sobre um deHenho elas armas dos Malafoias que eu levava para mandar abrir em talha, quando chegasse a J,isboa. Aquella corôa sobre os quatro escudos era como o trapo d'um spad~ para um boi ! Que trabalho para explicar que a corôa fazia parte d'aquellas armas. Ensinar heraldica a republicanos, é mais difficil do que ensinar pretos a não andarem nús. Emfim, apprehenderam o desenho e os jornaes annunciaram retumbanternente «que, ao que parece, lhe tinham sido apprehendidos documentos de grande importancia l>.
O regalo rio dos villões -Prêsos dados em pasto á turba da demagogia profissional.
- Durou muito essa gnarda de honra na esquadra?
- Não, porque dois dias depois era mandado para o Sabugal, que dista 30 k.ilometros, com a faculdade de ou pagar um carro para mim, commissario de policia e um cabo, ou seguir pela via 01dinaria, isto é, a pé aquellas seis leguas. Lá paguei o carro, e lá fui entre o commissario e o cabo até á porta da administração do concelho do Sabugal. O'alli , fizeram-me ir a pé até á cadeia, para que quatro garotos e os dois cornêtas do destacamento militar que alli estava ganhas!:5em os promettidos vintens ( tres vintens por cabeça) dando morras aos Telles, aos traidores e aos thalassas. A unica impressão que tive, pôde crer, foi de compaixão e de dó. Sentia-me tão al· to quando os olhava e os via baixar a vista, conscios da sua . pequenez e cobardia! l\fetteram-me n'uma enxovia para onde se entrava por um alçapão, e tive de descer lá para baixo por uma escada de mão que foi
A ENTREVISTA 225-
içall<I mal puz os pés no lagêdo do infecto buraco. Era um antro, quasi uma fossa. Das paredes escorria uma agua esverdeada e um buraco feito n'uma d'ellas servia de retrete; por outra parede pas:,ava o cano de exgoto das servidões das outras prisões superiores, que ~e tinha arrombado e espalhava por toclu ella detrictos pestifero::;. Ao fundo, uma larga tarimba, uma enxerga velha, e dois cobertores ratados e chPios de piôlhos e pulgamc. Depois, lá consentiram que uns amigus me descessem uma cama e um colchão. Consegui que me descessem pelo alçapão um kilo de chlorêto e varias caixas de pós de Keating, e assim pude resistir. Todas as manhãs e todas as tardes, se abria o pesado alçapão e via baixar suspensos de um cordel o almoço e o jantar. A IH estive 17 dias, até que com o pulmão esquerdo cheio de ralas fui mandado transferir para o Limoeiro.
- Meu caro Luiz Telles, console-se com os prê:::os republicanos do 28 de janeiro: só bebiam champagne, coitadinhos l imagine a sôde que elles haviam de ter quando foram restituidos á liberdade ao fim de quatro dias ! ... E vamos a saber que resultado lhes deu a elles a sua prisão, n'essa cadeia do que extranho não tenha sido remettida photographia para a imprensa illustrada do estrangeiro ?
- A. minha prisão não lhes dera o resultado esperado. A minha serenidade desmascarára-lhe as ardilezas, porque, graças sejam dadas a Deus, elles, na sua grande maioria, são de uma ignorancia e de uma estupidez que chegam a causar piedade 1 E o povo, o 1wsso bom povo, em vez de correr a beijar as mãos dos tyrannos com pedestaes de lama, corno elles julgaram, vinha á cadeia vêr o preso e principiava a deixar transparecer a raiva mal contida.
A minha remoção revestiu por isso um aspecto bellico. A' porta da cadeia esperava-me uma força de cavallaria, mas o povo - a despeito doesquadrão rodeou-me carinhosamente, os poucos assalariados que haviam dado morras á minha inesperada chegada emmudeceram e entre esse povo amigu fui até fóra da villa onde me esperava o meu carro. Despedi-me cl'esses bons e leaes lavradores, alguns elos quaes limpavam disfarçadamente os olhos e apertei entre as minhas essas honradas mãos acos tumadas ao t rabalho honesto. Houve apenas uma que ficou estendida sem que eu lhe tocasse : foi a do bilioso e rachi tico administrador.
Depois, até á e~tação do Sabugal, 20 kilometros de estrada parecia o pae Theophilo, caminho de Delem, com o carro rodeado pela cavallaria, guarda avançada e sargento á estribeira. Na estação esperava-me uma escolta de infanteria que me acompanhou até ao Limoeiro.
Evocação dos horrores do Limoeiro.
- Tanta coisa para um homem só ! - Quanto mêdo e quanta concien-
cia da propria fraqueza 1 Lá segui, na 3. ª classe com a escolta e com o apuposinho fraternal nas estações, até que dei entrada no Limoeiro á meia noite. O que era o Limoeiro já toda a gente sabe desde que se levantou a justissima campanha a favor de Antonio Ribas. Não insistirei por isso no que se apurou do inquerito. N'uma carta minha que publicaram então As J>lovidades relatei muitos casos de que fui testemunh 1; o velho mettido permanentemente no segredo; o que fazia o director Sanches de Miranda e o seu amigo chefe Flores; o Ciga no com os dedos aleijados dos q: anginhos :» , e o Ribas envenenado, cavallo
226 A ENTREVISTA
marinho aplicado aos presos no segredo, isso tudo é já do domínio publico.
Transferido para a Trataria- Novos horrores- Elogio dos humildes.
- Mas percorreu ainda outras prisões?
- A Trafaria. Para fazermos a jornada, fomos transportados a té ao Arsenal em carros cellularcs ; e, como havia poucos carros, metteram-nos a dois e dois em cada um d'aquelles pequenos cubiculos !
O presidio da Trafaria é um presidio penitenciaria que estava condemnado medicamente pela s uas condições de insalubrid.ade. E::;tá enlerraclo de forma que é um poço em que as paredes escorrem continuamente agua que nem o sol pôde seccar um pouco pois que lh'o impedem os ultos muros que o rodeiam. Eram então meus companheiros o dr. Carlos Garcia a q uem devo o ter-me curado, Camillo Cas tello l3ranco, Motta Cardoso, Padre Avelino e muitos outros e, pôde crêr, todos dignos pela sua coragem de serem presos politicos. Ex-guarda municipaes, ex-policias, antigos soldados das fileiras todos elles, com as familias na miseria sem o auxilio dos seus braços, todos esses são dignos de admiração e de respeito. Esses, meu amigo, a quem a roda da fortuna obrigou a terem de sujeitar-se ao nojento rancho, esses a quem a sorte não deu uns mil reis para resistirem á miseria, esses que presos sabem os entes que lhes são queridos a braços com a miseria e com a fome, e tem o sagrado orgulho das suas convicções arreigado a ponto de não perderem a coragem, esses, e são todos os que tive por companheiros, são os verdadeiramente dignos do respeito e da admiração de todos os homens de bem de todo o mundo.
Tenho pena de não lhe poder dizer o nome ele todos esses queridos companheiros. Queridos porque é bem certo que na adversidade ~e conhecem os verdadeiros caracteres e se conhecem as verdadeiras amizades.
Despedida commovente de um tuberculoso que sente approximar-se a morte.
- Era ou não doentia a Trafaria? -Da Trafaria basta que lhe diga que
metteram alli um tuberculoso, o expolicia Pinlo, entre as quatro paredes humidas de uma cella. E:stavamos sem assistencia medica. Valia-nos o dr. Carlos Garcia. Mas e!">te bom companheiro não podia, com a sua scien. eia, extinguir a humidade que matava a pouco e pouco o pobre doente. Esse pobre Pinto, ~entinclo-se mur,.er pediu os santos sacramento::;. Quando o padre da Trafaria entrou para o ouvir cm confissão, chegava tambem de Lisboa ordem vara serem postos em Liberdade os padres de Almeida e Rio Secco. J.i:ntraram na cella d.o moribundo para se despedir d'elle a té á e ternidade, e elle, fazendo um grande esforço, sentou-se no leito para os poder abraçar cheio de alegria por os saber restituídos á vida e ao convívio dos seus, dizendo·lhes : a: Tenham sempre coragem e luctem sempre com fé 1 Vin guem-me, já que eu vou morrer •. E este valente rapaz lá foi morrer mezes depois no Limoeiro 1 ! ! Mais uma victima entre tantas I ! 1 Mais uma li('áo de tantas e tão bellas que temos tido.
Curto raio de sol - AI· guns meus de liberdade - Segunda prisão.
Sobre um momento de emoção, breve como oração por alma d'um martyr, perguntamos:
•
A ENTREVISTA 227
- Como acabou para si a Trafaria? - Uma bella manhã, em 7 de de-
zembro, fui posto em liberdade por falta de prova para me poderem pronunciar 11 Dois mezes prêso por suspeitas e para investigações ! 1 Tendome feito saber o tal governador da Guarda que não podia como os meus irmãos ir ao concelho do Sabugal, sob pena de nova prisão, vim para Lisboa advogar para o escriptorio d'essa fi. gura em relevo na nossa advocacia e no nosso meio : o dr. Franco de Castro. Na honrosa companhia d'esse verdadeiro homem de caracter estive trabalhando, até que em 6 de julho de 1912 me prenderam novamente quando chegava á Guarda onde estava então minha mãe. Regressava então de Vizeu, tendo passado em Almeida, quando, ao chegar perto da Guarda, dois homens que estavam no meio da estrada me fizeram signal para parar . Delicadamente communicaram-me que « o s1· . governador civil>> precisava fallar-me. Não me occorreu á ideia de que ia ser preso, calculando apenas que o automovel em que vinha tivesse que ir ao governo civil para alli verificarem o numero da matricula, a procedencia e o destino. Mal, o automovel parou em frente da esquadra que fica nos baixos do edificio do governo civil, surgiram como por emquanto vinte policias em volta de mim.
- E' assim que as auctoridades costumam prender os homens que temem.
- Sim, por cilada. Eu ia, como ando sempre que viajo, armado. Pelos labios das serviçaes auctoridades passou um inefavel sorriso de contentamento e de victoria. Era a primeira e tremenda prova de que eu era um conspirador. Mas um sorriso de compaixão me bailou na fronte que fez tornar as contracções alvares dos meus captores n'um sorrisinho
bastante benevolo, quando lhes mostrei o bilhete de identidade com o sello em branco do ex-Procurador Geral da Corôa, em que claramente se achava consignado que eu poderia usar armas de fogo. A seguir revistaram-me conscenciosamente, não fosse eu trazer envolvido no cotão dos bolsos ou n'alguma costura qualquer importante mensagem ou ordem tremenda que fizesse tombar o r egimen. Não tardou que o commissario de policia me inten ogasse e mais tarde o proprio governador civil que como sempre é d'uso nos funccionarios da sua cathegoria, affirmava me detivera por pedido do administrador d'Almeida, como suspeito.
Um preso e um policia á procura de quem tome conta do detido - Manifestação macabra ao cada ver do tenente da armada Alberto Soares.
- Desassocegados somnos os da Republica 1 Sempre com o pe3adêlo de conspiradores f •••
- Preso como suspeito, como suspeito fui enviado para Lisboa acompanhado de um cabo de policia, boa pessoa, e attenciosa creatura apesar do pistolão que levava á cinta, com ordem de disparar caso eu ameaçasse fugir-lhe das garras. O pistolão não se disparou e nós fizemos a viagem como bons amigos , chegando a Lisboa ás duas horas e quarenta minutos do dia 10. Como ia ser entregue ao Ministro do Interior, andamos procurando este cavalheiro. Passavamos na rua Augusta justamente quando uma multidão apertada na rua de Santa Justa, em fren te do hotel Francfort, soltava freneticos vivas entre estridentes salvas de palmas. Parei.
228 A ENTREVISTA
- Era uma manifestação a qualquer figura Superavit 1
- Ouça. Tambem suppuz no primeiro momento que se tratava de uma d'essas tão vulgares e ôcas manifestações a algum dos idolos da canalha, dentistas de feira, palavrosos e audazes em geral, cert.bros ôcos e mal intencionados que conseguem fazer dos ignorantes, fallandolhe ao sabor do egoísmo da ambição e da preguiça, instrumentos inconscientes da sua malvadez. Approximeime. A' porta do hotel Francfort estava um carro de praça. A manifestação cre~cia de enthusiasmo. Julguei que o modesto idolo para evi tar maia palavras e mais vivas se mettera n'um carro que parava. Enganára-me. Dentro do carro estava o cadaver do 1.º tenente da armada Alberto Soares, barbaramente assassinado, havia pouco, e que era conduzido para a morgue. Eram em frente do cadaver d'esse rapaz valente e leal que tão nobremente homára sempre os seus galões, o que a poucos acontece, era em frente do cadaver d'esse homem covardemente assassinado, que esta· lejavam palmas, que vozeavam vivas enthusiasticos ! Era a um cadaver que se dirigiam as chufas que saiam das boccas immundas dos energumenos que são o esteio do regímen republicano.
E o que é triste e bem caracteristico é que perante a morte d'esse valente ot'ficial, não houve um protesto da corporação a que elle pertencia e que honrára. Que tristeza, meu amigo 1
- Tristeza causa tudo isto 1 •• • Pobre Alberto Soares ! . . . E depois?
- Depois, o ministro do Inte1ior, a quem fui entregue, mandou-me para o governador civil e este por sua vez despachou-me, com guarda á vista, para um gabinete da policia judiciaria, onde já estivera preso trinta e tantos dias o distincto engenheiro Ferreira de
Mesquita, e dois dias depois fui enviado para o grupo B do Limoeiro, onde fui encontrar anligos companheiros. No dia 25 appareceu ordem para acompanhar dois policias que me espera vam , e levaram-me para um estreito calabouço do governo civil onde estavam já tres presos políticos e um hespanhol preso por gatuno. A's oito horas da noite seguia, acompanhado pelos dois policias, para a estação do Rocio, onde tomamos o comboio correio para o Norte. Ia despachado para Braga . No dia 26 pela manhã era entregue ao general da Divisão. Este cavalheiro, sem duvida devido ás relações pessoaes que tinha commigo e com os meus e para alardear serviços á republica, mandou-me para o presidio de S. Barnabé.
O Presidio de S. Barnabé - Scenas barbaras-Tentativa frustrada de fuzilamento de um menor que se chegava a uma fresta, com falta de ar.
- Para o alojarem melhor, ou porquê?
-Porque era ao tempo a peor das prisões que havia em Braga 1 São muito attenciosos estes srs. ex~monarchicos, republicanos pancistas, procurando alardear serviços, para comer. Vi depois, no Seculo, que este sr. declarava que não queria sair de Braga sem liquidar todos os con$piradores/
Ao commissario de policia, a quem não conhecia, devo o ter ido para a cadeia civil. Eu já disse, n'uma carta para o Dia, o que era essa penitenciaria de via reduzida onde os presos poli ticos estavam sob as ordens de um homem cumprindo sentença pela reincidencia de crime de homicídio frustrado, e onde estive 45 dias incommunicavel. Era então extensivo a todos os presos, n'essa divisão, o regi-
A ENTREVISTA 229
men de incommunicabilidade e houve presos, os do processo de Guimarães, que estiveram 80 dias incommunicaveis ! ! 1
A sorte quiz que tão ferrenho repubUcano fosse transferido e, sob o commando do novo general, mais republicano talvez e não precisando alardear serviços, o regimen no presidio militar tornou-se mais humano e quasi todos os presos pedimos enlão, transf erencia para alli.
E' bom que lho diga o que era o presidio de S. Barnabé quando cheguei a Braga e o q ue foi até setembro de 1912.
-Diga, diga. - Em cada pequeno quarto estava
um prêso que não podia sahir sequer para os corredores nem fallar com pessoa alguma. Tinha na janella os vidros pintados a oleo e, no alto, uma fresta de 10 ccntimctros onde lhe era prohibido assomar. Um dia, porque um rapasito de 15 annos que se senlia asphyxiar assomou á pequena fresta, a sentinella cumprindo as 01 dens recebidas fez fogo. Quiz a sorte que a senlinella fosse um mau atirador e a bala passando a um centimetro da cabeça do preso foi era var-se no teclo da prisão.
O mobiliario era uma enxerga, uma manta e um cantaro de barro 1
Pelos buracos das fechaduras a soldadesca avinhada, insultava os presos e , a cada render de sentinellas, batia com as coronhas das espingardas nas portas para os não deixar dormir.
Como lhe disse estava então na cadeia civil.
Ali exigiam a cada preso que chegava tres mil reis sob pena de irem para o segredo l
Quando eram pobres regateava-se com elles para lhe extorquir o mais possível.
- O Joaquim Oeiras já se queixou da mesma coisa.
Quem não tem dinheiro vae para o segredo ! 1 ! !
-Mas em Braga era peor. Olhe, ao sargento Lima, porque declarou que não tinha dinheiro, metterarn-no no segredo J Vendo-se nesse buraco infecto o pobre rapaz declarou que apenas tinha comsigo 21HOO reis, mas que os precisava para comer. Pois se q niz sahir do segredo teve que dar dois mil reis e sujeitar-se a comer o immundo rancho.
Um rapazito do Porto que tomára par te no assalto a Valença foi aggredido covardemen te por um preso commum e ainda por cima foi mettido no segredo. De outra aggressão fei ta a um preso de Vianna chegou a ir parte para jui:w, o que de nada serviu. Emfim, para rematar, basta que lhe diga que um pobre desgraçado que para alli entel'raram endoideceu, o que não impediu que lá continuasse! 1 Sabe, com certeza, do caso da Sr.ª O. Rosa Dias , uma velhinha de 73 annos, pela minha carta para o Dia.
A fuga do Presidio - O exilio - Desilludido.
- E' o beijinho do tratamento a prêsos, es~e q ue a republica tem dado aos prisioneiros políticos.
- Qnanto aos processos dos presos politicos ~abe-se hoje por Homero e por Branco e Bri to como eram formados. Olhe, eu fui preso por suspeito em Almeida, sou mandado para Braga e appareço accusado de alliciar em Lisboa um homem que estava na Argentina 1 ! ·
- Con te-me a sua fuga. - Eu já estava decidido a fugir da
cadeia civil de Braga quando fui transferido para o presidio mili tar de S. Barnabé. Eu sabia que não tinham provas para me condemnarem e por
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isso protelavam o meu julgamento, mas tambem sabia que uma vez absolvido arranjariam novo pretexto para me prender de novo. Assim, tt ansferido para o presidió militar, p1'incipiei a estudar o meio de me pôr a salvo das garras republicánas.
Em meados de Janeiro es tava tudo preparado. Tínhamos então que arrombar umas por tas para o que já tínhamos os precisos apetrechos. Faltounos, porém, na noite combinada o automovel que nos devia levar á fronteira. Ficou adiada por isso a fuga. Uma manhã o sargento Lima apresenta-me um rapaz, soldado do 29, que estáva prompto a auxiliar-nos. Mudei então de talica e aproveitando uma noite em 11ue esse soldado estava ue sentinella á porta das armas, sahimos, serenos e pacatamente, como officiaes que tivessem ido passar um buccado da noi te com o collega que estava de serviço . .Assim, o rapaz que nos auxiliou fez-nos a continencia quando chegamos á porta das armas, e o pobre laieta que es tava fazendo Rentinella na rua, imitou-o. Fóra de Braga estava um automovel que nos esperava. Cheguei eu com um ou tro preso ao sitio combinado. Pouco depois chegou o soldado que arranjára u m pretexto para que outro lhe acabasse o quar to de sentinella. O sargento Lima é que não apparecia l Tinha sido o primeiro a sair da cadeia e já ia uma hora decotTida sem que elle apparecesse ! ! Calcula a nossa afflicçào 1 Esperar ? E se tivesse sido prêso? Cada sombra na estrada nos parecia elle. Uma hora decorrida quan-
do estavamas já para partir appareceu o _.Lima ! Tinha-se perdido em Braga 1 E por fim vendo que não a.cortava <?~m o caminho a seguir denge-se afo1tamente a um policia a quem conta a historia de uma entrevi:::; ta amorosa com a competente cita e é o policia que lhe vae ensinar o caminho bem longe de que dava fuga a um preso l 1 Já não pudemos passar em Vianna do Castello em au tomovel, como calculavamos, , pois que fomos avisados de que a ponte estava guardada por carbonarios e a policia de prevenção.
Soubemos mais tarde que um companheiro de prisão dera pela nossa falta uma hora depois de fugi rmos e nos denunciára. I mpossibilitados de continuar em automovel, mettemos a monte. Es tavamos a muitas leguas da fronteil'a. E oito dias, meu amigo, andamos pelas serras tendo então bem a prova de que o nosso povo é republicano. A 1.9 de fevereiro de 1913, ao anoitecer, depois de uma marcha de nove horas, atravessamos a fronteira e a impressão que senti, meu amigo, não se descreve. E' um mixto de alegria e dôr. Alegria pela liberdade conquistada, dór por vermos que tivemos de ir procura-la a uma terra ext ranha.
- Conheço essa impressão de centenas de homens m'a terem descrip to. E depois, no exilio?
- No exílio tive ainda muitas illusões, muito enthusiasmo, mas .. . desde agosto passado que estou alheio a tudo isso e trabalho para ganhar a vida.
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