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UMA LEITURA DE “2001: UMA ODISSÉIA NO ESPAÇO” Autor: Anaxsuell Fernando da Silva E o grande meio-dia será quando o homem se achar na metade de sua trajetória entre o animal e o super-homem e festejar seu caminho para a noite como a sua mais alta esperança. Friedrich Nietzsche INTRODUÇÃO No ímpeto de fornecer pistas para caracterizar um clássico, Ítalo Calvino afirma que são dignos dessa insígnia livros que exercem uma influência particular na medida em que este se impõe como inesquecível, assim como, quando se ocultam nas dobras da memória, “mimetizando-se no inconsciente coletivo ou individual” (Calvino, 1993, p. 11). Não tenho dúvidas que tais atributos servem como parâmetros avaliativos para outras produções humanas, de modo específico, para o cinema. Da água disputada pelos macacos à morte aperfeiçoada, 2001: Uma Odisséia no Espaço, pode ser considerado um clássico da filmografia mundial por ser um dos mais influentes filmes do século XX, e por continuar a nos interpelar e desafiar sobre as mais variadas questões do nosso tempo. Stanley Kubrick, seguidas vezes, definiu o filme como “uma experiência não-verbal [...] que fosse além de categorizações verbalizadas e penetrasse diretamente o

2001 - uma odisseia no espaço analise

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UMA LEITURA DE “2001: UMA ODISSÉIA NO ESPAÇO”

Autor: Anaxsuell Fernando da Silva

E o grande meio-dia será quando o homem se achar na metade de sua trajetória entre o animal e o super-homem e festejar seu caminho para a noite como a sua mais alta esperança.

Friedrich Nietzsche

INTRODUÇÃO

No ímpeto de fornecer pistas para caracterizar um clássico, Ítalo

Calvino afirma que são dignos dessa insígnia livros que exercem uma

influência particular na medida em que este se impõe como inesquecível, assim

como, quando se ocultam nas dobras da memória, “mimetizando-se no

inconsciente coletivo ou individual” (Calvino, 1993, p. 11). Não tenho dúvidas

que tais atributos servem como parâmetros avaliativos para outras produções

humanas, de modo específico, para o cinema.

Da água disputada pelos macacos à morte aperfeiçoada, 2001: Uma

Odisséia no Espaço, pode ser considerado um clássico da filmografia mundial

por ser um dos mais influentes filmes do século XX, e por continuar a nos

interpelar e desafiar sobre as mais variadas questões do nosso tempo. Stanley

Kubrick, seguidas vezes, definiu o filme como “uma experiência não-verbal [...]

que fosse além de categorizações verbalizadas e penetrasse diretamente o

subconsciente com um conteúdo emocional e filosófico”. Ele conseguiu.

A obra 2001: Uma Odisséia no Espaço é considerada a mais

elaborada experiência audiovisual de um dos mais brilhantes cineastas dos

séculos XX e XXI. O filme vai além da dimensão meramente narrativa,

transcende-a pela sua ambigüidade essencial. A rigor 2001 desenvolveu um

apelo sensorial mais próprio da produção da era muda. Menos de 1/3 do filme

apresenta diálogos, o restante não é silêncio. Kubrick faz suas imagens

interagirem com uma riquíssima trilha de ruídos e uma precisa escolha de

repertórios clássicos. Cada seqüência encanta por si própria, além do sentido

imediato que acrescenta à progressão do enredo.

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O FILME

2001: Uma Odisséia no Espaço estreou nos Estados Unidos da

América (EUA) na primeira semana de abril de 1968. Foi recebido com

estranheza pelos críticos das principais revistas especializadas. Resenhas

negativas seguiram-se, e tinham em comum a leitura do filme como superficial,

pretensioso e sem humor. Em geral, comparavam-no desfavoravelmente com

Doutor Fantástico (1964). No Brasil, estreou três meses depois.

2001 conquistou a crítica e o público aos poucos. O primeiro mês em

cartaz foi um sucesso apenas relativo. Entretanto, algumas salas americanas

exibiram-no ininterruptamente por quatro anos. Só nos anos 1970 ocorreram

cinco relançamentos nos EUA. Segundo o site especializado Internet Movie

Database, para um custo total de US$10,5 milhões, 2001 já arrecadou US$ 190

milhões no mundo inteiro, sendo US$ 56,7 milhões apenas no mercado

americano.

2001: Uma Odisséia no Espaço foi indicado em apenas quatro

categorias do Oscar de 1968: melhor diretor, roteiro, direção de arte e efeitos

especiais, vencendo apenas este último.

Tentar resumi-lo numa tradução verbal é uma forma de traição. Nem

mesmo o romance, desenvolvido em parceria e simultaneamente por Artur C.

Clarke espelha com precisão o filme de Kubrick.

O filme, de 139 minutos, estrutura-se em quatro partes:

1ª Parte: A aurora do homem. Durante 15 minutos acompanha-se o

cotidiano de um grupo de macacos. Tem como marca a trilha Assim falou

Zaratustra, de Richard Strauss (1864-1949). Termina quando um osso sobe e

é transformado em nave espacial. À moda einsteniana, num salto quântico de

milhões de anos de evolução.

2ª Parte: 2001 – Na Lua. Sem créditos de passagem ela inicia-se. O

avião Orion dança no cosmos ao som da valsa Danúbio Azul, de Johann

Strauss Filho (1825-99). Nesta parte ocorre o primeiro diálogo do filme, 20

minutos após o seu início. Ao posarem para uma foto, Dr. Floyd e cinco outros

pesquisadores escutam um forte ruído agudo, oriundo do monolito.

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3ª Parte: Missão Júpiter: 18 meses depois. Inicia-se com pouco

menos de uma hora de filme. Relata e problematiza a relação entre os seis

tripulantes da espaçonave Discovery 1; entre eles, o supercomputador HAL

9000 no controle geral. Esta parte conclui-se com Bowman desligando o

computador, que se despede entoando Daisy, em voz cada vez mais fraca e

distorcida. Uma mensagem pré-gravada ocupa os monitores, explicando o

motivo da missão. Os sinais sonoros de Clavius dirigiam-se a Júpiter.

4ª Parte: Júpiter e além do infinito. Transcorre durante os 25 minutos

finais. Bowman avança rumo ao seu destino. Monolito no espaço. A nave

atravessa um portal cósmico. Bowman vê a si mesmo alimentando-se numa

mesa e posteriormente na cama à beira da morte. Uma esfera no teto, dentro,

um feto humano. O feto é um planeta. O super-homem.

TRÊS CHAVES INTERPRETATIVAS

Excetuadas as aparições dos monolitos e a última seqüência a partir do

Portal Estrelar, o filme não exige maiores esforços interpretativos. Sua narrativa

é essencialmente linear, apresentando uma única grande elipse temporal, dos

macacos à viagem de Lloyd no Orion. Não existem inserções narrativas com

saltos para trás ou para frente, nem sequer existem tramas paralelas. O eixo

dramático é único, claro e constante.

As três chaves de leitura mais comuns, e complementares, remetem à

A Odisséia de Homero (800 a.C), à teoria mitológica de Joseph Campbell

(1904-1987) e à filosofia de Nietzsche (1844-1900).

O próprio título assume e destaca o paralelo com o poema épico grego

A Odisséia. Kubrick chegou a afirmar que, para os gregos, as vastas

extensões do mar eram tão misteriosas e remotas quanto são para nós os

planetas onde lançamos nossos olhares. A saga de Bowman pode ser

comparada com a de Ulisses que se atira ao espaço atendendo ao chamado

de sereias extraterrestres. Fecha o círculo voltando para a casa, com uma

transformação ainda mais radical que a de Ulisses.

Logo esse 2001 reencena A Odisséia a partir de uma releitura

inspirada no antropólogo e estudioso de mitos e religiões mundiais, Joseph

Campbell. Diários de Clarke afirmam que Kubrick pediu para que ele lesse o

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Herói das mil faces. A saga de Bowman e seu retorno à terra pode ser

pensada, respeitando a estrutura tradicionalmente circular, a partir do que disse

Campbell:

Não precisamos correr sozinhos os riscos da aventura, pois os heróis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido em toda a sua extensão. Temos apenas que seguir a trilha do herói e lá, onde temíamos encontrar algo abominável encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao centro da nossa existência. E lá, onde pensávamos estar sós, estaremos na companhia do mundo todo. (CAMPBELL apud LABAK, 2000, p. 17)

As possibilidades de diálogo de 2001 vão além de Homero e Campbell.

Trabalhando com o arco formado entre “a aurora do homem” e “depois do

infinito”, é a evolução humana tema essencial de Kubrick e Clarke. No início do

filme, Terra e Sol dançam no espaço ao ritmo da introdução ao Assim falou

Zaratustra de Strauss. Tradução musical de um dos textos filosóficos de

Nietzsche. E por isso, a epígrafe, faz todo sentido.

Tanto 2001, como Assim falou Zaratustra dividem a história da

humanidade em três grandes fases: a do homem-macaco, a do homem

propriamente dito e a do super-homem (ou além-homem, como preferem os

interpretadores de Nietzsche). O Próprio Kubrick, sem citar o filósofo, batizou a

“criança-estrela” da conclusão do filme de super-homem.

Se de um lado temos a dimensão mitológica, e Campbell coopera

nesta nossa compreensão, Nietzsche nos é especialmente válido em cooperar

com a compreensão da dramatização do filme. Ele afirma:

Que é o macaco para o homem? Um motivo de riso ou de dolorosa vergonha. E justamente isso é o que o homem deve ser para o super-homem: um motivo de riso ou de dolorosa vergonha. [...] O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem – uma corda sobre o abismo. É o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o perigo de olhar para trás, o perigo de temer e parar. O que há de grande, no homem, é ser ponte, e não meta: o que pode amar-se, no homem, é ser uma transição e um acaso .(NIETZSCHE, 1988, p. 31).

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O filme partilha ainda com Zaratustra a crítica ao homem massificado e

despersonalizado, aquele que sintomaticamente Nietzsche denomina de “o

ultimo homem” e que Kubrick lança solitariamente no espaço depois do embate

com HAL. Não é à toa que um computador se tornou o personagem mais

marcante de todo o filme.

O filme 2001 torna tudo mais complexo. A inteligência extra-humana

continua a assumir diversas formas, anteriores e posteriores à humana.

Contudo, a natureza ainda se impõe à ciência. O monolito acelera mas não

determina a evolução do macaco ao homem. HAL rebela-se por impulso

próprio, como o monstro do Dr. Frankestein, que dessa vez sabe recuperar o

domínio sobre sua criação. Na conclusão, eis o monolito de volta, artefato

alienígena, por certo, mas também símbolo de outra radical evolução humana –

positiva ou negativa? Esta ainda é uma questão em aberto.

Assim, como uma obra clássica, 2001, uma odisséia no espaço nos

convida para o contraditório. Trata-se de um filme simultaneamente prazeroso

e doloroso. Um profundo exercício de auto-descoberta. Pela lente de Kubrick

encontramos outras produções de sentido, outras fontes de significação social.

Se, como afirma Calvino, “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer

aquilo que tinha para dizer” (Calvino, 1993, p. 11) essa inesgotável fonte de

significação está em todos os minutos desse clássico da filmografia mundial.

REFERÊNCIAS

2001: Uma odisséia no espaço. (2001: A Space Odissey) Direção: Stanley Kubrick EUA, 1968. 148 min. Color.

CALVINO, Ítalo. Porque ler os clássicos. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.HOMERO. Odisséia. São Paulo: Cultrix, 2004.

Internet Movie Database. Disponível em: <www.imdb.com> acesso em 25/11/2007.LABAK, Amir. 2001:Uma odisséia no espaço. São Paulo: Publifolha, 2000.

STRAUSS, Richard. Assim falou Zaratustra. Filarmônica de Berlim. Alemanha: Deutsche Grammophon, 1896.

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NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra: Um livro para todos e para ninguém, São Paulo: Círculo do Livro S. A. ,1988.

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ZILA MAMEDE: NOIVA ETERNA DO MAR

Autora: Maria Áurea Gonçalves Frazão1

 Muita vida, morte nem pensarA terra, o arado o marCotidiano emoldurado de solNoite traz silêncio e pensar. Azul, verde cinza resplandeceVista de todas as formas e vestesNamorada, amada, extasiadaZila noiva do mar te destes! Nas pedras, areias e rendasNas ondas, espumas, o choroNa alegria daquele momentoEterno, forte como o ouro. Cintila a água no corpoDesperta sensação, dorNo sulco da alma sentiuEnlace forte com o amor!

1 Maria Áurea Gonçalves Frazão, além de poetisa é Pedagoga, Orientadora Educacional, Especialista em Psicopedagogia e é também Coordenadora de Eventos do Centro de Educação Integrada (CEI) Natal.

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“COMPRE TRÊS E PAGUE DOIS... TUDO NO CARTÃO, DEZ VEZES SEM ENTRADA... PRODUTO DE PRIMEIRA QUALIDADE, DESIGN EXCLUSIVO!... APROVEITE, COMPRE LOGO... SÓ  HOJE”2

Autora: Rejane Guedes Pedroza3

 Este texto pretende demonstrar, numa breve análise, que a concepção

de consciência coletiva descrita por Durkheim e o inconsciente estudado por

Freud não se contrapõem, mas se complementam, enfatizando que a pressão

social quando interiorizada atua no plano individual como um censor, ou

superego. Para tanto, utilizaremos o artifício da narrativa de um exemplo que

está relacionado à prática e aos efeitos das armadilhas atiçadoras do

consumismo numa determinada situação do cotidiano. Procuramos enfocar

algumas nuances que tratam do dilema no qual o princípio do prazer confronta-

se com o princípio de realidade, repercutindo na existência do indivíduo que

realiza a ação e em seu entorno.

“Compre três e pague dois... tudo no cartão, dez vezes sem

entrada... produto de primeira qualidade, design exclusivo!... aproveite,

compre logo... só  hoje.” Essa era a cantilena recitada repetidamente através

do poderoso sistema de som daquela grande loja no mais novo, mais moderno,

mais famoso shopping da cidade.

Os transeuntes, envolvidos pelas ondas sonoras,  eram atraídos pelas

cores, movimentos  e formas festivas que haviam sido cuidadosamente

preparadas para a grande Promo-liquidação cidade feliz.

Alguns mal ouviam, pois estavam absortos em pensamentos sobre o

horário e afazeres do trabalho. Não tinham tempo para prestar atenção às

propagandas. Mais tarde voltariam para ver que alarde era aquele.

Outros torciam o nariz comentando que isso ou aquilo não faziam o seu

estilo. Mas a grande maioria dos passantes parava para ver, ouvir, provar,

comprar. A isca estava insinuando-se e o aquário humano fervilhava como um

grande cardume de sardinhas consumidoras, ávidas por novidades

mercadológicas.2 Texto elaborado como parte da avaliação da Disciplina Teorias Sociais Clássicas, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, semestre 2008.1, ministrada pelo professor Dr. José Willington Germano.

3 Especialista em Nutrição Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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  Passeando pelo shopping, uma moça chamada MARIA se anima. É

sobre ela que dirigiremos os holofotes dessa estória:

 MARIA desvia-se de seu trajeto, pára em frente à loja, ouve com

atenção. Seu olhar parece hipnotizado. Certamente está pensando com seus

botões:

 - Estou sem dinheiro, mas essa é uma promoção IM-PER-DÍ-VEL. Na

verdade eu já tenho esse utensílio em casa. Comprei numa liquidação há

alguns meses, mas ainda não usei, nem sei bem para que serve... Mas é tão

bonito! ... Huumm... Acho que eu mereço esse presente.  Vou levar 1 para mim

e os outros 2 para presentear em algum aniversário. É! Eu mereço mesmo

esse presente. Já fiz tanto sacrifício em minha vida... Além disso, essa coisa  é

a minha cara.

Compra imediatamente, para a alegria do vendedor que contabiliza sua

comissão com muita satisfação, R$, R$, R$. Mais um peixe cai na rede. R$,

R$, R$.

Nos meses seguintes, a fatura do seu cartão de crédito extrapola todos

os limites e a consumidora compulsiva amarga juros astronômicos, além da

terrível ressaca moral que costuma lhe ocorrer após as extravagâncias

consumistas. No armário, empoeirando-se, junto de muitos outros objetos

amontoados, estão as 3 belíssimas embalagens ainda lacradas daquele objeto

promocional que a fascinou naquele passeio casual. Uma forte sensação de

frustração e infelicidade entra mais uma vez em cena. Torna-se irritadiça e

depressiva. Para piorar, o marido reclama, acusando-a de esbanjadora e

descontrolada. Por causa do gasto não planejado eles terão que atrasar o

aluguel. Aos berros, diz que ela deveria procurar um psiquiatra, porque ela só

pode estar louca. Passarão mais uma semana brigados e fazer sexo está fora

de cogitação. Ele vai beber no bar da esquina para não ouvir os gritos dos

filhos que choram desesperadamente no meio da confusão. Enquanto isso, os

vizinhos espicham-se nas janelas para saber que barraco é esse.

Em sua revolta contra a atitude consumista da mulher, o marido aceita

os afagos de uma paquera. Daqui em diante, a continuação fica a critério da

fantasia do leitor...

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  Neste relato, podemos até pensar que o texto faz parte de uma comédia.

Na verdade, seria cômico, se não fosse tão trágico para o cotidiano daquela

jovem e sua família. A situação possui forte apelo em nossa imaginação. Quem

jamais sucumbiu à tentação das promoções atire a primeira pedra e pare

de ler esse texto. Mas se você é um consumidor, assim como eu, convido-o a

adentrarmos numa pequena e tímida  dissecação dessa estória, cujos

personagens são os indivíduos e suas representações imaginárias numa

mesma sociedade. Assim o faremos por considerar que a cena descrita na qual

a protagonista sucumbe às tentações do consumo envolve não apenas um

indivíduo, mas uma complexa rede de relacionamentos diretos e de fatores

externos que envolvem e influenciam a coletividade.

Iniciaremos a jornada tomando como base a reflexão sobre a existência

de uma Consciência Coletiva. Para tanto relembramos o trabalho do

sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917). Segundo ele, a consciência

coletiva é um arcabouço cultural de idéias morais e normativas.  Acreditava que

o mundo social existe até certo ponto à parte e externo à vida psicológica do

indivíduo.

  Durkheim abordou a sociedade como um fato sui generis e irredutível a

outros, como um conjunto de ideais constantemente alimentados pelos

indivíduos que fazem parte dela. Ele acreditava que o animal homem torna-se

humano, diferenciando-se do animal selvagem a partir da socialização, que

corresponde a um processo de aprendizagem de hábitos e costumes, mediada

pelos outros humanos e pelas convenções sociais características de seu grupo

social, tornando-o apto a conviver no meio deste. Para ele, a consciência

coletiva seria introjetada durante a nossa socialização e seria composta por

tudo aquilo que habita nossas mentes e que serve para orientar e ensinar como

devemos nos comportar. Esse tudo foi chamado de “fatos Sociais”, sendo

estes os verdadeiros objetos de estudo da Sociologia. Pretendeu demonstrar

que os fatos sociais têm existência própria. A seu modo, partiu em defesa das

instituições por reconhecer que o ser humano necessita se sentir seguro,

protegido e respaldado. Uma sociedade sem regras claras, sem valores, sem

limites levaria o ser humano ao desespero. O homem que inovou construindo

uma nova ciência, a Sociologia, inova novamente se preocupando com fatores

psicológicos, antes da existência da Psicologia. Seus estudos foram

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fundamentais para o desenvolvimento da obra de outro grande homem:

Sigmund Freud (1856 a 1939), médico, nascido na Tchecoslováquia.

O pensamento de Freud representa um verdadeiro corte epistemológico

e pode ser considerado um marco na história das idéias. Em sua vasta obra,

desenvolve um novo tipo de abordagem dos problemas que vemos impor-se

em campos bastante diversos. No livro Totem e Tabu, ele conduz a reflexão

de que existe uma estrutura básica reguladora do comportamento dos homens.

Para ele, tudo que o homem cria, é expressão/manifestação do inconsciente.

Para a psicologia freudiana, o nosso aparelho psíquico, ou estrutura da

personalidade, é formado por três componentes ou sistemas: Id, Ego e

Superego.

Denominou o Id/Isso  que corresponde à fonte de toda a energia

psíquica inata. É uma instância inconsciente que visa à satisfação imediata na

busca exclusiva do prazer, tendo assim a função de descarregar as tensões

biológicas.  A busca narcísica desmesurada e egocêntrica do prazer levaria a

constantes frustrações e conflitos no mundo real.

O Ego/Eu  orienta as pulsões de acordo com as exigências da realidade.

Controla as exigências instintivas do Id. Tem o papel de árbitro na luta entre as

pulsões inatas e o meio. É pressionado pelos desejos insaciáveis do Id, a

severidade repressiva do Superego e os perigos do mundo exterior. Se o

indivíduo se submete ao Id, pode se tornar perigosamente amoral e destrutivo;

submetendo-se ao Superego, pode enlouquecer de desespero, pois viverá

numa insatisfação insuportável; se não se submeter à realidade do mundo, tem

muitas chances de ser destruído por ele. Por esse motivo, segundo Freud, a

forma fundamental da existência para o Ego é a angústia existencial. Tal

estratégia tem a dupla função de, ao mesmo tempo, recalcar o Id, satisfazendo

o Superego, e satisfazer o Id, limitando o poderio do Superego. Nos psicóticos

o Ego sucumbe, seja porque o Id ou o Superego são excessivamente fortes,

seja porque o Ego é demasiadamente fraco.

            A instância do Superego/Supereu corresponde  à consciência moral

que se liga à culpabilidade e à autocrítica. Representa um conjunto de valores

nucleares, como: honestidade, sentido de dever, obrigações, sentido de

responsabilidade e outros; representa, no plano inconsciente, a autoridade do

grupo social e faz a censura dos impulsos que a sociedade proíbe ao Id,

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impedindo o indivíduo de satisfazer plenamente seus instintos e desejos.

Funciona como um poderoso freio dos instintos.

         Estas três instâncias raramente estão em equilíbrio. Pelo contrário,

existem desafios constantes entre o Id e o Superego, que se digladiam para

tomarem o controle. Os padrões de comportamento resultantes deste processo

constituem a personalidade. Na estória de Maria podemos perceber esse

desequilíbrio com bastante evidência. Por falar em Maria, vamos retornar ao

relato narrativo.

No primeiro movimento, a propaganda implementada pela loja, uma

instituição comercial, é a alma do negócio. O apelo se posiciona em múltiplas

entradas de sedução. Inicia-se pelo volume a ser adquirido (leve 3 e pague 2,

como se houvesse o brinde de 1 objeto extra); em seguida, a opção de não

usar dinheiro e sim ‘jogar na fatura do cartão’, colocando a opção de um

pagamento futuro; de adiar o sofrimento em função da satisfação do prazer de

consumir no agora. Aqui lembro da frase: “o que os olhos não vêem, coração

não sente”. Tenho vontade de complementar com: Não sente no momento,

mas depois pode entrar em colapso.

O produto com design arrojado, exclusivo, de primeira qualidade, ativa o

desejo de possuir aquele bem tão bom. Por fim, evidencia-se a mensagem

subliminar que é repetida várias vezes: Compre logo! Compre já!

O indivíduo que é capturado pela mensagem do produto ofertado, passa

a dialogar com partes de si mesmo que normalmente estão silenciadas ou

reprimidas. Para Freud, esse diálogo ocorreria no inconsciente e se

manifestaria no mundo conhecido como realidade.

Ao cair na tentação do consumo desenfreado, Maria vivenciou um

turbilhão de emoções conflitantes. Racionalmente sabia que seu orçamento

não permitia adquirir os produtos, mas queria gozar o prazer de ter seu desejo

realizado naquele momento. Travava-se assim uma batalha entre o princípio

do prazer e o princípio de realidade. Ela usou argumentos que procuraram

justificar sua atitude. Tais justificativas atenuaram sua culpa imediata.

Avalizaram sua decisão. Não mediu ou ponderou as conseqüências do seu ato.

Quis sentir prazer e ser feliz no presente. Pelo jeito, essa situação é bem

freqüente em seu padrão reativo. Provavelmente esteja intrinsecamente

conectado à sua trajetória pessoal, ao seu romance familiar.

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Na obra de Freud, o texto O mal-estar na civilização, escrito em 1929,

dedica-se ao problema da felicidade, considerada por ele inatingível, e às

exigências exorbitantes da organização social ao sujeito humano. Dizem que o

famoso psicanalista tornou-se cada vez mais pessimista quanto ao futuro da

humanidade, principalmente ao presenciar o advento da Primeira Guerra

Mundial. A guerra, como meio de resolução dos conflitos, teria equiparado as

sociedades ditas então civilizadas às sociedades tribais do interior da África e

demonstrado que a psique humana teria uma integridade em sua constituição

muito mais ampla, na escala espaço-tempo, do que até então se imaginava.

Tanto nas sociedades primitivas quanto nas sociedades modernas, estariam

presentes, além das pulsões de vida (eróticas), os elementos da morte

(tanátos), da pulsão destrutiva. 

O programa de felicidade, segundo Freud,

(...) se encontra em desacordo com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo como com o microcosmo. Não há possibilidade alguma dele ser executado; todas as normas do universo são-lhe contrárias. Ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja ‘feliz’ não se acha incluída no plano da ‘Criação’. O que chamamos de felicidade no sentido maior restrito provém da satisfação (de preferência imediata) das necessidades represadas em alto grau, sendo, por sua natureza, possível apenas como uma manifestação episódica (FREUD, 2002, p. 29).

Na impossibilidade de uma fórmula geral de felicidade, pode-se deduzir

então que muito da felicidade individual é contrária ao ideal iluminista de uma

razão universal, potencialmente idêntica em todos os homens, capaz de

suprimir os conflitos individuais e gerar assim a felicidade geral. Boa parte

dessa aparente felicidade é erigida à custa da infelicidade ou repressão dos

prazeres de outros. O espaço social, desta forma, se torna um terreno instável

marcado pelos diferentes movimentos de oscilação, de constante união e

desunião, como podemos notar em vários momentos de nossa narrativa.

            Tanto para Durkheim como para Freud, o homem não poderia viver só,

mas estaria sempre ameaçado por seu semelhante que compõe uma

civilização. No entanto, apesar da ameaça, este é o único espaço possível para

as tentativas de constituição de um projeto comum que, acomodando

interesses, torne possível a desradicalização das individualidades. Como diz

Freud em um de seus ensaios:

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Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não apenas à sexualidade do homem, mas também à sua agressividade, podemos compreender melhor porque lhe é difícil ser feliz nessa civilização. O homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança (FREUD, 2002, p. 119).  

   Embora a vida em sociedade requeira imensos e traumáticos sacrifícios

pessoais, que podem desencadear a neurose, sendo necessária a vida em

comum, as pessoas precisam aprender a lidar com as renúncias e a aceitar as

noções de conflitos e de diferença, ainda que inelimináveis, como partes

constitutivas da vida em comunidade. Maria desrespeitou essa regra e pagou

um preço alto, tanto no plano financeiro como no plano afetivo. Seu parceiro

revoltou-se e a turbulência produziu uma esfera de conflito que englobou os

filhos, as paqueras e os vizinhos.  Todos passaram a ser atores num segundo

ato de um drama que poderia ter sido evitado se o principio de realidade

tivesse prevalecido. Se ela (Maria) tivesse resistido à tentação consumista,

mesmo que tal recusa implicasse em abrir mão da realização de seu desejo

imediato.

Segundo Freud, a história do homem é a história de sua repressão. A

cultura coage tanto a sua existência social como a biológica, não só partes do

ser humano, mas também sua própria estrutura instintiva. O Id incontrolado

possui força destrutiva contra a ordem estabelecida, lutando por uma

gratificação permanente que a cultura não pode consentir. Portanto, os

instintos têm de ser desviados de seus objetivos, inibidos em seus anseios. A

civilização começa quando o objetivo primário – isto é, a satisfação integral de

necessidades e dos supostos prazeres – é abandonada. O júbilo da atividade

lúdica é substituído pelo esforço, pela produtividade. A ausência de repressão

cede seu posto para a segurança, muitas vezes mediada pelo aparato das

instituições. Freud descreveu essa mudança, como a transformação do

princípio de prazer em princípio de realidade. A interpretação do aparelho

mental, de acordo com esses dois princípios, é básica para a sua teoria

psicanalítica. Corresponde em grande parte à distinção entre os processos

inconscientes e conscientes. É como se o indivíduo existisse em duas

diferentes dimensões, caracterizadas por diferentes processos e princípios

mentais.

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Na vida social o princípio de realidade supera o princípio de prazer: o

homem aprende a renunciar ao prazer momentâneo, incerto e destrutivo,

substituindo-o pelo prazer adiado, restringido, mas garantido. Por causa desse

ganho duradouro, através da renúncia e restrição, de acordo com Freud, o

princípio de realidade salvaguarda mais do que destrona, e modifica mais do

que nega o princípio de prazer. Essa era a expectativa do marido de Maria. Ele

revolta-se e a trata como uma neurótica compulsiva. Se ela tivesse agido de

acordo com o princípio de realidade, teria conseguido, talvez, examinar melhor

a questão, distinguindo entre o bom e o mau, o verdadeiro e o falso, o útil e o

prejudicial.

A substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade é o

grande acontecimento traumático no desenvolvimento do homem. Segundo

Freud, esse evento não foi único, pois se repete ao longo da história da

espécie humana e de cada um dos seus indivíduos. Filogeneticamente

(gênero) ocorre primeiro na horda primordial, quando o pai primordial

monopoliza o poder e o prazer, e impõe a renúncia, por parte dos filhos.

Ontogeneticamente (indivíduo) ocorre durante a primeira infância, e a

submissão ao princípio de realidade é imposto pelos pais e outros

educadores. Mas, tanto no genérico quanto no individual, a submissão é

continuamente reproduzida.

De acordo com a concepção de Freud, a equação de liberdade e

felicidade, sujeita ao tabu da consciência, é sustentada pelo inconsciente. A

sua verdade, embora repelida pela consciência, continua assediando a mente,

fornecendo pretextos e motivos para transgredir a ordem da razão. Maria

experimentou essa argumentação consciente/inconsciente num diálogo

mental que culminou em seu ato consumista.

Na publicação de O mal-estar da civilização, Freud põe em dúvida a

capacidade das sociedades democráticas controlarem as pulsões destrutivas.

Em Totem e Tabu, recorre ao mito do pai da horda humana primitiva,

evocando o estado de natureza descrito por Darwin, para ilustrar a passagem

daquele estado para o “estado social ou cultural”, lembrando que essa

representação mítica não encontra confirmação histórica. Teria havido, nesta

horda primeva, uma estrutura onde o poder seria efetivamente exercido por um

macho pretensamente onipotente, pai de todos, que detivesse o monopólio de

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todas as fêmeas do grupo. Seu poder seria despótico, com a punição  daqueles

que, mais fracos, individualmente se insurgissem. A insatisfação com esse

estado de coisa, onde apenas um reservava para si o privilégio do prazer, teria

levado os demais machos, filhos do autoritário pai, a se unirem para pôr fim à

tirania do líder. Pela associação, teriam mais força do que o perverso que os

punia. Assim, o resultado dessa associação foi o assassinato do pai. Tal

situação também despertou enorme sentimento de culpa por parte dos

‘assassinos’ que precisaram, a partir daí, a estabelecer pactos de convivência

social entre si. Cada indivíduo e o conjunto dos indivíduos atormentavam-se

numa relação ambivalente, composta por impulsos afetuosos e hostis que se

digladiavam permanentemente, aumentando os conflitos.

Em suas pesquisas, Freud constatou como as histórias pessoais,

iniciadas desde a mais tenra idade, são marcos referenciais na edificação da

personalidade, trazendo acopladas todas as situações conflituosas não

resolvidas satisfatoriamente. Em torno do psiquismo, ficam gravitando

complexos formados por conteúdos emocionais e vivenciais que passam a

governar nossas vidas, mesmo que à nossa revelia, conduzindo a modificações

na compreensão da realidade que passam a justificar comportamentos

desajustados. A isso os especialistas chamam neurose.

Provavelmente os filhos de Maria carregarão consigo os efeitos das

turbulências presenciadas na relação dos seus pais, assim como ela própria

talvez  traga em sua história os efeitos dos conflitos de seus genitores. Os nós,

dentro de cada individualidade que somos, acabam por atar os nós sociais

mais abrangentes, na perpetuação de estados doentios do homem e da

sociedade.

Pensando sobre os motivos que nos levaram a fundamentar nossa

análise em Durkheim e Freud, reconhecemos em seus estudos os fatores que

os destacam como autores clássicos: ambos conseguem ser uma espécie de

intérpretes da época em que viveram; a expressão de seus pensamentos

continua atual, a ponto de as gerações que os sucederam, como a nossa,

passarem a relê-los com interesse e porque cada um, a seu modo, conseguiu

elaborar categorias gerais de compreensão necessários para interpretar a

realidade. Freud navegava pelos oceanos do inconsciente e Durkheim voava

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nas asas do pássaro que conseguia visualizar a sociedade como algo mais do

que a soma das partes individuais.

Graças a estas contribuições, podemos concluir que a neurose

consumista de Maria reflete o conflito entre o jogo de forças das pulsões

inconscientes instintivas e as pressões das convenções sociais, introjetadas

nela mesma por sua experiência educativa na família e em outras instituições

que fizeram e fazem parte de sua história de vida, interferindo nas relações

sociais com as pessoas de seu ciclo relacional e com outros membros

invisíveis de sua comunidade.

Como diz a música O princípio do prazer, de Geraldo Azevedo: 

“Juntos vamos esquecer, Tudo que doeu em nós. Nada vale tanto pra viver o

tempo que ficamos sós. Faz a tua luz brilhar, para iluminar a nossa paz. O meu

coração me diz: fundamental é ser feliz...”

Feliz dia! Feliz (?) Maria!

REFERÊNCIAS

AKOUN, André. Dicionário de Antropologia. Portugal: Verbo, 1983.

CAILLOIS, Roger. O Homem e o sagrado. Portugal: Edições 70, 1988.

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Biblioteca Universitária,1971.

______.A divisão do trabalho social I e II. Portugal: Ed. Presença, 1977.

BIRMAN, Joel. Estilo e Modernidade em Psicanálise. São Paulo: Editora 34, 1997.

FAVROD, Charles-Henri. A antropologia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1977.

FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Rio de Janeiro, Imago, 1999.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro, Imago, 2002.

LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J-B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo, Martins Fontes, 1970.

RAMOS, José. A magia na aldeia global. Pernambuco, Fundação Casa da Criança, 1985. 

ROBERT, MARTHE: A revolução psicanalítica. Portugal: Moraes Editores, 1968.

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WOLLHEIM, Richard. As idéias de Freud. São Paulo, Cultrix, 1971.