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 CRISTIANE FERREIRA FRAGA VIOLÊNCIA DO ESTADO NAS FAVELAS: Quem são os “perigosos”? UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Programa de Pós-Graduação em Psicologia Mestrado em Psicologia Orientadora: Profª Drª CRISTINA MAIR BARROS RAUTER  NITERÓI 2011

2011 d CrisFraga

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Dissertação

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  • CRISTIANE FERREIRA FRAGA

    VIOLNCIA DO ESTADO NAS FAVELAS:

    Quem so os perigosos?

    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    Programa de Ps-Graduao em Psicologia

    Mestrado em Psicologia

    Orientadora: Prof Dr CRISTINA MAIR BARROS RAUTER

    NITERI

    2011

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    Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat

    F811 Fraga, Cristiane Ferreira.

    Violncia do Estado nas favelas: quem so os perigosos? / Cristiane Ferreira Fraga. 2011. 86 f. ; il.

    Orientador: Cristina Mair Barros Rauter. Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Psicologia, 2011. Bibliografia: f. 72-77.

    1. Violncia policial. 2. Pobreza. 3. Subjetividade. I. Rauter, Cristina Mair Barros. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo. CDD 363.232

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    CRISTIANE FERREIRA FRAGA

    VIOLNCIA DO ESTADO NAS FAVELAS:

    Quem so os perigosos?

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Psicologia.

    Orientadora: Prof Dr CRISTINA MAIR

    BARROS RAUTER

    NITERI 2011

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    BANCA EXAMINADORA

    ___________________________ Professora Doutora Cristina Mair Barros Rauter - Orientadora

    Universidade Federal Fluminense

    __________________________ Professora Doutora Ceclia Maria Bouas Coimbra

    Universidade Federal Fluminense

    ___________________________

    Professor Doutor Luiz Antonio Baptista Universidade Federal Fluminense

    ___________________________ Professora Doutora Maria Helena Zamora

    Pontifcia Universidade Catlica

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    Para todos aqueles que na contra mo dos discursos discriminatrios produzidos pelo Capitalismo, resistem e persistem na vida.

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    AGRADECIMENTOS Aos meus pais que sempre estiveram ao meu lado acreditando em todos os meus sonhos e de

    maneira incondicional torcendo por mim.

    Ao meu irmo David que com suas palavras de encorajamento me ajudou a prosseguir.

    A minha irm Lilian por me trazer tanta alegria principalmente pelo maravilhoso presente que

    so meus sobrinhos Gabriel e Paulo Csar.

    Ao meu av Jos Ferreira por seu incrvel bom humor e que apesar de no saber o que o

    mestrado me apresenta com muito orgulho como a doutora da famlia.

    A minha querida orientadora Cristina Rauter, que com toda sua pacincia e dedicao foi um

    presente da vida para mim.

    Aos meus primos e tios com quem tenho o prazer de dividir a alegria desse momento.

    A minha mestra e amiga Regina Dias, com quem tive os primeiros contatos com a

    esquizoanlise, que no apenas uma teoria, mas uma forma de perceber a vida.

    Aos amigos acadmicos que muito contriburam na minha caminhada: Artur Bento, Aline

    Nascimento, Ricardo Aquino, Joana Ferraz e principalmente a Pmera Ferreira.

    Aos companheiros de mestrado que muito contriburam para meu crescimento acadmico e

    foram parceiros de muitas risadas: Alice Souto, Ana Paula Coutinho, Bruno Rossoti, Danielle

    Pinheiro, Dbora Franco, Poliana Cordeiro, Valria Figueiredo, Fernando Albuquerque,

    Geraldo Artte, Roberta Furtado, Maria Clara Fernandes, Mnica Farias, Joseane Tavares,

    Nicolle Mascitelle e principalmente a Diana Malito e Aline Garcia, no quero nunca perde-los

    de vista.

    Aos companheiros de orientao pelas eternas questes com a tica de Spinoza: Donati, Jos

    Carlos Brazo (vulgo ZK), Catarina Resende e Vicente Carneiro.

  • 7

    A Mrcio Costa e toda sua famlia que participaram de maneira fundamental nesse processo,

    principalmente a sua me Nice.

    Aos meus amigos que estiveram ao meu lado em momentos de alegria ou de tenso, sempre

    compreendendo minhas lgrimas de desabafo: Anderson Gino, Andrea Paes, Bianca Roxo,

    Caio Mello, Daniel Gaspary, Fernanda Cleto, Flvia Paes, Gina Kelly Guerra, Giselle Kokis,

    Gislene Bastos, Greice Gonalves, Jos Amaral, Lia Augusto, Lidiane Teles, Marcello Silva,

    Karol Martins, Suely Peixoto, Tarciana Bastos, Tito Lima e Vnia Cristina.

    Aos colegas de trabalho pela compreenso e apoio nessa dupla jornada, principalmente aos

    meus chefes, estes me ajudaram nos momentos de cansao e necessidade. Sem esse

    fundamental apoio no seria possvel a concluso do mestrado. Gostaria de poder citar todos,

    mas para no cometer falhas prefiro no faz-lo.

    Aos professores do Mestrado que me ajudaram com seus textos e aulas: Ktia Aguiar, Luiz

    Antnio Baptista, Andr Queiroz, Llian Lobo, Eduardo Passos, Andr Martins, Ceclia

    Coimbra e Maria Lvia.

    rede Contra a Violncia que possibilitou meu encontro com companheiros de militncia.

    banca examinadora pelo convite aceito e os comentrios feitos na qualificao e pr-banca.

    A Baruch de Espinosa que com sua genialidade foi capaz de promover um encontro que

    modificou minha forma de compreender a vida.

    A Deus que de maneira transcendente ou imanente, tanto faz, permitiu todo o pulsar da vida.

  • 8

    (...) que se escamem algumas evidncias, ou lugares-comuns, no que se

    refere loucura, normalidade, doena, delinquncia e punio;

    fazer, juntamente com muitos outros, de modo que certas frases no

    possam mais ser ditas to facilmente ou que certos gestos no mais

    sejam feitos, sem, pelo menos alguma hesitao; contribuir para que

    algumas coisas mudem nos modos de perceber e nas maneiras de

    fazer; participar desse difcil deslocamento das formas de sensibilidade

    e dos umbrais da tolerncia.

    (FOUCAULT, 2006)

  • 9

    RESUMO A violncia do Estado est representada nesta pesquisa pela ao policial nas favelas do Rio de Janeiro. As invases nas favelas so acompanhadas de mortes, violncia e desrespeito aos moradores. Pautadas em ideias que aproximam delinquncia e pobreza, so disseminados na sociedade discursos que fortalecem as prticas abusivas do Estado. A naturalizao desta violncia representa um jogo de saber/poder que ao longo de anos vem sendo propagado pela mdia e j faz parte do discurso hegemnico. Faremos um resumo da histria da polcia no Rio de Janeiro que poder mostrar que, desde a sua criao, em 1808, a polcia tinha a funo de proteger a corte dos mais pobres. Aps a abolio da escravatura, os ex-escravos passaram a ser a preocupao da polcia. Moravam em morros prximos ao centro da cidade ou em cortios, que com o passar dos anos foram transformados em locais vistos de grande perigo social. O mito da guerra civil que vem sendo construdo por dcadas justifica a invaso das favelas pela polcia. Para desconstruir o mito de que algum nasce criminoso lanaremos mo de conceitos Deleuze e Guattari que apontam para uma subjetividade em constante processo. A perspectiva de Spinoza, que sugere que os encontros so geradores de constantes afeces, aposta nos mltiplos modos de subjetivao que podem surgir a partir da violncia. No entanto o Estado sempre procura manter a populao em situao de submisso. Palavras- chave: Violncia policial; Classes Perigosas; Produo de subjetividade.

  • 10

    ABSTRACT The present research attempts to represent the states violence through Police actions inside Rio de Janeiros slums. The slums invasions are followed by death, violence and disrespect to its inhabitants. Based on the idea that relates poverty and delinquency many speeches reinforcing States abusive practice have been widely spread throughout society. Thus, violence gradual naturalization represents a sort of power/ knowledge game which has been propagated by media and is currently part of the mainstream discourse.The present work endeavors to make a summary on Rio de Janeiros police history in order to state that since its creation in 1808 the police operates to protect the court from poor people. Before slavery abolition the former slaves became a concern for police force as well as the places where they started to inhabit as hillsides and tenements adjacent to the city centre which were openly recognized as of social threat. Ergo, the civil war myth that has been constructed for decades is used to justify the slums invasion by police force. As to deconstruct the myth that one is born a criminal we are going to make use of concepts from Gilles Deleuze and Flix Guattari that indicates the constant process of subjectivity. Inasmuch, Spinozas perspective suggests that the encounters are generated by persistent affection which relies on the multiple ways of subjectivity that may emerge from violence. However, the State is constantly aiming to keep population oppressed in a status of submission.

    Key-words: Police violence, dangerous classes, productions of subjectivity

  • 11

    SUMRIO

    INTRODUO ......................................................................................................... 12

    1.0 AES DE EXTERMNIO NO RIO DE JANEIRO! ONDE E COMO? .............................................................................................................................................. 19

    1.1 Quem o Estado? ............................................................................................. 22

    1.2 Violncia do Estado e Aes Policiais ............................................................... 25

    1.3 O criminoso a pena em Foucault e Nietzsche ................................................... 29

    1.4 Processos de Subjetivao ................................................................................. 33

    1.5 O Estado Produzindo Quimeras ......................................................................... 37 1.6 Os discursos e suas verdades ............................................................................ 43

    2.0 ALGUNS ANALISADORES DA POLICIA NO RIO DE JANEIRO............................................................................................................................ 45

    2.1 A Guarda Real .................................................................................................... 46

    2.1.1 Cortios ............................................................................................................ 49

    2.2 A polcia na era Vargas - 1930 a 1945 .............................................................. 50

    2.3 Perodo Ditatorial .............................................................................................. 52 2.4 BOPE e UPP ..................................................................................................... 54

    3.0 EM BUSCA DA LIBERDADE; A CAMINHO DA SERVIDO? ................................................................................................................................................ 59

    3.1 O Estado e suas tcnicas de submisso ............................................................. 66

    CONSIDERAES FINAIS .................................................................................. 69 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................... 72

    ANEXOS ................................................................................................................... 78

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    INTRODUO

    ...Mas no me deixe sentar na poltrona No dia de domingo, domingo!

    Procurando novas drogas de aluguel Neste vdeo coagido...

    pela paz que eu no quero seguir admitindo. O Rappa

    Rio de Janeiro, abril de 2008. O Jornal Meia Hora traz em sua capa a imagem de um

    inseticida. No rtulo as letras SBPM, uma foto da caveira smbolo do BOPE e uma pequena

    frase: Eficaz contra vagabundos, traficantes e assassinos. A manchete do jornal dizia:

    Bopecida, o inseticida da polcia, terrvel contra os marginais. Na reportagem a declarao

    do coronel da Polcia Militar Marcus Jardim, comandante do 1 Comando de Policiamento de

    rea (CPA): a PM o melhor inseticida social1.

    Em operao classificada por coronel da Polcia Militar como "inseticida social", nove supostos traficantes foram mortos ontem durante incurso do Bope (Batalho de Operaes Especiais) na Vila Cruzeiro, na Penha (zona norte). Quatorze homens foram presos e seis ficaram feridos no confronto. A operao com 180 homens foi comandada pelo Bope, que manteve parte do efetivo na favela. "Amanh [hoje] o pau na vagabundagem continua", disse o comandante de Policiamento da Capital, coronel Marcus Jardim. "A PM o melhor inseticida contra a dengue. Conhece aquele produto, [inseticida] SBP? Tem o SBPM. No fica mosquito nenhum em p. A PM o melhor inseticida social", disse, rindo. (grifo meu)2

    Ao longo do dia, ouvi vrios leitores elogiando a reportagem, muitos acharam a capa

    do jornal criativa, mas no momento em que li o jornal me senti mal, um estranhamento e um

    sentimento de repdio tomaram conta de mim. Nesta poca, eu estava interessada em leituras

    que tratassem sobre o holocausto e sobre o perodo das ditaduras militares na Amrica Latina.

    Naquele momento, percebi que o Estado poderia ter trocado seus alvos, mas ele continuava

    exterminando os indesejados; ainda era um inseticida social. Lembrei do Primo Levi, que

    afirma em um de seus livros, que ao sair vivo do campo de concentrao sentiu vergonha de

    ser homem. Essa foi minha sensao: vergonha. Vergonha de ler aquilo, vergonha por aquela

    reportagem ser elogiada, vergonha de ter um comandante da polcia que fosse capaz de dar

    uma declarao como essa e vergonha pela minha omisso.

    1 Jornal Meia Hora, 17 de abril de 2008. 2 TOLEDO, Malu. Folha de So Paulo no Rio.

  • 13

    Devemos estabelecer diferenas entre a violncia atual do Estado nas favelas cariocas

    e algumas barbries passadas. Neste trabalho no pretendo falar que o que acontece hoje no

    Rio de Janeiro igual ao que aconteceu no passado, estou aqui apenas traando o caminho

    que me levou a pesquisar esse tema. Com grande interesse pela violncia do Estado, deparei-

    me com questes atuais, as quais me despertaram o desejo de entender melhor o que acontece

    hoje nas favelas cariocas e no Rio de Janeiro, que vive com o fantasma da guerra urbana.

    Fantasma esse que torna justificvel, para muitos, as chacinas nas favelas. Diz-se com

    frequncia que estamos em guerra, apesar de sabermos que o que se passa nas grandes cidades

    brasileiras, em especial no Rio de Janeiro, no pode ser tecnicamente descrito como uma

    guerra. Porm, pode ser estratgico para as polticas de segurana pblica afirmar a existncia

    de uma guerra, o que por si s justifica as intervenes armadas a que assistimos nas favelas,

    em especial no Rio de Janeiro.

    Durante a Segunda Guerra toneladas de inseticida eram comprados para matar pessoas

    nos campos de concentrao. O Primo Levi3 questiona sobre a inocncia dos alemes: porque

    os donos das lojas ou os que nelas trabalhavam no procuravam saber a finalidade dessa

    grande quantidade de veneno para ratos? Diferente da suposta inocncia dos alemes, hoje, no

    Rio de Janeiro, possvel ler para que serve o inseticida social num jornal de circulao

    popular. Sua utilidade no ignorada, mas, como os alemes, somos coniventes com a

    barbrie. Creio que daqui a alguns anos, assim como estes veem hoje o holocausto, veremos

    com indignao o extermnio nas favelas. Pois alm de coniventes apoiamos e pedimos essa

    barbrie.

    Em uma conversa com um amigo judeu, fiz a comparao entre o que o Estado faz

    hoje nas favelas e o que aconteceu na Segunda Guerra. Ele ficou muito ofendido e pude

    entender mais tarde que a razo desse sentimento fora o fato de que eu estava aparentemente

    comparando judeus e criminosos. Ou seja: apesar de integrante de uma comunidade que

    sofrera a perseguio nazista ele no fazia nenhuma relao entre a mesma e o que se passa

    hoje nas favelas cariocas. Ele acrescentou que durante o Terceiro Reich as teorias nazistas

    eram transmitidas s crianas nas escolas. E ento lhe perguntei: - No ensinamos s nossas

    crianas que os pobres e favelados so perigosos e que as aes com o caveiro nas favelas

    so necessrias para a paz?

    3 LEVI (1998)

  • 14

    Com certeza, essa pergunta inquietou mais a mim do que quem a ouviu. A partir de

    ento, fiquei atenta aos microfascismos cotidianos. As pequenas falas ou atitudes que

    fortalecem os discursos hegemnicos de que a pobreza e a delinquncia andam juntas.

    s vezes sem perceber, fortalecemos pensamentos que apoiam o extermnio dos mais

    pobres. Frases sutis so repetidas sem analisar suas implicaes. Somos de fato, como diz

    Luiz Antonio Baptista, amoladores de faca. Apesar de no apertar o gatilho colocamos a

    munio nas armas, amolamos a faca e batemos palmas quando mais um indesejado social

    eliminado. Pois como diz o ditado popular: bandido bom bandido morto.

    Ser jovem, negro e morar em zonas pobres torna-se uma combinao perigosa, a qual

    pode custar a vida. No entanto, apesar do nmero de bitos ultrapassarem alguns pases em

    guerra, essa barbrie no vista com indignao pela mdia ou pela opinio pblica. A

    indiferena aos fatos pode ser chamada de silncio cmplice.4

    "Qual a paz que eu no quero conservar, pra tentar ser feliz?".5 Pensando nesse

    questionamento da msica do O Rappa, estou convencida de que quero a inquietao que me

    leva a pensar sobre os processos; quero a inquietao que faz afirmar as subjetividades

    singulares, que resistem ao discurso hegemnico; desejo a falta de paz que no me torna

    cmplice. No quero conservar uma falsa paz para concordar com a maioria das pessoas e

    tentar ser feliz. Pois, como continua a msica: pela paz que eu no quero seguir

    admitindo.

    O mito da guerra civil est presente na histria da humanidade sempre que

    necessrio justificar perseguies, violaes e o domnio de certos grupos sobre outros6. Esse

    mito e a naturalizao da violncia nas favelas tm uma longa histria e uma estratgia de

    saber/poder que justificam os extermnios. Essas aes so pautadas em concepes que

    acreditam na existncia de uma essncia violenta e criminosa, e que essa essncia

    encontrada com maior facilidade nos segmentos pobres. Esses pensamentos vm sendo

    construdos desde meados do sculo XIX, com teorias que associam e naturalizam pobreza e

    criminalidade. Essa relao foi sendo construda atravs de teorias racistas, eugnicas e

    higienistas7.8

    4 ZAMORA, M. H. e CANARIM (2009) 5 Rappa 6 COIMBRA (2000) 7 O movimento higienista tinha a ateno voltada para a sade e higiene dos mais pobres, pois acreditava-se que desta maneira poderiam controlar a propagao de doenas epidmicas, com por exemplo a febre amarela. Para eles os pobres ofereciam maior perigo de contgio. CHALHOUB (2006) 8 COIMBRA (2000)

  • 15

    O importante o que ele poder vir a fazer, no o que fez, ou seja, dependendo de sua raa, de sua cor, de sua condio financeira, esse sujeito estar propenso a realizar atos que agridem no s a moral e os bons costumes, mas que ferem a lei. (COIMBRA, 2000)

    A partir desses pensamentos discriminatrios e racistas o genocdio de negros pobres

    vem se tornando cada vez mais natural e muitas vezes entendido como necessrio. com

    naturalidade que a opinio pblica percebe o desrespeito aos moradores das favelas. Invases

    s casas com um mandado de busca genrico9 um dos exemplos que podemos citar. Apesar

    de ser contra a lei, o mandado de segurana genrico nunca foi questionado pelas emissoras

    de TV. Ou seja, tornou-se uma medida aceitvel uma vez que admitimos que estamos numa

    guerra civil.

    No quero encontrar culpados para a situao em que vive o Rio de Janeiro, quero

    apenas problematizar os acontecimentos. No busco uma origem de todo mal, mas busco

    entender os processos que permitem que os acontecimentos ocorram tal como eles se do.

    No capitalismo no temos lugar para todos na lgica de consumo. O que fazer com

    aqueles que esto margem? O poder cria estratgias de coero para inibir a potncia dos

    mais pobres. Poderosos processos de produo de subjetividades agem no sentido de impedir

    que estes, que so mais numerosos, se revoltem. Assim, todos passam a acreditar no

    potencial criminoso daqueles que habitam os bairros pobres ou os de pele mais escura.

    Estes necessitam de vigilncia para que no incomodem a vida estabilizada das pessoas de

    bem. Uma mentira repetida diversas vezes torna-se verdade. Esta sentena, fomentada pela

    cincia, pelos estudos criminolgicos, pelas estatsticas e pelas reportagens, acaba apontando

    que as aes de invaso nas favelas so extremamente necessrias. Com tantos argumentos, os

    moradores das zonas perigosas so induzidos a concordar com o que acontece. Afinal, o

    que est dado que ali realmente mora o mal social. Ento, para justificar a misria

    produzida pelo capitalismo, procura-se um culpado, neste caso, o pobre preguioso, aquele

    que quer ganhar a vida de maneira fcil. J que o senso comum afirma que ele o nico

    culpado por sua misria, este ter que ser responsabilizado, pois tido como acomodado e

    aquele que no quer trabalhar e por isso vai procurar seu sustento cometendo ilcitos penais.

    No tenho uma nica resposta sobre a escolha do meu tema, pois assim como a vida,

    minha implicao mltipla, com a vida que resiste e persiste. Acredito que essa implicao

    9 Autorizao emitida pelo judicirio para que a polcia ingresse em nmero indeterminado de residncias em determinadas localidades, podendo abranger ruas, quarteires ou at comunidades inteiras.

  • 16

    se deu a partir de diversos encontros com o tema na minha experincia cotidiana, como

    moradora do Rio de Janeiro. Eu no poderia deixar de me inquietar com esse tema vivendo

    nesta cidade. Pois, como disse Spinoza tudo que acontece em um corpo dever ser percebido

    pela mente humana, "nada poder acontecer nesse corpo que no seja percebido pela

    mente".10

    Sei que ao final da dissertao a inquietao ir permanecer, mas no quero achar

    solues, desejo apenas pensar sobre os processos.

    Para escrever sobre como a violncia do Estado produz subjetividades, utilizo a

    perspectiva esquizoanaltica. Nessa medida, no busco uma verdade, mas estou atenta aos

    processos.

    Pretendo abordar o tema a partir de uma perspectiva de maneira transdisciplinar, cujo

    campo do saber poder ser chamado de campo de disperso, ou seja, far oposio a

    qualquer saber que se pretenda universal e ordenado. 11 Desta maneira, sero utilizados

    fragmentos histricos, anlises sociolgicas e filosficas, bem como teorias do campo da

    psicologia, mais especificamente da esquizoanlise. Sero privilegiados autores que apostam

    na riqueza do encontro e no acreditam em uma verdade esttica. Reportagens que falam

    sobre o tema, podero evidenciar a problemtica. Sero utilizadas falas e percepes que

    puderam se dar a partir das reunies do grupo Rede contra a violncia. 12

    A dissertao possui quatro captulos. O primeiro captulo, Aes de extermnio no

    Rio De Janeiro! Onde e como?, abordar fatos que possam esclarecer o que chamaremos de

    aes de extermnio nas favelas cariocas. Essas aes so naturalizadas pela mdia e aceitas

    pela opinio pblica. Os assassinatos dos moradores das favelas so justificados por teorias

    racistas e eugnicas que afirmam que os pobres so potenciais criminosos e necessitam da

    coero do Estado. As medidas de segurana utilizadas pelo Estado nas chamadas reas

    perigosas no evidenciam a queda no nmero de delitos cometidos. No entanto, h um

    aumento significativo de pessoas em privao de liberdade. A populao carcerria cresce a

    passos largos.

    10 (E II p.12). 11 RAUTER (1993) 12 A Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violncia surgiu no ano de 2004 como fruto da luta mais organizada das comunidades e dos movimentos sociais contra a violncia de Estado, a arbitrariedade policial e a impunidade.

  • 17

    O Bio-poder descrito por Foucault permite compreender as estratgias de

    adestramento do corpo. Este o principal artifcio do capitalismo, que necessita de corpos

    obedientes e teis para o funcionamento de sua engrenagem.

    O exerccio do Estado aparece camuflado por ideais de igualdade para todos. Com

    uma sociedade que transgride os direitos fundamentais, h uma aparente falha do Estado, no

    entanto, as tcnicas de coero mostram seu perfeito funcionamento. As medidas punitivas

    so transformadas ao longo da histria, mas atrs de uma aparente humanizao nos atuais

    modos de punir a partir da experincia da priso, o que est em funcionamento um controle

    social mais abrangente e eficaz.

    A ideia de uma personalidade imutvel ser problematizada. Esta ideia justifica o mito

    do potencial criminoso, aquele que nasce com tendncia para o crime e dificilmente ter um

    futuro diferente.

    Os processos subjetivos so produzidos a partir dos encontros, na perspectiva de

    Spinoza. No possvel prever as aes de uma pessoa, j que esta estar em continuo

    processo. As formas de pensar e agir so produzidas a partir da multiplicidade e

    heterogeneidade e no a partir de identidades cristalizadas.

    O capitalismo utiliza a mdia para direcionar maneiras de pensar, ser e agir. Desta

    forma, mitos e preconceitos so amplamente disseminados na sociedade. Os discursos

    produzidos por este meio so tidos como verdades e so utilizados para fortalecer esses

    mitos, que por sua vez tambm produzem subjetividades e prticas sociais.

    O segundo captulo, Alguns analisadores da polcia no Rio De Janeiro, contar uma

    breve histria da polcia militar. Esta histria comea em 1908 com a primeira estruturao da

    fora policial quando foi criada a guarda real. Desde sua criao a polcia tinha a funo de

    prevenir os mais ricos das aes dos mais pobres.

    A invaso aos cortios, o policiamento na poca Vargas e a utilizao da polcia no

    perodo da ditadura militar, tambm so momentos analisadores da polcia no Rio de Janeiro.

    Hoje a capital fluminense tem diversos morros ocupados pela Unidade de Polcia Pacificadora

    (UPP); favelas so invadidas pela PM, Polcia Civil e exrcito com a promessa de trazer paz

    aos seus moradores. No entanto, essa paz prometida comprometida por abusos policiais e

    assassinatos.

    No terceiro captulo, Em busca da liberdade; a caminho da servido?, Spinoza ser o

    principal intercessor para pensar os mltiplos modos de subjetivao produzidos pela

    violncia do Estado. O Estado, com suas tcnicas de submisso, utiliza mecanismos de

  • 18

    controle social para manter as coletividades em situao de submisso. No entanto, uma

    compreenso das causas da violncia e o contgio afetivo entre os atingidos pode contribuir

    para um aumento de potncia a partir do trauma sofrido.

  • 19

    CAPTULO I: AES DE EXTERMNIO NO RIO DE JANEIRO! ONDE E

    COMO?

    A modernidade exige cidades limpas, asspticas, onde a misria j que no pode ser mais escondida e/ou administrada deve ser eliminada. Eliminao no pela sua superao, mas pelo extermnio daqueles que

    a expe incomodando os olhos, ouvidos e narizes das classes mais abastadas. (Ceclia Coimbra)

    Nesse primeiro captulo sero apresentados fatos que possam elucidar o tema

    escolhido, mostrando que a inquietao com a violncia policial no exagero nem tampouco

    um fato isolado. No Brasil muitos so marcados pela violncia policial e entre esses muitos

    jovens.

    No difcil perceber a ao policial nas favelas do Rio de Janeiro. Todos os dias em

    nossos telejornais somos contemplados com reportagens que descrevem as estratgias

    policiais de combate ao crime organizado e ao trfico de drogas. A mdia, principal

    fomentadora do senso comum, transmite informaes de maneira a naturalizar as mortes

    ocorridas durante essas aes nas favelas, fortalecendo a lgica de que: bandido bom

    bandido morto.

    De acordo com dados oficiais do Instituto de Segurana Pblica do Rio (ISP), a polcia

    matou nos chamados autos de resistncia13 1.137 pessoas em 2008. No ano de 2009 esse

    nmero caiu para 1.048, tendo sido o ms com menor incidncia de mortes dezembro, com 71

    mortes. Em 2010 o nmero de mortes por autos de resistncia foram 855. Sero apresentados

    ao longo desta pesquisa casos em que as pessoas assassinadas em autos de resistncia nunca

    tiveram passagem pela polcia, desmentindo a alegao de que os mortos durante as aes

    policiais so todos bandidos. A partir desses nmeros possvel perceber, que os moradores

    da favela do Rio de Janeiro, a maioria negros, tm enfrentado a cada dia a luta pela vida. De

    um lado, uma poltica de segurana pblica que tem como lema o extermnio de alguns

    indivduos considerados bandidos perigosos e por isso perfeitamente matveis e do outro uma

    classe mdia, atravessada pela mdia, que no cessa de pedir punies, favorecendo uma

    poltica de extermnio.

    13 Segundo o art. 329 do cdigo penal brasileiro o auto de resistncia : opor-se execuo de ato legal, mediante violncia ou ameaa a funcionrio competente para execut-lo. A caracterizao do auto de resistncia evita a priso em flagrante de agente policial envolvido em homicdio. Os nmeros no Rio de Janeiro da letalidade policial e auto de resistncia so os maiores do pas.

  • 20

    Essa poltica de extermnio, que parece to sutil aos cariocas e aos espectadores desses

    jornais, torna-se evidente quando, por exemplo, justificando sua visita ao Brasil em novembro

    de 2009, a comissria de Direitos Humanos da Organizao das Naes Unidas (ONU), a sul-

    africana Navanethem Pillay, afirma : ... me disseram que h at um genocdio de negros no

    pas, o que motivo de grande preocupao e razo da minha visita. 14

    Violncia e assassinato no so prticas recentes do Estado Brasileiro. Pode-se aqui

    lembrar de um perodo no qual a tortura era uma prtica oficial do Estado. Durante a Ditadura

    Militar no Brasil, opositores ao governo foram presos, torturados e mortos. Hoje a tortura e os

    desaparecimentos continuam, desta vez nas favelas e bairros pobres das grandes cidades.

    H ainda hoje, em nmeros oficiais disponveis no site do Grupo Tortura Nunca Mais

    137 pessoas desaparecidas. 15 Essa lista de desaparecidos continua at hoje em aberto, pois

    nenhum esclarecimento oficial foi feito, o que s seria possvel com a abertura dos arquivos

    da ditadura. Na ditadura militar era difundida a ideia de que os militares precisavam proteger

    o Brasil contra os subversivos. Aqueles que no estavam de acordo com o Governo Militar ou

    que pertenciam a organizaes de esquerda eram presos e torturados. Muitos no resistiram e

    morreram. Em alguns casos seus corpos nunca foram encontrados, suas famlias foram

    impedidas de sepult-los.

    O alvo da violncia oficial mudou: agora no mais o inimigo poltico, mas o morador

    da favela, aquele que supostamente ameaa a paz da classe mdia. Mesmo depois do retorno

    democracia, o Estado continua sombreado por duas dcadas de ditadura, influenciando o

    funcionamento do Estado e as mentalidades coletivas. Desta maneira, o senso comum tende a

    aproximar a defesa dos direitos do homem com a tolerncia a bandidagem. 16

    O inimigo interno que justificava os crimes na ditadura agora representado pela

    figura do jovem pobre e negro. Torturas nas cadeias e execues durante as incurses

    policiais nas favelas cariocas so acontecimentos j banalizados pelo senso comum.

    As crticas feitas chamada criminalidade designada no Direito Penal Brasileiro so,

    na maioria das vezes, pautadas na individualizao de condutas, no considerando os

    processos segregativos, excludentes e racistas, que vivemos no Brasil. As anlises do direito

    positivista individualizam o crime, considerando quem pobre, negro e vive em favelas como

    mais propcio a cometer delitos, gerando a ideia de que existiria uma personalidade

    delinquente.

    14 TABAK, Flavio. Jornal o Globo. 11/11/2009. 15 Informao contida no site do Grupo Tortura Nunca Mais/ RJ. A lista de desaparecidos permanece em aberto. 16 WACQUANT (2001)

  • 21

    Para Wacquant (2001), a violncia policial no Brasil vem de uma tradio de controle

    dos miserveis atravs da fora. Essa tradio tem origem na escravido e nos conflitos

    agrrios. A sociedade brasileira caracterizada por disparidades sociais e pela pobreza em

    massa.

    Esse pensamento sobre o potencial de periculosidade do criminoso j tem o seu lugar

    na histria. No sculo XIX, estudos feitos sobre a anormalidade do criminoso apontavam que

    insensibilidade, mentira, vaidade, preguia, apetite sexual exagerado, tendncias

    homossexuais e at a promiscuidade eram caractersticas comuns entre eles. Incapazes de ter

    controle moral adequado, sua anormalidade era explicada como um retorno ao estado

    selvagem hereditariamente determinado. O crime era visto como sintoma de um mal

    hereditrio. No Brasil, os costumes como o carnaval, o samba, o fato de serem cangaceiros

    nordestinos, e at a miscigenao eram indcios de uma incapacidade para o controle moral e

    assim se explicava lassido para o trabalho, o desrespeito s autoridades e as tendncias para

    o crime. 17

    Atualmente, possvel notar aes de extermnio nas favelas cariocas justificadas em

    explicaes parecidas com as do sculo XIX. No com indignao que grande parte da

    populao recebe notcias de jovens mortos pela polcia nas favelas do Rio de Janeiro. Matar

    os supostos criminosos acaba sendo uma alternativa totalmente aceitvel, mesmo que para

    isso seja necessria a morte de moradores no envolvidos com o trfico, tendo em vista as

    tendncias criminosas que se pressupe serem comuns entre essas pessoas e a dificuldade para

    identificar entre elas quem no tem envolvimento com o chamado crime organizado.

    Wacquant (2001) chama a ateno para a globalizao da tolerncia zero. Importada

    dos Estados Unidos, o ideal de cidades tranquilas e seguras acompanha a legitimao das

    aes policiais e jurdicas para a pobreza que incomoda e causa desordem nos espaos

    pblicos. O discurso de guerra ao crime e de reconquista ao espao pblico assimila os

    delinquentes, sem-teto, mendigos entre outros tidos como marginais. Acompanhada de um ar

    de modernidade, a tolerncia zero no pensa sobre a gnese social e econmica do Estado,

    mas coloca a insegurana espalhada pelas cidades como uma responsabilidade individual dos

    moradores das chamadas zonas incivilizadas.

    Em diversos lugares no mundo as tcnicas nova-iorquinas de tolerncia zero so

    implantadas, com a populao carcerria aumentando consideravelmente. Nos Estados

    Unidos, por exemplo, se o sistema carcerrio fosse uma cidade seria hoje a quarta maior

    17 RAUTER ( 2003).

  • 22

    metrpole do mundo. Mesmo com a diminuio da criminalidade as prises continuam

    crescendo, o nmero de pessoas detidas e julgadas no para de aumentar. Com essa incrvel

    matemtica (menos crimes mais prises), 60% dos detentos tinham seus processos anulados

    pelo procurador antes de chegar ao juiz, ou quando chegavam eram considerados presos sem

    motivo. A maioria dos processos eram de pessoas de bairros pobres, o que mostra um objetivo

    bem mais poltico-miditico que judicial, pois o alvo da tolerncia zero so as classes a

    margem do mercado de trabalho. 18

    Assim como nas diversas cidades do mundo, o Brasil tambm adota a tolerncia

    zero como medida para ter uma sociedade mais segura. Em 1999, o governador de Braslia

    anuncia a adeso e contrata 800 policiais. Com o sistema penitencirio super lotado ele

    declara que para solucionar esse problema ser necessrio a construo de mais prises. No

    Rio de Janeiro as prises, delegacias e casas de recuperao para menores infratores esto

    super lotadas, incrivelmente a maioria dos presos so negros e pobres. Mais uma vez, a

    polcia cumpre o seu papel de origem: manter as populaes pobres sob controle. Veremos

    com mais detalhes a funo policial no prximo captulo.

    Para uma melhor discusso sobre o Estado e sua funo nas aes policiais, esse

    captulo contm subtemas, que apresentaro subsdios para pensar o Estado e a forma como a

    polcia atua nas favelas nos dias atuais.

    1.1 - Quem o Estado?

    O Estado pode ser, para alguns, garantidor de direitos; para outros, objeto de desejo ou

    ainda motivo de medo. Mas o que se entende por Estado? Para essa problematizao

    utilizaremos entre outros autores Foucault, que nos prope um Estado que no detentor de

    todo o poder, to pouco est com sua funo corrompida quando violento. No Brasil, a luta

    pelas liberdades democrticas acontece justamente com a luta pelo fim da Ditadura Militar.

    Nessa poca, a esquerda brasileira acreditava que a volta do Estado Democrtico de Direito,

    que havia sido derrubado com a tomada do poder pelos militares, era a esperana de tempos

    melhores.

    A partir da lgica partidria havia uma busca pelos lugares de poder e acreditava-se

    que este estava centralizado no Estado. A luta por um Estado Democrtico de Direito parecia

    18 WACQUANT (2001)

  • 23

    ser a possibilidade de confrontar poderes estabelecidos. No entanto, a ditadura de mercado,

    um modo mais sutil de dominao global, era imposta nessa mesma poca. O aparelho de

    Estado no pode ser utilizado de forma diferente, o aparelho de Estado, funciona segundo

    certas lgicas, e ocup-lo , na maior parte das vezes, servi-lo na condio de operador de

    seus dispositivos e, nesta condio, o operador no muda a mquina, ele a faz funcionar. 19

    Lutar contra um poder definido, nico e que possui endereo uma estratgia

    impossvel de ser alcanada. Pois o poder no algo unitrio, no um objeto natural, uma

    coisa; uma prtica social e, como tal, constituda historicamente. 20 Os poderes se articulam

    atravs de prticas que se exercem em nveis variados, esto em pontos diferentes da rede

    social, e podem estar ou no integrados ao Estado. O fato do poder no est necessariamente

    integrado ao Estado no diminui o papel do Estado nas relaes de poder existentes na

    sociedade. Mas vai afirmar que o Estado o nico rgo central do poder, j que muitas

    relaes de poder foram constitudas fora dos Aparelhos de Estado.

    O Estado no deve ser visto como um monstro frio frente aos indivduos, nem deve ser

    reduzido a certo nmero de funes, isso o coloca em uma posio privilegiada a ser ocupada.

    O Estado no tem uma unidade, uma individualidade, uma funcionalidade, to pouco tem a

    importncia que lhe dada. 21

    A luta da esquerda por um Estado Democrtico de Direito no perodo da ditadura pode

    ser entendida como a idealizao de um Estado independente de tcnicas de

    governamentalidade. No entanto, um Estado que tem a populao como alvo, que utiliza o

    saber econmico e acaba por controlar a sociedade atravs dos dispositivos de segurana, pois

    tem a polcia como instrumento para tal. 22

    Para Foucault (1979) a arte de governo do sc. XVIII o que ele chama de

    governamentalidade e define como:

    O conjunto constitudo pelas instituies, procedimentos, anlises e reflexes, clculos e tticas que permitem exercer esta forma bastante especfica e complexa de poder, que tem por alvo a populao, por forma principal de saber a economia poltica e por instrumentos tcnicos os dispositivos de segurana. (FOUCAULT 1979, p. 291 292)

    19 COIMBRA, C.; Monteiro, A. & Mendona, M (2006) pag. 11 20 MACHADO, (2005) intro pg. X 21 FOUCAULT (1979) 22 FOUCAULT (1979)

  • 24

    Para isso, o governo usar tcnicas que vo agir indiretamente, sem que as pessoas se

    deem conta. A populao aparece como sujeito de necessidades e objeto nas mos do

    governo.23

    Essa estratgia de poder fica clara quando Foucault fala sobre o poder de gerir a vida,

    que se desenvolveu a partir do sculo XVII, o bio-poder. Com tcnicas de controle centradas

    no corpo, o bio-poder adestra, amplia aptides, ordena o crescimento paralelo de docilidade e

    utilidade, e opera tambm nos processos biolgicos como nascimentos, mortalidade,

    longevidade e outros fatores. 24

    O capitalismo, que depende de corpos controlados e inseridos no aparelho de

    produo, tem como elemento fundamental o bio-poder. Os aparelhos de Estado sendo

    instituies de poder presentes em todos os nveis sociais so utilizados por instituies como:

    famlia, escola, polcia, etc. A partir dessa utilizao manipulam processos econmicos,

    determinam fatores de segregao e de hierarquizao social, garantem relaes de

    dominao entre outras estratgias que foram plausveis atravs do exerccio do bio-poder e

    suas mltiplas formas de operao. 25

    Ao pensar em Estado Democrtico remete-se aos direitos garantidos pela

    democracia, no entanto as diversas violaes dos direitos fundamentais podem demonstrar

    o no cumprimento das funes do Estado. Mas, como se pode ver o Estado no o nico

    detentor dos poderes, e no que lhe cabe ele deve controlar a populao atravs de estratgias

    saber/poder. Assim quando h uma suposta falha na funo do Estado, na verdade ele est

    exatamente no seu exerccio: controlar a populao atravs de dispositivos de poder.

    A violncia evidenciada no Estado brasileiro tem uma funo, a de mant-lo

    assim como ele . A produo de delinquentes til para o capitalismo, j que no h espao

    para todos na lgica de consumo.

    A partir desta viso de Estado tal como foi problematizada, ser pensado a

    seguir como esse Estado se apresenta nas aes policiais.

    23 FOUCAULT (1979) 24 FOUCAULT (2006) 25 FOUCAULT (2006)

  • 25

    1.2 - Violncia do Estado e Aes Policiais

    O Ministrio Pblico de So Paulo denunciou (...) quatro policiais militares acusados de espancar e matar o motoboy Alexandre Menezes dos Santos, de 25 anos, na madrugada do dia 8 de maio. (...) Segundo o MP, o jovem apanhou por entre 20 a 30 minutos. Os policiais agiram "impelidos por absoluto desprezo pela vida do jovem pardo, pobre, perifrico, desprezando os pedidos da me da vtima para que parassem as agresses e ameaando-a de priso se interviesse". (...) Alexandre Santos foi morto quando chegava em casa (...) aps trabalhar como entregador em uma pizzaria. Segundo informaes do Boletim de Ocorrncia (BO), um dos policiais aplicou uma gravata no motoboy na tentativa de imobiliz-lo, mas ele teria conseguido se desvencilhar. Ento, outro golpe foi dado. Alexandre perdeu os sentidos e desmaiou, morrendo pouco tempo depois. (...) Em entrevista ao iG, a me de Alexandre, (...) disse que implorava para [os policiais] pararem de bater em seu filho. Eu me ajoelhei, tentei pegar na mo deles (policiais) e implorava para pararem de bater no meu filho. Eles s diziam: 'fica quieta que voc pode ser presa (...) Quando perguntei o motivo da agresso ao meu filho, o policial apenas respondeu: 'estava cumprindo o meu trabalho'. O trabalho deles era matar o meu filho. (Notcia do Jornal ltimo Segundo de So Paulo em 17/05/2010)

    Essa histria nos parece assustadora, no entanto no com dificuldade que

    encontramos manchetes parecidas em nossos jornais. A cada dia mais pessoas so atingidas

    por violncia policial.

    As aes violentas do Estado hoje tm novos alvos. O que na ditadura militar era

    justificado pela existncia do inimigo interno26, do subversivo, deslocou-se agora para o

    combate ao criminoso identificado como traficante.

    No quero aqui dizer que a violncia e tortura praticada pela ditadura a mesma que

    acontece hoje nas favelas. Poderamos aqui relacionar inmeras diferenas, inclusive o

    momento histrico em que se do. Mas, gostaria apenas de trazer, nessas linhas iniciais, a

    violncia praticada pelo Estado brasileiro que embora sejam diferentes e em diferentes

    momentos, possuem algumas semelhanas.

    Assim como na poca da ditadura, nem sempre os envolvidos nos ditos crimes27, ou

    seja, aqueles que poderiam ser considerados culpados, so os nicos que sofrem as

    consequncias da chamada guerra urbana. Essa expresso guerra urbana forjada pelos

    meios de comunicao e difundida entre a populao, e assim utilizada para que de maneira

    justificvel a represso se torne diria nas favelas. Podemos afirmar que nas prticas de

    26 Inimigo Interno pode ser qualquer pessoa, que de uma maneira ou outra, possam questionar, se opor e, de alguma forma, levar desestabilizao da segurana nacional. Termo importado dos Estados Unidos e utilizado no Brasil na elaborao de toda Doutrina de Segurana Nacional, vigente em anos de 1960 a 1970. 27 No perodo ditatorial pensamentos ou aes, que iam contra s prticas do governo, eram considerados crimes. Tais crimes subversivos eram praticados pelos opositores polticos e sua represso era justificada pela ameaa a segurana nacional.

  • 26

    violncia do Estado, permanece a prtica de tortura, que de longe foi banida com a

    redemocratizao do Pas, e continua sendo amplamente utilizada como recurso das

    investigaes policiais. 28

    O termo tortura foi definido pela ONU na Conveno contra a tortura e outros

    tratamentos ou penas cruis desumanos ou degradantes: 29

    (...) o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, fsicos ou mentais, so infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informaes ou confisses; de castig-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminao de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos so infligidos por um funcionrio pblico ou outra pessoa no exerccio de funes pblicas, ou por sua instigao, ou com o seu consentimento ou aquiescncia. No se considerar como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequncia unicamente de sanes legtimas, ou que sejam inerentes a tais sanes ou delas decorram.30

    A tortura definida pela ONU de forma ampla, abrangendo no s o que aconteceu

    com os presos polticos na ditadura, mas o que acontece hoje nas favelas do Rio de Janeiro e

    de todo o Brasil. Pode-se dizer que algumas prticas violentas do Estado dizem respeito ao

    extermnio dos mais pobres; muitas vezes esse extermnio seguido de sofrimento fsico e

    mental, infringido por um funcionrio pblico no exerccio de sua funo, como definiu a

    ONU.

    Percebemos assim, que tortura e violncia do Estado so termos bem abrangentes.

    Para uma melhor delimitao do objeto da nossa pesquisa, se faz necessrio um enfoque.

    Falaremos da violncia praticada pelo Estado durante as aes policiais nas favelas do Rio de

    Janeiro nos primeiros dez anos do sculo XI.

    28 NOBRE (2004) 29 Conveno que considerou a carta da assembleia de 1975, o reconhecimento dos direitos iguais e inalienveis de todos os membros da famlia humana, a obrigao do Estado de promover o respeito universal e a observncia dos direitos humanos e das liberdades fundamentais e levando em conta o "artigo 5" da Declarao Universal dos Direitos do Homem e o "artigo 7" do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Polticos, que determinam que ningum ser sujeito a tortura ou a pena ou tratamento cruel, desumano ou degradante. Em 1975, quando o Brasil ainda vivia um momento de grande represso poltica, sob a vigncia do Ato Institucional n 5, que vigorou at o ano de 1978, a Organizao das Naes Unidas aprovava em assembleia geral a Declarao sobre a Proteo de Todas as Pessoas Contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruis, Desumanos ou Degradantes. O Ato Institucional nmero cinco, foi o quinto decreto emitido pelo regime militar aps o Golpe de 1964. O AI-5 foi o instrumento que deu ao regime militar absoluto poder, tento com um de seus efeitos o fechamento do congresso nacional por um ano. Foi o golpe dentro do golpe, em 13/12/1968. 30 Parte I, artigo1, ONU

  • 27

    Segundo Chau (1997), as vrias culturas e sociedades do violncia contedos

    diferentes, considerando o tempo e os lugares. No entanto, existem pontos em comum ao

    definir a violncia. A violncia de maneira geral entendida:

    (...) como uso da fora fsica e da coao psquica para obrigar algum a fazer alguma coisa contraria a si, contraria aos seus interesses e desejos, contraria ao seu corpo e sua conscincia, causando-lhe danos profundos e irreparveis, como a morte, a loucura, a auto agresso ou a agresso aos outros. (...) Em nossa cultura, a violncia entendida como o uso da fora fsica e do constrangimento psquico para obrigar algum a agir de modo contrrio sua natureza e ao seu ser. A violncia a violao da integridade fsica e psquica, da dignidade humana de algum. Eis por que o assassinato, a tortura, a injustia, a mentira, o estupro, a calnia, a m-f, o roubo so considerados violncia, imoralidade e crime. (CHAU, 2000 pg. 432, 433)

    A partir dessa definio de violncia, trataremos da violncia policial, que

    indiscriminadamente, sem distinguir entre inocentes ou culpados tortura e ceifa vidas.

    Ao longo das ltimas dcadas, a polcia a principal perpetradora de crimes contra a

    vida, podendo ser considerada uma mquina de extermnio. A violncia letal no Brasil sugere

    que parcelas da populao tenham suas vidas circunscritas pela violncia e pelo medo.

    Atravs das aes da polcia, o Estado atua de forma criminosa e numa escala inaceitvel.

    Apesar disso, a violncia policial no significa melhor eficincia no combate s atividades

    criminosas.

    H uma banalizao do extermnio de jovens pobres em supostos confrontos com a

    polcia. Tudo isso acompanhado de aplausos de uma classe mdia acuada pelo medo, que

    deseja a limpeza da cidade, mesmo que isso no garanta direitos iguais a todos. A falta de

    comoo na sociedade e na mdia para com as invases da polcia nas reas pobres o retrato

    da conformidade com a ideia de que essas reas do territrio esto excludas do marco da

    legalidade e permanentemente em estado de exceo.

    Para Agamben (2004), o estado de exceo se apresenta como a forma legal daquilo

    que no poderia ter forma legal. quando a legalidade das leis pode ser suspensa para que

    aes do Estado, transgressoras das leis, possam ser vistas como necessrias. Em uma guerra

    civil, por exemplo, o estado de exceo pode ser a resposta imediata do poder estatal aos

    conflitos internos. No Estado democrtico de direito o estado de exceo pode ser visto como

    uma continuidade do que acontecia na soberania, quando o soberano decidia sobre quando

    deveria suspender a legitimidade das leis.

    Em referncia ao Terceiro Reich, estado de exceo que durou doze anos, Agamben

    define a suspenso das leis no direito pblico como totalitarismo moderno, pois permite a

    eliminao fsica no s dos adversrios polticos, mas tambm de categorias inteiras de

  • 28

    cidados que, por qualquer razo, paream no integrveis ao sistema poltico. 31 Nos

    Estados contemporneos, inclusive nos ditos democrticos, o estado de exceo aparece cada

    vez mais como paradigma de governo. Uma medida provisria e excepcional passa a ser uma

    tcnica de governo, e estreita cada vez mais a democracia e o absolutismo.

    O estado de exceo instaurado na segunda guerra utilizava campos de concentrao

    para a aniquilao do homem, no contemporneo temos campos de concentrao a cu aberto.

    Nas favelas onde o direito individual suspenso, os moradores no so vistos como iguais e

    qualquer ao contra sua vida no vista como crime. O Estado moderno utiliza mecanismos

    jurdicos para fazer com que as leis sejam suspensas em nome da paz, to sonhada. As

    ameaas de uma cidade perfeita so eliminadas, descartadas, tidas como no humanas. Os

    direitos fundamentais garantidos na Constituio federal so violados pelo poder pblico.

    Com um mandado de busca e apreenso coletivo e genrico, qualquer casa da favela

    pode ser revistada. Esse tipo de ao contraria completamente o Cdigo de Direito Penal

    Brasileiro, que determina que:

    Art. 243 - O mandado de busca dever: I - indicar, o mais precisamente possvel, a casa em que ser realizada a diligncia e o nome do respectivo proprietrio ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que ter de sofr-la ou os sinais que a identifiquem; II - mencionar o motivo e os fins da diligncia; III - ser subscrito pelo escrivo e assinado pela autoridade que o fizer expedir. (Cdigo de Direito Penal)

    Em total descumprimento ao Cdigo Penal, os mandados de busca coletivos e

    genricos se validam atravs do estado de exceo, no qual os policiais podem invadir casas

    de comunidades inteiras. Tenho absoluta convico que o mandado coletivo e genrico jamais

    seria usado no Leblon, bairro onde o atual governador mora com sua famlia. No entanto o

    estado de exceo abre brechas para que qualquer ao do Estado possa se tornar legal. Em

    modulaes subjetivas magnficas, propaga o medo, torna natural e totalmente aceitveis

    essas aes, vendidas como necessrias para a paz to desejada.

    As manchetes que deveriam ser vistas com total indignao passam a ser corriqueiras

    e normais aos olhos dos que veem essas histrias atravs dos jornais.

    (...) Julio Csar de Menezes Coelho, de 21 anos, foi morto com dois tiros no peito, na Cidade Alta. A verso apresentada pela polcia, no domingo de manh, era de que ele era um dos quatro traficantes mortos durante confronto com PMs em Cordovil. No entanto, Julio estudava no Colgio Municipal Montese e, h seis

    31 AGAMBEN (2004, p.13)

  • 29

    meses, trabalhava no McDonald's da Rua Hilrio de Gouveia, em Copacabana. (...) - Policiais no respeitam os moradores. O Csar estava indo trabalhar, mas, antes, parou para conversar. Era um bom garoto, todos aqui gostavam dele. Estamos cansados disso, queremos dar um basta nessa situao - desabafou Claudia dos Santos, uma espcie de tia de considerao do jovem, indignada com a morte do jovem e com o fato de ele ter sido tachado de bandido. (...) No confronto de sbado, outras trs pessoas foram mortas, uma delas no identificada. Rodrigo Alves Catureba e Wantuiller Marques Lopes, a exemplo de Julio, no tm passagem pela polcia, segundo informou ontem tarde o comandante do 16 BP (...).32 O menino Caque dos Santos, de cinco anos, morto por uma bala perdida durante incurso da Polcia Militar na favela do Pica-Pau, em Cordovil, (...) Ele foi levado por moradores para o Hospital Getlio Vargas, na Penha, (...) Policiais do 16 BPM (Olaria) que participaram da ao disseram que foram recebidos a bala pelos traficantes da rea. De acordo com a corporao, os militares no revidaram ao ataque. O pai do menino, Rogrio Batista dos Santos, em entrevista Rdio Bandnews deu outra verso ao ocorrido e disse que apenas os policiais atiraram. S teve tiro deles. De ningum mais", acusou. Ele contou ainda que trs PMs entraram na comunidade paisana, vestidos de sorveteiros. Aps a fuga de dois suspeitos, os policiais teriam atirado e, j vestidos com uniformes da corporao, entrado num carro modelo Gol da Polcia Militar, cuja placa foi identificada durante a entrevista do pai rdio.33

    O menino Caque estava apenas brincando na porta da casa da av paterna quando foi

    atingido por uma bala. Difcil foi o batalho responsvel pela morte da criana acus-lo de

    envolvimento com o trfico como fez com o estudante Julio Cesar de 21 anos, como vemos

    nas reportagens acima.

    Sem um julgamento prvio, na favela qualquer um pode perder a vida a qualquer

    momento. Pois o esteretipo de possvel criminoso junto com a desculpa de combate ao

    crime so suficientes para justificarem os extermnios.

    1.3 O criminoso e a pena em Foucault e Nietzsche

    Mas qual poltica se faz presente no contemporneo? Foucault (2007) inicia o livro

    Vigiar e Punir com a aterrorizante descrio de um suplcio. O condenado, em um grande

    espetculo, tinha seu corpo supliciado, esquartejado, amputado, marcado, exposto vivo ou

    morto em praa pblica. O sofrimento fsico e a dor do corpo faziam parte da pena. O suplcio

    no apenas a privao do viver, mas uma tcnica para produzir certa quantidade calculada

    de tortura para reter a vida no sofrimento. Para esse clculo era levada em considerao a

    gravidade do crime cometido, a pessoa do criminoso e o nvel social de suas vtimas, assim

    era determinado o tipo e a intensidade de ferimentos e o tempo de sofrimento, e em quanto

    32 Extra em 20/09/2010. 33 O Dia online em 01/04/2011.

  • 30

    tempo se deveria deixar o criminoso morrer. O suplcio era um ritual, um elemento da liturgia

    punitiva. Esse ritual tem que ser marcante, ele traa sobre o corpo do condenado sinais que

    no devem se apagar da memria dos homens, os gritos com excesso de violncia fazem parte

    do cerimonial de justia que assim manifesta sua fora. O suplcio se prolongava aps a morte

    do condenado, os cadveres eram arrastados, expostos, queimados. Uma justia alm do

    possvel sofrimento.

    O suplcio penal no corresponde a qualquer punio corporal: uma produo diferenciada de sofrimentos, um ritual organizado para a marcao das vtimas e a manifestao do poder que pune: no absolutamente a exasperao de uma justia que, esquecendo seus princpios, perdesse todo o controle. Nos excessos dos suplcios, se investe toda a economia de poder. (FOUCAULT, 2007 pg. 32)

    Os ritos punitivos eram efeitos de certa mecnica de poder, de um poder que faz valer

    as regras e as obrigaes. A desobedincia ao Rei um ato de hostilidade, uma ofensa que

    precisa de vingana.

    Rituais de suplcio se estenderam at o final do sculo XVIII e comeo do XIX,

    quando as festas de punio foram sendo substitudas pela nova forma de punir: a privao de

    liberdade como forma correta de um criminoso pagar por seu crime. Os protestos contra os

    suplcios apareciam em toda parte. As cerimnias de punio passaram a ter um cunho

    negativo, era preciso acabar com a confrontao fsica entre o condenado e o soberano que era

    influenciada pela vingana do prncipe e pela clera do povo. Uma aparente humanizao das

    penas fez com que o carrasco passasse a se parecer com o criminoso, os juzes com os

    assassinos, o supliciado um objeto de piedade e admirao. A execuo pblica agora

    chamada de violncia. Os suplcios se tratavam de uma modalidade do poder soberano, no

    qual o poder do rei de dispor da vida dos sditos precisava ser exibido.

    Com a passagem do poder soberano para uma sociedade disciplinar o poder tem como

    foco o corpo que se manipula e se modela. Tem como objetivo fabricar corpos dceis e

    submissos. dcil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser

    transformado e aperfeioado. 34 As disciplinas so os mtodos que permitem o controle das

    operaes do corpo estabelecendo a relao entre docilidade e utilidade. O corpo deve assim

    ser mais obediente e mais til; para isso ele aumenta as foras do corpo para utilidades

    econmicas, em contra partida diminui essas mesmas foras em termos polticos de

    obedincia, resultando assim em uma aptido aumentada e uma dominao acentuada.

    34 FOUCAULT (2007, P.118)

  • 31

    Tcnicas minuciosas de poder definem o modo de investimento poltico e detalhado do

    corpo, uma microfsica do poder que tende a cobrir todo campo social, como tcnicas de

    grande poder de difuso, arranjos sutis, de aparncia inocente, mas profundamente suspeitos,

    dispositivos que obedecem a economias inconfessveis 35, participaram da modificao do

    regime punitivo. A priso uma instituio disciplinar.

    No foram apenas as formas de punio que se modificaram com a sociedade

    disciplinar. A suposta suavizao das penas, na verdade, trouxe novos modos de perceber os

    crimes e os criminosos. A importncia dos crimes de sangue foi substituda pela importncia

    dos crimes contra o patrimnio. A ilegalidade passa do ataque ao corpo para o ataque aos

    bens. como se a ilegalidade mudasse o alvo, a criminalidade de massa passa para uma

    criminalidade de margens e agora especfica de alguns profissionais e mais freqente nas

    classes mais populares. Essa transformao est ligada a vrios outros processos econmicos

    inclusive a elevao do nvel de vida, a multiplicao das riquezas e das propriedades. O que

    promove uma justia penal mais pesada, no deixando escapar pequenas delinquncias que

    antes poderiam passar sem que fossem notadas.

    Na verdade a passagem de uma criminalidade de sangue para uma criminalidade de fraude faz parte de todo um mecanismo complexo, onde figuram o desenvolvimento da produo, o aumento das riquezas, uma valorizao jurdica e moral maior das relaes de propriedade, mtodos de vigilncia mais rigorosos, um policiamento mais estreito da populao, tcnicas mais bem ajustadas de descoberta, de captura, de informao: o deslocamento das praticas ilegais correlato de uma extenso e de um afinamento das prticas punitivas. (FOUCAULT 2007, p. 66)

    No final do sec. XX, as sociedades disciplinares passaram por modificaes e surgem

    as sociedades de controle. As instituies disciplinares tm seus muros derrubados, e o

    controle passa a operar ao ar livre. Os confinamentos tpicos da sociedade disciplinar que

    tomaram o lugar do poder soberano operavam como moldes, j o controle uma modulao e

    funciona de maneira auto deformante, mudando continuamente. 36

    H uma coexistncia entre o poder disciplinar e a sociedade de controle, as instituies

    disciplinares operam junto com o controle subjetivo caracterstico dessa nova modulao;

    agora o marketing passa a ser o maior instrumento de controle social. A nova roupagem do

    capitalismo ter a funo de controle das massas.

    35 FOUCAULT (2007, P.120) 36 DELEUZE (2000)

  • 32

    verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema misria de trs quartos da humanidade, pobres demais para a dvida, numerosos demais para o confinamento: o controle no s ter que enfrentar a dissipao das fronteiras, mas tambm a exploso dos guetos e favelas. (DELEUZE, 2000, P. 224)

    Os valores sociais passam pela lgica de consumo, no entanto nem todos podero estar

    inseridos nesse quadro. Com a modificao da interpretao dos crimes e as novas formas de

    punir, a cada dia h o aumento exagerado de presidirios, que mesmo com novas construes

    de presdios, so incapazes de acompanhar o crescente nmero de detentos. Pensaremos assim

    no com a ideia de excluso, mas de insero, pois nessa nova poltica do corpo todos tm

    uma funo social, mesmo que seja para justificar a violncia e o medo disseminado pelos

    meios de comunicao.

    Em genealogia da moral, Nietzsche (2004) descreve como durante um grande perodo

    da histria, o castigo no visava a responsabilizao do culpado por seu ato delinquente, mas

    sim pela ideia de que qualquer dano poderia ser compensado com a dor do seu causador: ideia

    de equivalncia dano e dor. Essa equivalncia, dano e dor, teve origem na relao contratual

    credor e devedor, na qual o devedor, para transmitir confiana e seriedade em sua promessa,

    empenha ao credor algo que ainda possua, como o corpo da sua mulher, sua liberdade ou

    mesmo a sua vida. O pagamento, em dinheiro, terra ou algum bem, pode ento ser substitudo

    por alguma satisfao ntima concedida ao credor, satisfao de quem pode livremente usar

    seu poder sobre um impotente. Atravs da punio o credor goza da sensao de poder

    desprezar e maltratar algum como inferior. A compensao pelo dano um convite e um

    direito crueldade.

    O castigo nesse nvel de costumes, simplesmente a cpia, mimus [reproduo] do comportamento normal perante o inimigo odiado, desarmado, prostrado, que perdeu no s o direito e proteo, mas tambm qualquer esperana de graa, ou seja, o direito de guerra e a celebrao do Vae victis! [Ai dos vencidos!] em toda a sua dureza e crueldade o que explica por que a prpria guerra (incluindo o sacrifcio ritual guerreiro) forneceu todas as formas sob as quais o castigo aparece na histria. (NIETZSCHE 2004, p. 61)

    Atravs da relao devedor-credor, nasce o sentimento de culpa. O homem deve

    honrar sua dvida e para isso preciso que ele se lembre de que est devendo, sendo

    necessria a memria para que o homem seja responsvel e confivel, que seja capaz de fazer

    promessas. Sacrifcios, penhores e martrios e muito sangue acompanharam a necessidade de

    o homem criar em si uma memria. Quanto mais fraca a memria da humanidade mais duras

    sero as leis penais e maior o esforo para vencer o esquecimento e manter as determinaes

  • 33

    do convvio social. Com uma breve apreciao em nossas antigas legislaes penais,

    possvel compreender quanta dor precisou para se criar pensadores. A razo, a seriedade o

    domnio sobre os afetos, todas essas coisas fundamentais para a vida na sociedade tiveram um

    alto preo pago pelo homem, tudo a custo de muito horror. 37

    A partir da relao devedor-credor, viver em comunidade significa desfrutar de

    proteo, paz e confiana: esses so os deleites de uma vida em comunidade. Mas caso o

    indivduo no cumpra com seu compromisso, o credor trado exigir pagamento. O criminoso

    um devedor e a ira do credor ir devolv-lo ao estado selvagem e fora da lei, do qual at

    ento ele era protegido. 38

    As penas se modificaram. As sociedades e o Estado operam com as disciplinas,

    criando corpos dceis e teis. Agora o confinamento o principal modo de punir, a exibio

    do sofrimento do condenado no mais necessria, o castigo opera sobre o corpo de maneira

    diferente, um sistema de privao, de obrigao e de interdies sobrevm sobre o corpo. Na

    humanizao das penas temos, na verdade, um aparelho judicirio que possibilita e garante

    maneiras de explorao que um determinado grupo de indivduos exerce sobre outro grupo

    em uma sociedade. 39

    Em diferentes perodos histricos a relao com a dvida social se transforma. No

    entanto, a manipulao subjetiva est sempre presente adestrando corpos e produzindo

    subjetividade.

    1.4 - Processos de subjetivao

    Iremos discutir o conceito de produo de subjetividades, pois para falar de violncia

    necessrio romper com uma tradio individualizadora da psicologia e poder falar a partir de

    uma perspectiva que no dissocie os fatos individuais dos fatos sociais ou coletivos.

    Proponho usar a palavra subjetividades no plural, pois se trata sempre de processos

    de produo das subjetividades, processos que emergem das relaes, logo esto em constante

    mudana. Para Guattari (2005) a produo de subjetividades deriva do entrecruzamento de

    determinaes coletivas de vrias espcies, no s familiar, mas tambm econmica,

    37 NIETZSCHE (2004) 38 NIETZSCHE (2004) 39 RAUTER (2003)

  • 34

    tecnolgica, miditica, entre outras. A subjetividade fabricada e modelada no registro social

    a partir de seus diversos atravessamentos.

    Pensando assim, a construo do sujeito no previamente determinada, tampouco

    uma questo de escolha, mas um agenciamento com o fora, com as foras que perpassam um

    contexto scio-histrico em que esse sujeito est inserido. O individual produzido no

    coletivo, as diversas relaes sociais familiares, de trabalho, comunitrias, religiosas, dentre

    tantas outras , esto todo o tempo nos invadindo e produzindo formas de sentir, pensar e agir.

    Levando em considerao que a subjetividade familiar tambm produzida no social,

    pensamos que no possvel que a famlia seja a nica responsvel pelos processos de

    subjetivao, mas essa produo principalmente um atravessamento social muito mais

    complexo.

    As sociedades modernas ocidentais entendem o homem como uma entidade natural,

    singular e distinta, como portadora de um eu, uma essncia. A partir dessa noo de eu,

    funciona grande parte de nossos sistemas penais, com uma ideia de responsabilidade e

    inteno. 40 A ideia de um indivduo livre onde seu modo de existir uma questo de escolha

    faz com que todo o contexto social seja desconsiderado, sem implicaes com o mundo ao

    redor. O sujeito torna-se o nico responsvel pelo que lhe acontece e pelo que produz.

    A partir de uma crise do eu as cincias sociais assistem morte do sujeito. Assim,

    rejeita-se a definio de um sujeito universal, estvel, totalizado, interiorizado e

    individualizado. Emerge uma subjetividade socialmente construda, o psicolgico no sendo

    mais uma questo individual, mas, ao contrrio, um evento social. Diversas vertentes das

    cincias sociais compreendem ento o subjetivo a partir da anlise do que fica de fora do

    espao interior; outras vertentes colocam ainda em discusso esse dualismo interior-exterior

    questionando a possibilidade de um interior que fique a margem de certos processos

    constitutivos que teriam sua origem no exterior, no social. No entanto, em todas as anlises

    nega-se a possibilidade de uma psique isolada do contexto sociocultural, definindo assim os

    processos de subjetivao como parte do tecido relacional, processos esses que se constituem

    nos encontros da trama social. 41

    J Deleuze e Guattari buscam uma crtica mais radical para pensar os processos de

    subjetivao para alm dos pressupostos a que a psicologia continua presa. Frente a uma ideia

    de sujeito essencializado com uma identidade unitria, Deleuze e Guattari (2010) propem

    formas de pensar a subjetividade a partir da noo de multiplicidade e heterogeneidade. Para 40 ROSE (1976) 41 ROSE (1976)

  • 35

    os autores, no h dois tipos de produo, uma individual e a outra social. No h de um lado

    uma produo social e de outro uma produo desejante, mas uma nica e mesma produo.

    A produo social a produo desejante em condies determinadas. Ainda que repressivas,

    as formas de reproduo social so produzidas pelo desejo de modo paradoxal.

    Atravs de uma genealogia e de uma cartografia da subjetividade ocidental, Deleuze e

    Guattari analisam os processos de subjetivao, pois para eles s existem processos, o eu

    no est enclausurado, tampouco interior, mas sim um movimento de agenciamento cuja

    interioridade transborda ininterruptamente em contato como o exterior. 42

    A produo subjetiva produzida atravs dos encontros. Na coexistncia entre os

    corpos se produzem turbulncias e transformaes, muitas vezes irreversveis. Quando os

    fluxos e partculas da nossa atual composio se conectam com outros fluxos e partculas, ou

    seja, com o exterior e seus elementos estrangeiros, a forma atual desestabilizada, sendo

    necessrio, nessa medida, criar um novo corpo afetivo e cognitivo. Novas subjetividades so

    produzidas a partir desses encontros. 43

    A interioridade transborda em contato com o exterior, as subjetividades se produzem a

    partir dos encontros. Mas que exterior? Que encontros? Pensaremos aqui o encontro com o

    fora, com aquilo que exterior sua forma atual. O fora habitado por foras, estratificadas

    ou no. As foras so mltiplas e nem todas as foras esto capturadas pelos estratos

    histricos. atravs do saber que as relaes de fora so codificadas, estratificadas. O saber

    controla e gerencia as relaes de poder, tornando as foras plmbeas a organizadas. 44 O

    poder so as foras, as foras do fora, relaes de foras puramente intensivas que, embora

    cegas e mudas, so a condio para o exerccio do saber, isto , do que podemos ver e falar.

    por meio da visibilidade e dos enunciados, do saber, que ocorre a estratificao das

    relaes de fora, o poder. Dependendo das maneiras pelas quais os corpos esto dispostos na

    arquitetura, nas instituies, nos agenciamentos sociais, ou seja, nos regimes de visibilidade,

    nos permitido ou no enxergar certos elementos. A visibilidade ou a luminosidade o que

    determina as condies do que podemos ver em certo lugar e em certa poca. A outra via de

    estratificao do poder utilizada pelo saber so os enunciados. No se pode enunciar qualquer

    coisa em qualquer perodo histrico. Poderemos identificar um modo de subjetivao a partir

    42 DOMENECH, TIRADO & GOMES (2001) 43 ROLNIK (1995). 44 COSTA ( 2009).

  • 36

    da estratificao das foras pelo saber, que utiliza a visibilidade e os enunciados para criar

    maneiras de perceber, pensar, agir, ou seja, estar no mundo. 45

    No entanto temos a produo de subjetividade singular, que no prevista pelo saber

    estratificado socialmente, produzida pela dobra do fora, quando, frente aos poderes

    constitudos, uma fora toma outra fora como ponto de apoio. a subjetividade produzida a

    partir de encontros, e por sua vez, criadora de novos agenciamentos que poder traar linhas

    de fuga, que decodificam os saberes estabelecidos e desterritorializam as estratgias de poder

    j constitudas diferente da subjetividade marcada pelos estratos histricos, definida por

    linhas duras de saber que codificam certas estratgias de poder. Pois, precisamos lembrar que

    para Deleuze (1988) o fora, no um limite fixo, mas uma matria mvel, animada de

    movimentos peristlticos, de pregas e de dobras, que constituem um lado de dentro. Essa

    constituio se d na curvatura do lado de fora, profundas dobras que no ressuscitam a velha

    interioridade, mas constituem um novo lado de dentro, um dentro que seria a prega do fora

    selvagem, nmade, pura potncia virtual e no domesticada ainda pelo saber.

    No entanto, importante ressaltar que o dobramento desse fora, isto , das foras

    ainda no domesticadas pelo social estratificado, s pode se dar por meio de pregas ou

    pinas, que nada mais so do que estratgias ou tticas de subjetivao. Estas nunca so

    absolutamente novas, mas sempre tomadas do agenciamento social em que se vive, ainda que

    agenciadas de outro modo. Significa dizer que novos modos de subjetivao emergem tendo

    como material os saberes e relaes de poderes constitudos, mas fazendo outros usos. uma

    forma de resistncia ao poder, tomar o estabelecido contra o estabelecido. As tticas ou

    estratgias so justamente formas historicamente circunscritas da fora, tomar outra como

    ponto de apoio e dobrar o fora, isto , as foras ainda no estratificadas, produzindo formas

    ainda no codificadas de subjetividade. So propriamente os processos de subjetivao em

    exerccio concreto.

    No Brasil que a violncia de Estado tem um endereo, ela no atinge qualquer um,

    seus atingidos so previamente marcados no contexto social. Os processos de excluso

    acompanhados de violncia, no podem ter o mesmo efeito subjetivo que outras formas de

    sofrimento fsico.

    Sabe-se que uma abordagem policial muda totalmente de estratgia a depender do

    nvel econmico dos abordados. E como j vimos anteriormente prticas violentas so

    comuns nas incurses policiais nas favelas do Rio de Janeiro. A partir da definio da ONU,

    45 COSTA (2009)

  • 37

    podemos chamar essas prticas de tortura, pois esto sendo praticadas por um funcionrio do

    Estado em exerccio da sua funo.

    Para Sironi, (1999) a tortura remete ao silncio, ela tem um efeito de segredo. Sua

    funo no fazer falar, mas fazer calar. O silncio sobre a violncia do Estado tem tido

    efeitos sobre a subjetividade no s dos atingidos ou familiares, mas de uma srie inteira de

    geraes. As marcas da tortura que outrora um dia impressas nos corpos tornam-se pedaos de

    tempo e vida privatizados. 46 As pessoas se sentem desvalorizadas e diminudas e, raramente,

    compartilham tais sentimentos.

    Alguns torturados continuam por muitos anos com o sofrimento presente. A

    experincia da tortura produz frequentemente uma ruptura com os grupos de pertencimento. O

    que provoca no torturado muito sofrimento a vivncia de um antes e um depois da tortura,

    como que uma quebra em sua histria de vida. 47

    Entre os que sofreram tortura comum notar a exacerbao de uma negatividade, que

    pode se expressar um alto grau de culpabilidade e perda de autoconfiana. 48

    Segundo Rauter (2002) se o ato violento no provoca a morte, contudo, novos modos

    de vida emergem, j que a vida sempre produo do novo e de mudanas. A violncia

    produz marcas, traz consigo um carter de irreversibilidade e de repetio. Aps os

    acontecimentos traumticos vividos pelos atingidos pela violncia do Estado, as recordaes

    aparecem mesmo que se deseje expuls-las da conscincia. No entanto, as recordaes podem

    estar a servio da vida, trazendo novos modos de existir, novas lutas, sempre linhas de

    produo de novos modos de organizao subjetiva.

    1.5 - O Estado Produzindo Quimeras

    Sob um grande cu de cinza, numa grande plancie poeirenta, sem caminhos, sem relva, sem um cardo, sem uma urtiga, encontrei vrios homens que marchavam curvados. Trazia cada um deles s costas uma enorme Quimera, to pesada como um saco de farinha ou de carvo, ou como o equipamento de um infante romano.

    Porm o monstruoso animal no era um peso inerte; ao contrrio, envolvia o homem, e oprimia-o, com seus msculos elsticos e possantes; aferrava-se-lhe ao peito com as suas duas garras imensas; e sua cabea fabulosa sobrelevava a cabea do homem, tal um desses horrveis capacetes com que os antigos guerreiros procuravam agravar o terror do inimigo.

    Interroguei um daqueles viajantes, perguntei-lhe aonde eles iam assim. Respondeu-me que no sabia de nada, nem ele, nem os outros; mas que,

    46 RODRIGUES & MOURO (2002) 47 SIRONI (1999) 48 RAUTER (2009)

  • 38

    evidentemente, iam alguma parte, pois eram impelidos por uma necessidade invencvel de caminhar. Curioso: nenhum deles se mostrava irritado contra o animal feroz que trazia pendente do pescoo e agarrado s costas; dir-se-ia consider-lo parte integrante de si mesmo. Nenhuma daquelas fisionomias extenuadas e graves denotava o mnimo desespero; sob a tediosa cpula do cu, os ps mergulhados na poeira de um solo to desolado como o cu, eles marchavam com o ar resignado daqueles que so condenados a esperar eternamente.E o cortejo passou a meu lado e afundou-se nos longes do horizonte, no ponto em que a redonda superfcie do planeta se furta curiosidade do olhar humano.

    E durante alguns momentos obstinei-me em querer compreender esse mistrio; mas logo a irresistvel Indiferena caiu sobre mim, e eu fiquei mais rudemente oprimido do que o estavam aqueles homens pelas suas esmagadoras Quimeras. (BAUDELAIRE 2006, p.127)

    Homens caminhando com gigantescas Quimeras envolvendo e oprimindo seus corpos.

    Pode algum no perceber uma Quimera aferrada em seu peito? Pode algum caminhar sem

    destino?

    assim que muitos caminham. Sem destino e com grandes Quimeras que os oprimem

    de maneiras imperceptveis. No poderemos perceber a violncia de Estado apenas no que se

    encontra explcito. Alm de torturas fsicas e encarceramentos h toda uma produo de

    saberes que validam esses procedimentos. As prticas judicirias se articulam com os saberes

    em dispositivos de controle social. Marcas fsicas no so suficientes, necessrio produzir

    formas de pensar que justifiquem essas marcas, para isso os saberes entram em cena, ao lado

    do que visvel caminham grandes Quimeras - estratgias de manipulao muitas vezes

    invisveis.

    Retomando o que j foi explicitado anteriormente, Foucault props o conceito de

    poder disciplinar enquanto uma forma de saber-poder constituda em rede, operando o

    esquadrinhamento do campo social a partir de diferentes instituies: a escola, o hospital, a

    fbrica e a priso. Um dos objetivos da disciplina fazer com que seu poder social seja

    elevado o mximo de intensidade e estendidos to longe quanto possvel. 49

    No capitalismo tardio o controle tende a substituir as disciplinas, embora tal

    substituio no seja total. A partir do controle ao ar livre, corpos e mentes so modulados

    atendendo. Os meios de comunicao de massa, protagonistas na manipulao subjetiva,

    agem como Quimeras imperceptveis, formando opinies cada vez mais padronizadas pelo

    discurso hegemnico. Atravs da mdia, percepes dominantes so disseminadas em nosso

    cotidiano. Segundo Coimbra (2001), a mdia alm de estar nas mos de poucos e produzir

    massas subjetivas, organiza de forma sensacionalista e hierarquizada os fluxos de

    acontecimentos, selecionando o que poder ser discutido, debatido e pensado. Desta forma

    49 FOUCAULT 2007, P. 179

  • 39

    cria identidades, sujeitos, saberes e verdades. As verdades produzidas massivamente por

    equipamentos sociais podem ainda serem modificadas, adaptadas, trocadas por outras

    verdades, tudo isso a critrio e convenincia da mdia.

    O controle social capitalstico funciona atravs da produo de subjetividades, que

    Guattari chama de cultura e equivalncia: o capital ocupa-se da sujeio econmica e a

    cultura da sujeio subjetiva. A cultura de massa cria indivduos normatizados, articulados

    uns com os outros segundo sistemas hierrquicos, sistemas de valores, sistemas de submisso

    no sistemas de submisso visveis e explcitos (...), mas sistemas de submisso muito mais

    dissimulados. Esses sistemas no so internalizados ou interiorizados, uma produo

    de subjetividade social e inconsciente que busca uma hegemonia em todos os campos. Assim

    a cultura impossibilita a reflexo dos processos. 50 Um pensamento hegemnico sobre as

    questes sociais no Brasil produzido e difundido pela cultura de massa. Culpabilizar os

    menos favorecidos pela sua situao de misria um exemplo desse tipo de produo, que

    no analisa os processos que determinam tais estados sociais.

    A segregao uma funo da economia subjetiva capitalstica diretamente vinculada culpabilizao. Ambas pressupem a identificao de qualquer processo com quadros de referncia imaginrios, o que propicia toda espcie de manipulao. como se para se manter a ordem social tivesse que instaurar, ainda que da maneira mais artificial possvel, sistemas de hierarquia inconsciente, sistemas de escalas de valor e sistemas de disciplinarizao. Tais sistemas do uma consistncia subjetiva s elites (ou pretensas elites) e abrem todo um campo de valorizao social, onde os diferentes indivduos e camadas sociais tero que se situar. (GUATTARRI & ROLNIK 2005, p. 50)

    Para os ditos inimigos da sociedade (os segmentos mais pauperizados da populao),

    so criadas identidades homogneas e desqualificadas. Considerados suspeitos pelos

    meios de comunicao devem ser evitados ou at eliminados. 51 Assim, pensaremos que as

    populaes pobres com todo o perigo que representam para as classes mais abastadas,

    percebem-se como tal, muitas vezes aceitando o esteretipo da criminalidade como causa

    efeito: sou pobre, logo posso ser perigoso.

    A mass mdia e outros equipamentos sociais desviam a ateno dos inmeros

    problemas que rondam a criminalidade, como por exemplo, a m distribuio de renda e a

    marginalidade social, para enfatizar a insegurana urbana, o medo do crime e o

    esteretipo do criminoso. Desta forma, a pobreza e a misria passam a ser mais aceitveis.

    50 GUATTARRI & ROLNIK (2005). 51 COIMBRA (2001)

  • 40

    A grande massa de excludos vista como se agisse diferente das elites, pensando,

    percebendo e sentido diferente e por isso no podendo ter o mesmo tratamento. 52

    Discursos que estabelecem relao entre vadiagem/ ociosidade/ indolncia e pobreza e

    entre pobreza e periculosidade/ violncia/ criminalidade, justificam a necessidade de

    vigilncia e represso contra os pobres. A busca por uma sociedade homognea, assptica,

    higinica, branca e disciplinada faz com que a elite deseje cada vez menos o contato com

    pobres e negros. 53

    O atual governador do Estado do Rio, Sergio Cabral, em uma entrevista assevera:

    A questo da interrupo da gravidez tem tudo a ver com a violncia pblica (...) Voc pega o nmero de filhos por me na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Mier e Copacabana, padro sueco. Agora, pega na rocinha. padro Zmbia, Gabo. Isso uma fbrica de produzir marginal. Estado no d conta. No tem oferta da rede pblica para que essas meninas possam interromper a gravidez (...)54

    O acesso ao aborto para nosso governador a melhor maneira de diminuir a

    criminalidade, eliminando vidas pobres antes de seu nascimento. A quem ele quer beneficiar

    com as polticas de extermnios do Estado? As adolescentes pobres que no podem ir a uma

    clnica onde de maneira oficiosa se faz abortos? Ou as classes abastadas com padro sueco

    que podero ser incomodadas com os indesejveis filhos dos favelados?

    Desta maneira, com esse tipo de reportagem se dissemina sutilmente quem tem direito

    vida. Assim, os pobres so cada vez mais identificados como a classe perigosa. Esses

    discursos criam uma linha imaginria entre os pobres e as demais classes, numa tentativa de

    mant-los afastados, para que o perigo fique longe. Os marginalizados, por esse sistema

    perverso, entendem cada vez mais o seu espao, at onde devem chegar para no incomodar,

    sen