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A HISTÓRIA POLÍTICA NO CAMPO DA HISTÓRIA CULTURAL Maria de Fátima Silva Gouvêa RESUMO A História Política, após um período de considerável abandono, revive hoje uma importante fase de recuperação de sua produção. Não apenas clássicos de outras épocas estão sendo revisitados, como também uma geração de novos trabalhos no campo da História Cultural tem surgido como resultado desse movimento. Uma nova anatomia do poder tornou possível uma releitura do processo de surgimento do Estado Moderno, agora não mais entendido como a única forma de expressão da estrutura política da moderna sociedade disciplinar. Palavras-Chaves: Poder, Política, Cultura Ao longo do século passado e início deste século, a história política era tida e entendida mais como uma espécie de história militar ou diplomática do que qualquer outra coisa. A dimensão política era então admitida essencialmente a partir e através do Estado. Uma história que por um lado centrava-se nas batalhas, nas guerras e negociações envolvendo os diferentes Estados. Para Peter Burke, este foi o primeiro conjunto de características da história “tradicional” - ou seja, do “paradigma tradicional” definido . Departamento de História, Universidade Federal Fluminense - UFF, Niterói/RJ.

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História

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  • A HISTRIA POLTICA NO CAMPO DA HISTRIA

    CULTURAL

    Maria de Ftima Silva Gouva

    RESUMO

    A Histria Poltica, aps um perodo de considervel abandono, revive hoje uma importante fase de recuperao de sua produo. No apenas clssicos de outras pocas esto sendo revisitados, como tambm uma gerao de novos trabalhos no campo da Histria Cultural tem surgido como resultado desse movimento. Uma nova anatomia do poder tornou possvel uma releitura do processo de surgimento do Estado Moderno, agora no mais entendido como a nica forma de expresso da estrutura poltica da moderna sociedade disciplinar.

    Palavras-Chaves: Poder, Poltica, Cultura Ao longo do sculo passado e incio deste sculo, a histria

    poltica era tida e entendida mais como uma espcie de histria militar ou diplomtica do que qualquer outra coisa. A dimenso poltica era ento admitida essencialmente a partir e atravs do Estado. Uma histria que por um lado centrava-se nas batalhas, nas guerras e negociaes envolvendo os diferentes Estados.

    Para Peter Burke, este foi o primeiro conjunto de caractersticas da histria tradicional - ou seja, do paradigma tradicional definido

    . Departamento de Histria, Universidade Federal Fluminense - UFF, Niteri/RJ.

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    como a histria rankeana, conforme bases estabelecidas pelo historiador alemo Leopold von Ranke (1795-1886) - contra a qual, entre outras, se insurgir mais tarde a Nova Histria1.

    a partir da dcada de 1920 que assistiremos o incio de uma crtica mais sistematizada a esta histria tradicional, crtica essa que ser implacvel especialmente em relao histria poltica, definida nos moldes de ento. Cabe lembrar que esta crtica se realizou atravs de duas vertentes principais. A primeira seria constituda na Frana a partir dos anos 20 pela crtica dos Annales essa histria tradicional. Lucien Febvre e March Bloch deram ento incio a uma nova produo historiogrfica, movimento esse hoje denominado como a Nova Histria. A partir de ento, a histria deslocava seu foco fundamental de anlise para aspectos relativos atividade humana em seu sentido mais pleno. Jacques Revel afirma que a grande novidade da dcada de 1930 seria justamente a reorganizao das cincias sociais na Frana em torno da histria, que passaria por um processo de reconstruo de seu objeto de estudo, constitudo a partir de ento pelo prprio homem2. No mais, portanto, o estudo dos Estados atravs de suas guerras e relaes diplomticas, seno o estudo dos processos relativos figura e ao humana no plano das massas annimas.

    A segunda principal vertente dessa crtica produo historiogrfica do sculo XIX foi definida pela historiografia marxista, que a despeito da importncia do Dezoito de Brumrio escrito por Karl Marx naquele contexto anterior, havia declarado guerra particularmente histria poltica produzida at ento. O econmico surgia como o elemento determinante e definidor das relaes de produo, chave fundamental para a anlise e compreenso das relaes entre os homens no interior da sociedade, o objeto central de estudo.

    Vale destacar ainda que a crtica Histria Poltica, em termos mais amplos, seria ainda composta por uma terceira vertente propondo um novo olhar das cincias humanas na dcada de 1970. Perodo esse marcado pela ao devastadora de Michael Foucault nesse campo mais especfico do fazer histria. Alguns autores tm dedicado tempo e esforo na anlise da influncia de seu trabalho sobre a historiografia

    1. BURKE, Peter. Abertura: a Nova Histria, seu passado e seu futuro. In: BURKE, Peter (org.) A escrita da Histria - Novas Perspectivas. SP, Unesp, 1992. pp. 07-37. p. 10. 2. REVEL, Jacques. A inveno da sociedade. Lisboa, Difel, 1989. p. 36.

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    como um todo. Destaca-se em especial os artigos de Paul Veyne, Foucault revoluciona a histria, e de Roger Chartier, O passado composto. Relaes entre filosofia e histria3. Esses autores tm concordado com o fato de que a maior contribuio de Michael Foucault para as cincias humanas e para a histria em particular centra-se no fato de que ele no dualista, no pretende opor a realidade aparncia4. Fato esse que culmina com o irrompimento das descontinuidades no interior das cincias sociais. Nada mais seria tomado como algo dado, passando a se operar atravs de uma espcie de anti-mtodo baseado em hipteses e suposies invertidas. Como lembra Patricia OBrien, ao substituir o conceito de represso - marcado pela dualidade represso/resistncia - pelo o de normalizao, Foucault estabelecia os contornos daquilo que pode ser entendido como o seu mtodo de trabalho5. Nesse sentido, a prpria maneira como o autor discute esse conceito de normalizao demonstra em si mesma a metodologia de Foucault - aquilo que ele chamou de genealogia. Isso se constitua em algo at bastante simples, o reconhecimento e justaposio de diferenas na busca da manifestao do poder que permeia todas as relaes sociais 6. Da sua insistncia no na busca de origens, mas sim na busca de comeos, na medida em que origens implicariam causas, enquanto que comeos implicariam diferenas. Este seria o mtodo de Foucault, apesar da insistncia de muitos autores em afirmar que ele no exibiria nenhum mtodo no desenvolvimento de suas anlises. Jacques Revel lembra que a partir de Foucault a construo do saber na rea de cincias sociais passou a ser caracterizado pela estratgia de construo de unidades parciais, locais, definidas. O homem passou de figura central a objeto transitrio, datado. Trata-se pois de confrontar prticas e medir desvios em relao construo de objetos particulares em seqncias limitadas em vez de reconciliar abordagens diferentes numa abordagem nica7.

    3. Textos publicados nos livros de VEYNE, Paul. Como se escreve a histria. 2 ed. Braslia, Unb, 1992. pp. 149-181, e de CHARTIER, Roger. A histria cultural - entre prticas e representaes. Lisboa, Difel, 1987, pp. 69-89. 4. VEYNE, Paul. Op cit. p. 181. 5OBRIEN, Patricia. Michael Foucaults History of Culture. In: Hunt, Lynn. A nova histria cultural. So Paulo, Martins Fontes, 1992. pp. 25-46. 6. Ibidem. pp. 37-38. 7. REVEL, Jacques. Op cit. p. 38.

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    Apesar de no ser este o local em que se pode devidamente analisar a obra de Michael Foucault face os limites inevitveis desse artigo, cabe entretanto lembrar e reforar os aspectos mais revolucionrios de sua obra, que ir possibilitar o surgimento de uma nova concepo acerca da anatomia do poder8. Para ele, no se trata mais de fazer uma anlise do Estado e de seus aparelhos. Muito pelo contrrio, adere-se a uma percepo do poder enquanto uma estratgia que faz com que o Estado se desmantele, abolindo definitivamente a idia de um centro que fosse capaz de coordenar ou tecer sozinho a malha do poder que se abateria sobre a sociedade. No mais o Estado to somente, mas os micro-poderes descontnuos e dispersos no interior da sociedade - micro-poderes esses que nada mais so do que partes constitutivas dessa mesma sociedade. Cabe salientar que Foucault no est to preocupado com a anlise desses micro-poderes pura e simplesmente, seno fundamentalmente, com o estudo das relaes que se estabelecem entre eles. Seria, portanto, atravs do processo de interligao entre esses mltiplos focos de poder que o prprio poder - que para Foucault no existe enquanto tal, mas apenas atravs das relaes entre os corpos, entre os micro-poderes - se difundiria no interior do corpo social. A sociedade disciplinar algo que escapa ao Estado. Exemplo disso a anlise que o autor faz do panptico, concebido por Jeremy Bentham em fins do sculo XVIII na Inglaterra9. Fundamental perceber que se por um lado no h um sujeito em especfico que defina esse novo exerccio de poder - pois nada lhe pode escapar -, por outro lado, elimina-se a dicotomia que opunha mera e simplesmente opressor/oprimido. Seria essa, portanto, a contribuio filosfica e paradigmtica fundamental dada por Foucault s cincias sociais da atualidade. Da mesma forma, seria essa a marca mais forte em termos de sua presena, mesmo que nas entrelinhas, nos textos e categorias de anlise presentes na Novssima Histria e na Histria Cultural da atualidade.

    8. Para uma breve smula da obra de Michael Foucault veja o verbete Foucault, preparado por Franois Ewald, in: CHTELET, Franois; DUHAMEL, Oliver; e PISIER, Evelyne. Dicionrio de obras polticas. RJ, Civilizao Brasileira, 1993. Veja tambm um balano da obra de Foucault em termos de sua contribuio para o surgimento da histria cultural em: OBRIEN, Patricia. Op cit. pp. 25-46. 9. Veja a terceira parte, captulo III O panoptismo, in: FOUCAULT, Michael. Vigiar e punir. Histria da violncia nas prises. Petrpolis, Vozes, 1977.

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    Um ltimo ponto com relao obra de Foucault que deve ser aqui destacado a questo mais precisa do Estado em migalhas, conforme indicado anteriormente. Aqui estaria localizada a crtica mais contundente de Michael Foucault Histria Poltica como um todo. Ao tratar do poder mais especificamente, Foucault construiu uma espcie de anti-histria poltica. Para ele o Estado na verdade entendido e definido enquanto uma agncia de poder dentre vrias outras. Nesse sentido, seriam pelo menos duas as questes a ser consideradas. Uma aquela relativa prpria natureza e ao papel do Estado nessa sociedade disciplinar foucaultiana do sculo XIX. A outra remeteria relao desse estado esmigalhado com quele outro, centralizado e centralizador, presente numa determinada leitura do poder e do poltico que constitui o cerne da Histria Poltica.

    Como j apontado anteriormente, ao perceber o Estado como um estado em migalhas, Foucault no quis com isso destituir de qualquer papel esta importante agncia de poder no interior da sociedade moderna. Mas entretanto, o autor categrico ao afirmar que a teia de poder tecida nessa sociedade disciplinar no seria constituda por uma cadeia linear ou caracterizada por relaes de dicotomia entre centro e periferia. A nova microfsica do poder gestada no interior dessa sociedade seria justamente marcada por novos e diferentes eixos de ligao entre o mltiplo e o singular. Relaes essas que tinham com alvo e objeto o corpo, da a base de uma microfsica do poder celular. O poder se constitua, assim, enquanto um poder relacional10. Para Foucault, os poderes se exercem em nveis variados e em pontos diferentes da rede social. Com relao s hierarquias, diz o autor que

    O pice e os elementos inferiores da hierarquia esto em uma relao de apoio e de condicionamento recprocos, eles se sustentam [...] estas tticas foram inventadas, organizadas a partir de condies locais e de urgncias particulares. Eles se delinearam por partes antes que uma estratgia de classe as solidificasse em amplos conjuntos coerentes.11

    10. FOUCAULT, Michael. Op Cit. 1977. 3. parte. 11. Michael Foucault em entrevista com Jean-Pierre Barou e Michelle Perrot intitulada O olho do poder. In: FOUCAULT, Michael. Microfsica do poder. 9 ed. RJ, Graal, 1990. pp. 221-222.

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    Conjuntos esses interligados numa articulao complexa atravs da qual diferentes mecanismos de poder buscam apoiar-se e manter suas especificidades. A eliminao da dicotomia governo/governados abre, assim, mltiplas formas de exerccio de poder para alm daquela do Estado. Nesse sentido, o Estado seria uma dentre vrias clulas de poder, desempenhando papis determinados, mas no determinantes, na medida em que todos os tipos de sujeito intervm numa dada constituio de um dispositivo de poder12. Seria essa a diferena fundamental entre as duas noes de poder central aqui em questo. Para Foucault, a despeito do reconhecimento da importncia do Estado enquanto uma das agncias de poderio poltico na sociedade moderna, seria ele apenas um dentre vrios focos de poder que interligados formam uma dada anatomia do poder. Numa viso oposta, o Estado, agncia fundamental do exerccio do poder, e por isso equipado com determinadas instituies, seria aquele que daria forma mecnica da relao entre o governo e os governados.

    Seria justamente em termos dessa abordagem centrada nas descontinuidades e na eliminao das dicotomias que Michael Foucault teria inovado de forma radical, em favor do surgimento da Novssima Histria enquanto uma tendncia no interior da produo historiogrfica. A ruptura por ele proposta nesses termos teria possibilitado condies mais fecundas e favorveis, por exemplo, ao surgimento do conceito de poder simblico de Pierre Bourdieu13 ou de apropriao cultural de Roger Chartier14. importante reconhecer que para alm de Roger Chartier, Paul Veyne e algumas poucas referncias por parte de Jacques

    12. Veja em especial a p. 253 da entrevista de Foucault sobre a histria da sexualidade, in: FOUCAULT, Michael. Op cit. (1990). 13. Poder simblico [...] poder invisvel o qual s pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que no querem saber que lhe esto sujeitos ou mesmo que o exercem [...] que garante uma verdadeira transfigurao das relaes de fora fazendo ignorar-reconhecer a violncia que elas encerram objetivamente e transformando-as assim em poder simblico, capaz de produzir efeitos reais sem dispndio aparente de energia. BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. Lisboa, Difel, 1989. pp. 07-08 e p. 15. 14. A histria intelectual [...] deve estabelecer como centrais as descontinuidades que fazem com que se designem, se admitam e se avaliem, sob formas diferentes ou contraditrias, consonante as pocas, os saberes e os atos. CHARTIER, Roger. Op cit. p. 65.

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    Revel, poucos so os autores que tm dado pleno reconhecimento a esse papel revolucionrio de Foucault em relao s cincias humanas15.

    Se por um lado as crticas Histria Poltica deram margem a criao de matrizes de pensamento historiogrfico, por outro, a preocupao com o poltico nunca havia desaparecido por completo da histria do perodo em questo. Clssicos como A cultura do Renascimento na Itlia16 de Jacob Burckhardt, publicado pela primeira vez na dcada de 1860, seria um dos importantes exemplos no sculo XIX de uma obra que escapava completamente aos ditames da histria tradicional produzida naquele perodo. Este era um estudo concentrado na histria cultural e descrevendo mais as tendncias do que narrando os acontecimentos17. J no sculo XX destaca-se o trabalho fundador de March Bloch intitulado Os reis taumaturgos18, publicado pela primeira vez em 1924. Trabalho fundador na medida em que ele constitu num raro exemplo que demonstra a capacidade do historiador realizar uma histria que poltica, mas tambm cultural, social, buscando ainda estabelecer a relao de todos os elementos analisados com a dimenso mais ampla do social na histria ocidental da Baixa Idade Mdia. Para Georges Duby, este trabalho fez de Bloch o inventor, o fundador da antropologia histrica19. Para Jacques Le Goff esta obra se constituiu na busca exemplar de uma histria total do poder em todas as suas formas e com todos os seus instrumentos, favorecendo assim a retomada de uma historiografia poltica renovada, uma antropologia poltico-histrica, um marco para as geraes que se seguiram20.

    Nesse sentido, dois outros autores merecem destaque no interior da historiografia dos sculo XX. Na dcada de 1940 Norbert Elias produzia sua obra clssica intitulada A sociedade de corte. Na dcada seguinte na Inglaterra, Ernest Kantorowicz produzia seu estudo magistral sobre os dois corpos do rei21. Estes estudos constituem exemplos claros e preciosos no apenas da persistncia de uma histria poltica que ia de

    15. Veja um balano da obra de Foucault em termos de sua contribuio para o surgimento de uma nova histria cultural em: OBRIEN, Patricia. Op cit. pp. 25-46. 16. BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itlia. Braslia, Unb, 1991. 17. BURKE, Peter. Op cit. 1992. p. 18. 18. BLOCH, March. Os reis taumaturgos. RJ, Cia. das Letras, 1993. 19. Apud LARA, Marcos. Presentacin. In: BLOCH, March. Los reys taumaturgos. Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1988. p.18. 20. Ibidem. p. 19. 21. ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Lisboa, Estampa, 1987, e KANTOROWCIZ, Ernest. The Kings two bodies. Princeton, 1957.

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    encontro a tendncia maior da historiografia da poca, mas tambm de uma histria que se impunha como uma espcie de ancestral daquilo que hoje se define como a Nova Histria Poltica.

    De um lado, ressalta-se a importncia do processo de surgimento da Novssima Histria no interior dessa Nova Histria, movimento historiogrfico que toma corpo mais definido a partir de fins da dcada de 1970. Inicialmente, historiadores franceses liderados por Jacques Le Goff e Pierre Nora organizavam a famosa e prestigiosa trilogia Histria: Novos Problemas, Novas Abordagens e Novos Objetos. Mais tarde, a microstoria em Itlia e o anthropological mode of history comeavam a ser praticados por certos historiadores americanos22. Farta e densa a bibliografia que tem tratado e analisado os vrios marcos - as questes relativas s suas fontes, seus objetos e sujeitos - que pontearam o surgimento desse movimento historiogrfico, assim como tambm as diferentes correntes que vieram a constituir tal movimento, no sendo aqui o momento nem o lugar de examinar tal problemtica23. Isso porque o que de fato importa no momento analisar mais detidamente no tanto o nascimento da Nova Histria, porm o lugar da Nova Histria Poltica nesse contexto. Nesse sentido, vale destacar a importncia de uma avaliao da expresso Nova Histria Poltica no interior do campo da Histria Cultural - parte integrante daquilo que se entende como Novssima Histria -, apontando assim para uma retomada da Histria Poltica em termos de uma anlise do Estado enquanto a instituio ou objeto fundamental do poltico.

    Vrios autores tm dedicado suas anlises em favor de uma reavaliao da histria poltica no contexto atual da historiografia. De um lado temos, por exemplo, a contribuio de Antnio Manuel Hespanha em Portugal, envolvido num trabalho de reatualizao dos mtodos e objetos pertinentes aos estudos relativos ao poder e s instituies polticas no interior da sociedade de Antigo Regime portugus24. Ren

    22. CHARTIER, Roger. Op cit. p. 77. 23. Com relao as essas questes destacam-se em particular as anlises de duas j citadas obras: a coletnea organizada por Peter Burke (verso original publicada na Inglaterra em 1991) e o livro organizado por Lynn Hunt nos Estados Unidos (l publicado a primeira vez em 1989). 24. HESPANHA, Antnio. As vsperas do Leviathan. Instituies e poder poltico - Portugal, sc. XVII. Coimbra, Livraria Almedina, 1994.

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    Remond outro autor que se coloca como grande expoente dessa corrente de preocupaes no caso da Frana25. A marca fundamental dessa corrente de estudiosos a identificao de um campo especfico do poltico, com estruturas e uma cultura que lhe so prprias, assim como a insero desse campo de conhecimento no interior da historiografia atual em uma perspectiva mais ampla. Preocupa-se com a histria das formaes polticas e das ideologias, em que o estudo da cultura poltica ocupa um lugar importante para a reflexo e explicao dos fenmenos polticos, permitindo detectar as continuidades no tempo de longa durao26. Cabe destacar a grande importncia desses autores que insistem em enfatizar o lugar e o papel da Histria Poltica na atualidade da produo historiogrfica, a despeito do persistente descrdito que ainda marca o estudo do poltico27.

    Dessa forma, a grande novidade da Nova Histria Poltica - se comparada com a aquela histria tradicional do sculo XIX - encontra-se situada em relao s fontes, ao padro da narrativa dos acontecimentos, ao trabalho proposto em moldes de longa durao e, fundamentalmente, em termos da abordagem de seu objeto. o Estado, portanto, aquele que se situa no centro daquilo que constitu as preocupaes fundamentais da Nova Histria Poltica Mesmo quando se trata de um estudo sobre cultura poltica, essa cultura aquela que envolve elementos relacionados ao Estado e as instituies de poder vinculadas ele mais diretamente. Nesses termos, a nfase em uma histria das guerras ou das relaes diplomticas pura e simplesmente decaiu significativamente. Pensa-se agora em termos dos partidos polticos, das disputas eleitorais, das ideologias polticas enfim, fato que demonstra a vitalidade da cincia poltica no interior da produo historiogrfica. Resgata-se a ao dos homens no campo poltico, reconhecendo-se assim a pluralidade e a longa durao dos fenmenos que envolvem esse campo.

    nesse sentido, que cabe destacar a ao inovadora recente de autores como Peter Burke, Jean-Marie Apostolids e Emmanuel Le Roy

    25. REMOND, Ren (org.). Por uma histria poltica. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ/ Ed. FGV, 1996. Veja tambm o texto de sua conferncia Por que a histria poltica. Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 7 (n. 13, 1994): 07-19. 26. FERREIRA, Marieta Morais. A nova velha histria: o retorno da histria poltica. Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 5, (n. 10, 1992): 265-271. p. 268. 27. Ibidem, p. 271. A propsito, ver tambm: FALCON, Francisco J.C. A Identidade do Historiador. Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 9, (n. 17, 1996): 07-17.

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    Ladurie, que privilegiando o Estado monrquico francs elaboram estudos exemplares no interior desse movimento em favor de uma nova histria poltica28. Nos dois primeiros exemplos, temos a anlise fascinante da precocidade do surgimento da mdia, da teatralidade e dos rituais praticados no interior do Antigo Regime francs, fenmenos esses que serviram de instrumentos fundamentais na construo e consolidao do monarca absoluto de maior relevncia no Antigo Regime como um todo - Lus XIV, o Rei-Sol. No outro exemplo, Ladurie retoma o exerccio analtico de uma macro-temtica na longa durao, tornando possvel perceber o lento processo atravs do qual se realizou a construo do estado monrquico na Frana dos Valois. Trs grandes expoentes dessa Nova Histria Poltica, portanto, que, a partir da anlise do Estado, contemplam uma releitura dos vrios aspectos que permearam a construo de um sistema de governo e de uma cultura poltica determinada, relacionando ainda essa dimenso com o conjunto da totalidade da sociedade em questo.

    Por fim, cabe apenas lembrar Michael Foucault mais uma vez , quando ele diz que o poder mais complicado, muito mais denso e difuso que um conjunto de leis ou um aparelho de estado29. Seria talvez essa a marca mais forte da Nova Histria Poltica, na medida em que o poltico - o Estado e suas instituies - passa a ser estudado sob essa perspectiva mais ampla que caracteriza o poder. Esse parece ser, portanto, o desafio maior que aguarda todos aqueles que buscam trabalhar na rea de Histria Poltica, face a atualidade das propostas de anlise presentes na rea da Histria Cultural.

    ABSTRACT

    After being long relegated to an inferior position, works on political history are now undergoing a phase of recovery of their importance. Not only the old classics are being revisited, but also a new generation of works produced in the field of cultural history are appearing as a result. A new argument on the

    28. BURKE, Peter. A fabricao de Lus XIV. RJ, Jorge Zahar Editor, 1993 (publicado nos Estados Unidos e Inglaterra em 1992); APOSTOLIDS, Jean-Marie. O rei mquina - espetculo e poltica no tempo de Lus XIV. RJ, Jos Olympio, 1993 (publicado nesse mesmo ano em Frana); e LADURIE, Emmanuel Le Roy. O estado monrquico: Frana 1450-1610. SP, Cia. das Letras, 1994 (publicado em Frana pela primeira vez em 1987). 29. Foucault, Michael. Op. cit., (1990). p. 221.

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    anatomy of power has made possible a new look into the process of the modern state building process, which is now no longer understood as the sole form of expression of the political structure of the modern disciplinary society.

    KEY-WORDS: Power, Politics, Culture

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    1. APOSTOLIDS, Jean-Marie. O rei mquina - espetculo e poltica no tempo de Lus XIV. Rio de Janeiro : Jos Olympio, 1993.

    2. BLOCH, March. Os reis taumaturgos. So Paulo : Cia. das Letras, 1993.

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    5. _____. A fabricao de Lus XIV. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1993.

    6. BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itlia. Braslia : UNB, 1991.

    7. CHARTIER, Roger. A histria cultural - entre prticas e representaes. Lisboa : Difel, 1987.

    8. CHTELET, Franois; DUHAMEL, Oliver; e PISIER, Evelyne. Dicionrio de obras polticas. Rio de Janeiro : Civilizao Brasileira, 1993.

    9. ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Lisboa : Estampa, 1987.

    10. FALCON, Francisco J.C. "A Identidade do Historiador". Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 9, (n. 17, 1996): 07-17.

    11. FERREIRA, Marieta Morais. "A nova "velha histria": o retorno da histria poltica". Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 5, (n. 10, 1992): 265-271.

    12. FOUCAULT, Michael. Vigiar e punir. Histria da violncia nas prises. Petrpolis : Vozes, 1977.

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    13. _____. Microfsica do poder. 9 ed. Rio de Janeiro : Graal, 1990.

    14. HESPANHA, Antnio. As vsperas do Leviathan. Instituies e poder poltico - Portugal, sc. XVII. Coimbra : Livraria Almedina, 1994.

    15. HUNT, Lynn. A nova histria cultural. So Paulo : Martins Fontes, 1992.

    17. LADURIE, Emmanuel Le Roy. O estado monrquico: Frana 1450-1610. So Paulo : Cia. das Letras, 1994.

    18. LARA, Marcos. "Presentacin". In Bloch, March. Los reys taumaturgos. Mxico : Fondo de Cultura Econmica, 1988.

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    20. _____ (org.). Por uma histria poltica. Rio de Janeiro : Ed. UFRJ/ Ed. FGV, 1996.

    21. REVEL, Jacques. A inveno da sociedade. Lisboa, Difel : 1989.

    22. VEYNE, Paul. Como se escreve a histria. 2 ed. Braslia : Unb, 1992.

    Revista de Histria Regional 3(1):25-36, Vero 1998.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS