2.1 Reale Antiseri (2)

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Ttulo originalIl pensiero occidentale dalle origini a oggi Editrice La Scuola, Brscia, 8 ed., 1986IlustraesAlinari, Arborio Mella, Farabola, Fototeca Storica Nazionale, Giorcelli, Ricciarmi, Spectra.Revisores: L. Costa e H. Dalbosco PAULUS-1990Rua Francisco Cruz, 22904117-091So Paulo (Brasil)Fax (011) 575-7403Tel. (011) 572-2362ISBN 88-350-7271-9 (ed. original)ISBN 85-05-01076-0 (Obra completa)ISBN 85-349-0163-5 (vol. II)PREFCIOO ltimo passo da razo o de reconhecer que existem infinitas coisas que a superam.Pasca1Como se justifica um tratado to vasto da histria do pensamento filosfico e cientfico? Observando o tamanho dos trs volumes desta obra, talvez o professor se pergunte: como possvel, nas poucas horas semanais de aula disposio, abordar e desenvolver um programa to rico e conseguir levar o estudante a domin-lo?Claro, se formos medir este livro pelo nmero de pginas, devemos dizer que um livro extenso. o caso, porm, de recordar aqui a bela sentena do abade Terrasson citada por Kant no prefcio Crtica da Razo Pura: Se no formos medir o tamanho do livro pelo nmero de pginas, mas sim pelo tempo necessrio para entend-lo, poder-se-ia dizer de muitos livros que seriam muito mais breves se no fossem to breves.E, na verdade, em muitos casos, os manuais de filosofia dariam muito menos trabalho se contivessem algumas pginas a mais sobre uma srie de temas. Com efeito, na exposio da problemtica filosfica, a brevidade no simplifica as coisas, mas sim as complica e, s vezes, as torna pouco compreensveis, quando no at mesmo incompreensveis. De todo modo, em um manual de filosofia, a brevidade leva fatalmente ao nocionismo, listagem de opinies, mera viso panormica sobre o que disseram os vrios filsofos ao longo do tempo, o que pode at ser instrutivo, mas muito pouco formativo.Pois bem, esta histria do pensamento cientfico e filosfico pretende alcanar pelo menos trs outros nveis alm do simples o que disseram os filsofos, ou seja, alm daquele nvel que os antigos chamavam de doxogrfico (nvel de confrontao de opinies), procurando explicar o por que daquilo que os filsofos disseram, buscando transmitir um sentido adequado do como o disseram e, por fim, indicando alguns dos efeitos provocados por suas teorias filosficas e cientficas.O por que das afirmaes dos filsofos nunca constitui algo simples, no sentido em que motivos sociais, econmicos e culturais freqentemente se ligam e, de vrios modos, se entrelaam com os motivos tericos e especulativos. Procuramos transmitir gradualmente o pano de fundo do qual emergiram as teorias dos filsofos, mas evitando os perigos do reducionismo sociologista, psicologista ou historicista (que, nos ltimos anos, tm sido levadas a excessos hiperblicos, quase a ponto de anular a identidade especfica do discurso filosfico) e evidenciando as concatenaes dos problemas tericos e dos nexos conceituais e, portanto, as motivaes lgicas, racionais e crticas que, em ltima anlise, constituem a substncia das idias filosficas e cientficas.Tambm procuramos transmitir o sentido do como os pensadores e cientistas propuseram suas doutrinas, fazendo amplo uso de suas prprias palavras. s vezes, quando se trata de textos fceis, utilizamos a palavra viva dos vrios pensadores em seu prprio nexo expositivo. Outras vezes, porm, citamos trechos dos vrios autores (os mais complexos e difceis) guisa de reforo da exposio, os quais (de acordo com o nvel de conhecimento do autor que se quer alcanar) podem ser saltados sem prejuzo da compreenso do conjunto. Esse recurso aos textos dos autores foi dosado de modo a respeitar a trajetria didtica do jovem, que, no incio, est entrando em contato com um discurso completamente novo, necessitando assim da mxima simplicidade, mas, pouco a pouco, adquire as categorias do pensamento filosfico, aumenta a sua capacidade e torna-se capaz de entender uma exposio de tipo mais complexo e, portanto, de compreender o teor diverso de linguagem com que os filsofos falaram. De resto, da mesma forma como no possvel ter uma idia do modo de sentir e imaginar de um poeta sem ler alguns fragmentos de sua obra, analogamente, tambm no possvel ter uma idia do modo de pensar de um filsofo ignorando totalmente o modo como expressava os seus pensamentos.Por fim, os filsofos so importantes no somente por aquilo que dizem, mas tambm pelas tradies que geram e pem em movimento: algumas de suas posies favorecem o nascimento de certas idias, mas, ao mesmo tempo, impedem o nascimento de outras. Assim, os filsofos so importantes tanto por aquilo que dizem como por aquilo que impedem de ser dito. Esse um dos aspectos que, freqentemente, silenciado pelas histrias da filosofia, mas que ns quisemos evidenciar aqui, sobretudo pela explicao das complexas relaes entre as idias filosficas e as idias cientficas, religiosas, estticas e sociopolticas.O ponto de partida do ensino de filosofia est nos problemas que ele tem proposto e continua propondo. Por isso, procuramos particularmente dar exposio um carter de exposio por assuntos, frequentemente privilegiando o mtodo sincrnico em relao ao diacrnico embora respeitando este ltimo nos limites dopossvel.J o ponto de chegada do ensino de filosofia est na formao de mentes ricas em teorias e destras nos mtodos, capazes de formular e desenvolver as questes de modo metdico e de ler de modo crtico a realidade que as cerca. precisamente esse o objetivo visado pelos quatro nveis segundo os quais foi concebida e realizada toda esta obra: criar uma razo aberta, capaz de se defender das mltiplas solicitaes contemporneas fuga para o irracional ou ao encerramento em estreitas posies pragmticas ou cientificistas. E a razo aberta uma razo que sabe ter em si mesma a capacidade de correo de todos os erros que comete (enquanto razo humana) e a fora para empreender itinerrios sempre novos.Este segundo volume desdobra-se em dez partes. A diviso foi feita considerando a sucesso lgica e cronolgica da problemtica tratada, mas com a inteno de oferecer aos docentes verdadeiras unidades didticas, no mbito das quais eles possam realizar as escolhas mais oportunas, segundo o interesse e o nvel de seus alunos. A amplitude do tratado no significa que se deva lecionar tudo, pretendendo apenas oferecer a mais ampla e rica possibilidade de escolhas e aprofundamentos.A primeira parte diz respeito ao humanismo e ao Renascimento, cujas figuras emergentes e cujas tendncias gerais so apresentadas considerando, entre outras coisas, as mais recentes aquisies historiogrficas, voltadas em particular para mostrar que uma de suas principais caractersticas (alis, a caracterstica que constitui a sua marca mais especfica) deriva do pensamento atribudo aos profetas e magos mais antigos, como Hermes Trismegisto, Zoroastro e Orfeu. Desse modo, apresentamos essas personagens e os mitos por elas criados e explicamos a peculiar tmpera espiritual que sua revivescncia produziu, de formas as mais variadas e interessantes, conjugando-se sobretudo com a revivescncia do platonismo.Abrimos um amplo espao para a revoluo cientfica, isto , para aquele poderoso movimento de idias que, a partir da publicao do De revolutionibus, de Coprnico (1543), alcanou as suas caractersticas fundamentais no sculo XVII com a obra de Galileu, encontrou os seus filsofos em Bacon e, Descartes e depois iria ter a sua expresso clssica na imagem newtoniana do universo concebido como um relgio. E como a revoluo astronmica o elemento central desse processo de revoluo cientfica, nos detivemos amplamente no apenas em Coprnico, mas tambm em Tycho Brahe e Kepler. Tambm dirigimos uma particular ateno ao pensamento de Galileu, ao desenvolvimento de sua teoria cientfica, sua viso da cincia, s razes de sua rejeio filosofia aristotlica, s razes epistemolgicas do seu confronto com a Igreja catlica e sua concepo das relaes entre cincia e f. No que se refere a Newton, tambm insistimos no apenas em suas idias cientficas (fsicas e matemticas), mas igualmente em suas concepes filosficas e teolgicas e, sobretudo, em sua viso da cincia, uma viso que constituiria a base da razo dos empiristas e dos iluministas. Ademais, o aprofundamento de Newton era indispensvel para a compreenso da obra de Kant, j que a cincia que Kant levaria em conta seria precisamente a mecnica de Newton. Por outro lado, ao longo dos cento e cinqenta anos que decorrem entre Coprnico e Newton, no foi apenas a viso de mundo que mudou.Com efeito, veremos que, interligada a essa transformao, tambm houve uma mudana igualmente lenta e tortuosa, mas decisiva das idias sobre o homem, sobre a cincia, sobre ohomem de cincia (e, nesse ponto, so de extrema importncia as complexas relaes entre magia e cincia), sobre o trabalho artesanal e as instituies cientficas, sobre as relaes entre cincia e sociedade, sobre as relaes entre cincia e filosofia e sobre as relaes entre o saber cientfico e a f religiosa.Enquanto Galileu contribua decisivamente para o desenvolvimento da cincia e teorizava sobre a natureza do mtodo cientfico, Bacon viria a ser o filsofo da poca industrial, pois nenhum outro em sua poca e muito poucos nos trezentos anos posteriores preocuparam-se com tanta profundidade e clareza com a influncia das descobertas cientficas sobre a vida humana (E. Farrington). sob esse signo que Bacon critica a lgica tradicional, a filosofia de Aristteles e a tradio mgico-alquimista, instaurando um novum commercium mentis et rei em condies de chegar ao verdadeiro conhecimento das coisas, que o conhecimento de formas, atravs de uma purificao sistemtica da mente em relao aos seus dolos e da tambm sistemtica aplicao do mtodo indutivo. E esse conhecimento que faz o homem ministro e intrprete da natureza, dando-lhe sobre ela o poder que ele deve dispor a servio da caridade e da fraternidade.Mas se, apesar de toda a sua modernidade, em Bacon ainda esto presentes traos da tradio j em Descartes eles desaparecem. Descartes foi o autntico fundador da filosofia moderna. de Leibniz a opinio de que quem ler Galileu e Descartes se encontrar em melhor posio para descobrir a verdade do que se houvesse explorado todo o gnero dos autores comuns. Tantos que podemos repetir com Whitehead que a histria da filosofia moderna a histria do desenvolvimento do cartesianismo em seu duplo aspecto de idealismo e mecanicismo. Sendo assim, procuramos desenvolver amplamente a exposio das idias de Descartes, mostrando que, em seu projeto filosfico, o mtodo, a fsica e a metafsica esto estreitamente entrelaados e so solidamente interfuncionais. Tambm demos um grande destaque s grandes construes da metafsica racionalista de Malebranche, Spinoza e Leibniz, com amplo uso de textos fundamentais, mostrando que, sob o seu aparente paradoxo, os sistemas desses autores apresentam uma estrutura lgica de extraordinria riqueza e que as prprias aporias em que desembocam so de notvel interesse.Tambm reservamos um amplo espao aos pensadores empiristas no apenas a Hobbes, Locke e Hume, como costume, dado o reconhecimento unnime da importncia desses autores, mas tambm a Berkeley, que habitualmente subestimado.A ampla abordagem que dedicamos a Berkeley motivada pelo fato de que, sob certos aspectos, ele o pensador ingls mais importante da primeira metade do sculo XVIII. Empenhado em um projeto apologtico contra o materialismo, o atesmo e os livres pensadores, Berkeley desenvolveu uma teoria do conhecimento instrumentalista e fenomenista que rica em engenhosas argumentaes e intuies que, mesmo depois dele, iriam continuar preocupando ou, de qualquer forma, interessando muitos filsofos durante bastante tempo.Combatendo os libertinos, pirronistas e racionalistas, por demais confiantes na razo humana, Pascal defendeu a autonomia da cincia em seu prprio campo e fixou os seus limites, indagou sobre a misria e a grandeza do homem e projetou uma grandiosa Apologia do cristianismo, visto por ele como a nica religio que, em profundidade, consegue dar conta da natureza humana: Desejamos a verdade, mas s encontramos incerteza. Procuramos a felicidade, mas s encontramos misria e morte. Somos incapazes de deixar de desejar a felicidade e a verdade, mas tambm somos incapazes da certeza e da felicidade (...). Para ser verdadeira, uma religio deve conhecer a nossa natureza. (... E) quem a conhece seno a religio crist? Para Pascal, a religio crist ensina estes dois nicos princpios: a corrupo da natureza humana e a obra redentora de Jesus Cristo.De certa forma, Pascal foi um pensador contra a corrente. E outro pensador contra a corrente foi Vico, a quem se deve a descoberta e a fundamentao do mundo civil feito pelos homens.Com efeito, enquanto assumia uma atitude de incompreenso e fechamento diante da fsica e das cincias naturais, isto , diante de experincias fundamentais da poca moderna, j no terreno da histria e das coisas civis do homem, em um dilogo de oxigenao europia com Bacon, Grotius e Descartes, Vico propunha questes essenciais e avanava solues que, destacando aspectos diversos do seu pensamento, viriam a constituir referncia, mais tarde, para o positivismo e o historicismo (P. Rossi).A reavaliao que a historiografia mais recente efetuou dos vrios aspectos do iluminismo, depois da condenao romntica, nos impeliu no apenas a delinear os traos de fundo desse importante movimento de pensamento, mas tambm a penetrar mais profundamente na riqueza especfica dos diversos iluminismos: o francs, o ingls, o alemo e o italiano. Foi por isso que expusemos com certa meticulosidade: 1) as concepes dos destas ingleses (J. Toland, S. Clarke, A. Collins, M. Tindal e J. Butler); as reflexes sobre a moral por parte de Shaftesbury, F. Hutcheson e D. Hartley, sobretudo as idias tico-polticas de Bernard de Mandeville; as idias gnosiolgicas da escola escocesa: Reid, Stewart e Brown; 2) o projeto da enciclopdia francesa, a filosofia de dAlembert e Diderot, a gnosiologia sensstica de Condillac; as concepes dos materialistas iluministas: La Mettrie, Helvtius e dHolbach; a grande batalha pela tolerncia travada por Voltaire; o pensamento poltico de Montesquieu e o articulado conjunto das idias ticas, polticas, sociais, pedaggicas e religiosas de Rousseau; 3) a influente filosofia de Wolff, o nascimento da esttica sistemtica com A. Baumgarten; as concepes de Lessing; 4) igualmente, as idias dos irmos Verri e de P. Frisi, mas sobretudo de Csar Beccaria, sem esquecer a contribuio de Filangieri, Galiani e Genovesi. precisamente ao examinar especificamente o iluminismo ingls, francs, alemo e italiano que se v com clareza que, baseando-se em tradies culturais diversas, o iluminismo se configura, no tanto como um compacto sistema de doutrinas, mas muito mais como um movimento em cuja base est a confiana na razo humana, cujo desenvolvimento condio de progresso para a humanidade e de libertao dos vnculos cegos e absurdos da tradio, das razes da ignorncia, da superstio, do mito e da opresso. Desse modo, veremos como se explicita a Razo dos iluministas como defesa do conhecimento cientfico e da tcnica, como instrumento de transformao do mundo e de melhoria progressiva das condies espirituais e materiais da humanidade, como tolerncia tica e religiosa, como defesa dos inalienveis direitos naturais do homem e do cidado, como rejeio dos dogmticos sistemas metafsicos factualmente incontrolveis, como crtica das supersties representadas pelas religies positivas e como defesa do desmo (e, por vezes, tambm do materialismo), como combate aos privilgios e tirania. So precisamente essas as semelhanas de famlia que, nas diferentes tradies, nos permitem falar do movimento iluminista como um movimento filosfico, pedaggico e poltico que, ademais, tambm influenciou fortemente a historiografia e a arte.A Kant, por fim, reservamos uma exposio que constitui como que pequena monografia, a qual, ao lado de uma exposio sinttica dos escritos pr-crticos, apresenta uma anlise precisa da estrutura das trs Crticas, procurando conjugar a clareza didtica com o rigor cientfico.O volume se conclui com um apndice que, como um complemento indispensvel, contm os quadros cronolgicos sinticos e o ndice dos nomes, tudo a cargo do professor Claudio Mazzarelli (cf pp. 933ss.), que, unindo sua dupla competncia de professor de longa data e de pesquisador cientfico, procurou fornecer um instrumento ao mesmo tempo o mais rico e funcional.Dirigimos nosso agradecimento ao professor Dante Cesarini, de Perugia, pela ajuda que nos prestou no exame das relaes entre o iluminismo e o neoclassicismo.Os autores tambm expressam uma grata recordao memria do professor Francesco Brunelli, que idealizou e promoveu a iniciativa desta obra. Pouco antes de seu imprevisto desaparecimento, ele j estava preparando a execuo tipogrfica deste projeto.O nosso mais vivo agradecimento ao doutor Remo Bernacchia, por ter favorecido e tornado realizvel a concepo inteiramente nova em que se inspira a presente obra. Em especial, cabe a ele o mrito de haver tornado possvel a nova edio e de ter previsto uma estrutura tcnica capaz de possibilitar tambm futuros melhoramentos na obra. Expressamos uma gratido especial doutora Clara Fortina, que, na qualidade de redatora, dedicou-se apaixonadamente ao xito da obra, para alm dos seus deveres profissionais.Os autores assumem em comum a responsabilidade por toda esta obra, por terem trabalhado juntos (cada qual segundo a sua competncia, sua sensibilidade e seus prprios interesses) para o bom xito de cada um dos trs volumes, em plena unidade de esprito e de intenes.Os AutoresPrimeira parteO HUMANISMO E O RENASCIMENTOMagnum miraculum est homo.Hermes Trismegisto, in Asclepius suprema liberalidade de Deus Pai! suprema e admirvel felicidade do homem! Homem ao qual foi concedido obter aquilo que deseja e ser aquilo que quer. Ao nascerem, os seres brutos levam consigo, do seio materno, tudo aquilo que tero. J os espritos superiores, desde o incio ou pouco depois j so aquilo que sero nos sculos dos sculos. No homem nascente, o Pai depositou sementes de toda espcie e germes de toda vida. E, na medida que cada um os cultivar, eles crescero e nele daro os seus frutos. E, se forem vegetais, ser planta; se forem sensveis, ser ser bruto; se forem racionais, se tornar animal celeste; se forem intelectuais, ser anjo e filho de Deus. Mas se, no contente com a sorte de nenhuma criatura, se recolher no centro de sua unidade, fazendo-se um s esprito com Deus, na solitria nvoa do Pai, aquele que foi colocado sobre todas as coisas estar sobre todas as coisas.Pico de MirndolaCaptulo 1O PENSAMENTO HUMANISTA RENASCENTISTA E SUAS CARACTERISTICAS GERAIS1. O significado historiogrfico do termo humanismoExiste toda a interminvel literatura crtica sobre o perodo do humanismo e do Renascimento. E, no entanto, no apenas os estudiosos no conseguiram chegar a uma definio das caractersticas dessa poca, capaz de reunir um consenso unnime, mas tambm, pouco a pouco, enredaram a tal ponto a meada dos vrios problemas que hoje difcil para o prprio especialista desenred-la.A questo revela-se ainda mais complexa pelo fato de que, nesse perodo, no ocorre apenas uma mudana no pensamento filosfico, mas tambm, em geral, em toda a vida do homem, em todos os seus aspectos: sociais, polticos, morais, literrios, artsticos, cientficos e religiosos. E tornou-se bem mais complexa ainda pelo fato de que as pesquisas se tornaram predominantemente analticas e setoriais, e os estudiosos apresentarem a tendncia de fugir das grandes snteses ou at simplesmente das hipteses de trabalho de carter global ou das perspectivas de conjunto.Assim, necessrio antes de mais nada focalizar alguns conceitos bsicos, sem os quais no seria possvel sequer a proposio dos vrios problemas relativos a esse perodo.Comcemos por examinar o prprio conceito de humanismo.O termo humanismo recente. Parece que foi usado pela primeira yez por, F. I. Niethammer para indicar a rea cultural coberta pelos estudos clssicos e pelo esprito que lhe prprio, em contraposio com a rea cultural coberta pelas disciplinas cientficas. Entretanto, o termo humanista (e seus equivalentes nas vrias lnguas) nasceu por volta de meados do sculo XV, calcado nos termos legista, jurista, canonista e artista, para indicar os professores e cultores de gramtica, retrica, poesia, histria e filosofia moral. Ademais, j no sculo XIV falava-se de studia humanitatis e de studia humaniora, expresses referidas a famosas afirmaes de Ccero e Glio, para indicar essas disciplinas.Para os mencionados autores latinos, humanitas significava aproximadamente aquilo que os helnicos indicavam com o termo paideia, ou seja, educao e formao do homem. Ora, considerava-se que as letras, ou seja, a poesia, a retrica, a histria e a filosofia desempenhavam um papel essencial nessa obra de formao espiritual. Com efeito, so essas disciplinas que estudam o homem naquilo que ele tem de peculiar, prescindindo de qualquer utilidade pragmtica. Por isso, mostram-se particularmente capazes no apenas de nos dar a conhecer a natureza especfica do prprio homem, mas tambm de fortalec-la e potencializ-la: em suma, mostram-se mais capazes do que todas as outras disciplinas a fazer o homem ser aquilo que deve ser, precisamente em virtude de sua natureza espiritual especfica.Sobretudo a partir da segunda metade do sculo XIV e depois, sempre de forma crescente, nos dois sculos seguintes (com seu ponto culminante precisamente no sculo XV), verificou-se uma tendncia a atribuir aos estudos relativos s litterae humanas um grande valor, considerando a Antigidade clssica, latina e grega, como um paradigma e um ponto de referncia para as atividades espirituais e a cultura em geral. Pouco a pouco, os autores latinos e gregos se firmavam como modelos insuperveis nas chamadas letras humanas, verdadeiros mestres de humanidade.Assim, humanismo significa essa tendncia geral que, embora com precedentes ao longo da poca medieval, a partir de Francisco Petrarca, apresentava-se agora de modo marcadamente novo por seu particular colorido, por suas peculiares modalidades e pela intensidade, a ponto de marcar o incio de um novo perodo na histria da cultura e do pensamento.No nos alongaremos aqui a descrever o grande fervor que nasceu em torno dos clssicos latinos e gregos e de sua redescoberta, bem como ao paciente trabalho de pesquisa de cdices nas bibliotecas e de sua interpretao. Nem nos deteremos nos acontecimentos que levaram a uma nova aquisio do conhecimento da lngua grega, mais uma vez considerada como patrimnio espiritual essencial do homem culto (as primeiras ctedras de lngua e literatura gregas foram institudas no sculo XIV, mas a grande19difuso do grego ocorreu sobretudo no sculo XV: em especial, o Conclio de Ferrara e Florena, em 1438/1439, e, logo depois, a queda de Constantinopla, ocorrida em 1453, levaram alguns doutos bizantinos a fixarem moradia na Itlia, tendo por conseqncia um grande incremento no ensino da lngua grega). E, por fim, tambm no nos deteremos na formulao das complexas questes de carter predominantemente erudito ligadas a esses fervorosos estudos: com efeito, essa tarefa cabe sobretudo histria em geral e histria literria em particular.No entanto, queremos registrar duas das mais famosas interpretaes do humanismo dadas recentemente, referindo-se plenamente ao seu significado filosfico, que aquele que nos interessa primordialmente nesta obra.a) A primeira de P.O. Kristeller, que procurou limitar fortemente o significado filosfico e terico do humanismo, inclusive a ponto de elimin-lo. Segundo esse estudioso, bastaria deixar ao termo o significado tcnico que ele tinha originalmente, restringindo-o assim ao mbito das disciplinas retrico-literrias (gramtica, retrica, histria, poesia e filosofia moral). Segundo Kristeller, os humanistas do perodo que estamos tratando foram superestimados, sendo-lhes atribudo um papel de renovao do pensamento que eles, na realidade, no desempenharam, visto que no se ocuparam diretamente da filosofia e da cincia. Em suma; para Kristeller, os humanistas no foram verdadeiros reformadores do pensamento filosfico porque, em absoluto, no foram filsofos.Eis algumas afirmaes significativas desse estudioso: O humanismo renascentista no foi tanto uma tendncia ou um sistema filosfico, mas muito mais um programa cultural e pedaggico, que valorizava e desenvolvia um setor importante, mas limitado dos estudos. Esse setor teve como seu centro um grupo de matrias que, essencialmente, no diziam respeito aos estudos clssicos ou filosofia, mas sim aquilo que, a grosso modo, pode ser indicado como literatura. Foi a essa peculiar preocupao literria que o estudo verdadeiramente intensivo e extensivo dedicado pelos humanistas aos clssicos gregos e especialmente latinos deveu o seu carter peculiar, que o diferencia dos estudos prprios dos fillogos clssicos a partir da segunda metade do sculo XVIII. Ademais, embora os studia humanitatis incluam uma disciplina filosfica, isto , a moral, na verdade excluem por definio campos como a lgica, a filosofia da natureza e a metafsica, alm da matemtica e da astronomia, da medicina, do direito e da teologia, para citar apenas algumas matrias que tinham um lugar claramente definido no currculo universitrio e nos esquemas classificatrios da poca. Parece-me que esse simples fato basta para fornecer uma prova irrefutvel contra as repetidas tentativas de identificar o humanismo renascentista com a filosofia, a cincia ou a cultura desse perodo, em seu conjunto.Entre outras coisas, Kristeller cita como prova em favor de suas teses o fato de que, durante todo o sculo XV, os humanistas italianos no pretenderam substituir a enciclopdia do saber medieval por outra nova e que, ao contrrio, estavam conscientes de que sua matria de estudo ocupava um lugar bem definido e limitado no sistema contemporneo de estudos. Assim, entendido desse modo, o humanismo no representaria em absoluto a soma total da cincia do Renascimento italiano.Desse modo, segundo Kristeller, para compreender a poca de que estamos falando, seria necessrio dedicar ateno tradio aristotlica, que tratava ex professo da filosofia da natureza e da lgica,. que j havia se consolidado fora da Itlia (sobretudo em Paris e Oxford h bastante tempo, mas que na Itlia s se consolidaria durante o sculo XVI. Diz Kristeller que foi na segunda metade do sculo XIV que comeou uma tradio contnua de aristotelismo italiano, a qual pode ser seguida atravs dos sculos XV e XVI e at por uma boa parte do sculo XVII.Esse aristotelismo renascentista levou adiante os mtodos prprios da escolstica (leitura e comentrio dos textos), mas enriquecendo-se com as novas influncias humanistas, que iriam exigir dos estudiosos e pensadores peripatticos que retornassem aos textos gregos de Aristteles, deixassem de lado as tradues latinas medievais e fizessem uso dos comentadores gregos e tambm de outros pensadores gregos.Desse modo, como destaca Kristeller, os estudiosos hostis Idade Mdia confundiram esse aristotelismo renascentista com o resduo de tradies medievais superadas e, assim, considerando-o resduo de uma cultura ultrapassada, acharam que deviam deix-lo de lado em benefcio dos humanistas, verdadeiros portadores do novo esprito renascentista. Mas, segundo Kristeller, tratar-se-ia de um grave erro de compreenso histrica, porque freqentemente a condenao do aristotelismo renascentista foi feita sem uma efetiva conscincia daquilo que se estava condenando. A exceo de Pomponazzi (do qual falaremos adiante), que as mais das vezes foi seriamente considerado, um grave preconceito condicionou o conhecimento desse momento da histria do pensamento. Por isso, Kristeller concluiu; relativamente pequeno o nmero de estudiosos modernos que realmente leram algumas obras dos aristotlicos italianos. O estudo de conjunto sobre essa escola que ainda exerce a maior influncia o livro de Renan sobre Averris e o averrosmo (Averros et lAverrosme, Paris, 1861, 2 ed.), livro que teve notveis mritos em sua poca,20mas que tambm contm muitos erros e confuses, que depois foram repetidos por todos. Assim, necessrio estudar a fundo as questes discutidas pelos aristotlicos italianos desse perodo: desse modo, cairiam por terra muitos lugares comuns que s se mantm porque foram continuamente repetidos, mas que carecem de base slida, emergindo conseqentemente uma nova realidade histrica.Em concluso, o humanismo representaria apenas uma metade do fenmeno renascentista e, mais ainda, a metade no filosfica. Assim, ele s seria plenamente compreensvel se considerado junto com o aristotelismo que se desenvolveu paralelamente, o qual expressaria as verdadeiras idias filosficas da poca. Ademais, segundo Kristeller, os artistas do Renascimento no deveriam ser vistos na tica do grande gnio criativo (que constitui uma viso romntica e um mito do sculo XIX), mas sim como timos artesos, cuja excelncia no decorre de uma espcie de superior adivinhao dos destinos da cincia moderna, mas sim da bagagem de conhecimentos tcnicos (anatomia, perspectiva, mecnica etc.) considerada indispensvel para a prtica adequada de sua arte. Por fim, se a astronomia e a fsica realizaram progressos notveis, no foi por motivo de sua ligao com o pensamento filosfico, mas sim com a matemtica. E aos filsofos custou-lhes se harmonizar com essas descobertas, porque, tradicionilmente, no havia uma conexo precisa entre matemtica e filosofia.Diametralmente oposta a reconstruo de Eugnio Garin que reivindicou energicamente uma precisa valncia filosfica para o humanismo, notando que a negao de significado filosfico aos studia humanitatis renascentistas deriva do fato de que, as mais das vezes, entende-se por filosofia a construo sistemtica de grandes propores, negando-se que a filosofia tambm pode ser outro tipo de especulao, no sistemtica, aberta, problemtica e pragmtica. Polemizando com as acusaes de diletantismo filosfico que alguns estudiosos fizeram aos humanistas, escreve Garin: A razo ntima daquela condenao do significado filosfico do humanismo (... est no) amor sobrevivente por uma viso de filosofia constantemente combatida pelo pensamento do sculo XV. Aquilo cuja perda lamentada por tantos justamente o que os humanistas quiseram destruir, isto , a construo de grandes catedrais de idias, das grandes sistematizaes lgico-teolgicas a filosofia que submete todo problema e toda pesquisa questo teolgica, que organiza e encerra toda possibilidade na trama de uma ordem lgica preestabelecida. Essa filosofia, ignorada no perodo do humanismo como v e intil, substituda por pesquisas concretas, definidas e precisas na direo das cincias morais (tica, poltica, economia, esttica, lgica e retrica) e das cincias da natureza (...) cultivadas iuxta propria principia, fora de qualquer vnculo e de qualquer auctoritas (...).Alis, diz Garin, a ateno filolgica para com os problemas particulares constitui precisamente a nova filosofia, ou seja, o novo mtodo de examinar os problemas, que, portanto, no deve ser considerado, ao lado da filosofia tradicional, como um aspecto secundrio da cultura renascentista, como acreditam alguns (basta pensar, por exemplo, na posio de Kristeller que examinamos), mas sim como o prprio filosofar efetivo.Uma das mais destacadas caractersticas desse novo modo de filosofar o sentido da histria e da dimenso histrica, com seu respectivo sentido de objetivao e de afastamento crtico do objeto historicizado, ou seja, historicamente considerado. Escreve Garin: Foi ento, graas queles poderosos pesquisadores de antigas histrias que conquistamos um igual distanciamento tanto da fsica de Aristteles como do cosmos de Ptolomeu, libertando-nos imediatamente de sua opressora clausura. E isso porque fsicos e lgicos de Oxford e Paris j haviam comeado a corroer aquelas estruturas por dentro, estruturas que se encontravam bastante abaladas depois do terrvel golpe desfechado por Ockham. Mas somente a conquista do antigo como sentido da histria prpria do humanismo filolgico permitiu considerar aquelas teorias como aquilo que elas verdadeiramente eram: pensamentos humanos, produtos de certa cultura e resultado de experincias parciais e particulares; no orculos da natureza ou de Deus, revelados por Aristteles e Averris, mas sim vises e cogitaes humanas.A essncia do humanismo no deve ser vista naquilo que ele conheceu do passado, mas sim no modo em que o conheceu, na atitude peculiar que adotou diante dele: precisamente a atitude adotada diante da cultura do passado e diante do prprio passado que define claramente a essncia do humanismo. E a peculiaridade dessa atitude no se deve fixar em um singular movimento de admirao e afeto, nem em um conhecimento mais amplo, mas em uma conscincia histrica bem definida. Os brbaros (= os medievais) no o foram por terem ignorado os clssicos, mas sim por no t-los compreendido na veracidade de sua situao histrica. Os humanistas descobrem os clssicos porque os afastaram de si, procurando defini-los sem confundir o latim deles com o seu prprio. Por isso, os humanistas verdadeiramente descobriram os antigos, fossem eles Virglio ou Aristteles, apesar de conhecidssimos na Idade Mdia. E isso porque restituram Virglio ao seu tempo e ao seu mundo e procuraram explicar Aristteles no mbito dos problemas e dos conhecimentos da Atenas do sculo IV antes de Cristo. Por isso, no humanismo, no se pode nem se deve23distinguir a descoberta do mundo antigo e a descoberta do homem, porque se tratou de uma s coisa, j que descobrir o antigo como tal significou comparar-se com ele e, distanciando-se, colocar-se em relao com ele. Significou tempo e memria, sentido da criao humana, da obra terrena e da responsabilidade. No por acaso os maiores humanistas foram, em grande nmero, homens de Estado, pessoas ativas habituadas livre atuao na vida pblica de sua poca. Mas a tese de Garin no se reduz a isso: ele coloca a nova filosofia humanista na realidade concreta daquele momento da vida histrica italiana, fazendo-a uma expresso dessa realidade, a ponto de explicar com razes sociopolticas a reviravolta sofrida pelo pensamento humanista na segunda metade do sculo XV. Inicialmente, o humanismo foi uma exaltao da vida civil e das problemticas a ela ligadas, porque estava vinculado liberdade poltica daquele momento. O advento das tutelas e o eclipsar-se das liberdades polticas republicanas transformou os literatos em cortesos e impeliu a filosofia para evases de carter contemplativo metafsico: Retirada sua liberdade no plano poltico, o homem evadiu-se para um terreno diferente, voltando-se para si mesmo e procurando a liberdade do sbio (...). De um filosofar socrtico, centrado no problema humano, passa-se para um plano platnico (...). Em Florena, enquanto Savonarola lana a ltima invectiva contra as tiranias que tudo corrompem e esterilizam, o divino Marclio procura no hiperurnio uma margem serena onde se abrigar das tempestades do mundo.Na realidade, as teses contrapostas de Kristeller e de Garin revelam-se muito fecundas precisamente por sua anttese, porque uma destaca aquilo que a outra silencia, podendo portanto ser interpretadas entre si, se prescindirmos de alguns pressupostos dos dois autores. verdade que, originalmente, o termo humanista indica o ofcio do literato, mas essa profisso vai bem alm do simples ensino universitrio, entrando na vida ativa, iluminando os problemas da vida cotidiana, fazendo-se verdadeiramente uma nova filosofia.Ademais, o humanista distingue-se efetivamente pelo novo modo como l os clssicos: houve um humanismo literrio porque surgiram um novo esprito, uma nova sensibilidade e um novo gosto, com os quais as letras foram revisitadas. E o antigo alimentou o novo esprito, porque este, por seu turno, iluminou o antigo com uma nova luz.Kristeller tem razo quando lamenta que o aristotelismo renascentista seja um captulo a ser reestudado ex novo e tambm tem razo ao insistir no paralelismo desse movimento com o movimento propriamente literrio. Mas o prprio Kristeller admite25que o Aristteles desse perodo um Aristteles freqentemente procurado e lido no texto original, sem a mediao das tradues e das exegeses medievais, tanto que chega at a retornar aos comentadores gregos para ser iluminado. Assim, trata-se de um Aristteles revisitado com um novo esprito, que s o humanismo pode explicar. Portanto, Garin tem razo ao destacar o fato de que o humanismo olha o passado com novos olhos, com os olhos da histria, e que s atentando para esse fato que se pode compreender toda essa poca.E a aquisio do sentido da histria, ao mesmo tempo, significa aquisio do sentido de sua prpria individualidade e originalidade. S se pode compreender o passado do homem quando se compreende a sua diversidade em relao ao presente e, portanto, quando se compreende a peculiaridade e a especificidade do presente.Por fim, no que se refere excessiva vinculao do humanismo aos fatos polticos, que leva Garin a algumas afirmaes que correm o risco de cair no bistoricismo sociologista, basta destacar que a grande mudana do pensamento humanista no est ligada somente a uma mudana poltica, mas tambm descoberta e s tradues de Hermes Trismegisto e dos profetas-magos, de Plato, de Plotino e de toda a tradio platnica, o que representou a abertura de novos e ilimitados horizontes, do que falaremos adiante. De resto, o prprio Garin no se deixou levar por excessos sociologistas, como, no entanto, fizeram outros intrpretes por ele influenciados.Concluindo, podemos dizer que a marca que distingue o humanismo consiste em um novo sentido do homem e de seus problemas. um novo sentido que encontra expresses multiformes e, por vezes, at opostas, mas sempre ricas e freqentemente muito originais. um novo sentido que culmina nas celebraes tericas da dignidade do homem como ser em certo sentido extraordinrio em relao a toda a ordem do cosmos, como veremos adiante. Mas essas reflexes tericas nada mais so do que expresses conceituais que tm nas representaes da pintura, da escultura e de grande parte da poesia as suas correspondncias visuais e fantstico-imaginativas, que, com a majestade, a harmonia e a beleza de sua figurao, expressam a mesma idia, de vrios modos em esplndidas variaes.2. O significado historiogrfico do termo RenascimentoO termo Renascimento, como categoria historiogrfica, consolidou-se no sculo XIX, em grande parte por mrito de uma obra de Jacob Burckhardt intitulada A cultura do Renascimento na Itlia (publicada em Basilia, em 1860), que se tornou muito famosa, impondo-se longamente como modelo e como ponto de referncia indispensvel. Na obra de Burckhardt, o Renascimento emergia como fenmeno tipicamente italiano quanto s suas origens, caracterizado pelo individualismo prtico e terico, pela exaltao da vida mundana, pelo acentuado sensualismo, pela mundanizao da religio, pela tendncia paganizante, pela libertao em relao s autoridades constitudas que haviam dominado a vida espiritual no passado, pelo forte sentido de histria, pelo naturalismo filosfico e pelo extraordinrio gosto artstico.Segundo Burckhardt, o Renascimento seria portanto uma poca que viu surgir uma nova cultura, oposta medieval. E a revivescncia do mundo antigo teria desempenhado nisso um papel importante, mas no exclusivamente determinante. Escreve Burckhardt: Aquilo que devemos estabelecer (...) como um ponto essencial que-no foi ressuscitada a Antigidade por si s, mas sim ela e o novo esprito italiano, juntos e interpenetrados, que tiveram a fora para arrastar consigo todo o mundo ocidental.Assim, partindo do renascimento da Antiguidade, passou-se a chamar de Renascimento toda essa poca, que, porm, algo mais complexo do que isso: com efeito, a sntese do novo esprito que se criou na Itlia com a prpria Antigidade o esprito que, rompendo definitivamente com o esprito da poca medieval, inaugurou a poca moderna.Essa interpretao foi muito contestada, por vrias vezes, em nosso sculo. Alguns chegaram mesmo a duvidar que o Renascimento constitua uma efetiva realidade histrica e no seja muito mais (ou predominantemente) uma inveno construda pela historiografia do sculo XIX.Variados e de diversos tipos foram os reparos feitos sobre o Renascimento.Alguns observaram que, se atentamente estudadas, as vrias caractersticas consideradas tpicas do Renascimento tambm podem ser encontradas na Idade Mdia. Outros insistiam muito no fato de que, a partir do sculo XI, mas sobretudo nos sculos XII e XIII, a Idade Mdia pode ser considerada plena de renascimentos de obras e autores antigos, que pouco a pouco emergiam e eram readquiridos. Conseqentemente, esses autores negaram validade aos parmetros tradicionais que durante longo tempo haviam baseado a distino entre a Idade Mdia e o Renascimento.Mas logo se estabeleceu um novo equilbrio, reconstitudo em bases bem mais slidas. Nesse meio tempo, porm, estabeleceu-se que o termo Renascimento no pode em absoluto ser considerado como mera inveno dos historiadores do sculo XIX, pelo simples27fato de que os humanistas usavam expressamente (com insistncia e com plena conscincia) expresses como fazer reviver, fazer voltar ao antigo esplendor, renovar, restituir a uma nova vida, fazer renascer o mundo antigo etc., contrapondo a nova poca em que viviam poca medieval como a poca da luz contraposta poca da escurido e das trevas.Mas, antes de continuar, vejamos trs textos, entre numerosos existentes nesse sentido.Falando a propsito da lngua latina, escreve Lorenzo Valia: Grande portanto o sacramento da lngua latina, grande sem dvida a fora divina que h tantos sculos custodiada junto aos estrangeiros, junto aos brbaros, junto aos inimigos, pia e religiosamente, de tal forma que ns, romanos, no temos por que sofrer, mas sim nos alegrar e gloriar diante do mundo. Perdemos Roma, perdemos o reino, perdemos o domnio, no por causa nossa, mas dos tempos e, no entanto, com esse mais esplndido imprio remamos ainda em tantas partes do mundo (...). Pois onde domina a lngua romana, l est o imprio romano (...). Mas como foram tristes os tempos passados, nos quais no tivemos nenhum homem douto! Por isso, mais devemos nos comprazer com os nossos tempos, nos quais, se nos esforarmos mais um pouco, confio em que logo renovaremos, mais que a cidade, a lngua de Roma e, com ela, todas as disciplinas (traduo de E. Garin)..Cristvo Landino assim descreve a obra de redescoberta dos clssicos empreendida por Poggio Bracciolini: para trazer luz os monumentos, dos antigos e para no deixar que tristes lugares roubassem tantos bens, foi preciso ir at povos brbaros e procurar as cidades escondidas nos cumes dos montes lingnicos. Mas, graas a ele, retornas ntegro a ns ao Lcio, Quintiliano, o mais douto dos oradores; graas a ele, os divinos poemas de Slio voltam a ser lidos pelos seus italianos. E, para que possamos conhecer a cultivao dos vrios campos, ele nos traz de volta a grande obra de Columela. E restitui ptria e aos concidados, a ti, Lucrcio, depois de tanto tempo. Plux conseguiu arrancar o irmo das trevas do Trtaro, alternando-se com ele; Eurdice segue as cordas harmoniosas do esposo, destinada a voltar novamente aos negros abismos; mas Poggio, inclume, retira da escura nvoa homens to grandes que neles brilha eternamente uma clara luz. Uma brbara mo havia envolvido em negra noite o orador, o poeta, o filsofo, o douto agricultor. Mas Poggio conseguiu restitui-los a uma segunda vida, libertando-os com admirvel arte de um lugar infame (traduo de. E. Garin).Por fim, Giorgio Vasari fala expressamente de renascimento da pintura e da escultura em relao ferrugem medieval, saindo da grosseria e da desproporo para a perfeio do modo moderno. Por esse caminho, poderamos multiplicar a lista dos documentos sobre a idia de um Renascimento que efetivamente inspirou os homens daquela poca.Fica claro, portanto, que os historigrafos do sculo XIX no erraram nesse ponto. Eles erraram foi no julgar que a Idade Mdia constitura verdadeiramente uma poca de barbrie, um tempo nebuloso, um perodo de escurido.Os homens do Renascimento, naturalmente, tinham essa opinio, mas por razes polmicas e no objetivas: eles sentiam a sua mensagem inovadora como uma mensagem de luz que rompia as trevas. O que no significava que verdadeiramente, ou seja, historicamente, antes dessa luz houvesse trevas, pois poderia haver (para manter a imagem) uma luz diferente.Com efeito, as grandes aquisies historiogrficas do nosso sculo mostraram que a Idade Mdia foi uma poca de grande civilidade, percorrida por fermentos e frmitos de vrios tipos, quase que totalmente desconhecidos pelos historiadores do sculo XIX. Portanto, a renascena que constitui a peculiariedade do Renascimento no a renascena da civilidade contra a incivilidade, da cultura contra a incultura e a barbrie, do saber contra a ignorncia: ela muito mais o nascimento de outra civilizao, de outra cultura, de outro saber.Mas, para que se entenda plenamente o que estamos dizendo, precisamos nos deter mais especificamente no prprio conceito de Renascimento. As contribuies mais significativas nesse sentido (ainda que unilaterais em certos aspectos) nos vm de uma obra monumental de Konrad Burdach, intitulada Da Idade Mdia Reforma (onze volumes publicados em Berlim entre 1912 e 1939), que mostra as origens joanina e paulina (e, portanto, tipicamente religiosas) da idia de Renascimento, entendida como renascimento para uma nova vida espiritual. Trata-se do renascimento para uma forma de vida mais elevada, de uma renovao daquilo que o homem tem de mais peculiar, que, conseqentemente, faz com que ele seja plenamente ele mesmo. A velha civilizao que os renascentistas queriam trazer novamente luz, portanto, devia ser precisamente o mais idneo instrumento de renovatio. Assim, na inteno original dos homens daquele perodo, o humanismo e o renascentismo no se voltam para o trabalhoso acmulo de velhas runas, mas sim para uma nova construo, conforme um novo projeto. Eles no procuravam trazer vida uma civilizao morta, mas sim queriam uma nova vida.Ademais, Burdach mostrou claramente que o Renascimento tambm tem razes na idia de renascimento do Estado romano, que era bastante viva na Idade Mdia, quando no na idia de renascimento do esprito nacional unido f, que na Itlia se29expressou sobretudo em Cola de Rienzo, em cujo projeto a idia de renascimento religioso inserida no projeto poltico de renascimento histrico da Itlia, gerando uma nova vida.Assim, juntamente com Petrarca, Cola de Rienzo torna-se o mais significativo precursor da grande poca do Renascimento italiano. Burdach escreve: Inspirado na idia poltica de Dante, mas ultrapassando-a, Rienzo, profeta de um distante futuro, proclamou a grande exigncia da unidade da Itlia. E destaca ainda que Cola de Rienzo afirma sempre e continuamente que o objetivo dos seus esforos renovar e reformar: a renovatio e a reformatio de Roma, da Itlia e, depois, tambm do mundo cristo. As idias de renascimento e reforma so vises que expressam conceitos que se interpenetram a ponto de constituir uma unidade indissolvel: Pode-se dizer que, no alicerce dessas duas vises, encontra-se aquele conceito mstico do renascer, da recriao, que encontramos na antiga liturgia pag e na liturgia sacramental crist.Desse modo, est corroda pela prpria base a tese do Renascimento como poca irreligiosa e pag. No apenas Burdach, mas tambm muitos outros estudiosos concordam com isso. F. Walser, por exemplo, escreve: A velha afirmao de que o renascimento religiosamente indiferente absolutamente errnea no que se refere a todo o desenvolvimento do movimento. E ainda: Sob mil formas, na literatura, nas artes, nas festas populares etc., o paganismo do Renascimento era elemento puramente externo e formal, proveniente da moda.Assim, o Renascimento representou um grande fenmeno espiritual de regenerao e reforma, no qual o retorno aos antigos significou revivescncia das origens, retorno aos princpios, ou seja, retorno ao autntico. tambm nesse esprito que deve ser entendida a imitao dos antigos, que se revelou o estmulo mais eficaz para que os homens encontrassem, recriassem e regenerassem a si prprios.Sendo assim, conseqentemente, como sustentou Burdach, o humanismo e o renascentismo constituem uma s coisa. Uma tese que, na Itlia, Eugnio Garin comprovou brilhantemente em outras bases, com novos documentos e com provas abundantes e de vrios tipos. Desse modo, no se pode mais sustentar que foram os studia humanitatis, entendidos como fenmeno literrio e filolgico (retrico), que criaram o Renascimento e o esprito renascentista (filosfico), como se se tratasse quase de uma causa acidental produzindo como efeitos um novo fenmeno substancial.Pode ser at que se tenha verificado justamente o contrrio, isto , foi o renascimento de um novo esprito (o descrito acima) que se serviu das humanae litterae como seu instrumento. O humanismo s se tornou fenmeno literrio e retrico no fim, isto , quando se extinguiu o novo esprito vivificador.Eis um trecho de Garin no qual esse conceito de identidade entre o humanismo e o Renascimento, de gnese burdachiana, levado s extremas conseqncias, com argumentos muito slidos: Mas s possvel darmo-nos conta disso se, colocando-nos no centro desse nexo vivo entre renovatio humanitas e voltando a examinar as litterae humanistas, compreendermos verdadeiramente o significado da filologia do Renascimento a partir desse ponto de vista aprofundado. Ela foi um esforo para que os homens se construssem a si mesmos, em sua prpria e mais clara verdade, pedindo aos antigos o caminho para se reencontrarem: per litteras provocati, pariunt in seipsis, como diz admiravelmente Ficino, construindo o que parece uma flagrante contradio, ou seja, afirmar-se na clareza pessoal singular precisamente atravs da imitao das mais fortes personalidades da histria. Diante desse problema, no caso as relaes com Ccero, Policiano respondeu no menos eficazmente: Non exprimis, inquit aliquis, Ciceronem. Quid tum? Non enim sum Cicero; me tamem, ut opinor, exprimo. Onde o exprimere, que corresponde ao pariunt in seipsis ficiniano, por serem ambos derivados do mesmo ambiente platonizante, indicam o mesmo conceito, isto , o conceito de que todo estimulo externo instrumento, um impulso para gerar-se a si em si mesmo.Um conceito, de resto, que no diferente do j formulado por Salutati no De Hercule, onde atribuda ao sermo dos poetas precisamente essa funo de recorrer interioridade mais profunda para encontrar uma nova realidade. Sendo verdadeira arte, qualquer que ela seja, pag ou crist, a poesia restitui o homem a si mesmo, converte-o a si mesmo e o restitui a um novo plano de realidade, fazendo-o perceber nos sensveis um mundo que est alm do sensvel.Para concluir: se por humanismo se entende a tomada de conscincia de uma misso tipicamente humana atravs das humanas litterae (concebidas como produtoras e aperfeioadoras da natureza humana), ento ele coincide com a renovatio de que falamos, ou seja, com o renascimento do esprito do homem: assim, o humanismo e o renascentismo so duas faces do mesmo fenmeno.3. Determinaes cronolgicas e caractersticas essenciais do perodo humanista-renascentistaDo ponto de vista cronolgico, o humanismo e o renascentismo ocupam dois sculos inteiros: os sculos XV e XVI. Como j observamos, seus preldios devem ser procurados no sculo XIV, particularmente na singular figura de Cola de Rienzo (cuja obra culmina por volta de meados do sculo XIV) e na personalidade e obra de Francisco Petrarca (1304-1874). E o seu eplogo alcana as primeiras dcadas do sculo XVII: Campanella foi a ltima grande figura renascentista.Tradicionalmente, falava-se do sculo XV como poca do humanismo e do sculo XVI como poca do Renascimento propriamente dito. Como, porm, caiu por terra a possibilidade de distino conceitual entre humanismo e renascentismo, necessariamente tambm cai por terra essa distino cronolgica.Se levarmos em conta os contedos filosficos, eles mostram (e o veremos com mais amplitude um pouco adiante) que, o pensamento sobre o homem prevalece no sculo XV, ao passo que, no sculo XVI, o pensamento se amplia, abrangendo tambm a natureza. Nesse sentido, se, por razes de comodidade, se quiser indicar como humanista predominantemente o momento do pensamento renascentista que teve por objeto sobretudo o homem e como renascentista este segundo momento do pensamento, que considera tambm toda a natureza, pode-se at faz-lo, embora com muitas reservas e com grande circunspeco. De todo modo, o certo que, hoje, entende-se por Renascimento a denominao historiogrfica de todo o pensamento dos sculos XV e XVI. Por fim, deve-se recordar que os fenmenos de imitao extrnseca e de filologismo e gramatismo no so prprios do sculo XV, mas sim do sculo XVI, constituindo enquanto tais (como j acenamos) os sintomas da incipiente dissoluo da poca renascentista.Ademais, no que se refere s relaes entre a Idade Mdia e o Renascimento italiano, devemos dizer que, no atual estado dos estudos, no se mantm de p nem 1) a tese da ruptura entre as duas pocas e tampouco 2) a tese da pura e simples continuidade.A tese correta uma terceira. A teoria da ruptura pressupe a oposio e a contrariedade entre as duas pocas, ao passo que a teoria da continuidade postula uma homogeneidade substancial. Mas, entre a contrariedade e a homogeneidade existe a diversidade. Ora; dizer que o Renascimento uma poca diversa da Idade Mdia no apenas permite distinguir as duas pocas sem contrap-las, mas tambm identificar facilmente os seus nexos e as suas tangncias, bem como as suas diferenas, com grande liberdade crtica. E, conseqentemente, o outro problema tambm pode ser facilmente resolvido.O Renascimento inaugura a poca moderna? Os tericos da ruptura entre Renascimento e Idade Mdia eram fervorosos defensores da resposta positiva a essa pergunta. J os tericos da continuidade davam-lhe resposta negativa. Hoje, em geral, tende-se a identificar o comeo da poca moderna com a revoluo cientfica, ou seja, com Galileu. Do ponto de vista da histria do pensamento, essa parece a tese mais correta. A poca moderna revela-se dominada por essa grandiosa revoluo e pelos efeitos que ela provocou em todos os nveis. Nesse sentido, o primeiro filsofo moderno foi Descartes (e, em parte, tambm Bacon), como veremos adiante mais amplamente. Sendo assim, o renascimento representa uma poca diversa tanto da poca medieval como da poca moderna. Naturalmente, assim como as razes do Renascimento devem ser buscadas na Idade Mdia, da mesma forma as razes do mundo moderno, por seu turno, devem ser procuradas no Renascimento. Pode-se dizer, inclusive, que o eplogo do Renascimento marcado pela prpria revoluo cientfica: mas essa revoluo assinala precisamente o eplogo, no a marca do Renascimento, ou seja, indica o seu fim, mas no expressa em absoluto a sua tmpera espiritual em geral.Agora, falta-nos ainda examinar concretamente quais so as mais significativas diferenas que caracterizam o Renascimento, tanto em relao Idade Mdia como em relao poca moderna, atravs do exame das vrias correntes de pensamento e, individualmente, dos pensadores de destaque. Mas, antes, disso, necessrio chamar a ateno do leitor para um dos aspectos mais tpicos do pensamento renascentista, ou seja, a revivescncia do componente helenstico-orientalizante, cheio de ressonncias mgico-tergicas, difundido em alguns escritos que a tardia Antigidade havia atribudo a deuses ou profetas antiqussimos e que, na realidade, eram falsificaes, mas que os renascentistas tomaram por autnticas, com consequncias de grande importncia, como emergiu claramente sobretudo dos estudos e das pesquisas das ltimas dcadas.4. Os profetas e magos orientais e pagos tidos pelos renascentistas como fundadores do pensamento teolgico e filosfico: Hermes Trismegisto, Zoroastro e Orfeu4.1. A diferena de nvel histrico-crtico do conhecimento que os humanistas tiveram da tradio latina em comparao com a tradio gregaPreliminarmente, deve-se esclarecer uma grande questo: como foi possvel que os humanistas, que descobriram a crtica filolgica do texto e que chegaram a identificar importantes falsificaes (como, por exemplo, o ato de doao de Constantino) com base no exame da lngua, tenham cado em erros to flagrantes, tomando por autnticas as obras atribudas aos profetas-magos Hermes Trismegisto, Zoroastro e Orfeu, que so falsificaes to evidentes para ns hoje? Como que deixaram de aplicar a elas o mesmo mtodo? Como se pde observar to grande falta de sagacidade crtica e credulidade to desconcertante em relao a esses documentos?A resposta a essas questes est bastante clara luz dos estudos mais recentes: o trabalho de pesquisa dos textos latinos, que comeou com Petrarca, consolidou-se antes que ocorresse o contato com os textos gregos. Assim, a sensibilidade e a capacidade tcnica e crtica dos humanistas aguaram-se muito antes em relao aos textos latinos do que em relao aos textos gregos. Ademais, os humanistas que se aproximaram dos textos latinos tinham interesses intelectuais mais concretos do que aqueles que se ocuparam predominantemente dos textos gregos, que tinham interesses mais abstratos e metafsicos. Os humanistas que se ocuparam predominantemente de textos latinos interessavam-se sobretudo pela literatura e a histria, ao passo que os humanistas que se ocuparam de textos gregos interessavam-se sobretudo pela teologia e a filosofia. Alm disso, as fontes e tradies usadas como referncia pelos humanistas que se ocuparam de textos latinos eram bem mais lmpidas do que as utilizadas pelos humanistas que se ocuparam de textos gregos, as quais se revelam extraordinariamente carregadas de incrustaes multisseculares. Por fim, foram os prprios gregos doutos que saram de Bizncio para a Itlia que, com sua autoridade, avalizaram uma srie de convices destitudas de fundamentos histricos.Assim, tudo isso explica perfeitamente a situao contraditria que se criou: enquanto, por um lado, humanistas como Valla denunciavam como falsificaes documentos latinos consagrados, por outro lado, ao contrrio, humanistas como Ficino reafirmavam e reconsagravam a autenticidade de flagrantes falsificaes gregas tardio-antigas, com resultados de grande alcance para a histria do pensamento filosfico, como veremos agora.4.2.Hermes Trismegisto e o Corpus Hermeticum em sua realidade histrica e na interpretao do RenascimentoComecemos por Hermes Trismegisto, e pelo Corpus Hermeticum, que tiveram a maior importncia e celebridade no Renascimento. Hoje, sabemos com certeza o que vamos expor.Hermes Trismegisto figura mtica, que nunca existiu. Essa figura mtica indica o deus Toth, dos antigos egpcios, considerado inventor das letras do alfabeto e da escrita, escrita dos deuses e, portanto, revelador, profeta e intrprete da sabedoria divina e do logos divino. Quando tomaram conhecimento desse deus egpcio, os gregos acharam que ele apresentava muitas analogias com o seu deus Hermes (= o deus Mercrio dos romanos), intrprete e mensageiro dos deuses, qualificando-o ento com o adjetivo Trismegisto, que significa trs vezes grande (trismgistos = termaximus).Na Antigidade tardia, particularmente nos primeiros sculos da poca imperial (sobretudo nos sculos II e III d.C.), alguns telogos-filsofos pagos, em contraposio ao cristianismo que se expandia, produziram uma srie de escritos que apresentaram sob o nome desse deus, com a evidente inteno de contrapor s Escrituras divinamente inspiradas dos cristos outras escrituras, apresentadas tambm como revelaes divinas.As pesquisas modernas determinaram, sem qualquer sombra de dvida, que sob a mscara do deus egpcio ocultam-se diversos autores e que, nesses textos, so bastante escassos os elementos egpcios? Na realidade, trata-se de uma das ltimas tentativas de ressurgimento do paganismo, amplamente baseada em doutrinas do platonismo daquela poca (o medioplatonismo).Dentre os numerosos escritos atribudos a Hermes Trismegisto, o grupo claramente mais interessante constitudo por dezessete tratados (o primeiro dos quais leva o ttulo de Pimandro) mais um escrito que s chegou at ns em uma verso latina (que, no passado, era atribuda a Apuleio) de um tratado intitulado Asclpio (talvez elaborado no sculo IV d.C.). precisamente esse grupo de escritos que denominado Corpus Hermeticum (= corpo dos escritos que se colocam sob o nome de Hermes).A Antiguidade tardia aceitou todos esses escritos como autnticos. Os Padres cristos, que neles encontraram acenos a doutrinas bblicas (como veremos), ficaram muito impressionados e, conseqentemente, convencidos de que eles remontavam poca dos patriarcas bblicos, pensando assim que fossem obra de uma espcie de profeta pago. Foi assim que pensou Lactncio, por exemplo, como tambm, em parte, santo Agostinho. Ficino consagrou solenemente essa convico e traduziu o Corpus Hermeticum, que se tornou um texto basilar do pensamento humanista-renascentista. Assim, por volta de fins do sculo XV (1488), Hermes foi solenemente acolhido na catedral de Siena, com uma efgie no pavimento sobre a inscrio Hermes Mercurius Trismegistus, Contemporaneus Moysi.35Esse sincretismo entre doutrinas greco-pags, neoplatonismo e cristianismo, to difundido no Renascimento, baseia-se em grande medida nesse colossal equvoco. Desse modo, muitos aspectos doutrinrios do Renascimento, considerados estranhamente paganizantes e estranhamente hbridos, se apresentam agora sob uma justa luz.Mas, para entendermos bem esse ponto, essencial para se estabelecer as diferenas do Renascimento tanto em relao Idade Mdia como em relao poca moderna, conveniente resumir as doutrinas de fundo do Corpus Hermeticum.Deus concebido em funo dos conceitos de incorpreo, de transcendncia e de infinitude; tambm concebido como Mnada e Uno, princpio e raiz de todas as coisas; por fim, tambm expresso em funo da imagem da luz. As teologias negativa e positiva se entrelaam: por um lado, tende-se a conceber Deus como estando acima de tudo, como totalmente outro de tudo aquilo que existe, como sendo sem forma e sem figura e, portanto, como privado de essncia e, por isso, inefvel; por outro lado, reconhece-se que Deus Bem e Pai de todas as coisas e, portanto, causa de tudo e, enquanto tal, tende-se a represent-lo positivamente. Um dos tratados, por exemplo, diz que Deus , ao mesmo tempo, aquilo que invisvel e aquilo que mais visvel.A hierarquia dos intermedirios que vai de Deus ao mundo concebida do seguinte modo:1) No vrtice, encontra-se o Deus supremo, que Luz suprema e Intelecto supremo, capaz de gerar por si s.2) Segue-se o Logos, que filho primognito do Deus supremo.3) Do Deus supremo deriva tambm um Intelecto demirgico que, portanto, um secundognito, mas expressamente considerado consubstancial em relao ao Logos.4) Segue-se o Anthropos, ou seja, o Homem incorpreo, tambm derivado de Deus e imagem de Deus.5) Por fim, segue-se o Intelecto que dado ao homem terreno (rigorosamente distinto da alma e claramnente superior a ela), que o que de divino existe no homem (e que, alis, em certo sentido, o prprio Deus no homem), desempenhando papel essencial na tica, na mstica e na soteriologia hermtica.Ademais, o Deus supremo concebido como se explicitando em nmero infinito de foras e tambm como forma arquetpica e como o princpio do princpio, que no tem fim.O Logos e o Intelecto demirgico so os criadores do cosmos. Eles agem de modo diverso sobre a escurido ou treva, que originariamente se separam e dualisticamente se ope ao Deus luz. E constroem um mundo ordenado. So produzidas e postas em movimento as esferas celestes. Ento, do movimento dessas esferas so produzidos os seres privados de razo (que, no primeiro momento, nascem todos bissexuais).Mais complexa a gerao do homem terrestre. O Anthropos ou Homem incorpreo, trciognito do Deus supremo, deseja imitar o Intelecto demirgico e tambm criar algo. Obtendo o consentimento do Pai, o Anthropos atravessa as sete esferas celestes at Lua, recebendo por participao as foras de cada uma delas, e depois se debrua sobre a esfera da Lua e v a natureza sublunar. Ento, o Anthropos apaixona-se por essa natureza e, por seu turno, a natureza se apaixona pelo homem. Mais precisamente, o Homem se apaixona por sua prpria imagem refletida na natureza (na gua), colhido pelo desejo de unir-se a ela e, assim, cai. Desse modo que nasce o homem terrestre, com sua dupla natureza, espiritual e corprea.Na verdade, o autor hermtico do Pimandro complica notavelmente a sua antropogonia. Com efeito, do acasalamento do homem incorpreo com a natureza corprea no ocorre imediatamente o nascimento do homem comum: ao invs disso, nascem sete homens (sete como as esferas dos planetas), cada qual macho e fmea ao mesmo tempo. E tudo permanece nessa condio at o momento em que, por vontade do Deus supremo, os dois sexos dos homens (e dos animais, que j haviam nascido por efeito do movimento dos planetas) so divididos, recebendo o mandamento bblico de crescerem e se multiplicarem: Crescei aumentando e multiplicai-vos em quantidade todos vs que fostes criados e produzidos; e quem possui o intelecto reconhea-se a si mesmo como imortal, saiba que a causa da morte o amor (eros) e conhea tudo aquilo que existe.Substancialmente, a mensagem do hermetismo (da qual decorreu todo o seu sucesso) se afunila em uma doutrina da salvao. E suas teorias metafisico-teolgico-cosmolgico-antropolgicas nada mais so do que um suporte para essa soteriologia.Assim como o nascnerito do homemterreno deve-se queda do Anthropos (o Homem incorpreo), que queria unir-se natureza material, da mesma forma a sua salvao consiste em libertar-se dos laos materiais. Os meios para a libertao so os indicados pelo conhecimento (gnose) da doutrina hermtica. Antes de mais nada, o homem deve conhecer-se a si mesmo e convencer-se de que sua natureza consiste no intelecto. E, como o intelecto parte de Deus (Deus em ns), reconhecer-se a si mesmo desse modo significa reconhecer a Deus. Todos os homens possuem o intelecto, mas somente em estado potencial: possui-lo em ato ou perd-lo coisa que depende de cada homem.Se o intelecto abandona o homem s por causa da vida m que o homem leva, sendo portanto por culpa do prprio homem: Amide o intelecto voa para fora da alma. E, nesse momento, ela no mais capaz de ver nem de ouvir, tornando-se semelhante a um ser sem razo, tal a potncia do intelecto! Por outro lado, o intelecto no pode suportar uma alma turva, abandonando-a ento ao corpo, que a oprime aqui na terra. Tal alma, meu filho, no possui o intelecto; assim, tal ser no deve ser chamado homem.No entanto, se o intelecto est presente no homem por causa da escolha do bem por ele realizada, tornando-o digno de tal dom divino. O homem no deve esperar a morte fsica para alcanar o seu fim, ou seja, para se divinizar. Com efeito, ela pode se regenerar, libertando-se das foras negativas e ms e dos tormentos das trevas, atravs das foras divinas do bem, at alcanar distanciamento do corpo, purificando assim o seu intelecto e, desse modo, unindo-se extaticamente ao Intelecto divino, por meio da graa de Deus.Nessa complexa viso, considerada mais ou menos to antiga quanto os mais antigos livros da Bblia, os homens do Renascimento no podiam deixar de ficar impressionados com os acenos ao filho de Deus, ao Logos-divino, que lembra o Evangelho de Joo. O tratado XIII do Corpus Hermeticum contm at uma espcie de Sermo da montanha e afirma que a obra de regenerao e salvao do homem deve-se ao filho de Deus, definido como homem por querer de Deus. Ficino chegou a considerar o Corpus Hermeticum at mais rico que os prprios textos de Moiss, no sentido em que ele prev a encarnao do Logos, do Verbo, dizendo que a Palavra do Criador o Filho de Deus.Essa estupefao diante do profeta pago (to antigo quanto Moiss) que fala do Filho de Deus levou aceitao, pelo menos parcial, da estrutura astrolgica e gnstica da doutrina. E no apenas isso: como o Asclepius tambm fala expressamente de prticas de magia simptica, Ficino e outros encontraram em Hermes Trismegisto uma espcie de justificao e legitimao da prpria magia, embora entendida em um novo sentido, como veremos. A complexa viso sincretista de platonismo, cristianismo e magia, que constitui uma das marcas do Renascimento, encontra assim em Hermes Trismegisto, priscus theologus, uma espcie de modelo ante litteram ou, pelo menos, uma significativa srie de estmulos extremamente nutrientes. Portanto, sem o Corpus Hermeticum no possvel entender o pensamento renascentista.Com toda razo, portanto, Yates conclui: Os mosaicos de Hermes Trismegisto e das Sibilas foram colocadas na catedral de Siena durante a dcada de 80 do sculo XV. A representao de Hermes Trismegisto nesse prdio cristo, to acentuadamente prxima entrada, equivalendo a atribuir-lhe uma posio espiritual proeminente, no constitui um fenmeno local isolado, mas sim um smbolo de como ele era considerado pelo Renascimento italiano e um prenncio do seu extraordinrio sucesso no sculo XVI e at no sculo XVII em toda a Europa?4.3. O Zoroastro do RenascimentoUm documento que apresenta muitas analogias com os escritos hermticos constitudo pelos chamados Orculos caldeus, uma obra em hexmetros da qual numerosos fragmentos chegaram at ns. Com efeito, pode-se encontrar em ambos os escritos a mesma mistura de filosofemas (extrados do medioplatonismo e do neopitagorismo), com acentuao do esquema tridico e trinitrio e com representaes mticas e fantsticas, apresentando um tipo anlogo de religiosidade recomposta de inspirao oriental, caracterstica do paganismo tardio, conjugada com uma anloga pretenso de transmitir uma mensagem revelada. Nos Orculos, alis, o elemento mgico predomina ainda mais claramente do que no Corpus Hermeticus ao passo que o componente especulativo se enfraquece e se submete a objetivos prticos religiosos a ponto de perder toda a sua autonomia.Qual a gnese dessa obra? As fontes antigas parecem indicar que o seu autor foi Juliano, denominado o Teurgo, filho de Juliano, dito o Caldeu, que viveu na poca de Marco Aurlio, ou seja, no sculo II d.C. Com efeito, como esses Orculos so mencionados j no sculo III d.C. tanto por escritores cristos como por filsofos pagos e como o seu contedo expresso de uma mentalidade e um clima espiritual tpicos da poca dos Antoninos, como reconhecem quase todos os estudiosos, no impossvel que seu autor tenha sido realmente Juliano, o Teurgo, como muitos estudiosos j tendem a admitir, embora com as devidas cautelas.Alm da sabedoria egpcia ( qual os escritos hermticos tambm se referem), os Orculos tambm se vinculam sabedoria babilnia. Com efeito, a heliolatria caldica (o culto do Sol e do fogo) desempenha papel fundamental nesses escritos.Esse Juliano, que, como dissemos, pode ser considerado com verossimilhana como o autor dos Orcutos caldeus, tambm foi o primeiro a ser denominado (ou que se fez denominar) teurgo. Ora, o teurgo difere essencialmente do telogo, j que este, como j se notou h muito tempo, limita-se a falar acerca dos deuses, ao passo que aquele evoca os deuses e atua sobre eles.Mas o que exatamente a teurgia? A teurgia a sabedoria e a arte da magia, utilizadas para41finalidades mstico-religiosas. E so precisamente essas finalidades mstico-religiosas que constituem o dado caracterstico que distingue a teurgia da magia comum. Os estudiosos modernos observaram que enquanto a magia vulgar faz uso de nomes e frmulas de origem religiosa com objetivos profanos, a teurgia, ao contrrio, faz uso das mesmas coisas com fins religiosos. E esses fins, como sabemos, so a libertao da alma em relao ao corpreo e fatalidade a ele ligada e a conjuno com o divino.Isso o que se conseguiu estabelecer at hoje. Mas os renascentistas no pensavam assim, induzidos que foram a grave erro por abalizado douto bizantino, Jorge Gemisto, nascido em Constantinopla por volta de 1355, que se fez denominar Pleton. Considerando ser Zoroastro o autor dos Orculos caldeus (induzido em erro por um de seus mestres) e indo para a Itlia por ocasio do Concilio de Florena, ministrou lies sobre Plato e sobre a doutrina dos Orculos, acreditando-os como expresso do pensamento de Zoroastro e suscitando notvel interesse por eles.Assim, Zoroastro foi considerado como profeta (priscus theologus), sendo por vezes apresentado at como anterior a Hermes ou como primeiro por cronologia e dignidade junto a ele. Na realidade, Zoroastro (= Zaratustra) foi reformador religioso iraniano do sculo VII/VI a.C., que no tem nada a ver com os Orculos caldeus.Esse novo equvoco, portanto, contribuiu grandemente para a difuso da mentalidade mgica no Renascimento.4.4. O Orfeu renascentistaOrfeu foi poeta mstico da Trcia. A ele ligava-se o movimento religioso mistrico chamado rfico devido ao seu nome, do qual j falamos no primeiro volume. J no sculo VI a.C. esse poeta-profeta era chamado Orfeu famoso de nome.Em relao ao Corpus Hermeticum e aos Orculos Caldeus, o orfismo representa uma tradio muito mais antiga, que influenciou Pitgoras e Plato, sobretudo no que se refere doutrina da metempsicose.Mas muitos dos documentos que chegaram at ns como rficos so falsificaes posteriores, nascidas na poca helenstico-imperial. O Renascimento conheceu sobretudo os Hinos rficos. Nas atuais edies, esses hinos so oitenta e sete, mais um promio. So dedicados a vrias divindades, distribuindo-se seguindo uma ordem conceitual precisa. Ao lado de doutrinas que remontam ao orfismo original, contm ainda doutrinas esticas e doutrinas provenientes do meio filosfico-teolgico alexandrino, sendo portanto, seguramente, de composio tardia. Mas os re43nascentistas os consideravam autnticos. Ficino cantava esses hinos para obter a influncia benfica das estrelas.Segundo o prprio Ficino, na genealogia dos profetas, Orfeu foi sucessor de Hermes Trismegisto e muito prximo a ele. Pitgoras ligava-se diretamente a Orfeu. Plato teria haurido a sua doutrina de Hermes e de Orfeu. Assim, Hermes, Orfeu e Plato eram ligados em uma conexo que constitui o alicerce de toda a construo do platonismo renascentista, que, conseqentemente, mostra-se completamente diferente do platonismo medieval.Est claro, portanto, que se no se levar em conta todos os fatores que recordamos, se nos escapa toda possibilidade de captar o significado da proposio metafsico-teolgico-mgica da doutrina da Academia fiorentina e de grande parte do pensamento dos sculos XV e XVI.A tudo isso deve-se agregar ainda a enorme autoridade granjeada pelo pseudo-Dionsio Areopagita, que j era apreciado na Idade Mdia, mas agora passava a ser lido com outros interesses (Ficino tambm realizou uma traduo latina dos escritos de Dionsio). Esse autor, como sabemos, no o santo convertido por so Paulo em Atenas, mas sim autor neoplatnico tardio (cf. vol. 1, p. 308). E tambm essa falsificao contribuiu para criar aquele clima especial de que falamos. luz do que foi dito at agora, podemos passar ao exame do pensamento dos vrios humanistas e das diversas tendncias e correntes filosficas humanstico-renascentistas.Captulo IIIDIAS E TENDNCIAS DO PENSAMENTO HUMANSTICO-RENASCENTISTA1. Os debates sobre os problemas morais e o neo-epicurismol.1. Os primrdios do humanismo1.1.1. Francisco PetrarcaComo j dissemos, Francisco Petrarca (1304-1374) considerado unanimemente como o primeiro humanista. Isso j estava muito claro para todos j nas primeiras dcadas do sculo XV, quando Leonardo Bruni escrevia solenemente: Francisco Petrarca foi o primeiro, tendo tanta graa e engenho que reconheceu e trouxe luz a antiga graciosidade do estilo perdido e extinto.E como foi que Petrarca chegou ao humanismo? Partindo do exame e da atenta anlise da corrupo e da impiedade de seu tempo, ele procurou identificar suas causas, para tentar remedi-las. E, em sua opinio, as causas eram basicamente duas, estreitamente ligadas entre si: 1) a propagao do naturalismo difundido pelo pensamento rabe, especialmente por Averris; 2) o predomnio indiscriminado da dialtica e da lgica, com a respectiva mentalidade racionalista. E julgou fcil indicar os antdotos para esses dois males: 1) ao invs de nos desperdiarmos no conhecimento puramente exterior da natureza, preciso nos voltarmos para ns mesmos, objetivando o conhecimento de nossa prpria alma; 2) ao invs de nos perdermos nos vazios exerccios dialticos, precisamos redescobrir a eloquncia, as humanae litterae ciceronianas.Com isso, ficam perfeitamente delineados o programa e o mtodo do filosofar prprio de Petrarca: a verdadeira sabedoria est em conhecer-Se a si mesmo e o caminho (o mtodo) para alcanar essa sabedoria est nas artes liberais.Eis algumas exemplificaes eloqentes dessas idias. No escrito Sobre a prpria ignorncia e a de muitos outros, contra o naturalismo dos averrostas, Petrarca escreve: Ele (= o averrosta) sabe muitas coisas sobre as feras, os pssaros e os peixes e conhece muito bem quantos plos o leo tem na juba, quantas penas tem o pavo na cauda, com quantos tentculos o polvo envolve o nufrago (segue-se um longo e pitoresco elenco de curiosidades do mesmo gnero dessas). Em grande parte, essas coisas so falsas, o que aparece quando se pode fazer a sua experincia, ou so desconhecidas para aqueles mesmos que as afirmam; assim, elas so criadas com muita facilidade, porque distantes, e aceitas muito livremente; mas, mesmo que fossem verdadeiras, de nada serviriam para uma vida feliz. Eu, com efeito, me pergunto para que serve conhecer a natureza das feras, dos pssaros, dos peixes e das serpentes, mas ignorar ou no procurar conhecer a natureza do homem, porque nascemos, de onde viemos, para onde vamos (traduo de M. Capelli).Mas a passagem mais famosa, indubitavelmente, aquele trecho da Epstola que narra a subida ao monte Ventoso. Chegando ao cume do monte depois de uma longa caminhada, Petrarca abriu As confisses de santo Agostinho e as primeiras palavras que leu foram estas: E os homens vo admirar os altos montes, as grandes ondas do mar, os largos leitos dos rios, a imensidade do oceano e o curso das estrelas, mas esquecem-se de si mesmos. E eis o seu comentrio: Fiquei estupefato, confesso; disse ao meu irmo, que ainda desejava ouvir mais, que no me perturbasse; e fechei o livro, enraivecido comigo mesmo por aquela minha admirao pelas coisas terrenas, embora h muito tempo j devesse ter aprendido, inclusive com os filsofos pagos, que nada digno de admirao alm da alma, para a qual nada grande demais (traduo de E. Bianchi).Analogamente, no que se refere ao segundo ponto que apontamos, Petrarca insiste no fato de que a dialtica leva impiedade e no sabedoria. O sentido da vida no revelado por montes de silogismos, mas sim pelas artes liberais, cultivadas oportunamente, isto , no como fins em si mesmas, mas como instrumentos de formao espiritual.E eis como a antiga definio de filosofia dada por Plato no Fdon apresentada como coincidente com a viso crist no escrito Invectiva contra um mdico: Meditar profundamente sobre a morte, armar-se contra ela, dispor-se a desprez-la e suport-la e, se necessrio, enfrent-la, dando esta breve e msera vida em troca da vida eterna, da felicidade e da glria eis a verdadeira filosofia, que alguns disseram nada mais ser do que o pensamento da morte. Uma explicao da filosofia que, embora encontrada pelos pagos, prpria contudo dos cristos... (traduo de E. di Leo).Conseqentemente, pode-se compreender perfeitamente que a contraposio entre Aristteles e Plato se apresentava como inevitvel. Em si mesmo, Aristteles respeitvel, mas foi ele quem forneceu as armas para os averrostas, sendo utilizado para construir aquele naturalismo e aquela mentalidade dialtica a que Petrarca tinha tanta averso. Assim, Plato (um Plato que, no entanto, ele no podia ler, pois no conhecia o grego) torna-se o smbolo do pensamento humanista, o prncipe de toda filosofia. No escrito Sobre a prpria ignorncia e a de muitos outros, podemos ler: Mas quem, perguntaro alguns, deu esse primado a Plato? No eu, responderei, mas sim a verdade, como dizem, j que, se ele no a alcanou, ficou-lhe bem prximo, muito mais do que os outros, como o reconhecem Ccero, Virglio, que o seguiu sem nome-lo, Plnio, Plotino, Apuleio, Macrbio, Porfrio, Censorino, Jos e, entre os nossos, Ambrsio, Agostinho, Jernimo e muitos outros, o que se poderia provar facilmente, se de todos j no fosse conhecido. E quem lhe negou tal primado, excetuando-se o tolo e barulhento rebanho dos escolsticos? (traduo de L.M. Capelli).Para concluir, citamos uma afirmao que mostra a que altura Petrarca havia elevado a dignidade da palavra, que, em certo sentido, se tornaria para os humanistas aquilo que h de mais importante: Pois Scrates, vendo um belo jovem em silncio, disse-lhe: Fala, para que eu possa ver-te! Pois ele pensava que no tanto pela fisionomia que se v o homem, mas pelas palavras.E esse poderia inclusive ser o lema do movimento humanista: no tanto pela fisionomia que se v o homem, mas pelas palavras.1.1.2. Coluccio SalutatiO caminho aberto por Petrarca foi seguido com sucesso por Coluccio Salutati, que nasceu em 1331 e que foi chanceler da Repblica de Florena de 1374 a 1406. Ele foi importante sobretudo pelos seguintes motivos: a) prosseguiu com grande vigor a polmica contra a medicina e as cincias naturais, reafirmando a tese da supremacia das artes liberais; b) contra a colocao dialtico-racionalista de sua poca, sustentou uma viso de filosofia entendida como mensagem testemunhada e transmitida com a prpria vida (como fez o pago Scrates e como fizeram Cristo e os santos como so Francisco) e centrada no ato da vontade como exerccio de liberdade; c) sustentou com fora especial o primado da vida ativa sobre a contemplativa; d) como operador cultural, teve o grande mrito de ter promovido a instituio da primeira ctedra de grego em Florena, sendo chamado Itlia para assumi-la o douto bizantino Emanuel Crisolora.As duas passagens que citamos a seguir, extradas respectivamente de uma Epstola e do tratado Sobre a nobreza das leis e da medicina (utilizando a traduo de E. Garin), ilustram muito bem a concepo do primado da vida ativa sobre a contemplativa, qual retornaria muitas vezes o pensamento do sculo XV e que constitui uma das marcas do humanismo: No acredites, peregrino, que fugir da multido, evitar a viso das coisas belas, encerrar-se em um claustro ou segregar-se em um ermo seja a vida da perfeio. Aquilo que d tua obra o nome da perfeio est em ti: est em ti a faculdade de acolher as coisas externas que no te tocam nem te podem tocar, bastando que a tua mente e a tua alma estejam recolhidas, deixando de se procurar nas coisas externas. Se o teu esprito no os admitir dentro de si, a praa, o foro, a cria e os lugares mais populosos da cidade sero como que um ermo, como que uma solido longnqua e perfeita. No entanto, se, na recordao das coisas distantes ou na seduo das coisas presentes, nossa mente voltar-se para o exterior, a que pode levar a vida solitria? Pois prprio do esprito pensar sempre em alguma coisa que se capte com os sentidos, que se incruste na memria, que se encontre com a argcia do intelecto ou que se imagine na febre do desejo. Dize-me, peregrino: quem acreditas que tenha sido mais caro a Deus, Paulo solitrio e inativo ou Abrao operoso? E Jac, com seus doze filhos, com tantos rebanhos, com duas mulheres, com tantas riquezas e tantos bens, no pensas que ele tenha sido mais caro ao Senhor do que os dois Macrios, Tefilo e Hilario? Acredita-me, peregrmo: so incomparavelmente maiores aqueles que se preocupam com as coisas do mundo do que aqueles que se dedicam s contemplao, de forma que h muito mais eleitos daquele do que deste estado.Para dizer a verdade, afirmo corajosamente e confesso candidamente que, sem inveja e sem contraste, deixo de bom grado para ti e para quem eleva ao cu a pura especulao todas as outras verdades, desde que se me deixe a cognio das coisas humanas. Podes permanecer cheio de contemplao, mas que, ao contrrio, eu possa ficar rico de bondade. Podes meditar por ti mesmo, procura o verdadeiro e regozija-te ao encontr-lo. (...) Que eu, ao contrrio, esteja sempre imerso na ao, voltado para o fim supremo. Que toda ao minha sirva a mim, famlia, aos parentes e o que ainda melhor que eu possa ser til aos amigos e ptria e possa viver de modo a servir sociedade humana pelo exemplo e pelas obras.491.2. Debates sobre temticas sociopolticas em alguns humanistas do sculo XV: L Bruni, P. Bracciolini e L B. Alberti1.2.1. Leonardo BruniLeonardo Bruni (1370/1374-1444), inicialmente funcionrio da Cria Romana e depois chanceler em Florena, foi discpulo, amigo e continuador da obra de Salutati. Os efeitos do ensino da lngua grega por Crisolora j se manifestam em Bruni frutos extraordinariamente maduros. Com efeito, ele traduziu Plato (Fdon, Grgias, Fedro, Apologia, Crton, Cartas e parcialmente O banquete), Aristteles (tica a Nicmaco, Econmicos, Apoltica), Plutarco e Xenofonte, Demstenes e Esquines. Revestem-se de interesse filosfico os seus Dilogos (dedicados a Pier Paolo Vergerio) e a Introduo promoo moral, alm das Epstolas.A faina de Bruni est ligada sobretudo s tradues de A poltica e tica a Nicmaco de Aristteles, que fizeram poca no apenas porque contriburam para mudar o tipo de abordagem desses textos, mas tambm porque forneceram uma linfa vital para a prpria especulao. Bruni ops ao humanismo espiritualista e intimista de Petrarca um humanismo mais empenhado poltica e civilmente. Para ele, precisamente, os clssicos so mestres de virtudes civis. Assim, para Bruni, paradigmtico o conceito aristotlico de homem entendido como animal poltico, que se torna o eixo do seu pensamento: o homem s se realiza plena e verdadeiramente na dimenso social e civil indicada por Aristteles em A poltica.Mas a tica a Nicmaco de Aristteles tambm reavaliada por ele: Bruni estava convencido de que sua dimenso contemplativa havia sido substancialmente exagerada e, em grande parte, deformada. O que vale mais no o objeto contemplado, mas sim o homem que pensa e, enquanto pensa, age. O sumo bem de que fala a tica a Nicmaco no um bem abstrato ou, de qualquer forma, transcendente ao homem, mas sim o bem do homem, a realizao concreta de sua virtude, que, como tal, nos d a felicidade. E, como Aristteles, Bruni reavalia o prazer, entendido sobretudo como conseqncia da atividade que o homem desenvolve segundo a sua natureza, como havia dito o Estagirita.Ainda como Aristteles, Bruni sustenta que o verdadeiro parmetro dos juzos morais o homem bom (e no uma regra abstrata). Entre outras coisas, em uma passagem memorvel, na qual alguns conceitos aristotlicos assumem as cores de um humanismo verdadeiramente especial, ele escreve: Antes de mais nada, preciso compreender o seguinte: se um homem no bom (= virtuoso), no pode ser prudente (= sbio). Com efeito, a50prudncia (= sabedoria) uma avaliao exata da utilidade e uma verdadeira avaliao incorrupta. Pois as coisas s podem aparecer como so para o homem bom. Os juzos dos maus so como o paladar dos doentes, que no provam o exato sabor de nada. Por isso, no h nada que os vcios mais prejudiquem do que a prudncia, j que o celerado e o mau podem captar exatas demonstraes matemticas e conhecimentos fsicos, mas ficam completamente cegos para as obras sbias, perdendo com isso o lume da verdade (...). Assim, o caminho da felicidade abre-se reto e livre para o homem bom. S ele no se engana nem erra. S ele vive bem, o contrrio do que faz o mau. Desse modo, se quisermos ser felizes, tratemos de ser bons e virtuosos.E Bruni conclui dizendo que, nesse ponto, os filsofos pagos e os cristos esto em perfeita harmonia: Uns e outros sustentam as mesmas coisas sobre a justia, a temperana, a fortaleza, a liberalidade e as outras virtudes, como os vcios a elas contrrios.1.2.2. Poggio BraccioliniPoggio Bracciolini (1380-1459) secretrio da Cria Romana e depois chanceler em Florena, tambm era muito ligado a Salutati. Ele foi um dos mais esforados e fervorosos descobridores de antigos cdices (cf. acima, pp. 17-18). Em suas obras, ele debate temticas que se haviam tornado cannicas nas discusses dos humanistas, particularmente as seguintes: a) o elogio da vida ativa em comparao com a ascese da vida contemplativa vivida em solido; b) o valor de formao humana e civil das litterae; c) a glria e a nobreza como fruto da virtude individual; d) a questo da fortuna, que torna instvel e problemtica a vida dos homens, mas contra a qual a virtude pode levar a melhor; e) a reavaliao das riquezas (j iniciada por L. Bruni na introduo aos Econmicos de Aristteles), consideradas como o nervo do Estado e como aquilo que torna possvel, nas cidades, os templos, os monumentos, a arte, os ornamentos e toda beleza.A propsito deste ltimo tema, E. Garin escreveu que nos encontramos diante de uma estranha e moderna valorizao do dinheiro, quando no do capital... Trata-se, portanto, de notvel antecipao.Mas queremos concluir com uma observao de Bracciolini sobre a virtude que, com belas variaes sobre temas esticos, sustenta ser a virtude autrquica, no necessitando de nada e sendo a nica fonte de verdadeira nobreza: Alm de ser verdadeira, essa doutrina mostra trazer grande utilidade para a nossa vida. Pois se nos convencermos de que os homens s se tornam nobres na honestidade e no bem e que a verdadeira nobreza aquela que cada um conquista agindo, no aquela que deriva da habilidade e do trabalho alheios, seremos mais impelidos (...) virtude e no vencidos pelo cio e sem fazer nada digno de louvor, nos deixaremos contentar com a glria alheia, mas sim tenderemos ns mesmos a nos apossar das insgnias da nobreza. Esse texto apresenta um dos pensamentos bsicos do humanismo: a verdadeira nobreza aquela que cada um conquista agindo. Um pensamento que nada mais do que uma variante de outro conceito basilar, de gnese romana, no menos caro a essa poca: cada qual artfice da prpria fortuna.1.2.3. Leon Battista AlbertiUma figura de humanista de interesses polidricos foi Leon Battista Alberti (1404-1472), que, alm das questes filosficas, tambm se ocupou de matemtica e de arquitetura. So conhecidos especialmente os seus escritos Sobre a arquitetura, Da pintura, Da famlia, Do governo da casa, Morno e Intercenais (recentemente descobert