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A mensagem cristã e sua contribuição ética
Introdução
Neste último capítulo de nosso trabalho, com a contribuição preciosa de alguns
expoentes na reflexão teológica cristã, iremos apontar alguns aspectos da fé cristã que
servem de suporte para uma fundamentação ética em nossos tempos. Buscaremos
apontar alguns elementos da mensagem cristã que, em nossa opinião, podem dar ao
homem pós-moderno uma resposta às suas inquietações, dinamizando princípios
autenticamente humanos, em vista de uma sociedade mais justa e fraterna. Veremos
que, em conformidade com o Novo Testamento, a vida de Jesus aparece como critério
determinante para toda experiência cristã. E aí estaria a essência da ética cristã.
Mediante as palavras e práticas de Jesus, como revelação plena do Pai, o
Reino de Deus se realiza e é oferecido livre e gratuitamente a todos. A partir dessa
iniciativa divina depreende-se a certeza de que Deus é amor e que deseja a salvação
de todos. Cabe a cada ser humano responder positiva ou negativamente, acolhendo ou
não a proposta salvífica. A acolhida, que se dá mediante a fé, implica um processo de
conversão, de abertura e fidelidade à vontade de Deus, a exemplo de Jesus. O
seguimento de Jesus, mediante a prática do amor-serviço, é apresentado como
caminho de salvação, de concretização do Reino de Deus. Sem dúvida, um caminho
profundamente ético. O compromisso com o Reino se expressa, sobretudo, em
atitudes de caridade para com os pobres e sofredores. Atitudes assim implicam,
naturalmente, um empenho na luta pela justiça, que é inerente à caridade. Há, no
entanto, a possibilidade de uma resposta negativa ao Reino, o que implica no
fechamento e na prática da injustiça. Superar esse fechamento egoísta e impulsionar
sempre mais uma abertura solidária é o grande desafio para a fé cristã.
Na parte final deste capítulo, abordaremos brevemente a dificuldade de
uma vivência autêntica da fé na pós-modernidade, em consonância com a
configuração própria deste tempo, como vimos no capítulo primeiro. Observaremos
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como a fragilidade da fé na pós-modernidade é uma das conseqüências da
supervalorização subjetiva, constituindo-se, assim, empecilho para uma verdadeira fé
cristã. Colaboram para isso as características marcantes da sociedade neoliberal, onde
os valores interpessoais assumem um caráter mais personalista e menos solidário.
Veremos como uma fé meramente subjetiva mais dificulta do que colabora para a
edificação do Reino. Por fim, buscamos mostrar como uma fé vivida de maneira
amadurecida, integral, comprometida, pode colaborar significativamente na
instauração de uma sociedade mais justa e mais humana. A proposta cristã, quando
aceita de forma esclarecida, se torna um eficaz meio de dinamização de valores e
princípios que fomentarão a esperança para a sociedade pós-moderna. A abertura a
Deus impulsiona o homem ao seu semelhante, e o faz solidário. É a base cristã para
uma ética mundial.
3.1. A Proposta Salvífica de Deus
O Deus cristão é um Deus que anseia pela salvação do ser humano. É um
Deus que se compadece e, movido por amor, se aproxima e revela seu projeto
salvífico. Nossa salvação é uma iniciativa de Deus, uma iniciativa totalmente gratuita
Dele.399 Dizer que é totalmente gratuita é dizer que não é movida por condição
alguma. Nada forçou, nem pode forçar e nem tem porque forçar essa aproximação,
visto que ela é dom e graça.400 A única justificativa dessa iniciativa divina é o amor.
A salvação humana é uma caminhada conjunta do homem com Deus. É Ele quem a
propõe e quem dá o primeiro passo também. Essa aproximação divina alcança sua
plenitude em Jesus Cristo. A partir da proposta divina chegamos, por meio da fé, a
reconhecer que nosso Deus é um Deus de Amor. Quem no-Lo revela assim é o
próprio Jesus.
399 FRANÇA MIRANDA, M., A Salvação de Jesus Cristo - a doutrina da Graça, p. 83. 400 SOBRINO, J., A Fé em Jesus Cristo - ensaio a partir das vítimas, p. 301.
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3.1.1. Jesus Cristo: revelação plena de Deus
“Quem me viu, viu o Pai!” (Jo 14,9). A partir dessa afirmação bíblica, a fé
cristã reconhece em Jesus a revelação mais autêntica de Deus. O Filho de Deus que
apresenta a proposta salvífica de Deus, o Messias que vem salvar. Se Jesus é, para os
cristãos, o Salvador, certamente “tudo o que podemos afirmar sobre a salvação tem
sua fonte na pessoa, na vida e na pregação de Jesus Cristo”.401 Ele é o único caminho
para a salvação: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vem ao Pai a não
ser por mim!” (Jo 14,6). Segundo as Escrituras, Jesus viveu em constante sintonia
com aquela que, segundo ele, era a verdadeira vontade divina, e ensinou a todos a
fazerem o mesmo (Mc 3,35; Jo 15,15b), em vista da própria salvação (Mt 7,21b). A
fé de Jesus implica deixar-se conduzir pela vontade de Deus, entregando a Ele sua
própria existência. Essa entrega pressupõe a experiência do Pai como Alguém que o
ama infinitamente.402 A partir da certeza desse amor, Jesus vive uma obediência filial,
descentrado de si mesmo e centrado no Pai. Todo seu agir, toda sua vida, girou em
torno dessa certeza.
Essa maneira de viver, no entanto, preserva a liberdade de Jesus. Sua vida
está perpassada pelo espírito de liberdade e discernimento.
“Ao serviço daquilo que discerne está a liberdade de Jesus. A lei, o templo, as tradições religiosas foram relativizados, denunciados ou abolidos, conforme o caso. E o importante é que o exercício dessa liberdade não foi para defender um ideal liberal, mas para defender o amor, a justiça, a misericórdia”.403
Uma vida em conformidade com a vontade do Pai necessariamente exigia
de Jesus constante discernimento diante das situações concretas na sociedade onde
estava inserido. Uma sociedade humana que amargava situações de maldades e
injustiças que, para Jesus, se opunham à vontade do Pai. Alimentado e movido pela
experiência amorosa com o Pai, Jesus faz de sua vida uma existência para os outros,
uma doação constante aos pobres, pecadores e marginalizados. Sua relação com estes
está fundamentalmente sintonizada à sua relação com o Pai. “Se Jesus foi um homem
401 FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 32. 402 Ibid., p. 72. 403 SOBRINO, J., op. cit., p. 485.
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para os outros, isto se deveu a que Ele fosse primeiramente um homem para Deus”.404
O modo como Jesus tratava os que estavam à sua volta, seus semelhantes,
correspondia à sua imagem de Deus.
“Sua vida foi coerente com sua imagem de Deus, um Deus cuja bondade e misericórdia a ninguém exclui. Um Deus que aceita o ser humano por ser tal, e não pelo que ele realiza no campo religioso ou moral. O agir concreto de Jesus demonstra e revela o agir e o ser de Deus”.405
Havia uma conexão profunda, uma sintonia perfeita, entre a fé de Jesus,
que o levava a confiar no Pai, e sua prática, que o levava a fazer a vontade do Pai.
Seu agir libertador, aliado à denúncia de toda injustiça, e sua mensagem de esperança
delineavam a proposta do Reino de Deus como uma novidade absoluta, a Boa Nova.
Seu anúncio por meio de palavras e seu testemunho prático chamaram atenção,
suscitando seguidores e perseguidores.
“Os pobres encontraram em Jesus alguém que os amava e os defendia, que procurava salvá-los simplesmente porque estavam em necessidade. Seus seguidores, discípulos, homens e mulheres próximas sentiram o impacto de sua autenticidade, verdade, firmeza e, em última instância, de sua bondade”.406
Para o povo sofrido, Jesus representava uma esperança de libertação, de
salvação. Em Jesus Cristo está o sublime exemplo de que a ação salvífica de Deus se
dá pela mediação humana.407 Em seu agir encontram resposta os apelos do próximo,
da viúva, do órfão, do pobre, do injustiçado, do oprimido, do marginalizado, do
egoísta solitário, do inimigo, enfim, de todo necessitado. Em cada ação libertadora de
Jesus, Deus revela sua essência, seu modo de ser: amoroso, misericordioso. Muito
mais do que um mero sentimento, essa misericórdia é uma reação ao sofrimento que
alguns seres humanos infligem a outros. É um assumir o sofrimento das vítimas.408
Essa ação salvífica de Deus se manifesta em sua plenitude na ressurreição de próprio
Jesus, núcleo central de nossa fé. Visto que o ressuscitado é uma vítima, produto da
404 FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 77. 405 Ibid., p. 35. 406 SOBRINO, J., op. cit., p. 320. 407 FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 139. 408 SOBRINO, J., op. cit., p. 132.
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opressão, a partir daí pode-se chamar a Deus de “o Deus das vítimas”.409 Dessa
forma, a mensagem cristã é esperança de salvação para todos os sofredores. Em
Jesus, essa proposta divina se revela plenamente.
À luz da fé cristã, a salvação que Deus nos propõe só tem sentido em
consonância com a pessoa de Jesus. Desvinculada da existência concreta de Jesus de
Nazaré, a salvação não passa de uma expressão formal, vazia e insignificante.410 Jesus
é o amor de Deus tornado visível na história e assim provocando o nosso amor.
“Jesus é não só a manifestação, mas também a realização histórica do amor incondicionado de Deus para com a humanidade. Essa realização implicou não somente assumir nossa condição humana, não somente solidarizar-se com os pecadores, pobres e excluídos, mas ainda a entrega da própria vida por nós pecadores”.411
A totalidade da vida de Jesus, nesse sentido, é manifestação plena da
misericórdia divina, que assume a humanidade para salvá-la. A partir da vida de
Jesus, de seus feitos e de suas palavras, até sua morte e ressurreição, chega-se à idéia
de que ele é o Filho enviado ao mundo pelo Pai, no qual o próprio Pai se dá a
conhecer.412 O Evangelista João apresenta as obras de Jesus como “sinais” que
expressam a realidade de Deus e exprimem Seu amor (Jo 5,19-20). No entanto, para
reconhecer em Jesus a presença do próprio Deus (Jo 10,38), é preciso estar em
sintonia com Deus, isto é, estar disposto a amar como Ele ama.413 Dizer que Jesus é a
revelação plena de Deus não significa dizer simplesmente que as palavras e ações de
Jesus apontam para Deus. Muito mais do que alguém que fala sabiamente de Deus ou
que realiza fielmente a Sua vontade, Jesus é “a carne de Deus em nossa história”.414
Jesus Cristo, Verbo feito carne, enviado “como homem aos homens”, “fala” portanto
“as palavras de Deus (Jo 3,34) e consuma a obra de salvação que o Pai lhe mandou
realizar (Jo 5,36; 17,4).”415 Não fosse assim, não teria sentido a afirmação evangélica
“Quem me viu, viu o Pai!” (Jo 14,9).
409 SOBRINO, J., op. cit., p. 133. 410 FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 74. 411 Ibid., p. 79. 412 LADÁRIA, L. F., O Deus Vivo e Verdadeiro - O mistério da Trindade, p. 57. 413 SOBRINO, J., op. cit., p. 281. 414 Ibid., p. 303. 415 Dei Verbum, n. 04.
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“Em palavras que todos podem entender, quando Jesus acolhe os pobres e pecadores, Deus os acolhe; quando Jesus fustiga os opressores, Deus os fustiga; quando Jesus se alegra comendo com publicanos e prostitutas, Deus se alegra; quando Jesus sofre na cruz, Deus sofre na cruz... Quando nos perguntamos intelectual e existencialmente quem é Deus, a resposta é ‘olhemos para Jesus’”.416
Nesse sentido, para a fé cristã, Jesus é a máxima expressão histórica da
realidade de Deus. E não há outro acesso ou ponto de partida para o conhecimento de
Deus que não a economia salvífica, isto é, a proposta de salvação divina revelada a
nós por Jesus. Imprescindível para isso é o que nos diz o Novo Testamento sobre
Jesus. Só podemos, então, conhecer a misteriosa realidade divina mediante a
revelação salvadora que Jesus faz de si mesmo. “O modo como a Trindade se
apresenta a nós na economia da salvação deve refletir como é em si mesma”.417 Em
Rahner encontramos uma preciosa contribuição à reflexão da unidade entre a
manifestação de Deus na história, isto é, sua comunicação, e a realidade divina em si
mesmo, imanente.418 Segundo ele, Deus se autocomunica, se revela, assim como é em
si mesmo. Dessa forma, não é uma representação divina, mas o próprio Deus
existindo em condição humana. É Deus que amorosamente sai de si e se aproxima do
ser humano, encarnando-se e assumindo a história humana.
“O âmbito da aproximação de Deus é a vida e a história dos seres humanos em tudo aquilo que estes têm de necessitados: de perdão e de cura, de pão e de esperança, de verdade e de justiça, como aparece na vida e na atividade de Jesus. Deus não se aproxima separado dessa vida e dessa história, mas nelas; nem outorga a salvação separando o ser humano dessa vida e dessa história, mas
416 SOBRINO, J., op. cit., p. 303. 417 LADÁRIA, L. F., op. cit., p. 39. 418 Para entendermos melhor a relação entre a Trindade em si e a Trindade que se revela na história, citamos uma explicação de Rahner: “Se pressupormos e retermos radicalmente que a Trindade na história da salvação e revelação é a Trindade ‘imanente’, visto que, na autocomunicação de Deus à sua criatura pela graça e encarnação, Deus realmente se doa a si mesmo e surge realmente como é em si mesmo, então, tendo em vista o aspecto histórico e econômico-salvífico presente na história da auto-revelação de Deus no Antigo e no Novo Testamento, podemos dizer: na história da salvação, quer coletiva quer individual, vêm ao nosso encontro imediato não quaisquer forças numinosas que representem a Deus, mas nos vem ao encontro e nos é dado na verdade o próprio Deus único, que em sua absoluta singularidade – que nada pode substituir ou representar – advém ele próprio onde nos achamos e onde o recebemos a ele próprio e como ele próprio em sentido estrito”. RAHNER, K., Curso Fundamental da Fé, p. 168.
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curando-o, humanizando-o, revigorando-o e comunicando-se a si mesmo nelas”.419
A fé cristã reconhece nesse gesto de Deus uma motivação especificamente
divina: Ele se aproxima porque é bom e porque deseja a salvação da humanidade. É
assim que Jesus apresenta a Deus, como alguém que perdoa os pecados, cura,
humaniza e plenifica. Nesse sentido, a aproximação de Deus é ativa (não meramente
“ficar aí”), permanente (não só esporádica) e irrevogável (não depende da resposta do
ser humano).420 Com sua atuação salvífica, Deus convida o ser humano à mesma
ação. Perdoando, convida a perdoar; amando, convida a amar; solidário, convida à
prática da caridade. Em Jesus encontra-se o sublime exemplo para todo homem e toda
mulher: sua obediência até a morte é mostra de sua perfeita acolhida do amor do
Pai.421 Com sua vida, Jesus responde ao amor paterno e ao mesmo tempo manifesta o
amor que o Pai tem por nós. Em várias de suas parábolas, Jesus fala desse amor
incondicional de Deus pelo ser humano, e em todas as suas atitudes ele o pratica. O
Reino de Deus, essência de todo anúncio de Jesus, se concretiza em seu agir.
3.1.2. O Reino de Deus
Como revelação plena de Deus, Jesus anuncia e realiza a salvação
mediante sua fidelidade à vontade do Pai. Essa fidelidade, a que todos os seus
discípulos e seguidores são chamados, supõe a acolhida de Sua proposta salvífica,
que torna possível o Reino de Deus. Fazer a vontade de Deus é professar a soberania
do perdão e da misericórdia, estruturando as relações humanas a partir do amor.
Entendemos, assim, que o centro de todo anúncio e prática de Jesus foi o Reino de
Deus, que ele acolheu e ensinou a acolher como dom, como gratuidade total da parte
de Deus. Ele não é fruto do esforço humano ou de suas realizações históricas, mas da
iniciativa amorosa de Deus. “O ser humano pode pedir sua vinda (Mt 6,10), buscá-lo
(Lc 12,32), estar preparado para sua chegada (Mt 24,44; 25,13), mas é o Pai quem o
419 SOBRINO, J., op. cit., p. 199. 420 Ibidem. 421 LADÁRIA, L.F., op. cit., p. 319.
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dá (Lc 12,32)”.422 O Reino de Deus é a configuração de um mundo novo, permeado
de relações novas, onde os famintos são saciados, os que choram são consolados, os
pecadores são perdoados, enfim, onde o sofrimento é afastado.
“Implica um mundo novo em que o mal e o sofrimento são vencidos; um mundo novo onde prevalecem a justiça, a fraternidade e a paz. A imagem do paraíso talvez seja a mais indicada para ilustrar o que seria a novidade do Reino de Deus. A harmonia com Deus propicia relações dialógicas entre os seres humanos, um relacionamento responsável entre estes e o meio ambiente, bem como uma relação de cada ser humano consigo próprio vivida na verdade e na sinceridade”.423
O Reino de Deus é iniciativa exclusiva da parte de Deus, é dom valioso
que não pode ser conquistado ou comprado, pois é oferecido gratuitamente a todos.
Da parte do ser humano, no entanto, espera-se abertura e alegre acolhida. Sempre que
Deus é acolhido e aceito como Deus surge o Seu reinado.424 Falar do Reino de Deus,
que se realiza em Jesus, é falar do próprio Deus, que se revela em Jesus. A Sagrada
Escritura apresenta a vinda do Reino como a manifestação da glória de Deus, o que
não implica um conjunto de leis a serem observadas, mas a soberania do amor e da
misericórdia.425 Quem mais necessita de amor e misericórdia, que se revela no
perdão, na solidariedade, na prática da justiça é, sobretudo, o carente e sofredor.
Embora seja um convite a todos, o Reino de Deus tem como destinatários
privilegiados aqueles que não têm “vida em abundância” (Jo 10,10), isto é, os pobres,
as crianças, os pecadores, os doentes. Esses, que certamente estavam longe da
salvação segundo a lei, poderão encontrar na gratuidade do Reino um caminho para a
salvação. A gratuidade do Reino se evidencia nos seus destinatários: eles não têm
como pagar, não são merecedores, mas são necessitados, sofredores. Então, felizes
são eles, pois o Reino lhes pertence! (Lc 6,20; 4,18; Mt 11,4-5).
Ao apontar o pobre como destinatário do Reino, o evangelista Lucas leva
em conta a situação objetiva de marginalização e de injustiça em que este se encontra.
Imbuído de compaixão e misericórdia, e sem levar em conta merecimento da parte
422 FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 33. 423 GARCIA RUBIO, A., O Encontro com Jesus Cristo Vivo: um ensaio de cristologia para os nossos dias, pp. 37-38. 424 Ibid., p. 38. 425 FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 33.
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dos destinatários, Deus ouve o clamor dos sofredores e, por meio de Jesus, os convida
a participar gratuitamente do Reino.
“O pobre é convidado a participar do Reino não porque seja melhor, mais hospitaleiro ou mais solidário do que o rico. O pobre pode ser tudo isso, mas Lucas não está falando no merecimento nem nas qualidades dos pobres. É a situação miserável e injusta em que a pessoa do pobre se encontra que faz com que o Deus do Reino intervenha em seu favor”.426
Condicionado ao critério de merecimento, o ser humano tem dificuldade
em aceitar que a proposta do Reino seja expressão total de gratuidade. Da mesma
forma como geralmente procuramos méritos nos pobres para justificar a afirmação
evangélica, também o fazemos em relação às crianças, a quem Jesus afirma pertencer
o Reino (Mc 10,13; Mt 11,25-26). Jesus também surpreende a todos com um
comportamento radicalmente novo em relação aos pecadores e necessitados (Mt
21,31; Mt 9,12-13): prostitutas, cobradores de impostos, doentes, paralíticos, etc. O
Reino de Deus se destina a eles, que eram desprezados e marginalizados. Excluídos
pela lei e pela sociedade “sem pecado”, restava-lhes serem acolhidos pela bondade
divina. Agindo divinamente, Jesus se aproxima deles, cura-os, vai à casa deles, come
com eles, perdoa-os.
“Este comportamento de Jesus, em conexão com a reconciliação e o perdão, gratuitamente oferecidos, constitui um sinal dos mais importantes da atuação do Reino de Deus no coração da história humana”.427
Movido por tão nobres sentimentos, Jesus ensina que os pobres, as
crianças, os pecadores, e todo tipo de sofredores vítimas da injustiça, são destinatários
da intervenção graciosa do Deus do Reino.428 Ao mesmo tempo, lança o desafio de
aceitar o Reino de Deus como um dom, um presente, uma realidade estupenda que
vai muito além de qualquer merecimento humano, como uma realidade assombrosa
que só o amor de Deus pode oferecer!429 Na atuação de Jesus, o Reino de Deus é mais
do que palavras. É realidade, é vida nova, é salvação.
426 GARCIA RUBIO, op. cit., p. 40. 427 Ibid., p. 45. 428 Ibid., p. 41. 429 Ibid., p. 42.
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“De fato, a salvação que Jesus faz acontecer diante das insuficiências humanas se revela pluriforme: cura doenças, reintegra leprosos na sociedade, prega a Boa Nova aos pobres, restitui ao ser humano o seu lugar diante da Lei, perdoa pecados, revela a misericórdia de Deus, possibilita experiências que despertam esperança e amor, numa palavra, traz vida a seus contemporâneos”.430
Em Jesus, o anúncio da chegada do Reino de Deus vem acompanhado de
sinais que demonstram já, agora, a atuação desse reinado. O Reino manifesta-se na
própria pessoa de Cristo, que veio “para servir e dar sua vida em resgate de muitos”
(Mc 10,45).431 A meta é a libertação e conseqüente salvação de cada ser humano,
especialmente os marginalizados, em quem a dor é maior. A libertação, no entanto,
implica a luta pela justiça. Se, por um lado, quem abraça a causa da justiça sofre
perseguição, por outro lado há uma certeza: deles é o Reino (Mt 5,10). A partir do
Sermão da Montanha, onde Jesus revela a gratuidade do Reino, podemos
fundamentar uma nova experiência de vida, que torna possível pagar o mal com o
bem, amar o próximo com um pouco mais de gratuidade.432 Aberto à escandalosa
gratuidade do amor de Deus, o ser humano é interpelado a amar como Jesus, irmão
primogênito que nos deixou o caminho que ele mesmo percorreu, o caminho do
Reino.433 Em cada ensinamento, em cada gesto seu, em cada milagre realizado, Jesus
espalhou sementes de esperança que, ao germinarem tornam presente o Reino de
Deus.
O Reino de Deus é uma proposta que nos ensina a olhar para além de
qualquer merecimento e reconhecer na vontade de Deus um caminho de vida nova,
capaz de fazer este mundo mais fraterno, mais justo e mais humano. A maravilhosa
novidade do Reino com sua radical gratuidade é a sublime manifestação de um Deus
que transborda de amor pela humanidade.
430 FRAÇA MIRANDA, op. cit., p. 19. 431 Lumen Gentium, nº 05. 432 GARCIA RUBIO, op. cit., p. 56. 433 SOBRINO J., op. cit., p. 215.
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3.1.3. Um Deus de Amor
A proposta salvífica de Deus é uma atitude amorosa. Iniciativa divina
incondicional. Jesus no-la revelou, como vimos anteriormente, através de sua própria
vida. Em suas palavras e ações realizou em tudo a vontade do Pai, mediante o amor-
serviço. Sua atuação, até a morte de cruz, foi sempre impulsionada por um amor
profundo e verdadeiro, como nos relatam as Sagradas Escrituras: “Assim como meu
Pai me amou, eu também amei vocês” (Jo 15,9). Como afirmávamos anteriormente,
Jesus é a revelação plena de Deus. É por meio dele que chegamos à afirmação
evangélica: Deus é amor!
“Amados, amemo-nos uns aos outros, pois o amor vem de Deus e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não conheceu a Deus, porque Deus é amor. Nisto manifestou o amor de Deus por nós: Deus enviou o seu Filho único ao mundo para que vivamos por ele. Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi Ele que nos amou e enviou-nos seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados. Amados, se Deus assim nos amou, devemos, nós também, amar-nos uns aos outros” (1Jo 4,7-11).434
A fé cristã reconhece em Deus a fonte de todo amor. Um amor que
transborda generosamente, sem qualquer motivação externa. Deus ama porque amar
faz parte de Sua essência, e não porque possamos ser merecedores de Seu amor. A
iniciativa amorosa de Deus se dá mediante o envio de Seu Filho com a missão de
salvar. Seu desejo de salvar é expressão de Seu amor. Seu amor, assim manifesto, “é
benevolência primigênia, e não é reação a algo de bom que sejamos ou façamos nós
seres humanos”.435 A gratuidade desse amor está sempre na origem da ação divina. É
iniciativa amorosa. É ação de amor. O que caracteriza nosso agir é expressão do que
caracteriza nosso ser. Claro está que um Deus que age movido por um amor tão
gratuito e verdadeiro, só pode ser um Deus de amor. O que impressiona é a
gratuidade escandalosa do gesto de Deus. Criação e salvação são iniciativas livres e
sem condicionamentos.
434 BÍBLIA DE JERUSALÉM, São Paulo, Paulus, 2002. 435 SOBRINO, J., op. cit. p. 301.
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“O querer divino não pode ser movido por motivo algum, já que é a liberdade absoluta, a absoluta autodeterminação. Assim não é levado por algo que provocasse essa sua liberdade, nem por algo que a necessitasse para nos criar e salvar. Nesse sentido, nada pode ser causa ou motivo, ocasião ou condição da criação ou da salvação: nem o ser humano, nem o pecado e nem mesmo Jesus Cristo. Nada tendo a ganhar com a criação e a salvação, sendo perfeitamente livre ao nos criar e salvar, identifica-se o ‘motivo’ da ação divina com o amor gratuito, livre, desinteressado, amor infinito”436.
A mais pura e verdadeira manifestação de amor encontra-se em Deus. Um
amor que se torna parâmetro para o amor humano (“assim como eu vos amei!” – Jo
15,12). Como vimos na proposta do Reino de Deus, o Deus cristão age movido
exclusivamente por amor. Um amor que não pode prescindir de mediações concretas
que o plasmem e expressam.437 Conteúdo fundamental da revelação divina, o mistério
do amor de Deus é algo que não podemos abarcar. Em Cristo, no entanto, se dá a
máxima manifestação do amor de Deus pelos homens.438 A partir de Cristo podemos
haurir a imagem de um Deus apaixonado pelo ser humano, que o ama sem impor
condições. Na prática de Jesus a “lei do amor” sempre foi absoluta.
“A vida concreta de Jesus, sua práxis e sua proclamação, demonstra que lei ou mandamento, sábado ou culto, prescrições ou tradições, são relativizadas diante do amor de Deus pelo ser humano, especialmente pelo mais pobre e necessitado. Esse, e não mais a Lei, é o livro sagrado onde se exprime a vontade de Deus”.439
Nas palavras e nas ações de Jesus é visível sua preocupação em manifestar
a todos o amor misericordioso do Pai, ao mesmo tempo em que interpela a amar da
mesma forma: “Sejam perfeitos como é perfeito o Pai de vocês que está no céu” (Mt
5,48); “se vocês obedecem aos meus mandamentos, permanecerão no meu amor,
assim como eu obedeci aos mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor” (Jo
15,10). Seus seguidores e discípulos são chamados a cultivar o mesmo amor que
provém de Deus. A maior prova de amor, no entanto, está em dar a vida pelos amigos
(Jo 15,13). E essa prova de amor se concretiza no mistério pascal, momento
fundamental da revelação do mistério de Deus amor. Na morte de Jesus manifestou-
436 FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 42. 437 Ibid., p. 132. 438 LADÁRIA, L.F., op. cit., p. 25. 439 FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 34-35.
152
se o amor que ele nos tem, mas também o amor do Pai por nós pecadores.440 Se no
agir de Jesus se revelava o agir de Deus, na cruz se realiza a doação total de Deus.
Nessa entrega se concretiza o supremo momento de amor. O amor mais profundo e
verdadeiro. Amor até as últimas conseqüências. Para o cristão, a cruz de Jesus está no
centro da revelação amorosa de Deus.441 Ela não representa uma derrota, e sim a mais
radical prova de amor. É a partir da atuação amorosa de Jesus que conhecemos o ser
amoroso de Deus.
“A partir da definição de Deus do Novo Testamento podemos dizer que Deus é amor, e para os seres humanos o amor tem também um como, sem o qual não é amor, ainda que fosse algo benéfico e libertador. Esse como que possibilita que Deus seja conhecido como amor é o modo de ser de Jesus e, reciprocamente, esse modo de Jesus é em si mesmo boa notícia”.442
Em seu modo de amar, Jesus nos mostra até onde pode chegar o amor
humano quando inspirado pelo amor de Deus. É importante uma diferenciação entre o
modo humano de amar e o modo divino. Geralmente o amor humano surge porque o
outro é digno de amor, ao passo que em Deus o amor é expressão de gratuidade total.
Em Jesus o amor chega ao seu cúmulo, à máxima realização, assim como chega ao
cúmulo a revelação da Trindade.443 A meta de toda pessoa deve ser o amor divino,
pois só assim é possível uma convivência verdadeiramente humana, onde há respeito,
perdão, solidariedade, justiça e fraternidade. “Ninguém jamais contemplou a Deus. Se
nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós, e o seu Amor em nós é
realizado. Nisto reconhecemos que permanecemos Nele e Ele em nós: ele nos deu seu
Espírito” (1Jo 4,12-13). Se o amor humano é tão limitado em relação ao amor de
Deus, é porque não o acolhemos plenamente. Em Jesus de Nazaré, plenamente
humano, o amor de Deus encontrou acolhida e o Espírito Santo o fez capaz de amar
“como o Pai” (Jo 15,9). Uma verdadeira experiência de Deus supõe uma relação de
amor: “... e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus” (1Jo 4,7b).
440 LADÁRIA, L.F., op. cit., p. 83. 441 Ibid., p. 92. 442 SOBRINO, J.,op. cit., p. 319-320. 443 LADÁRIA, L.F. op. cit., p. 93.
153
“Deus, como transcendente, inacessível, é mistério para o ser humano, e nunca pode ser experimentado na forma de um ‘objeto’. Sua ação salvífica em nós, que nos leva ‘para fora’ de nós mesmos em direção ao outro, que nos faz realizar o amor, é onde Deus pode, de algum modo, ser por nós ‘atingido’, ‘experimentado’. Como o amor acontece sempre entre pessoas, é nessa relação interpessoal que Deus se faz presente e, de certo modo, percebido pelo ser humano”.444
Nesse sentido, o amor autêntico a Deus não pode prescindir da experiência
do amor humano autêntico. O real significado do amor a Deus só pode ser captado
numa verdadeira relação amorosa com o outro. “Se alguém disser: ‘Amo a Deus’,
mas odeia seu irmão, é um mentiroso: pois quem não ama seu irmão, a quem vê, a
Deus, a quem não vê, não poderá amar” (1Jo 4,20). A prática do amor é o centro da
vida do cristão, pois testemunha concreta e visivelmente sua fé na Trindade. O perigo
fundamental da fé cristã se encontra exatamente na incoerência de se afirmar uma fé
na Trindade que não corresponda à prática do amor aos irmãos.
“O ágape cristão é simultânea e necessariamente amor a Deus e amor ao próximo. O ato de amor a Deus está fundamentado nessa experiência mais primordial do amor fraterno. Só nessa experiência sabemos se o amor a Deus é autêntico ou se não passa de palavras vazias”.445
Um Deus que age movido pelo amor só poderia ter como primeiro e
fundamental mandamento o amor, que se materializa na prática da caridade àqueles
que necessitam. Paulo vê no amor ao próximo o cumprimento pleno da lei, já que
todos os mandamentos se resumem no amor (Rm 13,10). João estabelece como o
grande mandamento de Jesus que nos amemos uns aos outros da mesma maneira
gratuita, generosa, livre e extrema, como ele nos amou (Jo 13,34). Tal maneira de agir
é salvífica porque expressa o jeito divino de agir, revelado por Jesus. O amor
concretizado em atitudes é o maior desafio da fé cristã para os nossos tempos.
444 FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 132. 445 Ibid., p. 133.
154
3.2. Acolhida Humana e Conversão
Diante da amorosa proposta salvífica de Deus, revelada por Jesus, o ser
humano precisa livremente dar uma resposta. Uma resposta positiva, de acolhida,
implica uma atuação em vista do Reino. Uma resposta negativa significa a rejeição da
salvação. Em Jesus o cristão encontra o exemplo mais autêntico de abertura e de
acolhida da salvação. Fazendo de sua existência uma vida para os outros, Jesus
testemunhou, com suas palavras e ações, o Deus de amor a quem se entregava todo e
a quem invocava como seu Pai.446 Essa atitude certamente contagiava aos discípulos,
que se sentiam aceitos e radicalmente amados por Deus e também experimentavam o
apelo a viver como Jesus, respondendo ao amor do Pai na entrega aos semelhantes.
Mais do que nunca, hoje o amor de Deus, manifestado em Jesus Cristo, nos estimula
a uma resposta positiva a Deus.
Embora o ser humano seja livre para acolher ou rejeitar a oferta salvífica
de Deus, sua aceitação é graça de Deus. A graça torna o homem capaz de dar os
passos necessários para sua salvação.447 Nesse sentido, tudo o que ele realiza em vista
de sua salvação é dom de Deus. A aceitação da graça salvífica não é um simples ato
de escolha, mas se dá no nível da orientação profunda da vida para Deus. Essa
orientação se manifesta em opções concretas de acordo com a vontade de Deus.
Aceitar Sua proposta é fazer Sua vontade, o que supõe a conversão. Conversão, aqui,
entendida como mudança de vida, abandonando atitudes “velhas”, injustas,
desumanas, e assumindo atitudes “novas”, fomentadas pelo amor. Nesse sentido, a
conversão está a serviço da humanização. Em seu apelo à conversão (Lc 3,8-14), João
Batista aponta para a necessidade de se produzir frutos que provem essa conversão. A
profissão de fé deve estar enraizada numa prática correspondente.448 Dessa forma, a
autenticidade da fé supõe a conversão, isto é, assumir atitudes novas em relação a
Deus e aos semelhantes. A expressão concreta de uma verdadeira fé cristã é uma vida
em conformidade com a vontade de Deus.
446 FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 56. 447 Ibid., p. 101. 448 GARCIA RUBIO, op. cit., p. 28.
155
3.2.1. A fé cristã
A confissão de fé cristã aponta para Jesus e tem nele seu fundamento, a
“pedra angular” (At 4,12), onde os cristãos encontram um sentido definitivo e
universal para a sua compreensão de Deus e para a sua salvação.449 Por meio dele, os
cristãos conhecem os desígnios de Deus e, vivendo como discípulos seus, buscam
responder concretamente Seu apelo salvífico. O cultivo da fé cristã implica viver
segundo a vontade de Deus, isto é, assumir uma prática sintonizada com a prática de
Jesus, que foi obediente ao Pai até a morte (Fl 2,8). Dessa forma, a vitalidade da fé
cristã se manifesta em atitudes concretas, em frutos de justiça, sem os quais a fé está
completamente morta (Tg 2,17).
Assumir a fé em Jesus como único caminho para a salvação não foi
tranqüilo para o cristianismo primitivo. Para a cultura judaica a Lei era o caminho
“oficial” para a salvação. Reconhecendo que o homem não se justifica pelas obras da
Lei, mas pela fé em Jesus Cristo (Gl 2,16), Paulo apresenta a fé como “alternativa
salvífica” à Lei: significa acolher o gesto de Deus oferecendo-nos gratuitamente, em
Jesus Cristo, a salvação.450 Não mais mediante as obras da Lei, mas mediante as obras
da Fé é que o cristão responde positivamente à proposta salvífica de Deus. A fé
apresenta-se como atitude básica, ou abertura total, para acolher a salvação (Rm 3,21-
31) e vivê-la na prática.
“A fé não é uma simples formulação doutrinal, dogmática. Não se restringe nem se entende prioritariamente como adesão às verdades reveladas. Ela é a práxis do cristão no conjunto de toda a sua vida. Envolve espiritualidade, liturgia, prática pastoral, luta pela justiça, compromissos sociais, vida moral etc. É dela que se parte em vista de mais lucidez, quer reforçando práticas anteriores, quer abandonando outras, quer criando novas.”451
Embora essa práxis se vê fortemente questionada nos tempos atuais, é
fundamental reconhecer que a autêntica fé cristã está intrinsecamente unida a atitudes
449 SCHILLEBEECKX, E., Por uma Igreja mais humana: identidade cristã dos ministérios. Coleção Teologia Hoje, São Paulo, Paulinas, 1989, p. 41. 450 FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 109. 451 LIBANIO, J.B., Eu Creio, Nós Cremos, p. 12.
156
concretas. A fé é uma resposta do homem a Deus que se revela e a ele se doa.452 No
entanto, uma resposta que não se restringe às palavras, mas que ressoa no
compromisso com a prática do amor-serviço, a exemplo de Jesus. A fé, nesse sentido,
é o segundo momento da relação humana com Deus. O primeiro passo, como vimos,
a iniciativa, é sempre de Deus que age livremente e amorosamente. Pela fé o cristão
se mostra receptivo e acolhe livremente essa proposta, assumindo uma prática sempre
articulada com a caridade. A fé se põe a serviço da caridade, iluminando-a, salvando-
a de falsas interpretações. E a caridade, por sua vez, impede que a fé se perca na
abstração, na alienação.453 Não há uma verdadeira fé sem práxis, não há uma doutrina
correta (ortodoxia) que não implique uma práxis correta (ortopráxis).454
Diferentemente da obrigatoriedade das obras da Lei, a fé é um ato de dupla liberdade:
de Deus e do ser humano.455 Deus criou o homem em liberdade e respeita essa
prerrogativa no diálogo que estabelece com ele. Assim como é livre a proposta
salvífica de Deus, deve ser livre a resposta humana.
A fé cristã tem como certeza fundamental o amor de Deus. Se o medo
suscita temor, insegurança, a fé suscita confiança e permite entregar a própria vida
para que Deus a conduza por meio do seu Espírito, como conduziu a vida de Jesus.
Cultivando a fé, o cristão busca superar as inevitáveis tensões e fragilidades de sua
condição humana iluminando sua vida com a luz do Evangelho. Assumida de maneira
autêntica, a fé ajuda o cristão a continuar sua caminhada mesmo quando o caminho
lhe parece difícil.
“A fé cristã é profundamente positiva e otimista. Sem desconhecer o pecado, a tendência egocêntrica presente no ser humano, as conseqüências desastrosas do egoísmo, ela afirma primariamente a Boa Nova de um Deus que nos ama e nos aceita, que se alegra em nos perdoar, que se revela como amor e misericórdia, suplantando assim o pecado humano”.456
Vivendo de maneira autêntica sua fé, o cristão não foge aos desafios do
mundo em que está inserido, mas se torna protagonista de iniciativas em vista de uma
452 Catecismo da Igreja Católica, nº 26. 453 LIBANIO, J.B., op. cit., p. 288. 454 Ibid., p. 165. 455 Ibid, p. 214. 456 FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 11.
157
sociedade sempre mais justa e fraterna, onde se cultiva o respeito e o diálogo com o
diferente. Enfim, procura manter-se fiel ao precioso mandamento divino do amor,
ciente de que “uma atitude só é atitude cristã se for gestada e dinamizada pelo
amor”.457 Há uma relação intrínseca e profunda entre a fé professada e o amor vivido
na prática das relações cotidianas. Segundo a Sagrada Escritura, a fé é determinante
para a salvação humana na medida em que se materializa em atitudes de caridade
para com o necessitado.
“O evangelista São Mateus faz girar o juízo final, com o duplo sentido definitivo de salvação e condenação, em torno da caridade prestada ao faminto, sedento, estrangeiro, nu, doente, encarcerado (Mt 25). A parábola do samaritano encarna, de outra forma, o mesmo ensinamento. Não são o levita e o sacerdote que se tornam modelo da fé cristã, mas o cismático samaritano que pratica a caridade (Lc 10, 29-37)”.458
Quer dizer, o ser humano pode até reconhecer a Deus como “Senhor” mas
se não fizer a vontade desse mesmo Deus que, como vimos, consiste no amor, não
participará do Reino (Mt 7,21). Não porque o Reino lhe é negado, mas porque não
assumiu a radicalidade da fé em sua totalidade. Acolher a gratuidade da proposta
salvífica, assumindo atitudes de amor, é imperativo da fé cristã. A luta contra todo
tipo de injustiça é, também, uma exigência da fé cristã. “É um passo primeiro para
que o projeto de Deus possa armar sua tenda entre os homens”.459 Dessa forma, a
eficácia salvífica, como nos lembra Paulo (Gl 5,6), vem pela fé em Jesus que se
transforma em caridade. No impulso da fé, o desafio do cristão está em assumir a
prática do amor como único caminho de salvação.
3.2.2. Prática do amor: caminho de salvação
Talvez já nos tenha ficado claro que o caminho da salvação implica
necessariamente uma atitude de amor em relação ao semelhante, como expressão
concreta da fé cristã no Deus de amor. Vimos que a iniciativa salvífica da parte de
Deus é uma atitude impulsionada pelo amor e que a fé, como acolhida da salvação, é 457 Ibid., p. 131. 458 LIBANIO, J.B., op. cit., p. 282. 459 Ibid., p. 203.
158
uma resposta livre e amorosa. Fé em Deus e amor a Deus são correlatos. Não há, no
entanto, amor a Deus sem a mediação do próximo, do necessitado, daquele no qual o
próprio Deus se faz necessitado (Mt 25,40). Nesse sentido, a caridade é constituída de
atos que nos arrancam de nosso egoísmo e nos tornam solidários. Essa “conversão” é
fruto da fé, dom de Deus. Fé e caridade são realidades inseparáveis, que se
complementam mutuamente.
“A fé salva a caridade ao apresentar-lhe o modelo normativo do amor na maneira como Deus ama a humanidade e no modo como Jesus historicamente vivenciou o amor. E a caridade salva a fé no sentido de que não a deixa perder-se na ortodoxia, no dogmatismo”.460
A acolhida da proposta salvífica de Deus suscita conversão, mudança de
atitudes. Nesse sentido, de acordo com o apelo de João Batista (Lc 3,8), a conversão
se comprova com frutos, isto é, com atitudes práticas. A caridade, então, é a
“verificação” da fé, a prova concreta da conversão. Verificamos, na passagem bíblica
de Mt 21,28-32, que fazer a vontade do Pai implica a conversão. Em vez de palavras,
o que agrada a Deus é a disposição para trabalhar em Sua vinha. Aí compreendemos,
também, o que significa amar a Deus: fazer sua vontade. Respondemos, então, ao Seu
imenso amor, amando ao próximo. E o próximo, segundo as Escrituras, é o
necessitado que está “à beira do caminho” (Lc 10,29-37). O amor fraterno é, assim,
critério de autenticidade do nosso amor a Deus. Confirma-se, assim, que, para a fé
cristã, segundo o ensinamento de Jesus, o amor a Deus (“com todo o seu coração,
com toda sua alma, com toda a sua força e com toda a sua mente”) e ao próximo
como a si mesmo (Lc 10,27) é garantia de vida eterna: “faça isso e viverá!”.
“Do ponto de vista salvífico, que é o mais central para a fé cristã, o amor fraterno (que inclui necessariamente o amor a Deus) se reveste de tal importância que todos os demais atos bons, todas as demais expressões cristãs lhe são subordinadas e dele recebem sentido e pertinência. Como expressa magistralmente Santo Agostinho: o fim de tudo é a caridade, e Deus é caridade.
Este é o fim, o objetivo. O resto é caminho. Não te prendas ao caminho com o
risco de não chegares ao fim. Busca onde passar, não onde ficar”.461
460 LIBANIO, J.B., op. cit., p. 289. 461 FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 133.
159
Não se destitui de importância a prática da oração, os exercícios de
piedade e tantas outras “manifestações de fé”, mas tudo é relativo diante da absoluta
primazia do amor para a fé e conseqüente salvação cristã. Àqueles que não põem em
prática suas palavras Jesus dirá: “nunca vos conheci!” (Mt 7,23). Nesse sentido, até
mesmo o reconhecimento de Jesus como “Senhor” é menos importante do que a
prática do amor. Um ato de fé, por mais admirável que seja, é vazio e sem sentido se
não for acompanhado da caridade.
“O Deus de Jesus Cristo se encontra menos nos recintos sagrados do que no compromisso desinteressado do homem com seu semelhante. Essa importante conclusão vem claramente confirmada no Novo Testamento. O mandamento do amor a Deus aparece sempre unido ao mandamento do amor ao próximo (Mt 22,39s; Mc 12,31). Mais ainda, o nosso comportamento diante do nosso semelhante necessitado será critério decisivo para nossa salvação, pois Deus com ele, de certo modo, se identifica, como nos mostra a cena do juízo final (Mt 25,34-46)”.462
O compromisso desinteressado com aquele que necessita, a exemplo do
bom samaritano, é expressão visível de uma prática verdadeiramente cristã, agradável
a Deus. Segundo Rahner, o amor ao próximo não é apenas mandamento a ser
cumprido, mas é a realização pura e simples do cristianismo.463 “Foi a mim que o
fizeste” dirá Jesus àqueles que, desinteressadamente, praticaram a caridade. A
verdadeira meta cristã é anunciar a proposta amorosa de Deus como caminho
salvífico ao qual todos são chamados. A caridade é constitutiva de toda ação cristã.
“O objetivo último de toda e qualquer ação pastoral da Igreja só pode ser o de levar homens e mulheres a viverem, sempre com maior verdade e autenticidade, o amor fraterno. Uma ação evangelizadora que não seja movida por essa finalidade nem merece o nome de cristã, por mais que possa impressionar pela sua organização perfeita, formação teológica, beleza litúrgica ou prática sacramental”.464
Como sacramento de salvação, a Igreja não foi constituída para buscar
glórias terrenas, mas para dar a conhecer, também em seu exemplo, a humildade e a
abnegação. A exemplo de Cristo, enviado pelo Pai ao mundo “para evangelizar os
462 Ibid., p. 133. 463 RAHNER, K., op. cit., p. 364. 464 FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 134.
160
pobres... proclamar a remissão dos presos” (Lc 4,18), “a procurar e salvar o que
estava perdido” (Lc 19,10), também a Igreja deve estar condicionada a orientar sua
missão em vista desses sujeitos sociais que mais sofrem.465 A Igreja deve elucidar
qual é o caminho que o ser humano deve seguir para chegar à salvação. Neste sentido,
o Novo Testamento nos oferece uma síntese: “a salvação depende fundamentalmente
do amor”.466 E a Igreja, imbuída de caridade, humildade e abnegação, tem a missão
de apresentar a todos o caminho da salvação que conduz ao Reino, sendo ela mesma
germe e início desse reino.467 Esse compromisso com o Reino é conseqüência de um
autêntico amadurecimento da fé, na adesão incondicional à vontade divina.
3.2.3. Compromisso com o Reino
Acolhendo a proposta salvífica de Deus, mediante a fé, o ser humano se
abre à prática da caridade, edificando um mundo mais justo e fraterno. Assim, ele se
compromete com o Reino de Deus, anunciado e realizado por Jesus. Aderir à
proposta do Reino significa fazer sua aquela atitude fundamental que caracterizou a
vida de Jesus, como vimos anteriormente: uma vida de abertura à vontade do Pai na
prática do amor-serviço aos irmãos. A gratuidade do Reino está relacionada ao amor
divino e à situação de sofrimento daqueles que são seus destinatários privilegiados: os
pobres, pecadores, crianças, doentes.
Assumir a proposta do Reino implica um olhar solidário na direção dos
empobrecidos, acompanhado de atitudes de caridade, bem como um compromisso
pela transformação das estruturas que estão na origem da desfiguração do rosto do
pobre.468 Diante das flagrantes injustiças que fazem sofrer o pobre, o amor a Deus
desafia ao compromisso na luta contra toda injustiça que ameaça a vida dos mais
fracos. Assim foi a vida de Jesus, assim deve ser a vida de todo aquele que deseja
seguir seus passos e fazer parte do Reino por ele anunciado. O compromisso com o
465 LUMEN GENTIUN, nº 08. 466 GARCIA RUBIO, A., Teologia da Libertação, p. 120. 467 Lumen Gentium, nº 05. 468 GARCIA RUBIO, A., Unidade na Pluralidade, p. 457.
161
Reino faz parte da identidade cristã, e seu esquecimento é motivo de profundas
preocupações.
“Desaparecendo da preocupação do cristão o Reino de Deus, desvirtua-se a proposta de Jesus e, conseqüentemente, se distorce a realidade de Deus. Enfim, desaparece a identidade cristã. Isso acontece quando é ignorada a centralidade dos pobres na proposta do Reino”.469
A possibilidade de esquecer os pobres é um grave risco à própria essência
do cristianismo e à concretização do Reino de Deus. Por um lado, o ser humano é a
mediação necessária para que o Reino de Deus se concretize na história, na medida
em que acolhe a proposta salvífica de Deus, sintonizando sua vida à vida de Jesus.
Por outro lado, esse mesmo ser humano pode se tornar obstáculo ao Reino, na medida
em que rejeita a salvação e assume atitudes injustas. O Reino de Deus é “já” e “ainda
não”. Ele já se concretiza em Jesus e nas atitudes e iniciativas humanizantes por parte
de cada pessoa. Mas ainda não se realiza plenamente, visto que ainda está presente o
anti-reino: injustiça, maldade, exploração, opressão, etc. O Reino é ação conjunta de
Deus, enquanto promessa, e do ser humano, enquanto realização histórica concreta.
“O Reino de Deus é captado em um conceito de esperança, mas é também um conceito práxico, de modo que não pode ser apreendido só como o esperado, mas tem que ser também captado como o que se deve construir, algo a cujo serviço se deve estar”.470
O compromisso com o Reino supõe uma espera ativa e “vigilante”,
lutando contra todo anti-reino, isto é, tudo o que não está de acordo com a vontade de
Deus porque desumaniza e faz sofrer. Nessa vigilância o cristão, e todo ser humano, é
chamado a permanecer firme na fé, cultivando a esperança e fazendo tudo com amor
(1Cor 16,13-14). “A esperança surge do amor, e onde há esperança se põe o amor a
produzir”.471 Podemos dizer que o Reino de Deus se edifica sobre as bases da fé, da
esperança e do amor, sinais da ação do Espírito Santo em nós. O amor é o que
permanece, quando tudo passa (1Cor 13,13). O compromisso com o Reino, dessa
forma, possibilita a experiência salvífica.
469 SOBRINO, J., op. cit., p. 494. 470 Ibid., p. 75. 471 Ibidem.
162
“A experiência da ação salvífica de Deus em nós é uma experiência da ação do Espírito que nos leva a sair de nós mesmos, a superar nossos limites, a comprometer-nos e entregar-nos aos outros. Essa foi a ação do Espírito em Jesus Cristo. Assumir sua vida é obedecer a essa ação como Ele obedeceu, é experimentar na doação de si a ação do Espírito que nos capacita a tal doação. O fruto do Espírito é o amor.”472
Como manifestação de total gratuidade por parte de Deus, o Reino precisa
ser acolhido como dom. O próprio Espírito é quem capacita para isso, assim como
capacitou e conduziu Jesus (Lc 4,1) e seus discípulos (At 4,8.31; 2,4; Ef 3,16). Na
vida de Jesus o cristão encontra o sentido último e a realização plena de sua vida, já
que “ele é a plenitude do humano e a presença do divino entre nós”.473 Suas palavras
e ações são normativas e inspiradoras para a vida cristã e para um autêntico
compromisso com o Reino.
3.3. Desafios à Vivência Cristã na Pós-modernidade
Vários fatores dificultam uma autêntica vivência cristã na pós-
modernidade. Como vimos no primeiro capítulo deste trabalho, a configuração social
pós-moderna assumiu valores muitas vezes opostos ao espírito cristão. Mas nem por
isso a mensagem cristã não encontra eco em nosso tempo. Pelo contrário, mais do que
nunca, a proposta salvífica revelada ao mundo há dois mil anos continua com seu
inigualável valor e importância para o ser humano. Os anseios e as buscas mais
profundas de cada homem e de cada mulher de nosso tempo, envolvidos por suas
inquietações e fragilidades, podem encontrar na Boa Nova cristã um ‘porto seguro’,
um sentido para a vida, a plenitude humana.
O que torna maior o desafio cristão é exatamente as grandes resistências
que, naturalmente, encontra em um mundo onde valores laicos, mas não
necessariamente negativos, ganharam uma considerável importância. Se nos tempos
hodiernos o desafio é grande, não o é, certamente, comparável ao desafio inicial, dos
primeiros cristãos, quando surgiu, à margem da religião judaica, a novidade cristã. Na
472 FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 183. 473 LIBANIO, J. B., op. cit., p. 271.
163
coragem, perseverança e testemunho dos primeiros seguidores de Jesus a humanidade
pode encontrar verdadeiros exemplos. O desafio é buscar inspiração nas “fontes” sem
esquecer da realidade na qual estamos inseridos. Para isso, naturalmente, se faz
necessária uma fé amadurecida que seja capaz de integrar os aspectos positivos da
cultura pós-moderna e os preciosos valores da mensagem cristã. A partir disso,
afirma-se a proposta cristã como uma preciosa contribuição ética à sociedade atual,
tendo como meta central a humanização integral do ser humano e a garantia de sua
sobrevivência.
3.3.1. A subjetividade pós-moderna e a fé cristã
Temos visto, anteriormente, que a pós-modernidade é profundamente
marcada por uma acentuada valorização do indivíduo e de suas buscas subjetivas.
Diante de uma sociedade marcantemente individualista, Lipovetsky aponta para a
necessidade de fomentar um individualismo mais responsável, em vista de um
compromisso maior com a superação das injustiças e com a garantia de sobrevivência
das futuras gerações. Mediante a indiferença e o narcisismo, frutos de um eficaz
processo de personalização, o indivíduo pós-moderno se fechou em si mesmo, não
deixando de ser solidário, mas promovendo uma “pseudo-solidariedade” não
comprometida. Na ótica cristã do amor-serviço, comprometido e transformador, é
flagrante a necessidade de uma urgente articulação entre as dimensões humano-
sociais, principalmente no que tange à centralidade dos pobres no anúncio do Reino.
Por conta do neoliberalismo e de muitos fatores culturais da pós-modernidade,
cresceu o risco do esquecimento do pobre e do acirramento de uma subjetividade
egocêntrica desligada de todo compromisso social.
“Propugna-se aqui um caminhar para um momento novo, em que a subjetividade é afirmada em seu valor insuperável de autonomia, mas em construção com a história, com a sociedade, com o cosmos em articulação com o compromisso com os pobres. Não se trata de negá-la pelo social, mas de perceber que o social, que o olhar de compromisso com os pobres lhe são um momento intrínseco e permanente”.474
474 LIBANIO, J. B., op. cit., p. 23.
164
É compreensível que a subjetividade pós-moderna esteja dominada por
uma avidez de satisfação em todos os campos, inclusive no religioso. Como vimos, o
modelo consumista se estende a toda a realidade humano-social. E aí, o pobre não é
foco, mas problema. Quando a religião entra no jogo do mercado, certos valores e
princípios cristãos vão sendo esquecidos ou sofrem uma radical transformação. A
caridade, por exemplo, não desaparece da prática cristã, mas assume uma
configuração pós-moderna descomprometida. Há mais assistencialismo e menos
comprometimento com a luta pela justiça social. Se a opção preferencial pelos pobres
está implícita na fé cristológica, os cristãos são chamados a contemplar nos rostos
sofredores o rosto de Cristo475, pois eles também são criados à imagem e semelhança
de Deus.476 Esse caráter subjetivista da pós-modernidade não é apenas uma clara
barreira à vivência autêntica da fé cristã, mas é também um empecilho à verdadeira
maturidade humana.
“A tendência da pós-modernidade é exacerbar a subjetividade até as raias do puro subjetivismo, relativismo. Dessa maneira, tanto o compromisso com a história e com a realidade social, quanto a autêntica vivência da fé cristã tornam-se impossíveis. Esse encurtamento da subjetividade humana é prejudicial ao ser humano”.477
Essa característica da pós-modernidade se reflete no comportamento do
indivíduo pós-moderno, que assume uma atitude de ceticismo, de dúvida e, até
mesmo, de niilismo perante a modernidade.478 Religiosamente, não se confirmou o
arrefecimento da dimensão religiosa por parte da modernidade extremamente racional
e técnica. O que se percebe são manifestações religiosas, sempre mais incontidas,
com uma característica própria, onde se busca saciar os desejos espirituais “vivendo
momentos de gratuidade lúdica e festiva em ambiente religioso, como verdadeira
terapia e desafogo de tanta repressão imposta pela sociedade moderna”.479
Conseqüência natural desse tipo de manifestação religiosa é uma fé desvirtuada,
475 DOCUMENTO DE APARECIDA, n. 393. 476 DOCUMENTO DE PUEBLA, n. 1142. 477 LIBANIO, J. B., op. cit., p. 89. 478 Ibid., p. 53. 479 HERVIEU-LÉGER, D., Vers un nouveau christianisme? Introduction à la sociologie du christianisme occidental, In: LIBANIO, J. B., op. cit., p. 53.
165
fragilizada e incapaz de ajudar o sujeito humano a assumir autenticamente o projeto
do Reino apresentado por Jesus.
3.3.2. A fragilidade da fé
Como expressão da cultura humana, a fé também assume um caráter mais
subjetivo na pós-modernidade e sente o peso desafiador de um mundo cada vez mais
secularizado.
“Desafia-nos aprofundar essa subjetividade moderna e pós-moderna e seu impacto sobre a nossa fé. Emergem novas tendências na maneira de viver a fé nos dias de hoje. Acentuam-se a decisão, a ecumenicidade, a vivência do cotidiano, a dimensão simbólica, estética e comunicativa, o lado emocional-carismático. Muitos fatores históricos e culturais têm influenciado a mudança de orientação e prática da fé”.480
O acentuado valor da subjetividade incidiu de forma significativa no
âmbito da fé, suscitando manifestações religiosas cada vez mais estranhas à
religiosidade tradicional. Assim, surgem conflitos entre as mais distintas
manifestações da fé. Claro está que, se por um lado a fé cristã não pode prescindir da
subjetividade, por outro lado também não pode esquecer da dimensão social e do
compromisso com os pobres. Revela-se estéril uma fé que não se compromete com a
libertação humana diante de situações e estruturas injustas.481 E a fé cristã desvirtuada
corre sério risco de desvirtuar a proposta do Reino, compactuando com uma realidade
social desumana. A experiência social latino-americana de injustiças e pobreza
extrema é um sinal acusador de que, historicamente, a fé não teve a força necessária
para penetrar os critérios e as decisões dos setores responsáveis da liderança
ideológica e da organização de nossos povos.482 É questionador reconhecer que se
impuseram estruturas geradoras de injustiças em povos de arraigada fé cristã.
É necessário reconhecer a fé como expressão do universo cultural onde
estamos inseridos, pois o ser humano que responde a Deus vive dentro de um
480 LIBANIO, J. B., op. cit., p. 22. 481 Ibid., p. 50. 482 DOCUMENTO DE PUEBLA, n. 437.
166
determinado contexto social.483 E as transformações a que ele está sujeito
socialmente, também o influenciam em matéria de fé, pois não há como separar as
dimensões humanas.
“Seus sentimentos, experiências, desejos, problemas, perguntas, movimentos afetivos e emocionais ocupam lugar fundamental na vivência da fé. E, mesmo quando praticam obras de caridade, as pessoas procuram aquelas em que o lado afetivo e emocional próprio e do destinatário desempenha papel decisivo”.484
A virada antropocêntrica que atingiu o homem moderno, também atingiu
sua fé, deslocando o pólo dinamizador desta mais para a experiência pessoal do que
para o simples acolhimento da tradição e da doutrina já formulada. O sujeito que crê
anseia por experiências novas, marcantemente emocionais e subjetivistas. Assim,
assistimos a uma “inflação do sagrado”, numa linha terapêutica, de curas e
libertações.485 Na medida em que o sagrado é usado a serviço próprio, o espírito
comunitário fica ameaçado e fica visível a carência de marcos sólidos para estruturar
a existência humana. Há, nos tempos pós-modernos, uma busca precipitada por
referências vitais, sobretudo de cunho religioso. É uma tentativa de superar aquele
vazio de que nos falava Lipovetsky. Muitas vezes, no entanto, ao deixar-se levar
pelos apelos da sociedade neoliberal, a fé carece de clareza e revela-se ingênua.
“A sociedade neoliberal oferece ao ser humano, como alívio e analgésico para suas frustrações, entretenimentos múltiplos e consumismo desenfreado, que contrastam com as carências e os sofrimentos dos pobres e marginalizados nesta sociedade de enormes desigualdades sociais. Contudo, a sede profunda do ser humano por felicidade, paz, segurança, sentido, amor, permanece sem resposta, traduzindo-se no crescimento da indústria da droga e da violência, na crise da família e da ética profissional e política”.486
A fé não pode abrir mão da lucidez, sob o risco de se tornar uma atitude
infantil. Quando os elementos ideológicos são capazes de perturbar a pureza da fé é
sinal de que falta a essa uma verdadeira fundamentação. As constantes preocupações
com questões supérfluas revelam uma fé epidérmica, sem raízes profundas, sem uma
483 LIBANIO, J. B., op. cit., p. 41. 484 Ibid., pp. 64-65. 485 FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 14. 486 Ibid., p. 14.
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verdadeira fundamentação teológica. Dentre os reais perigos a que a fé está
submetida, há duas ameaças preocupantes: capitularmos totalmente diante das
imposições da sociedade sem nenhum discernimento crítico ou querermos viver –
alienados da sociedade – expressões de fé de outras eras.487 Claro está que nenhum
dos extremos é producente no que diz respeito à maturidade da fé. Esta, às vezes,
precisa ser contra-cultural, sem deixar de ser contemporânea.
3.3.3. A dimensão ética da proposta salvífica cristã
A ética já foi expressão da fé, na era do dever categórico, quando agir
eticamente era sinônimo de agir de acordo com as orientações religiosas. Como
vimos no início deste trabalho, esse tempo tinha sérias lacunas e seria impensável um
retorno, submetendo a ética à dimensão religiosa. No entanto, neste tempo que carece
de referenciais éticos, acreditamos que a proposta cristã do Reino aparece como um
caminho eficaz na busca por um mundo mais justo e mais humano. Não seria absurdo
afirmamos também que o nível ético-histórico pode ser vivido num contexto
religioso, visto que, para muitas pessoas, a religião é o espaço em que a ética adquire
sentido absoluto.488 Como vimos no segundo capítulo deste trabalho, a partir de Hans
Küng, somente o incondicional pode fundamentar incondicionalmente valores éticos.
E nas religiões proféticas, o único incondicional é Deus.489 Para os cristãos, como
vimos acima, é a vontade de Deus que ganha contornos de “incondicional”,
fundamentando todo seu viver.
Certamente as religiões possuem uma grande força no que diz respeito à
orientação ético-moral. Em sua essência, elas possuem princípios e valores
autenticamente humanos, que orientam para a humanização e realização plena da
pessoa humana. Na mensagem cristã, a vida em plenitude assume um posto de
destaque: “eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância!” (Jo 10,10).
Como fundamento do cristianismo encontramos a preocupação divina com aqueles
487 LIBANIO, J. B., op. cit., p. 125. 488 LIBANIO, J. B., op. cit., p. 269. 489 Supra item 2.3.1.
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que têm a vida ameaçada, os pobres e oprimidos.490 A dignidade humana,
preocupação ética fundamental, é também a preocupação cristã fundamental. No
entanto, historicamente a preocupação com os pobres e necessitados nem sempre
esteve no centro das preocupações cristãs. Eis o desafio de “voltar às fontes” e
fortalecer esse compromisso essencialmente cristão.
Mais do que nunca, em nosso tempo o ser humano permanece com
dúvidas, questionamentos, insuficiências e anseios. Buscas às quais nem sempre ele
encontra respostas satisfatórias. Porque não se basta a si mesmo, o homem busca algo
que vai além de si próprio. É nisso que as religiões encontram sua razão de ser.491 O
Cristianismo, com base na gratuita proposta salvífica de Deus, revelada em Jesus,
oferece ao ser humano a possibilidade de encontrar sentido para sua vida na
fidelidade à vontade de Deus, a exemplo de Jesus. Na mensagem evangélica os
cristãos são convidados e desafiados a assumir atitudes novas, semelhantes às do
próprio Deus, que, em Jesus, se aproxima da humanidade, movido por Seu imenso
amor.
“O fato de Deus se aproximar e participar na condição e no destino das vítimas e isso ocorrer para salvá-las é visto como algo de bom, e algo que inclusive confirma suas lutas, algo que infunde ânimo e esperança, que não é paralisante nem alienante”.492
Em Jesus, os Evangelhos nos revelam o jeito de Deus agir como protótipo
para todo agir humano. Agindo como Ele, o ser humano colabora com a salvação que
Deus realiza. Embora seja expressão de total iniciativa e bondade divina, a salvação
cristã não se realiza no ser humano fechado em si mesmo, pois “só acontece quando o
ser humano se volta para seu semelhante, especialmente o mais necessitado”.493 Em
nosso tempo, diante das perceptíveis ameaças à sobrevivência humana, a prioridade
salvífica estendeu-se também à natureza, diante da qual também faz-se necessário
uma atitude de conversão. A grave crise ecológica desenha um novo rosto necessitado 490 Levando em consideração a ambivalência do termo “pobre”, mas sempre reconhecendo aí uma referência ao sofredor e necessitado, citamos algumas das inúmeras referências bíblicas que situam esta como uma das maiores preocupações cristãs: Mt 19,21; Lc 4,18; 6,20; 7,22; 14,13; Rm 15,26; 2Cor 9,9. 491 FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 10. 492 SOBRINO, J.,op. cit., p. 140. 493 FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 11.
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e nos desafia a reconhecer que a salvação cristã está intimamente relacionada com a
defesa do meio ambiente.
“A destruição acelerada da natureza nos faz temer pelas condições de vida das gerações futuras, tal o grau de deteriorização que pode alcançar seu habitat vital. Resulta assim evidente que a salvação cristã tem também uma dimensão ecológica, como conseqüência do imperativo evangélico do amor ao próximo”.494
Claro está, a partir do que vimos sobre a iniciativa salvífica de Deus, que a
salvação é ação divina em benefício do ser humano. Movido por compaixão, como
nos sinais realizados por Jesus, Deus age em favor do ser humano necessitado.
Acolhendo gratuitamente a proposta amorosa de Deus, e cultivando atitudes de
caridade, o ser humano torna-se colaborador de Deus. Esse empenho pessoal se dá
mediante a força do Espírito, como acontecia com os discípulos (At 2,4). A vivência
autêntica da fé cristã tem necessariamente uma dimensão social e política, que lhe é
intrínseca, que deve ser expressa e da qual depende hoje sua credibilidade.495 Isto
posto, é critério de autenticidade para a fé cristã a luta contra todo tipo de injustiças e
o compromisso com um mundo de paz. Dessa atuação no mundo depende a
credibilidade da fé cristã. Em um mundo de injustiças, guerras e violência, onde se
faz ouvir o clamor pela paz, a mensagem cristã se apresenta como um caminho de
esperança, um autêntico caminho na busca pela paz.
“A paz buscada é a paz positiva, orientada por valores humanos como a solidariedade, a fraternidade, o respeito ao ‘outro’ e a mediação pacífica dos conflitos, e não a paz negativa, orientada pelo uso da força das armas, a intolerância com os ‘diferentes’, e tendo como foco os bens materiais.”496
A busca pela paz, abrindo mão de todo tipo de violência, implica o
compromisso com a justiça. “A paz é fruto da justiça”.497 Se a proposta cristã oferece
bases fundamentais para a promoção de uma cultura da paz nas pessoas, na família,
na sociedade, é porque também nos oferece orientações fundamentais para a prática
da justiça (Mt 6,33). No entanto, a busca pela paz tem seu preço. A fé, vivida na
494 Ibid, p. 26. 495 Ibid, p. 27. 496 CNBB – Campanha da Fraternidade 2009 – Texto-Base, p. 15. 497 Lema da Campanha da Fraternidade 2009, da CNBB.
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fragilidade da condição humana, não torna o cristão imune aos conflitos, às tensões,
às tentações e a possíveis desvios e retrocessos.498 Ao assumir a radicalidade da fé,
ele precisa ter consciência de que é uma opção de vida que lhe trará realizações, mas
também acarreta riscos e grandes tribulações. Em Jesus está o exemplo maior: sua
morte é uma conseqüência histórica do tipo de vida assumido por ele – messianismo
de serviço – em conformidade com a vontade do Pai.499 Claro está, no entanto, que
essa opção de Jesus é expressão de sua liberdade, que o Pai respeita e valoriza.
A liberdade é um direito absoluto para o homem pós-moderno. A proposta
cristã não vai contra essa liberdade, mas pode impregnar-lhe um caráter enriquecedor:
o amor. Para o cristianismo, “o homem livre é aquele que ama e afinal de contas só
ama, sem que nenhuma outra perspectiva o desvie do amor”.500 Como vimos, é livre
o amor de Deus pelos homens, pois nada lhe impõe limites ou obstáculos. O desafio
do cristão é “amar como Deus ama”, isto é, não permitir que algo o impeça de poder
amar: nem as tribulações, nem as angústias, nem a fome, os perigos ou a espada (Rm
8,35). Um amor assim, plenamente sintonizado com a proposta do Evangelho, é fruto
de uma abertura total à vontade de Deus, e de um compromisso radical com o
próximo, com a sociedade, com o mundo em que se vive. Na vida de Jesus encontra-
se o fundamento para uma vida cristã de amor-serviço, e em sua ressurreição o cristão
encontra fundamento maior para sua esperança.
“O egocentrismo nunca é princípio hermenêutico cristão, e menos o é o egoísmo. Com certeza é o amor. Quem ama as vítimas, quem sente última compaixão para com elas, quem está disposto a entregar-se a elas e a correr o seu mesmo destino, este pode ver também na ressurreição de Jesus uma esperança para si”.501
A pós-modernidade é marcada por um expressivo individualismo, onde o
“eu” tem status de absoluto e são legítimas suas buscas subjetivas. A mensagem cristã
reconhece e valoriza a subjetividade, mas rechaça todo tipo de fechamento,
ensimesmamento e manifestações egoístas. Fomentar um “individualismo
responsável” tem sua validade inquestionável, conforme nos propõe Lipovetsky, mas
498 FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 223. 499 GARCIA RUBIO, O Encontro com Jesus Cristo Vivo, p. 93. 500 SOBRINO, J.,op. cit., p. 123. 501 Ibid.,, p. 74.
171
uma autêntica compreensão da fé cristã supera essa proposta e aponta para uma
perspectiva de humanização integral da pessoa, isto é, à realização da plenitude
humana. Em sua obra Evangelização e Maturidade Afetiva, o teólogo Alfonso García
Rubio tece uma interessante reflexão acerca desse tema, distinguindo duas
manifestações humanas possíveis: a “subjetividade fechada” e a “subjetividade
aberta”.502 Vejamos resumidamente a distinção proposta:
“Fechado em si mesmo, o ser humano coisifica e instrumentaliza todo tipo de relação. Se for uma pessoa religiosa, aceitará Deus só na medida em que este responde à sua expectativa. Utiliza o divino apenas para o interesse próprio, tal como utiliza as relações com os seres humanos. O outro só é ‘aceito’ quando pode responder às suas necessidades; e seu relacionamento com a natureza também é meramente utilitário. Quer dizer, o outro (Deus, homem, mulher, natureza, etc.) não é aceito como outro”.503
Essa reflexão parece sintonizada com a caracterização do homem pós-
moderno, como vimos no primeiro capitulo deste trabalho. A preocupante realidade
humano-social que ameaça a existência humana é conseqüência natural dessa
subjetividade fechada, que instaura e desenvolve relações desumanizantes. Uma
autêntica humanização, e conseqüente salvação, bem como a garantia de
sobrevivência às gerações futuras, dependerá de uma mudança substancial por parte
do ser humano. E a proposta cristã tem uma inestimável contribuição a dar. No
tocante ao sujeito humano, a Boa Nova do Evangelho propõe uma “subjetividade
aberta”, capaz de fomentar a vivência autêntica da alteridade.
“Na subjetividade aberta, o ser humano vivencia a alteridade, isto é, o reconhecimento, a aceitação e a valorização do outro como outro, na sua diferença. Na relação com Deus, a pessoa é capaz de abrir-se à Sua novidade, de aceitar a Sua transcendência e de acolher a Sua interpelação. Deus não é manipulado nem instrumentalizado. Na relação com Ele, o ser humano pode encontrar resposta às carências de ser criado. Mas, o prioritário é sempre Deus. (...) A pessoa, nas suas relações interpessoais, se abre aos outros seres humanos, respeitados e aceitos como diferentes. Todavia, no primeiro plano está a pessoa do outro. É superada, assim, a tentação de coisificá-la ou instrumentalizá-la. Na relação com o meio ambiente, a pessoa supera a perspectiva meramente utilitária e mecanicista e visa a uma utilização responsável dos recursos naturais,
502 GARCÍA RUBIO, A., Evangelização e Maturidade Afetiva, pp. 35-39. 503 Ibid., p. 36.
172
respeitando o ritmo da natureza e colocando-se a serviço da preservação da vida”.504
Podemos dizer que aí está refletida a proposta cristã de salvação. A mesma
abertura que se propõe a cada pessoa, a fé cristã encontra em Jesus. Em seu
ensinamento e em suas ações, Jesus demonstra uma abertura radical a seus
contemporâneos, sem distinções e reservas, sem discriminações e diferenças,
atropelando, muitas vezes, costumes e tradições moralizantes.505 A proposição cristã
mais coerente com a mensagem bíblica é aquela que desafia cada pessoa a superar
todo tipo de atitudes egoístas e empenhar-se na luta contra todo tipo de injustiça,
assim como Deus, que “se manifesta através da vida, mas defendendo-a da morte;
através da justiça, mas contra a injustiça; através da libertação, mas agindo contra a
escravidão”.506 Tão nobre proposta não se restringe aos cristãos, mas se revela como
um caminho necessário, pelo qual deverá trilhar a humanidade toda, se desejar manter
viva a esperança de um mundo melhor.
A salvação trazida por Jesus Cristo não se confina aos limites da Igreja
institucional e nem mesmo do Cristianismo. Nos relatos bíblicos é perceptível como a
pregação de Jesus sobre o Reino ultrapassava as fronteiras do povo judeu (Jo 4,39-
40). Uma ação salvífica que corresponde à vontade de Deus pode ser realizada por
qualquer um, como mostrou Jesus com a parábola do bom samaritano (Lc 10,30-35).
Isso quer dizer que mesmo aqueles que não professam a fé cristã podem agir em
conformidade com o Evangelho e fazer, assim, experiências salvíficas.
“Os adeptos de outras religiões fazem experiências salvíficas, chegam à paz interior, à felicidade, à liberdade de espírito, à temperança, ao respeito pelo semelhante ao amor fraterno. Seus itinerários salvíficos podem ser diversos das rotas cristãs, pois a ação do Espírito não pode ignorar o contexto em que atua, a visão religiosa dominante e a ética que lhe corresponde. Práticas diferentes das cristãs podem também conter autêntica ação do Espírito. O que chamamos atitude fundamental de Cristo pode se configurar de um modo que não nos é familiar”.507
504 Ibid., p. 38. 505 FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 71. 506 SOBRINO, J., op. cit., p. 136. 507 FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 211.
173
Toda atitude de caridade se identifica com a proposta de Jesus, revelada
no Evangelho. Para a fé cristã, toda obra boa é inspirada pelo Espírito Santo e é
caminho de salvação (Rm 2,6-7).508 A partir disso, entende-se a afirmação cristã de
que Cristo, como único e universal salvador da humanidade, se faz presente e atuante,
por intermédio de seu Espírito, também nas demais religiões.509 Em vista de um
mundo de paz, como abordamos no capítulo anterior, faz-se necessário buscar, por
parte da fé cristã, o diálogo com as demais religiões e também com os não-crentes.
“Em diálogo com os que estão mais distantes na expressão da fé, a saber, com os não-crentes, busca-se encontrar um ponto comum no referente aos direitos e valores fundamentais do ser humano. Com as religiões, o diálogo nasce da plataforma comum da fé em Deus, de suas revelações, verdades, experiências, tradições. A partir dos elementos comuns, busca-se avançar para um mútuo enriquecimento e reconhecimento”.510
Toda sociedade humana passa a ser beneficiada quando se viabiliza um
horizonte de paz e se busca, das mais diferentes formas, concretizá-lo. O diálogo
inter-religioso amadurecido e respeitoso só tende a enriquecer as religiões. Por parte
do Cristianismo certamente aperfeiçoaria e purificaria certos conteúdos da tradição e
dinamizaria uma universalização maior da própria mensagem cristã.511 Claro está que
o diálogo sempre é possível, desde que se tenha pré-disposição para tal e que se leve
em consideração sempre mais o que une as religiões do que aquilo que as separa e
divide. Com os não-crentes, por sua vez, o diálogo deve ter como base o próprio ser
humano e sua dignidade fundamental. Tanto adeptos de outras religiões quanto não-
crentes, podem encontrar no cristianismo preciosa base para fundamentar novos
valores e princípios éticos para a sociedade pós-moderna.
É necessário, no entanto, que tanto crentes quanto não-crentes reconheçam
a urgência em assumir atitudes novas, como expressão de caridade, em favor dos
mortos da sociedade.512 Só um compromisso transformador será capaz de superar de
vez as ameaças catastróficas que atingem homens e mulheres de nosso tempo.
508 Dei Verbum, n º 03. 509 FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 212. 510 LIBANIO, J. B., op. cit., p. 61. 511 FRANÇA MIRANDA, op. cit., p. 215. 512 SOBRINO, J., op. cit., p. 78.
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Dinamizada pelo espírito evangélico, traduzido no amor-serviço, a sociedade humana
terá menos necessidade de leis, pois saberá conviver pacificamente.513 Enfim, a lei do
amor, cerne da revelação divina em Jesus Cristo, é parâmetro ético para qualquer
povo, raça ou nação. Onde há convivência humana é possível instaurar qualquer um
dos preciosos imperativos éticos cristãos: “Tudo o que vocês desejam que os outros
façam a vocês, façam vocês também a eles” (Mt 7,12) ou “Amai-vos uns aos outros
como eu vos amei!” (Jo 15,12).
Conclusão
Concluindo esta última parte de nosso trabalho, queremos afirmar a
pertinência da reflexão acerca da mensagem cristã, bem como da valorosa
contribuição que ela pode dar à sociedade pós-moderna. Carente de valores e
princípios que respondam suas inquietações mais profundas, o ser humano encontra,
na mensagem do Evangelho, uma proposta de vida plena. Vimos que Jesus, como
revelação plena de Deus, mediante suas palavras e práticas, desafia todos a um
autêntico compromisso com o mundo que aí está. Esse compromisso supõe a luta pela
superação de toda maldade e de todo sofrimento, em vista da justiça e da paz, bases
para um autêntico e integral desenvolvimento humano. Essa é a vontade de Deus que,
em seu infinito amor, nos chama à conversão em vista da salvação. Na proposta do
amor se revela a universalidade do Reino. Não há cultura, povo ou raça que não seja
chamado à prática da caridade.Na busca por um mundo mais justo, fraterno e
solidário, a proposta cristã fornece as bases sólidas do Evangelho, destacando a
necessidade de se cultivar entre todos as mesmas atitudes de Jesus. Dessa forma, fica-
nos claro que assumir autenticamente a proposta cristã é dar passos significativos no
caminho ético. No entanto, é grande o desafio à fé cristã, que vê na marcante
subjetividade fechada em si uma resistência à prática do amor-serviço. Mais do que
promover uma responsabilidade descomprometida, a reflexão cristã busca sensibilizar
toda humanidade ao clamor dos injustiçados deste mundo, interpelando-a em vista de
uma prática transformadora. Assim são semeadas as sementes do Reino, germina a
esperança e floresce um mundo mais humano para todos
513 GARCIA RUBIO, Encontro Com Jesus Cristo Vivo, p. 58.