Upload
leduong
View
215
Download
1
Embed Size (px)
Citation preview
3
Corporeidade em Adolphé Gesché: Corpo como lugar
teológico e antropológico
A pesquisa busca no pensamento de Adolphé Gesché, o valor e lugar da
corporeidade para a fé cristã e para o pensamento contemporâneo. Pensar o corpo
é fundamental porque o ser humano é corpo. E é, justamente, nesta compreensão
que o tema se apresenta como uma grata surpresa para o autor. Pois pela
afirmação da encarnação de Cristo, o corpo se torna lugar para falar de Deus e
para falar do ser humano. O cristianismo pode sim, no diálogo com a sociedade
contemporânea, falar do corpo. E ao falar do corpo humano, novos sentidos são
abertos para falar de Deus, e vice-versa. A isto chamou de “invenção cristã do
corpo”.
Dividimos o capítulo em três itens. No primeiro, apresenta-se a questão do
corpo como caminho para pensar Deus e o ser humano. Se dá no cristianismo uma
autêntica invenção do corpo, este adquire sentido e a possibilidade de ser uma
nova inteligibilidade de Deus e do ser humano. O segundo item procurará mostrar
o percurso de um movimento fundamental, corpo é caminho, pelo qual, Deus veio
até o ser humano, um Deus que se faz capaz do ser humano. O terceiro item
procurará afirmar que em Cristo, o corpo também se torna caminho para a
humanidade ir até Deus. Um Deus que não é uma transcendência inacessível, mas,
que se revela, no corpo. Encontro que resulta em nova percepção, Deus que se faz
presente no corpo humano, deve ser encontrado no corpo de todo ser humano. O
corpo do próximo também é o corpo de Deus.
3.1
Adolphé Gesché – corpo, caminho de Deus
Adolphé Gesché nasceu em Bruxelas, Bélgica, em 25 de outubro de 1928.
Estudou filosofia e literatura nas faculdades Saint-Louis em Bruxelas. Foi
ordenado sacerdote católico em 1955 para a diocese de Malines-Bruxelas.
Tornou-se capelão militar e vigário na paróquia de Sainte-Suzanne Schaerbeek.
55
Em, 1958, concluiu doutorado em Teologia na Universidade Católica de
Louvain.1
Professor no Seminário de Malines, ele também ensinou teologia dogmática
na Faculdade de Teologia da Universidade Católica de Louvain, onde tornou-se
professor titular em 1969. Continuou sua carreira acadêmica até tornar-se emérito
em 1994. Por sua direção e estudos, Gesché marcou gerações de estudantes da
Europa, América e África. Por três décadas, apoiou a investigação inovadora
sobre a teologia da libertação, teologia feminista, teologia do processo. Também,
por seus escritos, contribuiu para renovar os ensinamentos tradicionais sobre
Deus, Cristologia, Criação e Antropologia.2
Gesché desenvolveu um novo diálogo com a cultura, mantendo uma relação
especial com a literatura. Como teólogo, refletiu de maneira séria sobre as
principais formas de pensamento do seu tempo. Em 1991, criou e orientou uma
equipe de teólogos que iniciaram uma conferência bienal, que permaneceu com o
nome de "Conferências Gesché”. Sua influência se estende para além da área
francófona através da tradução em várias línguas na sua série de publicações
intitulada "Deus para pensar”(1993-2003). Também publicou muitos artigos em
periódicos e contribuições para obras coletivas. Gesché morreu em 30 de
Novembro de 2003.3
Membro do comitê executivo da Theological Review Louvain desde a sua
criação em 1970, permaneceu por muitos anos presidente da Sociedade Teológica
de Louvain em 1989 e tornou-se membro da Sociedade Europeia de Teologia
Católica (AETC). Ele é nomeado pela Santa Sé, membro da Comissão Teológica
Internacional, sob a Congregação para a Doutrina da Fé, por dois períodos
sucessivos de cinco anos (1992-1997; 1997-2002). Os dois primeiros volumes da
série “Deus para pensar” receberam, em 1993, o prêmio Cardeal Mercier,
1 Rede de Investigação Adolphe Gesché - Réseau de Recherche Adolphe Gesché (RRAG),
pertence ao Instituto de Pesquisa de religiões, espiritualidades, culturas e sociedades – Institut de
recherche religions, spiritualités, cultures, sociétés (RSCS), mantido pela Universidade Católica de
Louvania. A rede de investigação Adolphe Gesché é composta por pesquisadores (professores,
doutores, estudantes), interessada no trabalhado do teólogo. Foi lançada em 2012. O site é
composto de várias páginas, dentre elas O homem (carreira, formação acadêmica, prêmios e
honrarias), Cronologia de vida, pequena biblioteca de fotos, pequena videoteca, descrição do seu
trabalho, com principais obras e temas no site da Universidade Católica de Louvania, disponível
em: http://www.uclouvain.be/355399.html, acesso em 14/08/2016. 2 Rede de Investigação Adolphe Gesché, disponível em http://www.uclouvain.be/355397.html,
acesso em 14/08/2016. 3 Rede de Investigação Adolphe Gesché, disponível em: http://www.uclouvain.be/355399.html,
acesso em 14/08/2016.
56
outorgado a obras de filosofia ou teologia. Ganha reconhecimento internacional
pelo Grande Prêmio da Academia Francesa, em 1998, pelos cinco primeiros
volumes desta série.
“E aqui é percebido que esta teo-logia é inseparavelmente uma antropo-
logia.” A compreensão de Gesché é que a teologia tem a missão de encontrar
sentido para as grandes questões humanas. Sobretudo em um mundo que, após
duas grandes guerras e mergulhado em profunda desesperança, se pergunta sobre
o sentido de tudo. Pois bem, Gesché crê que a teologia não pode ficar afastada
desta responsabilidade, aliás, é condição fundamental do fazer teológico pensar a
vida e seus sentidos, a partir da compreensão de Deus. Sua hipótese é que Deus,
ou a ideia de Deus, pode ajudar as pessoas a pensarem, mesmo aqueles que não
creem. Para Gesché, o pensamento, para ser correto, precisa chegar ao limite de
uma questão, procurar suas últimas consequências. A ideia de Deus, mesmo como
puro símbolo ou abstração, representa na história do pensamento, a ideia mais
extrema, não havendo outro conceito que esteja além deste. Por isso, lança mão
em seu conjunto de obras “Deus para pensar”, às questões essenciais que dizem
respeito a todo ser humano e não somente aos cristãos.4
Pela limitação da temática proposta para esta dissertação, foram
selecionadas obras que tinham relação direta e mesmo indireta com a pesquisa
realizada. Dentre elas, o livro Deus, da série, Deus para pensar, bem como O
Cristo, O Ser humano e O Cosmo. A principal fonte de pesquisa, contudo, recaiu
sobre um livro lançado após o falecimento de Gesché, em Bruxelas, fruto das
inquietações produzidas nos “Colóquios Gesché” e que forneceu a motivação para
esta pesquisa: Corpo, caminho de Deus, lançado em 2005, mas somente
disponibilizado em português em 2009, pelas Edições Loyola. O livro, organizado
por Paul Scolas e Adolphé Gesché, traz em um dos capítulos sua derradeira
proposição de investigação teológica.
3.2.
Corpo, lugar de relação de Deus e do ser humano
Na reflexão teológica atual, a questão da corporeidade emerge com
indiscutível relevância, amplificada ainda, pelo crescente interesse das ciências
4 GESCHÉ, Adolphé. Deus. São Paulo: Paulinas, 2004.
57
humanas. É esta intuição que guia Gesché na proposição que faz sobre a questão
do corpo no diálogo com a cultura ocidental contemporânea. Mais do que propor
compreensão que possa dar sentido à fé dentro do ambiente cristão, ou
cristianizado, o desafio da teologia vai além de si mesma. Se impõe como
necessária ao diálogo com a sociedade e exige uma igreja cada vez mais
amadurecida, na direção de uma vida que ganhe sentido na existência, e não
somente, como expressão de religiosidade.
É expressivo dizer que, em seu último pronunciamento em público, um mês
antes de falecer, Gesché aponta a questão da necessidade de uma redescoberta do
corpo como lugar teológico. Corpo analisado pela biologia, pela medicina, pela
psicologia, sociologia, pela antropologia, etc. deve ser também lugar de
considerável importância pela Teologia. Para as ciências biológicas, pensar o
corpo é pensar seu funcionamento e mecanismos. As ciências humanas terão uma
consideração mais ampla, pois pensar o corpo é pensar o ser humano em sua
dinâmica histórica e os desafios que esta impõe. Sem perder de vista as conquistas
e limites que tais investigações afirmam para Gesché, o corpo é caminho
fundamental para pensar Deus, e Deus é lugar fundamental para pensar o ser
humano.5
Para Gesché, o corpo é o lugar da revelação plena e visível de Deus, que se
quis revelar em Cristo. É onde o ser humano pode olhar Deus. No entanto e não
oposto, mas maravilhosamente somado a isto, ao encontrar Cristo em um corpo
humano, enxergar a si mesmo, ser humano como foi originalmente desejado, em
Deus. Corpo é interseção entre Deus e o ser humano, lugar de profundo mistério e
de grandes possibilidades.6 O corpo apresenta-se como uma interface de
redescoberta do ser humano, em sua relação consigo mesmo, e em todas as
relações que experimenta. Não é pelo corpo a experiência de viver? Lugar onde
Deus encontra o homem, mas também lugar onde o homem encontra Deus. Não
em uma relação fechada em si mesmo, mas aberta ao outro. Lugar de aproximação
e redescoberta do outro.
5 Paul Scolas no prólogo O corpo, caminho de Deus ou a invenção cristã do corpo, reconstrói
rapidamente o caminho percorrido por Gesché, a partir do primeiro encontro que tiveram em que
foi proposta a temática. Cf. SCOLAS, Paul. O corpo, caminho de Deus ou a invenção cristã do
corpo. In: GESCHÉ, Adolphé; SCOLAS, Paul (org.). O corpo, caminho de Deus. São Paulo:
Loyola, 2009, p.8-11 6 Cf. Ibid. 9.
58
Como chegar a Deus pelo corpo? Desenvolvemos um sem-número de provas de
Deus ou de acesso a Deus, por meio de ideias, conceitos, interioridade,
racionalidade, etc. O corpo foi quase esquecido nesses caminhos, mas na verdade é
de uma importância extraordinária na Escritura e no pensamento (na
fenomenologia, por exemplo) de hoje. Diferente do animal que é carne, o homem é
corpo, o que é bem diferente. Não é pelo nosso corpo (implicando sempre a carne)
que vivemos e mantemos harmonia com as coisas e com os outros? Nosso corpo de
prazer, como nosso corpo de sofrimento. Não poderíamos esclarecer toda essa
questão em uma perspectiva teológica: como nos relacionamos com Deus pelo
nosso corpo? O corpo não seria o lugar de visita de Deus e, principalmente, o lugar
em que pudéssemos fazer vibrar em nós o encontro com Deus?7
A proposição de Gesché é que algo de novo, mas não inédito, surge. A
corporeidade acaba por tornar-se este espaço hermenêutico de Deus e seu amor,
pois no corpo humano a fé cristã demonstra que o ser humano encontra mais do
que a si mesmo, encontra a Deus. Corpo proposto então como caminho de Deus a
nós, lugar de encontro. E cumpre a finalidade de ser caminho também de nós a
Deus. E é nessa abertura fundamental a Deus, que o ser humano também se abre
aos outros. O outro acolhido como sujeito e não objetado em função do eu,
fechado em si mesmo.
A redescoberta do corpo, que observamos na reflexão antropológica de nossos dias,
não nos incentiva a agir da mesma maneira também na teologia? O cristianismo,
apesar de muitas aparências em contrário, não teria um discurso implícito sobre o
corpo que valeria a pena valorizar, causando surpresa? Não existiria uma invenção
cristã do corpo, cuja originalidade pudesse contribuir para a compreensão geral da
corporeidade, além dos limites do fato cristão? [...] Religião da Encarnação, da
Palavra de Deus que se fez carne, da paixão e morte de cruz, do corpo eucarístico,
da ressurreição da carne, o cristianismo não possui, com toda evidência, uma
proximidade com o corpo que toca sua própria natureza? Se Deus desceu até nós
mediante a Palavra que se fez carne, não podemos nós mesmos chegar até Deus por
meio de nosso corpo e – suprema audácia – pelo seu corpo que ele nos dá? Não
seria mais o caso de considerar a Encarnação como uma simples necessidade, mas
como pertencendo à estrutura de uma visão específica de Deus. [...] O corpo, lugar
do homem como nos ensina a fenomenologia (não é pelo corpo que vivemos e
somos coniventes com as coisas e com os outros?), não seria o corpo também o
(um) lugar de Deus? Como escreve Tertuliano, caro cardio salutis, isto é, a carne é
o gonzo em que gira a salvação (entendemos: o encontro na plenitude de Deus)8
As duas citações acima são significativas, não somente pela audaciosa
proposta que fazem, mas por traduzirem o último desejo de investigação do
7 Citação direta do pronunciamento de Adolphe Gesché, em 2002, na primeira reunião que tiveram
sobre o tema. SCOLAS, Paul. O corpo, caminho de Deus ou a invenção cristã do corpo. In:
GESCHÉ, Adolphé. SCOLAS, Paul (org.). O corpo, caminho de Deus. São Paulo: Loyola, 2009,
p.9 8 Apresentação do argumento do colóquio Gesché, sobre a questão do corpo. Cf. Ibid. p.10.
59
teólogo e sacerdote belga. Fruto de profunda intuição, palavras proferidas na
abertura do evento que ficou conhecido como “Colóquios Gesché”. Este
empreendimento nasceu, segundo o próprio texto testemunha, de grande surpresa
e forte convicção. A surpresa porque, não obstante a grande evidência cultural que
o cristianismo demonstrou, de forte suspeita contra o corpo e as dimensões
atreladas a ele, como a sexualidade, a feminilidade, a afetividade, etc., é central,
também em todo percurso teológico, a compreensão que o corpo é de importância
fundamental para o cristianismo. Este não pode, com o risco de perversão fatal da
sua mensagem, afastar-se do corpo. A religião cristã é encarnacional, é uma
religião do corpo. Teologia da Criação nos coloca diante do corpo criado, e do
valor do ser corpóreo feito à imagem e semelhança de Deus.9 O Novo Testamento
encerra esta maravilhosa compreensão diante do mistério cósmico da encarnação:
Deus que se fez corpo e habitou entre nós, se fez ser humano.10
Esta é a surpresa e convicção, o evangelho cristão é inaugurado com uma
proclamação central: “A Palavra se fez carne” (Jo 1, 14). A afirmação que evoca
o corpo positivamente como lugar de revelação de Deus no encontro do ser
humano. Em um corpo humano, Deus se dá a conhecer. Lugar da suprema
revelação a nós. Corpo entregue a nós, corpo entregue por nós, corpo que se
humilha, que sofre por nós e por causa de nossa maldade. Corpo que morre,
erguido na Cruz, mas corpo que ressuscita. Fonte de renascimento e esperança
viva a todo que experimenta a força do tempo e da morte sobre si. Corpo que nos
antecede diante do Pai. Segundo Scolas, “existe aí uma autêntica invenção cristã
do corpo como lugar maior da revelação de Deus e da revelação do homem, uma
invenção que por sua vez deve ser inventada, inventariada, desdobrada em seu
poder revelador e libertador”.11
O desafio, proposto por Gesché, não é simplesmente renovar a linguagem,
tentando adaptá-la à moda contemporânea, buscando seguir a tendência
antropocêntrica deste tempo, em um esforço de diálogo com a sociedade. É
propor, de fato, um novo olhar, um pensamento renovado, revisitado,
reinaugurando uma compreensão possível que faça sentido à sociedade
contemporânea. Esforço este que segue de perto o firme e corajoso
9 Para a questão do tema da imagem de Deus no homem, na Bíblia e na Tradição. LADARIA, Luis
F. Introdução à antropologia teológica. São Paulo: Loyola, 2014, p.50-58. 10 Cf. SCOLAS, O corpo, caminho de Deus, p.7. 11 Cf. Ibid. p.8.
60
posicionamento do Concílio Vaticano II, sobre tudo em sua apresentação da
antropologia cristológica na Gaudium et Spes.12
Segundo Gesché, na grande novidade declarada por São João, “O logos se
fez carne e habitou entre nós.” Jesus é a Palavra de Deus que se fez carne. O uso
do termo carne “sarx”, é significativo. Ainda que sarx possa assumir múltiplas
significações no Novo Testamento, inclusive designar o corpo humano enquanto
portador do pecado, tendo no vocábulo soma (carne), usos mais nobres ou neutros
(como designação do homem, ser corpóreo, por exemplo). O apóstolo João, a
emprega para falar do ser corpóreo que se deu, e sem pecado. Qualifica a sarx
com a nobreza de identificar-se com a carne do Cristo. Carne que será dada como
alimento e que não é, evidentemente, um corpo de pecado, mas de ressurreição.13
A declaração do apóstolo João afirma que o Logos, assumiu a sarx. Logos,
na tradição filosófica grega, pela compreensão estoica, é uma entidade metafísica,
princípio divino, criador e ativo do qual toda realidade depende.14 Na tradição
judaica, utiliza-se o termo Dabar, a Palavra presente junto a Deus na criação de
todas as coisas. O que é ineditamente afirmado por João é que Jesus é esta Palavra
de Deus, (dabar, logos). E esta Palavra se fez carne, assumiu o corpo15
Segundo Gesché, ao associar logos e sarx, palavra e carne, João confere a
carne uma grandeza metafísica. Seu intuito é cristológico, mas também teológico,
e não deixa de ser fenomenológico e antropológico. Há uma fonte inesgotável de
conhecimento e verdade, ao afirma o corpo como apto para Deus, como também
Deus apto para a carne. Segundo o autor, aqui se dá uma invenção propriamente
dita, a invenção cristã do corpo. O corpo do ser humano não é indigno e incapaz
de Deus. 16
A corporeidade acaba por tornar-se este espaço hermenêutico de Deus e seu
amor. Onde Deus se dá a conhecer, onde expressa quem é. Corpo como caminho
de Deus a nós. Convite a nos achegarmos a Deus. Corpo, caminho de nós a Deus.
Sem confundirmos Deus com o ser humano, Ele se mostra a Si, a fim de que
todos, Nele, vejam e sejam vistos.
12 GS 22. Onde for citada a Constituição Pastoral Gaudium et Spes, será adotada a sigla
comumente aceita GS. 13 Cf. GESCHÉ, Adolphé. A invenção cristã do corpo. In: GESCHÉ, Adolphé. SCOLAS, Paul
(org.). O corpo, caminho de Deus. São Paulo: Loyola, 2009, p. 36. 14 Cf. MARCONDES, Danilo; JAPIASSU, H.. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1996. Verbete logos. 15 Cf. GESCHÉ, A invenção cristã do corpo, p. 37. 16 Cf. Ibid.
61
3.3.
Um Deus capaz do ser humano
Deus assumiu o corpo humano! É grave erro tornar corriqueira e banal tal
afirmação, pois ela não é. O Eterno se fez carne, se fez corpo, e fez deste seu lugar
de encontro e proximidade a todo ser humano. Esta verdade abala os fundamentos
do cosmo! E é com esta alegria e entusiasmo que Gesché encara as implicações
para pensar Deus em sua relação com o ser humano. Corpo lugar teológico, lugar
que afirma muito sobre quem Deus é. Esta é a investigação proposta neste
segmento.
3.3.1
Corpo, revelador de Deus
Deus vem a nós pelo corpo17. O que há de crucial nesta constatação bíblico-
teológica é o otimismo que resulta da afirmação do lugar do corpo humano na
revelação que Deus faz de si mesmo. A compreensão mais comumente aceita,
ainda que criticada, era de que a alma/espírito do homem seria o locus
privilegiado e prioritário da presença e atuação de Deus no ser humano. A critica
de Gesché é que tal compreensão propõe um Deus que nos alcança à distância.18
A Afirmação central do Novo Testamento, que precisa ter renovada sua
força e implicações na trama das realidades humanas é esta: A Palavra se fez
carne! (Jo 1,14) A Encarnação é um fato incontestável da presença de Deus entre
nós, Deus Emanuel. Cristo assumiu um corpo real, e não aparente como queriam
os docetas. E não outro corpo, dotado de características divinas, estranho ao
humano. Corpo verdadeiro, que se identifica com nosso corpo. Que sofre as dores
e experimenta o que experimentamos. Corpo que recebeu de nós. Pois gestado no
ventre de uma mulher escolhida por Deus, não vem à luz como anjo, mas como
ser humano que é. 19
Gesché ressalta que Santo Agostinho possui esta compreensão. Pode ser
vista no comentário que o grande teólogo de Hipona fez do Salmo 140:1, “Senhor,
clamo a ti, ouve-me;”, atribuindo tal clamor ao Cristo, afirma que este ora
17 Seguindo a indicação de Gesché, a distinção entre carne e corpo não é fundamental, então o
texto oscila entre os dois termos como sinônimos. Cf. GESCHÉ, A invenção cristã do corpo, p. 38. 18 Cf. GESCHÉ, A invenção cristã do corpo, p.39. 19 Cf. Ibid. p 40.
62
entregando seu corpo todo a Deus, cravado de agonia, soa gotas de sangue. E
porque sangra em agonia, senão para apontar o sangue de todos os mártires da
igreja na história.20O corpo que sofre e se identifica plenamente com o nosso
corpo. O que é tremendamente maravilhoso e novo, a novidade do Evangelho: a
Palavra assumindo o corpo, e na expressão de Gesché: “...descobriu a carne para
nunca mais deixa-la.”21
Para a Tradição, é com seu corpo, marcado pelas dores, chagado pelas
marcas da violência humana, mas também corpo vivificado pelas marcas da
beleza e do amor, quando fora ungido em Betânia, ressurreto pelo poder do Pai,
que a todos atraiu para si. É com seu corpo, este corpo que Cristo está assentado à
direita do Pai. “O corpo é agora patrimônio comum de Deus e dos homens.”22
Como o afirma São Tomás de Aquino em seu Sermão sobre o Credo, proferido
durante a quaresma de 1.273: Na expressão “Subiu aos Céus”, reside a máxima
compreensão de que também se trata de uma assunção do corpo físico. Cristo,
com seu corpo, adentra os lugares celestiais e faz dali morada perpétua. “Tal
ascensão foi realizada pela primeira vez por Cristo, porque até então o corpo
terreno estivera somente na terra, sendo o paraíso, onde esteve Adão, situado
também na terra”.23
O corpo torna-se lugar da revelação de Deus e sua imagem. Mas não é
exatamente isto que está em jogo nestes tempos tão conturbados? Após todo
percurso histórico do ocidente cristianizado, o desafio está em retomar uma
determinada imagem de Deus que aponte para aquilo que verdadeiramente afirme
sua essência e a vida. A cultura ocidental, em seu processo de cristianização,
afastou-se em muito desta compreensão fundamental. Segundo Gesché, a figura
de Cristo é um dos monogramas que fizeram nossa cultura.24 Mas que dizer então
da compreensão, que se tem, do que Cristo é? Se o Cristo é o revelador do Pai,
quanta distância existe entre a figura adensada no imaginário popular e nos
diversos ambientes eclesiásticos, sobretudo do Brasil? E se a compreensão que se
20 Cf. Agostinho, Salmos, p. 640. 21 Cf. GESCHÉ, A invenção cristã do corpo, p 40. 22 Cf. Ibid. 23 Passo 97 do Sermão sobre o Credo. 24 Cf. GESCHÉ, Adolphe. O Cristo. São Paulo: Paulinas, 2004, p.8.
63
faz de Deus, muito tem a dizer sobre o ser humano, como afirma Gesché,25 que
imagem de Deus se está a mostrar? E que imagem do ser humano se apresenta?
“Onde encontrar Deus?” é questão, para Gesché, que se apresenta antes da
pergunta se Deus existe ou não. Para o homem do Antigo Testamento, a questão
da existência de Deus não era um problema, a certeza absoluta de sua existência é
uma evidência. A questão era em relação a Sua presença. O “Ubi est Deus tuus?”
(Salmo 42,10). Na indagação dos inimigos do salmista, a suspeita de um Deus
ausente, distante, desinteressado.26
Na perspectiva de Gesché, esta questão na contemporaneidade vai além. A
não manifestação de Deus pode significar sua inexistência. A questão é colocada
no seguinte sentido: Antes de questionar-se sobre a existência de Deus (an sit27), e
o que é (quid sit28), o homem contemporâneo pergunta-se onde pode encontrar
Deus. Que Ele se manifeste! O que deve ser feito para encontra-lo?
Ainda que haja compreensão que de que Deus pode ser encontrado no
próximo, no outro, no humano, lugar onde Ele escolheu se manifestar, como o diz
a leitura do Novo Testamento, a pergunta é: este, de fato, é o primeiro lugar de
investigação? O perigo em levar adiante tal consideração é o risco de confundir e
identificar Deus com o próximo, sem afirmar Sua (de Deus) Alteridade
fundamental. Para Gesché, tal confusão pode terminar por propor um Deus “feito
por mãos humanas”, um Deus, construção do ser humano.29
A questão é que não se pode prescindir de Cristo para saber Deus. Cristo é o
revelador de Deus. Gesché sublinha Jesus como o lugar, o ubi, por excelência da
busca e do encontro de Deus. O lugar onde se deve procurar Deus em uma
25 Cf. GESCHÉ, Adolphe. Deus. São Paulo: Paulinas, 2004. 26 Cf. Ibid. p.30. 27 A questão sobre a existência ou não existência de Deus se dá a partir do século XIX.
Anteriormente, no ambiente Bíblico a questão é ignorada. Na Antiguidade, tal temática é trata
esporadicamente, e na Idade Média, a questão é puramente acadêmica. Ninguém acredita na
inexistência de Deus. Mas como toda proposição precisa ser demonstrada, é necessário que se
possa fazer à respeito de Deus também. Gesché questiona se, de fato, esta deve ser a primeira
investigação, como o quis Tomás de Aquino. Sobretudo na contemporaneidade. Mas admite que
tal enunciado tornou-se bem real a partir do século XIX e hoje vigora no pensamento e
questionamento em formas do ateísmo. Contudo, observa que o homem contemporâneo somente a
formula por pensar saber o que Deus é. “Sabemos (acreditamos saber) o que é esse que devemos
provar a existência ou não-existência.” Cf. GESCHÉ, Deus, p.16-19. 28 A questão do que é Deus (quid sit), emergiu com vigor após a segunda grande guerra. Diante do
horror, o que ficou em suspeição era o que Deus é? A questão se deslocou, para o homem
contemporâneo. O importante é esclarecer em que sentido se faz necessário pensar o absoluto?
Mas é preciso reconhecer que as duas questões são inseparáveis e circulares. Se dão uma dentro da
outra. Cf. GESCHÉ, Deus, p. 19-23. 29 Cf. GESCHÉ, Deus, p.31-34.
64
investigação teológica verdadeira deve ser em Jesus Cristo. Jesus Cristo é o lugar
natal de Deus. Jesus Cristo é o lugar onde Deus se fez carne e habita entre os seres
humanos e se torna, desta maneira, compreensível. Onde pode ser encontrado e
onde se manifesta. Deus somente pode ser compreendido se revelar-se a Si. Caso
contrário, não podemos conhecê-lo, compreendê-lo. Se Deus permanecer acima
de nossa capacidade de raciocínio, não poderemos sequer formular a possibilidade
de que Ele existe ou não. Mas a partir do momento que Deus se dá a conhecer em
Jesus Cristo, Ele se torna apreensível.30 “Toda cristo-logia é uma teo-logia.”31
E como Deus se manifesta?
É a questão que analisaremos na próxima proposição.
3.3.2
Um Deus capaz do corpo
A afirmação doutrinária comumente aceita é do ser humano capax Dei,
“capaz de Deus”. O ser humano criado por Deus, traz em si uma natureza
destinada a Deus. Esta aptidão não é um ato de força contra a natureza humana de
um Deus se impõe e o chama para Si. Mas é uma dádiva, pois, em seu próprio ser,
o ser humano é convidado a participar da vida divina. O ser humano foi feito para
Deus. Para a relação de amor e integridade em que seu ser não é engolido pelo ser
divino, mas alcança sua plena realização.32
Mas há também em Deus uma capacidade para tornar-se humano? Não por
sua onipotência, sua vontade sem obstáculos, o que seria forçoso, mas porque em
seu próprio ser, sua natureza carrega algo que o dispõe a isto? Um Deus capax
homini, “capaz do homem”. Esta é a proposição de Gesché.33
A investigação criteriosa e até, delicada, que captura Gesché, afirma-se em
uma suspeita sobre o Mistério da Encarnação. Seguindo percurso proposto por
Yves Congar, em um pequeno livro publicado em 1965: “quando se afirma na fé
que Deus realmente se tornou humano em Jesus Cristo, não é legitimamente
levado a afirmar que há nele [em Deus] algo que lhe permite sê-lo [ser humano].
E não sua onipotência; não somente até mesmo a liberdade de sua graça; mas algo
30 Cf. Cf. GESCHÉ, Deus, p.34. 31 Ibid. 32 Cf. GESCHÉ, O Cristo, p.201. 33 Cf. Ibid. p. 202.
65
que, positivamente levou-o [...] a tornar-se humano”?34 Isto é, em sua economia
(Deus em relação a nós), não revela algo de Sua natureza?
É a afirmação positiva desta compreensão que toma direção na reflexão de
Gesché. Como, Bernando de Claraval parece propor, a encarnação do verbo não
parece ser fruto de uma decisão histórica súbita e contingente, mas de sua própria
natureza intrínseca que se dá a conhecer na história. Intuição que é confirmada
pelas Escrituras, por exemplo, o Novo Testamento e principalmente nas cartas
paulinas. Ao falarem do mistério de Cristo, não se referem somente ao evento da
Encarnação e Redenção, mas também como participante da Criação. A fórmula do
apóstolo João traz indicação, mas todo o Novo testamento permite enxergar a
preexistência do Filho. Na concepção de Gesché, o Verbo preexistente e real é já
revestido da humanidade que fez presente na história.
Jesus Cristo, poder e sabedoria de Deus (I Co 1,24); primogênito de todas as coisas
(Cl 1,15); é anterior a tudo (Cl 1,17), Ontem e Hoje, Jesus Cristo é mesmo e
princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos olhos, o que temos
contemplado e as nossas mãos têm apalpado, [...] o que vimos e ouvimos nós vos
anunciamos. (I Jo 1,1-3).35sempre o será (Hb 13,8); antes que Abraão aparecesse
(Jo 8:58);
E conclui:
Esse tema é tão constante que se chega até a falar de “o Cordeiro imolado desde a
fundação do mundo”(Ap 13,8),[...] Tendo em vista que ela [a Escritura]
evidentemente bem sabe que o Verbo se encarnou no tempo [...]. Mas, justamente,
embora sabendo isso perfeitamente, ela pensa igualmente que, vista em Deus, isto
é, em seu lugar próprio, a Encarnação é uma realidade eterna.36
O verbo eterno é aquele que é “capaz” de encarnar, e isto é próprio de sua
natureza. A Encarnação não é um ato de violência, pois estamos diante de um
Deus que não é estranho nem a humanidade, nem ao cosmos. Sua habitação na
terra responderá aquilo que Ele é. Há em Deus uma estrutura “capaz” de
humanidade. Gesché arrisca-se a dizer que o Verbum incarnadum, capaz de
encarnar, é feito para este mundo.37
Compreensão que se percebe nos escritos de Clemente de Alexandria:
34 Cf. GESCHÉ, O Cristo, p. 203. 35 Cf. Ibid. p. 211. 36 Ibid. p. 212. 37 Cf. GESCHÉ, Adolphe. O Cosmo. São Paulo: Paulinas, 2004, p.81.
66
Quando o Verbo estava nas alturas, Ele era e é o divino começo de todas as coisas.
Mas, agora que recebeu como nome "Aquele-que-foi-consagrado", o nome de
"Cristo", eu chamo-lhe "um cântico novo" (Sl 33, 144, 149, etc.). O Verbo fazia-
nos existir há muito tempo, porque estava em Deus; por Ele a nossa existência é
boa. Ora este Verbo acaba de aparecer aos homens, Ele que é Deus e homem; Ele é
para nós a causa de todos os bens. Tendo aprendido com Ele a viver bem, somos
por Ele introduzidos na vida eterna. Porque, como nos diz o apóstolo do Senhor, "a
graça de Deus, fonte de salvação, apareceu a todos os homens; ela ensina-nos a
renunciar à impiedade e às cobiças do mundo e a viver no tempo presente com
temperança, justiça e piedade, aguardando com jubilosa esperança, a revelação da
glória do grande Deus, Jesus Cristo, nosso Salvador" (Tt 2,11-13). (Clemente de
Alexandria, Protréptico, I, 7,1)
Um Deus capaz do ser humano, esta é a afirmação. Pois não foi do alto de
uma transcendência incandescente que veio ao homem, mas em sua própria
humanidade, que é nossa.38 Deus vem a nós, assumindo nossa carne, e nos
convida a ir até Ele, em sua carne, assumindo a humanidade que Ele nos
outorgou. É o caminho da verdadeira humanização que nos eleva a Deus. Algo
inédito ao entendimento visto na percepção da religiosidade humana que
compreende enganosamente que para chegar-se a Deus o ser humano precisa
rejeitar a si mesmo. 39
É a acusação que Santo Irineu faz contra os gnósticos: Um Deus incapaz de
comunicar-se com o humano, que se mantém afastado por absoluta apatia às
coisas terrenas. Ao contrário, a fé cristã faz ver um Deus que não somente se
interessa pelo humano, mas que nele mesmo, Deus, experimenta da humanidade
nossa, em tudo identificando-se conosco, menos no pecado.
Estes, porém, sonham um Deus superior a este, que não existe, e julgam ter
encontrado um deus grande que ninguém pode conhecer, que não comunica com o
gênero humano nem se interessa pelas coisas terrenas; e assim acabaram por
encontrar o deus de Epicuro que não é útil para si, nem para os outros, isto é, um
deus sem providência. (Santo Irineu, Contra as Heresias, III, 24, 2)40
Portanto, se a maneira de afirmar Deus fosse afirma-lo capaz do ser
humano, não seria o cristianismo uma religião da encarnação? Deus e o ser
humano se intersignificam. Se o ser humano chega à realização daquilo que é, na
proximidade com Deus, a proposta de Gesché, audaciosa e feita aqui com todo o
38 Cf. GESCHÉ, A invenção cristã do corpo, p. 50. 39 Cf. GESCHÉ, O ser humano, p. 117. 40 Cf. GESCHÉ, A invenção cristã do corpo, p. 45.
67
cuidado é: “guardando os limites de toda analogia, Deus não realiza algo de Si
quando se aproxima o mais perto de nós?”41
Se Deus vem a nós pelo corpo, e não numa transcendência distante, esta
proximidade não é imposição, é convite. Convite a que cheguemos a Ele, pelo
mesmo corpo que vem a nós. Se o corpo é caminho de Deus a nós, pelo mesmo
caminho podemos ir a Deus sem receios, nem proibições. “Poderia alguém tocar
com suas mãos a Palavra de vida, se a Palavra não se tivesse feito carne e
estabelecido sua morada entre nós?”42
O que era desde o princípio, o que nós ouvimos, o que vimos com os nossos olhos
e as nossas mãos tocaram da Palavra da Vida (1Jo 1,1). Quem poderia tocar a
Palavra com suas mãos, a não ser porque a Palavra se fez carne e habitou entre
nós? (Jo 1,14). Dos Tratados sobre a Primeira Carta de São João, de Santo
Agostinho.
3.4
O ser humano capaz de Deus
Em Jesus Cristo, revelação-encarnação do Deus de amor, vemos
descortinado o mistério do ser humano. Os sentidos da existência e o significado
ontológico do humano, bem como sua finalidade, são conhecidos em Cristo. E tal
revelação não se dá distante, mas no corpo humano, que assumiu para si, fazendo
então do corpo lugar da morada de Deus, corpo humano, corpo de Cristo.
Caminho de Deus para o ser humano, caminho do ser humano para Deus. A
teologia pensando o corpo, pode falar a fé cristã como viver na dinâmica das
realidades corporais, concretas e históricas. A fé cristã, pensando o corpo, pode
anunciar à sociedade pós-moderna o verdadeiro valor e lugar do humano.
3.4.1
A partir de Cristo, o ser humano
Não se tem então o direito, considerando apenas o plano da história cultural, de
levar em conta essa louca ideia da Encarnação? Pode-se compreender o Ocidente,
sua filosofia, sua antropologia, sem a figura de Cristo? (...) Sem essa figura do
Homem-Deus, na qual parece que toda revelação do que é Deus (Antigo
41 GESCHÉ, O Cristo, p. 224. 42 Cf. GESCHÉ, A invenção cristã do corpo. p.42.
68
Testamento) e toda descoberta do que é o ser humano (Grécia) acham-se reunidas.
De sorte que se descobriu enfim Deus para compreender o ser humano e o ser
humano para compreender Deus. De modo que, ao lado da ideia de que só Deus
fala apropriadamente de Deus (Karl Barth), apareceria agora a feliz ideia de que o
ser humano pode falar, e falar de modo apropriado de Deus. E que falando desse
Deus, o ser humano pode falar de si próprio, pois em todo caso é-nos dito que, em
alguém, Deus e o ser humano se encontram.43
Na afirmação tão cristalina de João 1.14, compreendida sob a luz do
Genesis 1.26-27, o ser humano é chamado a compreender-se como imagem
Daquele que é imagem de Deus. Gesché assevera que Cristo é o espelho da
relação entre Deus e o ser humano. Onde o ser humano se percebe, se
compreende, como deve ser. A ousadia e coragem que fundamenta o pensamento
de Gesché é que tal compreensão teológica pode enfrentar em igualdade de
condições outras teorias sobre o ser humano, e apresentar-se como contribuição
para o diálogo entre as ciências, de maneira legível e inteligível pelo homem
contemporâneo em busca de sentido. E do sentido último da existência, busca que
extrapola o âmbito religioso e abarca o campo antropológico, pois está presente
em todas as pessoas, culturas e povos.44
Gesché advoga que, nestes tempos, precisamos mais do que uma
“cristologia de costumes e repetições”, que não dialoga com a cultura atual. A fé
cristã precisa retomar o degrau mais baixo e desconfiar do que já se cristalizou
como saber. Para poder de novo enxergar e conceber as conexões para falar a este
tempo. Isto é, revestir-se de uma “sacra ignorantia”, que a fará percorrer os
caminhos da pesquisa e a busca de resposta, e reafirmar convicções, mas também
refutar compreensões cristalizadas e caducas.45
Isto porque após vinte séculos de discurso cristológico, estamos diante,
talvez, de um dos momentos mais propícios a falar a sociedade. Após todo
processo maravilhoso de maturação da mensagem cristã, e diante de um momento
em que o ser humano, também por um processo histórico de busca de respostas,
cansado de velhos recursos, pode pôr uma pedra definitiva na “questão de Deus”,
43 GESCHÉ, O Cristo, p. .9. 44 AMADO. Joel Portella. Entre Deus e Darwin: contenda ou envolvimento? In: GARCIA
RUBIO, Alfonso; AMADO, Joel Portella (Org.). Fé Cristã e pensamento evolucionista.
Atualizações teológico pastorais a um tema desafiador. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 86. 45 Cf. GESCHÉ, O Cristo, p.10
69
ou, vendo pelo ângulo do teólogo belga, o último instante que este ser humano
deseja eventualmente ainda aceitar voltar-se a um Deus crível.46
É precisamente este o trabalho da Cristologia, para Gesché: superação de
determinados conceitos, imagens de Deus47 que, úteis ao seu tempo, perderam
sentido no desenlace histórico. A necessidade de novos conceitos, reavaliados à
luz da revelação bíblica, que restituam o sentido da intuição primeira para esta
cultura. Afinal, “a teologia é a procura permanente de reencontros e de renovação
do sentido”.
Esta compreensão que dá início aos primeiros traçados em sua obra, O
Cristo48. Não caberá nesta pesquisa percorrer todo caminho da proposta
cristológica de Gesché, mas o intuito é reafirmar a centralidade de sua
compreensão do lugar de Cristo e da consequente cristologia: Revelador de Deus
e revelador do humano. “Ora, é justamente uma resposta a nossas prementes
questões sobre Deus e sobre o ser humano que Cristo nos propõe e por causa da
qual se encontra no centro da nossa fé. A cristologia tem por dever ser teo-logia e
antro-pologia antes de ser cris-tologia.49
O primeiro dever de uma cristologia não é, portanto, pensar Cristo, mas pensar o
que Cristo pensou, disse e fez: não anunciar Jesus, mas anunciar quem ele anuncia.
O resto virá depois, Jesus morreu e ressuscitou por causa de uma determinada ideia
de Deus e do ser humano, e é isso que importa antes de tudo. O primeiro momento
da cristologia deve ser centrífugo e não centrípeto.50
46 Cf. GESCHÉ, O Cristo, p.10. 47 De modo livre, Gesché percorre algumas figuras, ou caricaturas, de Deus que ocorreram em
momentos históricos. Um Deus garantidor melindroso da moral, sempre com resposta já pronta
para todas as questões. Ou um Deus sentimental, “colega”, ou “camarada” como se disse de Cristo,
fazendo perder sentido palavras como Amor; um Deus que micro gerencia a vida, ocupando-se de
tudo, indiscreto, onipresente e abusivo. Imagens bem diferentes das de um Deus que saiba, por
vezes, ficar de fora, e por isso mesmo ser Deus. Cuja presença norteie os rumos humanos. Em cuja
palavra, verídica e verificante, torna-nos verdadeiros, pois trata-se de um Deus verdadeiro e não de
uma divindade. Um Deus que não é a projeção das sedes de poder humano, mas convite a
liberdade, persuasão, em amor, mais do que mandamento. Que se oferece e aceita ser recusado.
“Não uma transcendência incandescente, nem uma imanência asfixiante, mas sim, transcendência
na imanência. O invisível que indica o visível, o indizível que se abre ao dizível. “Que ama o
corpo a ponto de pedi-lo para si próprio. Cf. GESCHÉ, O Cristo, p.10-11. 48 Cf. GESCHÉ, O Cristo, p.12. 49 Cf. Ibid. p. 18. 50 Cf. Ibid. p. 23.
70
3.4.2
Corpo na fraqueza: a kenosis de Deus como lugar de encontro
Gesché critica a imagem de Deus produzida por uma teologia que procurou
encontra-lo “pelo orgulho da mente”. Construções intelectuais e exageradas que, a
partir do pensamento grego e a teodicéia, estabeleceram uma noção de Deus que
não vai além de “sua onipotência e impassibilidade absolutamente etérea e mortal
para o homem”.51 A racionalidade orgulhosa e arrogante, da modernidade,
concebeu um deus igualmente orgulhoso e inacessível. “Transcendências fechadas
e incandescentes, rudes e indiferentemente arrogantes e invulneráveis e, por isso
mesmo, inacessíveis!”.52 Nas fortes palavras de Gesché, o Deus concebido pela
racionalidade arrogante e orgulhosa humana, foi posto sob forte suspeita diante da
ausência de respostas em um mundo que se ia cada vez mais imergindo em
angústia, porta cada vez mais aberta ao ateísmo. O Deus da racionalidade
mostrou-se distante e incapaz do ser humano. O ser humano, por outro lado, viu-
se incapaz de Deus.53
Mas não é exatamente aí, na busca de entendimento de quem Deus é, que a
compreensão da corporeidade como lugar teológico se faz mais significativa? A
prova derradeira e indubitável que se dará sobre Deus, segundo Gesché, não será a
buscada pela racionalidade estéril, mas a prova que Tomé pede para poder crer: “a
presença das chagas e da fragilidade do corpo de seu Deus (Jo 20, 28)”.54
Descortina-se uma verdade que inverte toda a lógica racionalista moderna,
podemos alcançar a Deus em sua verdade, isto é, na “fraqueza”, e não por sua
onipotência. E aqui está o âmago da revelação cristã que inverte e renova
inteiramente a ideia de Deus. Ao encarnar em sua carne, que também é nossa,
Deus, pela Palavra encarnada, nos encontrou em nossa fraqueza.
A Palavra é em Deus a fraqueza, quero dizer, a abertura para nós, fragilidade,
humanidade, essa humanidade que muitos Padres da Igreja reconheceram que
podia ser a parte misteriosa de humanidade em Deus, presente desde toda
eternidade, antes mesmo da Encarnação55
51 Cf. GESCHÉ, A invenção cristã do corpo, p. 49. 52 Ibid. p. 50. 53 Cf. Ibid. p. 49. 54 Cf. Ibid. p. 50. 55 Cf. GESCHÉ, A invenção cristã do corpo, p. 49.
71
Gesché acena o corpo como lugar da experiência de Deus. É graças à
encarnação de Sua Palavra, que podemos saber que Deus pode ser frágil,
vulnerável. Ao encontrarmos Deus na fraqueza do seu e do nosso corpo, não o
encontramos mais no orgulho do nosso intelecto e sim, na cotidiana e histórica
experiência da vulnerabilidade da vida.56 Algo diverso da compreensão
estabelecida que somente a perfeição pudesse aproximar de Deus. Postura que
vigora em determinadas espiritualidades “assassinas”, segundo Gesché. Não é a
postura criticada por Jesus na roupagem religiosa dos fariseus? “Não vim para
chamar os justos! (Mt 9,13)”. Religiosidade que perde de vista o ser humano em
sua condição histórica, pois quem é perfeito suficiente? Justo suficiente?
Falar de um Deus passível (e não, fraco, como prefere Gesché) é caminho
para enxergar um Deus aberto à relação. Um Deus que se sensibiliza, afetado, por
amor, ao que acontece a vida humana. Um Deus que escolheu o caminho do amor,
e em consequência disto o caminho da interpelação, do convite, ao ser humano, e
não do poder absoluto e indiferente. Falar de um Deus que se vulnerabiliza não é
rebaixá-lo à condição ínfima. Não se trata de rebaixar Deus à fraqueza, à
incapacidade como se fosse uma falta. Mas trata-se não somente de um Deus
capax Dei, capaz de si mesmo (“todo-poderoso, “impassível”, “onisciente”), mas
de um Deus capax homini, como afirma Gesché. Transcendência sim, mas não
fechada e apartada do dilema humano, e por isto impassível, mas transcendência
que conhece e se dá a conhecer na e pela relação de amor. 57
Longe dos remorsos e do desespero das imperfeiçoes, longe de uma luta
insuperável e mortífera por uma perfeição sem misericórdia, é com nosso corpo, tal
como é, com nossa suave sensibilidade tantas vezes desajeitada, maravilhosamente
desajeitada talvez, que podemos alcançar o verdadeiro Deus, que é também
sensível e amoroso, isto é, doloroso (cf. Is 53,3). “Traga o homem, todo seu afeto à
amável paciência da carne de Cristo”, diz soberana e tranquilamente o abade
Elredo de Rièvaux (1110-1167), discípulo de São Bernardo (Speculum Caritatis [O
espelho da caridade], III, 5)58
O corpo, lugar da experiência de Deus. Corpo que padece, corpo que foi
ferido. É somente nisto que a ideia de Deus torna-se suportável para a
contemporaneidade. Um Deus diante do qual não nos sentimos condenados pela
sua grandeza e perfeição sem misericórdia. Um Deus que não deseja infligir medo
56 Cf. GESCHÉ, A invenção cristã do corpo, p. 50. 57 Cf. Ibid. p. 51. 58 Ibid. p. 50.
72
ao ser humano como meio de produzir obediência. Um Deus que não deixa em
momento algum de ser Deus, mas no corpo e através deste, toca amorosamente
em nossos corpos empoeirados pelas estradas da existência, empoeira seus
próprios pés e nos convida à vida. Como propõe Gesché, o corpo precisa ser
entendido como inteligibilidade de Deus. “Graças ao corpo, sabemos que Deus é
Deus e não uma divindade. Diante de um Deus que sofreu, ainda que uma única
vez, não me sinto diante do impossível. E contemplando esse Deus, posso afinal,
reconhece-lo e repetir a exclamação inesquecível de Tomé: ‘Meu Senhor e meu
Deus!’(Jo 20,28) ”.59
3.4.3
Corpo do Outro
Onde está Deus? Onde poderemos encontra-lo? Tal indagação continua
reverberando na consciência do homem e mulher contemporâneos. Como foi dito,
Gesché propõe que a vinda da Palavra de Deus em nosso corpo tornou-se
permitido e possível, e nos fez encontrar a Deus em seu corpo, que é nosso. Se
devemos ir a Deus pelo corpo de Cristo, onde está Cristo? Onde está seu corpo?
Corpo é lugar de encontro, e no Cristo que se fez carne, não vemos somente
nosso corpo próprio. Está nele espelhado, o corpo do outro. Como propõe Gesché,
trata-se de uma verdadeira extensão do corpo de Cristo ao corpo do próximo.60
Qualifica esta grandiosa afirmação como “uma segunda encarnação de
Cristo”.61 “Somos corpo de Cristo” (I Cor 12,27); “nossos membros são membros
de Cristo” (I Co 6, 15; Ef 5,30), somos chamados em Cristo para formarmos um
só corpo (Cl 3,15); ainda, somos um só corpo em Cristo (Rm 12,5), Cristo é a
cabeça e nós somos igreja, “que é o seu Corpo: a plenitude daquele que plenifica
tudo em tudo (Ef 1,23).
Entendimento que sublinha grande audácia e consequências que não podem
ser desprezadas. A audácia vem do testemunho do Novo Testamento, nas palavras
de Paulo: o corpo de Cristo não é somente aquele corpo do judeu palestinense,
59 GESCHÉ, A invenção cristã do corpo, p. 52. 60 Cf. Ibid. 61 Cf. Ibid.
73
que morreu e foi ressuscitado pelo Deus e Pai. Mas, todo corpo humano que
identificado com Seu corpo (de Cristo), torna-se extensão de Sua presença. 62
A igreja denominará posteriormente esta compreensão de “Corpo místico”
de Cristo, contudo Gesché alerta para certa “suavização” da mensagem que este
termo encerra, mal empregado nesta circunstância, pois dá a ideia de algo etéreo,
distante. Não! O que é dito por Paulo é que “o corpo de Cristo (o corpo de Deus)
se encontra também no corpo do próximo”. Algo que será dito da Igreja, como
corpo de Cristo. Mas isto pode parecer restritivo, como se, somente na igreja
cristo fosse identificado por seu corpo. O alcance vai além. E diante da
compreensão de que a Igreja é um chamamento, uma convocação (ek-klesía,
chamados para fora), é interpelação a todo ser humano, que pode responder
livremente.63
Gesché afirma que as consequências disto são enormes: “De agora em
diante, maltratar o corpo do outro é maltratar o corpo de Cristo”.64 Esta declaração
assim disposta, cria, de fato, uma reverberação de alcance ilimitado. Como na
célebre passagem de Mt 25, 40 “Todas as vezes que fizerdes isso a um dos mais
pequenos, que são meus irmãos, é a mim que o fareis”. Ou “Aquele que diz que
está na luz, mas odeia seu irmão, está em trevas até agora” (1 Jo 2,9); ou “Se
alguém afirmar: "Eu amo a Deus", mas odiar seu irmão, é mentiroso, pois quem
não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê”. (I Jo
4,20). No Novo Testamento esta afirmação vai além do que foi dito no Antigo
Testamento, quando já foi dito sobre o dever de amor ao próximo. O que fazemos
ao outro, a Deus fazemos, pois, a Palavra de Deus se encarna no outro. Segundo
Gesché, uma autêntica invenção cristã: O corpo do outro é lugar do encontro de
Deus.65
Para encontrar a Deus verdadeiramente, o meio que nos é dado é o de apoiar a mão
no ombro do nosso próximo, e especialmente no ombro daquele que for o mais
desamparado, mas cujo clamor, como já se dizia no Antigo Testamento, se eleva a
Deus.66
62 Cf. GESCHÉ, A invenção cristã do corpo, p. 52. 63 Cf. Ibid. p. 53. 64 Ibid. 65 Ibid. 66 Ibid.
74
Voltar-se para o próximo, sobretudo dos mais necessitados não é postura
nova na compreensão cristã. Por isso deve-se evitar o risco de instrumentalizar o
corpo do próximo, como meio para encontrar Deus, isto é, servir-se dele para
chegarmos até Deus. Como uma escada, um trampolim, sendo pisado pelo falso e
interesseiro amor. Como afirmou Paulo, seria somente “bronze que soa, ou
címbalo que tine” (I Co 13:1). Sacrílega inversão, aponta Gesché. O que deve ser
marcado é esta nova inteligibilidade do corpo que surge no interior do
cristianismo: o corpo do próximo como lugar da experiência de Deus. Onde o
outro é valorizado por ser quem é, mas também, o próprio Cristo se dá em relação.
O próximo é o corpo de Cristo, por conseguinte devemos tomar para encontrar o
Senhor. Se não é muita ousadia, diria: Não devemos ir muito longe para encontrar
nosso Deus. Quando abrir à nossa porta para o próximo, eis que o próprio Senhor é
que bate à nossa porta e “estabelece em nós morada. (cf. Ap 3,20)”67
Compreensão compartilhada por Le Trocquer, a pessoa humana é resposta,
e realiza-se respondendo; se aperfeiçoa, acolhendo; realiza-se, se oferecendo.68
Movimentos de saída de si. E não é propriamente tal movimento, de saída de si,
reconhecendo o outro como alteridade, que se dá a abertura para o encontro de
Deus?
Consideração também proposta pelo Professor Bruno Forte, em seu livro
“Um pelo outro: Por uma ética da transcendência”. Não é também este
movimento que fundamenta a ética? Nesta direção afirma que não pode existir
ética sem transcendência, não há responsabilidade nem vida moral sem um
movimento de saída de si para ir em direção ao outro e reconhecê-lo na
concretude de sua alteridade.69
Descobrir Cristo no corpo do outro e buscar o outro, pelo seu valor como ser
humano que é, tem consequências que justificam por si só toda a Revelação de
Deus dada a nós, e a existência da igreja cristã.
67 GESCHÉ, A invenção cristã do corpo, p. 54. 68 Cf. LE TROCQUER, René. Que é o homem? Ensaio de antropologia cristã. São Paulo: Ed.
Flamboyant, 1960, p.54-67. 69 FORTE, Bruno. Um pelo outro: por uma ética da transcendência. São Paulo: Paulinas, 2006.
75
3.4.4
Corpo, comunidade eucarística
E é nesta dialética entre o corpo de Cristo, o corpo próprio, e o corpo do
próximo, os sacramentos e mais especificamente a Eucaristia ocupam papel
fundamental. A linguagem sacramental carrega a imagem do corpo de maneira
bastante significativa. E na Eucaristia, o próprio Cristo se oferece como
significado entre os comungantes. Gestos sacramentais que apontam o corpo e
tocam o corpo e que ocupam lugar prevalente de vivência, ensino e lembrança da
presença. Pois o sacramento epifaniza a presença de Cristo. A sacralidade do
corpo é imagem suficientemente forte. Traz presente o que estava ausente;
manifestando através das espécies, manifestando a transformação também em
nossos corpos.
Gesché vê na fisicalidade dos sacramentos gestos concretos que descortinam
para a comunidade seu sentido mais pleno. Pão e vinho, sinais do corpo de Cristo,
são tomados por nós, corpo tomado por nós. Para nos incorporar nele. No gesto
da partilha do pão, a interpretação cristológica do gesto eucarístico se encontra
com a interpretação eclesial e fraterna. Pão partilhado, corpo partilhado, oferecido
gratuitamente ao outro, aceito gratuitamente diante do oferecimento. 70
Na Eucaristia, o encontro com o corpo de Cristo, se faz encontro com o
corpo do próximo. Demonstrado na cena do Lava-pés, para Gesché, verdadeiro
gesto sacramental, que bem poderia ser restituído nas liturgias.
Ao voltar da mesa, o encontro com o corpo de Cristo deve prolongar-se para o
encontro com o corpo dos ouros. Do contrário, é o corpo do Senhor que se mancha.
A comunidade que se rompe, rompe o corpo do Senhor (cf. I Co 11,18.22) (...)
Sabe-se que Jesus, do discurso pronunciado na Última Ceia, “ignora” a Ceia e a
“substitui” pelo lava-pés. No final daquela cena, Jesus recomenda aos apóstolos
fazerem o mesmo entre si. (...) Essa cena não deixa de ser a mais significativa e
mais impressionante, como um acontecimento que não permite separar a Eucaristia
da preocupação dos irmãos, que também são corpo de Cristo. Ao socorrê-los,
celebramos uma verdadeira eucaristia.71
Chauvet, teólogo francês que participa dos “Colóquios Gesché” e do Livro
O corpo, caminho de Deus, com o capítulo, Os sacramentos ou o corpo como
70 Cf. GESCHÉ, A invenção cristã do corpo, p.55-58. 71 Ibid. p.59.
76
caminho de Deus, afirma que os sacramentos remetem de maneira literalmente
radical à mediação da corporeidade. Combatem certa tentação gnóstica “de
ligação direta com Cristo ou contato iluminístico com o Espírito Santo”. Isto é, a
tentação de uma espiritualidade em fuga do corpóreo, somente podendo ser
plenamente vivida e recebida em um plano além do terreno, como se Deus
pudesse ser plenamente recebido somente quando o corpo fosse abandonado. Em
suas palavras, os sacramentos rompem com nosso
...sonho de presença plena e imediata de Deus. Eles nos dizem que a fé só pode se
manter mantendo-nos no corpo e que o tornar-se crente é, portanto, aprender a dar
o consentimento à corporeidade dessa fé. Eles nos dizem que é no mais corpóreo
que o mais espiritual é chamado a acontecer e que o lugar cristão do teológico é o
“antropológico”. Eles nos dizem que é no mais corriqueiro empirismo e opacidade
de um corpo, de uma tradição, de uma história, que se realiza a fé naquilo que ela
possui de mais “verdadeiro”. Em suma, eles nos dizem que verdadeiramente, o
corpo é o “caminho de Deus” nos dois sentidos72 da expressão”.73
Na reflexão realizada pelo Pontifício Comitê para os Congressos
Eucarísticos Internacionais, o mistério Eucarístico abre os nossos olhos para as
implicações sociais, culturais e políticas do Evangelho. É “uma escola de amor
efetivo ao próximo”. E relembra as palavras de Madre Teresa de Calcutá: “na
Missa nós temos Jesus, sob a aparência de pão, ao passo que nas favelas nós
vemos e tocamos em Cristo, nos corpos mutilados e nas crianças abandonadas.
Uma participação verdadeira na Missa nos fará rever as nossas relações pessoais,
sociais e institucionais com o próximo”.74
Cabe dizer que as igrejas evangélicas, apesar de não utilizarem o termo
“missa” e comumente usarem o termo Ceia do Senhor para referir-se à Eucaristia,
seu significado e os efeitos da celebração sacramental são, do mesmo modo,
identificados com o Cristo que oferece seu corpo por nós, no pão e no vinho e,
72 Os dois sentidos a que se refere e já explicitado: O corpo, caminho de Deus. Caminho de Deus
ao ser humano e caminho do ser humano a Deus. 73 Cf. CHAUVET, Louis-Marie. Os sacramentos ou o corpo como caminho de Deus. In:
GESCHÉ, Adolphe; SCOLAS, Paul (Org.). O corpo, caminho de Deus. São Paulo: Loyola, 2009.
p. 128 74 Nº 47. Pontifício Comitê para os Congressos Eucarísticos Internacionais. A Eucarístia:
comunhão com Cristo e entre nós. Reflexões teológicas e pastorais em preparação para o 50º
Congresso Eucarístico Internacional, 2012. Disponível em:
http://www.vatican.va/roman_curia/pont_committees/eucharist-
congr/documents/rc_committ_euchar_doc_20110215_50-testo-base_po.html#_ftn25. Acesso em
02/06/2016.
77
incorporados nele, somos instados a tocá-lo e enxerga-lo no corpo do próximo,
sobretudo dos mais necessitados.75
A expressão que Gesché utiliza, emprestada de Teresa D´Avila “amor de
ação”76 pode muito bem ser reverberada nas palavras de uma oração atribuída à
Santa, como destaca a reflexão pastoral do congresso eucarístico:
Cristo não tem mais corpo além do seu, ele não tem mais mãos, além das
suas, nem os pés, além dos teus. Os seus olhos serão os olhos através dos
quais a compaixão de Cristo deve olhar para o mundo. Os seus pés serão os
pés com os quais Ele caminhará fazendo o bem. Suas serão as mãos com as
quais Ele nos abençoará agora.77
Como Gesché procurou salientar, o signo, o significante e o significado,
sequência observada na analogia de Tomás de Aquino: a metáfora viva (o pão e
vinho), a metáfora vivificante (o corpo eucarístico), e a metáfora vivida (o
compartilhamento com o próximo).78
Abrir mão dos elementos, eucarísticos e sacramentais, que ganham
significados além de si, pois são tomados como realidade viva, é desvalorizar o
gesto de Cristo se comparte por todos. Valorizar mais os elementos eucarísticos
da Ceia, do que o corpo do outro, o corpo próprio, feito corpo de Cristo, é perder
todo o sentido do encontro, em que gestos concretos nutrem a vida. E a vida é
nutrida pelo compartilhar. O corpo eucarístico de Cristo reafirma esta verdade,
75 As Igrejas protestantes usam comumente a expressão Santa Ceia/Ceia do Senhor para designar a
Celebração Eucarística da comunidade cristã. Sendo, pois, a Eucaristia o ponto central da vida da
Igreja, é natural que tenha constituído também uma das matérias mais destacadas do diálogo
ecumênico. Como em outros campos dogmáticos, também em relação à eucaristia, não é possível
ignorar as diferenças que nos separam dos irmãos de outras confissões cristãs, pois aí radicam os
obstáculos que impedem uma intercomunhão plena. Mas também é necessário tomar
conhecimento das convergências e do caminho percorrido em direção à unidade. Com as igrejas da
Reforma, as diferenças doutrinárias a respeito da Eucaristia podem fazer referência ao papel que
correspondem ao ministro ordenado, ao modo como se produz a presença de Cristo, à relação entre
presença e espécies eucarísticas, ao caráter sacrifical da missa, à intervenção da comunidade na
celebração, ao culto eucarístico fora da missa, etc. Evolução recente do diálogo constatou-se um
progresso notável a respeito da eucaristia. Viu-se que, em grande parte, as diferenças apontadas
eram mais devidas ao modo diverso como essas verdades são expostas do que ao conteúdo
propriamente dito dos enunciados. Verbete Eucaristia, subitem Eucaristia e Diálogo Ecumênico.
SÁNCHES, Jesus Hortal. Guia Ecumênico. Informações, Normas e Diretrizes da Igreja Católica
em Matéria de Ecumenismo. 2. ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1984, p.176-182. 76 GESCHÉ, A invenção cristã do corpo, p.54. 77 Disponível em: http://www.vatican.va/roman_curia/pont_committees/eucharist-
congr/documents/rc_committ_euchar_doc_20110215_50-testo-base_po.html, acesso em
02/06/2016. 78 GESCHÉ, A invenção cristã do corpo, p.61.
78
este fundamento de toda teologia cristã, a saber, que a Palavra se faz carne para
constituir nosso corpo.79
3.5
Síntese Conclusiva
O interesse de Gesché é mostrar como o discurso da fé pode contribuir para
a compreensão do ser humano. Em seu entendimento, a teologia desempenha uma
dupla função neste sentido. Presta seu serviço, ora em favor dos que creem, a fim
de mostrar o significado da fé, ora em favor do que não creem, mostrando que seu
discurso tem lugar nos discursos humanos. É nesta dialética que propõe pensar a
corporeidade como contribuição valiosa.80
A teologia pode nos ensinar sobre nós, cristãos, a partir do corpo.
Movimento que Gesché nomeia como “corpo para pensar o cristianismo”. E a
partir do corpo, pode dialogar com a sociedade, diante do homem que se pergunta
sobre seu corpo os sentidos de humanidade, “Cristianismo para pensar o corpo”.81
Movimento em dois percursos centrífugos a partir do corpo e da teologia, que é
onde o corpo obtém sua significação. Pois a intenção maior de Gesché, é pensar a
corporeidade e o ser humano, a partir do seu lugar maior de sentido, Deus.
O corpo se torna lugar de máxima importância e relevância para pensar a fé,
não somente pela razão do ser humano não existir sem um corpo. Mais, o ser
humano é corpo e através dele estabelece relações de sentido com a realidade a
volta. Mas, sobretudo, pela auspiciosa notícia: “O verbo se fez carne”! Cristo,
revelador de Deus, o “ubi”, lugar onde Deus pode ser encontrado, tomou o corpo
para si. Assumiu para si o corpo que é nosso. Feito cristão, meu corpo é meu, mas
ao mesmo tempo, é também corpo de Cristo. Ele mesmo diz: “Vós sois o meu
corpo”. No entendimento de Gesché o corpo cristão é plural, é neste corpo que
meu próximo e eu formamos o “nós”, que é o corpo de Cristo.
Toda suspeita em relação ao corpo, e toda tentativa de uma espiritualidade
divorciada da corporeidade, como se fossem medidas antagônicas e dimensões
com linhas divisórias bem demarcadas no ser humano, não é cristã e não é
79 Cf. GESCHÉ, A invenção cristã do corpo, p.61. 80 Cf. Ibid. p.63. 81 Cf. Ibid.
79
humana. Somos seres que vivem a dimensão da espiritualidade no corpo. Deus em
nós, não implica em aniquilação do humano, do corpo, mas abertura a buscar o
sentido da vida no encontro com o outro.
Nosso percurso também mostrou como Cristo, revelador do humano,
verdadeiro ser humano, dignificou o corpo e apresenta ao homem contemporâneo
o que significa o ser humano como este deve ser. Sem propor uma vida de fuga da
realidade, vive as paixões do corpo e no corpo, sem pecar, propondo sempre o
olhar, o toque, os gestos transbordantes de amor.
O corpo, tomado por Cristo é lugar onde Deus encontra o ser humano, e faz
nele morada. Ao mesmo tempo, lugar onde o ser humano encontra Deus, e por
isso, encontra a si mesmo, e os outros. O fator determinante, teológico e
antropológico é o corpo (e não a alma como queriam os antigos). Esta é a
verdadeira restauração do corpo que a sociedade contemporânea aguarda. O corpo
sendo engrandecido, mas em seu devido lugar, como caminho à plena
humanização e realização.