Upload
tchulha
View
220
Download
0
Embed Size (px)
DESCRIPTION
interespecies, pos humano
Citation preview
P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , N m e r o T e m t i c o , 2 0 1 1 P g i n a | 67
Experimentos ontolgicos. Variaes Queer
Ontological experiments. Queer Variations
Experimentos ontolgicos. Variaciones queer
Dolores Galindo
Universidade Federal do Mato Grosso, Cuiab, MT, Brasil.
Resumo
O presente texto interroga a noo de experimentos. Deslocando a ateno do debate sobre
sexo e heteronormatividade para relacionalidades entre humanos e no/humanos, insere-se
numa imaginao fabulativa queer voltada s ontologias variveis do contemporneo que no
podem ser homogeneizadas por um decretado fim das dicotomias. So apresentadas notas
sobre experimentos em dana e psicologia social que se configuram como apontamentos
iniciais de um programa de pesquisa em andamento.
Palavras-chave: Experimentos, Ontologias, Queer, Arte Contempornea, Psicologia Social.
Abstract
This essay interrogates the notion of experiment. Displacing the debate from sex and
heteronormativity to the relationship between humans and non-humans, it proposes a fable
like queer imagination turned to contemporary variable ontologies that cannot become
homogeneous by an end of dichotomies enactment. Notes on dance and social psychology
experiments are presented as initial propositions of an ongoing research program.
Key-words: Experiments, Ontologies, Queer, Contemporary Art, Social Psychology.
Resumen
Este ensayo interroga la nocin de experimento. Desplazando la atencin de lo debate sobre el
sexo y la hetenormatividad para las relaciones entre humanos e no humanos, se inscribe en
una imaginacin fabulara queer direccionada a las ontologas variables contemporneas que
no pueden ser homogeneizadas por un decretado fin de la dicotomas. Son presentadas notas
sobre experimentos con danza y psicologa social que se configuran como proposiciones
iniciales de un programa de investigacin en corso.
Palabras llave: Experimentos, Ontologas, Arte Contempornea, Psicologa Social.
P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , N m e r o T e m t i c o , 2 0 1 1 P g i n a | 68
Experimentos ontolgicos.
Inquietaes Queer
Quem se importa com
experimentos? A indagao que inicia
esse trabalho veio da recusa recebida
por Ian Hacking (2009a) quando
submeteu um artigo, no qual explorava
as relaes entre experimentao e
teoria, a peridicos cientficos de
diversas origens disciplinares. A juno
do termo experimento que nos remete
ao domnio do emprico (ou ainda,
Psicologia Social Experimental que,
desde a crise da dcada de 1970, tornou-
se uma bifurcao pouco percorrida
pelos psiclogos sociais que
embarcaram na deriva crtica) ao termo
ontologias, cujo registro est ligado
metafsica, pode soar estranha.
Valhamo-nos desta estranheza.
Em trabalho anterior (Galindo &
Mllo, 2010), empregamos o termo
experimento para nos referirmos s
prticas de coletivos queer-copyleft, que
visavam no apenas personalizar o
corpo por meio de novos aditivos, mas
desterritorializ-lo, no o subordinando
s prescries. Nomeamos tais prticas
como piratarias de gnero, por
indicarem agenciamentos que atuam na
desorganizao de fronteiras e no
estabelecimento de outras combinaes
entre fluxos semiticos, informacionais
e biolgicos. As fronteiras so sempre
virtuais: as criamos e recriamos para
vivermos. Piratarias desvirtuam (tiram a
virtude, adulteram) as cartas de
navegao, os mapas, as prescries.
Promovem a plasticidade ampliando ou
restringindo os espaos corporais:
materializao da vida.
No texto presente, interrogamos
a noo de experimentos, deslocando
nossa ateno do debate sobre sexo e
heteronormatividade para
relacionalidades entre humanos e
no/humanos. Inserimo-nos na
imaginao fabulativa queer voltada s
ontologias variveis do contemporneo
que no podem ser homogeneizadas por
um decretado fim das dicotomias. Como
recurso para fabulao, recorremos s
figuraes que deslizam entre o literal e
o fictcio, sem que encontrem fixidez.
Figurar um dos principais recursos de
experimentao desenvolvidos por
Donna Haraway (2000; 2004; 2008),
que reconhece o carter difuso e
transversal do termo, delimitando-o
como uma possibilidade de abarcar o
que seria, numa lgica excludente, tido
como contraditrio ou numa perspectiva
realista simples como no existente.
Dentre as figuraes do universo
fantstico de Donna Haraway podemos
citar os ciborgues (Haraway, 2000), o
rato do cncer (Haraway, 2004) e
P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , N m e r o T e m t i c o , 2 0 1 1 P g i n a | 69
animais de companhia (Haraway, 2008)
entrelaados por ela numa narrativa de
parentesco. Braidotti (2006) v na
criao deste sistema de parentesco uma
maneira nova de pensar conexes com
tecno-outros que instaura uma dimenso
tica a cada movimento ontolgico:
mundos relacionais sendo feitos e
refeitos, transformando o chamado n
grdio que distingue humanos de
no/humanos em movimentos, sem que
se diga superada a linha divisria entre
eles (Latour, 1994).
A arte , sem dvida, uma das
instncias nas quais mundos mesmo
no imediatamente atualizveis - podem
ser tomados como tropos para a
experimentao pelo estranhamento e
encantamento. A fico como
experimento de figurao, assim como a
tecnocincia, , em si, um exerccio
reflexivo (Haraway, 1994; 1999).
Figurar mergulhar nos modos de viver
um mergulho atento s
relacionalidades e s maneiras como
nos tornamos com (Haraway, 2007).
Nas figuraes, os referentes so
passagens, trnsitos que se constituem
em dispositivo para criao. Sendo do
mbito da proposio, as figuraes no
ilustram mundos, inventam-nos e neles
se imiscuem.
Pensamos como Giffney e Hird
(2008) que importante queerizar os
no/humanos, indagando-os sobre as
polticas ontolgicas que se fazem
presentes no que/quem se torna
humanos, no/humanos, in/humanos.
Seguindo o argumento de Butler (2008)
ao discutir o conceito de abjeo, o
debate queer sempre teve como um dos
seus fulcros questes ontolgicas nas
quais a heteronormatividade um dos
eixos, mas no o nico. Veja-se o que
pontua Butler, em entrevista cedida a
Prins e Meijer (2002, p. 159), sobre o
entrelaamento do seu trabalho sobre
abjeo e proposies/fices
ontolgicas:
Em parte, vejo-me trabalhar no
contexto de discursos que operam
atravs de argumentos ontolgicos no
h um ator por trs do ato recirculando
o h para produzir um contra-
imaginrio metafsica dominante.
Com efeito, parece-me crucial
recircular e ressignificar os operadores
ontolgicos, mesmo que seja apenas
para apresentar a prpria ontologia
como um campo questionado.
Mais do que apenas incluir os
chamados no/humanos, o que nos faria
recair numa ontologia substancialista,
trata-se de queerizar a compreenso do
humano enquanto gnero ou princpio
normativo em torno do qual se
organizam a distribuio dos entes do
P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , N m e r o T e m t i c o , 2 0 1 1 P g i n a | 70
mundo, episteme que emerge quando da
partio entre cincias humanas e
naturais, alis, esta separao faz parte
do prprio movimento de fundao de
ambas (Foucault, 1999).
Empregamos o termo
experimento na esteira deleuziana da
experimentao filosfica de
multiplicidades como dispositivo de
construo conceitual (Cardoso JR,
2010), dizendo dos modos de vida e
suas resistncias estagnao (Galindo
& Mllo, 2010). Para entender o efeito
da inflexo deleuziana sobre a noo de
experimentos importante remeter
conotao que este possui no cotidiano
tecnocientfico, onde so vistos como
separados das teorizaes, sendo
adjetivados tcnicos.
A quais multiplicidades
aludimos? A uma multiplicidade no
numrica na qual a cada estgio da
diviso, pode-se falar de indivisveis
(Deleuze e Guattari, 2004, p. 31). a
produo da e na diferena e no das
quantidades o que est em foco
(Deleuze, 1999). Os experimentos
filosficos de multiplicidades se do na
vida, movimentando sensaes, devires
e mundanidade extremamente materiais.
Estes experimentos so filosficos,
portanto, no se do no plano da cincia
e da arte nos quais nos movemos,
quando o evocamos, fazemos, portanto,
uma traduo infiel.
Na Psicologia Social
contempornea, o experimento
empregado para reduo de escala da
complexidade da confusa vida cotidiana
e principal balizador de critrios de
verdade e fiabilidade tem sido objeto de
intensos debates e este uso se tornou,
acertadamente, controverso (Gergen,
2007). Os experimentos se encontram
ainda, inevitavelmente, ligados
discusso sobre o aparato Psi como
tecnologia de governo que participa da
produo de verdades que encarnam
aquilo que deve ser governado, que o
tornam pensvel, calculvel e praticvel
(Rose, 1988).
Depois de abordarmos o nosso
primeiro termo - experimento -,
passemos discusso do termo
ontologia. Classicamente, ontologia diz
respeito ao estudo do ser, s condies
de existncia de um determinado ente;
s condies de fazer-se real
(Abbagnano, 1998). Todavia, este termo
passou por uma grande reviravolta
depois da leitura foucauldiana que o
ancora na problematizao do presente.
Na acepo foucauldiana, ontologias
referem-se aos modos de viver que
adquirem condies de existncia; diz
respeito quilo que fazemos de ns
mesmos.
P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , N m e r o T e m t i c o , 2 0 1 1 P g i n a | 71
O uso do termo ontologia
adjetivada como histrica ou ontologia
do presente trata do trabalho sobre ns
mesmos como seres livres (Foucault,
1984). De acordo com Cardoso (1995),
apesar desta dimenso se localizar na
obra como um todo do autor, adquire
maior visibilidade nos seus ltimos
trabalhos, onde ele explicitamente se
inscreve no que considera a tradio
crtica herdeira de Kant, a de uma
ontologia da atualidade (Cardoso,
1995; p. 55).
Vale matizar que o
agora/presente foucauldiano diferente
do hoje que requer ser problematizado
luz do primeiro. Conforme elucida
Cardoso (1995), a problematizao
desatualiza o presente, desatualiza o
hoje, no movimento de uma
interpelao. Nesse sentido o presente
no dado, nem enquadrado numa
linearidade entre o passado e o futuro
(Cardoso, 1995; p. 52). Seguindo esta
pista, podemos localizar as figuraes
como um recurso de desatualizao do
presente que interpela sobre o modo
como nos constitumos, modo este cada
vez mais transgendrado. As criaturas
fabulosas so formas de interpelar o que
chamamos de ns mesmos (Haraway,
2011). Quando dizemos ns mesmos,
o que/quem inclumos? O que/quem
exclumos? A que/quem delegamos a
posio de no/humanos ou mesmo de
in/humanos?
Tendo a ruptura foucauldiana
como ponto de inflexo para pensar
sobre ontologias, Mol (2007) destaca
que esta tem uma caracterizao
poltica, pois requer um processo ativo e
contingente por meio do qual alguns
seres (actantes, categorias etc.)
adquirem existncia e outros no a
adquirem, devendo ser abordada sempre
no plural como ontologias. Na mesma
perspectiva, Hacking (2009b), que v a
si mesmo como um nominalista,
sublinha que ontologias quando
adjetivadas como histricas dizem dos
modos como vivemos, valendo a pena
insistir no uso deste termo.
A definio do que/quem ou
no considerado um ser com o qual nos
relacionamos varivel (Latour, 1994).
Na esteira das reflexes de Mol (2007),
usamos ontologias no plural para
destacar a sua vinculao com a
proposio de multiplicidades. O termo
usado no plural porque aquilo que
chamamos realidade mltiplo, o
mesmo se estendendo aos actantes que
derivam como existentes ao
ultrapassarem limiares ontolgicos que
os fazem inteligveis.
Experimentar mundos fictcios e
ontologias, esta uma contribuio da
arte que merece ser ressaltada ao lado
P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , N m e r o T e m t i c o , 2 0 1 1 P g i n a | 72
das experimentaes filosficas, no
apenas como intercessores que nos
conduzam a formulao de conceitos.
Donna Haraway (2004) argumenta
ferozmente pela defesa desta potncia
da arte e da tecnocincia na criao de
mundos e pela responsabilidade inerente
em faz-los. Esta autora escolhe para si
as zonas fictcias e potentes da
fabulao, trabalhando, sobretudo, com
os domnios da literatura, cinema
(ambos relativos fico cientfica) e
visualidades (artes plsticas) alm de
um amplo espectro de prticas
tecnocientficas, sobretudo,
provenientes da biologia.
Um exemplo da considerao da
arte como experimento ontolgico pode
ser encontrado nos comentrios de
Haraway (2007) sobre o trabalho da
artista plstica Piccinini. Para ela, as
esculturas e telas da artista so maneiras
de experimentar ontologias que dizem
de relacionalidades com os seres
transgenricos do nosso sculo. Nas
obras de Piccinini, somos interpelados
por relaes de afeto: crianas e
criaturas monstruosas, como em The
Long Awaited, descansam uma sobre a
outra (figura 1):
Figura 1 Patricia Piccinni, The Long Awaited, 2008.
Fonte: http://www.patriciapiccinini.net/
P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , N m e r o T e m t i c o , 2 0 1 1 P g i n a | 73
Seguindo estas pistas, uma das
vertentes de investigao que
desenvolvemos no Laboratrio
Tecnologias, Cincias e
Contemporneo (Lab.TECC)
problematiza o que chamamos de corpo
prprio do pesquisador ou pesquisadora
e as ontologias substancialistas
fundadas na defesa de propriedades
como atributos que designam e dividem
a ontologia mltipla do mundo.
Argumentamos pela expropriao do
corpo e sua multiplicao, projeto que
insere em um interesse mais amplo,
concernente experimentao de
ontologias variveis, onde as posies
de sujeito e objeto; natureza e cultura;
humanos e no/humanos constituem
linhas nas quais nos movemos. Colocar
nossa humanidade, nosso corpo prova,
uma boa forma de romper o que
podemos nomear como
humanormatividade, isto , a primazia
do gnero humano como baliza para
qualquer imaginao ontolgica.
No h nada de novo que
fazemos. Desde a dcada de 1960 a arte
contempornea prdiga de
experimentos que colocam o corpo e o
self unificados em questionamento, uma
arte contra os corpos, contra os selves
referidos a pessoalidades (Galindo,
2009). Na esteira das experimentaes
com o corpo da arte contempornea, ao
invs de ter um corpo ou ser um
corpo, experimentamos produzir
corporalidades na relacionalidades com
actantes que foram, ao longo do tempo,
individuados em relao aos humanos:
papis e gros.
Nem todo corpo deriva em
pessoa como j o advertiram Deleuze e
Guattari (1997) com as noes de
devires animais. Vale matizar que para
Haraway (2006), o tratamento conferido
aos actantes designados animais em
Deleuze e Guattari termina obnubilando
as criaturas mundas em suas prticas
cotidianas pela nfase que conferem s
figuras de borda onde apenas alguns
animais interessam.
Nos experimentos fabulativos do
Lab.TECC que apresentamos neste
texto, ao invs de ter um corpo ou
ser um corpo, o pesquisador ou
pesquisadora produz (e produzido por)
multiplicidades que no se esgotam
numa pessoalidade que as precede.
um exerccio fabulativo, pois na vida
cotidiana, temos a sensao de unidade
corporal vinculada a um self tambm
visto como unificado (Gergen, 1992)
ainda que este seja produzido por
constantes arranjos (Mol, 2002) por
meio dos quais adquire potncia de
afetao (Latour, 1999).
Ao contrrio de movimentos que
esto no prprio corpo, preferimos
P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , N m e r o T e m t i c o , 2 0 1 1 P g i n a | 74
falar em mltiplas corporalidades que
so produzidas, dissolvendo a unidade
corpo prprio em multiplicidades. As
multiplicidades corporais so paragens
no plano da imanncia que tem no plano
das formas um dos seus plats, mas no
o nico (Escossia & Tedesco, 2009).
Linha de fuga do pensamento
interpretativo que torna visveis as
foras enceradas nas formas, que
apresenta as foras que se encontram
em ao nos corpos e so as causas mais
profundas de suas deformaes
(Machado, 2009, p.238).
Na perspectiva das
multiplicidades no preexiste um corpo
sobre o qual construmos diferentes
movimentos ontolgicos. O prprio
corpo adquire existncia nas
performances que o articulam, sendo
apenas uma delas, pois, em vrios
momentos, os arranjos no
necessariamente resultam em qualquer
unidade, nem advm do humano como
figura-origem ou a ele se dirigem
enquanto figura-destino. Como sintetiza
Cardoso JR (2010, p. 53):
(...) no o caso de se referir a
sensao carne, como gostaria a
esttica de base fenomenolgica, de
modo a supor que, mesmo nas
composies onde no aparece a figura
humana, a arte estaria tomada por um
ato que doa sentido.
Quais polticas que regulam o
que inclumos nas visualidades ou artes
queer? Do nosso ponto de vista,
inmeros trabalhos podem ser
chamados de queer se utilizamos como
critrio os efeitos e no o contedo ou
temtica abordada. Nesta acepo, o
trabalho de Piccinini j comentado por
Haraway, o trabalho de Rodrigo Braga e
outros artistas, nos ajudam a pensar e
experimentar ontologias no
humanormativas, podendo ser
interpelados como inquietaes queer.
Falemos um pouco sobre o
trabalho de Rodrigo Braga. H algum
tempo este artista recifense desenvolve
uma explorao consistente de
naturezasculturas iniciada com o
trabalho Fantasia de Compensao
(2004) no qual experimentou uma
sobreposio de imagens entre humano
e cachorro para compensar o que
chamou de sua fraqueza diante de um
animal feroz (figura 2). Apesar de ser
resultante de manipulao fotogrfica, o
trabalho provocou intensas reaes de
abjeo, o corpo humano-animal
evocava a morte do animal e no a
incorporao do cachorro como era a
proposta do artista. O hbrido no era
passvel de ser acolhido.
P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , N m e r o T e m t i c o , 2 0 1 1 P g i n a | 75
Figura 2 Rodrigo Braga, Fantasia de Compensao, 2003.
Fonte: http://www.rodrigobraga.com.br/
Na srie Comunho (2007),
Rodrigo Braga trabalhou a
relacionalidade com um bode. Unindo
sua cabea a do animal, ambos,
enterrados num mesmo solo,
intercambiam o gesto de comunicar-se
pela fronte que caracterstico dos
caprinos. Neste trabalho, o artista
experimenta, tambm, comunho com
um animal morto que se torna vvido no
trabalho. Separados, bode e humano,
so inteligveis a fico ontolgica
no provoca abjeo.
P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , N m e r o T e m t i c o , 2 0 1 1 P g i n a | 76
Figura 3 Rodrigo Braga, Comunho, 2007.
Fonte: http://www.rodrigobraga.com.br/
O pensamento de Donna
Haraway mpar por colocar-se
radicalmente carregado de afetos e
afetaes nas tramas da tecnocincia
cuja narrativa , frequentemente,
marcada pelo distanciamento. Ela nos
fala do seu amor pelo rato experimental,
pelos ciborgues, pelos elementos
qumicos. Experimenta um
envolvimento que a diferencia da
posio de observadora; ela est entre
os seres que compem as paisagens
tecnocientficas contemporneas; ela
um deles. Conta-nos de histrias de
amor experimentais entre homens e
animais de laboratrio (Haraway, 2004),
discute o sofrimento das porcas
brasileiras amontoadas no abate
(Haraway & Azeredo, 2011). Estamos
na mesma deriva, aquela dos modos de
vida experimental e no de pensamento
experimental. Com o efeito Deleuze
sobre o termo experimento, no h
utilizao de critrios de verificao
caractersticos do laboratrio so
experimentos sem verdade que tem
como matria a vida (Agamben, 2008).
Considerando o questionamento
da humanormatividade, abordaremos
alguns experimentos ontolgicos que
realizamos na interface entre Arte
Contempornea e Psicologia Social.
Propusemo-nos a danar com no
humanos (Galindo & Millioli, 2011).
Ao nos propormos experimentar
ontologias variveis seria o nosso
P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , N m e r o T e m t i c o , 2 0 1 1 P g i n a | 77
trabalho queer? A pergunta
permanecer em aberto.
Em De Conceitos, criado para o
Circuito Cultural Setembro Freire 2010,
tomando papis com poemas como
matria para criao, a artista-
pesquisadora Daniela Millioli produziu
arranjos que tornam visveis
multiplicidades corporais (tato, olfato
etc.), e atributos concernentes s
materialidades com as quais se danam
(viscosidade, aspereza etc.), emergentes
do contato com papis, seus parceiros
de dana (figura 4).
Figura 4 Daniele Millioli, Embrulhada, De Conceitos, 2010.
O primeiro projeto foi um ensaio
para que logrssemos trabalhar
relacionalidades com no/humanos aos
quais se atribui a propriedade de
viventes. No segundo trabalho, (De)
Dentro Leguminosas, criado para o
projeto Leituras do Movimento do
SESC Arsenal 2010, a mesma artista-
pesquisadora tomou gros de soja como
companheiros para criar danas. A
noo espcies companheiras de
Haraway (2008) contribuiu para a
criao de uma figurao leguminosas
danarinas que, incorporando
diferentes prticas, convida a habitar um
mundo que vai dos cultivares
transgnicos s prateleiras dos
supermercados (Galindo & Miliolli,
2012).
Transportada para a criao em
dana, a soja transforma-se em
figurao de uma natureza danante,
que traduz a relacionalidade na
construo de mundos, onde a
humanormatividade posta em questo.
Os gros interpelaram a danarina, ora
P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , N m e r o T e m t i c o , 2 0 1 1 P g i n a | 78
com o peso de muitos quilos atados ao
corpo expropriado pelo cansao, ora
pelos odores de rao animal durante
sua compra, ou pela sua incluso como
parte da ambincia familiar, ao repousar
em casa depois dos exerccios na sala de
dana. Este experimento ontolgico
estava carregado de afeto, de relaes
de amor, dio, agonia (Braidotti, 1996;
Haraway, 2000; 2004) e de dilemas
como o de chamar a soja transgnica de
espcie companheira.
A escolha da soja no foi
aleatria: ela pregnante em Mato
Grosso onde se deu o processo de
criao, movimentando o agronegcio,
mobilizando memrias familiares,
provocando o trfego de imensas
carretas que cortam as estradas durante
as safras. Nos campos, a soja
transgnica demarca o solo com a
exibio dos tipos de sementes
plantadas, uma forma de controle do
produto comprado pelos agricultores.
Dessa forma, danar com a soja faz-
lo com as prticas nela incorporadas.
um experimento ontolgico
radicalmente localizado (Figura 5):
Figura 5: Daniele Millioli, (De) dentro Leguminosas, 2011.
Na dana com os gros de soja, a
artista-pesquisadora buscou
experimentar ontologias variveis,
movendo-se no contnuo que, pelo
hbito (Spink, 2003), costumamos ver
de maneira dicotmica: natureza e
P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , N m e r o T e m t i c o , 2 0 1 1 P g i n a | 79
cultura, humanos e no/humanos e
assim por diante. Os gros de soja
objetam, contrapem, respondem,
resistem e, a isso, Latour (1999) chama
de recalcitrncia, que uma questo de
no domnio dos humanos sobre os
demais actantes que o rodeiam (Arendt,
2007).
Na perspectiva das
multiplicidades, danar com a soja
passou por dessubstancializar o corpo,
abrindo-o s relacionalidades que, reais
e fabulativas, aproximam-se do no
vivvel. Danar com uma leguminosa?
Pode uma leguminosa danar seno
numa fbula? Inevitavelmente somos
conduzidas ao parentesco entre o
prprio mtodo experimental (aquilo
que no colocamos em prtica) e a arte
(aquilo que fazemos), tpico que,
todavia, no abordaremos nesse texto,
mas que constitui matria de nossas
reflexes atuais.
Em O que a filosofia?,
Deleuze e Guattari (2004) argumentam
que a arte um ser de sensao que se
mantm de p por si mesmo. Essa
proposio provocativa quando
deslocada para a dana, pois os gros de
soja sozinhos repousam como rao,
alimento, mas no como uma
leguminosa bailarina, o mesmo se
aplicando bailarina. Talvez a dana
seja demasiadamente efmera para ser
vista como um ser de sensao que se
sustenta por si mesmo. A efemeridade
da danarina encontra uma bela sntese
em Badiou (2002):
A danarina esquecimento milagroso
de todo seu saber de danarina, ela no
executa qualquer dana, essa
intensidade retida que manifesta o
indecidido do gesto. Na verdade, a
danarina suprime toda dana que sabe
por que dispe de seu corpo como se
ele fosse inventado. De modo que o
espetculo da dana o corpo subtrado
a todo saber de um corpo, o corpo
como ecloso (p. 90).
Na conexo entre corpo
danante e pesquisa, vale matizar a
importncia de no substituir o cogito
cartesiano pelo eu corporal e, ou seja,
substituir o eu penso pelo eu sinto,
o que nos levaria a uma matriz
fenomenolgica. Na acepo
deleuziana, as sensaes possuem
componentes materiais e virtuais de
modo que se inscrevem em um plano
que no se reduz a estas, pois as
multiplicidades se fazem nos devires
que se do entre elas (Cardoso JR,
2010).
A dicotomia entre experimento e
teorizao, com infravalorizao do
primeiro, ainda permanece, apesar das
vrias crticas a ela dirigidas (Haraway,
P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , N m e r o T e m t i c o , 2 0 1 1 P g i n a | 80
2000; 2004; Hacking, 2009a; 2009b), o
mesmo se observa nas relaes entre
arte e pensamento (Badiou, 2002). Os
experimentos na interface entre dana e
psicologia social que conduzimos
podem, facilmente, ser assimilados
ausncia de mtodo ou a uma
experincia sem potncia heurstica.
Mas, falamos de experimentos e no de
mtodo experimental e de experimentos
sem verdade, imanentes, feitos na vida,
feitos como modos de viver.
Deleuze (1997), em Imanncia,
uma vida, lembra que o elemento
sensao remete a um empirismo
simples, pois esta seria um corte, uma
pausa no fluxo de conscincia. Da usar
o termo devir que seria, justamente,
aquilo que se instala entre uma sensao
e outra, correspondendo ao plano das
intensidades. Linha de fuga do
pensamento interpretativo e que torna
visveis as foras enceradas nas formas,
que apresenta as foras que se
encontram em ao nos corpos e so as
causas mais profundas de suas
deformaes (Machado, 2009, p.238).
Sem substituir a
humanormatividade por outro ideal,
igualmente normativo, correspondente
ao ps-humano (Prins & Meijer, 2002)
ou ao ps-gnero (Haraway & Gane,
2007), restam-nos experimentos
ontolgicos mundanos, localizados,
parciais. Retornando pergunta que d
ttulo ao ensaio, afirmemos que
experimentos importam s ontologias do
presente orientadas por inquietaes
queer. Que foras encerram e
atravessam as ontologias variveis que
se furtam s substncias? O que nos
dizem os corpos expropriados do que
fazemos de ns mesmos?
________________________________
Referncias
Abbagnano, N. (1998) Dicionrio de
Filosofia. So Paulo: Martins
Fontes.
Agamben, G. (2008). Barterbly, Escrita
da potncia, ou da contingncia
seguido de bartleby, o escrivo de
Herman Melville. Lisboa: Assirio
e Alvim.
Arendt, R. (2007). Consideraes sobre
os conceitos de recalcitrncia e
de plasma e sua relao com o
conceito de no domnio na obra
de Bruno Latour. Em V
Congresso Norte-Nordeste de
Psicologia, Macei. CD-ROM.
Badiou, A. (2002). Pequeno manual de
inesttica. So Paulo: Estao
liberdade.
Braidotti, R. (2006). Posthuman, All
Too Human: Towards a New
Process Ontology.
Theory, Culture & Society, 23,
197208.
P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , N m e r o T e m t i c o , 2 0 1 1 P g i n a | 81
Butler, J. (2005) Humain, Inhumain. Le
travail critique des normes.
Entretiens. Paris: ditions
Amsterdam.
Butler, J. (2008). Problemas de gnero:
feminismo e subverso da
identidade. Rio de Janeiro: ed.
Civilizao.
Cardoso, I. (1995). Foucault e a noo
de acontecimento. Tempo Social;
Rev. Sociol. USP, 7(1-2), 53-66.
Cardoso JR, H. (2010). Arte e filosofia
como disciplinas das
multiplicidades: problemas
filosficos e problemas estticos
em interferncia intrnseca,
segundo Deleuze. Artefilosofia
(UFOP), 1, 49-66.
Deleuze, G. (1997). A imanncia: uma
vida. Em. J. Vasconcelos & M.
Fragoso (orgs.). Gilles Deleuze,
imagens de um filsofo da
imanncia (pp. 15-19). Londrina:
UEL, 1997.
Deleuze, G. (1999). Bergsonismo. So
Paulo: editora 34.
Deleuze, G. & Guattari, F. (1997).
Devir-intenso, Devir-animal,
Devir-imperceptvel. Em J.
Vasconcellos & M. Fragoso
(orgs.). Mil Plats capitalismo
e esquizofrenia. So Paulo:
editora 34.
Deleuze, G. & Guattari, F. (2004). O
que a filosofia? So Paulo:
Editora 34.
Escossia, L. & Tedesco, S. (2009). O
coletivo de foras como plano de
experincia cartogrfica. Em E.
Passos; V. Kastrup & L. Escossia.
(Orgs.). Pistas do mtodo
cartogrfico. Porto Alegre:
Sulinas.
Foucault, M. (1984). Histria da
sexualidade II: o uso dos
prazeres. Rio de Janeiro, Edies
Graal.
Foucault, M. (1999). As palavras e as
coisas: uma arqueologia das
cincias humanas. 8 ed. So
Paulo: Martins Fontes.
Galindo, D. (2009). Segurana da vida,
uma questo artstica?
Concinnitas (Rio de Janeiro), 15,
1-14.
Galindo, D. & Millioli, D. (2011).
Danando com a pesquisa:
inveno, cincia e cotidiano. Em
Anais do 2 Encontro Nacional de
Pesquisadores em Dana. Porto
Alegre, RS, Brasil.
Galindo, D & Millioli, D. (2012).
Leguminosas danarinas:
queer(y)ng com no/humanos.
Em: D. Galindo & L. Lemos-de-
Souza (orgs.), Gnero e
Tecnologias. Tecnologias do
P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , N m e r o T e m t i c o , 2 0 1 1 P g i n a | 82
Gnero: estudos, pesquisas e
poticas. Cuiab: EdUFMT.
Galindo, D. & Mllo, R. (2010).
Piratarias de gnero experimentos
estticos queer-copyleft. Psico
(PUCRS), 41, 239-245.
Gergen, K. (1992). El yo saturado:
dilemas de identidad en el mundo
contemporneo. Barcelona:
Paids.
Gergen, K. (2007). Experimentacin en
Psicologa social: una
revaluacin. Em: A. Estrada & S.
Diazgranados. Construccionismo
social, aportes para el debate y
la prctica. Bogot: Ediciones
Uniandes.
Giffney, G. & Hird, M. (2008).
Queering the non/human.
Ashgate: Aldershot.
Hacking, I. (2009a) Entrevista com Ian
Hacking: (por Paul Kennedy e
David Cayley). Psicol. Soc.,
21(3), 465-470.
Hacking, I. (2009b). Ontologia
Histrica. So Leopoldo: Editora
Unisinos.
Haraway, D. (1994). A Game of Cat's
Cradle: Science Studies, Feminist
Theory, Cultural Studies.
Configurations: A Journal of
Literature and Science, 2, 59-71.
Haraway, D. (1999). Las promesas de
los monstruos: Una politica
regeneradora para otros
inapropriables. Politica y
Sociedad, 30, 121-63.
Haraway, D. (2000). Manifesto em
favor dos ciborgues: cincia,
tecnologia e feminismo socialista
no final d sculo XX. Em T. da
Silva (org.), Antropologia do
ciborgue: as vertigens do ps-
humano (pp. 39-129). Belo
Horizonte: Autntica.
Haraway, D. (2004).
Testigo_Modesto@Segundo_Mile
nio.HombreHembra_Conoce_O
ncoratn: feminismo y
tecnociencia. Barcelona: EdUOC.
Haraway, D. (2007). Speculative
Fabulations for Technoculture's
Generations: Taking Care.
Recuperado em 15 de Novembro,
2011, de
.
Haraway, D. (2008). When species
meet. Minneapolis, London:
University of Minnesota Press.
Haraway, D. (2011). A partilha do
sofrimento: relaes instrumentais
entre animais de laboratrio e sua
gente. Horizontes Antropolgicos,
Porto Alegre,17, 27-64.
Haraway, D. & Gane, N. (2007). "When
Have We Never Been Human,
P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , N m e r o T e m t i c o , 2 0 1 1 P g i n a | 83
What is to be Done?". Theory,
Culture and Society. 23.
Haraway, D. & Azeredo, S. (2011).
Companhias multiespcies nas
natureza culturas: uma conversa
entre Donna Haraway e Sandra
Azerdo. Em M. E. Maciel (Org.),
Pensar/escrever o animal -
ensaios de zoopotica e
biopoltica.(pp. 389-417).
Florianpolis: Editora da UFSC.
Latour, B. (1994). Jamais Fomos
Modernos: ensaio de
antropologia simtrica. Rio de
Janeiro: Editora 34.
Latour, B. (1999) How to talk about the
body: the normative dimension on
science studies. Disponvel em
http://www.bruno-
latour.fr/articles/article/077.html.
Acesso em 30 de Abril de 2011.
Machado, R. (2009). Deleuze, a Arte e a
Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar.
Mol, A. (2002). The Body Multiple:
Ontology in Medical Practice.
Durham: Duke University Press.
Mol, A. (2007). Poltica ontolgica:
Algumas idias e vrias
perguntas. Em J. A. Nunes & R.
Roque (Orgs.). Objectos Impuros:
Experincia sem Estudos sobre a
cincia (pp.63-75). Porto: Edies
Afrontamento.
Rose, N. (1988). Governando a alma: a
formao do eu privado. Em T. T.
Silva (org.). Liberdades
reguladas. (pp.30-45) Petrpolis:
Vozes.
Prins, B. & Meijer, I. (2002). Como os
corpos se tornam matria:
entrevista com Judith Butler. Rev.
Estud. Fem., 10(1), 155-167.
Spink, M. (2003). Subvertendo as
dicotomias institudas pelo hbito.
Athenea Digital, Revista de
Pensamiento y investigacin
Social, 4, 1-15.
Dolores Galindo - Doutora em
Psicologia Social PUCSP, com
estgio doutoral na Universidade
Autnoma de Barcelona (UAB);
Docente do Programa de Ps-
Graduao (Mestrado) em Estudos de
Cultura Contempornea, onde coordena
a Linha de Pesquisa Epistemes
Contemporneas e do curso de
graduao em Psicologia da
Universidade Federal de Mato Grosso
(UFMT). Lder do Grupo de Pesquisa
Cincias, Tecnologias e Contemporneo
TECC/UFMT. Membro da Rede
Centro-Oeste de Ensino e Pesquisa em
Arte, Cultura e Tecnologias
Contemporneas Rede CO3. Vice-
Presidente da regional Centro-Oeste da
ABRAPSO (2011-2012).
P o l i s e P s i q u e , V o l . 1 , N m e r o T e m t i c o , 2 0 1 1 P g i n a | 84
E-mail de contato:
m
Endereo para correspondncia:
Universidade Federal de Mato Grosso
UFMT. Instituto de Linguagens /
ECCO. Av. Fernando Corra da Costa,
n 2367, sala 38/IL. Bairro Boa
Esperana. Cuiab-MT - 78060-900.