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6. CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE DO DISCURSO AO ESTUDO DE JORNALISMO Giovandro Marcus Ferreira 35 Resumo : Este trabalho tem como objetivo fazer um relato do atual estágio da análise do discurso, em especial de algumas abordagens que têm como objeto o discurso jornalístico. Hoje, a análise do discurso repousa sobre a interação de um modo de enunciação e de um lugar social. Nesta ótica abre-se uma série de desafios como também de propostas, em investidas normalmente interdisciplinares, objetivando recompor as fronteiras deste domínio de estudo. Neste novo contexto teórico e metodológico, buscar-se-á evidenciar desafios que estão colocados para uma maior consolidação e expansão deste domínio de estudo e suas contribuições para a reflexão acerca da atividade jornalística. I. Análise do discurso e teoria da comunicação Observada a análise do discurso a partir de sua história, nosso enfoque parte de um paradoxo. Buscaremos evidenciar a análise do discurso como um terreno de encontro de disciplinas, terreno este até pouco tempo, uma ilha de isolamento. Em relação aos outros domínios de estudos, a análise do discurso tem um pretérito passado de concentração nos aspectos imanentes da mensagem (fase imanentista), se isolando de outros estudos, por conseguinte de suas contribuições. Tal isolamento ficou evidente, sobretudo, em relação à sociologia, domínio com uma longa tradição nos estudos dos meios de comunicação. Esta fase foi mesmo caraterizada por Stuart Hall, como a “ruptura sociológica”, já que a análise do discurso investia no intra-textual, com conclusões que extrapolavam quase sempre o reduzido percurso analítico. Esta fase da análise do discurso é superada, ao mesmo tempo, que se percebe mudanças igualmente nos estudos mais amplos dos meios de comunicação. A tradicional problemática dos efeitos adquire outros contornos, sendo edificada a partir dos seus aspectos cognitivos, que comumente são identificados de “efeitos a longo prazo”. Passa-se, então, de uma preocupação, acerca dos efeitos de natureza imediata, isolada, individual para uma problematização que enfatiza a diacronia, a negociação, enfim, o reposicionamento dos meios de comunicação no debate acerca da dinâmica cultural entre outras. A antropologização não atinge somente a sociologia da comunicação, colocando em destaque os estudos culturais no interior do que se denomina pensamento comunicacional. Esta antropolização atingirá igualmente, de maneira expressiva, os estudos do discurso mediático. Ocorre o esgarçamento da relação entre os sujeitos discursivos (enunciador e o destinatário ou co-enunciador para alguns) através do apelo ao situacional para autores como Dominique Maingueneau, Patrick Charaudeau, ou do contexto para Teun van Dijk, processo sócio-cultural em Eliseo Veron. A antropologização irá enriquecer a leitura acerca dos meios de comunicação no sentido lato, como também nos estudos de suas mensagens. Nesta relação cultura- meios de comunicação, tanto a sociologia, quanto os estudos do discurso migram, em boa parte, para a recepção. O centro da problemática dos efeitos e da construção do sentido é calcado na recepção em particular e na relação da ação constante dos meios de comunicação, sob a égide da dinâmica cultural, que sobre ela age e sofre igualmente sua influência. 35 Doutor em Ciências da Informação pela Universidade de Paris II (Panthéon-Assas), professor na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia.

6. CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE DO DISCURSO AO ESTUDO … · modalidades da enunciação. ... Busca-se aliviar a relação entre os meios de comunicação e seu público com caracterização

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6. CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE DO DISCURSO AO ESTUDO DE JORNALISMO

Giovandro Marcus Ferreira35

Resumo:Este trabalho tem como objetivo fazer um relato do atual estágio da análise do

discurso, em especial de algumas abordagens que têm como objeto o discurso jornalístico. Hoje, a análise do discurso repousa sobre a interação de um modo de enunciação e de um lugar social. Nesta ótica abre-se uma série de desafios como também de propostas, em investidas normalmente interdisciplinares, objetivando recompor as fronteiras deste domínio de estudo. Neste novo contexto teórico e metodológico, buscar-se-á evidenciar desafios que estão colocados para uma maior consolidação e expansão deste domínio de estudo e suas contribuições para a reflexão acerca da atividade jornalística.

I. Análise do discurso e teoria da comunicação Observada a análise do discurso a partir de sua história, nosso enfoque parte de um

paradoxo. Buscaremos evidenciar a análise do discurso como um terreno de encontro de disciplinas, terreno este até pouco tempo, uma ilha de isolamento. Em relação aos outros domínios de estudos, a análise do discurso tem um pretérito passado de concentração nos aspectos imanentes da mensagem (fase imanentista), se isolando de outros estudos, por conseguinte de suas contribuições. Tal isolamento ficou evidente, sobretudo, em relação à sociologia, domínio com uma longa tradição nos estudos dos meios de comunicação. Esta fase foi mesmo caraterizada por Stuart Hall, como a “ruptura sociológica”, já que a análise do discurso investia no intra-textual, com conclusões que extrapolavam quase sempre o reduzido percurso analítico.

Esta fase da análise do discurso é superada, ao mesmo tempo, que se percebe mudanças igualmente nos estudos mais amplos dos meios de comunicação. A tradicional problemática dos efeitos adquire outros contornos, sendo edificada a partir dos seus aspectos cognitivos, que comumente são identificados de “efeitos a longo prazo”. Passa-se, então, de uma preocupação, acerca dos efeitos de natureza imediata, isolada, individual para uma problematização que enfatiza a diacronia, a negociação, enfim, o reposicionamento dos meios de comunicação no debate acerca da dinâmica cultural entre outras.

A antropologização não atinge somente a sociologia da comunicação, colocando em destaque os estudos culturais no interior do que se denomina pensamento comunicacional. Esta antropolização atingirá igualmente, de maneira expressiva, os estudos do discurso mediático. Ocorre o esgarçamento da relação entre os sujeitos discursivos (enunciador e o destinatário ou co-enunciador para alguns) através do apelo ao situacional para autores como Dominique Maingueneau, Patrick Charaudeau, ou do contexto para Teun van Dijk, processo sócio-cultural em Eliseo Veron.

A antropologização irá enriquecer a leitura acerca dos meios de comunicação no sentido lato, como também nos estudos de suas mensagens. Nesta relação cultura- meios de comunicação, tanto a sociologia, quanto os estudos do discurso migram, em boa parte, para a recepção. O centro da problemática dos efeitos e da construção do sentido é calcado na recepção em particular e na relação da ação constante dos meios de comunicação, sob a égide da dinâmica cultural, que sobre ela age e sofre igualmente sua influência.

35 Doutor em Ciências da Informação pela Universidade de Paris II (Panthéon-Assas), professor na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia.

Assim, os estudos do discurso deixam de ser uma ilha isolada onde florescem certezas mutiladas sobre o sentido das mensagens mediáticas, e passa a ser um carrefour por onde circulam disciplinas na contribuição à leitura do processo de significação edificado pelo discurso mediático. Isso faz lembrar, uma frase de Barthes, “a vida é sutil, a ciência é grosseira”. Porém, com um intercâmbio maior entre os vários domínios da ciência, talvez se possa ser menos grosseiro com a vida.

Nesta fase de abertura ou esgarçamento da noção de discurso, considerado por certos autores como a terceira fase da semiologia, surgem algumas abordagens que destacam a relação contratual dos meios de comunicação com seu público. Pela (conturbada) relação texto-contexto, buscar-se-á caracterizar o engajamento ou não de um determinado público com os meios de comunicação pelas estratégias discursivas dos meios de comunicação, pelas modalidades da enunciação.

A noção de contrato tem constrangido vários estudiosos pelo seu peso normativo. Busca-se aliviar a relação entre os meios de comunicação e seu público com caracterização como promessa...36 porém, as deficiências subsistem com tais substitutivos. Provavelmente, um aprofundamento nos estudos da recepção, e da relação, por outro lado, entre o receptor da sociologia e o destinatário da análise do discurso, poder-se-á melhor caracterizar e nomear este entrosamento entre os meios de comunicação e o seu público.

A partir desta introdução, onde buscou-se uma sintonia entre a análise do discurso e os estudos dos meios de comunicação em geral, almejar-se-á, na etapa seguinte, uma relação entre a análise do discurso e os estudos do jornalismo em particular. O ponto de partida será a contribuição dos estudos do discurso no que toca ao conhecimento ou às estratégias da informação.

II. Análise do(s) discurso(s), contrato e discurso jornalístico A noção de contrato, edificada pelo estudo do discurso, forja outras noções no seu

interior. Um contexto, quer dizer, a caracterização ou o diagnóstico de um contexto será a base para a construção de sentido ou propostas discursivas feitas por um suporte de imprensa, por exemplo. As estratégias discursivas, ato de enunciação, matérias significantes estão ancoradas a um contexto ou situação de comunicação que vão vertebrar o posicionamento ou contrato discursivo.

Toda análise desta investida de sentido realiza-se sob o manto do discurso enquanto enunciação. O discurso é visto como um “ato produtor de enunciado” ou “a colocação em funcionamento da língua por um ato individual de utilização”, como define Émile Benveniste.37 De uma maneira breve e concisa, Jean Dubois resume como “o impacto do sujeito no texto”.38

As estratégias do discurso da informação formam para Patrick Charaudeau o contrato de comunicação, ou melhor, o contrato de comunicação da informação mediática. A informação mediática é forjada pela sua forma (mise em forme) e sua espetacularização (mise em spectacle). Para obter o sentido do discurso, é preciso conhecer o conjunto de imposições ou constrangimentos que regem sua construção para tornar-se válida todo o tipo de avaliação. 39

36 Ver sobre esta questão o número da revista Hèrmes intitulado “Le dispositif: entre usage e concept”, n° 25, Paris, CNRS Editions, 1999. 37 BENVENISTE, E., L´appareil formel de l´énonciation, in revue Langage, n° 17, Paris, Larousse, 1970. 38 DUBOIS,J. Énonce et énonciation, in revue Langage, n° 13, Paris, Larousse, 1970. 39 Tendo como ponto de partida também a lingüística, Charaudeau coloca a problemática em torno do discurso sobre um plano interdisciplinar, ressaltando três dimensões: a dimensão cognitiva, a dimensão social e psico-social e a dimensão semiótica. A dimensão cognitiva problematiza se a percepção do mundo é uma categorização de alguém independente da ação da linguagem ou se ela se dá necessariamente através da linguagem. Quais são as

Todo discurso, incluso o discurso da informação mediática, tem seu espaço de limitações, imposições, onde a comunicação deve ser validada. Por isso, que em certos lugares cria-se à expectativa de ouvir um discurso político e não religioso, ou vice versa, ou então, o discurso jornalístico e não o publicitário. Os discursos estão regidos pelo espaço de limitações, mas também há espaço de estraté gias, um leque de ações discursivas possíveis.40

Assim, o discurso se exerce na intencionalidade daquele que fala e organiza-se num espaço de limitações e de estratégias na interdependência entre os espaços interno e externo. Três níveis estruturam tais espaços: (1) o situacional, (2) o comunicacional e (3) o discursivo.

O situacional é considerado o externo, que evidencia ao mesmo tempo limitações, determinando a finalidade do ato de linguagem (a gente está aqui para dizer o que?), a identidade dos parceir os (Quem fala a quem?), o domínio do saber (a propor de que?), o dispositivo das circunstâncias materiais de espaço / tempo (Em qual quadro físico de espaço e de tempo?).

O comunicacional é o nível da maneira ou modo de dizer, escrever, em função dos dados do situacional, respondendo a seguinte questão: Estamos aqui para dizer de que maneira?. Tal questão suscita os “papéis linguageiros”, segundo Charaudeau, do sujeito comunicante ou interpretante, a justificação à palavra (finalidade), que mostra sua “identidade” e lhe permite de tratar um certo tema (assunto), em certas circunstâncias (dispositivo).

O discursivo, apreendido ao nível do sujeito enunciativo, deve satisfazer as condições de legitimidade (princípio de alteridade), de credibilidade (princípio de pertinência) e de capacitação (princípio de influência e de regulação). Neste quadro metodológico, a análise do discurso consiste em caracterizar os comportamentos linguageiros (como dizer) em função das condições psico-sociais que os constrangem, segundo o tipo de situação de troca (contrato). Nesta perspectiva, a análise do discurso investe nos comportamentos linguageiros possíveis e nos comportamentos efetivos, determinando assim, as características do gênero a que pertencem os textos, as variantes do gênero (tipologia) e as estratégias particulares que se encontram nos textos e que projetam o contrato de comunicação. 41

O discurso da informação é articulado no interior da noção de contrato de comunicação levando em consideração a produção (instância de produção), a interpretação (instância de recepção) e o produto. A partir dos constrangimentos de diferentes modalidades do situacional, comunicacional e discursivo, abre-se um outro espaço para ser investigado que é este das estratégias em torno das características da informação mediática. Tal abordagem trata a máquina mediática e o discurso da informação a partir de uma complexidade em diversos níveis abordados, ou seja, a partir da produção, do produto e da recepção, onde o discurso da informação é visto a partir do paradoxo de suas finalidades: ele busca informar, ao mesmo tempo, que ele deve igualmente captar, seduzir seu público, segundo as articulações vistas a partir dos espaços de imposições e estratégias.42

Nesta discussão acerca do discurso de informação, Charaudeau tem o mérito de esboçar na sua metodologia uma complexa e pertinente discussão entre o situacional e o lingüístico. Ele busca um caminho que diferencia, de um lado, da sociologia da linguagem que predomina à situação de comunicação em detrimento do ato de linguagem, na tradição de William Labov43,

operações semântico-cognitivas da estruturação lingüística do mundo? A dimensão social e psico-social interrogam sobre o valor de troca do signo e sua influência. Qual o valor de troca dos signos e o valor de influência dos fatos de linguagem? Enfim, a dimensão semiótica questiona sobre a semantização das formas, sobre a semiotização do sentido. 40 CHARAUDEAU, P., Langage e discours , Paris, Hachette, 1983. 41 Idem ibidem. 42 CHARAUDEAU, P., Le discours d´information médiatique, Paris, INA / Nathan, 1997. 43 LABOV, W., Sociolinguistique, Paris, Editions de Minuit, 1976.

de Pierre Bourdieu44. De outro lado, dos estudos de pragmática de discípulos de Austin, inspirados nos atos de linguagem como performativos, que restringem e subjugam a situação de comunicação. 45

Seguindo os estudos de Oswald Ducrot, Kerbrat-Orecchioni entre outros, Charaudeau propõe um modelo integrador entre o lingüístico e o situacional que elencamos acima a partir do estudo do contrato de comunicação. 46 É relevante a investida deste pesquisador na ampliação do estudo do discurso, que é aprendido na articulação desses dois espaços construídos numa relação de interdependência e reciprocidade. Porém, como lingüista, Patrick Charaudeau não avança nos seus estudos do discurso em materiais que extrapolam o verbal, além de tal abordagem, investir de maneira tímida sobre a instância da recepção. No entanto, seu apelo em direção da hermenêutica de Ricoeur, da lingüística de Ducrot e de Kerbrat-Orecchioni, dos estudos da notícia de Mouillaud e van Dijk, da reflexão acerca dos meios de comunicação de Louis Quere, entre outros, têm certamente ajudado enriquecer a reflexão em torno da informação mediática.

Eliseo Veron constrói, a partir do estudo do discurso jornalístico, a noção de contrato de leitura. Ele trabalha com a perspectiva de análise dos discursos, onde o discurso, ou melhor, as matérias significantes são analisadas a partir de comparações. Para Veron o discurso mediático é constituído de matérias significantes, que são lugares de investimento de sentido (a linguagem propriamente dita, a fotografia, a composição da página de um jornal...). Igualmente destaca que a noção de discurso vai além da noção de texto. Este último representa o conjunto significante ou um pacote de matérias significantes. Já a noção de discurso implica em um certo número de postulados que apreende o texto de uma determinada maneira, ou seja, as estratégias de análise das matérias significantes em questão.47

A ênfase do plural – análise dos discursos – já coloca igualmente em evidência a contextualização dos discursos, onde a produção, a circulação e o engendramento dos efeitos se realizam no interior da sociedade, na presença e concorrência de outros discursos. A tipificação de discursos, a identificação de classes, a descrição da economia de funcionamento, tudo isso exige comparação e a relação entre discursos. Logo, a análise é sempre uma análise dos discursos.

Assim, a análise discursiva será sempre a análise dos discursos sendo colocado em evidência seus desníveis, suas diferenças discursivas (écarts) pela variedade de construção no tocante ao espaço-tempo do sentido. Um conjunto discursivo é apreendido a partir de duas diferentes instâncias: a instância de produção e a instância de reconhecimento. O conjunto complexo de regras, que compõe estas duas instâncias discursivas, forma as gramáticas de produção e de reconhecimento, e estas designam, por sua vez, as operações que permitem descrever os constrangimentos do engendramento de sentido e os resultados que possibilitaram uma certa leitura (que nada mais é do que uma outra produção discursiva).

A gramática de produção representa as regras de engendramento de um discurso ou tipo de discurso. Para sua caracterização, Veron cunha o conceito de ideológico, que designa uma dimensão da análise do funcionamento do discurso, que é o sistema de relação entre o discurso e suas condições de produção. A gramática de reconhecimento é o conjunto de operações que

44 BOURDIEU, P., Ce que parler veut dire, Paris, Fayard, 1984. 45 AUSTIN, J. L., Quand dire, c´est faire, Paris, Editions du Seuil, 1970.

46 “Se o lingüístico não pode só definir o sujeito falante, o sociológico não é, por sua parte, sobredeterminante. O sujeito falante constrói sua identidade linguageira no ponto de encontro do situacional e do lingüístico num quadro de pertinência comunicativa”. Ver CHARAUDEAU, P., La conversation entre le situationnel et le linguistique, in Connexions, N° 53, ARIP-ERES, 1989. 47 VERON, Eliseo, Dictionnaire des idées non recues , Paris, Connexions, n° 27, ARIP, 1978.

descreve as “leituras”. Para caracterizar os efeitos de sentido do discurso, Veron trabalha com o conceito de poder, que está intimamente ligado ao conceito de ideológico, este último forjado a partir da gramática de produção. A noção de poder48 abarca uma dimensão de todo o discurso, visto agora pelos efeitos que ele gera em diferentes contextos sociais. A problemática a partir do reconhecimento interroga como e porque um mesmo discurso não tem o mesmo poder, não produz os mesmos efeitos em contextos sociais diversos.

As operações originadas pela noção de circulação discursiva, pelo viés dos dois pólos conceituais - produção e reconhecimento – evidenciam um conjunto de traços que caracterizam os discursos, denominados “invariantes referenciais”. As “invariantes referenciais” de um discurso representam os fragmentos que forjam a identidade de um discurso e os elos que ligam um suporte a seu público, no caso do suporte de imprensa aos seus leitores. O conjunto de “invariantes referenciais” de um discurso determina a proposta ou contrato que é oferecido ao público visado. 49

O contrato de leitura de um suporte de imprensa é o conjunto de traços de seu discurso apreendido através da análise (1) da regularidade das propriedades descritas - propriedades relativamente estáveis do discurso, encontradas em diferentes temas; (2) da diferença obtida pela comparação entre suportes – busca das semelhanças e diferenças a partir das características discursivas de cada suporte estudado; e por fim, (3) da sistematização das propriedades contidas em cada suporte – configuração do conjunto das propriedades a fim de fazer emergir o contrato de leitura desses suportes estudados, identificando os pontos fortes e fracos, as “zonas de ambigüidades” e as supostas incoerências.

Segundo Veron, a noção de contrato evidencia as condições que une a mídia aos seus consumidores; e o objetivo do contrato nada mais é do que a busca de preservação do hábito de consumo, no caso, do consumo de um suporte de imprensa.

A novidade encontrada nesta metodologia é a indeterminação relativa entre produção e reconhecimento do discurso. Para efetuar esta análise, articula -se duas técnicas: a análise semiológica de um ‘corpus’ e a análise sociológica qualitativa (entrevistas semi-diretivas ou grupos de projeção).

Estudar este tipo de relação entre as “partes” do discurso é analisar as condições e as determinantes da leitura. A leitura que era desconsiderada em estudos de outrora, é colocada em destaque na perspectiva da circulação entre a produção e reconhecimento do discurso. É na teoria da enunciação que se encontram os fundamentos para o desenvolvimento do contrato de leitura.

O discurso da imprensa escrita, a partir da noção de matérias significantes, se apresenta sob a forma de material verbal, imagem e layout (composição das páginas). É preciso, então, levar em conta esta complexidade discursiva para descrever o sentido engendrado nos suportes de imprensa, observando igualmente os sistemas de representações ligados às estruturas institucionais e às modalidades dos destinatários.

O tipo de discurso da imprensa é legitimado socialmente e “autorizado” a produzir do

real (construção de eventos) pelas vias de suas estruturas institucionais (suportes organizacionais, rede tecnológica, sistema de normas que modela a profissão de jornalista...) e

48 “Não se pode confundir esta noção de poder, com a problemática do político. Este último pode ser considerado como um tipo de discurso, caracterizado pela sua relação específica a um funcionamento social particular, este da rede institucional do Estado.” Idem ibidem, p. 132. 49 VERON, E., “L’analyse du ‘Contrat de Lecture’: une nouvelle methode pour les etudes de positionnement des supports presses” in Les medias, experiences, recherches actuelles, applications, Paris, IREP, 1983.

relações sociais, onde são forjadas as modalidades de construção de um destinatário genérico, através da organização do espaço-tempo do jornal.

O tipo do discurso jornalístico obedece a uma tradição enquanto um ramo da

produção cultural submetido, depois de algum tempo, as leis da concorrência. O contrato de leitura é forjado pela lei de mercado. Três níveis de dispositivos são observáveis na produção dos discursos jornalístico, que fazem desse discurso mercadoria definida pelo seu valor.

- A produção dos leitores: características que tornam possível a definição de um

conjunto dos leitores por um certo suporte de imprensa. A produção dos leitores se faz através das percepções-representações dos atores sociais implicados na produção do título de referência enquanto produto.

- Posicionamento do suporte em relação aos concorrentes: A produção dos leitores, que

acabamos de descrever, ocorre numa situação de concorrência. Esta situação que faz o elo – contrato de leitura – entre o suporte de imprensa e seus leitores, se estabelece num contexto onde os suportes de imprensa edificam suas estratégias a partir da interdeterminação.50

- Valorização dos leitores junto aos anunciantes: A produção dos leitores é valorizada

pela representação particular do discurso do jornal junto às diversas categorias de anunciantes. Esta valorização á afetada pelos constragimentos de vários tipos, já que a perspectiva dos anunciantes coloca quase sempre em jogo outros interesses.

Como fruto de tal contexto, o discurso jornalístico, produzido numa situação de forte

concorrênc ia, é levado pela orientação do mercado em direção à homogeneização da oferta, onde reina uma variedade de produtos idênticos, sobretudo no tocante ao conteúdo. As zonas de concorrências se desenvolvem sob uma dupla tensão: há um processo de homogeneização dos produtos, de um lado, e uma necessidade de colocar em relevo as diferenças entre os produtos concorrentes, de outro. O processo de homogeneização no interior das zonas de concorrência é também acompanhado pela multiplicação dessas zonas de concorrência (segmentação da imprensa).

A análise dos discursos da imprensa, segundo Veron, oferece, como outras abordagens

anteriores, uma visão de discurso jornalístico numa perspectiva interdisciplinar, no caso específico, um entrosamento entre a semiologia e a sociologia. Ele avança, igualmente, numa perspectiva que leva em consideração a complexidade do discurso jornalístico impresso, em particular, cunhando o conceito de matérias significantes para dar conta da construção de sentido engendrado neste tipo de discurso mediático.

A análise dos discursos de Veron também avança no que toca às implicações

mercadológicas na produção do discurso jornalístico, trabalhando com a noção de zona de concorrência como parâmetro para estudar suportes de imprensa em disputa pelo mesmo mercado. Porém, gostaríamos de fazer duas observações.

Nós defendemos que os lugares ocupados pelos sujeitos discursivos, a partir da teoria

da enunciação, são plenos de sentido para explicar a evolução sócio-cultural. Mas esta posição

50 FERREIRA, Giovandro, “O contrato de comunicação dos jornais de Vitória-ES (1988 a 1993)”, in Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, n° 1, Vol. XXII, São Paulo, Intercom, janeiro / junho de 1999.

não exclui uma maior presença dos sujeitos empíricos (sociais) nas investidas de estudo para a descrição do engendramento do sentido. Os sujeitos sociais e discursivos dispõem nos seus lugares próprios de dinâmicas específicas, porém eles se encontram num mesmo processo de significação. É preciso, talvez, repensar a circulação discursiva – produção e reconhecimento – a partir do círculo hermenêutico proposto por Ricoeur para dar maior densidade aos aspectos que ultrapassem o suporte de imprensa, mas que interferem na relação com os leitores. Provavelmente, a zona de concorrência sofre influência que o discurso do suporte de imprensa desconhece.

A segunda observação é uma conseqüência da primeira. Os produtos estão em

concorrência, no caso produtos de comunicação – jornal, revistas... mas a concorrência não se limita as características engendradas no suporte. Observa-se que as estratégias de concorrência passam pelos produtos e também por caminhos que extrapolam suas fronteiras. Os estudos acerca da noção de marca têm ressaltado que o seu valor de representação está além da soma de sentido que circula nos produtos de um empreendimento.51 Quando buscam-se as respostas para o sucesso ou o insucesso de um suporte de imprensa através do contrato de leitura restrito às suas estratégias discursivas em confrontação com as de seus concorrentes, não estaria tornando ociosa a indagação com a resposta ofertada?

O que tudo indica, as propostas interdisciplinares do estudo do discurso representam

uma boa abertura para se repensar e sistematizar estes novos caminhos ávidos a serem percorridos. Tais investidas são típicas do fazer científicos, onde as perguntas têm um impulso que vai, muitas vezes, além das respostas ofertadas. Apesar deste descompasso, parte do caminho já foi feito e dificilmente, as respostas do passado poderão oferecer a segurança e tranqüilidade de outrora.

III. Racismo e objetividade no jornalismo: objetos da análise do discurso A notícia como discurso para Teun van Dijk tem como problemática saber de que

maneira as restrições cognitivas e sociais determinam as estruturas da informação. Como tais restrições influenciam na compreensão e nos usos da notícia pelas suas estruturas textuais.52

O discurso, enquanto notícia para van Dijk, tem a pretensão de ser considerado dentro de um marco amplo (social, econômico e cultural) como uma forma particular de prática social e institucional. Esta prática discursiva de produção e compreensão da notícia é por ele analisada através de dois patamares: o textual e o contextual. O primeiro patamar de análise (textual) busca ressaltar as diferentes estruturas do discurso jornalístico nos mais diversos níveis. Já o patamar contextual destaca os fatores cognitivos e sociais, as condições, os limites ou as conseqüências destas estruturas textuais e de forma indireta, seu contexto econômico, cultural e histórico. 53

A proposta de Van Dijk em considerar a notícia como uma forma específica de discurso e, portanto, como um tipo específico de prática social permite com que ela seja estudada de uma forma mais explícita e sistemática. Segundo Teun van Dijk, a maior parte dos estudos acerca da notícia se concentrou em um tipo de contexto: o contexto sócio-econômico. Van Dijk propõe ocupar um espaço não abordado sob os pontos de vista citados anteriormente. Este novo

51 Andréa Semprini tem ajudado a pensar a marca a partir de uma abordagem semiótica. Podemos destacar

algumas de suas publicações: SEMPRINI, Andrea, Le marketing de la marque, Paris, Editions Liaisons, 1992. La marque, Paris, PUF, 1995. Analyser la communication, Paris, L’Harmattan, 1996. 52 VAN DIJK, Teun, La noticia como discurso – comprensión, estrutura y producción de la información, Barcelona, Paidós, 1990. 53 Idem ibidem.

espaço ele chama de interface sócio-cognitiva que se situa entre o texto e os contextos sócio-econômicos. Esta interface é o meio pelo qual os produtores e usuários da notícia participam do processo de comunicação.

Embora Teun van Dijk continua arraigado aos conceitos da lingüística de onde inicia suas investigações científicas, ele avança no estudo do discurso articulando, sobretudo com a psicologia cognitiva e os estudos feitos em torno da IA – inteligência artificial. A metodologia aplicada por van Dijk divide a notícia em dois níveis, microestrutura e macroestrutura ou como ele também denomina a coerência discursiva local e global.

Neste dois níveis ele recorre ao instrumental da gramática através de dois eixos, a sintaxe e a semântica. Através da sintaxe, ele busca descrever a construção das orações e através da semântica o significado edificado pelas palavras, orações e discurso. A semântica lhe oferece dois pontos fundamentais, caracterizados como o intencional e o extencional, em ambos se busca a relação entre os significados e os fatos aos quais são referidos. O recurso da pragmática, na análise dos atos de linguagem, vai evidenciar que tais atos são de cunho social, representam determinada sentença em relação a uma situação específica. No que toca ao estilo, a escolha feita pelo falante, na organização discursiva através das várias opções que ele dispõe, vai ressaltar o tipo de inserção e que papel tal discurso terá num determinado contexto. A retórica é um outro sub-componente teórico, que oferece, por sua parte, um instrumental para analisar os aspectos persuasivos do discurso, bastante utilizado pelo autor em estudos de editoriais.

Todo este aparato teórico supõe, segundo van Dijk, uma análise extensa, numa integração do texto e do contexto, onde o uso de um discurso em uma situação social determinada, é também, um ato social. A interpretação e a interação, bem como a descrição dos contextos cognitivo e social, são funções importantes de análise do discurso. Assim, Teun van Dijk investiga de que maneira os processos cognitivos, sobretudo, irão influir sobre a produção e a compreensão das estruturas discursivas e como estas, por sua parte, irão influir e serem influenciadas pela situação social. 54

As macroestruturas representam a organização global da notícia. Van Dijk busca ressaltar a construção do sentido ao nível do macrofenômeno, como ele mesmo afirma, utilizando, sobretudo, uma teoria de macroestrutura semântica.55 As macroestruturas são conjuntos organizados de proposições, ou melhor, de macroproposições, que correspondem a temas e assuntos de um determinado texto.

As macroestruturas da notícia não podem atuar sem um complemento cognitivo, pois elas são forjadas por regras (macrorregras) que através de sumarização agem sob a forma de apagamento, supressão, generalização. Elas reduzem uma estrutura que tem um sentido complexo, mas tal ação ocorre na macroestrutura da notícia. Um exemplo claro do exercício de macrorregas ocorre na elaboração de título, de lead entre outros que são sinais adequados (grifo do autor) para ressaltar as informações mais eficazes do texto. 56

Nesta perspectiva (macro) o discurso também é explorado por van Dijk de uma maneira mais estrutural, ou melhor, ele busca fazer um estudo menos genérico do texto, observando as estruturas temáticas no discurso da notícia. Para o autor, a estrutura dos temas “representa uma coleção formal ou subjetiva de tópicos, cada um dos quais organiza parte dos sentidos do texto”.57 Os jornais podem exprimir e atribuir uma hierarquia temática por meio das partes que

54 Idem ibidem. 55 VAN DIJK, Teun, Cognição, discurso e interação, São Paulo, Contexto, 1992. 56 Idem ibidem. 57 Idem ibidem, p. 136.

compõem a notícia (manchete, título, subtítulo, olho, legenda...), a relação acerca da causa, situação, conseqüência... do tema ou assunto em questão.

A partir da estrutura proposta, van Dijk evidencia o papel do leitor na compreensão da notícia. O leitor não recebe os pormenores através da estrutura da notícia, por razões diversas, elencadas acima. Ele irá reconstruí-los através de seus conhecimentos adquiridos anteriormente.58 Teun van Dijk denomina modelo de situação na memória, a representação que o leitor guarda de experiências e informação sobre uma determinada situação. De maneira cognitiva, a leitura de uma notícia leva a construção de um modelo particular da situação ou do evento tratado no texto. Por meio deste te xto, ele atualiza modelos mais gerais. Em última instância, tais modelos podem servir para forjar ou modificar frames mais abstratos, ou seja, outras abordagens acerca de temas ou tópicos mais amplos, onde a situação ou o evento tratado se insere.

Além da metodologia proposta, van Dijk diz ter começado a fazer “análise do discurso de maneira séria” quando ele busca de relacionar notícia e racismo, ou melhor, racismo na notícia, onde o discurso faz parte do problema do racismo. Ele é construído também através do discurso. A imprensa é um dos lugares de produção e reprodução do racismo. A análise do discurso jornalístico contribui, então, para entender a manifestação do racismo como forma de dominação social, expressando, justificando e reforçando a desigualdade social e a concentração de poder.

Nesta perspectiva, ele questiona: Quais são as estruturas do discurso racistas através da notícia? Como ele reposiciona diferenças numa escala de valor? Seguindo estas e outras indagações, ele observou na imprensa inglesa que as estruturas da notícia (manchetes, títulos, lead, olho...) são, muitas vezes, elaborados tendo em vista dois campos separados, nós e eles. Nós (brancos, ingleses, respeitadores das leis...) e eles (negros, estrangeiros, costumes bárbaros...). A partir desta perspectiva, haverá uma ênfase nas estruturas da notícia das nossas coisas boas e igualmente uma ênfase das coisas más deles. Obscurece as coisas boas deles como também as nossas coisas más. Todos estes aspectos se tornam observáveis nos temas publicados, nas formas retóricas, nas metáforas e outras figuras de linguagem. 59

O estudo de Teun van Dijk se atem igualmente aos seus diferentes elementos que compõem à notícia. No levantamento feito dos títulos, percebeu-se que nenhuma manchete tinha sido positiva em relação a eles. Em contra partida, elas eram repletas de bons aspectos em relação a nós. Outro componente analisado da estrutura discursiva foi referente às citações. A orquestração das citações, do direito a palavra nas informações, isto é, o discurso direto, o eles é representado, de um lado, por alguém branco (advogado, ong...) ou então, de outro, por seus representantes extremistas (movimentos radicais...). Dificilmente por integrantes moderados que fazem parte dessas comunidades minoritárias. A articulação desses vários aspectos entranhados na estrutura da notícia vai cunhar a ideologia que solda as informações de certos jornais acerca das minorias na Inglaterra (negros, estrangeiros...). 60

Mesmo que Teun van Dijk não avança nas suas análises nas diversas matérias significantes que compõem o discurso jornalístico impresso em particular (layout, fotografia,

58 Numa outra passagem, Teun van Dijk diz que “as pessoas contam também com um modelo mental específico do contexto comunicativo presente, o que se pode chamar um modelo contextual que caracteriza a informação acerca das metas do discurso, seus atos comunicativos e as propriedades do público... O modelo contextual administra o aspecto interativo e comunicativo do discurso e relaciona o discurso com situações e estruturas sociais.” VAN DIJK, Teun, “El estúdio interdisciplinario de las noticias y el discurso”, in JENSEN, K. B. e JANKOUSKI, N. W. (ed.), Metodologias qualitativas de investigación em comunicación de masa, Bosch Comunicación, Barcelona, 1993, p. 146. 59 Ver entre outros: VAN DIJK, T., Racismo y análisis crítico de los médios, Barcelona, Paidós, 1997. 60 Idem ibidem.

gráfico, desenho...), sem falar em outras matérias quando a informação é radiofônica ou televisa, porém ele contribui oferecendo certos meios para estudar a notícia, deixando aberto um grande terreno para ser articulado entre o discurso do jornal, cultura e ideologia.

Partindo para um outro extremo aparente, pode-se também estudar, pela análise do discurso, o jornalismo pela sua vertente da objetividade. Pelo próprio estudo da suposta objetividade que tanto debate já suscitou em torno da atividade jornalística.

Partindo do olhar de Jay Rosen,61 a objetividade é uma das marcas identificadora do discurso em torno do jornalismo, em especial do jornalismo americano, que acaba influenciando o jornalismo de outros países. A objetividade é apresentada de diversas formas ou dimensões diferentes. (1) A objetividade vista como contrato entre jornalistas e as entidades patronais. Um tenso equilíbrio, onde os jornalistas ganham independência, mas perdem a voz, ou seja, a liberdade faz o jornalista se tornar escriba em lugar de escritor, usando as noções de Roland Barthes.

Uma outra forma (2) para compreender a objetividade é tê-la como uma teoria que leva à verdade, uma sorte de epistemologia do jornalismo para alguns e de ideologia para outros.62 Após o recuo da objetividade nos diversos âmbitos do conhecimento, o jornalismo persiste em ser o guardião da objetividade, transformando-a em sinônimo de equilíbrio, de equidade. Uma outra forma (3) de compreender a objetividade é entende-la como rotinas profissionais, que forjam o discurso da notícia. A objetividade é a citação de ambos os lados (em geral a objetividade jornalística nada mais é do que a mise en discours expressando dois lados). Neste caso, a objetividade é ver o mundo a partir de dois lados extremos e apresentá-los em conjunto. 63

Uma outra forma (4) de compreender a objetividade como expressão de um ideal e necessário para a vida da democracia, sob forma de verdade desinteressada. O problema nesta forma que tal verdade não tem empolgado os leitores no que toca à cidadania. Será que a verdade desinteressada não é um dos motivos do desinteresse instalado na esfera política que tem por origem a suposta objetividade?64

Uma outra forma (5), a que mais nos interessa a partir da análise do discurso, é a objetividade como uma estratégia de retórica. Tradicionalmente associa -se a persuasão pelas estratégias discursivas calcada no entusiasmo, na paixão, ou então, a partir de valores compartilhados num grupo ou numa sociedade. Assim, observa-se a retórica no discurso religioso, político entre outros.

A objetividade jornalística constrói sua retórica pela anulação das estratégias tradicionais da persuasão. Não se têm paixões, nem convicções, nem Deus, nem teoria. A força da persuasão do jornalístico, a partir do discurso da objetividade, está em contar as coisas, como se as coisas fossem tal como elas são contadas. Esta retórica da objetividade busca

61 ROSEN, J., Para além da objetividade, in, Revista Comunicação e linguagens – Jornalismo 2000, n° 27, Lisboa, Relógio d´Água Editores, fevereiro 2000. 62 Idem ibidem. 63 A objetividade enquanto equilíbrio tem uma astúcia latente destacada por Rosen. Ela é astuciosa em razão de desvalorizar e de desviar qualquer crítica. Ela funciona da seguinte maneira: quem está à direita acusa a imprensa de ser liberal demais, os da esquerda à enquadram no status quo. Logo, estas duas posições criam um lugar confortável de defesa para a imprensa. Estar no lugar certo, no centro. J. Rosen destaca assim a objetividade como “um dispositivo, não só para desvalorizar a crítica, tal como o faz, mas, ainda mais engenhosamente, para produzir um gênero de crítica que é facilmente desvalorizada.” Idem ibidem, p. 142. 64 Refutando o jornalismo dito objetivo J. Rosen clama por um jornalismo público ou cidadão como é assim chamado nos EUA. Por isso ele proclama: “...o jornalismo deveria estar empenhado em reaproximar as pessoas da vida pública. A objetividade é uma filosofia muito má e impraticável para esta tarefa de reaproximar os cidadãos da política e da vida pública. Este é para mim um dos grandes desafios com que se deparam os jornalistas neste momento.” Idem ibidem, p. 148.

confundir as coisas com seu relato, a re-presentação como se fosse a apresentação. Esta é uma outra forma que almeja igualmente esvaziar a crítica ao discurso jornalístico.

Nesta ótica, as estruturas das notícias estão articuladas com estratégias subjacentes que emanam autenticidade (que é diferente de verdade). Ela recorre a recursos discursivos para criar autoridade no dizer sobre os fatos, e como isso, as notícias buscam ser sinônimo dos fatos.65 Uma forma de justeza entre o fato e sua representação. A autenticidade se constrói com recursos discursivos que constitui os elementos da notícia, do jornal impresso, do jornal televisado entre outros.

No jornalismo impresso, a importância que adquiriu a fotografia não é por acaso. Ela é uma forte impressão de autenticidade, como bem analisou Roland Barthes.66 Eis um recurso que o jornal utiliza para dizer a todos seus leitores: “Nós estivemos lá, vejam vocês mesmos”. O mesmo se pode dizer do jogo das formas de discurso: direto, indireto e híbrido. O discurso direto, ou seja, a citação entre aspas, é um outro recurso bastante utilizado pela imprensa escrita em busca de autenticidade. O telejornalismo constrói autenticidade explorando as coberturas ao vivo, articulando correspondentes, ao mesmo tempo, de várias partes do mundo.... Estes e outros recursos retóricos, que clamam por autenticidade, fazem tornar transparentes as fronteiras que separam os fatos das narrações sobre eles, os fatos das “estórias contadas”. Eis aqui um grande e fértil terreno sobre o qual a análise do discurso pode também contribuir para os estudos do jornalismo.

IV. Os acontecimentos jornalísticos e as investidas da análise do discurso Uma das contribuições mais promissora, da análise do discurso em relação aos estudos

de jornalismo, é a reflexão acerca do acontecimento ou evento mediático. No contexto amplo ainda falta, no terreno das ciências sociais, ser formulada uma problemática do acontecimento. Um vácuo provavelmente provocado pela recusa de estudos históricos recentes de se ater ao acontecimento em detrimento às estruturas e às mudanças de longa duração. 67

É na reflexão acerca dos meios de comunicação, através da sociologia da comunicação, que se vem forjando uma reflexão acerca dos acontecimentos, mais particularmente sobre as especificidades dos acontecimentos mediáticos. Além desses estudos dos meios de comunicação, os eventos têm tido uma atenção, é bem verdade, da filosofia contemporânea, em especial da hermenêutica, aqui podemos colocar em relevo os trabalhos do filósofo Paul Ricoeur.68 É bom também dizer, que vários estudos sobre o acontecimento mediático, tanto sociológico como semiológico, têm tido a influência dos estudos hermenêuticos.

O evento tem sido foco de atenção nos estudos da comunicação, sobretudo pela abordagem construtivista, seja ela pelo viés sociológico, seja ela pela análise do discurso. A abordagem construtivista é calcada sobre a idéia de que os acontecimentos mediáticos não correspondem às imagens dos fatos em si. Eles são fruto de um processo socialmente

65 Na etimologia do termo autêntico dois sentidos são convocados: originalidade e autoridade. Do latim authenticus o adjetivo significa original e boas atribuições de um texto, e como substantivo um ato (jurídico) aquilo que se pode dar fé. Do grego tardio authentikos o significado desloca para o poder, a autoridade inatacável. Em línguas neolatinas, a uma identificação com fidedigno, ato a que se pode dar fé, autenticar = certificar, ou seja, certeza, justeza do ato. 66 BARTHES, R., “Réthorique de l´image”, in Communication, n° 4, Paris, Seuil, 1964. 67 QUERE, Louis, L´événement (introduction), in BEAUD, Paul et all. (org.), Sociologie de la communication, Paris, Réseaux /CNET, 1997. 68 Ver RICOEUR, P., Temps et récit, vol. I, II, III, Paris, Seuil, 1983, 1984, 1985. Ver também, RICOEUR, P., La mémoire, l´histoire, l´oubli, Paris, Seuil, 2000.

organizado, regula do e forjado em forma e sentido, segundo as modalidades impostas pelo domínio dos meios de comunicação. 69

Esta visão hegemônica de descrição do acontecimento mediático - construtivista - tem nuanças segundo as indagações e o arcabouço conceitual solicitados na pesquisa. No enfoque de Tuchuman, conhecido como Newsmaking, sob a influência da fenomenologia de Alfred Schutz e dos quadros – frames - de Goffman, buscar-se a distinção entre ocorrência e acontecimento. As explicações da formação de um evento mediá tico, a partir das análises de Tuchuman, são decorrente dos aspectos institucionais, fruto de acordos implícitos entre os profissionais.70 A classificação dos acontecimentos é erigida para responder as necessidades no que toca ao cotidiano dos profissionais. Este pesquisador insiste, então, sobretudo no dispositivo estabelecido pela instituição, na organização dos profissionais, para captar os eventos, criando assim as rotinas produtivas.71

Quando a abordagem newsmaking se insere sobre a construção simbólica do acontecimento mediático ela busca articular os elementos organizacionais, acima expostos, com certas características do conteúdo das notícias, forjando assim os valores notícias (critérios de substantivos, impacto sobre a região, quantidade de pessoas envolvidas no acontecimento, relevância futura do acontecimento), a relação com o meio, com o público e com a concorrência.72

Porém, fazendo uma aproximação do acontecimento mediático pela sua construção simbólica, pode-se aproximar também pelo viés da forma discursiva. Nesta perspectiva que podemos ressaltar as contribuições da análise do discurso neste carrefour disciplinar que constitui uma proposta para a construção de uma teoria do acontecimento.

Não abandonando a via construtivista, Eliseo Veron realiza um estudo que o próprio nome da publicação é sugestivo: “Construir o acontecimento – os meios de comunicação e o acidente de three mile island”. Ele mostra neste estudo como este acontecimento faz sua aparição na cena pública pela configuração realizada pelos meios de comunicação, através dos dispositivos informacionais e seus formatos discursivos.73

Nesta linha de apreender os acontecimentos mediáticos pela forma ou jogo enunciativo, que se constata igualmente as contribuições de Maurice Moullaud e Jean-Fraçois Tétu, em estudo mais específico sobre a imprensa escrita, reforçando uma visão igualmente construtivista: “O jornal - e a mídia no seu conjunto – não está, entretanto, face a face ao caos do mundo. Está situado no fim de uma longa cadeia de transformação que lhe entregam... O jornal é apenas um operador entre o conjunto de operadores sócio-simbólicos, sendo aparentemente, apenas o último: porque o sentido que leva aos leitores, estes, por sua vez, remanejam-no a partir de seu próprio campo mental e recolocam-no em circulação no ambiente cultural...A informação não é o transporte de um fato, é um ciclo interrupto de transformações.”74

69 QUERE, Louis, op. cit. 70 Fazendo apelo à etnometodologia e aos conceitos de Goffman, E. Katz e D. Dayan vão trabalhar sobre a ritualização dos acontecimentos característicos da sociedade contemporânea, como as grandes cerimônias televisadas, em especial aquelas transmitidas ao vivo e programadas, ocorrendo assim, uma espécie de “retextualização” do acontecimento original. Ver, DAYAN, D. KATZ, E., La télévision cérémonielle, Paris, PUF, 1996. Tradução em português: A história em directo – os acontecimentos mediáticos na televisão, Coimbra, Minerva, 1999. 71 Ver TRAQUINA, Nelson, Jornalismo: questões, teorias e “estórias”, Lisboa, Vega, 1993. Ver também WOLF, Mauro, Teorias da comunicação, Lisboa, Editorial Presença, 1987. 72 WOLF, M., op. cit. 73 VERON, E., Construire l´événement, Paris, Editions de Minuit, 1981. 74 MOUILLAUD, M., PORTO, Sergio Dayrell (org.), O jornal – da forma ao s entido, Brasília, Paralelo 15, 1997, p. 51.

Uma articulação interessante acerca da construção simbólica do acontecimento mediático foi realizada por Isabelle Garcin-Marrou sobre a Irlanda do Norte.75 Recorrendo a conceitos de Paul Ricoeur sobre a narração, a autora estabelece como objetivo a compreensão do acontecimento mediático ancorado na história de uma atualidade. O ponto de partida da análise consiste na natureza simbólica do acontecimento: Como o acontecimento é contado pelo discurso mediático? Em seguida, ela migra seu estudo para a seguinte questão: Como a informação é valorizada como acontecimento?

O termo cunhado por Ricoeur “as estruturas inteligíveis do acontecimento” é recuperado por Garcin-Marrou para ressaltar a necessidade de um conhecimento do jornalista em relação à situação social e política do fato em questão. Assim, há a possibilidade do fato tornar-se “intriga”, narração de uma história. Uma conjunção é estabelecida entre experiência do contexto e as exigências da produção discursiva da informação. No que toca à narração do acontecimento, um outro termo é solicitado da hermenêutica de Ricoeur, o “triplo presente”, cunhado na sua obra Temps et récit .76

A partir da noção “triplo presente”, o acontecimento se torna um complexo de três presentes, modificado, retomado pelas ações discursivas: “O acontecimento tem um começo, mas igualmente um desenvolvimento, uma duração ao curso dos quais as coisas presentes tornam-se passadas e as coisas futuras tornam-se presentes. Os presentes “deslizantes” se impõem e a significação do acontecimento evolui. O discurso informativo marca este deslizamento e esta evolução.”77

O deslocamento ou a relevância do acontecimento em relação a outras notícias será operado, sobretudo, pela narração e sua relação com a história e a memória, a portée simbólica do acontecimento contado. As estratégias discursivas do acontecimento – a narração – fazem emergir símbolos, que são inerentes ao acontecimento, suscitando leituras diferentes do que foi produzido. A leitura de símbolos é presente na construção de todos os acontecimentos. “Uma informação não se torna um acontecimento se ela não estiver ancorada num contexto histórica que faz aparecer uma carga simbólica suficiente”.78

O “triplo presente” edifica a narração do acontecimento articulando “latência” que se estabelece além da urgência da atualidade, pela força da carga simbólica. A relação latência -atualidade que dará relevância a informação, sua identidade definitiva de acontecimento ou nas palavras de Isabelle Garcin-Marrou, “uma informação torna-se acontecimento quando a tensão entre latência e atualidade é produzida”.79

Pensar, então, o acontecimento mediático, pelo viés da análise do discurso, com uma interface com a hermenêutica, abre-se três grandes campos férteis entrelaçados: o conhecimento do contexto sócio-histórico, o jogo dos três presentes e a tensão entre latência -atualidade. Este vasto terreno promissor poderá, certamente, enriquecer as reflexões no que tange à teoria do acontecimento, aos estudos de jornalismo, assim como as vértebras que sustentam o domínio da análise do discurso.

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75 GARCIN-MARROU, Isabelle, L´événement dans l´information sur l´Irland du Nord , in revue Réseaux, n° 76, mars-avril, 1996 76 RICOEUR, P. Temps et récit, op. cit. 77 GARCIN-MARROU, Isabelle, op. cit., p. 53. 78 Idem ibidem, p. 55-56. 79 Idem ibidem, 59.