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75 25 5 0 65_miolo.pdf · y Competitividad (MINECO, BFU2014-56692-R) y de la Junta de Andalucía ... D. G. ** Departamento de Biología Molecular, Universidad Autónoma de Madrid,

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ANO XVI – 2017 – Nº 65

DiretoresElton José Donato

Fabio Roberto D’AvilaGiovani Agostini Saavedra

Coordenação ExecutivaDaniel Leonhardt dos Santos

Letícia Bürgel

Conselho EditorialAlexandre Wunderlich (Pontifícia Universidade Católica/RS)

Álvaro Sanchez Bravo (Universidade de Sevilha)Arndt Sinn (Universidade de Osnabrück, Alemanha)

Davi de Paiva Costa Tangerino (Universidade do Estado do Rio de Janeiro/RJ)David Sanchez Rúbio (Universidade de Sevilha/Espanha)

Elizabeth Cancelli (Universidade de Brasília)Fabio Roberto D’Avila (Pontifícia Universidade Católica/RS)

Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo)Felipe Augusto Forte de Negreiros Deodato (Universidade Federal da Paraíba/PB)

Fernando Machado Pelloni (Universidade de Buenos Aires/Argentina)Gamil Föppel El Hireche (Universidade Federal da Bahia)Geraldo Prado (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Giovani Agostini Saavedra (Pontifícia Universidade Católica/RS)Helena Lobo da Costa (Universidade de São Paulo/SP)

Heloisa Estellita (Fundação Getúlio Vargas/SP)Luiz Eduardo Soares (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Rui Cunha Martins (Universidade de Coimbra)Ruth Maria Chittó Gauer (Pontifícia Universidade Católica/RS)

Vittorio Manes (Universidade de Salento, Itália)

Conselho do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (www.itecrs.org)

Andrei Zenkner SchmidtAlexandre Wunderlich

Daniel GerberFelipe Cardoso Moreira de Oliveira

Fabio Roberto D’AvilaGiovani Agostini SaavedraJader da Silveira Marques

Marcelo Machado BertoluciPaulo Vinícius Sporleder de Souza

Rodrigo Moraes de OliveiraSalo de Carvalho

Uma publicação do ITEC (Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais) e da SÍNTESE, uma linha de produtos jurídicos do grupo SAGE.

Revista de estudos CRiminais – ano Xvi – nº 65Periodicidade trimestral – Tiragem 2.000 exemplares

ASSINATURAS: São Paulo: (11) 2188-7507 – Demais Estados: 0800.7247900

SAC e Suporte Técnico:São Paulo e Grande São Paulo (11) 2188-7900

Demais Estados: 0800.7247900

www.sintese.com

Os conceitos emitidos em trabalhos assinados são de responsabilidade de seus autores. Os originais não serão devolvidos, embora não publicados. Os artigos são divulgados no idioma original ou traduzidos.

Os acórdãos selecionados para esta Revista correspondem, na íntegra, às cópias dos originais obtidas na Secretaria do Supremo Tribunal Federal e dos demais tribunais.

Proibida a reprodução parcial ou total, sem autorização dos editores.

E-mails para remessa de artigos: [email protected] e [email protected].

© Revista de estudos CRiminais® ISSN 1676-8698

IOB Informações Objetivas Publicações Jurídicas Ltda.R. Antonio Nagib Ibrahim, 350 – Água Branca 05036‑060 – São Paulo – SPwww.sage.com

Telefones para ContatosCobrança: São Paulo e Grande São Paulo (11) 2188.7900Demais localidades 0800.7247900

SAC e Suporte Técnico: São Paulo e Grande São Paulo (11) 2188.7900Demais localidades 0800.7247900E-mail: [email protected]

Renovação: Grande São Paulo (11) 2188.7900Demais localidades 0800.7283888

Endereço para correspondência: Prof. Dr. Fabio Roberto D’Avila – Direção da Revista de Estudos Criminais Programa de Pós‑Graduação em Ciências Criminais – PPGCCRIM Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS Av. Ipiranga, 6681 – Porto Alegre/RS CEP 90619‑900 – E-mail: [email protected]

Sumário

Doutrina EstrangEira

9 Neurociencia Social y Niveles de Organización (Raquel Bello-Morales and José María Delgado-Garcíass)

29 Quem é Presumido Inocente do Que e Por Quem? (Carl-Friedrich Stuckenberg)

53 Sobre el Gutachtenstil y la Evaluación del Derecho Mediante la Solución de Casos Prácticos

(Diego Fernando Tarapués Sandino)

Doutrina nacional

61 No Limite da Permissão – Considerações sobre Consequências Jurídicas da Ordem de Abater Aviões Sequestrados

(Paulo César Busato)

93 Da Experiência da Pena (Rafael de Oliveira Costa)

111 A Pena Criminal na Democracia: o Compromisso da Dogmática com a Racionalidade

(Ney Fayet Júnior)

121 O Fundamento Culturalista das Dez Medidas contra a Corrupção: o Caso do “Ajuste” das Nulidades

(Ricardo Jacobsen Gloeckner e Felipe Lazzari da Silveira)

151 Aproximações à Tutela Penal de Animais: Desvelando a Pergunta pela Possibilidade de os Animais Serem Titulares de Bens Jurídico-Penais

(João Alves Teixeira Neto)

165 Uma Visão Crítica Marxista da Dogmática Penal do Risco

(Michelle Gironda Cabrera)

179 O Tribunal Penal Internacional e o Caso Omar Al-Bashir (Marine Carrière de Miranda)

Sumário

Doutrina EstrangEira

9 Neurociencia Social y Niveles de Organización (Raquel Bello-Morales and José María Delgado-Garcíass)

29 Quem é Presumido Inocente do Que e Por Quem? (Carl-Friedrich Stuckenberg)

53 Sobre el Gutachtenstil y la Evaluación del Derecho Mediante la Solución de Casos Prácticos

(Diego Fernando Tarapués Sandino)

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NeurocieNcia Social y NiveleS de orgaNizacióN*

Raquel Bello-MoRales**

José MaRía DelgaDo-gaRcía***

RESUMO: A neurociência social é um campo interdisciplinar cujo objetivo consiste em investigar os mecanismos biológicos que são subjacentes às estruturas, aos processos e aos comportamentos so­ciais, bem como as influências entre os níveis social e biológico da organização. Essa disciplina, que defende a necessidade de com­preender o contexto social como um elemento essencial para a com­preensão do comportamento humano, propôs a chamada doutrina de análise multinível, que foi formulada com base em três princípios básicos: o determinismo múltiplo, o determinismo não aditivo e o determinismo recíproco. Esses princípios teóricos parecem ter sido inspirados nos princípios básicos da teoria clássica dos níveis de in­tegração, com base no conceito de emergência: o surgimento de no­vas estruturas e dinâmicas durante o processo de desenvolvimento da matéria nos sistemas complexos. No entanto, uma análise com­parativa de ambas as teorias revela suas diferenças essenciais. Este artigo tem como objetivo investigar ambas as teorias e demonstrar essas diferenças. PALAVRAS-CHAVE: Emergentismo; níveis de integração; análise integradora multinível; reducionismo; neurociência social.ABSTRACT: Social neuroscience is an interdisciplinary field which aims to investigate the biological mechanisms that underlie social structures, processes and behaviors, as well as the influences between the social and the biological levels of organization. This discipline, which has declared the need to include the social context as an essential element to understand human behavior, has proposed the so-called doctrine of multilevel analysis, which has been formulated

* Este trabajo ha sido financiado en parte con una ayuda del Ministerio Español de Economía y Competitividad (MINECO, BFU2014-56692-R) y de la Junta de Andalucía (BIO122) a J. M. D. ­G.

** Departamento de Biología Molecular, Universidad Autónoma de Madrid, España. *** División de Neurociencias, Universidad Pablo de Olavide, Sevilla, España.

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around three basic principles: multiple determinism, non­additive determinism and reciprocal determinism. These theoretical principles seem to share the basic tenets of the classical theory of integrative levels, which is based on the concept of emergence: appearance of new structures and dynamics during the process of development of matter in complex systems. However, a comparative analysis of both theories reveals their essential differences. This article aims to explore both theories and disclose those differences. KEYWORDS: emergentism, integrative levels, multilevel integrative analysis, reductionism, social neuroscience.SUMARIO: 1 Introducción; 2 Niveles de organización y emergencia; 3 Neurociencia social; 3.1 Causalidad descendente en neurociencia social; 3.2 De los modelos animales a la investigación en humanos; 3.3 La doctrina del análisis multinivel; 4 Diferencias conceptuales entre la doctrina de análisis multinivel de la NS y la teoría clásica de los niveles integrativos; 5 Conclusiones; Referencias.

1 iNtroduccióNDurante la segunda mitad del siglo XX cobró auge el debate filosófico-

-científico sobre los niveles jerárquicos de organización de la materia (Gerard y Emerson, 1945; Needham, 1945; Novikoff, 1945; Von Bertalanffy, 1950; Feibleman, 1954; Gerard, 1957; Mayr, 1982; Aronson, 1984; Needham, 1986). Este debate tenía ya una larga historia, basada en la observación de que la materia, en sus distintas formas, está estructurada en niveles jerárquicos en los que las entidades de un nivel se combinan dando lugar a nuevas entidades en el nivel superior (O’connor y Wong, 2012). Se han propuesto como categorías primarias de organización los niveles físicos, químicos, biológicos, mentales y sociológicos, y se han sugerido también numerosos subniveles – moléculas, orgánulos, células, tejidos, órganos, sistemas fisiológicos, circuitos y sistemas neuronales, facultades psicológicas, etc. − e incluso diversas mesoformas (Novikoff, 1945; Emmeche et al., 1997; Emmeche et al., 2000; Kirmayer y Gold, 2012). El desarrollo de la materia, a través de sus diferentes formas de movimiento, da lugar a nuevos niveles de complejidad, cuyas propiedades emergentes aparecen sólo cuando se combinan los elementos constitutivos de los niveles inferiores en el nivel superior (Novikoff, 1945). La profundización en conceptos como los de emergencia, no linealidad, atractores y auto­organización ha contribuido a transformar los puntos de vista mecanicista y reduccionista (Goldstein, 1999; Mazzocchi, 2008), y las investigaciones actuales sobre sistemas dinámicos no­lineales y auto­organizados ha impulsado el estudio científico de la emergencia contribuyendo a su desmitificación (Emmeche et al., 2000).

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Según el concepto de emergencia, las cualidades de los sistemas complejos no se pueden deducir directamente de las características de sus componentes individuales: el todo es mayor que la suma de sus partes, según la expresión clásica (Goldstein, 1999; Van Regenmortel, 2004; Singer, 2007; Findlay y Thagard, 2012). Sin embargo, se ha afinado aún más al indicar que no sólo el todo es mayor que la suma de sus partes, sino que, además, las propiedades de las partes no se pueden entender excepto en su contexto en el todo (Lewontin, 1993). El emergentismo ha cobijado, desde su creación, un amplio abanico de enfoques particulares y se han enmarcado dentro de su esquema fundamental puntos de vista diversos e incluso divergentes. Teilhard de Chardin, por ejemplo, incorporó en su filosofía el concepto de propiedades emergentes con un carácter teleológico, argumentando que a cada grado mayor de combinación, emerge en un nuevo orden algo que es irreductible a sus elementos aislados; su filosofía contenía además una perspectiva mística según la cual la evolución avanza hacia la conciencia (Teilhard De Chardin, 2008; Blitz, 2010).

El presente artículo resume y actualiza una publicación anterior de los mismos autores. Así pues, una presentación más detallada del tema puede encontrarse en la mencionada publicación (Bello-Morales y Delgado-García, 2015).

2 NiveleS de orgaNizacióN y emergeNciaEs indiscutible que el reduccionismo metodológico ha sido fundamental

para el avance del conocimiento, sin embargo es indispensable no olvidar sus límites. En cada nivel de organización surgen nuevas regularidades que deben ser estudiadas por sí mismas, y los nuevos fenómenos deben ser valorados en su nivel de organización, es decir, los fenómenos de gran escala tienen su propia dinámica y, por tanto, los procesos macroscópicos requieren su propio lenguaje de descripción (Gell­Mann, 2001; Kirmayer y Gold, 2012). En palabras de Anderson (1972), la capacidad de reducir todo a leyes fundamentales no implica que sea posible partir de esas leyes y reconstruir el universo. El fenómeno responsable de esta imposibilidad es precisamente la emergencia. Definir la emergencia no es una cuestión trivial y se ha generado una cantidad considerable de interpretaciones diferentes alrededor de esta cuestión desde que J. S. Mill y, posteriormente, el emergentismo británico, comenzó a tratarlo (Goldstein, 1999; O’connor y Wong, 2012). Sin embargo, está ampliamente aceptado que las propiedades emergentes no se pueden predecir basándose en el conocimiento de los niveles inferiores

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de organización y no se pueden explicar – o reducir mecanísticamente − basándose en sus propiedades subyacentes (Kim, 1999).

Emmeche (1997; 2000) considera que los niveles emergentes son inclusivos, es decir, no violan las leyes físicas y, además, permiten la existencia local de diferentes ontologías. Es más, los niveles emergentes no sólo no violan ninguna ley física, sino que, además, podrían estar obedeciendo a leyes físicas fundamentales a lo largo de los sucesivos niveles: por ejemplo, la tendencia general hacia el “desorden” es observable en cualquier nivel de organización, aunque en el desarrollo orgánico y la evolución, también tiene lugar una transición hacia estados de mayor complejidad y diferenciación (Von Bertalanffy, 1950). Ciertas características de la materia viva, como las relacionadas con las necesidades básicas de los organismos vivos, por ejemplo la supervivencia, la seguridad y la exploración o búsqueda, también pueden estar operando a lo largo de todo el desarrollo de los procesos vitales. En otras palabras, mientras que ciertas leyes físicas o biológicas son sólo aplicables a ciertos niveles de organización, otras leyes fundamentales son aplicables a las formas materiales a lo largo de todo su desarrollo.

La emergencia es, por tanto, el surgimiento de un fenómeno en un nivel superior desde un nivel inferior en un sistema organizado, y por lo tanto, es un proceso ascendente. Esta causalidad ascendente e sun proceso causal que dirige las entidades de nivel inferiores a los niveles organizativamente superiores, por lo que se puede considerar al nivel inferior como la causa y al nivel superior como el efecto (Emmeche et al., 2000). Sin embargo, los fenómenos emergentes pueden producir retroalimentación hacia los niveles inferiores, provocando cambios a través de un proceso llamado causalidad descendente (CD) (Campbel, 1974; Mayr, 1982; Emmeche et al., 2000), a través de la cual el todo puede afectar a las propiedades de las partes.

Hay que resaltar que la existencia de diferentes niveles de organización no implica necesariamente la existencia de diferentes sustancias, ya que se puede concebir una continuidad ininterrumpida de constitución material a lo largo del desarrollo de los diferentes niveles de complejidad; todos ellos son sólo parte de un solo mundo material (Kirmayer y Gold, 2012). En relación con la cuestión mente­cuerpo, la existencia de la mente tampoco implica una sustancia diferente sino que, ontológicamente, se origina a partir de la interacción cerebro, comportamiento y ambiente (Kirmayer y Gold, 2012). No obstante, afirmar que la conciencia y los estados mentales pueden reducirse a las reacciones químicas que tienen lugar en el cerebro ha sido considerado como una manifestación extrema de la visión reduccionista (Van Regenmortel, 2004). La aproximación experimental reduccionista al estudio

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del comportamiento de los seres vivos – o de su alter ego, el cerebro − puede provocar la sensación absurda de que cuanto más preciso es el detalle que se descubre, menos aceptable es utilizarlo para explicar algo complejo (Delgado­ -García, 2011). Tal vez los neurocientíficos están excesivamente centrados en el interior de la neurona en busca de las moléculas que hacen posible el aprendizaje o las interacciones sociales y, por lo tanto, en la razonable curiosidad por encontrar en el nivel inferior de integración la explicación de un determinado proceso funcional; en este caso, podríamos estar en riesgo de olvidar la búsqueda del origen de propiedades emergentes (Delgado­ -García, 2015). Zakiy Ochsner (2012) han señalado también que pueden surgir problemas cuando los investigadores confían en modelos excesivamente simplificados de fenómenos psicológicos complejos, especialmente cuando tratan de escalar o extrapolar los datos de estos modelos a conclusiones generales. Estos autores consideran que los fenómenos cognitivos complejos son difíciles, si no imposibles, de describir a través de los datos sobre sus elementos constituyentes, puesto que estos fenómenos son mayores que la suma de sus partes.

El cerebro humano, la estructura física más compleja que se conoce, se considera como un sistema complejo en el que los estados mentales surgen de la interacción entre múltiples niveles físicos y funcionales (Bassett y Gazzaniga, 2011). Pero el cerebro humano también se encuentra embebido en los niveles que lo rodean y, por lo tanto, el sistema nervioso, el cuerpo, el comportamiento y el entorno físico y social se han contemplado como sistemas dinámicos acoplados entre sí junto con otros en múltiples niveles, es decir, sistemas mutuamente embebidos (Thompson y Varela, 2001). Además, en el cerebro, los fenómenos emergentes pueden producir retroalimentación a los niveles inferiores (Bassett y Gazzaniga, 2011; Delgado-García, 2011), provocando cambios a través de la CD. Los efectos fisiológicos producidos por ciertos estados psicológicos han sido propuestos como un ejemplo de la CD (Campbell y Bickhard, 2011).

Vygotsky propuso que las funciones mentales a lo largo del desarrollo cultural humano aparecen primero en el nivel social y, más tarde, en el nivel individual. Las funciones superiores se originan, según él, a partir de las relaciones reales entre individuos humanos. La transformación de los procesos interpersonales en intrapersonales serían, por lo tanto, el resultado de una larga secuencia de acontecimientos del desarrollo; y la internalización de actividades socialmente enraizadas y desarrolladas históricamente es el rasgo distintivo de la psicología humana, la base del salto cualitativo de la conciencia animal a la humana (Vygotsky, 1978, 1986). La transición de

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las funciones mentales elementales a las superiores está − según Vygotsky − mediada por las herramientas psicológicas, que tienen una naturaleza semiótica: lenguaje, escritura, sistemas para contar, sistemas de símbolos algebraicos, etc. La descripción que hace Vygotsky del origen de las funciones mentales superiores se basa en gran medida en estas formas de mediación (Wertsch, 1985). Al utilizar el término “social”, Vygotsky se refería a procesos comunicativos “cara a cara”, diádicos o en grupos pequeños: procesos interpsicológicos. Sin embargo, él reconocía también otro nivel de fenómenos sociales: los procesos “societales” o “sociales-institucionales” − según la terminología de Wertsch −. Los procesos interpsicológicos no son reducibles a los procesos psicológicos individuales, lo cual constituiría una forma de reduccionismo psicológico y, de la misma manera, los procesos sociales no pueden reducirse a los procesos interpsicológicos, lo que Wertsch considera también otra forma de reduccionismo.

3 NeurocieNcia SocialLa neurociencia social (NS) tiene como objetivo investigar los

mecanismos biológicos –neurales, hormonales, celulares y genéticos − que subyacen a las estructuras, los procesos y los comportamientos sociales, así como las influencias entre los niveles de organización sociales y biológicos. Esta disciplina, que comenzó a emerger hace tres décadas como un nuevo campo interdisciplinar, ha experimentado desde entonces una importante expansión y crecimiento y se ha considerado útil en varios aspectos de la vida social, como la educación, la salud y la políticas públicas (Cacioppo y Decety, 2011), recibiendo una considerable atención de los medios de comunicación y el público en general (Stanley y Adolphs, 2013). Este nuevo enfoque penetró en la neurociencia cognitiva, dando lugar al enfoque de la neurociencia cognitiva social, que busca comprender estos fenómenos en términos de interacciones entre los niveles social, cognitivo y neural (Ochsner y Lieberman, 2001). A pesar de que reconoce la importancia de las influencias sociales sobre el cerebro y el comportamiento, la NS ha sido criticada por su tendencia a centrarse en los fenómenos biológicos, un hecho que ha sido considerado como una limitación importante del trabajo actual en esta disciplina (Kirmayer y Gold, 2012).

La NS ha dado lugar a abundantes trabajos científicos, muchos de ellos en el ámbito de la neuroendocrinología. Se ha establecido que ciertos neuropéptidos y hormonas estero ideas tienen un efecto sobre el comportamiento social en animales (Donaldson y Young, 2008; Insel, 2010; Bos et al., 2012; Goodson, 2013). La oxitocina y la arginina vasopresina (AVP)

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– llamados “neuropéptidos sociales” − modulan diversos comportamientos sociales, incluyendo el apego, el reconocimiento social y la agresión (Veenema y Neumann, 2008; Heinrichs et al., 2009; Ebstein et al., 2012; Goodson, 2013; Kelly y Goodson, 2014; Lieberwirth y Wang, 2014).

También la testosterona ha sido asociada al comportamiento afiliativo, la respuesta al estrés y la agresión social. Sin embargo, aunque hay algunas evidencias que sugieren un papel para la testosterona en la agresión, los resultados son controvertidos y, según otros autores, contradictorios y no concluyentes (Eisenegger et al., 2011b). Así, la administración de testosterona en mujeres provocó un aumento sustancial en el comportamiento de negociación justo, reduciendo los conflictos y aumentando la eficacia de las interacciones sociales. Sin embargo, los sujetos que creían haber recibido testosterona − independientemente de si realmente la habían recibido o no − se comportaron mucho más injustamente que quienes creían que habían sido tratados con placebo. Por lo tanto, las creencias populares acerca de los efectos de testosterona – que induce un comportamiento antisocial, egoísta o incluso agresivo − parecen generar ese comportamiento injusto (Eisenegger et al., 2010), lo que pone de relieve la importancia de los factores psicológicos en los resultados obtenidos de los estudios neuroendocrinológicos. Otros estudios anteriores también habían sugerido que la testosterona causa expectativas, en lugar de inducir un aumento real de la agresividad (Björkqvist et al., 1994). Estos resultados han sido criticados con el argumento de que la testosterona aumenta la agresividad reactiva en los hombres, pero no en las mujeres, y que el ambiente social puede moderar el efecto de esta hormona (Josephs et al., 2011). En esta controversia, Eisenegger (2011a) ha cuestionado la hipótesis de que la testosterona provoca motivación agresiva en los hombres, argumentando que no hay pruebas sólidas para un efecto de la testosterona específico de género sobre la agresividad. Por el contrario, ha sugerido que esta hormona induce un conjunto más general de comportamientos motivados, a menudo subsumido bajo el concepto de comportamiento de dominio, es decir, la motivación para lograr o mantener un estatus social alto que, en primates, parece lograrse no agresivamente (Eisenegger et al., 2011b). Es necesario tener mucha precaución al interpretar los datos de los estudios correlacionales. Por ejemplo, un estudio que utilizó los niveles de testosterona salivar en hombres y mujeres presos, demostró que los presos que habían cometido crímenes personales de sexo y violencia tenían niveles de testosterona más altos que los internos que cometieron delitos contra la propiedad − como robo y hurto − y drogas, lo que indicaba una correlación positiva entre los niveles de testosterona endógena y la exhibición de conductas agresivas, egoístas y antisociales (Dabbs et al., 1995; Dabbs y

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Hargrove, 1997). Sin embargo se ha argumentado que la causalidad en estos estudios sigue siendo confusa, puesto que son las conductas agresivas las que podrían haber elevado los niveles de testosterona, no al contrario, lo que genera dudas sobre si es la testosterona la que ha inducido el incremento en la agresividad o la agresividad la que ha inducido el aumento de la hormona (Eisenegger et al., 2011b).

Otro importante foco de interés ha sido el papel que se atribuye a la amígdala en el impulso afectivo y motivacional a responder agresivamente a una provocación social, mientras que la corteza orbito frontal está considerada como una región de autorregulación que inhibe los impulsos agresivos (Mehta et al., 2013). Recientemente, se ha demostrado en animales que la corteza prefrontal desempeña un papel restrictivo en la producción de comportamientos espontánea o recientemente adquiridos (es decir, aprendidos) (Jurado­Parras et al., 2012; Leal­Campanario et al., 2013). También, la comunicación interneuronal (es decir, sináptica) entre el tálamo, la amígdala, el hipocampo y la corteza cerebral prefrontal medial se modifica con las decisiones que un ratón ha de tomar en función de cambios (favorables o desfavorables) en su entorno físico (López-Ramos et al., 2015).

Las técnicas de administración aguda en los estudios neuroendo ­crinológicos en humanos plantean problemas metodológicos: por ejemplo, no está claro qué proporción de las hormonas llega al cerebro, o cuál es la relación exacta entre las medidas periféricas y los niveles centrales. Las incertidumbres que rodean a las técnicas de administración intranasal de oxitocina invitan a ser cautos a la hora de interpretar los datos, y algunos autores se preguntan, por ejemplo, si las hormonas intranasales administradas alcanzan el cerebro, si llegan a sus receptores, qué cantidad constituye una dosis suficiente para asegurar un efecto conductual o cómo las hormonas exógenas interactúan con otras sustancias. En este sentido, Churchland y Winkielman (2012) han afirmado que es improbable que una hormona o neurotransmisor cuyo funcionamiento sea tan general module procesos mentales complejos específicos de la cognición social. Ellos, en cambio, proponen explicaciones en términos de mecanismos más generales. Por ejemplo, los efectos sociales cognitivos de orden superior observados en seres humanos podrían ser debidos al efecto ansiolítico inducido por la oxitocina. Para estos autores, es dudoso que la oxitocina influya directamente en un proceso tan complejo como la cognición social humana.

Adentrándose en el resbaladizo terreno de la moralidad, se ha sugerido que, aparte de en el comportamiento social, las hormonas pueden modular la moralidad a través de sus efectos en el cerebro, además de otros factores

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tales como ciertos polimorfismos genéticos, que pueden predisponer a la agresión y la violencia. Según este punto de vista reduccionista, el “cerebro moral” sería una gran red funcional que incluiría estructuras corticales (corteza frontal, temporal y cingulada) y subcorticales (amígdala, hipocampo y ganglios basales) y por consiguiente, el comportamiento moral anormal podría surgir de anormalidades funcionales y estructurales del cerebro que deben ser diagnosticadas y tratadas (Fumagalli y Priori, 2012). Incluso se ha propuesto una base genética para las creencias políticas y, en general, para numerosos aspectos del comportamiento social humano. Por ejemplo, se ha publicado que la función de los genes del trasportador de serotonina SLC6A4, la monoamino oxidasa A y el receptor de la dopamina D2, podrían tener un efecto sobre las preferencias de voto (Ebstein et al., 2010).

3.1 causalidad descendente en neurociencia social

La NS tiene como objetivo estudiar no sólo los mecanismos biológicos que subyacen a las estructuras sociales y al comportamiento, sino también los efectos que ejerce el nivel social de organización sobre la fisiología humana y el comportamiento (Cacioppo et al., 2011; Eisenberger, 2012, 2013). Por ejemplo, se ha estudiado muy profundamente el efecto del aislamiento social en los seres humanos (Cacioppo et al., 2011) y el efecto del estrés sobre el cerebro y el comportamiento, que sugiere que el estrés en la vida temprana induce cambios estructurales − en particular, un aumento en el volumen de la amígdala y una disminución en ciertos sectores de la corteza prefrontal y el hipocampo − (Davidson y Mcewen, 2012). En este contexto, se ha sugerido que las experiencias de la vida social temprana podrían inducir cambios epigenéticos en el cerebro en desarrollo que podrían tener un impacto permanente (Hoffmann y Spengler, 2014). La epigenética podría ser un mecanismo a través del cual el entorno social se encarna en el nivel biológico (Champagne, 2010).

La epigenética ha sido considerada como el punto culminante en el proceso de “socialización” de los conceptos biológicos y neurobiológicos, así como la última frontera en el desarrollo de una narrativa sobre la sociabilidad del cerebro y el descubrimiento de un mecanismo de mediación entre la exposición ambiental, la expresión génica y el desarrollo neuronal, que podría confirmar muchas de las ideas de la NS desde la década de los 90 (Meloni, 2014). Un estudio emblemático demostró que cierta conducta maternal en ratas produce en la descendencia una alteración de la expresión del receptor de glucocorticoides (RG) en el hipocampo, que a su vez altera el eje hipotálamo­pituitario­adrenal (HPA) y la respuesta de estrés de estos

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animales. El comportamiento materno aumentó la expresión del RG en la descendencia al aumentar el tono serotoninérgicohipocampal acompañado por un aumento de la acetilación de histonas y la desmetilación del ADN. Lo curioso es que los estudios de adopción demostraron que las crías exhibían los comportamientos de los padres adoptivos (Weaver et al., 2004). Este estudio demuestra que el estado epigenético específico de un gen puede establecerse a través de experiencias vitales tempranas (Weaver, 2007). Con respecto a las investigaciones en humanos, un estudio post mortem examinó las diferencias epigenéticas entre un promotor del RG en el hipocampo de víctimas de suicidio con una historia de abuso infantil, y el mismo promotor en víctimas de suicidio en las que no hubo abuso infantil, así como en controles. Los resultados mostraron que el gen del RG estaba hipermetilado entre las víctimas de suicidio con historia de abuso en la infancia, pero no entre los controles ni en las víctimas de suicidio en las que no se había producido abuso infantil (Mcgowan et al., 2009). Estos resultados son consistentes con otros estudios que sugieren que el suicidio está influenciado por factores que tienen su origen durante el desarrollo. También son consistentes con la hipótesis de que los acontecimientos tempranos pueden modificar el estado epigenético de regiones genómicas cuya expresión podría contribuir a las diferencias individuales en el riesgo de ciertas psicopatologías (Mcgowan y Szyf, 2010). Las formas en que las estructuras sociales y las diferencias socio­económicas literalmente se meten debajo de la piel, y en el cerebro, influenciando la fisiología humana, siempre ha sido un tema relevante para la sociología (Meloni, 2014). En este contexto, nosotros consideramos los cambios epigenéticos, generados desde el nivel social al biológico, como un paradigma de la CD. Los procesos sociales que afectan a la biología podrían tener lugar principalmente a través de mecanismos epigenéticos.

3.2 de los modelos animales a la investigación en humanos

Algunos estudios sugieren que las vías moleculares y las redes neurales que median el comportamiento social han permanecido relativamente conservadas a lo largo de la evolución de los mamíferos (Weitekamp y Hofmann, 2014) y, tras los resultados que la NS obtuvo en animales, muchos investigadores iniciaron la búsqueda de sus análogos en humanos (Guastella y Macleod, 2012). Sin embargo, aunque es habitual buscar “modelos animales” de desórdenes humanos o asumir que los resultados en animales se pueden extrapolar directamente a nuestra especie, es necesario tener en cuenta que, aunque pueden conservarse algunos de los principios generales, los mecanismos neurales de la cognición social tienen que ser estudiados dentro

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de cada especie (Insel, 2010). Con respecto a los estudios con los grandes simios, la investigación experimental ha revelado importantes dificultades metodológicas. Un gran desafío para la neurociencia cognitiva en los estudios en primates consiste en diseñar problemas nuevos para los individuos que sean también ecológicamente válidos para la especie. Además, los resultados de la investigación experimental deben ser comparables entre las diferentes poblaciones de individuos de la misma especie. Sin embargo, los primates se enfrentan con problemas cognitivos que no se corresponden bien con las habilidades que han adquirido en sus ambientes naturales, ya que gran parte de la investigación se lleva a cabo con poblaciones cautivas en laboratorio y con simios enculturados. Por tanto, la generalización de un experimento con animales de laboratorio a sus congéneres en estado salvaje puede ser inexacta, porque los individuos cautivos en entornos diseñados por humanos podrían haber desarrollado habilidades cognitivas no extrapolables a otros contextos (Tomasello y Call, 2011). Insely Fernald (2004) han alertado contra la tendencia a utilizar ensayos conductuales simples para investigar el comportamiento complejo, destacando que tal análisis pueden conducir a una incorrecta interpretación de los resultados. Por ello, estos autores consideran que los estudios diseñados para analizar las bases neuronales del comportamiento deben utilizar situaciones sociales realistas en las que los animales interactúen como lo harían en su hábitat natural. Por lo tanto, para evitar resultados anómalos es necesario utilizar tareas etológicamente relevantes. El control del procesamiento visual sobre las señales vomeronasales o la prevalencia de las redes corticales sobre las señales hormonales del hipotálamo pone en cuestión la validez de la extrapolación de los resultados obtenidos en roedores a primates o seres humanos.

3.3 la doctrina del análisis multinivel

La NS ha declarado la necesidad de tener en cuenta el contexto social como elemento esencial para comprender el comportamiento humano y ha manifestado querer superar la postura puramente biológica de algunos puntos de vista introduciendo en su marco conceptual la doctrina del análisis multinivel. Esta doctrina del análisis multinivel se basa fundamentalmente en tres principios (Cacioppo y Berntson, 1992; Cacioppo et al., 2010). El primero es el principio del determinismo múltiple según el cual un evento en un nivel de organización puede tener múltiples antecedentes dentro de un nivel o en los distintos niveles de organización. Más generalmente, según el principio de determinismo múltiple, es poco probable alcanzar una comprensión completa del comportamiento social si limitamos el análisis

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a cualquier nivel individual de organización. El segundo principio es el determinismo no aditivo, que especifica que las propiedades del conjunto no siempre son predecibles a partir de las propiedades de las partes. El tercer principio se denomina determinismo recíproco, y especifica que pueden existir influencias mutuas entre los factores biológicos y sociales en la determinación de comportamiento.

Los tres principios en los que se basa la doctrina de análisis multinivel parecen corresponder a los principios utilizados clásicamente para describir los niveles integrativos de organización de la materia y el concepto de emergencia (Novikoff, 1945; Feibleman, 1954; Gerard, 1957; Mayr, 1982; Needham, 1986; Emmeche et al., 1997; Emmeche et al., 2000). El principio de determinismo no aditivo, que especifica que las propiedades de los conjuntos complejos no son predecibles a partir de las propiedades de las partes, corresponde al concepto de emergentismo: el comportamiento de un sistema complejo genera propiedades en el nivel superior no directamente predecibles a partir del comportamiento del nivel inferior del sistema. El principio del determinismo recíproco, según el cual pueden existir influencias mutuas entre los factores biológicos y sociales en la determinación de comportamiento, se refiere a las relaciones de causalidad inter­niveles y es compatible con los conceptos de causalidad ascendente y CD (Campbel, 1974). El principio de determinismo múltiple, según el cual un evento en un nivel de organización puede tener múltiples antecedentes dentro o a través de otros niveles, es coherente con la naturaleza de la interdependencia entre los diferentes estadios del desarrollo material. Las relaciones de interdependencia múltiple pueden tener lugar dentro (intra­niveles) o entre los niveles (inter­niveles).

4 difereNciaS coNceptualeS eNtre la doctriNa de aNáliSiS multiNivel de la NS y la teoría cláSica de loS NiveleS iNtegrativoS

Si bien es cierto que los tres principios en los que se basa la doctrina de análisis multinivel parecen corresponder a los principios de la teoría clásica de los niveles integrativos, cuando se analizan con detalle se pueden apreciar diferencias esenciales entre ambas doctrinas (Bello­Morales y Delgado­Garcia, 2015). La NS afirma que la combinación de las variables sociales y neurales puede producir fenómenos emergentes que no son predecibles únicamente desde la perspectiva de la psicología social o la neurociencia (Cacioppo et al., 2010). Sin embargo, los fenómenos emergentes no son producidos por la combinación de variables de dos niveles, sino por el incremento de complejidad en un nivel. En este sentido, la emergencia se ha definido como el surgimiento

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de estructuras, patrones y propiedades nuevos y coherentes durante el proceso de auto­organización en sistemas complejos (Goldstein, 1999). Según esta visión, la emergencia describe los cambios entre los sucesivos niveles y por tanto las propiedades emergentes no surgen de la combinación de dos niveles, sino del comportamiento colectivo de los sistemas complejos (Emmeche et al., 1997). De la misma manera, Novikoff, (1945) uno de los principales exponentes de la teoría clásica de los niveles integrativos, considera que las leyes son únicas para cada nivel de organización, y no combinaciones de las leyes de dos o más niveles. En segundo lugar, la NS sugiere que para lograr una completa comprensión del comportamiento social no podemos limitar el análisis a cualquier nivel individual de la organización, sino que debemos utilizar un análisis integrador que abarque los niveles de organización que van desde el nivel genético al social (Cacioppo et al., 2010). Sin embargo, lo que sugiere la teoría clásica de los niveles integrativos para entender el comportamiento de un nivel, es utilizar métodos de investigación y análisis correspondiente a ese nivel particular, no abarcar o “mezclar” todos los niveles de organización (Novikoff, 1945; Feibleman, 1954; Needham, 1986). Se ha afirmado también que en el comportamiento humano operan influencias tanto sociales como biológicas (Cacioppo et al., 2010). Pero, proponer que operan varios factores no explica lo que determina la conducta humana. Se podría argumentar que lo que la determina es la “suma” de esos factores, sociales y biológicos, pero esa afirmación entraría en contradicción con el principio de determinismo no aditivo, que reconoce que el conjunto no es la suma de las partes. Por el contrario, la teoría clásica de los niveles integrativos considera que el comportamiento humano no es el resultado de la mezcla o la suma de las influencias sociales y biológicas, sino un fenómeno emergente que se puede describir con sus propias leyes. Por último, el principio del determinismo recíproco establece que puede haber influencias mutuas entre factores biológicos y sociales en la determinación de comportamiento. Por lo tanto, acepta una doble influencia: ascendente, desde la biología al comportamiento social, y descendente, del nivel social a la biología. Sin embargo, se ha argumentado (Bello­Morales y Delgado­Garcia, 2015) que los dos procesos, ascendente (biología-sociedad) y descendente (sociedad- -biología), no son comparables, ya que el primero, a diferencia del segundo, es emergente, y un proceso emergente no se puede predecir, a priori, de las leyes de los niveles inferiores (Novikoff, 1945; Emmeche et al., 1997; Kim, 1999; Emmeche et al., 2000; O’connor y Wong, 2012).

Un problema importante que aparece en este tipo de debate es el problema de la terminología. La NS tiene como objetivo encontrar los mecanismos biológicos que subyacen a las estructuras sociales, desde

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díadas y familias hasta grupos y culturas (Cacioppo et al., 2010; Cacioppo y Decety, 2011). Pero abarcar todos esos niveles − desde díadas hasta culturas − bajo el mismo término de “estructuras sociales”, puede ser muy impreciso, dada la enorme distancia ontológica que separa las díadas de las culturas o de otras estructuras orgánicas humanas numerosas, una distancia que podría implicar incluso un nivel de organización distinto. De hecho, mientras unadíadaconlleva un proceso interpsicológico relacionado con su correspondiente nivel interpsicológico, una cultura u otra gran estructura organizativa humana puede corresponder a un proceso “social­institucional”, relacionado con un nivel “social­institucional” o “societal”, según la terminología de Wertsch (1985). Se ha afirmado que los datos procedentes de los estudios neuroendocrinológicos de administración aguda proporcionan una imagen prometedora de la influencia hormonal central en la vida social humana (Mccall y Singer, 2012). También se ha afirmado que entender la neurobiología y la neurogenética de la cognición social y el comportamiento puede tener importantes implicaciones para la sociedad (Donaldson y Young, 2008). Obviamente, cualquier avance del conocimiento es importante para la sociedad. Sin embargo, la gran mayoría de los estudios neuroendocrinológicos se refiere a interacciones anónimas y a procesos interpsicológicos, como procesos comunicativos “cara a cara”, diádicos o en grupos pequeños, no al nivel de fenómenos sociales o “sociales­institucionales”, que son procesos que involucran a estructuras formadas por grupos numerosos. Por ejemplo, no podemos usar los mismos paradigmas para explicar la agresividad entre dos individuos – un proceso diádico − y entre dos grupos sociales, clases o culturas – procesos “societales” −. Finalmente, consideramos que el uso vago o impreciso de los términos estructuras sociales, vida social o sociedad, sin la delimitación de su alcance exacto, puede llevar a confusión, especialmente cuando los resultados de la NS llegan al público general.

5 coNcluSioNeSLa teoría de los niveles de integración (Novikoff, 1945; Feibleman, 1954;

Aronson, 1984; Needham, 1986) describe la evolución de la materia a través de sus diferentes formas de movimiento, desde las dimensiones subatómicas al mundo social, afirmando que el incremento en complejidad es el resultado de fuerzas, diferentes en cada nivel, que sólo pueden ser correctamente descritas mediante leyes únicas para cada nivel. La emergencia se refiere, por lo tanto, al surgimiento de nuevas estructuras y propiedades durante el proceso de auto­organización en sistemas complejos. Efectivamente, no es posible comprender el origen de los niveles superiores sin comprender los fenómenos de los niveles inferiores. De esta forma, los niveles integrativos

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de organización nos permiten conocer la evolución de la materia no viva hasta la materia viva y a la forma material más compleja que se conoce, las estructuras sociales (Lobo, 2008). Sin embargo, el conocimiento de los niveles inferiores no hace posible predecir, a priori, lo que ocurrirá en un nivel superior. Cuando propuso algunas reglas básicas en relación con los niveles de organización, Feibleman (1954) expuso también que toda organización debe explicarse finalmente en su propio nivel, y que las organizaciones deben considerarse como pertenecientes, de algún modo peculiar, a su nivel más alto. Según Goldstein (1999) la emergencia implica la necesidad de ir al nivel macro y a sus dinámicas, leyes y propiedades únicas, con el fin de explicar los fenómenos más adecuadamente.

El enfoque del análisis multinivel utilizado por la NS tiene importantes discrepancias con la teoría clásica del análisis integrativo, aunque aparentemente tengan argumentos similares. En primer lugar, la NS afirma que la combinación de las variables sociales y neurales puede producir fenómenos emergentes no predecibles sólo desde la psicología social o desde la neurociencia (Cacioppo et al., 2010). Sin embargo, según la teoría clásica, los fenómenos emergentes no son producidos por la combinación de variables de dos niveles, sino por el incremento de complejidad en un nivel. Además, la NS sugiere que para lograr una comprensión completa de las estructuras sociales debemos utilizar un análisis integrativo que abarque los niveles de organización que van desde el nivel genético al social (Cacioppo et al., 2010). Probablemente, el concepto “estructura social” debería ser más exactamente delimitado. Además, los teóricos clásicos del análisis integrativo mantenían que las organizaciones deben ser explicadas en su propio nivel, es decir, su nivel más alto de organización (Feibleman, 1954). Según este punto de vista, el comportamiento y las estructuras sociales pueden considerarse no como el resultado de la mezcla o la suma de social y lo biológico, sino como fenómenos emergentes que se pueden describir con sus propias leyes. La NS establece que puede haber influencias mutuas entre factores biológicos y sociales en la determinación de comportamiento. Por lo tanto, acepta una doble influencia, hacia arriba (desde la biología al nivel social) y hacia abajo (del nivel social a la biología). Sin embargo, esas dos influencias no están situadas en el mismo nivel explicativo ni causal, porque los dos procesos no son equivalentes: los procesos que transcurren desde la biología al nivel social son emergentes, mientras que los que se desarrollan desde el nivel social a la biología (que se caracterizan por su CD) no lo son. Por último, la NS considera que los datos de estudios neuroendocrinológicas proporcionan una explicación adecuada de la influencia hormonal central en la vida social humana. Sin embargo, la extrapolación de estudios en animales podría ser incorrecta si

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se usan ensayos comportamentales simples para estudiar comportamientos complejos. Además, la gran mayoría de los estudios neuroendocrinológicos en humanos implica procesos interpsicológicos, procesos comunicativos “cara a cara”, diádicos o en grupos pequeños y, por el contrario, los fenómenos sociales o “sociales­institucionales” implican grandes grupos sociales cuya estructura podría suponer un nivel de organización diferente. Aunque los estudios hormonales carecieran de problemas metodológicos, sólo estarían explicando ese nivel de organización. Si consideramos que los procesos sociales tienen sus propias dinámicas y leyes, establecer una relación causal directa entre esos procesos y la cantidad de un determinado factor biológico en los individuos puede llevarnos a una posición simple y errónea.

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Quem É preSumido iNoceNte do Que e por Quem?*

Who iS preSumed iNNoceNt of What by Whom?caRl-FRieDRich stuckenBeRg**

RESUMO: O presente artigo analisa os componentes da presunção de inocência e tenta esclarecer algumas das dificuldades concei tuais e lógicas relacionadas à noção de “inocência” e à estrutura das pre­sunções jurídicas. Afirma-se que todas as interpretações literais con­cebíveis dessa máxima fazem pouco ou nenhum sentido, e que a forma das presunções é, como tal, desprovida de conteúdo original: presunções nada explicam ou justificam, elas são normas auxiliares, as quais se referem às consequências jurídicas enunciadas em outras normas. Portanto, a presunção de inocência pode ser utilizada para expressar qualquer tipo de requisito e padrão para o processo penal e o tratamento de cidadãos suspeitos somente de maneira tautológica, embora retoricamente forçada. Esse uso instrumental da presunção de inocência é, teoricamente, desprovido de méritos, mas pode ser benéfico na prática enquanto não existir um sistema desenvolvido de direitos fundamentais e proteção das liberdades individuais em um determinado ordenamento jurídico. Por fim, uma compreensão funcional da presunção de inocência é proposta, a qual fornece um original, embora limitado, campo de aplicação como uma garantia do procedimento em si, em especial da incerteza quanto ao resulta­do da sua decisão.PALAVRAS­CHAVE: Presunção de inocência; ônus da prova; pre­sunções jurídicas; benefício da dúvida; in dubio pro reo; devido pro­cesso legal; proporcionalidade; procedimento; incerteza.ABSTRACT: The article analyses the components of the presump­tion of innocence and tries to clarify some of the conceptual and logical difficulties surrounding the notion of “innocence” and the

* Publicação original: Criminal Law and Philosophy, v. 8, n. 2, p. 301­316, 2014. Tradução de Lucas Minorelli.

** Professor de Direito Penal Alemão e Internacional, Direito Processual Penal, Direito Penal Comparado e História do Direito Penal da Universidade de Bonn, Alemanha.

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structure of legal presumptions. It is argued that all conceivable lite­ral interpretations of the maxim make little or no sense, and that the presumptions form is, as such, devoid of original content: presump­tions do not explain nor justify anything but are auxiliary norms which refer to the legal consequences spelled out in other norms. Therefore, the presumption of innocence can be used to express any kind of requirement and standard for the criminal process and the treatment of suspect citizens only in a tautological, albeit rhetori­cally forceful, way. This instrumental use of the presumption of innocence is theoretically without merit but can be practically be­neficial as long as there is no developed system of fundamental ri­ghts and protections of individual freedoms in a given legal order. Finally, a functional understanding of the presumption of innocence is proposed which gives it an original, though limited field of ap­plication as a guarantee of the procedure itself, in particular of the openness of the outcome.KEYWORDS: Presumption of innocence; burden of proof; legal pre­sumptions; benefit of doubt; in dubio pro reo; due process; proportio­nality; procedure; openness.

iNtroduÇÃoBons homens em todo lugar enaltecem a presunção de inocência.1

A presunção de inocência goza de reconhecimento mundial como uma garantia processual fundamental e adquiriu o status de direito humano, estan­do consagrada em instrumentos de direitos humanos internacionais2 e regio­nais3 e fazendo parte da legislação constitucional, expressamente4 ou não5, de muitas nações. Atualmente, parece que não existe mais nenhum ordenamen­to jurídico que rejeite abertamente a máxima.6 Essa consagração universal da

1 Fletcher, Yale Law Journal 77, p. 880.2 Art. 11, § 1º, da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10.12.1948; art. 14, § 2º, do

Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 16.12.1966.3 Art. 6º, § 2º, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos de 04.11.1950; art. 8º, § 2º, da

Convenção Americana de Direitos Humanos de 22.11.1969; art. 7º, 1, b, da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos de 27.06.1981.

4 Por exemplo, Itália (art. 27, da Constituição italiana) e Canadá (seção 11(d) da Carta Canadense dos Direitos e das Liberdades).

5 Por exemplo, na legislação constitucional dos Estados Unidos da América e da Alemanha.6 A República Popular da China rejeitou anteriormente a presunção de inocência, tratando­a

como uma remanescência contraditória do pensamento jurídico burguês (por exemplo, Yu Shutong, Revue internationale de droit pénal 63, p. 322­323; Gelatt, Journal of Criminal Law & Criminology 73, p. 259 e seguintes. A partir de uma reforma legislativa ocorrida em 2000,

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presunção de inocência é duramente contrastada com a insegurança funda­mental acerca do seu significado7. Enquanto alguns Estados limitam a sua apli­cação à fase de julgamento (por exemplo, quando se atribui o ônus da prova ao Estado)8, outros a estendem às fases pré­processual e de aplicação da pena (as quais possuem a prisão processual ou o uso de condutas não processadas ou absolvidas para fins de aplicação da pena)9; vários Estados restringem a sua aplicação ao processo penal enquanto que outros a enxergam como uma máxima geral aplicável também nos contextos de direito privado, direito de família, direito trabalhista e direito administrativo10. Enquanto a presunção de inocência assemelha-se a um enfeite jurídico desprovido de relevância prá­tica em alguns Estados, ela é com frequência invocada em outros e até mesmo por vezes empregada como uma panaceia processual. Em vários ordenamen­tos jurídicos, há amplos debates doutrinários sobre a presunção de inocência, os quais são frequentemente caracterizados por um montante atípico de con­trovérsia. Nenhum outro direito fundamental ou humano produziu um com­parável número de interpretações divergentes e inclusive extremas, varian­do desde “absurdo lógico”11, “platitude”, “peça de retórica extravagante”12

o país passou a adotar algumas garantias nos moldes ocidentais como a presunção de inocência. Conferir Wei Luo, The Amended Criminal Procedure Law and the Criminal Court Rules of the People’s Republic of China.

7 Ashworth, International Journal of Evidence & Proof 10, p. 243; Schwikkard, South African Journal of Criminal Justice 11, p. 396; conferir, também, Stuckenberg, Untersuchungen zur Unschuldsvermutung, p. 3­5 e 11437, com um estudo comparativo envolvendo mais de vinte ordenamentos jurídicos.

8 Por exemplo, no direito federal norte­americano desde Bell v. Wolfish, 441 U.S. 520, 532-533; 99 S.Ct. 1861, 1870-1871; 60 L.Ed.2d 447 (1979). Para uma recente análise crítica, conferir Baradaran, Ohio State Law Journal 72, p. 724 e seguintes.

9 Os Estados­membros da Convenção Europeia de Direitos Humanos, por exemplo.10 Por exemplo, na Espanha, conferir Vázquez Sotelo, Presunción de inocencia del imputado

e íntima convicción del tribunal, p. 294­300 e 352­353; Stuckenberg, Untersuchungen zur Unschuldsvermutung, p. 231­233.

11 Manzini, Trattato di diritto processuale penale I, p. 53­54.12 Fletcher, University of California at Los Angeles Law Review 15, p. 1220. Curiosamente, a

presunção de inocência parece ter sido consideravelmente popular em processos judiciais alemães do século XVII porque Ludovici observou em sua dissertação (Dissertatio Inauguralis Juridica de Praesumptione Bonitatis, § 5), orientada por Thomasius, que ela seria inevitavelmente invocada em toda e qualquer defesa e que o defensor não ficaria constrangido por invocá­la até mesmo se o diabo fosse acusado perante Deus (“[...] vix defensionem etiam nequissimi nebulonis suscipi videas, ad quam eo felicius expediendam non ad partes illud trahatur. Immo, si casus esset dabilis, ad quem haud raro provocare

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até máxima de direito natural13 e fundamento indispensável de um processo penal justo14. Obviamente, o consenso generalizado acerca da conveniência de uma presunção de inocência refere­se ao nome em vez do conteúdo do princípio, visto que tal conteúdo está longe de ser claro e universalmente aceito. As controvérsias supracitadas sugerem que provavelmente não há uma ou a presunção de inocência, ou seja, não existe uma norma jurídica ou um princípio jurídico, mas possivelmente várias normas ou princípios que podem ser reunidos sob o rótulo de “presunção de inocência”.

Em função da confusão e dos conflitos em torno da presunção de ino­cência, talvez seja útil iniciar com um exame pormenorizado do enunciado, o qual aparenta ser o único elemento incontroverso da nossa máxima. O pre­sente trabalho analisa os componentes da presunção de inocência e busca esclarecer algumas das recorrentes dificuldades conceituais e lógicas particu­larmente associadas com a noção de “inocência” e a estrutura das presunções jurídicas. Essa análise não se destina a alcançar um resultado conclusivo sobre o que uma presunção de inocência “realmente é” ou “diz”, mas a redução da já mencionada confusão. Ela espera demonstrar se uma compreensão literal é possível e aconselhável ou se, pelo contrário, a presunção de inocência deve ser considerada como a formulação imperfeita de uma máxima abstrata, a qual não deveria ou não deve ser interpretada literalmente. Ela pode também revelar quais pressupostos adicionais são necessários para uma interpretação sensata da presunção de inocência.

oS compoNeNteS da preSuNÇÃo de iNocêNcia

inocência

Ao contrário da common law da antiga Europa continental (ius com-mune), que possuía presunções gerais de bondade e de comportamento observante da lei (quilibet praesumitur bonus, et legalis, et innocens...) e fazia distinções entre inocências religiosa, moral e jurídica15, a noção de “inocên­

solent Criminalistae, ut scilicet Diabolus criminaliter accusaretur, ipsique tunc Defensio concederetur (uti juxta Dd. fieri deberet,) non defuturos credo, qui & hoc ferculum Judici apponere haud erubescant”.).

13 Lega/Bartoccetti, Commentarius in iudicia ecclesiastica, p. 818; Motzenbäcker, Die Rechtsvermutung im kanonischen Recht, p. 288 e 323.

14 Coffin v. United States, 156 U.S. 432, 453; 15 S.Ct. 394; 39 L.Ed. 481 (1895).15 Para maiores referências, consultar Stuckenberg, Untersuchungen zur Unschuldsvermutung,

p. 11­31 e 438­441.

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cia” é nos dias de hoje utilizada quase que exclusivamente em um contexto jurídico-penal. Enquanto que em algumas jurisdições “inocência” significa a ausência de “culpa”, compreendida essa como a totalidade de requisitos materiais para a punibilidade (presença dos elementos do delito, ausência de causas de justificação e exculpação), é controverso em outras se a inocência deve ser restrita à ausência de conduta ilícita, ou seja, os elementos (positi­vos ou incriminadores) do delito. Analiticamente, é preferível equiparar a inocência à ausência de – ao menos uma das – condições necessárias para a punibilidade, se elas são definidas positiva (por exemplo, a realização de uma conduta criminalizada) ou negativamente (por exemplo, a falta de uma justificação ou exculpação). Essa noção básica de “inocência” necessita de uma maior elucidação, pois pode ser utilizada de quatro formas diferentes:

1. Como uma afirmação verdadeira sobre a realidade (no sentido in­gênuo): “inocência” significa, então, que uma pessoa não é punível porque ela ou não incidiu na prática da conduta penalmente proi­bida ou estava justificada para fazê-la ou, ainda, por algum outro motivo não foi declarada responsável.

2. Como a negação de uma condenação por uma infração penal, isto é, a presença de todas as condições materiais e processuais para a exe­cução de punibilidade, incluída aqui a conclusão de procedimentos penais, não foi cumprida. Nesse sentido, uma pessoa é inocente de um crime se ela (ainda) não foi condenada por ele.

3. Como o resultado da apuração de um fato em um determinado pro­cedimento penal, o qual pode possuir dois sentidos:

a) “inocência” pode significar “inocência provada” (innocentia); o julgador está convencido de que o acusado não é punível porque ele não praticou o fato, estava amparado por uma causa de justi­ficação etc.;

b) “inocência” pode também significar que o padrão de prova exi­gido para o estabelecimento da culpa (para além de qualquer dú­vida razoável, conviction intime, certezza morale) não foi alcançado (non repertus culpabilis, “não provada”).

Nem todos esses sentidos são sinônimos: culpa ou inocência deter­minadas em juízo não precisam corresponder, necessariamente, à culpa ou inocência reais, embora um julgamento normalmente busque alcançar isso. Por razões de clareza, deve­se fazer distinções entre estas diferentes noções

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de inocência, embora frequentemente sejam elas mescladas16. De agora em diante, uma afirmação acerca da real existência ou ausência da totalidade das condições materiais de punibilidade será denominada de “culpa/inocência real” e a existência ou ausência da totalidade das condições para a imposição (ou execução) da pena de “culpa/inocência formal”.

Culpa e inocência no sentido real (1) são contraditórias, caracterizadas pela exclusividade e reversibilidade: a negação de uma necessariamente oca­siona a afirmação da outra e vice-versa, tertium non datur. Isso também é ver­dadeiro para culpa e inocência no sentido formal (2). Inocência e culpa no sentido (3) comportam­se de maneira diferente porque elas são objetos de uma afirmação ou proposição, por exemplo, “o tribunal considera que (D é culpado)” ou “está provado que (D é culpado)”, de modo que existe mais do que duas possibilidades, porque a expressão pode ser negada interna e exter­namente. Por isso, afirmações sobre, por exemplo, prova de culpa ou inocên­cia são contrárias, não podem ser afirmadas simultaneamente, mas podem ser simultaneamente negadas, e a negação de uma não implica a afirmação de outra. Por exemplo, “não prova de (culpa)” não implica “prova de (inocên­cia)” em função da possibilidade adicional de que nada pode restar provado

16 Beccaria utilizou três significados de “inocência” e do seu oposto, “culpa”, em um parágrafo do capítulo XVI do seu famoso tratado (Dei delitti e delle pene): “Un uomo non può chiamarsi reo prima della sentenza del giudice, nè la società può togliersi la pubblica protezione se non quando sia deciso ch’egli abbia violati i patti, co’quali gli fu accordata.” [Um homem não pode ser dito réu antes da sentença do juiz [...] = sentido (2)] “Quale è dunque quel diritto, se non quello della forza, che dia la podestà ad un giudice di dare una pena ad un cittadino, mentre si dubita se sia reo o innocente?” [Qual é, portanto, aquele direito, senão o da força, que concede a um juiz o poder de aplicar uma pena a um cidadão enquanto se duvida se ele é culpado ou está inocente? [...] = sentido (1)] “se {il delitto} è incerto non devesi tormentare un innocente, perchè tale è secondo le leggi un uomo, i di cui delitti non sono provati.” [se é incerto, então não deve torturar­se um inocente, porque é inocente, segundo as leis, o homem cujos delitos não estão provados [...] = sentido (3)], “S’egli è vero che sia maggiore il numero degli uomini che o per timore, o per virtù rispettano le leggi che di quelli che le infrangono, il rischio di tormentare un innocente deve valutarsi tanto di più, quanto è maggiore la probabilità che un uomo a dati uguali le abbia piuttosto rispettate che disprezzate.” [Se é verdade que é maior o número dos homens que, ou por temor, ou por virtude, respeitam as leis, do que é o número daqueles que as infringem, o risco de torturar um inocente é tanto maior quanto maior for a probabilidade de que um homem, em condições iguais, antes tenha respeitado do que desprezado as leis [...] = sentido (1)]. Nota do tradutor: utilizamos aqui a versão traduzida por José de Faria Costa (Dos delitos e das penas. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. p. 92­94).

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(non liquet)17. Embora logicamente distintas, prova de inocência (3a) e prova malsucedida de culpa (3b) podem ser tratadas da mesma forma em um ní­vel normativo18 se o legislador assim o desejar. A incorporação da inocência provada e da culpa insuficientemente provada é com frequência considerada uma consequência da presunção de inocência ou do princípio in dubio pro reo (ou seja, benefício da dúvida) desde o final do século XVIII.

presunções

Pelo menos desde o tratado seminal de Alciatus, datado de 1538, a natureza das presunções jurídicas é frequentemente descrita como obscura e confusa19. Uma origem da confusão é o conceito de presunção na lingua­gem ordinária, no sentido de considerar um fato ou um evento possível ou provável em decorrência de uma determinada relação causal ou conexão estatística entre um determinado fato básico e o fato ou evento presumido. Inferências indutivas desse tipo são geralmente chamadas de praesumtiones hominis ou “inferências permissivas” quando elas ocorrem no curso da ava­liação da prova por parte do julgador no processo; embora juridicamente re­levantes, elas não são normas jurídicas, mas suposições sobre o mundo real. As duas categorias clássicas de presunções jurídicas são praesumtiones iuris e praesumtiones iuris ac de iure. A última categoria pode ser aqui omitida, pois essas presunções irrefutáveis ou ficções jurídicas nada mais são do que mo­dificações de normas materiais, enquanto que a presunção de inocência pa­

17 Conferir Stuckenberg, Untersuchungen zur Unschuldsvermutung, p. 442­447.18 Por exemplo, Wolff, Ius naturae methodo scientifica pertractatum, § 673: “Nemo puniri potest, nisi

delicto aut crimine sufficienter probato, seu nisi ejusdem convictus. Etenim quamdiu sufficienter probatum non est, delictum aut crimen ab eo, qui accusatur, vel suspectus habetur, fuisse perpetratum, pro reo haberi nequit, consequenter pro innocente habendus [...]”.

19 Alciatus, Tractatus de praesumptionibus, pars I § 1, col. 575: “Materia quam aggressuri sumus valde vtilis est, & quotidiana in practica; sed confusa, inextricabilis fere”; conferir, também, McCormick, McCormick On Evidence, § 342, p. 449: “One ventures the assertion that ‘presumption’ is the slipperiest member of the family of legal terms, except its first cousin, ‘burden of proof’”; Thayer, A preliminary treatise on evidence at the common law, p. 352: “Some [presumptions] are maxims, others mere inferences of reason, others rules of pleading, others are variously applied; as the presumption of innocence figures now as a great doctrine of criminal procedure, and now as an ordinary principle in legal reasoning, or a mere inference of common experience, or a rule of the law of evidence. Among things so incongruous as these and so beset with ambiguity there is abundant opportunity for him to stumble and fall who does not pick his way and walk with caution”; conferir, também, Stuckenberg, Untersuchungen zur Unschuldsvermutung, p. 447­494.

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rece pertencer à família de presunções refutáveis. Seguirei aqui a análise de Jerzy Wróblewski20 em função de sua clareza. Ele reconstrói as presunções jurídicas como uma classe de normas jurídicas (normes juridiques) que contém um elemento de dever (comando, proibição, permissão) e destinam­se a in­fluenciar o comportamento de alguém. Portanto, as presunções jurídicas não representam afirmações factuais sobre o mundo, embora possam ordenar al­guém a fazer tal afirmação factual.

As presunções jurídicas compartilham da estrutura condicional de outras normas. Seus componentes geralmente compreendem uma premis­sa positiva (base factual) e uma negativa (contraevidência) e a consequência jurídica (tratar o objeto presumido como existente/determinado/provado, vide infra). A base factual pode estar faltando ou, mais precisamente, não ser enunciada porque ela está sempre ou na maioria das vezes presente – temos, então, o que Wróblewski denomina de “presunção formal”, também conhe­cida como “verdade provisória” ou presunção/suposição incondicional, tal como a presunção de inocência. A premissa negativa está sempre presente e especifica o requisito de contraevidência para refutar a presunção, a qual pode ser expressada como uma simples condição (ne contrarium probetur, a menos que provado culpado) ou como uma sequência temporal (donec con-trarium probetur, até provado culpado).

Como normas jurídicas, as presunções jurídicas não dependem da existência de relações causais empiricamente verificáveis ou probabilísticas entre o fato básico e o fato presumido. Tais relações podem, entretanto, fazer parte da motivação legislativa para criar uma presunção. Consequentemente, Wróblewski distingue presunções “paraempíricas”, as quais são baseadas em inferências factuais (embora a sua força jurídica persista independentemente de sua validade empírica) e geralmente servem a fins probatórios; presun­ções “não empíricas”, que servem a diferentes propósitos (como a atribuição do ônus da prova), mas podem ser refutadas empiricamente; e presunções “antiempíricas”, que não estão de acordo ou até mesmo contradizem o co­nhecimento empírico (como os “testes de bruxaria” do passado). A presun­ção de inocência é obviamente uma presunção não empírica.

É uma particularidade das presunções que a sua consequência jurídica não é enunciada de forma direta e explícita; em vez disso, uma presunção constitui (ou nega) a premissa (menor) de outra norma e, desse modo, aciona indiretamente a consequência daquela norma. Por isso, as presunções são

20 Wróblewski, Les présomptions et les fictions en droit, p. 43-71.

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normas referenciais ou renvoi que exercem apenas funções auxiliares. Vistas isoladamente, as presunções são normas incompletas, meras partículas de normas sem a usual consequência jurídica, ou seja, elas não ordenam o que deve ser feito. Embora seja sedutor assumir as presunções como afirmações sobre a realidade e reificar o objeto presumido (fato, evento, estado de coisas), isto é errôneo porque desconsidera o caráter normativo delas. O âmbito de aplicação de uma presunção, isto é, as normas a que ela se refere, é determi­nado de forma estritamente normativa. Como qualquer outra norma jurídica, uma presunção não tem um campo de aplicação “natural”: ela pode servir a um limitado propósito e é aplicável somente em situações muito específicas ou ela pode ter um amplo, quase universal, âmbito de aplicação.

Historicamente, as presunções têm sido tipicamente empregadas como normas auxiliares no processo judicial de apuração de um fato, como evi­denciado pela formulação padrão da premissa negativa: “prova do contrá­rio”. O uso de presunções fora do processo decerto é possível, mas pressupõe uma decisão normativa correspondente. Não decorre nem do conceito nem da estrutura das presunções jurídicas em quais contextos elas se aplicam, se somente ao processo ou, pelo contrário, em qualquer tempo e lugar. Em decorrência disso, nem a opinião da Supreme Court de que a presunção de inocência atua somente durante o processo21, nem o entendimento contrário, da Corte Europeia de Direitos Humanos, de que a presunção de inocência conduz os procedimentos penais na sua totalidade, desde o início da acusa­ção em diante22, podem ser deduzidas da “natureza” das presunções; mas necessitam do suporte de argumentos adicionais.

É válido notar aqui que várias normas jurídicas podem ser reformu­ladas como presunções sem modificar o conteúdo. Qualquer norma que prescreva positivamente uma condição necessária (bicondicional) para uma consequência jurídica específica pode ser transformada em uma presunção negativamente fraseada do oposto daquela condição.

Por exemplo:

Se e somente se um crime está provado para além de qualquer dúvida razoável, então o seu autor deve ser punido.

Esta norma pode ser dividida em duas partes:

21 Bell v. Wolfish, (vide nota de rodapé 8, do presente artigo).22 Minelli v. Switzerland, European Court of Human Rights, series A 62 (1983), parágrafo 30.

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Se e somente se um crime está provado para além de qualquer dúvida razoável, então o seu autor é “culpado” daquele crime.Se e somente se alguém é “culpado” de um crime, então ele deve ser punido por este.

A recíproca dessa norma é:

Se um crime não está provado para além de qualquer dúvida razoável, então o seu autor não deve ser punido.

Isso pode ser expressado em duas etapas:

Se um crime não está provado para além de qualquer dúvida razoável, então o seu autor é “não culpado” daquele crime.

Se alguém não é culpado de um crime, então ele não deve ser punido por este.

A primeira parte pode ser reformulada como uma presunção (verdade provisória) do seguinte modo:

A menos que um crime seja provado para além de qualquer dúvida razoável, ninguém é (presumido) culpado de um crime.

Isso pode ser convertido e abreviado em:

Todos são presumidos inocentes até prova em contrário.

Presunções formais desse tipo são logicamente idênticas com a norma positivamente fraseada. Em particular, o requisito probatório ou a atribuição do ônus da prova não podem ser deduzidos de uma presunção, a qual nada mais é do que outra expressão daquele requisito. Uma presunção não é a causa, nem a razão e tampouco a explicação de um requisito probatório ou de uma regra de onus probandi, mas um mero reforço, uma tautologia daquela regra.

De um modo mais geral, qualquer exigência de justificação formaliza­da que apresente uma condição necessária para uma mudança de status pode ser reformulada como uma presunção para a manutenção do status a menos/até que as razões para a mudança tenham sido dadas. Como mencionado an­teriormente, uma origem comum de erro e confusão reside na inclinação para interpretar todas as presunções como inferências paraempíricas, reificando o objeto presumido (o status quo) e o descrevendo como um fato “real”, embo­ra, em muitos casos, a interpretação correta seria que a justificação exigida ainda não foi apresentada. Isso torna­se evidente em situações de verdades provisórias menos lisonjeiras do que a presunção de inocência. Por exemplo, se é exigido dos cidadãos passar em um exame a fim de provar que eles são

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capazes de dirigir com segurança um automóvel, isso poderia ser expressado na presunção de que todos são incapazes de dirigir com segurança até obter a aprovação no exame. Se os candidatos a posições de serviço público são obrigados a passar por um exame médico, uma presunção jurídica de que todos os candidatos estão doentes até que se provem saudáveis seria funcio­nalmente equivalente, mas evidentemente equivocada.

a presunção de inocência como presunção jurídica

Se a presunção de inocência é tradada como uma presunção jurídica, isso não diz muito acerca do seu preciso conteúdo. Tudo depende de como os componentes da presunção são definidos. De acordo com Wróblewski23, isso é uma questão de determinação normativa. Não há uma maneira de deduzir uma compreensão “correta” da presunção de inocência tão somente a partir da estrutura da presunção.

base factual (“Quem?”)

As versões clássicas da presunção de inocência omitem uma base fac­tual para a presunção. Alguns autores propuseram embasar a presunção de inocência no estado de suspeita, porque, caso contrário, a presunção não seria necessária. Wróblewski pensa que nenhuma base factual tem de ser provada, de modo que a presunção seja aplicável em todas as situações. Se a presunção de inocência supostamente existe para proteger o indivíduo contra o poder estatal, parece mais plausível baseá-la no fato mais geral – um indivíduo hu­mano. Caso contrário, se apenas pessoas suspeitas foram presumidas inocen­tes, pessoas que não são suspeitas, porém processadas por razões puramente arbitrárias, não se beneficiariam da presunção. Na maioria das situações prá­ticas em que a presunção de inocência é debatida; entretanto, no mínimo um indivíduo é suspeito de ter violado a lei.

presunção de inocência “real”

É possível construir uma presunção que contenha a “inocência real” como objeto presumido. Essa presunção remeteria a normas que conectam a premissa “inocência real” com alguma consequência jurídica. Como visto antes, uma norma que determina tratar a prova insuficiente de culpa como

23 Wróblewski, Les présomptions et les fictions en droit, p. 43-71.

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prova de inocência pode ser formulada como uma presunção de “inocência real”, a qual equivale à máxima in dubio pro reo.

Quais meios de prova são permitidos e qual o nível de certeza é exigido para refutar essa presunção obviamente não partem da presunção em si, mas dependem de considerações normativas em apartado. Até mesmo as presun­ções especiais de culpa (por exemplo, a infame presunção de que uma pessoa projeta as consequências naturais dos seus atos)24 não são logicamente excluí­das por uma presunção de inocência geral “real”25. Uma proibição abrangen­te de cláusulas de inversão de ônus, enquanto razoável26, infelizmente não decorre de uma presunção de inocência geral27.

Fora do contexto do processo, uma presunção de inocência “real” não faz sentido. Tratar uma pessoa como realmente inocente implica que ela não deve ser processada porque a afirmação de inocência real exclui não apenas a afirmação da culpa, mas também o pressuposto de probabilidade de culpa, ou seja, a suspeita necessária para dar início a uma investigação criminal. Logo, uma presunção de inocência real se tornaria irrefutável e representa um absurdo jurídico28, como sustentado por alguns autores. Mas, como vis­to anteriormente, não é uma implicação necessária da estrutura normativa

24 D.P.P. v. Smith, [1961] A.C. 291, 331 (H.L.), revogado pela seção 8 do Criminal Justice Act 1967.

25 Assim como outras normas jurídicas, as presunções são incompatíveis somente se elas atribuem consequências incompatíveis para a mesma premissa. Por exemplo, uma incondicional (formal) presunção geral de inocência e uma incondicional presunção geral de culpa são contrárias e não podem ambas serem verdadeiras ao mesmo tempo. Era geralmente aceito no ius commune europeu, que tratava as presunções como inferências obrigatórias que “generales praesumtiones iuris specialoribus cedant; [...] praesumtiones generales: [...] quod quilibet praesumatur bonus”, Heils, Iudex et Defensor in Processu Inquisitionis..., caput IV, tit. XLV, p. 181; Farinacius, Praxis et Theoricae criminalis libri duo, lib. I., tit. V. de Indiciis & Tortura, quaestio XLVII, n. 285, p. 743; Menochius, De Praesumptionibus..., liber V, praesumptio I, no. 33, p. 646.

26 Stuckenberg, Untersuchungen zur Unschuldsvermutung, p. 521­529; conferir também Stumer, The Presumption of innocence, p. 152­188; Hamer, Oxford Journal of Legal Studies 31, p. 424­434.

27 Uma proibição geral de presunções incriminadoras poderia ser (estranhamente) expressada por uma lista de respectivas presunções específicas de inocência que negam cada elemento material do delito, por exemplo, que ninguém praticou um actus reus/possui mens rea/agiu ilicitamente/agiu de forma responsável etc. até prova em contrário.

28 Manzini, Trattato di diritto processuale penale I, p. 53­54 e 226: “Se si presume l’innocenza dell’imputato, chiede il buon senso, perchè dunque si procede contro di lui?”

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das presunções estender o âmbito de aplicação destas além do processo para qualquer situação jurídica e tampouco isto é necessário para alcançar os ob­jetivos regulamentadores geralmente vinculados a uma presunção de ino­cência.

presunção de inocência “formal”

Uma presunção de inocência “formal” afirma que, antes que a culpa tenha sido estabelecida no procedimento prescrito, todos devem ser tradados como alguém cuja culpa não tenha sido estabelecida no procedimento pres­crito. Isso é apenas a expressão tautológica da exigência de que condições específicas têm de ser cumpridas a fim de (estabelecer a culpa e) impor uma pena. A premissa negativa de uma presunção de inocência formal, que es­pecifica os requisitos para a sua refutação, frequentemente abarca conteúdo normativo adicional, como outras garantias processuais nucleares, vide, por exemplo, o artigo 11(d) da Carta Canadense dos Direitos e das Liberdades: “Any person charged with a criminal offense has the right [...] to be presumed in-nocent until proven guilty according to law in a fair and public hearing by an independent and impartial tribunal”.

Teoricamente, a premissa negativa pode absorver a totalidade das con­dições materiais e processuais para a imposição da pena, de modo que cada pequeno erro processual constitui uma violação da presunção de inocência, a qual serviria, então, como a criticada “panaceia”29 ou uma ampla garantia da legalidade do processo penal. Uma vez que a tal superpresunção de inocên­cia nada mais é do que um mero reforço de requisitos já existentes, ela é tão desnecessária quanto confusa e, por isso, deveria ser evitada.

O efeito jurídico de uma presunção de inocência “formal” é determina­do pelas normas a que ela se refere, mas tais normas, fundadas na “inocência formal”, são raras. Portanto, parece que o efeito de uma presunção de ino­cência “formal” limita­se à proibição de uma pena regular que não tenha sido autorizada por um procedimento penal regular. No entanto, não é esse o tipo de ilícito que geralmente se supõe que seja remediado por uma presunção de inocência. Em vez disso, a questão é determinar o status jurídico de uma pessoa que ainda não tenha sido considerada culpada, o que Carbonnier de­

29 De la Oliva Santos, em prefácio ao trabalho de Vega Torres, (Presunción de inocencia y prueba en el proceso penal, p. 1-2): “Con solo un poco de caricatura, dirıase que se trata de una regla aurea, que como el balsamo de Fierabras para las mas diversas enfermedades, sirve para regularlo casi todo en el proceso penal [...]”.

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nominou de statut neutre de l’inculpé30. Em sentido estrito, uma presunção de inocência não tem muito a dizer aqui – exceto que, por exemplo, as restrições à liberdade de um suspeito não podem ser fundamentadas pelo fato de ele ser culpado enquanto a culpa ainda não tenha sido estabelecida –, de modo que esse status deve ser determinado com o auxílio de relevantes direitos fundamentais ou humanos.

Portanto, não decorre de uma presunção de inocência formal se ela é aplicável somente ao processo penal ou também à fase pré­processual, aos procedimentos civis e administrativos, às avaliações retrospectivas de cul­pa ou, também, aos prognósticos de periculosidade, e, assim, por diante. As respostas para as questões do que e por quem alguém é presumido inocente requerem decisões normativas adicionais, as quais são idealmente encontra­das em um abrangente conceito normativo de presunção de inocência (infra).

Historicamente, contudo, em tempos nos quais os sistemas de direitos fundamentais ainda não estavam estabelecidos, como na Europa do Ilumi­nismo antes de 1789, uma presunção de inocência desempenhou um papel vital na proteção do acusado contra as adversidades do processo penal. Isso foi obtido por meio do emprego de um conceito amplo ou um conceito mate-rial de pena que permitiu a proibição não somente de formas legais e regula­res de pena, mas também de todas as violações de direitos individuais que se assemelhavam à pena, isso é, compartilhavam da sua semelhança exter­na. Formalmente, a tortura não era uma pena, mas apenas um expediente processual para produzir a confissão que era o pré-requisito bíblico31 para a pena ordinária (poena ordinaria) quando duas testemunhas não poderiam ser encontradas, mas, fenomenologicamente, a tortura assemelhava­se as penas corporais que estavam, então, em uso32, e ainda hoje sustenta­se que as espé­

30 Carbonnier, Instruction criminelle et liberté individuelle, p. 42­43. No mesmo sentido Ashworth, International Journal of Evidence & Proof 10, p. 251.

31 Deuteronômio 17:6, 19:15.32 Thomasius, Dissertatio de tortura ex foris christianorum prohibenda, caput II, § 1: “Poena itaque

potius incerti criminis dicenda, quam medium inquirendae veritatis: quia omnis corporis cruciatus, etiamsi ante sententiam inferatur, poena est”; Voltaire, Prix de la justice et de l’humanité, art. XXIV, p. 584­585: “Quoi! vous n’avez point de preuves, et vous punissez pendant deux heures un malheureux par mille morts, pour vous mettre en droit de lui donner une d’un moment!”; Rousseau, Rousseau juge de Jean-Jacques, p. 404: “Tout nous montre ou nous fait sentir l’insuffisance des lois et l’indiffe “rence des juges pour la protection des innocents accuse’s, de’ja’ punis avant le jugement par les rigueurs du cachot et des fers, [...]” Ver todavia Hobbes, Leviathan, capítulo XXVIII, p. 298: “Thirdly, that the evil inflicted by public authority, without precedent public condemnation, is not to be styled by the name of

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cies de prisão processual violam a presunção de inocência porque se parecem muito com a pena privativa de liberdade (jail is still jail)33. Um conceito ma­terial de pena somente é útil quando inexistentes outros ou mais adequados instrumentos teóricos (por exemplo, um princípio de proporcionalidade ou proibição de restrições excessivas etc.); ele também dispõe de considerável força retórica. Em ordenamentos jurídicos com um conjunto desenvolvido de regras constitucionais e um sistema de direitos fundamentais individuais bem elaborado, este dispositivo imperfeito deveria ser considerado supérfluo e, por isso, dispensado, como se não bastassem as notórias dificuldades das definições não positivistas de pena34. Sem recorrer à função do ônus que o Estado impõe a um cidadão, formas modernas de pena como multas não podem ser diferenciadas de tributos, taxas etc.

conclusão

Em suma, a análise da estrutura das presunções jurídicas pode contri­buir para evitar alguma confusão, mas é incapaz de determinar o conteúdo da presunção de inocência para além de tautologias triviais. A forma de uma presunção não pode determinar quais normas a ela se referem, ou seja, o que significa em termos jurídicos ser “formalmente inocente”. Diferentes orde­namentos jurídicos oferecem diferentes respostas para a questão e é por isso que, por exemplo, a presunção de inocência norte­americana pode legitima­mente diferir das suas irmãs canadense e europeias. As presunções nada ex­plicam, porém precisam de explicação: as razões e valorações envolvidas nas questões de por que o Estado deve arcar com o ônus da prova ou por que a prisão cautelar (não) deve ser permitida e muitas outras controvérsias devem ser enfrentadas diretamente e não camufladas, apontando para a presunção

punishment; but of an hostile act; because the fact for which a man is punished, ought first to be judged by public authority, to be a transgression of the law”.

33 Gazer, Pace Law Review 25, p. 335­382.34 Conferir Kennedy v. Mendoza­Martinez, 372 U.S. 144, at 168; 83 S.Ct. 554, 567 f.; 9 L.Ed.2d

644 (1963): “Whether the sanction involves an affirmative disability or restraint, whether it has historically been regarded as a punishment, whether it comes into play only on a finding of scienter, whether its operation will promote the traditional aims of punishment – retribution and deterrence, whether the behavior to which it applies is already a crime, whether an alternative purpose to which it may rationally be connected is assignable for it, and whether it appears excessive in relation to the alternative purpose assigned are all relevant to the inquiry, and may often point in differing directions. Absent conclusive evidence of congressional intent as to the penal nature of a statute, these factors must be considered in relation to the statute on its face.”

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de inocência. Algumas das tarefas para as quais a presunção de inocência foi empregada em tempos pré­modernos são (deveriam ser) atualmente melho­res solucionadas pelas doutrinas constitucionais modernas.

Pode a presunção de inocência ser mais do que a reformulação de nor­mas já existentes ou uma forma vazia que pode ser arbitrariamente preenchi­da por qualquer legislador? Discutivelmente, há uma maneira de conceituar a presunção de inocência que dê a ela uma relevante e original tarefa nor­mativa. Tal proposta será brevemente esboçada no capítulo que conclui este trabalho35.

uma propoSta para um coNceito Normativo de preSuNÇÃo de iNocêNcia

As consequências jurídicas tipicamente atribuídas a uma presunção de inocência pressupõem um processo organizado de apuração de fatos, ou seja, um procedimento. Atualmente, em todo ordenamento jurídico tido como secular36 não é a simples “existência” de um crime (“culpa real”), mas apenas a apura­ção da culpa em um determinado procedimento, que legitima a aplicação de uma pena estatal a um indivíduo. O procedimento encontra o seu final com uma decisão, a qual pretende ser fundada em uma afirmação verdadeira so­bre se a conduta do acusado é punível ou não. No entanto, essa decisão pode também ser influenciada por regras que não têm nada a ver com a busca da verdade, mas servem propósitos outros, como regras de exclusão. Portanto, a base da punibilidade é sempre a “culpa formal”, a qual é equivalente ao conceito de “culpa jurídica” de Packer37.

Tendo isso em vista, poder-se-ia ficar tentado compreender a presun­ção de inocência como um meio “para proteger o inocente”, ou seja, para reduzir o risco de condenações errôneas. O nível de certeza requerido pode ser incorporado na premissa negativa (contraevidência) da presunção (“até provado para além de qualquer dúvida razoável”). Entretanto, como visto antes, a presunção, por si só, pode apenas expressar o padrão de prova, mas

35 Para uma versão completa, conferir Stuckenberg, Untersuchungen zur Unschuldsvermutung, p. 530­543.

36 Provavelmente, as únicas punições automaticamente aplicadas após a conclusão do fato sem a intervenção de qualquer tipo de procedimento são as poenae latae sententiae do Direito Canônico (cânones 1314 e seguintes, do Codex Iuris Canonici de 1983), que são sanções excepcionais para pecados graves, como, por exemplo, excomunhão por heresia (cânone 1364 § 1) ou aborto (cânone 1398).

37 Packer, The limits of the criminal sanction.

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não pode determiná­lo (se ele deve ser a preponderância da prova, o balanço de probabilidades ou a certeza moral). Historicamente, os padrões de prova foram desenvolvidos independentemente de uma presunção de inocência38 e o ônus da prova sempre ficou para a acusação desde a antiguidade (confor­me ei incumbit probatio qui dicit, non qui negat39 e as regras correspondentes do Direito canônico40, as quais foram originariamente aplicadas tanto nos pro­cedimentos civis como nos penais), porque a regra oposta desestabilizaria qualquer tipo de ordem social. Da mesma forma, a popularidade do famoso aforismo de Traianus, segundo o qual é melhor absolver um réu culpado do que condenar um inocente41, o qual costuma aparecer em muitas variações e exageros (dez, vinte, n pessoas culpadas...)42, pode ser explicada conside­rando que o inverso da máxima seria flagrantemente opressivo43. Tanto a justificação do padrão de prova em casos criminais quanto a atribuição dos ônus probatório e argumentativos podem ser feitas sem uma presunção de

38 Para o padrão da dúvida razoável, conferir Fletcher, Yale Law Journal 77, p. 880; Shapiro, Beyond reasonable doubt and probable cause, p. 24­25.

39 Digesta 22, 3, 2 (Paulus).40 Corpus Iuris Canonici, c. 3 X. de prob. II, 19 and c. 26 X. de sent. II, 27 (“actore von probante

reus absolvitur, etsi nihil praestiterit”); Codex Iuris Canonici 1983, cânone 1748: “§ 1 Onus probandi incumbit eo, qui asserit. § 2 Actore non probante reus absolvitur.”

41 Digesta 48, 19, 5, pr.: “Absentem in criminibus damnari non debet divus Traianus Iulio Fontoni rescripsit. sed nec de suspicionibus debere aliquem damnari divus Traianus Adsidio Severo rescripsit: satius enim esse impunitum relinqui facinus nocentis quam innocentem damnari.”

42 Fortescue, De laudibus legum Angliae, ch. XXVII, p. 64­65; Hale, History of the pleas of the Crown, ch. XXXIX, p. 289; Blackstone, Commentaries on the Laws of England, ch. XXVII, p. 352. Conferir, também, Williams, The proof of guilt, p. 186 e seguintes; Holdsworth, A History of English Law, p. 620; Best, A treatise on presumptions of law and fact, p. 58 n. (g) e a abrangente coleção feita por Volokh, University of Pennsylvania Law Review 146, p. 173­216.

43 Isso também se aplica às populares fórmulas favor rei, como Digesta 50, 17, 56 (“semper in dubiis benigniora praeferenda sunt”), Digesta 50, 17, 155, 2 (“in poenalibus causis benignius interpretandum est”), Digesta 50, 17, 192, 1 (“in re dubia benigniorem interpretationem sequi non minus iustius est quam tutius”), Digesta 48, 19, 42 (“interpretatione legum poenae molliendae sunt potius quam asperandae”) and Dig. 34, 5, 10, 1 (“[...] in ambiguis rebus humaniorem sententiam sequi oportet [...]”), ou a famosa resposta de Iulianus à pergunta de Delphidius, relatada por Ammianus Marcellinus, Rerum gestarum libri qui supersunt, lib. XVIII, cap. 1, 4: “Ecquis, florentissime Caesar, nocens esse poterit usquam, si negare sufficiet?” – “Ecquis innocens esse poterit, si accusare sufficiet?” ou o assim denominado Calculus Minervae, Digesta 42, 1, 38 pr. and 1: “inter pares numero iudices si dissonae sententiae proferantur, in liberalibus quidem causis, secundum quod a divo Pio constitutum est, pro libertate statutum optinet, in aliis autem causis pro reo. quod et in iudiciis publicis optinere oportet.”

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inocência: em vez disso, é uma questão de quem deve arcar o ônus do erro causado pela incerteza probatória, o Estado ou o cidadão. Em uma sociedade livre, onde as liberdades individuais são levadas a sério, a possibilidade de influenciar a decisão de procedimentos penais deve ser minimizada, ainda que não possa ser eliminada em sua totalidade. Por isso, as presunções jurí­dicas de culpa foram abolidas em muitos ordenamentos jurídicos da Europa desde o século XIX, pois essas rígidas inferências padronizadas aumentam o risco de condenações imprecisas, e foram substituídas pelo princípio da livre valoração da prova, mais flexível.

Em vez disso, argumenta­se aqui que a função original da presunção de inocência é a proteção do procedimento em si. “Procedimento” é entendi­do por Niklas Luhmann como um processo de apuração e está definido pela incerteza quanto ao resultado da sua decisão; essa incerteza é artificialmente preservada durante todo o período até a decisão conclusiva. Se, pelo con­trário, a decisão de um processo não é incerta, se o propósito dele não é de-terminar uma decisão, mas apresentar e justificar uma decisão já determinada, ele não deve ser denominado de “procedimento”, mas de “ritual”44. A tarefa original da presunção de inocência consiste em preservar a incerteza sobre a decisão, a qual é constitutiva de um procedimento. A sugestiva formulação da presunção de inocência e sua frequentemente descrita força retórica45 já fornece um contrapeso ao estado de suspeita oficial. Como uma proibição de aplicar uma pena sem o procedimento determinado, a presunção de ino­cência parece ser nada mais do que a expressão tautológica de que um pro­cedimento é uma condição necessária de punibilidade. Mas ela pode servir também para proteger o procedimento, especialmente a sua incerteza, contra todas as espécies de interferência46. Tal proibição de repudiar ou compro­meter o respectivo procedimento implica que a decisão deste não deve ser

44 Luhmann, Legitimation durch Verfahren, p. 38 e seguintes, 47, 51­52; Luhmann, Das Recht der Gesellschaft, 207 e seguintes, 284 e 318; Luhmann, Rechtssoziologie, p. 142, 172 e 181­182.

45 Conferir Taylor v. Kentucky, 436 U.S. 478, 484; 98 S.Ct. 1930, 1934 (1978) (“This admonition derives from the salutary effect upon lay jurors. While the legal scholar may understand that the presumption of innocence and the prosecution’s burden of proof are logically similar, the ordinary citizen may well draw significant additional guidance from an instruction on the presumption of innocence.”); Fletcher, University of California at Los Angeles Law Review 15, p. 1212­1220.

46 Nesse sentido, Aricò, Giustizia penale (Fascicolo speciale in memoria di Giuseppe Sabatini), p. 123 e seguintes; Hassemer, Einführung in die Grundlagen des Strafrechts, p. 160; Müller, Rechtsstaat und Strafverfahren, p. 60; Packer, The limits of the criminal sanction, p. 161; Rogall, Der Beschuldigte als Beweismittel gegen sich selbst, p. 111; Stuckenberg, Untersuchungen zur Unschuldsvermutung, p. 519­544; Stuckenberg, ZStW 111, p. 452­458. Conferir, também,

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antecipada (ou seja, tratando alguém como culpado antes da condenação), nem contornada e tampouco subsequentemente prejudicada a sua decisão.

Isso parece simplesmente frisar que a autoevidente e antiga ideia, qual seja, a de que a culpa é estabelecida somente por uma condenação, e não por meras suspeitas e acusações47. Mas a clareza conceitual sozinha provou ser insuficiente para influenciar efetivamente a realidade normativa. A exigência de levar um determinado procedimento a sério persistirá enquanto o proce­dimento existir.

Nesse sentido, a presunção de inocência é uma espécie de “defesa de flanco” de um determinado procedimento e é completamente dependente desse procedimento (seja ele julgamento por duelo, ordália ou procedimento penal moderno). Como visto anteriormente, a presunção como tal pode ape­nas expressar, mas não determinar, a forma e os detalhes do procedimento correspondente. Entretanto, a presunção pode ser utilizada instrumentalmen-te, isto é, para transmitir enfaticamente demandas específicas ou propostas de reforma de como as regras processuais devem ser modificadas. Dito uso instrumental foi frequente durante o período do Iluminismo. Como visto an­teriormente, a presunção de inocência não pode ajudar para encontrar uma solução para questões de padrão de prova, onus probandi, prisões proces suais, questões materiais de responsabilidade penal etc., as quais são decididas pe­los padrões de racionalidade, de respeito pela liberdade individual etc., de uma determinada sociedade.

Teoricamente, a função de proteger a integridade de um procedimento contra qualquer sorte de comprometimento não está restrita aos procedimen­tos penais, mas existe em vários tipos de procedimentos (a maioria dos proce­dimentos dispõe de meios para preservar a incerteza, evitar a antecipação etc.).

A principal consequência dessa compreensão da presunção de inocên­cia é a proibição da antecipação da pena antes que o procedimento tenha che­gado ao final. Consequentemente, é proibido conceber o procedimento em si como uma forma de pena – para ensinar “uma lição”48 ao réu – e de tolerar restrições processuais as quais só podem ser explicadas para servir propó­

Haberstroh, Neue Zeitschrift für Strafrecht 4, p. 290; Hassemer, Strafverteidiger 4, p. 40; Savickij, Rechtswissenschaftlicher Informationsdienst (1953), p. 407.

47 No século VIII, por exemplo, o Capitularium Caroli Magni et Ludovici Pii, lib. VII, cap. CCLIX, col. 1674: “Nullus quemquam ante iustum iudicium damnet, nullum suspicionis arbitrio iudicet. [...] Non enim qui accusatur, sed qui convincitur, reus est.”

48 Sobre a triste realidade no tratamento dos casos nos tribunais penais de instâncias inferiores, conferir Feeley, The process is the punishment.

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sitos punitivos. Isso significa que a presunção de inocência também proíbe certo tipo de argumentação: nenhuma medida, nenhuma restrição pode ser justificada com a realização de um dos fins da pena (prevenção, dissuasão, retribuição etc.) até que a respectiva apuração da culpa tenha sido realizada. Como um corolário, as restrições necessárias para a condução organizada dos procedimentos (como a prisão temporária) ou tendo como objetivo a preven­ção de danos (como a prisão preventiva) não estão excluídas49. No entanto, deve­se tomar muito cuidado para que tais medidas não assumam um caráter de pena. Portanto, as restrições processuais devem ser de tal modo eficazes que todos os cidadãos, inclusive os inocentes, possam ser a elas justamente sujeitados; para além disso, tais restrições devem ser reversíveis ou, no mí­nimo, compensáveis no caso de absolvição50. Se o procedimento é concluído sem uma condenação, o acusado deve ser completamente reabilitado – a sua reputação restaurada para evitar o adágio semper aliquid haeret – e indenizado, porque, do contrário, a decisão do procedimento não pode ser considerada verdadeiramente incerta. É, portanto, consistente com essa concepção quan­do a Corte Europeia de Direitos Humanos proíbe a “atribuição de suspeitas”51 e “suscita dúvidas sobre a inocência [do réu]”52 após uma absolvição que tornou­se definitiva.

Não é relevante apenas o propósito de uma medida, pois a aparência dela também pode ser crucial: a pena é um ato comunicativo; logo, aquelas medidas que assemelham­se muito às formas de pena atualmente em uso serão inevitavelmente entendidas como sanções penais. Quanto ao histórico uso da presunção de inocência para combater a tortura em função de sua si­

49 Tribe, Virginia Law Review 56, p. 404­405.50 Os ordenamentos jurídicos são relutantes no que respeita à compensação. Na França, o

Estado sempre assume os custos da acusação (arts. 800 e 800­1, do Code de Procédure Pénale), mas nunca os honorários da defesa, embora esteja prevista a compensação pela prisão cautelar em caso de absolvição (art. 149 do referido diploma). Na Alemanha o réu absolvido é indenizado pela prisão cautelar (§ 2, da Strafrechtsentschädigungsgesetz) e são pagas as suas despesas (limitadas até um determinado valor) com honorários advocatícios (§ 467, 1, do Strafprozeßordnung).

51 Sekanina v. Austria, European Court of Human Rights, series A 266 (1993), parágrafo 30: “The voicing of suspicions regarding an accused’s innocence is conceivable as long as the conclusion of criminal proceedings has not resulted in a decision on the merits of the accusation. However, it is no longer admissible to rely on such suspicions once an acquittal has become final.” Esse entendimento foi mais de uma vez confirmado pela Corte, sendo a última vez no caso Puig Panella v. Spain, App. No. 1483/02, Judgment of 25 April 2006, parágrafo 57.

52 Vostic v. Austria, App. No. 38549/97, Judgment of 17 October 2002, parágrafo 20.

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militude com a pena corporal, ele não é desprovido de méritos, apesar de que hoje a proibição de medidas processuais excessivas seria melhor fundamen­tada com o auxílio de instrumentos da doutrina moderna, como o princípio da proporcionalidade etc. (quando disponíveis).

Entretanto, a presunção de inocência também protegeria o procedi­mento contra quaisquer ameaças à incerteza ou imparcialidade da apuração do fato, sejam eles fatores externos (cobertura excessiva da mídia/comunica­dos à imprensa por parte da autoridade policial de maneira descuidada) ou mecanismos institucionais (o réu aparece em juízo algemado e vestindo um uniforme prisional53 etc.).

Se a presunção de inocência protege um determinado procedimento, ela também protege a distribuição de competências para decidir sobre a res­ponsabilidade penal. É concebível, porém não necessário, que somente tribu­nais penais sejam considerados competentes para declarar alguém culpado de um crime ou, pelo contrário, que também outros tribunais ou agências possam determinar a culpa se isso surge, por exemplo, como uma questão preliminar em outras áreas do Direito. Essa é mais uma questão de harmonia interna das decisões54 do que uma consequência da presunção de inocência, embora a Corte de Estrasburgo tenda a considerar um crime como existente apenas se ele tenha sido provado e julgado conforme a lei, por exemplo, no contexto de revogação da liberdade condicional55.

Na medida em que a presunção de inocência é aqui concebida como uma garantia de um determinado procedimento, ela também protege o indi­víduo envolvido nesse procedimento, isto é, o réu, mas apenas indiretamente. A partir dessa perspectiva, ela se assemelha a princípios formais como o rule of law ou do devido processo legal. Atualmente, é bastante provável que ou­tras garantias constitucionais desempenhem papéis mais importantes do que a presunção de inocência na proteção da liberdade individual. Não obstante, a restrição da presunção de inocência para uma função claramente definida parece ser indispensável para que não se torne, segundos as palavras de Healy:

[...] impervious to positive definition and incapable of prescriptive formulation or consistent application. As a reason of policy or principle, it is indeterminate in scope and, theoretically, could be invoked as a reason for any decision or

53 Conferir Estelle v.Williams, 425 U.S. 501, 504­505; 96 S.Ct. 1691, 1693; 48 L.Ed.2d 126 (1976).54 Stuckenberg, Untersuchungen zur Unschuldsvermutung, p. 570­572.55 Böhmer v. Germany, App. No. 37568/97, Judgment of 2 October 2002.

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rule that seeks to control the jeopardy of the accused by minimising the risks of prejudice, unfairness, error or miscarriage of justice.56

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Sobre el gutachteNStil y la evaluacióN del derecho mediaNte

la SolucióN de caSoS prácticoSoN the gutachteNStil aNd the evaluatioN of

laW Study by meaNS of the legal caSe-SolviNgDiego FeRnanDo taRapués sanDino*

RESUMEN: Las formas de evaluación representan un elemento importante en la formación jurídica. El estilo de dictamen (Gutachtenstil) es una herramienta académica muy reconocida en Alemania que busca centrar el proceso de evaluación en la solución de casos prácticos. Evaluar por medio de dictámenes es una estrategia muy interesante que permite desarrollar competencias importantes en los futuros abogados, al relacionar aspectos teóricos y prácticos. Este breve artículo aclara de manera general las características de esta forma de evaluación en Alemania y plantea su utilidad en otros países de cultura jurídica similar.PALABRAS CLAVES: Estilo de dictamen (Gutachtenstil), eva­luación, formación jurídica, cultura jurídica, solución de casos.ABSTRACT: The forms of evaluation represent an important element in the legal formation. The style of report (Gutachtenstil) is a well-recognized academic tool in Germany that seeks to focus the examination process on the legal case-solving. Evaluating with Gutachtenstil is a very interesting strategy that allows, to develop important competences in the future lawyers, because this relates theoretical and practical aspects. This article clarifies the general characteristics of this form of evaluation in Germany and explains its usefulness in other countries with similar legal culture.KEYWORDS: Style of report (Gutachtenstil), evaluation, legal formation, legal culture, legal case­solving.

la evaluacióN eN la formacióN JurídicaCuando estudiamos Derecho, el proceso de aprehensión cognitiva parte

por leer y analizar principalmente el derecho codificado y los desarrollos

* Decano de la Facultad de Derecho de la Universidad Santiago de Cali (Colombia) e investigador adscripto del Cedpal (Alemania). Blog: www.tarapues.info.

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dados en la jurisprudencia y en la doctrina. La forma en que aprendemos y en la que nos evalúan los conocimientos adquiridos varía considerablemente de universidad en universidad, pero especialmente de profesor en profesor. Algunos más memorísticos que otros, suelen preguntar por conceptos, categorías, definiciones o elementos centrales de lo enseñando1. Otros, por su parte, suelen formular supuestos casos para luego plantear preguntas concretas dirigidas a que se analice y aplique lo aprendido en clase.

Por supuesto, hay quienes suelen mezclar ambas estrategias, dándole más énfasis a la una o a la otra. Asimismo existen diversas alternativas para evaluar de manera casuística o de memoria, sea realizando preguntas abiertas, formulando preguntas con espacios a rellenar, indagando en si algo es falso o verdadero o recurriendo a la propiciada estrategia de diseñar las preguntas de la misma forma en que el Estado nos evalúa, es decir, mediante preguntas tipo examen Saber Pro2.

Sin duda alguna, existe un amplio portafolio de formas de evaluar que redunda en la inexistencia de una metodología consolidada a la hora de evaluar el conocimiento adquirido y aplicable a la hora de estudiar Derecho. Hay muchos países en los que esto suele ser una constante, sin embargo, también hay contadas excepciones en las que la cultura jurídica y académica de esas sociedades ha desarrollado una metodología estandarizada de evaluación para exigir a los futuros abogados, un criterio analítico y argumentativo que articule lo teórico con lo práctico. Tal vez uno de los países que más organización y tradición tiene en esta materia es Alemania.

la tradicióN alemaNa del gutachteNStilLa evaluación desarrollada mediante la solución de casos prácticos

que debe presentarse bajo el denominado estilo de informe o de dictamen (Gutachtenstil) representa un elemento medular de la formación jurídica en

1 Al respecto señala Vila Ramos: “en los métodos tradicionales de evaluación priman los conocimientos teóricos, y aunque exista un trabajo práctico, se tiende a valorar menos la parte práctica que la teórica, ya que el problema que subyace es, en muchos casos, que la realización de prácticas que abarquen todos los conceptos de una materia no suele ser un planteamiento realista por motivos de tiempo y número de alumnos”. Beatriz Vila Ramos, Una propuesta práctica de innovación docente. La enseñanza-aprendizaje-evaluación del Derecho Constitucional, InDret 1/2011, p. 16.

2 La prueba Saber Pro es un examen estatal colombiano que evalúa a los egresados de diferentes programas universitarios como Derecho. Sobre la estructura de este examen, véase: http://www.icfes.gov.co/itemlist/category/277-estructura-general-del-examen-saber-pro

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Alemania. Algo que ha estado presente desde el siglo XVIII en Prusia hasta sobreponerse como mecanismo estandarizado de evaluación a mitad del siglo pasado3. Además de aprender lo contenido en la ley, la jurisprudencia y la doctrina, aquel que estudia Derecho en Alemania debe aprender a resolver ejercicios prácticos desarrollando casos mediante el estilo de dictamen en cada una de las áreas del Derecho.

El Gutachtenstil no solo se aplica en las evaluaciones universitarias de todas las instituciones de educación superior públicas y privadas alemanas donde se forman los futuros juristas, sino que también se emplea en los dos exámenes estatales que se deben realizar al finalizar el plan de estudios (primer examen estatal exigido para titularse académicamente como jurista) y al terminar la inserción en el mundo jurídico práctico (segundo examen estatal exigido para habilitar el ejercicio profesional de la abogacía o de la judicatura). Es decir, esta metodología de evaluación es la única que se utiliza por todos los catedráticos universitarios alemanes y por el mismo Estado que de manera escrita y oral examina a los futuros juristas y abogados4.

¿eN QuÉ coNSiSte el gutachteNStil?A través del estilo de informe o de dictamen se busca solucionar, por

medio de un esquema argumentativo y sistemático de naturaleza inductiva y de forma silogística, los casos prácticos planteados para evaluar el dominio no solo de aspectos básicos de un área del derecho, sino también la capacidad de aplicar esas nociones fundamentales frente a casos concretos de la vida real que exigen la aplicación de categorías dogmáticas. El Gutachtenstil se asocia a la arraigada cultura jurídica alemana, caracterizada por el análisis dogmático y sistemático del Derecho positivo.

La evaluación casuística alemana no es como la empleamos nosotros, donde formulamos casos pequeños para describir, explicar, afirmar o negar la existencia y relación de hechos y figuras jurídicas. En Alemania, las evaluaciones y trabajos que exigen la aplicación del estilo de dictamen para su solución son usualmente casos más extensos y complejos que suelen pasar en la realidad y que exigen la resolución jurídica del mismo rindiendo un informe esquemático al respecto.

3 Cfr. Carl­Friedrich Stuckenberg: Der juristische Gutachtenstil als cartesische Methode. En: Georg Freund, Uwe Murmann, René Bloy y Walter Perron (ed.): Grundlagen und Dogmatik des gesamten Strafrechtssystems. FS fur Wolfgang Frisch. Duncker & Humblot, Berlín, 2013, pp. 168­177.

4 Cfr. Gerhard Köbler: Zur Geschichte der juristischen Ausbildung in Deutschland. En: JZ. 26. Jahrgang, No. 23/24, 1971, pp. 768­773.

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A la hora de resolver un caso con este método, lo primero que se hace es presentar lo que hipotéticamente podría ser la resolución del caso y al final se afirma lo que resultó ser, luego de un riguroso proceso de revisión de cada elemento en orden y de acuerdo al esquema que corresponde al respectivo caso a resolver. Por ejemplo, para resolver un caso presentado en una evaluación sencilla de derecho penal que trate sobre un golpe que le da intencionalmente X a Y, lo primero que se debe hacer es analizar las normas del código penal que tratan este tipo de conductas para proceder a afirmar si la conducta de X por haber golpeado y lesionado a Y podría ser punible de acuerdo a los artículos exactos sobre lesiones personales.

Realizada esa primera labor, continúa un detallado proceso de análisis de cada uno de los elementos de la estructura del delito para ver si el hecho dado en el caso a resolver se ajusta a los elementos dogmáticos que se plantean para la existencia de una conducta punible. En ese orden de ideas, y siendo muy concretos en el ejemplo, se analiza la tipicidad objetiva, revisando de manera secuencial si todo lo descrito en el tipo penal se da en el caso que está siendo objeto del dictamen, es decir, si hay lesión, si se dirige contra otra persona, si hay causalidad, si hay forma de imputar esa acción, si hay ciertos ingredientes especiales, etc., todo ello siempre recurriendo a la conceptualización (doctrinal y jurisprudencial) y concluyendo preliminarmente, paso a paso, si se da en el caso práctico lo que exige la teoría. Lo mismo sucede luego con la tipicidad subjetiva, después con la antijuridicidad y la culpabilidad; explorando y analizando si hay causales de justificación o de exculpación, hasta llegar al resultado final y silogístico donde se afirmará o negará la existencia de responsabilidad penal en el caso planteado.

fuNcióN práctica de eSte mÉtodo de evaluacióNSi bien el aprendizaje y uso de este método de resolver casos

prácticos puede ser tedioso por el elevado nivel de formalismo, de análisis y de esquematización, representa una herramienta muy valiosa no solo para aprender y poner en práctica los conocimientos adquiridos en un país determinado por la tradición jurídica continental del civil law, sino también para evaluar de manera consistente todo aquello que a veces suele quedarse en una esfera teórica de abstracción que a veces parece estar divorciada de la práctica y realidad jurídica y judicial5.

5 Algunos estudios empíricos evidencian en un alto grado que las formas tradicionales de evaluación en el Derecho no suelen desarrollar competencias en la elaboración de

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Aunque cada modelo obedece siempre a características particulares de cada país y por eso no debemos propender por la adopción y trasplante irresponsable y descontextualizado de cualquier modelo, debemos ser conscientes de que los métodos de evaluación juegan un importante rol a la hora de formar y examinar a los futuros abogados. Dependiendo el enfoque que le demos, estaremos dando mayores competencias para articular de manera consistente los desarrollos teóricos sistemáticos con los eventuales retos fácticos que en el día a día se pueden presentar.

dictámenes y fallos. Véase por ejemplo: Guillermo Ruiz, La evaluación de la enseñanza del Derecho, Revista sobre enseñanza del Derecho, Año 5, No. 9, 2007, p. 369.

Sumário

Doutrina nacional

61 No Limite da Permissão – Considerações sobre Consequências Jurídicas da Ordem de Abater Aviões Sequestrados

(Paulo César Busato)

93 Da Experiência da Pena (Rafael de Oliveira Costa)

111 A Pena Criminal na Democracia: o Compromisso da Dogmática com a Racionalidade

(Ney Fayet Júnior)

121 O Fundamento Culturalista das Dez Medidas contra a Corrupção: o Caso do “Ajuste” das Nulidades

(Ricardo Jacobsen Gloeckner e Felipe Lazzari da Silveira)

151 Aproximações à Tutela Penal de Animais: Desvelando a Pergunta pela Possibilidade de os Animais Serem Titulares de Bens Jurídico-Penais

(João Alves Teixeira Neto)

165 Uma Visão Crítica Marxista da Dogmática Penal do Risco

(Michelle Gironda Cabrera)

179 O Tribunal Penal Internacional e o Caso Omar Al-Bashir (Marine Carrière de Miranda)

61

No limite da permiSSÃo – coNSideraÇõeS Sobre coNSeQuêNciaS JurídicaS da ordem

de abater aviõeS SeQueStradoSoN the edge of legal permiSSioN – coNSideratioNS

about the order to Shoot doWN hiJacked plaNeSpaulo césaR Busato*

RESUMO: O artigo discute as consequências jurídicas da ordem e execução do abate de aviões cuja tripulação tenha sido sequestrada. Aponta-se para as principais soluções debatidas na doutrina. Ao fi­nal, adota­se a abordagem de Roxin sobre o tema, acrescentando­se a ela, porém, um esclarecimento considerado imprescindível, de­rivado da perspectiva jurídico-penal oferecida pela abordagem do Direito Penal derivada da filosofia da linguagem.PALAVRAS-CHAVE: Abate de aviões sequestrados; justificação x exculpação; necessidade de pena; filosofia da linguagem.ABSTRACT: The paper discusses the legal consequences of the or­der and execution of the shut down the hijacked aircraft. The text presents the main solutions discussed in doctrine. At the end, adopt the Roxin’s approach, adding to it, however, a clarification conside­red indispensable, based on the criminal law perspective offered by the philosophy of language approach.KEYWORDS: Shut down hijacked planes; justification vs. excuses; penalty necessity; philosophy of language.SUMÁRIO: Introdução; 1 O caso do abate de aviões sequestrados; 2 As inovações sobre a culpabilidade na tese de Roxin. Uma conexão entre teoria do delito e teoria da pena; 3 As consequências da aplica­ção da tese de Roxin ao específico caso do sequestro de aviões; 4 A necessidade de complemento da tese de Roxin para uma adequada solução do problema. Uma contribuição desde a filosofia da lingua­gem; 5 A modo de conclusões; Referências.

iNtroduÇÃoO mundo vive, infelizmente, outra vez, um momento em que notícias

de atentados terroristas ocupam os jornais da Europa e do mundo todo.

* Doutor em Problemas Atuais do Direito Penal pela Universidad Pablo de Olavide, Espanha. Título revalidado pela UFPR.

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Em períodos históricos como este, costumam aparecer múltiplas legisla­ções e decisões governamentais orientadas a recortes de liberdades individuais.

Neste momento, a mais importante tarefa atribuída aos juristas é, sem dúvida, reafirmar as garantias individuais desde um ponto de vista político criminal, para evitar que o Direito Penal se transforme em ferramenta de im­posição de vingança e lugar de um discurso de guerra.

Outrossim, se resulta imprescindível o trabalho de quem estuda as ver­tentes criminológica e político-criminal, isso não quer dizer que não caiba lugar para discutir aspectos dogmáticos.

O esquecimento da dogmática, nestes momentos, costuma traduzir­se em uma abertura indevida de espaço para distorções que acomodam, disfar­çadas em um verniz técnico, as piores perspectivas político-criminais.

Este trabalho trata de retomar a discussão sobre os sequestros de aviões1 que, a raiz dos eventos do 11 de setembro de 2001, deu lugar, em várias partes do mundo, às chamadas leis de abate, as quais criaram espaço ju­rídico de permissões e autorizações para abater os aviões sequestrados, com sacrifício de passageiros e tripulação.

Naquele momento, houve intensas discussões sobre o tema, que pos­teriormente caíram em um progressivo esquecimento, sem que, contudo, se tenha chegado a uma conclusão claramente dominante.

Expõem­se aqui as principais soluções propostas para o tema, culminan­do por propor a adoção da tese defendida por Roxin, mas a ela se acrescenta uma espécie de sintonia fina que deriva das contribuições oferecidas por uma abordagem epistemológica do Direito Penal desde a filosofia da linguagem.

1 o caSo do abate de aviõeS SeQueStradoSDentro dos muitos casos debatidos no tema de terrorismo, um dos

mais verticalmente explorados em termos dogmáticos foi, sem dúvida, o das implicações jurídico-penais da eventual ordem de abate de aviões sequestra­dos por agentes terroristas.

1 Por amor à precisão técnica, convém registrar que a expressão sequestro de aviões carece de sentido literal. Isso porque o sequestro é uma conduta cometida em face de uma pessoa, é a retenção ilegal de pessoa em cárcere privado. Seria mais correto referir ou ao sequestro da tripulação e passageiros de aviões, ou à tomada do controle do avião. No entanto, já restou consagrada pelo uso na doutrina a expressão sequestro de aviões, quiçá, por sua brevidade e seu inequívoco conteúdo. Desse modo, tomou­se aqui a expressão tal como se utiliza regularmente.

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A questão que se propõe é se é o caso de castigar, justificar ou exculpar a ação de um piloto das forças aéreas que abate o avião sequestrado (e tam­bém de quem se lhe ordena fazê­lo) sobre um território despovoado e, desse modo, mata os passageiros e os membros da tripulação que se encontram a bordo, para evitar que o mesmo avião se choque contra um alvo onde é pos­sível matar um coletivo de pessoas.

O tema teve muitíssima repercussão em vários países, onde se discutiu leis que regulavam o tema, autorizando aos ministros da defesa derrubar aviões, em cumprimento da Diretiva MCM­062­02 da OTAN, que estabelece as linhas de ação a seguir em caso de risco de atentados, no qual se autoriza a derrubar aviões civis2.

Agora, outra vez o tema ganha importância a partir dos eventos vincu­lados às ações do grupo terrorista denominado Estado Islâmico.

Especificamente na Alemanha, a questão veio à discussão ao redor dos termos do § 14 item 3 da Lei de Segurança Aérea (Luftsicherheitgesetz)3, apro­vada em 18 de junho de 2004, que, afinal, resultou qualificado de inconstitu­cional pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (BVerfG), na deci­são de 15 de fevereiro de 2006. O Tribunal declarou inválida tal norma, por afetar o princípio da dignidade humana, na medida em que converteria os inocentes em meros instrumentos de uma ação estatal de salvamento (STCA: 1 BvR 357/05)4.

Resta absolutamente claro que o Tribunal Constitucional Federal cen­trou­se no argumento de que a dignidade humana dos passageiros é lesiona­da mediante o abate, na medida em que eles são tratados como meros objetos.

O fundamento, portanto, toma em consideração o segundo imperativo categórico de Immanuel Kant: “Atua de tal maneira que possas utilizar a hu­

2 Cf. RÍOS VEGA, Luis Efrén. ¿Matar inocentes para salvar a otros? El caso del avión­bomba. Killing to save? The bomb’s plane case. Derechos y Libertades, Madrid: Dykinson, n. 21, Época II, p. 190, jun. 2009.

3 O parágrafo (3) do § 14 da Lei de Segurança Aérea da Alemanha dizia que estava “autorizada a ação imediata com a força das armas só quando, de acordo com as circunstâncias, é possível supor que o avião será utilizado contra a vida de pessoas e este seja o único meio para evitar o perigo atual”.

4 Entendeu­se que o § 14.3 LuftSiG considera os passageiros e a tripulação de um avião sequestrado parte da arma com a qual se vai cometer um atentado terrorista e lhes priva do direito à vida, base da dignidade da pessoa. Em outras palabras, “os cosifica e, ao mesmo tempo, lhes priva de direitos”.

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manidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e a todo momento como fim e nunca simplesmente como meio”5.

A ideia filosófica correta de não instrumentalizar os seres humanos a partir de regras jurídicas impede naturalmente a possibilidade, certa vez proposta6, de autorizar juridicamente que se proceda o salvamento “do mais salvável” dentro de uma situação de emergência.

Mas, à margem das considerações filosóficas e constitucionais, o Tribu­nal Constitucional Federal alemão deixou aberta a valoração jurídico-penal do tema.

A decisão da Corte Constitucional foi criticada a partir de suas próprias bases filosóficas7, sob o argumento de que, nesse caso, não se sacrificam seres humanos a favor de interesses coletivos, mas justo ao contrário, respeita­se totalmente a ideia de que todos os seres humanos têm o mesmo valor e, por isso, não podem ser nem desvalorados nem maltratados.

De todo modo, segue aberta a questão dogmática sobre limites a res­peito da justificação e da exculpação aplicáveis aos casos em concreto.

Os intentos de esclarecer o tema deram margem a que se buscasse, na doutrina, exemplos que pudessem representar semelhança suficiente com o caso em concreto, na busca da composição de um grupo de casos. Assim, é comum que para a solução do caso alguns refiram ao caso do manobrista da estrada de ferro, que evita o choque do trem de passageiros mediante o sacri­fício de trabalhadores que estão na via secundária para onde se desvia o trem; dos médicos, que durante o regime nacional­socialista enviam para a morte alguns doentes mentais evitando que todos sejam mortos; o caso dos alpinis­tas que, pendurados na corda, só podem ser salvos parcialmente mediante a liberação do peso de alguns deles; até a clássica referência ao exemplo da “tábua de Carneades”8.

5 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 59.

6 Por exemplo, em RÍOS VEGA, Luis Efrén. ¿Matar inocentes para salvar a otros?... cit., p. 187 e ss.

7 A crítica é de HÖRNLE, Tatiana. Matar para salvar muchas vidas. Casos difíciles de estado de necesidad desde la perspectiva filosófico- moral y jurídicopenal. In Dret, Barcelona: Universitat Pompeu Fabra, n. 2, p. 19, jul; 2010.

8 Cf. ROBLES PLANAS, Ricardo. En los límites de la jusitificación. La colisão de intereses vitales en el ejemplo del derribo de aviones y otros casos trágicos. In: LUZÓN PEÑA, Diego Manuel (Dir.). Derecho penal del Estado Social y Democrático de Derecho. Libro homenaje a Santiago Mir Puig. Madrid: La Ley, 2010. p. 446.

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Mas nenhum deles supõe variáveis que sejam idênticas ao caso do aba­te de aviões9, pelo que toda aproximação supõe um reducionismo indesejável que não se reproduzirá neste estudo.

A melhor abordagem do tema vem precisamente do que já se estabele­ceu em termos dos conceitos básicos de teoria do delito.

1.1 o ponto de partidaParece correto atacar o tema a partir de sua base fática, que supõe o

sacrifício deliberado da vida de um grupo de pessoas. Isso é o que ocorre no caso. Alguém emite a ordem de abate do avião e alguém a executa. A queda supõe a morte certa de quem vai dentro do avião.

Se o debate vai distribuir-se entre justificação ou exculpação, a primei­ra coisa a fazer é estabelecer se há diferenças entre as duas soluções e buscar o ajuste entre o caso concreto e as figuras jurídicas.

Partindo do direito continental e sua base escalonada, que difere do flat thinking anglo­americano10, é preciso firmar a diferença entre justificação e exculpação ou, como é preferível, permissões fortes e permissões fracas11.

As permissões fortes ou justificações implicam uma afirmação direta de que o ordenamento não só aprova o comportamento como o incentiva. Ou seja, a realização não só é aceitável, como é recomendada e aprovada pelo ordenamento jurídico. Nas justificações, o particular atua em substituição ao próprio Estado, em uma situação de emergência que não lhe permite esperar pelo socorro estatal. O que se realiza é aprovado porque o próprio Estado, se pudesse estar no lugar do particular, atuaria da mesma maneira. Também é preciso entender que a categoria da ilicitude transcende o âmbito penal, o ato aprovado também pode gerar isenção desde o ponto de vista civil e adminis­trativo. Finalmente, é preciso reconhecer que esse afastamento de responsa­

9 Por exemplo, veja-se MARTÍNEZ CANTÓN, Silvia. Nuevas consideraciones sobre el derribo de aviones con pasajeros desde la perspectiva del estado de necesidad. In: LUZÓN PEÑA, Diego Manuel (Dir.). Derecho penal del Estado Social y Democrático de Derecho. Libro homenaje a Santiago Mir Puig. Madrid: La Ley, 2010. p. 416 e ss. Esse autor aponta, especificamente, várias diferenças entre o caso do controlador de trens e o caso do abate de aviões.

10 Sobre o tema, veja­se FLETCHER, George Patrick. Lo Justo y lo Razonable. Trad. Francisco Muñoz Conde e Paulo César Busato. Buenos Aires: Hammurabi, 2005. passim.

11 É a terminologia empregada, inicialmente, por VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos del Sistema Penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1996. p. 485. Também adotei a mesma expresão em BUSATO, Paulo César. Direito penal. Parte geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 469 e ss.

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bilidade por falta de ilicitude afeta o autor e os próprios partícipes, enquanto que, na exculpação, isso não se produz12.

As chamadas exculpações ou permissões fracas não traduzem uma aprovação do ordenamento jurídico, mas apenas a aceitação de efeitos, em princípio, indesejáveis. O particular atua em seu próprio interesse, mas con­tra o interesse da coletividade. A situação é de emergência, mas, se o Estado pudesse estar mediando o conflito, não estaria autorizado a proceder como procedeu o exculpado. O afastamento do injusto ou da culpabilidade13 – e, portanto, o delito – não transcende o âmbito penal, remanescendo a possibi­lidade de discussão da ilicitude civil ou administrativa. Finalmente, o afas­tamento da responsabilidade do autor não implica em automático e similar afastamento da responsabilidade dos partícipes.

1.2 As soluções justificantes e seus problemas

Em uma primeira aproximação do tema da justificação, envolvendo um bem jurídico tão fundamental como a vida, é preciso reconhecer que só está justificada a morte de uma pessoa em situação de legítima defesa14.

No caso concreto, ainda que fosse possível supor a situação justifican­te de ameaça à vida dos passageiros e tripulantes do avião, por parte dos terroristas, uma vez que sua pretensão é utilizar o avião para produzir um choque, a atuação de abate não é uma conduta justificada, na medida em que não salva os bens jurídicos postos em perigo.

Com isso, a discussão resvala para o âmbito do estado de necessidade.Nesse ponto, compete delimitar, no caso concreto, se trata­se do estado

de necessidade justificante ou exculpante e, no caso do primeiro, distinguir entre o estado de necessidade agressivo e o estado de necessidade defensivo.

Sobre o estado de necessidade como fonte de justificação ou exculpa­ção, as distintas legislações têm diferentes requisitos, mas, de modo geral, o caso que está justificado está autorizado pelo ordenamento, enquanto que o meramente exculpado não está autorizado, mas simplesmente se tolera.

12 Cf. ORTS BERENGUER, Enrique; GONZÁLEZ CUSSAC, Jose Luis. Compendio de Derecho penal. Parte General y Parte Especial. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004. p. 176­177.

13 Aqui se aponta um ou o outro, porque, segundo as fórmulas tradicionais, a inexigibilidade é um caso de afastamento da culpabilidade, e não do ilícito. Mas, desde as bases oferecidas por Vives – que aqui se adota (BUSATO, Paulo César. Direito penal. Parte geral... cit., p. 459 e ss.) –, os casos de exculpacão tem lugar na exclusão do próprio ilícito, por permissões fracas.

14 Cf. ROBLES PLANAS, Ricardo. En los límites de la jusitificación... cit., p. 446.

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O estado de necessidade defensivo ocorre quando o afetado pela ação do necessitado se encontre implicado na fonte do perigo que este deseja evi­tar. Ao contrário, no estado de necessidade agressivo o afetado não tem rela­ção com o perigo que o necessitado pretende evitar15.

Há quem16 sustente que o caso ora em apreço deve ser tratado como caso de estado de necessidade defensivo. Mas o estado de necessidade defen­sivo não tem cabimento nessa hipótese, porque se pretende salvar pessoas que estão no solo, por meio do sacrifício das vidas dos que estão no avião.

Por isso, é preciso partir das exigências de um estado de necessidade agressivo.

Costuma­se17 entender que, para o reconhecimento do estado de neces­sidade defensivo, basta que o dano causado não seja desproporcional com o bem protegido, enquanto que no estado de necessidade agressivo o mal que se pretende evitar tem que ser muito mais relevante do que o bem jurídico sacrificado.

Então, para a configuração de um estado de necessidade agressivo, se­ria preciso apontar, no caso, um dado que pudesse comprovar a disparidade de valores entre os bens jurídicos.

1.2.1 o argumento utilitarista

Isso deu margem para o argumento utilitarista18, baseado no número de pessoas afetadas e no saldo positivo de vidas humanas.

15 Para mais detalhes sobre os limites do estado de necessidade agressivo, veja­se SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Direitos de necessidade agressiva e deveres de tolerância. Revista Justiça e Sistema Criminal, Curitiba: FAE, v. 1, n. 1, p. 31 e ss., jul./dec. 2009.

16 Por exemplo, SCHÜNEMANN, Bernd. Rechtsfreier Raum und eigenverantwortliche Entscheidung. In: Neumann, Ulfrid; Hassemer, Winfried; Schroth, Ulrich (Ed.). Verantwortetes Recht. Die Rechtsphilosophie Arthur Kaufmanns. Leipzig: Franz Steiner Verlag, 2005. p. 145, 151 e ss.

17 Nesse sentido, ROBLES PLANAS, Ricardo. En los límites de la jusitificación... cit., p. 448.18 Nesse sentido a desumana proposta de Miguel Ángel Roig Davison e Carlos Alberto Ruiz

García (Roig Davison, Miguel Ángel; Ruiz García, Carlos Alberto. La valoración de la vida humana. Comentario a la Sentencia do Tribunal Constitucional Federal alemán de 15.02.2006 (BVerfG, 1. BvR 375/05 vom 15.02.2006, Absatz. Nr. /(1.156)). In Dret, Barcelona: Universidad Pompeo Fabra, n. 4, 2006), que converte valores jurídicos em meras fórmulas matemáticas para concluir que “a atuação do Estado frente ao possível sequestro de um avião por terroristas suicidas deve ser avaliada mediante o uso de uma análise de custo­ -benefício” (p. 17). Para alguns, como Isensee (ISENSEE, Joseph. Leben gegen leben. Das grundrechtliche Dilemma des Terrorangriffs mit gekapertem Passagierflugzeug. In: Pawlik,

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Merece destaque a posição que defende Tatiana Hörnle19, quem, de­pois de propor uma análise a partir de distintos pontos de vista – da vítima, do autor ou neutro –, e de combiná­los de distintos modos, conclui que se lhe pode permitir ao autor, “para resolver o dilema, centrar­se nas relações nu­méricas”, ou seja, para salvar um número maior de vítimas potenciais “esta­ria justificado um abate”. A autora compara o caso com o do médico que tra­balha em emergências com escassos recursos, que escolhe salvar o paciente com melhores possibilidades de salvamento entre muitos que se apresentam ao mesmo tempo para o socorro. Considera, pois, um caso de justificação por estado de necessidade20.

Também se decantaram por um critério quantitativo na colisão de vi­das, de forma mais geral, Henckel21 e Maurach22 e, especificamente frente ao concreto caso do abate de aviões, Domenech Pascual23, Roig Davison, Ruiz García24 e, também, Bohlander25.

Mas o argumento foi amplamente criticado na doutrina26.

Michael; ZACZYK, Heiner (Org.). Festchrift für Günther Jakobs zum 70. Geburtstag am *****26 Juli 2007. Koln­Berlin­München: Carl Heynemmans Verlag, 2007. p. 231), o utilitarismo é um argumento secundário que pode ter lugar onde “não há nenhuma prioridade ético­ -jurídica”, como entende ser o caso.

19 HÖRNLE, Tatiana. Matar para salvar muchas vidas... cit., p. 21.20 Idem, p. 25.21 HENCKEL, Heinrich. Der Notstand nach gegenwärtigem und künftigem Recht. München: Beck,

1932. p. 92.22 MAURACH, Reinhard. Kritik der Notstandslehre. Berlin: Carl Heynemmans Verlag, 1935.

p. 95 e ss.23 DOMENECH PASCUAL, Gabriel. ¿Puede el Estado abatir un avión con inocentes a bordo

para prevenir un atentado kamikaze? Revista de Administración Pública, Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, n. 170, p. 410 e ss., mayo/ago. 2006.

24 Roig Davison, Miguel Ángel; Ruiz García, Carlos Alberto. La valoración de la vida humana... cit.

25 BOHLANDER, Michael. In extremis – hijacked airplanes, “collateral damage” and the limits of criminal law. Criminal Law Review, London: Sweet & Maxwell, 2006. p. 587.

26 ROXIN, Claus. Strafrecht. Allgemeiner Teil I. 4. ed. München: C. H. Beck, 2006. p. 738­739; HIRSCH, Hans Joachim. Defensiver Notstand gegenüber ohnehin Verlorenen. In: HETTINGER, Michael; HILLENKAMP, Thomas (Ed.). Festschrift für Wilfried Küper zum 70. Geburtstag. Heidelberg: Müller, 2007. p. 159; ARCHANGELSKIJ, Alexander. Das Problem des Lebenotstandes am Beispiel des Abschusses eines von Terroristen entführter Flugzeuges. Berlin: Berliner Wissenschafts-Verlag, 2005. p. 32 e ss.; KINDHÄUSER, Urs. Strafrecht. Allgemeiner Teil. 4. ed. Baden­Baden: Nomos, 2009. p. 156; MITSCH, Wolfgang. Luftsicherheitsgesetz

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A crítica é procedente.Ainda que o bem jurídico vida seja ponderável, não o será em compa­

ração com outras vidas, mas tão somente frente a outros bens jurídicos.Não se pode quantificar vidas27 nem sequer estabelecer valores a elas

segundo números. Além disso, há a questão da incerteza do resultado quan­titativo, porque nem sempre esse será evidente, à vista de que se trata de uma causalidade hipotética acerca do resultado salvado, ou seja, a respeito de quantas pessoas seriam atingidas no solo.

Importa notar que se vai atribuir responsabilidade pelo abate do avião, o que significa que esse não se atingiu o alvo, pelo que, em muitos casos, não será possível afirmar, com segurança, o número de mortes no solo que teria ocorrido, afinal, o alvo é conhecido e é possível realizar avisos para que as pessoas saiam do local.

Há, ademais, outra variável: as eventuais dúvidas a respeito do alvo escolhido pelos terroristas. O desconhecimento deste torna a hipótese quan­titativa um mero exercício fútil de adivinhação.

Assim só em pouquíssimos casos, onde haja segurança sobre qual seria o alvo e hajam evidências da impossibilidade de que o número de pessoas em risco no solo fosse superior aos do avião, seria possível falar de “saldo positivo de vidas”.

– Die Antwort des Rechts auf den “11, September 2001”. Juristische Rundschau, München: De Gruyter, n. 7, p. 277, jul. 2005; RENZIKOWSKI, Joachim. Notstand und Notwehr. Berlin: Dunker & Humblot, 1994. p. 202 e ss.; LADIGES, Manuel. Flugzeugabschuss auf Grundlage des übergesetzlichen Notstandes? Verfassungs – und befehlsrechtliche Beurteilung. Neue Zeitschrift für Wehrrecht, Koln: Wolters-Kluwer, n. 50, p. 12, 2008; JESCHECK, Hans­Heinrich; WEIGAND, Thomas. Tratado de Derecho penal. 5. ed. Trad. Miguel Olmenedo Cardenete. Granada: Comares, 2002. p. 387; JÄGER, Christian. Die Abwagbarkeit menschlichen Lebens im Spannungsfeld von Strafrechtsdogmatik und Rechtphilosophie. Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft, Berlin: De Gruyter, n. 115, p. 765, 2003; GÜNTHER, Hans-Ludwig. Defensivnotstand und Tötungsrecht, In: BÖse, Martin; STERNBERG­LIEBEN, Detlev (Org.). Grundlagen des Straf – uns Strafverfahrenrechts: Festschrift für Knut Amelung zum 70 Geburtstag. Berlin: Dunker & Humblot, 2009. p. 152; JEROUSCHEK, Gunter. Nach dem 11 September 2001: strafrechtliche Überlegungen zum Abschuss eines von Terroristen entführten Flugzeugs. In: AMELUNG, Knut (Ed.). Strafrecht, Biorecht, Rechtsphilosophie. Festschrift fur Hans-Ludwig Schreiber zum 70. Geburtstag. Heildelberg: Muller, 2003. p. 185; MARTÍNEZ CANTÓN, Silvia. Nuevas consideraciones... cit., p. 409-411 e 441.

27 No mesmo sentido MITSCH, Wolfgang. Luftsicherheitsgesetz... cit.

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Ou seja, o argumento utilitarista, além de seu conteúdo questionável, ainda padece de uma grave incerteza a respeito de seus próprios funda­mentos.

1.2.2 a doutrina do duplo efeito

A doutrina do duplo efeito é simplesmente a consideração de que deri­vam de uma só e determinada ação, dois efeitos, um bom e outro mau.

Há quem28 defenda que a situação demanda um cálculo entre mortos seguros e vivos salváveis. O argumento se funda na teoria do duplo efeito: considera­se que as pessoas que estão no avião já estão mortas enquanto que os que estão em terra têm melhores opções de sobreviver se é que se abate o avião. Resulta, pois, que a morte dos passageiros é um dano colateral e ine­vitável.

Troca­se o adiantamento da morte de alguns para preservar a vida de outros.

O fundamento desse ponto de vista é consequencialista: é possível fa­zer algo mau sempre e quando a utilidade global do ato, considerando o que é sacrificado e o que é salvado, seja claramente maior.

O problema é que a doutrina do duplo efeito reserva uma situação ex­cepcional para o caso da causação intencional do mal.

O princípio do duplo efeito reúne quatro condições: a ação deve ser boa ou, no mínimo, não deve de ser má. Segundo algumas interpretações não ser má é equiparável a indiferente ou permitida; a ação não pode buscar produzir resultados maus, nem mal algum; o bom resultado não deve ser consequência do mau, ou seja, não se deve usar um mal como meio para obter algum resultado e o resultado final deve ser proporcionar o bem, e as metas positivas devem ser maiores que os males acumulados como conse­quência dos atos.

Mas é preciso considerar que, ainda que na segunda metade do sécu­lo XX o princípio do duplo efeito volte a ser considerado uma ferramenta filosófica para o debate da responsabilidade pelas consequências previsí­veis das ações e omissões, a ponto de tomar como base um balanço dessas

28 WALZER, Michael. Guerras justas e injustas. Un razonamiento moral con ejemplos históricos. Barcelona: Paidós, 2001. p. 221 ss.

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consequências, o voltar de olhos para a origem tomista29 do princípio revela que sua preocupação não é uma fórmula justificante ou exculpante de más ações; senão, pelo contrário, a afirmação da necessidade de salvaguarda da dignidade da pessoa humana, para proibir certas condutas por seus efeitos intencionais imediatos, com independência das consequências benéficas que eventualmente produzam.

Por isso, Tatiana Hörnle30 opõe­se a essa solução mediante um duplo argumento.

Em primeiro lugar, sustenta que justamente a ideia de intenção em Tomás de Aquino era mais ampla de que entendemos por dolo, bastando que fossem as consequências causadas conscientemente, para exclui­las da causalidade e, portanto, gerar responsabilidade e isso é precisamente o que ocorre neste caso.

Com efeito, não se pode afirmar que a ação não busca a produção do resultado mau, nem que o bom resultado não seja consequência necessária do mal praticado.

Além disso, aponta que ainda que um eventual acusado alegasse que se encontrava diante de um difícil conflito de interesses, sua afirmação de que pensava estar obrigado a proteger as pessoas no solo, ameaçadas de morte, é duvidoso tendo em conta a relação entre o autor e as vítimas. Isso porque, certamente, o dever geral de socorro incumbiria ao representante do Estado, mas o abate poderia ser realizado com base em uma decisão própria. Ou seja, caberia exigir um ajuste entre a orientação subjetiva e a posição de garante, para definir a quem compete a gestão do risco e sua evitação.

1.2.3 a ideia de comunidade de perigo

Dentro do estado de necessidade, a doutrina identificou um grupo de casos que se chamou “comunidade de perigo”, com o qual se identifica casos onde as duas partes envolvidas no estado de necessidade estão igualmente em perigo – no caso concreto, perigo de morte – e a única opção para salvar um é o sacrifício do outro.

29 A doutrina do duplo efeito foi cunhada por São Tomás de Aquino e elaborada, posteriormente, pelos teólogos salmanticenses do século XVI.

30 HÖRNLE, Tatiana. Toten, um viele Leben zu retten. Schwierige Notstandsfalle aus moralphilosophischer und strafrechtlicher Sicht. In: Herzberg, Rolf Dietrich; PUTZE, Rolf (Ed.). Strafrecht zwischen System und Telos: Festschrift für Rolf Dietrich Herzberg zum siebzigsten Geburtstag am 14. Tübingen: Mohr Siebeck, februar 2008. p. 560­561.

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Não se trata de salvar um número mais elevado de vítimas, mas de salvar parte do todo que tende ao resultado fatal.

A ideia é que o comportamento estaria justificado porque seria um pa­radoxo que a regra de preservação absoluta da vida levasse a produzir um resultado pior contra as vidas em perigo31.

Mas a hipótese sob análise não se inclui neste grupo de casos, simples­mente porque quem atua ao amparo do estado de necessidade não necessa­riamente, inclusive quase nunca, será aquele que está em uma posição de ter sua própria vida ameaçada.

Uma coisa é a decisão do alpinista que sabe que vai morrer além dos demais que estão pendurados na corda, salvo que ele corte uma parte dela que vai servir para sua salvação junto com alguns dos demais, mediante o sa­crifício de outros. Outra coisa muito distinta é que um terceiro tome a decisão do sacrifício de uns, sem estar ele mesmo em posição ameaçada.

Além disso, no caso do abate do avião, ao contrário de outros casos onde os resultados possíveis já estão completamente definidos, há a questão de que não está completamente definido qual é o interesse que se vai prote­ger, ainda que esteja definido o interesse sacrificado, pelo que deve existir um critério complementar a respeito do que se deve preferir proteger32.

Neumann33 propõe que a solução estaria na distinção entre os dois sub­grupos de casos de comunidade de perigo: aqueles nos quais há situações de salvação simétricas e aqueles onde há situações de salvação assimétricas.

Nas situações de salvação simétricas, duas partes estão em situação de perigo de produção de um idêntico resultado, mas não se pode salvar ambas ao mesmo tempo. Nas situações de perigo assimétricas, das duas partes em perigo só uma é salvável.

Para Neumann34, em situações de perigo assimétricas, está justificada a conduta de quem salva o salvável, com fundamento no dever de solidarie­dade, porque é inadmissível impor a exigência de solidariedade para com o sacrificado somente para um prolongamento insignificante de sua vida.

31 Cf. ROBLES PLANAS, Ricardo. En los límites de la jusitificación... cit., p. 451.32 Idem, p. 452.33 Veja­se comentário de Ulfrid Neumann no § 34, número 76, en Albrecht, Hans­

­Jörg; Kindhäuser, Urs; Neumann, Ulfrid e Paeffgen, Hans­Ullrich. Nomos-Kommentar Strafgesetzbuch. Baden­Baden: Nomos, 2005, § 34, nm. 76.

34 Veja­se idem, § 34, nm. 76.

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O argumento pode ser consistente de modo geral, mas manca no caso específico. O problema está em saber o que é ou não insignificante no caso do abate de aviões. E que o que pode parecer insignificante em termos de tempo – prolongamento da vida dos passageiros em alguns minutos – pode ser muito significativo em termos de conteúdo. Por exemplo: um dos passa­geiros é um cientista que trata de passar por uma mensagem de seu telefone celular, para alguém em terra, fórmulas decisivas para a elaboração de um medicamento destinado a curar uma grave doença. Seria possível chamar tal prolongamento de vida de insignificante? Ou, ao contrário, no intento de dar­-lhe tempo suficiente, com o risco de tornar inevitável o choque com o solo, seria possível chamar o sacrifício das pessoas no solo de insignificante?

Ou seja: não é possível afirmar que uns minutos desta ou daquela vida tenham menos valor que o tempo de outras vidas. Ao menos, não como regra geral. No limite, inclusive, se estaria arriscando chegar ao perigoso tema das vidas sem valor de vida35.

1.2.4 a ideia do consentimento presumido

Ainda no plano da justificação, alguns autores aventaram a questão do consentimento36, como fórmula de licitude, uma vez que os passageiros sabem que vão perder a vida, pelo que se prestariam a salvar aos que estão no solo. Mas essa proposição parte de um consentimento presumido37, por­que não há segurança de que todos os passageiros fossem assentir com a proposta38.

35 Veja­se BINDING, Karl; HOCHE, Alfred. La licencia para la aniquilación de la vida sin valor de vida. Trad. Bautista Serigós. Buenos Aires: Ediar, 2009.

36 KÖHLER, Michael. Die objektive Zurechnung der Gefahr als Voraussetzung der Eingriffsbefungnis im Defensivnotstand. In: Hoyer, Andreas (Org.). Festschrift für Friedrich- -Christian Schroeder zum 70. Geburtstag. Heidelberg: C. F. Müller, 2006. p. 259.

37 Isso é admitido, sob distintos argumentos, por exemplo, por HOCHHUT, Martin. Militärische Bundesintervention bei inlänsdiscem Terrorakt. Verfassungsänderungspläne aus Anlaß des 11. September 2001. Neue Zeitschrift für Wehrrecht, Köln: WoltersKluwer, n. 44, p. 166, nota 44, 2002; WINCKLER, Daniela. Verfassungsmäßigkeit des Luftsicherheitsgesetzes. Neue Zeitschrift für Verwaltungsrecht, München­Frakfurt: Beck, n. 25, p. 537, 2006.

38 Nesse sentido a observacão de HÖRNLE, Tatiana. Matar para salvar muchas vidas... cit., p. 5.

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Para Hirsch39, os consentimentos dos passageiros e da tripulação limi­ta­se àqueles que são habituais e próprios de qualquer voo e que não pode incluir, por certo, o abate doloso do avião.

Ademais, como se resolveria, no caso, um eventual conflito de opiniões entre os envolvidos?

Ou seja, que solução se daria para o caso em que só parte dos passagei­ros efetivamente consente com o abate?

A decisão sobre a licitude não admitiria uma variável quantitativa nem qualitativa de opiniões e, no plano concreto, sequer seria possível alcançar o conteúdo delas.

1.2.5 o contratualismo extremo: a entrega da vida dos passageiros

Levando o contratualismo a extremos não compatíveis com as visões contemporâneas de tal fórmula e nem sequer com algumas das próprias vi­sões clássicas do tema40, parte da doutrina pretendeu justificar o dever de sacrifício das vidas dos passageiros com base em um suposto dever de to­lerância a respeito do sacrifício de bens jurídicos frente às necessidades da comunidade.

Merkel41 sustentou, inicialmente, que a sociedade poderia exigir que os passageiros entregassem o que restava de sua vida a favor da comunidade. Mas, mais tarde42, voltou atrás, afirmando que os passageiros não têm o de­ver jurídico de se deixar matar.

39 HIRSCH, Hans Joachim. Defensiver Notstand gegenüber... cit., p. 159.40 Em nossos dias, a ideia de contratualismo não implica mais em entregar­se completamente

alguém à disposição do Estado, mas tão somente entregar o mínimo de sua liberdade para garantir todo o resto da liberdade e dos direitos (Sobre isso, em mais detalhes me posicionei em BUSATO, Paulo César. Direito penal. Parte geral... cit., p. 22 e ss.). No próprio modelo clássico de contratualismo, nem todos os autores aceitavam a completa entrega das pessoas a favor do Estado, como defendia, por exemplo, Rousseau (ROSSEAU, Jean­Jacques. O contrato social. Trad. Antonio de Padua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 43­45). Em sentido contrário já se posicionava, por exemplo, BECCARIA, Marques de (Cesare de Bonesana). Dos delitos e das penas. Trad. J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996. p. 29.

41 MERKEL, Reinhard. Wenn der Staat Unschuldige opfert. Die Zeit, p. 33 e ss, 8 jul. 2004.42 MERKEL, Reinhard. § 14 Abs. 3 Luftsicherheitsgezetz: Wann und darf der Staat Töten?

Über taugliche und untaugliche Prinzipen zur Lösung eines Grundproblems des Rechts. Juristen Zeitung, Tübingen: Mohr Siebeck, n. 8, p. 373­385, 20 apr. 2007.

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Ninguém deve estar obrigado a suportar o sacrifício de sua própria vida.

Além disso, há um profundo déficit de realidade na ideia de afetação de toda a comunidade, que, de fato, em quase nenhum caso será alcançada de forma integral. Salvo que se interprete como prejuízo a toda a comunidade o simples ato de violar a norma, o que levaria, por outro lado, a uma amplitude exagerada dos casos que seriam passíveis de incluir no rol, tornando inútil o requisito.

1.2.6 conclusão provisória

Como resultado, nota-se que todos os intentos de justificação pelo es­tado de necessidade implicam o problema de fundamentar que a conduta, em princípio desaprovada, porque típica, realiza-se em uma situação de tal excepcionalidade que perde o caráter de conduta penalmente desaprovada43.

De fato, como fórmula geral, as justificações são autorizações para que o sujeito atue na proteção de seus próprios bens jurídicos ou de bens jurídicos alheios em situação de perigo urgente, de forma a substituir a atuação estatal.

A existência das justificações funciona como verdadeira autorização para o particular atuar dentro da licitude. Isso significa que o Estado, poden­do atuar no lugar do indivíduo, teria feito o mesmo.

Trata-se de uma regra de afirmação de um direito a matar.Mas no caso do abate de aviões são precisamente os representantes do

próprio Estado os que atuam sob a necessidade.Parece, isso sim, que está latente em todas as perspectivas justificantes

uma confusão entre a aprovação jurídica de uma conduta e os deveres de tolerância a respeito de seus efeitos.

Nem todas as condutas toleráveis são aprovadas mediante um juízo prévio e geral. O fato de que alguém, na pretensão de salvar­se ou de salvar a terceiro, sacrifique a vida de outrem parece ser algo que, desde o ponto de vista jurídico, pode que não seja punível, mas jamais poderá ser entendido como adequado ao direito44.

Assim, parece mais correto propor o problema no âmbito das excul­pações.

43 Nesse sentido, ROBLES PLANAS, Ricardo. En los límites de la jusitificación... cit., p. 461.44 Nesse sentido, MARTÍNEZ CANTÓN, Silvia. Nuevas consideraciones... cit., p. 413.

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1.3 As soluções exculpantes e seus problemas

O plano das exculpações permite um melhor ajuste de alguns dos as­pectos dogmáticos do caso concreto45, afinal, o atuar em estado de necessida­de exculpante não é atuar de modo juridicamente aprovado, mas sim atuar à margem da justiça, de modo excepcionalmente perdoável, segundo as cir­cunstâncias concretas do caso. A ação de sacrifício de um bem jurídico não pode ser valorada no plano de discussão sobre se ela é justa ou injusta, mas sim se é evitável ou inevitável.

Primeiramente, ao ser uma atuação exculpada – uma permissão fraca –, permite que se preserve a responsabilidade dos indutores e dos que, me­diante coação, obrigaram ao abate do avião, transferindo­lhes a responsabi­lidade pelo resultado46, uma vez que se reconheça uma situação de coação moral irresistível.

Assim, os responsáveis pelo abate não são os membros do Estado – nem quem deu a ordem nem quem a executou –, mas os próprios terroristas, os quais, se atuaram em conjunto com alguém que não está no voo, a esse seria possível imputar também o resultado (já que os que estão no voo mor­rerão na queda ou no abate).

Ademais, a conduta segue sendo, a princípio e de forma geral, repro­vável, salvo excepcionalmente no caso concreto, o que obriga a ter em conta os específicos aspectos do caso, ou seja, o grau de probabilidade de que efe­tivamente o avião vai chocar­se em um alvo, com a morte de muitas pessoas; as outras opções eventualmente existentes como alternativas ao abate e um enorme número de variáveis.

Mas, ainda assim, a questão tem outras implicações.A primeira delas é que se é exculpada a decisão pelo abate do avião,

não será, necessariamente, a contrária, ou seja, a omissão de fazê­lo.Por outro lado, não parece correto que, posto na duvidosa condição

de adivinhar se vai ou não o avião acertar no alvo caso não haja intervenção para derrubá­lo, aquele que decida por não fazê­lo seja merecedor do castigo.

De todo modo, há distintas perspectivas dentro da ideia de exculpação.

45 Nesse sentido, por exemplo, ARCHANGELSKIJ, Alexander. Das Problem des Lebenotstandes... cit., p. 77 e ss.

46 No mesmo sentido a proposta de ROBLES PLANAS, Ricardo. En los límites de la jusitificación... cit., p. 473.

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1.3.1 A exculpação supralegal baseada no melhor interesse da comunidade

Pawlik47, com visão radical a respeito da relação indivíduo-Estado, de corte mais reducionista, baseado em uma perspectiva sistêmica de expectati­vas mútuas, chegou a sustentar uma posição de garante que poderia chegar a exigir o sacrifício da vida em benefício do interesse da comunidade.

Para o autor, estaria autorizado o abate de aviões uma vez cumpridos três requisitos: a presença de uma ameaça à comunidade jurídica; um balan­ço positivo entre custos e utilidade, tendo em conta que a vida dos passagei­ros está, em todo caso, perdida; e se pode regulamentar uma indenização para as famílias das vítimas48.

A tese corresponde à opinião geral do autor oferecida em outro traba­lho específico sobre uma teoria geral do estado de necessidade exculpante, onde sustenta que

a exculpação de uma intervenção em estado de necessidade só entra em consideração se os interesses enquanto sujeito de quem intervém periga­vam de um modo normativamente considerável. [...] Portanto, o invocar deste instituto jurídico estaria, a princípio, excluída onde se lhe contrapo­nha a primazia das instituições.49

Ou seja, segundo sua proposta, as instituições estão acima dos indi­víduos. E como, no caso, o Estado é quem atua, o faz segundo um interesse prioritário da comunidade.

Nesta perspectiva se situa toda a visão político-criminal equivocada que tem por centro da organização jurídica a norma em detrimento do ho­mem e que leva o autor a exigir, no plano geral, o dever dos cidadãos de portarem­se como heróis50.

47 PAWLIK, Michael. § 14 Abs. 3 des Luftsicherheitsgesetzes – ein Tabubruch? Juristen Zeitung, Tübingen: Mohr Siebeck, n. 59, p. 1053, 2004.

48 Idem, p. 1054 e ss.49 PAWLIK, Michael. Una teoría del estado de necesidad exculpante. Bases filosófico-jurídicas

e configuración dogmática. In Dret, Barcelona: Universidad Pompeo Fabra, n. 4, p. 18, 2015.50 De modo parecido o argumento crítico de ROBLES PLANAS, Ricardo. En los límites de la

jusitificación... cit., p. 457-458.

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Tatiana Hörnle51, acertadamente, refere que, quando seres humanos são sacrificados por interesses coletivos, tratam-se de verdadeiros homicídios que lesam a própria dignidade humana das vítimas.

1.3.2 Segunda conclusão provisória

Não obstante as soluções exculpantes em geral tampouco possam dar lugar a uma completa solução, ao menos uma delas, por uma particularidade muito especial, poderia, quiçá, oferecer uma saída para o caso.

Refiro-me à contribuição de Roxin, que converteu a culpabilidade em responsabilidade, pela adição da discussão a respeito da necessidade de pena, com todas as ressalvas que certamente se possam fazer à falta de clare­za de tal solução.

Se estamos de acordo que, ainda que não se possa refutar a ilicitude da conduta, não parece correto impor um castigo para uma decisão razoável, esse será o caminho a seguir.

Roxin52 conecta a culpabilidade à necessidade de pena, para formar uma categoria que denomina responsabilidade.

Ainda que não necessariamente seja obrigatório concordar com a po­sição dogmática da necessidade de pena – seja na ideia de responsabilidade como quer Roxin, seja na pretensão de punibilidade, como parece mais corre­to53 –, o certo é que o eventual abate do avião, presentes certas circunstâncias, não se castiga por falta de necessidade de pena.

2 aS iNovaÇõeS Sobre a culpabilidade Na teSe de roxiN. uma coNexÃo eNtre teoria do delito e teoria da peNa

Como é de todos conhecido, uma das principais contribuições de Roxin ao desenvolvimento do sistema de imputação foi sua completa revolução no estudo sobre culpabilidade54.

51 HÖRNLE, Tatiana. Matar para salvar muchas vidas... cit., p. 19.52 ROXIN, Claus. Kriminalpolitik und Strafrechtssystem. Berlin-New York: Walter de Gruyter,

1973. p. 33 e ss.53 Veja­se o conteúdo de tal elementar do conceito de delito detalhadamente em ORTS

BERENGUER, Enrique; GONZÁLEZ CUSSAC, Jose Luis. Compendio... cit., p. 201 e ss. No Brasil, BUSATO, Paulo César. Direito penal. Parte geral... cit., p. 577 e ss.

54 Algum autor chega a qualificar a culpabilidade o “nó górdio no pensamento e na obra” de Roxin. Nesse sentido, DEMETRIO CRESPO, Eduardo. Culpabilidad y fines de la pena: con

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Até o final do século XX seguia dominante na doutrina55 uma ideia geral de culpabilidade associada, em maior ou menor medida, a um pressu­posto lógico de liberdade de decisão por parte do sujeito culpável. Contra o problema lógico que supõe uma presunção de liberdade, de maneira geral, apontava­se para a ideia de que outra pessoa, nas mesmas circunstâncias que o autor, teria podido atuar de outro modo e que nisso residia um desvalor normativo bastante para afastar-se de concepções vinculadas ao livre arbí­trio. Em todas as fórmulas estava presente uma concepção normativa de uma reprovação.

Naturalmente, essa concepção material de culpabilidade como repro­vação, tomada a partir da ideia geral de poder atuar de outro modo a partir de como o faria uma pessoa distinta, supõe o problema de que se está ava­liando pessoa distinta do próprio autor para o estabelecimento de um juízo de reprovação pessoal, em uma evidente contradição. É mais. Esta terceira pessoa sequer existe, é tão só um standard normativo, de caráter absoluta­mente descritivo, que pretende abarcar todas as pessoas a partir da mesma medida. Isso igualmente traduz uma base geral para uma reprovação indivi­dual, que é, no mínimo, bastante questionável.

No começo dos anos 70 do século XX56, Roxin propôs tratar o terceiro elemento do conceito de delito não mais como culpabilidade, mas como res-ponsabilidade (Verantworlichkeit), a partir de relacionar a própria ideia de cul­pabilidade com os fins preventivos da pena57. Para ele, “a responsabilidade depende de dois dados que devem ser acrescidos ao injusto: da culpabilidade do sujeito e da necessidade preventiva de sanção penal, que se deve deduzir da lei”58.

especial referencia al pensamiento de Claus Roxin. Ciencias Penais, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 8, p. 9, jan. 2008.

55 O dado está apontado por SCHÜNEMANN, Bernd. La culpabilidad: el estado de la cuestión. In: ROXIN, Claus; JAKOBS, Günther; SCHÜNEMANN, Bernd; FRISCH, Wolfgang; KÖHLER, Michael. Sobre el Estado de la Teoría del delito. Trad. David Felip I Saborit e Ramón Ragués I Vallés. Barcelona: Civitas, 2000. p. 93.

56 O tema vai referido desde o próprio ROXIN, Claus. Kriminalpolitik... cit. Há edicão espanhola: ROXIN, Claus. Política crimal y el sistema del Derecho penal. Trad. Francisco Muñoz Conde. Barcelona: Bosch, 1972; e brasileira: ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Revan, 2000.

57 SCHÜNEMANN, Bernd. La culpabilidad: el estado de la cuestión... cit., p. 95.58 ROXIN, Claus. Strafrecht. Allgemeiner Teil... cit., p. 852.

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Roxin59 parte de que a pena não se justifica, em nenhum caso, pela re­tribuição, cuja função fica exclusivamente em demarcar o limite máximo do castigo. Por isso, se a função da pena se demarca por razões preventivas, não basta que, no caso concreto, o agente tenha capacidade para ser destinatário da norma. Ou seja, não é suficiente a presença do que tradicionalmente se enten­de por culpabilidade, senão que, para a imposição do castigo, é preciso exigir­­se algo mais: a indicação preventiva do castigo.

Com isso, as causas de exculpação se convertem não só em situações nas quais falta capacidade de motivação normativa, mas, também, consti­tuem casos nos quais a pena é um castigo preventivamente contraindicado.

Ainda assim, igualmente, defende que “a pena pressupõe sempre cul­pabilidade, de modo que nenhuma necessidade preventiva de penalização, por muito grande que seja, pode justificar uma sanção penal que contradiga o princípio de culpabilidade”60.

Preserva-se a exigência de culpabilidade como limite mínimo para a imputação, ao tempo em que não se admite que exigências retributivas deter­minem a existência de responsabilidade.

Com isso, vai mais além do simples conceito de reprovabilidade, que reproduz tão somente uma valoração incompleta, que se supera por meio da adoção de fundamentos político-criminais das modernas teorias da pena.

Como bem refere Roxin:

A valoração já não refere somente à questão de se é possível formular uma reprovação da culpabilidade contra o sujeito, mas é um juízo sobre se, des­de pontos de vista jurídico-penais, deve-se torná-lo responsável por sua conduta. A reprovabilidade é uma condição necessária, mas ainda não su­ficiente da responsabilidade; é preciso acrescentar a necessidade preventi­va de sanção.61

Com isso, finalmente se preenche a culpabilidade com um conteúdo material, que ultrapassa o simples juízo de desvalor sobre a atuação ou não atuação do sujeito, somando­se o fundamento da pena que é uma dimensão unificadora das perspectivas exclusivamente preventivas.

59 Idem, p. 853.60 Ibidem.61 Idem, p. 858.

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A lógica é que se as penas têm funções preventivas, sua aplicação não pode depender só da afirmação da culpabilidade, mas é também da existên­cia de uma necessidade preventiva da própria pena.

Com isso, se a eventual aplicação da pena não corresponde, desde o ponto de vista preventivo especial ou preventivo geral, a uma necessidade de castigo, a consequência é que a própria pena carece de justificação teórica e social, pelo que não pode ser imposta.

Por isso, inclusive, entende que melhor seria falar não simplesmente de culpabilidade senão de responsabilidade.

À margem do que se possa propor a respeito do que são os fundamen­tos da pena, nos quais, inclusive, se discrepa do autor62, e mesmo a enorme quantidade de consequências que pode ter a proposição da responsabilidade, o fato de acrescentar a necessidade de pena como elemento imprescindível para a afirmação do delito oferece ao caso que aqui se debate um novo e pro­missor caminho.

Naturalmente, uma mudança de perspectiva tão larga trouxe muitas consequências para a ciência penal e mais especificamente para a concep­ção tradicional de culpabilidade, entre as quais cabe destacar ao menos três fundamentais: a superação definitiva das relações entre culpabilidade e livre arbítrio, que a simples figura da reprovação não deu conta de fazer; o desen­volvimento de uma perspectiva de associação entre teoria da pena e teoria do delito; e, finalmente, as propostas absolutamente novas no campo da ex­clusão de culpabilidade (responsabilidade ou simplesmente necessidade de pena), em especial nos chamados hard cases. Este último ponto é o que especi­ficamente interessa neste trabalho.

2.1 as inovações de roxin a respeito das causas de exclusão da culpabilidade

A proposta de Roxin a respeito da responsabilidade e sua conexão com os fins da pena gerou espaço para várias discussões em distintos temas como

62 Sobre minha posição a respeito do fundamento da pena como o controle social do intolerável, veja­se BUSATO, Paulo César. Direito penal. Parte geral... cit., p. 805 e ss.

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o excesso na legítima defesa63, a evitabilidade no erro de proibição64 e as si­tuações ao redor do estado de necessidade exculpante65.

Ao situar as considerações preventivas na estrutura do conceito de res-ponsabilidade, Roxin admite a existência de causas de exclusão da culpabilidade (Schuldausschiebung) que tem a ver com a falta de imputabilidade ou o erro de proibição e as causas de exculpação (Entschuldigungsgründe) que estão relacio­nadas com a necessidade preventiva66, para caracterizar uma culpabilidade diminuída por critérios político criminais, mas nega que isso possa represen­tar alguma classe de divisão interna da categoria de responsabilidade, inclusive porque a todos os casos de uma e de outra devem acudir os filtros atributivos preventivos gerais67.

Por um lado, sustenta68 que a culpabilidade se afirma quando o agente, ao realizar o fato, esteve disponível para receber o chamado da norma, se­gundo seu estado mental e anímico, que são fenômenos verificáveis empiri­camente que compõem a capacidade de conduzir­se normativamente.

63 Veja-se, sobre isso, ROXIN, Claus. Über den Notwehrexzeß. Festschrift für Friedrich Schaffstein zum 70. Geburtstag am 28. Göttingen: Schwartz, juli 1975. p. 117; ROXIN, Claus. Strafrecht. Allgemeiner Teil... cit., p. 992 e ss.

64 ROXIN, Claus. Strafrecht. Allgemeiner Teil... cit., p. 944 e ss. No Brasil, sobre um dos temas derivados, especificamente a dúvida no erro de proibição, veja-se LEITE, Alaor. Dúvida e erro sobre a proibição no direito penal. São Paulo: Atlas, 2013.

65 Sobre isso, veja-se ROXIN, Claus. “Schuld” und “Verantworlichkeit” als strafrechtliche Systemkategorien. In: Festchrift für Henkel, 1974. p. 182 e ss.; ROXIN, Claus. Culpabilidad y prevención en Derecho penal. Trad. Francisco Muñoz Conde. Madrid: Reus, 1981; ROXIN, Claus. Strafrecht. Allgemeiner Teil... cit., p. 987 e ss.

66 ROXIN, Claus. Strafrecht. Allgemeiner Teil... cit., p. 852.67 Idem, p. 876-878. Esses mesmos filtros são identificados por Figueiredo Dias como o

fundamento de uma nova categoria, da punibilidade e não agregadas à culpabilidade sob forma de “responsabilidade” como quer Roxin (Veja­se DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal. Parte geral. Coimbra: Coimbra, t. I, 2004. p. 619 e ss.). Também defendendo que as considerações sobre necessidade de pena pertencem a uma categoria a parte, denominada “pretensão de punibilidade” (VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos... cit., p. 487; ORTS BERENGUER, Enrique; GONZÁLEZ CUSSAC, Jose Luis. Compendio... cit., p. 201 e ss.; MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Derecho penal económico y de la empresa. Parte General. 4. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2014. p. 641 e ss.). Esta última opção parece a mais promissora. Por isso, a incorporei em meu trabalho: BUSATO, Paulo César. Direito penal. Parte geral... cit., p. 577 e ss.

68 ROXIN, Claus. Strafrecht. Allgemeiner Teil... cit., p. 868.

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Por outro lado, e em complemento das exigências de afirmação da res­ponsabilidade, é preciso realizar uma análise posterior de verificação da ne­cessidade preventiva de pena.

Roxin propõe que o sistema político-criminal de imputação não é com­posto de elementos isolados. As categorias do delito são simplesmente ex­pressões valorativas de diferentes momentos de um mesmo fato, que estabe­lecem distintos matizes de relevância jurídico-penal69.

Ainda assim, pode­se dizer que as considerações que têm a ver com fe­nômenos verificáveis empiricamente que compõem a capacidade de condu­zir­se normativamente não incluem as hipóteses classicamente tratadas como casos de inexigibilidade que supõem; ao contrário, uma análise estritamente normativa.

A exigibilidade de conduta conforme o direito se discute, então, fora da culpabilidade stricto sensu, segundo critérios de necessidade preventiva de castigo.

Assim, segundo o modelo proposto por Roxin, a ausência de castigo por inexigibilidade deriva de que não se considera que, em determinadas situações extremas, existam necessidades de prevenção especial ou geral que justifiquem a imposição de sanção penal.

3 aS coNSeQuêNciaS da aplicaÇÃo da teSe de roxiN ao eSpecífico caSo do SeQueStro de aviõeS

O critério de Roxin foi aplicado por ele ao tema do abate dos aviões sequestrados em um artigo de ampla repercussão70.

Em uma abordagem extremamente ajustada do caso, Roxin começa por negar a existência de um dever de sacrifício da vida para salvar outro, bem como por afirmar que não é sustentável nenhuma exceção a tal regra71. Ademais, como é óbvio, o dever de proteção que tem o Estado a respeito das

69 Idem, p. 233.70 ROXIN, Claus. Der Abschuss gekaperter Flugzeuge zur Rettung von Menschenleben.

Zeitschrift für Internationale Strafrechtsdogmatik, n. 6, 2011.71 Idem, p. 553. No mesmo sentido, Tatjana Hörnle sustenta: “Nossa praxis moral conhece

somente deveres de solidariedade muito restritos. Não há um dever de sacrificar a própria vida para a salvação de outros seres humanos, nem sequer nas relações de cuidado mais estreitas. Se os pais fizessem tal sacrifício por seu filho, isso se descreveria como um fato heróico que impõe veneração, mas não se postularia um dever nesse sentido” (HÖRNLE, Tatiana. Matar para salvar muchas vidas... cit., p. 15­16).

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vidas de quem está no solo não é distinto do dever de proteção que tem a res­peito dos passageiros do avião72 e a simples situação de perigo destes últimos não isenta o Estado de seu dever a respeito deles.

Evidentemente, os casos de justificação consistem não só em autori­zações para atuar, senão em verdadeiras aprovações de condutas ante o or­denamento jurídico, com sentido geral, porque elas são ocasiões nas quais o particular atua em uma situação de emergência na qual não pode esperar pela intervenção do Estado quem, se estivesse presente, atuaria da mesma forma.

Roxin observa que o ingresso do Estado na vida dos cidadãos deve sempre respeitar “barreiras deontológicas”73. Nesse ponto, indica o acerto do Tribunal alemão em reconhecer que, segundo a regra contestada, “os passa­geiros não são respeitados como sujeitos de direitos, como pessoas, mas são tratados como objetos utilizados na salvação de outros”74.

Assim, uma vez que não é possível pretender estabelecer uma regra ge­ral de justificação para esses casos sem ultrapassar tal ponto, nem conceder­­lhes a possibilidade de que constituam uma exceção à regra aplicável, não resta mais remédio que afastar a possibilidade de justificação.

Roxin também enfrenta a proposição que defende que a situação re­vela um espaço livre de direitos75 e que isso bastaria para afastar o castigo. Ele sustenta, criticamente, que não é necessário acudir a uma fórmula como essa, com seus flagrantes problemas de legalidade, se é possível discutir o tema dogmaticamente em termos de exclusão da responsabilidade76.

Afastadas todas as demais possibilidades, que, para Roxin, não podem suportar um exame crítico, o autor77 sustenta que a única forma de deixar de aplicar penas para esses casos é o recurso à categoria da exclusão de respon-sabilidade por falta de exigencia preventiva de pena, proposta em seu sistema de imputação.

72 Com argumento contrário, sustentando existir uma diferença entre a dignidade humana de uns e outros, com diferentes obrigações do Estado a respeito deles, ARCHANGELSKIJ, Alexander. Das Problem des Lebenotstandes... cit., p. 114 e ss.

73 ROXIN, Claus. Der Abschuss gekaperter Flugzeuge... cit., p. 557­558.74 Idem, p. 558.75 Sobre uma freirechts raum Theorie, veja­se em detalhe Kaufmann, Arthur. Filosofía del Derecho.

Trad. Luís Villar Borda. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1997. p. 405 e ss.76 ROXIN, Claus. Der Abschuss gekaperter Flugzeuge... cit., p. 559­560.77 Idem, p. 562.

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Mas a aplicação que propõe esse filtro hermenêutico é um pouco mais restrita, exigindo que os autores do abate tenham atuado “motivados” pelo propósito de salvar o maior número de vidas, e não por qualquer outra classe de motivação política.

A solução proposta por Roxin é, sem dúvidas, a que melhor enfrenta o problema.

Porém, precisamente por isso, deve­se explorá­la um pouco mais, com o simples objetivo de demonstrar o quanto sua solução pode ser sugestiva para o desenvolvimento desse ponto da teoria do delito.

Ocorre que, na visão de Roxin, a exclusão de responsabilidade por falta de exigencia preventiva de pena só terá lugar em um contexto em que o abate tenha sido motivado por razões humanitárias, e não políticas ou de outra ordem.

Nesse sentido, então, caberia fazer a pergunta sobre como se faz para identificar o fato de que os motivos pelos quais se produziu o abate não fo­ram políticos ou de outra ordem, mas humanitários.

A primeira conclusão que deriva disso é que somente é possível identi­ficar o âmbito de atribuição de responsabilidade a partir de uma análise das circunstâncias do fato concreto.

Como consequência, na identificação da diferença entre os casos nos quais deve existir ou não atribuição de responsabilidade, as circunstâncias jogam um papel decisivo.

Por isso, parece obrigatório admitir que não se trata simplesmente de uma análise normativa de merecimento de pena, mas de uma análise de cir­cunstâncias do caso que comunicam uma determinação de sentido, ou seja, a determinação da motivação daquele que atua.

Se a determinação da responsabilidade penal do agente está vinculada aos motivos de sua atuação, a razão determinante da atribuição de tal respon­sabilidade não é – ou, ao menos, não é unicamente – a necessidade de pena, mas, também, a motivação da conduta.

4 a NeceSSidade de complemeNto da teSe de roxiN para uma adeQuada SoluÇÃo do problema. uma coNtribuiÇÃo deSde a filoSofia da liNguagem

Aparece justamente aqui o problema de determinar o que se diz quando se afirma ou se nega que o sujeito atua com determinada inten -

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ção78. Esse é um problema sobre o qual os estudos da filosofia da linguagem ofereceram muito ao Direito Penal, especialmente a partir da obra do Pro­fessor Tomás Vives Antón.

Schunemann já havia percebido sua importância ao afirmar que, “uma vez que a regulação de relações humanas com significado é constituída pela linguagem, o Direito não pode ignorar uma realidade pela qual ele mesmo está constituído”79. Ou seja, a realidade jurídica se compõe a partir de um ine­vitável tecido linguístico.

No caso específico, se a exclusão de responsabilidade deve ser determi­nada segundo uma análise da motivação daquele que produziu o abate do avião terrorista, trata­se menos de uma análise descritiva de uma situação de fato, e muito mais de uma análise compreensiva (linguística) da dimensão de sentido comunicada pela ação.

Durante muito tempo, a vinculação a bases ontológicas e a uma preten-são de verdade levou a uma distorção a respeito da análise dos dados subjeti­vos implicados na atribuição de responsabilidade penal. Isso se deu devido a uma inversão de critérios. Partiu­se, tradicionalmente, de uma concepção segundo a qual a intenção é algo que existe no mundo e que determina a ação em um sentido causal.

Mas, “a ação que se realiza não depende da intenção que se pudesse atribuir ao sujeito”80, ela é, melhor, reconhecida como tal, em sua própria reali­zação. Ou seja, a “ação – sua intencionalidade – não se constitui subjetivamen­te, mas de modo objetivo, em virtude das convenções – costumes, hábitos ou normas – que a definem”81.

Como bem refere o Professor Vives Antón: “A determinação da ação que se realiza não depende da concreta intenção que o sujeito queira levar a cabo, mas do código social conforme o qual se interpreta o que faz”82.

Mas a questão é que “os movimentos corporais não se transformam em ações que possamos identificar como tais pelo fato de que sejam ‘causados’

78 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos... cit., p. 223­224.79 SCHÜNEMANN, Bernd. La culpabilidad: el estado de la cuestión... cit., p. 110.80 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos... cit., p. 223.81 Idem, p. 223.82 Idem, p. 216.

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pela intenção ou conforme a intenção”83, senão que, na realidade, a identifi­cação da ação e da intenção é contextual, social e histórica84.

Por isso, a intenção se acha referida a regras, técnicas e práticas85, e só pode ser identificada ou percebida segundo a situação, os costumes e as ins­tituições humanas86.

A atribuição da responsabilidade, no caso concreto, dependerá da identificação da motivação do abate e de sua valoração segundo critérios de necessidade de pena.

O problema é como se sabe que a motivação do abate do avião foi hu­manitária e não, como, por exemplo, política?

A resposta correta quiçá fosse: do mesmo modo como se sabe que uma vez que um grupo terrorista tenha dominado a tripulação de um avião, esse se converteu em uma arma para atingir um alvo determinado.

Ou seja, a questão não tem a ver com complexos e inacessíveis proces­sos internos do sujeito, mas com o contexto histórico e social das práticas que identificam tanto ações quanto intenções.

Não é demasiado recordar que, muitas vezes, antes do 11 de setembro de 2001, terroristas dominaram tripulações de aviões. Não era um fato raro – ainda que sim, lamentável – que alguns bandos terroristas atacassem tripu­lações de aviões e determinassem seu pouso em determinado aeroporto para fins de extorsão, negociando a libertação de terroristas detidos em troca da liberdade dos reféns.

Depois de 11 de setembro de 2001, o sequestro de aviões tomou outra dimensão histórica, não funcionando tão somente como arma de extorsão, mas abrindo­se também a possibilidade de funcionar como arma de destruição de pessoas. Não que isso também não fosse possível antes, mas é que agora, exis­tindo um precedente, existe um fato com o qual se compara o novo evento.

As apreciações e valorações que fazemos das intenções dependem sempre de modelos a seguir, ou seja, de regras e padrões sociais que permi­tam reconhecer (no sentido de conhecer de novo) as intenções de quem realiza a conduta.

83 Idem, p. 219.84 Idem, p. 223.85 Idem, p. 218.86 Idem.

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Portanto, a partir do ataque às torres gêmeas, tal evento passou a ser reconhecido como uma possibilidade.

Esse evento histórico mudou o modo de ver o próprio sequestro de aviões.

Quiçá nem sequer fosse possível discutir a questão da responsabilida­de pelo abate de aviões sequestrados, não fosse por tal evento.

Antes de 11 de setembro de 2001 ninguém pensaria em impor respon­sabilidade pela morte dos passageiros e tripulantes ao dirigente estatal que eventualmente determinasse o abate de um avião sequestrado.

O significado social que dá sentido às ações, então, era bastante distin­to do de hoje.

As circunstâncias históricas mudaram e, com elas, o contexto de sen­tido sobre o que se faz quando uma tripulação de um avião é dominada por um bando terrorista.

Tanto isso é verdade que, no campo legislativo, assim como no campo doutrinário, se começou a debater o tema em termos de sua justificação ou exculpação, enquanto que antes era completamente esquecido.

Isso serve para mostrar como as ações e intenções não são determi­nadas por fatos internos, mas reconhecidas em contextos histórico­sociais, a partir de práticas precedentes.

Por isso, evidentemente, se a responsabilidade pelo abate do avião se determina a partir da motivação de quem o realiza, sua identificação não de­pende de um inacessível processo psicológico, mas de uma dupla dimensão normativa: uma análise das regras sociais que identificam e permitem reco­nhecer uma conduta enquanto tal e uma análise das competências que cabe atribuir ao autor, para identificar-lhe uma determinada intenção87.

O que se nota é que a solução oferecida por Roxin a este hard case re­sulta, de longe, a melhor situada. Mas isso se deve não só a sua brilhante contribuição ao conceito de culpabilidade, que convida à discussão sobre a necessidade preventiva de pena, senão quiçá principalmente porque ao fazer depender a decisão sobre a responsabilidade da motivação de quem atua, convida também a fazer parte da fundamentação da responsabilidade penal, as bases epistemológicas da filosofia da linguagem que hoje, sem lugar a dú­vidas, é a perspectiva mais sugestiva que existe para o desenvolvimento do Direito Penal e não haveria de ser diferente para os casos agora em debate.

87 Idem, p. 233.

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5 a modo de coNcluSõeSO tema do sequestro de aviões e a questão dos limites a respeito da

responsabilidade penal de quem dá ordem para o seu abate ou a executa não chegou nunca a um consenso.

Neste trabalho não se pretende tê­lo alcançado, mas apenas se tem a pretensão de avançar um pouco mais na precisão de uma das soluções mais promissoras para o tema: a oferecida por Claus Roxin.

Parece necessário e prudente conjugá­la com as contribuições ofereci­das por uma estruturação jurídico-penal proveniente baseada na filosofia da linguagem.

Nisso parece estar o passo adiante que deve dar o sistema de imputa­ção e essa é a razão pela qual se escolheu precisamente este tema para desen­volver.

Este trabalho começou como tema de estudo para a mesa sobre culpa­bilidade no Doutorado Honoris Causa em homenagem a Roxin que teve lugar na Universidade Pablo de Olavide, em Sevilha, em novembro de 2014, e foi retomado agora, por sua importância nas circunstâncias que o mundo vive.

Na oportunidade se disse que, seguindo uma tradição que remonta há mais de cinquenta anos, o homenageado seguia – como segue até hoje – apontando para novas direções de desenvolvimento do sistema de imputa­ção. Em um de seus trabalhos mais recentes, precisamente aquele que se tra­tou de discutir, Roxin seguiu demostrando decantar­se pelas posições mais elaboradas e, ademais, mais humanistas, para o estabelecimento de critérios a respeito da intervenção penal.

Seria cômodo para um acadêmico, do alto de sua glória e reconheci­mento mundial, não ocupar­se de novos problemas que supõem novos de­safios e reelaboração de critérios para dar solução a problemas antes sequer propostos.

Mas, provando que suas teses seguem em pleno apogeu teórico, o Pro­fessor Roxin uma vez mais se inscreve entre aqueles que ditam as direções de desenvolvimento dogmático e político criminal do estudo do Direito Penal.

Isso não impede, por outro lado, que a suas conclusões possam ofe­recer novas contribuições, especialmente se derivadas do giro linguístico pelo qual passa o Direito Penal, que certamente oferecem novos pontos de vista sobre questões em que a dogmática funcionalista parece já encontrar­­se esgotada.

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da experiêNcia da peNathe experieNce of puNiShmeNt

RaFael De oliveiRa costa*

RESUMO: O presente estudo pretende, ao atentar para a importân­cia da experiência da pena, buscar a efetiva individualização da san­ção criminal e propor uma revisão do modelo de dosimetria adotado pelo Código Penal, de modo a alcançar a devida reprovação da con­duta, prevenção da criminalidade e ressocialização do condenado. Trata-se de pesquisa que faz uso do raciocínio hipotético-dedutivo, valendo­se de dados de natureza primária (acórdãos e leis) e secun-dária (entendimentos doutrinários), permitindo concluir, em con­sonância com o trabalho de Adam Kolber, que o Estado não pode, desconsiderando as peculiaridades de cada sujeito de direitos e as circunstâncias de cada entidade de cumprimento de pena, infligir sofrimento superior às pessoas “sensíveis” do que aquele imposto aos “insensíveis” ou submeter infratores a circunstâncias distintas de cumprimento ao mesmo montante de pena, sob pena de violar os princípios da isonomia e da individualização da reprimenda.PALAVRAS­CHAVE: Experiências objetiva e subjetiva da pena; in­dividualização da pena; teoria quadripartite do delito.ABSTRACT: This study intends an effective individualization of criminal sanction and propose a systematic review of punishment’s dosimetry in Brazilian Criminal Code to achieve the objectives of di­sapproval, repression and rehabilitation of convicted. We conclude that the State ought not to inflict a greater suffering to “sensitive” people than those imposed on “insensitive” without infringing the principles of isonomy and individualization of punishment.KEYWORDS: Objective and subjective experiences of punishment; individualization of punishment; quadripartite theory of crime.

* Professor na Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo, Professor Visitante na Universidade da Califórnia­Berkeley (EUA), Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG/Universidade de Wisconsin (EUA), Mestre e Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG, Promotor de Justiça no Estado de São Paulo. E-mail: [email protected].

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SUMÁRIO: Introdução; 1 Experiências objetiva/subjetiva e ade­quada individualização da pena; 2 Teoria quadripartite, reavaliação durante a execução e experiência da pena; Conclusões; Referências.

iNtroduÇÃoTradicionalmente, a pena vem sendo entendida como a resposta es­

tatal (sanção) pela prática de uma infração penal (crime ou contravenção), consistente na vedação ou restrição a um ou mais bens jurídicos tutelados pelo ordenamento, cujo objetivo é retribuir, ressocializar e evitar a prática de novos delitos1.

Apesar da existência de diversas formas de controle social, a pena vem assumindo um papel especial no âmbito criminal na busca pela proteção a determinados bens jurídicos. Isso porque o Direito Penal, enquanto ultima ratio, evolui não só no plano geral, como também em cada uma de suas figu­ras jurídicas e seus institutos, em consonância com o contexto social, cultural e político de determinado momento na história, influenciando e modificando a concepção e aplicação de sanções2.

As modernas concepções de Direito Penal estão vinculadas às ideias de finalidade e função da pena, por se tratar do meio mais característico de intervenção nesse campo do Direito3. Entre o Abolicionismo e o Direito Penal máximo, a pena continua prevista em nosso ordenamento jurídico e um dos grandes desafios da contemporaneidade continua a ser a sua aplicação justa e adequada ao caso concreto4.

Assim, inúmeros são os fundamentos ou as justificativas apontados para existência da pena. Sob a égide política, sustenta-se que sem a pena o or­denamento perderia a sua “coatividade” ou até mesmo a sua “efetividade”, deixando de ser capaz de reagir às violações a bens jurídicos. O fundamento psicossocial aduz ser a pena indispensável para satisfazer “a sede de justiça” que surge na comunidade com a prática do delito. Por fim, a justificativa

1 Por todos, conferir: ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Trad. Diego­Manuel Luzón Peña, Miguel Días y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. E, ainda: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 128 e ss.

2 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 128 e ss.

3 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Teoría del garantismo penal. Madrid: Trotta, 1995. p. 322.

4 Cf. SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: RT, 2004.

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ético­individual entende que a pena permite ao delinquente liberar­se do sentimento de culpa (o que pode ser resumido na “célebre” frase: “Doutor, eu já paguei o que devia para a sociedade!”)5.

As finalidades da reprimenda, no entanto, encontram respaldo princi­palmente em três teorias: retribuição, prevenção e mista. Para os retribucio­nistas ou “absolutistas”, a pena deve ser proporcional ao injusto praticado, retribuindo o “mal” causado pelo agente com um “mal” praticado pelo Esta­do (“Lei de Talião”). Em outras palavras, a pena é vista como um fim em si mesma. A teoria da prevenção ou relativa, por sua vez, olha para o futuro e não para o passado, vislumbrando a pena como instrumento para prevenir delitos. Para os defensores desta corrente, a pena não é vista como um fim em si mesma, mas justifica-se na satisfação de um fim: o controle social da delin­quência. Por fim, a teoria mista sustenta que a pena tem um fim não apenas retribucionista, mas também de prevenção6.

Nesse liame, vale ressaltar que o sistema americano admite expressa­mente a restrição à liberdade – e consequente afastamento do agente do con­vívio social – como finalidade da pena. Ora, que alguns indivíduos precisam ser contidos inexiste dúvida, embora a doutrina nacional nem sempre atente para esse aspecto. Em C. v. Ritter, 13 Pa.D. & C. 285, 291, o Tribunal norte­­americano sustentou que “[...] permitir que um homem com tendencias criminais permaneça em posição na qual ele possa dar efetividade a tais propensões, é uma loucura inadmissível para a sociedade, mais grave até mesmo do que permi­tir que um animal selvagem ande solto pelas ruas”.

Em verdade, o instituto da pena pode ser analisado não apenas sob o aspecto estatal – o direito­dever do Estado de impor a devida reprimenda em nome da comunidade –, mas também pessoal – enquanto “dever” de o cida­dão suportar a sua imposição (aspecto subjetivo da pena)7.

5 Cf. ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Días y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. E, ainda: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 128 e ss.

6 Sobre o tema: NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

7 WELZEL, Hans. Derecho penal aleman: Parte general. 4. ed. castelhana. Trad. Juan Bustos Ramírez e Sérgio Yánez Pérez. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1997. p. 281-286.

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No Brasil, adota­se um procedimento judicial de discricionariedade vinculada8, que objetiva não só a reprovação e repressão à infração, mas tam­bém a ressocialização do condenado. Por um lado, trata­se de critério dis­cricionário, uma vez que o julgador possui certa liberdade na valoração da reprimenda. De outro, tem­se entendido que essa discricionariedade encon­tra­se vinculada aos limites estabelecidos pela legislação. Segundo Hungria: “[...] o que se pretende é a individualização racional da pena, a adequação da pena ao crime e à personalidade do criminoso, e não a ditadura judicial, a justiça de cabra­cega [...]”9.

Assim, para que a dosimetria da pena seja legítima, não pode se re­sumir a uma operação aritmética. A sanção deve ser aplicada de forma fun­damentada, a partir de raciocínio lógico e coerente, esclarecendo a sentença como ocorreu a valoração de cada circunstância10.

Contudo, o procedimento previsto no Código Penal deixa de conside­rar fator indispensável para a adequada e proporcional aplicação da repri­menda: trata­se da experiência subjetiva/objetiva do infrator.

Suponhamos, como faz Kolber11, que duas pessoas sejam condenadas a passar vinte anos em penitenciárias dotadas de instalações distintas. A pri­meira delas apresenta precárias condições de higiene e salubridade, além de superlotação. A segunda, de outro modo, apresenta condições impecáveis de higiene e salubridade, bem como capacidade adequada, em consonância com o que dispõe o art. 88 da Lei de Execução Penal12. Embora as sentenças apliquem o mesmo montante de pena aos réus (vinte anos), a experiência ob­jetiva de condenados que venham a cumprir a reprimenda nesses dois esta­belecimentos apresenta diferentes níveis de “intensidade” ou “sofrimento”, em razão das circunstâncias fáticas existentes.

8 LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. p. 38 e ss.

9 HUNGRIA, Nélson. O arbítrio judicial na medida da pena. Revista Forense, n. 90, jan. 1943.10 MIR PUIG, Santiago. Derecho penal: parte general. 6. ed. Barcelona: Reppertor, 2002.11 KOLBER, Adam J. The Subjective Experience of Punishment. Columbia Law Review, v. 109,

jan. 2009.12 “Art. 88. O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho

sanitário e lavatório. Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular: a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana; b) área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados).”

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O problema se agrava ainda mais quando passamos à análise da expe­riência subjetiva da pena.

Suponhamos agora que uma pessoa “sensível” e uma “insensível” à sanção criminal cometam o mesmo crime e que ambas sejam condenadas a passar vinte anos em penitenciárias com instalações idênticas. A pessoa “sen­sível” é atormentada pela vida na prisão e vive em constante estado de medo e de angústia, enquanto a “insensível” sente que a vida na prisão é apenas “desagradável”. Embora ambas tenham sido sentenciadas ao mesmo mon­tante de pena, a experiência subjetiva é distinta: cada uma delas experimenta uma “intensidade de sofrimento” e, portanto, embora o prazo e a natureza das reprimendas sejam os mesmos, as penas “efetivamente cumpridas” im­plicam em intensidades de “sofrimento” diversas13.

Assim, seguindo Kolber, entendemos que, para uma adequada apli­cação da pena, é necessário levar em consideração não só a lesão ao bem jurídico tutelado pela norma, mas também as diferentes experiências de cada infrator. Conquanto no Brasil venhamos atentando para os aspectos objetivos de cumprimento da pena (tipo de sanção, montante da reprimenda, entre outros), ao ignorarmos as experiências objetiva e subjetiva deixamos de lado a própria finalidade da pena, a proporcionalidade na sua aplicação e a efetiva ressocialização do condenado. E mais: ao ignorarmos a experiência da pena, abrimos margem para o argumento de que sequer se afigura justificável a quantidade de sofrimento imposta ao infrator no contexto do Estado Demo­crático de Direito14.

Não se pode olvidar, contudo, acerca da existência de posições em sen­tido contrário a esse entendimento. Andrew von Hirsch, por exemplo, recusa a abordagem “subjetivista” e foca o que convencionou chamar de principle of commensurate deserts como via adequada para a fixação da escala de propor­ção entre a gravidade do crime e a severidade da pena. Von Hirsch susten­ta que os crimes devem ser punidos de forma proporcional à gravidade da ofensa, ou seja, o furto deve ser punido de forma mais severa do que o delito previsto no art. 311 do CTB, porque o primeiro é “moralmente mais repreen­

13 O exemplo também encontra­se em KOLBER, Adam J. The subjective experience of punishment. Columbia Law Review, v. 109, p. 182, 2009.

14 Cf. KOLBER, Adam J. The subjective experience of punishment. Columbia Law Review, v. 109, p. 182, 2009.

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sível” – ainda que existam estudos demonstrando que nós poderíamos salvar mais vidas punindo o segundo mais severamente que o primeiro15.

Da mesma forma, parcela da doutrina confere tratamento à questão sob a égide da definição e do conteúdo da personalidade do agente, prevista no art. 59 do Código Penal. Uma primeira corrente faz incidir na personalida­de a “globalidade do modo de ser” do infrator, adotando uma consideração holística, que engloba a atitude interior do agente16. Uma segunda corrente inclui a sensibilidade como elemento da personalidade do criminoso, ou seja, a “sensibilidade” do réu integra a sua personalidade17. Finalmente, uma tercei­ra corrente propõe “o fim do discurso subjetivista” e reclama a retirada da personalidade como circunstância judicial do art. 59 do Código Penal18.

A temática é inesgotável e sua tarefa infinita, visto que a construção do Direito Penal é tarefa perene. Os institutos devem ser constantemente (re)pensados pela doutrina e pela jurisprudência, em verdadeiro movimento espiral de consolidação do conhecimento e que não pode ser vislumbrado sob a égide limitada de um único ordenamento jurídico, mas deve ser visto como parte de um conjunto global de normas.

O presente trabalho utiliza-se do raciocínio hipotético-dedutivo e de da­dos de natureza primária (acórdãos e leis) e secundária (entendimentos doutri­nários), pretendendo, ao atentar para a importância das experiências objetiva e subjetiva da pena, buscar a efetiva individualização da sanção criminal e propor uma revisão da sistemática do modelo de dosimetria adotado pelo Código Penal, de modo a alcançar os objetivos de reprovação, repressão e ressocialização do condenado.

Obviamente, trata-se de tarefa hercúlea. Como ficará claro mais à fren­te, a dificuldade em sopesar todos esses fatores na aplicação e execução da

15 Cf. VON HIRSCH, Andrew. Doing Justice: the choice of punishments. NY: Northeastern University Press, 1986. p. 90­94.

16 Cf. DIAS, Figueiredo. Liberdade, culpa, direito penal. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 1995. p. 182.17 “El Tribunal Supremo en diferentes sentencias (20 de marzo de 1986, 3 de octubre de 1989),

entiende que la «personalidad del delincuente» representa una apreciación compleja integrada por elementos psicológicos y el análisis de su proyección social, debiendo ponderarse las condiciones personales de educación, entorno familiar, oficio, situación profesional y económica, valorando su posible sensibilidad frente a la pena y los efectos de esta sobre su vida (sentencia de 29 de noviembre de 1993).” (CRESPO, Eduardo Demetrio. Análisis de los criterios de la individualización judicial de la pena en el nuevo Código Penal español de 1995. ADPCP, v. L, p. 347, 1997)

18 Cf. STOCO, Tatiana de Oliveira. Personalidade do agente na fixação da pena. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

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pena não é pequena. Assim, o presente estudo adota como recorte epistemo­lógico o aspecto dogmático-penal do tema, evitando o embate filosófico entre o subjetivismo e o objetivismo, especialmente com o intuito de evitar o super­ficialismo19. Embora atualmente não disponhamos de meios para mensura­ção precisa das experiências objetiva e subjetiva, ao deixarmos de levá­las em consideração por motivos financeiros, tecnológicos ou até mesmo científicos, estaremos aplicando sanção “desproporcional” aos infratores.

Não é possível, entretanto, esconder as dificuldades imanentes a este tipo de análise. A não ser que passemos a utilizar ferramentas interdiscipli­nares poderosas – v.g., neurodireito, atentando para o potencial revolucioná­rio trazido por esse ramo –, as reformas que vêm sendo implantadas não passarão de propostas incapazes de efetivamente promoverem a aplicação proporcional da pena20.

A comunidade jurídica possui um considerável conhecimento acumu­lado acerca da pena, mas precisa desejar correr os riscos associados à explo­ração de novos horizontes. Não é certo quão longe os investimentos nesses riscos nos levarão. Mas é certo que não iremos a lugar algum se os evitarmos.

1 experiêNciaS obJetiva/SubJetiva e adeQuada iNdividualizaÇÃo da peNa

Na Idade Média, o arbítrio judicial era produto de um regime penal que não estabelecia limites para a sanção penal. Conferia­se excessivo poder aos juízes em detrimento da Justiça e da segurança jurídica21.

O Direito Penal moderno buscou combater o arbítrio judicial com a adoção da pena “fixa”, aplicando a sanção na medida do “mal injusto” pra­ticado pelo delinquente. A função do juiz limitava­se à “aplicação mecânica do texto legal”22.

19 Sobre o tema, vale a pena conferir: BRONSTEEN, John; BUCCAFUSCO, Christopher; MASUR, Jonathan. Happiness and punishment. The University of Chicago Law Review, p. 1037­1082, 2009.

20 KOLBER, Adam J. The subjective experience of punishment. Columbia Law Review, v. 109, p. 182, 2009.

21 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 17. ed. rev., ampl. e atual. de acordo com a Lei nº 12.550, de 2011. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 751.

22 Idem, p. 751­2.

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Contudo, logo se percebeu que se a indeterminação absoluta não era conveniente, também a rigidez na aplicação da sanção não se afigurava ade­quada, uma vez que impedia a efetiva individualização da reprimenda23.

Com efeito, a individualização, para ser efetiva, deve ocorrer em três momentos distintos: legislativo, na prolação da sentença e, finalmente, du­rante a sua execução.

Ocorre, no entanto, que a dosimetria, prevista nos arts. 59 e 68 do Có­digo Penal, não abrange toda a complexidade imanente ao processo de indi­vidualização. Isso porque, ao sentenciar, o magistrado não precisa levar em consideração eventuais variações na “intensidade de sofrimento” decorren­tes das experiências subjetiva e objetiva do reeducando.

Voltando a Kolber, um preso recolhido em cela pequena, sem janelas e com condições de higiene precárias, pode entender que a prisão é “insupor­tável”, enquanto outro pode ter uma cela grande, com várias janelas e salu­bridade adequada, entendendo­a “tolerável”. Embora ambos os infratores se encontrem submetidos à pena de reclusão, a “intensidade” das sanções varia consideravelmente em razão de suas experiências objetivas24.

Assim, no que concerne à intensidade da punição, não pode ser admi­tida pena que desconsidere a experiência do infrator25. E isso porque, quando se aplicam penas iguais a infratores diferentes, os mais “sensíveis” acabam sofrendo sanção mais severa, sendo um erro acreditar que a “aplicação ob­jetiva” da sanção criminal a diferentes delinquentes seja efetivamente pro­porcional26. Em outras palavras, pessoas distintas podem ter experiências subjetivamente distintas em resposta a um mesmo tipo de “estímulo”, fazen­do com que cada infrator apresente “intensidades de sofrimento” próprias, qualitativa e quantitativamente27.

Para deixar claro como punições objetivamente idênticas podem va­riar significativamente em suas experiências subjetivas, imagine-se, em in­teressante exemplo proposto por Kolber, a aplicação da pena de “dieta”. Os condenados à “dieta” são proibidos de comer mais do que 1.000 calorias por

23 Idem, p. 751­2. E, ainda: NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

24 Cf. KOLBER, Adam J. The subjective experience of punishment. Columbia Law Review, v. 109, 2009.

25 Idem.26 Idem.27 Idem.

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dia. Em termos objetivos, a “dieta” é a mesma para todos. Em termos sub­jetivos, porém, a punição varia consideravelmente de pessoa para pessoa. Alguns condenados certamente passarão a entender que a pena de “dieta” é tolerável, enquanto outros entenderão tratar­se de sanção intensamente ár­dua. Desse modo, conclui Kolber, os condenados à “dieta” não são punidos da mesma forma em sentido subjetivo, ainda que as condições objetivas da punição pareçam idênticas a um observador casual28.

Da mesma forma, a claustrofobia está associada à angústia causada pela permanência em espaços fechados, podendo o portador da moléstia apresentar ataques de pânico e até sufocação. Por esse motivo, a experiên­cia subjetiva de encarceramento de uma pessoa que sofre de claustrofobia é muito mais “intensa” do que a de uma pessoa que não apresenta esse tipo de agravo. Assim, a adequada individualização da pena exige que portadores e não portadores de claustrofobia recebam sanções distintas29.

Não bastasse, um condenado que venha a sofrer constantes abusos se­xuais durante o cumprimento da reprimenda terá um sofrimento exacerba­do, agravando a sua experiência subjetiva.

A Lei de Execuções Penais chega até mesmo a encampar parcialmente essa perspectiva, ao regulamentar, em seu art. 52, o Regime Disciplinar Dife­renciado. Vejamos:

Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características:

I – duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada;

II – recolhimento em cela individual;

III – visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas;

IV – o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol.

28 Idem.29 O exemplo é proposto por KOLBER, Adam J. The subjective experience of punishment.

Columbia Law Review, v. 109, 2009.

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Assim, as condições objetivamente observáveis de cumprimento da pena podem gerar significativas diferenças nas experiências daqueles que se encontram reclusos. Em outras palavras, embora os infratores possam ser condenados a penas de natureza idêntica, diferem substancialmente em suas experiências subjetiva e objetiva de cumprimento – e, consequentemente, na “intensidade da punição” –, exigindo-se a modificação do ordenamento para uma adequada individualização da reprimenda.

Vale ressaltar que os subjetivistas (entre os quais podemos incluir Kolber) sustentam que a “intensidade de sofrimento” causada a um claus­trofóbico deve ser levada em consideração porque exerce efetivo papel de “pena”. Do mesmo modo, o abuso sexual praticado contra um sentenciado na penitenciária deve ser considerado como “sanção penal”. Em suma, a “in­tensidade da punição” para os subjetivistas justifica-se pela “experiência da­quele que está sendo punido”30.

E mais: a “sensibilidade/insensibilidade à pena” pode ser abordada sob perspectivas distintas, ou seja, enquanto juízo sobre a culpabilidade do agente ou como uma análise de prognose a respeito da prevenção de crimes futuros. Em outras palavras, a sensibilidade pode ser vislumbrada como sensibilidade à pena (Strafempfindlichkeit) ou como suscetibilidade de ser por ela influenciado (Strafempfänglichkeit)31. Neste trabalho, conforme ficará claro mais à frente, a experiência da pena é vislumbrada como sensibilidade à pena, e não como uma análise de prognose a respeito da prevenção de crimes futuros.

De outro modo, os objetivistas sustentam que o sofrimento do claustro­fóbico e o abuso sexual devem ser considerados no cômputo da reprimenda exatamente porque não são penas. Em outras palavras, essas condutas são relevantes e devem ser rechaçadas porque não são sanção penal em sentido estrito. Assim, a “intensidade de sofrimento” deve ser justificada por razões objetivas, sem referência à experiência subjetiva do infrator32.

Embora não esteja no escopo do presente trabalho a análise filosófi­ca dessas duas posições, importa ressaltar que, seja sob a égide subjetivista, seja sob a perspectiva objetivista, não se pode desconsiderar a experiência do agente durante o cumprimento da pena. Independentemente da perspectiva adotada acerca da finalidade da pena (retributiva, preventiva ou ressociali­

30 Idem.31 Cf. GÖSSEL, Karl Heinz; MAURACH, Reinhart; ZIPF, Heinz. Derecho Penal: Parte General.

Trad. Jorge Bofia Genzsch. Buenos Aires: Ed. Astrea, v. 2, 1995. p. 114 e ss.32 Por todos, conferir: GRAY, David C. Punishment as suffering. Vanderbilt Law Review, v. 63,

n. 6, 2010.

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zadora), devemos dosá­la e aplicá­la segundo a “intensidade de sofrimen­to provocada ao infrator”. Eventuais desigualdades no tratamento refletem uma violação ao princípio da individualização da pena – e veem sendo igno­radas pelo nosso ordenamento jurídico.

Em síntese, o Código Penal e a Lei de Execução Penal atentam para a espécie e o montante de pena aplicada ao infrator, desconsiderando, contu­do, as variações na experiência de cumprimento que a sanção criminal pode apresentar. Por esse motivo, torna­se indispensável (re)pensar os diplomas normativos em vigor em busca da adequada individualização da pena não apenas no momento de sua cominação e aplicação, mas também durante a sua execução.

Devidamente estabelecidas essas premissas, passemos à análise de suas consequências para o ordenamento jurídico nacional.

2 teoria Quadripartite, reavaliaÇÃo duraNte a execuÇÃo e experiêNcia da peNa

Hodiernamente, a doutrina nacional analisa a “intensidade da puni­ção” somente em termos objetivos, seguindo os parâmetros traçados pelos arts. 59 e 68 do Código Penal e pela Lei de Execução Penal.

Contudo, a adequada justificação da pena deve levar em considera­ção as experiências objetiva e subjetiva do agente. Isso porque, ao justificar a reprimenda, não se pode ignorar a experiência do infrator, sob pena de se infligir “sofrimento” sem justificativa e, por via de consequência, sancionar o agente de modo desproporcional.

Não por outro motivo observamos hoje a falência da pena. O Código Penal e a Lei de Execução Penal não analisam as experiências objetiva e sub­jetiva do reeducando, desconsiderando a efetiva de ressocialização e dan­do ênfase exclusivamente aos aspectos retributivo/preventivo, insuficientes para justificá-la.

Ora, ao enclausuramos um infrator, infligimos de forma consciente não só um sofrimento “físico”, mas também “emocional” e “psicológico”. É claro que tentamos fazê-lo de forma justificada, ou seja, por meio da adoção do cri­tério trifásico e do sistema progressivo. Contudo, os fundamentos dados ao encarceramento não se apresentam “suficientes” quando o condenado apre­senta maior “sensibilidade” à reprimenda ou quando se encontra enclausu­rado em penitenciárias com instalações precárias33.

33 Cf. KOLBER, Adam J. The subjective experience of punishment. Columbia Law Review, v. 109, 2009.

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Segundo Tremblay, uma pena duas vezes mais grave “em termos ex­perienciais” não decorre necessariamente do dobro de tempo de cumprimen­to, uma vez que a “intensidade de sofrimento” não aumenta de forma linear com o lapso de encarceramento. Exemplificativamente, uma pena de prisão de dez anos chega a provocar até trinta vezes mais sofrimento do que uma pena de um ano – quando era de se esperar que esse patamar fosse apenas dez vezes superior34.

Incumbe ressaltar que o Código Penal, em seus arts. 59 e 68, adotou o sistema trifásico, acolhendo, assim, a posição de Nélson Hungria, que susten­tava que o processo de individualização da pena deveria desdobrar­se nas se­guintes etapas: 1ª) o juiz fixa a pena de acordo com as circunstâncias judiciais; 2ª) o juiz considera a incidência de circunstâncias agravantes e atenuantes legais; e 3ª) o juiz leva em conta as causas de aumento ou de diminuição de pena35.

Contudo, a adequada individualização da reprimenda exige que as experiências objetiva e subjetiva da pena sejam devidamente consideradas nesse processo. Como fazê­lo?

Segundo entendemos, em primeiro lugar torna­se indispensável, du­rante a instrução probatória, a elaboração de estudo “polidimensional e mul­tidisciplinar” que projete, sob o aspecto psicológico, a experiência subjetiva da pena (análise prospectiva do impacto subjetivo da pena). Antes mesmo do início de cumprimento da sanção criminal, deve-se realizar análise detalhada das peculiaridades da pessoa a ser submetida à reprimenda, sob os aspec­tos sensoriais, afetivos, “imaginativos” e “racionais”, de modo a sopesar, de forma adequada, a sua experiência subjetiva. A realização do exame tem a finalidade de fornecer subsídios ao magistrado que, examinando o infrator sob os aspectos mental, biológico e social, torne efetivo o princípio da indivi­dualização da pena.

Em que pese a natureza ainda incipiente dos meios científicos disponí­veis para a adequada avaliação da experiência subjetiva, a adoção da medida não é inviável. Isso porque, em primeiro lugar, a simples alegação da ausên­cia de conhecimento científico sobre determinada matéria não pode impli­car na aplicação equivocada da pena. Em segundo lugar, porque os recentes

34 Sobre o tema, conferir: TREMBLAY, Pierre. On Penal Metrics. Quantitative Criminology, p. 227­230, 1988.

35 Apud COSTA JR., Paulo José da. Comentários ao Código Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 204.

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avanços na seara da neurociência permitem a avaliação da experiência sub­jetiva – ainda que exista um longo caminho a ser percorrido –, especialmen­te diante das conquistas nas searas da neurologia e psiquiatria – que veem correlacionando os estados mentais subjetivos e as atividades em diferentes áreas do cérebro36. A título de exemplo, por meio da ressonância magnética funcional, os cientistas são hoje capazes de observar as “manifestações cere­brais” quanto às experiências pessoais – tal como ocorre com as demonstra­ções de felicidade, tristeza, raiva e medo, campo que em muito contribui para a análise da experiência subjetiva da pena37.

E mais: é preciso ainda, de forma projetada, considerar as circunstân­cias objetivas de cumprimento (penitenciárias, colônias agrícolas, condições físicas, instalações, entre outros) a que será submetido o infrator, por meio de relatórios de visitas elaborados por Promotores de Justiça, Juízes de Direito e equipes multidisciplinares às instituições, atentando para as condições exis­tentes e que venham a modificar a experiência objetiva do infrator.

A partir desse conjunto probatório, torna­se indispensável, de lege ferenda, modificar o critério trifásico – especialmente no que concerne ao art. 59 do Código Penal e arts; 5º, 9º e 66, III, da Lei de Execução Penal –, para um novo sistema – quadrifásico – de aplicação da reprimenda: após subsumir a conduta ao tipo penal e analisar a existência de qualificadoras, o magistrado deverá, antes de passar à análise das circunstâncias judicias e a partir dos relatórios acostados ao feito, majorar ou reduzir a pena cominada à infração, segundo a experiência objetiva e subjetiva projetada para o infra­tor. Em outras palavras, o processo individualizador da pena deve desdobrar­-se nas seguintes etapas: 1ª) o juiz analisa a existência de qualificadoras e as experiências objetiva e subjetiva projetadas da pena; 2ª) o magistrado fixa a pena de acordo com as circunstâncias judiciais; 3ª) o julgador considera as circunstâncias agravantes e atenuantes legais; e 4ª) a autoridade judiciária majora ou reduz a pena em razão das causas de aumento ou de diminuição.

O Direito Comparado caminha nesse sentido. Na Espanha, o Código Penal prevê, em seu art. 66.1.6ª, que os Tribunais devem considerar “las cir-cunstancias personales del delincuente”. Na Itália, o art. 133, 3, 1, do Código Pe­nal dispõe que o julgador deve ter em conta o “carattere del reo”. Em Portugal, o art. 71, nº 2, d, do Código Penal sustenta que o Tribunal deve atender todas

36 BARRETT, Lisa Feldman; WAGER, Tor D. The structure of emotion evidence from neuroimaging studies. Current Directions in Psychological Science, v. 15, n. 2, p. 79­83, 2006.

37 Idem, ibidem.

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as circunstâncias que depuserem a favor ou contra o acusado, tais como “as condições pessoais do agente”. Na Alemanha, o “art.” 46, (2), dispõe que o Tribunal deve ponderar as circunstâncias existentes a favor ou contra o réu, nomeadamente “seine persönlichen Verhältnisse”.

Em sentido oposto, o Projeto de Lei nº 3.473/2000, que tramita na Câ­mara dos Deputados, pretende a substituição da expressão “personalidade do agente” pelas “condições pessoais do acusado”, sem, contudo, fazer qual­quer menção à experiência da pena.

De outro modo, o Projeto do novo Código Penal que tramita no Senado Federal (Projeto de Lei nº 236/2012) propõe nova redação ao atual art. 59 do Código Penal, nos seguintes termos: “Art. 75. O juiz, atendendo à culpabili­dade, aos motivos e fins, aos meios e modo de execução, às circunstâncias e consequências do crime, bem como a contribuição da vítima para o fato, esta­belecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”.

Ora, as experiências subjetiva e objetiva não se encontram contidas na análise da circunstância judicial da personalidade. Isso porque esta última é tradicionalmente entendida como um complexo das qualidades morais e sociais do infrator38. Em outras palavras, a análise da personalidade com­preende “a boa ou má índole do agente, sua maior ou menor sensibilidade ético­social, a presença ou não de eventuais desvios de caráter de forma a identificar se o crime constitui um episódio acidental na vida do réu”39, em nada se relacionando com as experiências objetiva e subjetiva de cumprimen­to da pena. As experiências subjetiva e objetiva são reflexo da própria sanção: não se tratam de manifestações puras da personalidade do agente, mas do nexo entra ela e a reprimenda em si.

Não basta, assim, sustentar que a reincidência deve implicar, indispen­savelmente, a majoração da reprimenda em quantum pré-fixado. Isso porque, a depender da experiência subjetiva anterior do reeducando, não obstante mereça reprimenda superior àquela do réu primário, a intensidade do sofri­mento pode ser tamanha que a pena deva ser majorada em patamar ínfimo.

Contudo, apenas a modificação do critério de aplicação não se afigura suficiente, uma vez que, durante o cumprimento da pena, as circunstâncias fáticas podem modificar substancialmente a “intensidade de sofrimento” in­

38 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 17. ed. rev., ampl. e atual. de acordo com a Lei nº 12.550, de 2011. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 756.

39 Idem, ibidem.

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fligida ao reeducando. Assim é que a reavaliação deve ser permanente: a Lei de Execução Penal deve prever nova análise da pena de forma periódica, de modo a considerar, em cada fase, as experiências objetiva e subjetiva viven­ciadas pelo infrator, tornando a individualização efetiva.

Em suma, o Estado não pode, desconsiderando as peculiaridades de cada sujeito de direitos e as circunstâncias de cada entidade de cumprimento de pena, infligir sofrimento superior às pessoas “sensíveis” do que aquele imposto aos “insensíveis” ou submeter infratores a circunstâncias distintas, sob pena de violar os princípios da isonomia e da individualização da pena40. Ao desconsiderar as experiências subjetiva e objetiva inexiste fundamento, sob a égide do Estado Democrático de Direito, para que uma pessoa “sensí­vel” receba punição mais severa do que uma “insensível” ou que condenados à mesma sanção cumpram pena em locais com instalações completamente diversas41.

É possível conferir tratamento objetivo à pena segundo a experiência do infrator? É possível conter a discricionariedade do julgador e estabelecer parâmetros objetivos para a aplicação da pena a partir da avaliação das expe­riências objetiva e subjetiva do reeducando?

Embora inexistam na doutrina nacional parâmetros para a redução/majoração da pena em razão das experiências objetiva e subjetiva do infrator – o que até, por uma questão de efetiva individualização, dependerá de certa discricionariedade a ser conferida ao magistrado, em razão da análise dos relatórios a serem acostados ao feito –, não há dúvida de que a reprimenda não pode atingir caráter perpétuo e a prisão não pode ultrapassar o limite de 30 (trinta) anos (art. 75, caput, do Código Penal).

De qualquer modo, a fim de satisfazer a exigência de proporcionali­dade, a sanção criminal deve ser um reflexo da “intensidade” do sofrimento provocado ao condenado, motivo pelo qual não pode desconsiderar a expe­riência de cada reeducando, sob pena de se exercer o ius puniendi de modo injustificado.

Em síntese, seguindo Kolber, entendemos que a única forma de evi­tar a análise das experiências objetiva e subjetiva é por meio da abolição da

40 Nesse sentido, Eduardo Correia sustenta que o princípio da igualdade é lesado quando o juiz não respeita a “susceptibilidade do agente à prisão” (CORREIA, Eduardo. Direito criminal. Coimbra: Almedina, v. II, 2014. p. 333, nota 1).

41 Cf. KOLBER, Adam J. The subjective experience of punishment. Columbia Law Review, v. 109, 2009.

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própria pena, uma vez que qualquer sentença que não venha a considerá­las acaba por violar os princípios da isonomia e da individualização42.

coNcluSõeS

O presente estudo pretende, ao atentar para a importância das expe­riências objetiva e subjetiva da pena, buscar a adequada individualização da reprimenda, de modo a alcançar os objetivos de reprovação, repressão e res­socialização do condenado.

Contudo, a análise concreta das experiências objetiva e subjetiva não se afigura tarefa simples.

Ademais, a legislação penal em vigor no Brasil não permite a adequada individualização da reprimenda, uma vez que a “sensibilidade” à punição e as “condições objetivas do local de cumprimento” são desconsideradas pelo Código Penal e pela Lei de Execução Penal.

Assim, ao ignorarmos as experiências objetiva e subjetiva, o ordena­mento jurídico nacional pune infratores em montante desproporcional e, por via de consequência, viola os princípios constitucionais da isonomia e da in­dividualização da pena.

Embora não seja certo quão longe os investimentos nessa seara nos le­varão, a comunidade jurídica precisa desejar correr os riscos associados à ex­ploração de novos horizontes na busca pela aplicação proporcional da penal, visto que não iremos a lugar algum se os evitarmos.

referêNciaSBARRETT, Lisa Feldman; WAGER, Tor D. The structure of emotion evidence from

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42 Idem.

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a peNa crimiNal Na democracia: o compromiSSo da dogmática

com a racioNalidadethe crimiNal SaNctioN iN democracy: the

commitmeNt betWeeN dogmatic aNd racioNalityney Fayet JúnioR*

RESUMO: O artigo aborda o eixo conceitual da pena criminal no âmbito da democracia, tendo como escopo apresentar seu signifi­cado, fundamento, ou, ainda, suas finalidades sob o amplo espectro das ciências criminais e afins. Para tanto, perpassando, principal­mente, os enfoques criminológico e jurídico-dogmático, busca apla­nar o terreno em busca de uma justificação (racional) por meio do prisma democrático.PALAVRAS­CHAVE: Pena criminal; democracia; dogmática crimi­nal; racionalidade punitiva; Direito Penal.ABSTRACT: The article approaches a conceptual axis of the crimi­nal penalty inside the democracy. Moreover, the main scope is to introduce meaning, base, and yet, it’s purpose inside the Criminal sciences. Therefore, it is necessary to pass through, essentially, the Criminological and Legal­dogmatic approaches in order to reach a racional reason through the dogmatic prism.KEYWORDS: Criminal sanction; democracy; criminal dogmatic; pu­nitive racionality; Criminal Law.

É necessário, antes de tudo, advertir que o presente artigo quer pôr em evidência algumas características da pena criminal no quadro da demo­cracia1, perspectivadas tanto por compromissos intrínsecos de legitimação e justificação – que são concebidos pela dogmática – como por programas

* Pós­Doutor em Criminologia (Universitat Pompeo Fabra/Barcelona e em História (UFRGS), Professor de Direito Penal e Criminologia (Graduação, Mestrado e Doutorado) na PUC/RS, Advogado.

1 Democracia implica uma vinculação bastante estreita do Estado com uma determinada ordem política que incorpora e garante o poder de seu povo; a mais disso, em uma noção tocquevilliana, a democracia apresenta uma dimensão prática, isto é, ostenta uma postura ativa em face da realidade objetiva e social.

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de ação – que são articulados e traçados pelo pensamento criminológico e, sobretudo, político-criminal.

Nesse cenário, afloram diferentes abordagens que trazem, a ferro e fogo, as marcas de suas concepções ideológicas, dado que as teorias da pena (notadamente as atuais) têm sido estruturadas em um contexto pretensamen­te mais amplo, dentro de cujos limites se encontram o indivíduo, a sociedade e o Estado. O embate sobre a resposta punitiva não se encontra aferrolha­do às ciências tradicionalmente comprometidas com o saber (global) penal (Direito Penal, Criminologia, Penologia, entre outras) ou com a justificativa (moral) da pena (Filosofia, Ética), na medida em que se abre a novos campos do conhecimento que têm, pouco a pouco, incorporado à sua temática, de maneira orgânica, [a pesquisa sobre] o papel desempenhado pela punição na sociedade contemporânea (Sociologia, Psicologia, Antropologia); além disso, oferecem um contributo bastante expressivo, na construção de um programa de ação interventivo, de vários movimentos criminológicos (os quais, por sua vez, também espelham diferentes orientações político-criminais) ou, mesmo, de concepções dogmático-jurídicas vinculadas fortemente ao constituciona­lismo.

Esse debate – que tem acompanhado, ao longo dos anos, o desenvolvi­mento da ciência penal – apresenta, nos dias que correm, novos ingredientes, como, de um lado, (i) um maior punitivismo social – que vem a reboque da crescente importância eleitoral que os partidos políticos concedem ao fenô­meno criminal2, em geral, e à segurança individual, em particular3 –; e, de

2 Como anota Klaus Gunther (2009, p. 54), “a política já reconheceu há muito tempo o potencial desse tipo de emotividade para obtenção e manutenção do poder. Em disputas eleitorais conta também, e sobretudo, a disputa político-criminal: saber quem defende métodos de combate à criminalidade mais convincentes e eficazes, bem como a execução penal mais rigorosa. Para os agentes do sistema político é fácil assumir uma posição pseudodemocrática e basear­se no desejo manifestado pela maioria para atuar de maneira mais dura contra a criminalidade”.

3 E essa alteração discursiva não conhece, por assim dizer, polos ideológicos, na medida em que, na América Latina, tradicional e historicamente, a esquerda considerava que (o discurso sobre) a defesa da segurança era indicativa de um discurso marcadamente conservador (vinculado – como aponta Lolita Aniyar de Castro [2006, p. 4] – a políticas repressivas que serviam de contenção ao protesto social ou, ainda, associado à temível noção de “segurança nacional”, que serviu de legitimação aos regimes autoritários no contexto latino-americano); contudo, essa situação se modificou acentuadamente quando a esquerda assumiu, em alguns países, posições de governo ou de responsabilidades executivas, tendo, a partir disso, “la ocasión de escuchar la demanda de inseguridad, o al menos la queja permanente del sentimiento de inseguridad, de las clases populares. De esta manera tomó conciencia de una

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outro, (ii) o fator tecnológico, admitido que, além de todo aspecto ideológico, a utilização da tecnologia tem sido concebida como um verdadeiro programa de ação estatal, que, imediatamente, se transmite à readequação dos discur­sos sobre a punição (as ideias de eficiência, de redução de custos, de diminui­ção de efeitos colaterais a partir do uso da tecnologia prisional [tornozeleiras eletrônicas, monitoramento eletrônico, castração química, entre outras] têm inspirado, decisivamente, uma nova onda neorretribucionista); ou, ainda, (iii) o papel dos meios de comunicação no processo de consolidação de um discurso expansivista da intervenção penal; bem como, finalmente, (iv) a pro­dução legislativa, que tem caminhado pari passu com a tendência expansivis­ta, à proporção que “torna as penas mais duras e permite um número cada vez maior de métodos investigativos que interferem nos direitos fundamen­tais dos cidadãos”4.

Trata­se, apenas, de alguns dos principais planos sobre os quais se tem conduzido, em diferentes e cada vez mais amplos âmbitos, o desenvolvimen­to dessa discussão. Por óbvio, o debate sobre as penas e as suas finalidades tem um longo percurso existencial, pois – como indica Max Ernst Mayer – “así como en todos los tiempos y por todos los pueblos se han impuesto penas, de igual modo cada vez y en todas partes en que la reflexión filosófica no ha sido ajena al espíritu del tiempo y del pueblo, ha habido ideas acerca del sentido de la pena”5; contudo, as teorias da pena permanecem vinculadas a margens relativamen­te pouco alargadas, dentro das quais o debate se prende a poucas posições fundamentais, que, por seu turno, têm um longo arraigamento histórico6. Sem embargo, a abordagem quer concentrar­se no panorama atual, isto é, no marco histórico da democracia, no interior do qual se alistam e se consagram as estratégias da punição. E essa consideração tem significado transcendente,

necesidad sentida y de cómo la seguridad dejó de ser un bien público para convertirse en un privilegio de las clases media y alta que podían financiarla” (Aniyar de Castro, p. 4).

4 Günther, 2009, p. 54.5 Mayer, 2007, p. 515.6 Stratenwerth, 1982, p. 10. Como ainda pondera Jorge de Figueiredo Dias (1999, p. 90), “as

respostas dadas, ao longo de muitos séculos – seja pela ciência do direito penal, seja pela teoria do Estado ou pela própria filosofia –, ao problema dos fins da pena se reconduzem a duas (rectior, a três) teorias fundamentais: as teorias absolutas, de um lado, ligadas essencialmente às doutrinas da retribuição ou da expiação; as teorias relativas, de outro lado, que se analisam em dois grupos de doutrinas: as doutrinas da prevenção geral, de uma parte, as doutrinas da prevenção especial ou individual, de outra parte. Toda a interminável querela à roda dos fins das penas é recondutível a uma destas posições ou a uma das infinitas variantes através das quais se tem tentado a sua combinação”.

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porquanto a pena (assim como os seus limites e sentidos) continua a ser o centro de gravidade do Direito Criminal, o ponto de culminância de nossa disciplina, o aspecto de maior impacto na realidade objetiva – especialmente em virtude de suas terríveis consequências e de seus escassos benefícios (se é, verdadeiramente, que os haja).

Com efeito, a pena, apesar de simbólicas limitações de índole huma­nitária (as quais, no mais das vezes, se inscrevem tão somente no plano do “dever ser”), segue sendo um mal, que pode ser tão dolorosa e brutal como algum injusto típico7. (Aliás, a mera investigação criminal já pode, em face da posição social do imputado, ser­lhe insuportável pelo caráter vexatório e execrável que encerra.)

Daí porque a utilização da pena – quer como instrumento resolutivo de conflitos sociais graves, quer como meio de controle social – deve ser subme­tida aos mais rigorosos critérios limitadores; e a sua legitimação, caminhar ir­manada com a consolidação de padrões democráticos na perspectiva de uma sociedade pluralista. Cuida­se, por esse modo, de esforços que se destinam à justificação racional da atividade estatal de caráter penal-persecutório, de envolta com a explicação do exercício do poder punitivo na perspectiva do Estado Social e Democrático de Direito.

A pena é a peça­chave por meio da qual o Direito Penal visa a se cons­tituir como um instrumento de organização social, que deve, concretamente, ser utilizada para a sociedade e para os homens que a integram, auxiliando a formação de uma dinâmica social que garanta, ao conjunto da população, o pleno desenvolvimento de suas capacidades e potencialidades, com respei­to à pluralidade democrática que deve matizar a sociedade moderna. Nesse quadro, têm interesse transcendental os discursos que visam à legitimação do poder punitivo (os quais se prendem, no plano superestrutural, com pou­cas variações, às funções genéricas de defesa social e, mais raramente, de segurança jurídica8; ou, mesmo, de segurança dos cidadãos), que devem ser orientandos aos fundamentos teórico­estatais da democracia, implicando, com isso, a demonstração cabal da indispensabilidade do emprego da pena para a solução de conflitos sociais.

Além disso, existem tendências teórico­criminais que se ocupam (do papel) do poder punitivo na sociedade contemporânea, tanto as que, em um polo, advogam a eliminação absoluta do recurso punitivo como forma de

7 Cf. Naucke, 2006, p. 36.8 Cf. Zaffaroni, Alagia e Slokar, 2000, p. 53.

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solução dos conflitos sociais, como as que, em outro, visam à constante am­pliação do poder punitivo; bem como, ainda, outras vertentes teóricas que se apresentam como vias intermediárias entre aqueles extremos. Trata­se de algumas formulações básicas acerca do poder punitivo: de um lado, as que partem de uma percepção segundo a qual, basicamente, se estima a irracio­nalidade e a inutilidade da pena, que estaria aliada às estruturas de classes e que tenderia a perseguir os setores mais fragilizados da sociedade (a perspec­tiva abolicionista); de outro, as que encampam propostas de recrudescimento da intervenção penal, visando a um eficientismo, cuja expressão se ancoraria em um Direito Penal de índole intervencionista, invasiva e expansionista, pouco afeito às garantias históricas de proteção às liberdades públicas e aos direitos humanos, por meio do qual deveria haver não somente a criação de novos bens jurídicos, mas, igualmente, de novos tipos penais – em razão das novas formas de criminalidade que se produziram na sociedade globalizada e complexa – e a agravação das penas já existentes9, principalmente no setor da criminalidade econômica e ecológica.

Neste estado de coisas, convoca-se a dogmática jurídico-penal para se posicionar: deveria aceitar a expansão dos mecanismos penais, como forma de enfrentamento da criminalidade contemporânea, ainda que isso implique a derrogação de garantias e modelos tradicionais de proteção dos indiví duos? Ou deveria operar com os conceitos clássicos (ou nucleares) do sistema penal, por meio dos quais se arrostaria, na medida do possível, essa criminalidade, porém sem se descurar do arcabouço constitucional protetivo, limitador da intervenção punitiva; ou, ainda, deveria construir uma via conciliatória? E, no centro desse debate, encontra­se um tema da máxima importância, uma vez que se apresenta como essencial à compreensão dessas diferentes pers­pectivas: a finalidade da pena. Cuida-se, ao lado da definição da função do Direito Penal, de uma das principais bases sobre as quais toda discussão – modelos de política criminal; princípios dogmáticos; considerações crimino­lógicas; entre outras – deve assentar­se.

A investigação sobre a finalidade da pena é, portanto, um dos eixos centrais para a compreensão do complexo sistema penal10, a cuja tarefa não somente o Direito Penal, mas igualmente outras (e variadas) disciplinas têm fornecido a sua cota de contribuição11. Existe, desse modo, uma expressiva gama de conceitos e interpretações, o que muito contribui para que não haja,

9 Silva Sánchez, 1999, p. 17­8.10 Zugaldía Espinar, 1993, p. 59.11 Bettiol, 1976, p. 77­8.

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até o presente, uma concepção aceitável, de forma geral, sobre a sua finali­dade12.

A discussão sobre os fundamentos e a legitimidade da intervenção pu­nitiva estatal coloca-se no centro de um interminável debate (político, ideoló­gico e acadêmico), em torno do qual continuam a surgir orientações que pre­tendem compatibilizar os fins do direito punitivo às novas exigências sociais.

Nas últimas décadas, de modo geral, nos domínios da Criminologia (especialmente a que se posta em um campo democrático, dentro de cujos limites se inscrevem, por óbvio, variantes de maior ou menor intensidade), estabeleceu­se certo consenso em relação à noção de que o sistema punitivo se traduz como a forma mais drástica de intervenção estatal em face do indi­víduo – haja vista às terríveis consequências estigmatizadoras e aos inegáveis efeitos criminológicos que encerra, sem se descurar, ainda, da ineficácia abso­luta do efeito ressocializador –, com o que se buscou limitar, ao máximo e sob diferentes perspectivas, a atuação dos instrumentos e das soluções jurídico­­penais. Assim, adquiriram força diversas propostas que abrangiam, grosso modo, em uma escala muito ampla, desde a simples redução do poder puni­tivo até a sua total abolição. (Essa diretriz reducionista não ostenta qualquer posição hegemônica no debate moderno, dado que se movimentam outras propostas que, na contramão dessa perspectiva, tendem ao recrudescimento punitivo13.)

12 Mir Puig, 1982, p. 15. Ainda Winfried Hassemer e Francisco Muñoz Conde (2001, p. 225-6) completam: “Desde hace siglos, no sólo el Derecho penal, sino la Filosofía, la Sociología e incluso la Moral y la Ética se han ocupado de cuál es la respuesta que debe darse a la persona que ha cometido un delito y de si el delito en general puede ser prevenido de algún modo, y si no evitar totalmente su comisión, sí por lo menos reducirla a límites soportables. En el fondo de todas las elucubraciones que se han realizado hasta la fecha, late la cuestión de si el problema de la criminalidad puede ser solucionado de una forma satisfactoria y compatible con el nivel cultural de las respectivas sociedades. Las respuestas que se han dado a estas cuestiones han sido diversas, sin que se haya llegado todavía a una concluyente y definitiva”.

13 Eduardo Demetrio Crespo (2004, p. 13­4) percebe esse fenômeno aparentemente paradoxal, ao destacar que se produziu o giro no debate, “até o ponto de perder de vista o marco político-criminal recente que tinha gerado, [...], uma evolução positiva na humanização do direito penal. O referido marco foi ‘pulverizado’, mediante sua redução ao absurdo, pela via de um crescente recrudescimento punitivo, ao sabor da demagogia política e do espetáculo de mídia. [...]. Segundo essa concepção, a preocupação pelas garantias, além do ‘efeito estético’ da proclamação dos princípios nas Exposições de Motivos, aparece como fruto da ‘falta de solidariedade’, da ‘maldade’, da ‘falta de visão’, ou, na melhor das hipóteses, da ‘ingenuidade acadêmica’, de quem se mantém nesse discurso. [...]. Foi substituído por um programa guiado por uma fé inquebrantável na capacidade de intimidação das

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Cabe lembrar, nessa ordem de consideração, que existem várias ten­dências, muitas das quais marcadamente transdisciplinares, o que dificulta, ainda mais, a avaliação crítica sobre as contribuições que têm sido ofereci­das para a compreensão do significado da pena na sociedade (tomemos, a título de mera exemplificação, a desafiadora proposta dos neorrealistas de es querda14).

Não pode perder­se de vista que o Direito Penal moderno – nascido durante a ilustração, quando da estruturação do direito punitivo moderno, com a edificação dos primeiros Estados de Direito – vivenciou uma situação de tensão permanente (ou de verdadeira crise), cuja manifestação se projetou ao Direito Penal contemporâneo, não havendo, na literatura criminal, uma explicação uniforme (ou, ainda, minimamente consensual) por meio da qual se possa bem determinar o tensionamento histórico da nossa disciplina. O que se busca, em todos os setores vinculados ao Direito Penal (Dogmática Penal, Política Criminal, Filosofia Penal), é um quadro de justificação, de va­lidade; em última análise, a demonstração de sua legitimação, por meio da qual se possa conceber (e, sobretudo, compreender) a sua necessidade social. Posta assim a questão, o grande ponto de contraste do Direito Penal atual é, inegavelmente, a sua legitimação, ou seja, a sua justificação social como fenômeno interventivo nas relações sociais, uma vez que as teorias (sobre as finalidades) da pena se prestam, a toda evidência, a dar suporte àquela necessária legitimação. Daí por que se tem como certo que o principal fator, na atualidade, de geração da crise do Direito Penal é, sem dúvida, o de sua le­gitimidade. Criar um contexto de racionalidade, de compatibilidade entre as novas exigências sociais e as (antigas) garantias públicas protetoras dos cida­dãos, conciliando-as em uma perspectiva democrática, é a tarefa da política criminal racional, mediante a qual seria possível a (re)legitimação do Direito Penal como fenômeno social, complexo e indispensável para a construção e o fortalecimento de um Estado Democrático de Direito. E a esse desiderato se deve lançar a dogmática penal verdadeiramente comprometida com a de­mocracia, ao edificar a ciência penal de envolta com o respeito aos direitos humanos. Com efeito, modernamente, a avaliação do sistema penal deve ser conduzida, sob todos os títulos, a partir de duas dimensões básicas: a função

penas – foi introduzida, sem uma menção explícita, a prisão perpétua; foram recuperadas as penas curtas privativas de liberdade inferiores a seis meses, e a multirreincidência –, o ‘deslizamento’ em direção a um Direito Penal do autor, e a limitação do arbítrio judicial”.

14 Sobre o tema: Fayet Júnior e Werlang, 2012, p. 345­65.

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do Direito Penal e a finalidade da pena em face do Estado Democrático (e Social) de Direito.

Sob a primeira dimensão, insiste­se na compreensão segundo a qual hoje, mais do que nunca, a função do Direito Penal, no Estado Democrático (e Social) de Direito, é a proteção de bens jurídicos mediante a prevenção de de­litos, porquanto a utilização das ferramentas penais, de modo proporcional à ofensa praticada e à culpabilidade do agente, além de tolerada apenas em relação aos ataques mais graves, deve inspirar­se à luz da noção da ultima et extrema ratio (e não da prima et sola ratio) e de limites (derivados do Estado De­mocrático [e Social] de Direito) relacionados ao exercício do ius puniendi, de cuja noção defluem os princípios da subsidiariedade, proteção exclusiva de bens jurídicos, fragmentariedade e legalidade, todos, em bloco, cimentados pelo princípio da racionalidade; e, finalmente, de princípios político-crimi­nais que, por meio da formalização do controle social penal, visam a garantir as liberdades dos cidadãos frente ao Estado, de acordo com o princípio de mínima intervenção e os demais princípios garantistas. Na perspectiva da segunda dimensão, o núcleo básico em relação ao qual o sistema todo deve ser construído é o da evitabilidade dos delitos, mediante a prevenção geral, desde que haja limites necessários ao poder punitivo do Estado, para preser­var nessa função preventiva aquilo que ela deve ter (no máximo possível) de justa e racional; e que esteja a serviço da preservação da ordem democráti­ca, com um mínimo custo à liberdade individual. Agrega-se que prevenir é, porém, mais do que dissuadir, dado que se deve entender por “prevenir” a intervenção nas causas do problema criminal. Os programas de prevenção primária são, obviamente, mais úteis do que os de prevenção secundária; e estes, mais do que os de prevenção terciária. Considerados esses aspectos, a função da pena, na dimensão da democracia, é prevenir os delitos, entenden­do-se por tal prevenção uma política racional e proporcional, ancorada em vários princípios que visam a dar proteção ao indivíduo, notadamente aquele traduzido pela teoria do Direito Penal mínimo – que objetiva a redução subs­tancial do poder punitivo. Somos aqui acordes que a função da pena depende da função que se atribui ao Estado; e, nesse sentido, parece não haver dificul­dades em se dizer de forma clara e direta que, na perspectiva de um Estado Democrático de Direito, a pena, essencial e fundamentalmente, deve assumir uma função preventiva.

A legitimação do poder punitivo estatal – cuja compreensão envolve tanto a linearidade histórico­construtiva dos discursos de sua legitimação quanto as atuais tendências de avaliação do fenômeno – deve encasar­se, em maior ou menor escala, na ressonância do desenvolvimento de políticas cri­

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minais racionais. Em uma fórmula sintética, a operatividade do poder puni­tivo pode implicar restrição da esfera de liberdade do cidadão. Diante disso, à dogmática jurídico-penal cumpre ocupar uma posição de vanguarda, de fiel compromisso com a democracia, de defesa da Constituição, concebendo a pena tão somente como um derradeiro recurso de resolução de conflitos e de contenção social, preservando, sempre, as garantias do imputado e limi­tando, sempre, a vocação expansiva do poder (punitivo), pois a histórica im­perfectibilidade do sistema punitivo não autoriza nem inspira outra atitude.

referêNciaSANIYAR DE CASTRO, Lolita. Seguridad: propuestas para una vida sin miedo y

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o fuNdameNto culturaliSta daS dez medidaS coNtra a corrupÇÃo: o

caSo do “aJuSte” daS NulidadeSthe cultural grouNd of the “teN meaSureS agaiNSt

corruptioN” iNitiative: the NullitieS “adJuStmeNt” caSeRicaRDo JacoBsen gloeckneR*

Felipe lazzaRi Da silveiRa**

RESUMO: O presente artigo tem como escopo analisar a corrup­ção, sobretudo as compreensões distorcidas sobre o fenômeno, bem como identificar em que medida e de que modo o problema enseja prejuízos à democracia, utilizando como recorte o processo penal, mais precisamente a proposta de ajustes das nulidades presente no texto das “Dez Medidas contra a Corrupção” do Ministério Público Federal.PALAVRAS­CHAVE: Corrupção; culturalismo; processo penal; nu­lidades.ABSTRACT: The following article has the goal of analyzing corrup­tion, mainly the twisted comprehensions about the phenomenon, as well as identifying to what degree and manner the problem creates harm to democracy, employing the criminal process as a guideline, more precisely the nullities adjustment proposal found in the “Ten measures against Corruption” text of the Federal State Prosecution.KEYWORDS: Corruption; culturalism; criminal procedure; nullities.SUMÁRIO: Introdução; 1 A quem interessa o discurso do Estado mí­nimo?; 2 O culturalismo racista: a falácia da corrupção e a fragiliza­ção das garantias democráticas; 3 Anticorrupção ou corruptibilidade das formas?; Considerações finais; Referências.

* Pós­Doutor em Direito pela Università Federico II, Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná, Mestre em Ciências Criminais pela PUC/RS, Especialista em Ciências Penais pela PUCRS, Coordenador da Especialização em Ciências Penais da PUCRS, Professor do Programa de Pós­Graduação em Ciências Criminais da PUC/RS, Advogado Criminalista.

** Doutorando e Mestre em Ciências Criminais pela PUC/RS, Professor do Centro Uni­versitário Metodista – IPA, Especialista em Direito Processual Penal, Direito Constitucional e Garantias Fundamentais pela Universidad Castilla­La Mancha (UCLM), Advogado Criminalista.

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iNtroduÇÃoRecentemente, o Ministério Público Federal, com o apoio de grande

parte da sociedade brasileira e também da mídia, propôs uma série de medi­das que teriam como fim precípuo “combater” a corrupção. As “Dez Medi­das contra a Corrupção”, em apertada síntese, propõem como solução para o problema da corrupção, entre outras práticas incompatíveis com o regime democrático1, a redução de garantias processuais penais, conforme analisare­mos no emblemático ponto da proposta que trata das nulidades.

A ideia central que motivou tal proposta e também sua aceitação por diversos setores da sociedade civil é baseada em uma concepção reducionista que compreende o problema da corrupção no Brasil como endêmico e resul­tante de dois vetores, a “cultura da corrupção” supostamente herdada dos colonizadores ibéricos e a impunidade gerada por um processo considerado pelo senso comum como benevolente.

Conforme analisaremos no decorrer do trabalho, a corrupção está pre­sente em qualquer país ou sociedade, tendo em vista que, diante da homoge­neização das subjetividades, os comportamentos nas sociedades ocidentais tornaram-se bastante semelhantes. Assim, a versão que qualifica a socieda­de brasileira como “tendencialmente corrupta” por força do legado colonial, como veremos a seguir, não se sustenta. A impunidade logicamente vincu­lada ao processo penal também é um argumento contestável, na medida em que o processo sequer é o instrumento adequado para o trato do problema da corrupção. É evidente que, em países marcados por um profundo déficit democrático (leia-se: insuficiência na prestação de direitos básicos e ineficá­cia em sua garantia) e pela ausência de um sistema de controle adequado, os níveis de corrupção podem ser mais elevados do que em outros países ou regiões nos quais tais fatores não se fazem presentes. Entretanto, partimos do pressuposto de que em quaisquer dos cenários a redução dos direitos e das garantias constitucionais em sede de processo penal não é a medida correta para se lidar com o problema.

Desse modo, tendo em vista que a leitura politicamente distorcida do problema da corrupção, que encontra importante ponto de contato com as demandas pelo recrudescimento da justiça penal, ambas baseadas na redução

1 Talvez o maior exemplo do cariz não democrático das “Dez Medidas contra a Corrupção” seja o “Teste de Integridade” previsto na Medida nº 2, que prevê que os funcionários públicos sejam esporadicamente submetidos a testes surpresa, onde lhes seriam oferecidos vantagens indevidas com o intuito de testar a honestidade, o que ao nosso juízo é uma medida completamente incompatível com o regime democrático.

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das garantias democráticas, o presente artigo tem como objetivo identificar e analisar o modo como os discursos que lastreiam tais compreensões (con­vocadas a partir de discursos (neo)liberais) foram forjados e mantiveram­se vigentes ao longo do tempo, bem como os meandros dessa dinâmica que, ao fragilizar os limites no processo penal, fere gravemente o regime democrático em sua essência.

1 a Quem iNtereSSa o diScurSo do eStado míNimo?A história do Brasil é marcada por inúmeros episódios de convulsão

política, em regra, ensejados pelos conflitos de interesses das elites. Em que pese a participação de outros estratos da população, sobretudo da classe mé­dia, as dissonâncias e rupturas no campo político jamais resultaram em uma efetiva mudança de paradigma, já que culminaram apenas na alternância de poder entre as elites militares e civis. É relevante recordar que a República foi forjada mediante um golpe que afastou o governo imperial e que seus dois primeiros presidentes pertenciam à elite militar (Marechal Manuel Deodoro da Fonseca – 1889 a 1891; e Marechal Floriano Vieira Peixoto – 1891 a 1894). Nos períodos históricos subsequentes, desde a fase de acomodação das oli­garquias, passando pela Era Vargas e pela Ditadura Civil­Militar, o que se viu foi a constituição de um Estado autoritário e intervencionista que sempre favoreceu as elites e seu espaço preferido, ou seja, o mercado. Mesmo quando o poder esteve nas mãos das elites civis, os militares jamais se ausentaram do cenário político. Desse modo, o aprimoramento do aparelho burocráti­co e a modernização do País acabaram sendo conduzidos pelos tecnocratas oriundos das elites militares e civis, o que logicamente contribuiu para que o Estado fosse direcionado para assegurar mormente os interesses das classes mais privilegiadas2.

Com o fim do último período ditatorial e o advento da democracia3, muitos brasileiros alimentavam a esperança de desfrutar de um verdadeiro sistema de representação política e de um contexto social mais justo e igua­litário, o que acabou não se concretizando. O Brasil iniciou seu percurso de­mocrático enfrentando um quadro de profunda injustiça social, acometido por uma radical crise econômica, imerso em dívidas internas e externas que

2 TAVARES, José Antônio Giusti. A estrutura do autoritarismo brasileiro. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. p. 105­138­164.

3 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, Art. 1º: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui­se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos [...]”.

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haviam sido contraídas pelos governos militares por ocasião do “milagre econômico”4, bem como por outros graves problemas, muitos deles refle­xos daquele contexto, como os elevados índices de desemprego e a violência urbana5.

O conservadorismo e o autoritarismo ainda arraigados nos campos político e social contribuíram sobremaneira para que os obstáculos ao esta­belecimento de uma democracia plena permanecessem. A não consolidação da democracia pode ser explicada pela própria incompletude do processo de transição democrática, especialmente pelo fato de que os militares ainda detinham certo poder naquele momento (também marcado pela ausência de uma efetiva reforma estrutural das instituições, o que impediu que nossa so­ciedade rompesse com o legado dos regimes políticos anteriores6). Destarte, a tradição autoritária, acompanhada de uma concepção paroxista de Estado li­beral, seguiu ditando os rumos da sociedade brasileira mesmo após o estabe­lecimento do regime democrático. Não foi à toa que a concepção autoritária da política seguiu predominando no imaginário e nas manifestações políticas e culturais das elites e também das classes populares7.

Diante de alguns detalhes da formação social brasileira, sobretudo das distorções operadas na defesa dos ideais liberais clássicos e em nome da manutenção da estrutura e da ordem estabelecida pelas elites (ordem essa que também foi assegurada por meio de expedientes violentos)8, os gover­nos pós-ditatoriais encontraram dificuldades para adequar o Estado brasi­leiro ao regime democrático. Diante disso, os princípios democráticos es­tabelecidos nos tratados e nas convenções interacionais elaborados após a

4 CORBISIER, Roland. Raízes da violencia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 18­19.5 BENEVIDES, Maria Victoria. Violencia, povo e polícia. São Paulo: Brasiliense, 1983.

p. 30­31­37.6 SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Memória e reconciliação nacional: o impasse da

anistia na inacabada transição democrática brasileira. In: PAYNE, Leigh; ABRAO, Paulo; TORELLY, Marcelo (Org.). A anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Oxford: Oxford University, Latin America Center, 2011. Disponível em: <http://www.portalmemoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/media/2011livro_OXFORD.pdf>. Último acesso em: 21 jan. 2017. p. 198.

7 CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2011. p. 71.

8 MAZZEO, Antônio Carlos. Estado e burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 108.

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Segunda Grande Guerra absorvidos pela Constituição de 1988 nunca foram plenamente respeitados pelo Estado brasileiro. Mais de três décadas após o fim do período ditatorial, mesmo que o regime democrático tenha sido mais benéfico e efetivo no que diz respeito ao oferecimento de direitos e garantias do que qualquer um dos regimes anteriores, os governos dos mais diversos partidos que ocuparam o poder não conseguiram promover a consolidação da democracia, na medida em que não conseguiram oferecer direitos básicos, como saúde, educação, segurança, trabalho, moradia, etc. a uma significati­va parcela da população9. O autoritarismo também seguiu campeando em outras diversas esferas, como, por exemplo, no processo penal. Com uma es­trutura legal copiada do regime fascista italiano, fator que viabilizou o forta­lecimento do conservadorismo e do autoritarismo no Judiciário, as reformas operadas após a democratização foram insuficientes para adequar o processo penal brasileiro ao regime democrático. Sendo assim, seguimos convivendo com dispositivos e práticas processuais autoritários, distorções que podem ser constatadas na banalização da prisão preventiva, na relativização das ga­rantias e das nulidades, e em outras situações procedimentais.

Adentrando no cerne do presente escrito, é importante pontuar que todos os problemas resultantes do modo como o Estado brasileiro foi condu­zido ao longo do tempo ainda serviram para fomentar a visão equivocada, embora naturalizada no senso comum, no sentido de que o Estado é o cul­pado por todas as mazelas da vida social. Nesse ponto, é imperioso lembrar que a criação do Estado e da sociedade civil, concepções que possuem raízes no pensamento liberal moderno, foi necessidade imposta pelo pela própria transição para o sistema capitalista10. É que o Estado se tornou um aparato imprescindível na dinâmica capitalista, principalmente pela sua capacidade de organizar e assegurar a produção por meio da exploração da mão de obra de trabalho e a troca de mercadorias. Sem o advento das instituições típicas

9 Resumidamente, é necessário considerar que a democracia é um regime de governo baseado em um conjunto de instituições que viabilizam a expressão horizontal do poder, que não está livre de dissonâncias, tendo em vista que sua essência reside no dissenso. Contudo, além da possibilidade de efetiva representação política, um regime democrático poderá ser considerado pleno, consolidado, somente quando prover uma série de direitos da população, sobretudo os mais básicos. Cf. BOBBIO, Norberto. As ideologias e o poder em crise. São Paulo: Polis, 1988; BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1988; RANCIERE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014; MOUFFE, Chantal. Sobre o político. São Paulo: UMF/Martins Fontes, 2015.

10 MONTAÑO, Carlos; DURIGUETTO, Maria Lúcia. Estado classe e movimento social. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2010. p. 22.

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do Estado moderno, sobretudo as jurídicas, na medida em que promoveram a consolidação do mito do sujeito de direito, da autonomia de vontade e do contrato, a operacionalidade do sistema capitalista seria inviável. Sem o Esta­do na condição de “terceiro mediador”, o domínio da produção seguiria sen­do exercido de modo direto, ou seja, não teríamos evoluído do modo servi­dão­escravidão. Segundo Mascaro, esse caráter de “terceiro mediador” reve­la uma natureza estatal que não é baseada unicamente na repressão, mas sim no aperfeiçoamento da constituição social e na geração de um nível político que permita a construção das subjetividades necessárias para a concretização das garantias jurídicas e políticas imprescindíveis para o desenvolvimento do regime capitalista11.

É lógico que o Estado jamais se prestará a ser uma estrutura ou um aparato neutro, uma vez que seu direcionamento sempre tenderá a atender os interesses de quem o governa, condição que nos autoriza a inferir que um Estado poderá ser conduzido para os mais diversos fins. No que tange à refle­xão proposta no presente escrito, é de curial importância destacar o Estado de Bem­Estar Social (modelo estatal mais demonizado pela direita na conjuntu­ra atual), conforme Montaño e Duriguetto, foi pensado por meio de inúmeras perspectivas, entre elas a liberal, que atribuía ao Estado o dever de assegurar os interesses sociais, promover a igualdade e a justiça social, buscando para­lelamente evitar a tirania da maioria ou até mesmo a anarquia generalizada, concepção que foi aprimorada e posteriormente se materializou no Welfare State do século XX12.

Cumpre registrar que, no Brasil, o modelo de Estado de Bem­Estar So­cial nunca se consolidou. Mesmo que ao longo do tempo algumas políticas típicas do Welfare State tenham sido esboçadas13, o Estado brasileiro jamais conseguiu efetivar plenamente os direitos básicos e estancar a exclusão so­cial. Entretanto, a responsabilidade não deve ser atribuída ao Estado como aparato (por mais que sua estrutura pudesse ser aprimorada), mas sim ao modo como o poder estatal foi exercido no curso da história, na medida em que foram os detentores desse poder que optaram por priorizar os interesses das elites em detrimento das demandas da população. Como resultado, a ne­gligência estatal no caso brasileiro fez com que os direitos mais básicos pas­

11 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 18.12 Montaño e Duriguetto, op. cit., 2010, p. 139-140.13 Cf. GRIN, Eduardo José. Regime de bem-estar social no Brasil: três períodos históricos,

três diferenças em relação ao modelo europeu social­democrata. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, São Paulo, FGV, v. 18, n. 63, 2013.

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sassem a ser vistos como favores prestados pelo Estado, realidade que deu ensejo a uma espécie de subcidadania, cujos titulares (pobres) são governa­dos quase que exclusivamente por meio de expedientes policialescos14. Nesse panorama, o processo penal logicamente sempre foi protagonista, sendo vis­to tanto por alguns juristas quanto pela população como um instrumento útil para a solução de questões sociais, sobretudo do fenômeno da criminalidade.

Esse dado é interessante porque demonstra a incoerência do discurso que defende o trato da corrupção por meio da redução do Estado – que sob esse prisma seria imenso e intervencionista devido às benesses que oferece aos estratos menos privilegiados da população – em detrimento do mercado, ou por meio de expedientes autoritários que dependem da relativização de direitos e garantias, mormente as processuais, como os famigerados “pacote anticorrupção”, “medidas anticorrupção” ou “medidas de combate à corrup­ção”. Não tendo o Welfare State se consolidado no Brasil, logicamente é equi­vocado pensar que o Estado brasileiro, alguma vez em sua história, tenha agido como um grande pai provedor e que isso, paralelamente a uma suposta índole corrupta herdada pela sociedade brasileira dos colonizadores portu­gueses, seja a causa do problema da corrupção. Errado também é pensar que o processo penal, principalmente quando recrudescido, seja um instrumento adequado ou eficiente para tratar do problema da corrupção. É inteligente reconhecer que, na atual conjuntura sociopolítica, esse raciocínio autodecla­rado liberal, apoiado no culturalismo racista e suas concepções deterministas da sociedade brasileira, descrita como irremediavelmente atrasada, passional e corrupta (o que supostamente seria um traço herdado dos colonizadores portugueses), vem permitindo a manipulação da corrupção em nome de in­teresses esdrúxulos, inviabilizando também a adoção de políticas e medidas adequadas ao trato do problema.

O quadro atual parece ser bastante exemplar em relação a tais hipóte­ses. Evidentemente, os governos do período pós-ditatorial, independente das diferenças ideológicas, deram primazia ao mercado e à economia, deixando em segundo plano as questões sociais. Na verdade, todos eles sucumbiram aos problemas do capitalismo típicos do contexto neoliberal globalizado, ou seja, necessitaram priorizar esforços e fazer concessões para amenizar os pro­blemas econômicos e satisfazer os interesses comerciais do mercado, ações

14 Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro: Teoria geral do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1 v., 2003; e BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

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que sabidamente beneficiaram alguns setores, mas não resultaram necessa­riamente no crescimento das vagas de empregos, no aumento da renda ou na melhora da qualidade de vida da população15. Todavia, diante dos abalos econômicos e políticos que atingiram com força o país após 2011, acirrando sobremaneira a disputa política polarizada entre direita e esquerda, a cor­rupção ganhou demasiado destaque. É claro que o problema da corrupção deve ser enfrentado; entretanto, no caso brasileiro, as frequentes operações policiais espetaculares destinadas à apuração de crimes desta natureza tor­naram­se muito mais eventos úteis para determinados setores do que ações dotadas de eficácia para tratar do problema. Do caso “Mensalão” às marchas que tomaram conta das ruas do País em junho de 2013, o que se viu foi que o tema ganhou cada vez mais visibilidade, passando a ser constantemente explorado pelos meios de comunicação para satisfazer interesses econômicos e políticos. Desde então, as acusações de corrupção envolvendo “políticos” e empresários, mesmo sem ter sido julgadas, tornaram­se armas ou moeda de troca no campo político, sendo decisivas para interrupções de mandatos, mudanças nas ocupações de cargos públicos, etc.

O cenário marcado por crescentes conflitos tornou-se bastante propício para o retorno de algumas concepções reducionistas sobre os problemas polí­ticos e sociais, sobretudo para a formação de um consenso em torno da visão de que o Brasil é o País mais corrupto do mundo e de que o Estado per si é o responsável pela corrupção, sendo coroado com a instauração da maior ope­ração policial relacionada à corrupção da história do País, a “Operação Lava Jato”, que provocou radicais consequências no plano político. A “Lava Jato” teve influência direta até mesmo no impeachment da Presidenta da Repúbli­ca, mas seus reflexos, reforçados pelo discurso populista anticorrupção, con­tribuíram ainda para a disseminação e legitimação do discurso (neo)liberal amplamente divulgado por movimentos formados no seio da classe média e apoiados por grandes conglomerados empresariais. Desde então, conforme interpretou Souza, o meio acadêmico e o senso comum restaram cada vez mais permeados pela ideia de que o Estado é uma estrutura anacrônica que conduz à corrupção e às injustiças, enquanto que o mercado configura um “local” puro, justo e livre da corrupção16. Paralelamente, o velho discurso no sentido de que as garantias processuais são a causa da impunidade e,

15 DUMÉNIL, Gérard; DOMINIQUE, Lévy. A crise do neoliberalismo. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 63­64; 213­220; 242­328.

16 SOUZA, Jessé. A tolice da inteligencia brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015. p. 255.

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consequentemente, dos elevados índices de criminalidade em nosso País, se deslocou da seara dos crimes comuns para o debate sobre os “crimes do co­larinho branco”, conforme podemos observar nas manifestações favoráveis à implementação das “Dez Medidas contra a Corrupção” propostas pelo Mi­nistério Público Federal17.

Considerando as características da sociedade contemporânea (das quais a sociedade brasileira não está imune), sobretudo o ritmo de vida ace­lerado18 e o direcionamento para o hiperconsumo19, é natural, conforme as­severou Chauí, que a democracia liberal tenha se tornado uma democracia de mercado. Na medida em que o cidadão é definido como consumidor e o Estado deixa de ser visto como um garantidor de direitos para se tornar um ente provedor do consumo, o Estado Democrático é considerado viável pelo senso comum somente quando o acesso aos bens de consumo não se encon­tra ameaçado20. Assim, quando instalado um quadro de crise econômica que afeta o mercado e o consumo, principalmente em uma sociedade tradicional­mente conservadora, o Estado Democrático é facilmente demonizado. Por fim, não podemos deixar de pontuar que, no caso brasileiro, o discurso que acusa a ineficiência do Estado normalmente é encorpado pelo problema da corrupção na condição de uma espécie de “enfermidade crônica” presente no “DNA” da sociedade.

Em apertada síntese, é possível constatar que o pensamento majoritário sobre a corrupção a desvincula completamente de questões de cunho político e social, ignorando sua relação com o modo autoritário e excludente como o Estado brasileiro foi conduzido ao longo do tempo21. Muitos parecem esque­cer, conforme comentamos antes, que o Estado de Bem­Estar Social nunca se consolidou no Brasil, o que indica que os problemas enfrentados pelo País

17 Cf. Dez Medidas contra a Corrupção. Disponível em: <http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/>. Último acesso em: 10 mar. 2017.

18 Cf. VIRILIO, Paul. A inércia polar. Trad. Ana Luísa Faria. Lisboa: Dom Quixote, 1993; e VIRILIO, Paul. Velocidade e política. São Paulo: Estação Liberdade, 1997.

19 Cf. LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007; e LIPOVETSKY, Gilles. O império do efemero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

20 Chauí, op. cit., 2011, p. 145-146.21 Cf. CHAUÍ, Marilena. Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. Belo Horizonte:

Autêntica; São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2013; e SOUZA, Ricardo. Identidade nacional, raça e autoritarismo: a Revolução de 1930 e a interpretação do Brasil. São Paulo: LCTE Editora, 2008.

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hodiernamente, devido, sobretudo, à má gestão dos recursos e à corrupção, não podem ser atribuídos à existência de um Estado efetivamente provedor de direitos, políticas sociais e benefícios à população, tendo em vista a sua inexistência. A questão é complexa e instigante, mas faz muito sentido quan­do notamos que o discurso do Estado mínimo serve perfeitamente aos inte­resses neoliberais de maximizar o poder do mercado.

Diante dos últimos acontecimentos relacionados à corrupção, parece claro que o habitus22 que sustenta a crença da sociedade brasileira em sua pró­pria inferioridade (ou seja, que seus infortúnios são oriundos de sua índole corrupta e de sua incapacidade de lidar com um Estado anacrônico) segue sendo cada vez mais reforçado e, assim, produzindo a erosão dos princípios democráticos, conforme podemos observar no exemplo das “Dez Medidas contra a Corrupção”, que propõe a relativização/destruição de garantias fundamentais do processo penal democrático sob o pretexto de erradicar a corrupção.

2 o culturaliSmo raciSta: a falácia da corrupÇÃo e a fragilizaÇÃo daS garaNtiaS democráticaS

Para se identificar a origem e os meandros da dinâmica que possibili­tou a permanência do discurso sobre a corrupção no campo acadêmico e no senso comum, o que historicamente contribuiu para que o problema fosse manipulado em nome de diversos tipos de interesses e deixasse de ser devi­damente tratado, faz-se necessário refletir sobre algumas questões, como: A sociedade brasileira possui realmente uma índole corrupta? Existe um “lu­gar” privilegiado para a corrupção? De onde surgiram as concepções dis­torcidas sobre o tema e por que ainda seguem arraigadas no imaginário da nossa sociedade?

Inicialmente, é imperioso considerar que, legalmente, o crime de cor­rupção tem seu núcleo baseado em ações do tipo solicitar, receber, exigir, cobrar ou obter vantagem indevida, condutas que podem ser praticadas por funcionários públicos (modalidade passiva) ou particulares (modalidade ati­va). Em síntese, é possível afirmar que a criminalização da corrupção tem como fim assegurar as relações equânimes entre o Estado e os indivíduos, bem como o bem­estar dos cidadãos, já que tal conduta afeta diretamente o oferecimento de direitos básicos. Todavia, mesmo entendendo ser necessário

22 Habitus, na concepção de Pierre Bourdieu, é um sistema de disposições que definem o modo como percebemos as coisas, sentimos ou pensamos, e guiam nossas ações (BORDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004).

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proteger o Estado da corrupção, não podemos desconsiderar que condutas semelhantes às criminalizadas pelo Código Penal são bastante comuns no âmbito do mercado, na medida em que não raras vezes são as vantagens in­devidas que determinam os rumos das negociatas entre particulares. Não foi por acaso que muitos países criminalizaram a corrupção privada com o intui­to de reprimir condutas moralmente repudiáveis e também evitar prejuízos às empresas23. É evidente que condutas relacionadas ao oferecimento ou rece­bimento de vantagens indevidas ocorrem não apenas no âmbito estatal, mas também na esfera privada.

A maioria das pesquisas e análises sobre a corrupção é insuficiente para embasar comparações entre as experiências internacionais relaciona­das ao problema24; no entanto, os poucos dados publicados, mesmo que não permitam raciocínios conclusivos, já que são baseados em parâmetros como “percepção” ou “sensação” sobre a corrupção e não em dados quantitativos sobre casos concretos (e mesmo que apresentassem esses dados deveríamos desconfiar, tendo em vista que a cifra negra sobre tal conduta provavelmente seja imensa), demonstram que o problema pode ser verificado em diversos países, e não apenas no Brasil. Portanto, independente das críticas que tece­remos a seguir sobre estes e outros dados, é possível concluir, de início, que o Brasil não é o único e nem mesmo o país mais corrupto do mundo25.

23 Nesse sentido, os melhores exemplos são a Foreign Corrupt Practices Act, lei federal norte­ ­americana de 1977 cujo objetivo é o combate à corrupção pública transnacional praticada por pessoas físicas e jurídicas que fazem pagamentos a agentes governamentais estrangeiros para auxiliar na obtenção ou retenção de negócios. A mencionada lei visa a controlar também a corrupção privada de maneira transversal, em razão dos registros contábeis denominados books and records. Destacamos, ainda, o moderno Bribery Act de 2010, por meio do qual são puníveis pagamentos de suborno ou propina no setor privado, visando a vantagens indevidas. Trata­se do chamado private-to-private bribery, apenado com até 10 (dez) anos de prisão e/ou multa. Cf. Foreign Corrupt Practices Act. Disponível em: <https://www.justice.gov/sites/default/files/criminal-fraud/legacy/2012/11/14/fcpa-english.pdf>; e Bribery Act. Disponível em: <http://www.legislation.gov.uk/ukpga/2010/23/contents>. Último acesso em: 26 jan. 2017.

24 Cf. FIGUEIRAS, Fernando. A tolerância à corrupção no Brasil: uma antinomia entre normas morais e prática social. Revista Opinião Pública, Campinas, Unicamp, v. 15, n. 2, p. 406, nov. 2009.

25 A ONG (Organização Não Governamental) Transparência Internacional divulgou, no dia 25 de janeiro de 2017, novo relatório contendo um ranking internacional da corrupção que usa como base a percepção dos cidadãos de diversos países sobre a corrupção onde o Brasil figura na 79ª posição de um total de 176 Estados avaliados (Disponível em: <https://www.

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Nessa esteira, é importante registrar que nem mesmo os países cen­trais, considerados por muitos teóricos como modelos de sociedade, estão livres da corrupção. Não podemos deixar de mencionar que, recentemente, os Jornalistas Amy e David Goodman desvelaram inúmeros casos de corrup­ção envolvendo os governos dos Estados Unidos e de outros países, quase sempre em conluio com o setor privado, o que confirma a hipótese de que o problema ocorre em todos os países, seja na esfera estatal ou no mercado26. Sendo assim, é demasiado reducionista afirmar que o Estado é o “lugar” pri­vilegiado para esse tipo de conduta ou que a corrupção é um problema tipi­camente brasileiro.

É plausível pensar que alguns países possam apresentar maiores índi­ces de corrupção do que outros, mas não é correto afirmar que o problema esteja atrelado a uma índole ou cultura corrupta da população ou do Estado. Parece-nos claro que a corrupção em índices elevados é viabilizada, princi­palmente, pelos déficits democráticos e pela ausência de controle adequado. No caso do Brasil, não podemos ignorar que o regime democrático ainda carece de efetivação de seus princípios e valores basilares, o que torna o am­biente propício para a corrupção e também para o descrédito dos cidadãos em relação às instituições que, consequentemente, são vistas com desconfian­ça e indiferença27.

Ao nosso juízo, o questionamento que busca desesperadamente a ori­gem da corrupção no Brasil nos dias de hoje, por si só, já é tendencioso, pois a corrupção é uma conduta que, inclusive, precede as sociedades pré­mo­dernas, o que inviabiliza qualquer tentativa de se proceder a uma conexão entre os casos verificados no contexto atual e os ocorridos nos primórdios, como se fosse possível que a corrupção pudesse ser transmitida na condição de herança cultural. É de se suspeitar que esse raciocínio seja tão descabido quanto se buscar um elo cultural entre os homicídios praticados atualmente e os cometidos em um longínquo passado, ignorando que os motivos que contribuem para a ocorrência desses crimes podem variar de acordo com o

transparency.org/news/feature/corruption_perceptions_index_2016>. Último acesso em: 27 jan. 2017).

26 Cf. GOODMAN, Amy; GOODMAN, David. Corrupção à americana. São Paulo: Bertrand Brasil, 2005.

27 MOISÉS, José Álvaro; CARNEIRO, Gabriela Piquet. Democracia, desconfiança política e insatisfação com o regime: o caso do Brasil. Opinião Pública, Campinas, v. 14, n. 1, 2008. Disponível em: <http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/op/article/view/8641266/8779>. Último acesso em: 29 jan. 2017.

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tempo (ou situação). Mesmo assim, muitos “especialistas” e homens públi­cos, como juízes e promotores de justiça que atuam em processos de grande magnitude que apuram crimes de corrupção, seguem afirmando publica­mente que o Brasil é um País demasiadamente corrupto pelo fato de ter her­dado tal característica dos colonizadores portugueses. O fato é que, diante da constante legitimação pseudocientífica e midiática que recebe, esse discurso vem ganhando cada vez mais espaço no imaginário comum e tornando cada vez mais distante qualquer possibilidade de controle adequado do problema.

Em um trabalho paradigmático em que analisou o tema da corrupção, Souza rechaçou a teoria culturalista, acusando­a de conceber erroneamente as sociedades não centrais sob um prisma hegemônico, como se todas fos­sem inevitavelmente atrasadas, composta por indivíduos demasiadamente afetivos, passionais e, consequentemente, corruptos, ao contrário das socie­dades centrais, sobretudo a norte­americana, que são modernas, impessoais, confiantes e honestas. Na concepção do autor, o culturalismo é equivocado desde sua essência porque ignora que não existem sociedades impessoais, ou seja, sociedades em que as relações pessoais não sejam determinantes para o acesso aos privilégios. Ademais, conforme salientou, trata­se de uma teoria racista, tendo em vista que nega o fato de que todas as sociedades ocidentais possuem inúmeras características semelhantes, sendo divididas em classes e vulneráveis às contradições do sistema capitalista. Contudo, segundo Souza, o culturalismo acabou se cristalizando no imaginário comum da sociedade brasileira porque adquiriu status de “verdade científica”, na medida em que importantes intelectuais utilizaram esse paradigma (criado por estudiosos contratados e financiados pelo Governo dos Estados Unidos para idealizar a sociedade norte­americana e legitimar sua supremacia sobre outras socieda­des) para construir suas teorias28.

Souza ponderou que o culturalismo obteve sucesso no meio acadêmico porque articulou com habilidade as noções de personalismo e patrimonialis­mo para demonstrar uma suposta singularidade cultural e social pré­moder­na presente na sociedade brasileira, característica que teria sido determinante para o estabelecimento de uma hierarquização exacerbada com base em re­lações pessoais, algo típico das sociedades consideradas periféricas. Segundo Souza,

seria esse capital de relações com pessoas influentes que consistiria o “per­sonalismo”, ou seja, relações de favor/proteção enquanto fundamento da hierarquia social; quanto o “patrimonialismo”, isto é, uma vida institucio­

28 Souza, op. cit., 2015, p. 23­24­25.

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nal que tem como fundamento uma “elite” estatal, também pré­moderna que parasitaria toda a sociedade.29

Esmiuçando o pensamento “colonizado até os ossos” pelo culturalismo, Souza destacou o papel fundamental exercido por intelectuais como Gilberto Freyre, Raymundo Faoro, Sérgio Buarque de Holanda e Roberto DaMatta para a consolidação do caráter cientificista da visão que compreende a socie­dade brasileira como sendo corrupta por natureza, por força de sua ligação pretérita e indissolúvel com os colonizadores ibéricos. É que os trabalhos des­ses teóricos, por serem fulcrados no binômio personalismo­patrimonialismo, permitiram a consolidação do mito de que o brasileiro seria um indivíduo extremamente cordial em sua vida privada e, por isso, por priorizar as rela­ções de amizade e compadrio, tenderia a se corromper na vida pública. Ao longo do tempo essa “falsa verdade” serviu de sustentáculo para a ideia de que o Brasil é um País extremamente corrupto devido à índole de seu povo, permitindo a manipulação do problema da corrupção em nome de diversos interesses, entre eles o (neo)liberal, em fazer com que o mercado pareça um lugar repleto de virtudes, enquanto o Estado seria o responsável por todas as mazelas sociais, incluindo a corrupção30.

Seguindo tal hipótese, com o objetivo de traçar uma perspectiva genea­lógica da cosmovisão que embasa a crença de que a sociedade brasileira pos­sui uma índole corrupta, entendemos ser importante destacar alguns pontos importantes do pensamento dos referidos estudiosos brasileiros. Souza asse­verou que Gilberto Freyre foi o criador da forma de como o Brasil percebe a si mesmo, já que foi ele quem idealizou a miscigenação do povo brasileiro, bem como a continuidade da cultura portuguesa, características que teriam tornado nossa sociedade tolerante e agregadora. Em sua obra mais impor­tante, Casa-grande & senzala (1933), Freyre descreveu a Casa­Grande como um símbolo da inexistência de conflitos entre os senhores de engenho e os escravos, salientando que ambos dividiam aquele espaço e conviviam em um “processo de equilíbrio de antagonismos” que promovia a redução das diferenças sociais31.

Outros dois importantes intelectuais que contribuíram para que a ideia de que a sociedade brasileira apresenta peculiaridades herdadas dos por­tugueses adquirisse o status de “verdade científica” foram Sérgio Buarque

29 Idem, p. 29.30 Idem, p. 31­32.31 FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. 51. ed. São Paulo: Global, 2005. p. 67.

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de Holanda e Raymundo Faoro. Buarque de Holanda, como bem lembrou Souza, pode ser considerado o pai das ciências sociais brasileiras do século XX, pois foi quem construiu a “ideia força” mais importante do Brasil moder­no, tese que forneceu subsídios fundamentais para a consolidação de uma percepção da relação entre mercado, sociedade e Estado, na qual o mercado é concebido como um local virtuoso e o Estado demonizado. Foi Buarque de Holanda quem criou o mito do “homem cordial”, uma concepção determi­nista que descreve o brasileiro como alguém que divide o mundo entre ami­gos e inimigos, que tende a privilegiar as pessoas com quem mantém relações mais próximas. Ele ainda teve o capricho de situar esse “homem cordial” e particularista nos meandros de um suposto sistema estatal patrimonialista, edificando um arranjo que se tornou extremamente interessante diante de seu potencial para embasar “cientificamente” análises pseudocríticas sobre a sociedade brasileira32.

Em Raízes do Brasil, a tônica do pensamento de Buarque de Holanda é bastante evidente. O historiador chegou a teorizar que “[...] somos dester­rados em nossa terra”33, em uma alusão ao fato de que a cultura e o com­portamento dos brasileiros foram herdados dos colonizadores ibéricos. O historiador ponderou, também, que a sociedade brasileira é diferente da norte­americana pelo fato de não ter sido colonizada pelos protestantes, por característica esforçados e trabalhadores, mas pelos povos ibéricos, que eram desapegados da “religião do trabalho” e para quem “uma digna ociosida­de sempre pareceu mais excelente, e até mais nobilitante [...] do que a luta insana pelo pão de cada dia”34. Para Buarque de Holanda, o personalismo do “homem cordial” e os paradigmas estabelecidos pelo modelo de família patriarcal que marcaram a formação política no Brasil foram decisivos para a solidificação do modo de relação existente entre os governantes e governa­dos, cuja dinâmica é lastreada pelas trocas de favores e pela confusão entre o público e o privado35.

Concordando com Souza, não podemos nos furtar de mencionar que a tese de Buarque de Holanda é passível de críticas, na medida em que sone­ga informações sobre a existência de um mundo social injusto, deslocando a atenção para aspectos menos importantes. A sua análise traçada de maneira

32 Souza, op. cit., 2015, p. 52.33 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras,

1995. p. 31.34 Idem, p. 38.35 Idem, p. 85­86.

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lúdica camufla as verdadeiras razões da desigualdade social no Brasil, bem como a origem das injustiças dos privilégios e outros problemas típicos do capitalismo. Em síntese, é possível afirmar que os argumentos de Buarque de Holanda acabam servindo para legitimar o quadro de desigualdade consta­tado no Brasil e também a ideia de que a corrupção tem no Estado um lugar privilegiado36.

Raymundo Faoro, por sua vez, colocou em definitivo o patrimonialis­mo no centro da formação sociopolítica brasileira, sobretudo no âmago da formação do aparato administrativo estatal, reforçando as teses anteriores sobre os vínculos entre a sociedade brasileira e as sociedades ibéricas. Em Os donos do poder (1958), Faoro reforçou a hipótese de que o Brasil era um País atrasado por ter herdado o modo patrimonialista de exercício de poder que vigorava em Portugal no período da colonização e também durante o perío­do imperial37. A tese de Faoro é no sentido de que a monarquia portuguesa – precursora do capitalismo de Estado – constituía um regime patrimonial baseado em um estamento político poderoso que permitia o alinhamento do poder dos aristocratas da Coroa e das elites agrárias, e que foi a transposição desse modelo para o Brasil que viabilizou a criação de um Estado que daria prioridade deste então, até mesmo depois da independência, para os interes­ses dos segmentos sociais constituídos pelos donos de propriedades e dos meios de produção, ou seja, dos donos do poder38.

Na concepção de Souza, Faoro auxiliou sobremaneira na construção da “ideia força” do liberalismo conservador brasileiro, ou seja, do pensamento que demoniza o Estado para elevar o mercado como um lugar de virtudes. Na verdade, trata­se de um pensamento que demonstra um claro desprezo pelos interesses das classes populares, já que elas, quando atendidas, foram por meio do Estado. Segundo Souza, o trabalho de Faoro também é passível de críticas na medida em que ignorou algumas questões como o fato de que as elites não estão presentes apenas no Estado, mas também no mercado, e que, após o advento das instituições modernas e o avanço do capitalismo no século XIX, o antigo modo patrimonialista de se exercer o poder estatal veri­ficado nos período da colonização e do Império se tornou inviável39.

36 Souza, op. cit., 2015, p. 52.37 Idem, p. 53.38 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed. rev.

São Paulo: Globo, 2001. p. 205.39 Souza, op. cit., 2015, p. 53­56­59­63.

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Na mesma esteira, outro trabalho contestado por Souza foi o de Roberto DaMatta. Seguidor das matrizes teóricas elaboradas por Freyre e Buarque de Holanda, o antropólogo seguiu sua construção teórica também partindo do princípio de que o Brasil herdou tradições ibéricas que se man­tiveram ativas mesmo após os processos de urbanização, modernização e industrialização40. Em suas principais obras, Carnavais, malandros e heróis e A casa e a rua, DaMatta idealizou o brasileiro na sociedade contemporânea como avesso aos rituais, ainda apegado ao personalismo e às relações de compadrio, ou seja, como alguém que visa apenas seus próprios interesses por meio da troca de favores entre amigos e familiares. Foi sobre essa base que DaMatta se apoiou para teorizar sobre o “jeitinho brasileiro” na condi­ção de um recurso de poder utilizado dentro de um sistema social dual que coloca de um lado os poderosos e, de outro, o “joão-ninguém”, raciocínio que no decorrer do tempo também serviu para amparar algumas “teses” sobre a corrupção. Segundo DaMatta, a própria sociedade brasileira teria assimila­do essa dinâmica que culmina na demonização da política, ao passo que “o resultado não passa, porém, despercebido à massa brasileira que vê na ativi­dade política um jogo fundamentalmente sujo, onde existe de tudo, menos ética. Daí a expressão ‘fulano é muito político’ para exprimir alguém que sabe cuidar de seus interesses pessoais”41.

Cumpre­nos registrar que a teoria culturalista jamais perdeu força e se­guiu sendo constantemente atualizada no meio acadêmico. Muitos estudio­sos contemporâneos que trataram da corrupção em seus trabalhos seguiram à risca esse paradigma42, enquanto outros, mesmo que buscando novos ca­minhos, não abandonaram completamente seus subsídios. É o que podemos

40 Idem, p. 70.41 DAMATTA. Roberto. A casa e a rua. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1991. p. 94.42 Tecendo considerações sobre a corrupção, Roberto Livianu, por exemplo, afirmou que

“os primeiros núcleos da colonização, os sistemas hereditários, como poder político, determinaram o surgimento de inúmeros polos geradores de corrupção. O arbítrio do donatário, aliado à ambição e ao espírito de aventura alimentado pela distância da metrópole, não ligava os homens portugueses do Brasil colonial a habituais limitações jurídicas e morais” (LIVIANU, Roberto. Corrupção e direito penal: um diagnóstico da corrupção no Brasil. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 38). Bomfim, por sua vez, sustentou que esse caráter propenso à corrupção, que se instalou sobretudo na vida política, seguiu arraigado na sociedade brasileira como uma espécie de herança antropológica, o que explicaria nossa cultura imoral e degenerada. Para Bonfim, a hereditariedade do mundo ibérico, que sempre esteve associado à exploração do além-mar e de civilizações não europeias, seria suficiente para explicar uma suposta tendência da sociedade brasileira ao parasitismo e à corrupção

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constatar nos trabalhos de Rodriguez43 e Vieira44, pois, mesmo que tenham sustentando a hipótese de que a corrupção seja um problema ensejado pela cultura autoritária e intervencionista disseminada pelas duas últimas ditadu­ras (Era Vargas e Ditadura Civil­Militar), seguiram vinculando o problema ao patrimonialismo na condição de legado cultural ibérico e, consequente­mente, municiando o discurso (neo)liberal do Estado mínimo.

É possível notar que o culturalismo foi absorvido com certa facilidade pelo meio acadêmico e pelo senso comum, restando praticamente livre de contestações mais contundentes, porque permitiu manipulações conceituais com caráter aparentemente científico. Devemos lembrar ainda do reforço que a concepção distorcida sobre a corrupção desde sempre recebe dos mass media (que possuem uma enorme influência no modo como as pessoas per­cebem o meio social em que vivem), quase sempre por força dos interesses econômicos e políticos em jogo45. Em um País politicamente dividido como o Brasil, onde casos de corrupção na esfera estatal são diariamente manipu­lados em nome dos mais diversos tipos de interesses, sendo massivamente explorados por veículos de comunicação que não hesitam em ampliar a opi­nião de (falsos) “especialistas” que apenas “requentam” o racismo científico da teoria culturalista, é natural que a visão de que o Brasil é um País corrupto por natureza siga cada vez mais enraizada e norteando o imaginário comum.

Inúmeros argumentos realmente científicos podem ser utilizados para atacar os argumentos produzidos pela teoria culturalista. Mesmo se consi­derarmos as inúmeras teorias que tratam dos paradigmas científicos ou so­ciais46, é um engano pensarmos a corrupção como uma herança cultural que sobreviveu ao tempo, resistindo ao advento das instituições democráticas modernas e da globalização, na condição de uma simples “transmissão he­reditária”. O Antropólogo Darcy Ribeiro, contemporâneo de alguns pensa­dores do culturalismo, teorizou sobre tal impossibilidade. Segundo Ribeiro, por uma questão de sobrevivência frente à necessidade de se adaptar ao meio

(BONFIM, M. A América Latina. Coleção Intérpretes do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, v. II, 2002. p. 694).

43 Cf. RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. Autoritarismo e corrupção. São Paulo: Convívio, 1985.44 VIEIRA, R. A. Amaral. Intervencionismo e autoritarismo no Brasil. São Paulo: Difel, 1975.45 TAVOSNANSKA, Norberto Ricardo. La Seguridad como Espetáculo. Buenos Aires: Cathedra

Jurídica, 2016. p. 22-72-89.46 Cf. SOUZA SANTOS, Boaventura de. A crítica da razão indolente: contra o desperdício

da experiência. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2005; e KHUN, Tomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.

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onde interage, com o passar do tempo todas as sociedades sofrem transfi­gurações47. É evidente que as sociedades ostentam peculiaridades culturais; todavia, é precipitado pensar que, em um mundo globalizado e regido pelo sistema capitalista que tende a reduzir diferenças (não podemos esquecer que a indústria cultural, os mass media e o próprio modo de vida consumista contribuíram radicalmente para a homogeneização das subjetividades), elas sigam reproduzindo a mesma dinâmica social e política de um remoto pas­sado. Por isso, a versão de que no Brasil tanto a sociedade como o Estado se­guem ostentando as mesmas características do período colonial ou imperial é inaceitável. Nesse diapasão, analisando a cultura sob o prisma de Bourdieu, Thompson asseverou que todas as sociedades globalizadas de nosso tempo buscam alcançar seus objetivos e interesses dentro de um campo de interação semelhante, cujas características permitem uma rápida mediação de diversos tipos de capitais, como culturais, simbólicos, etc., por meio da utilização de regras e convenções semelhantes que são absorvidas subjetivamente por to­das as sociedades ocidentais48. Basta refletir no sentido de que, independente de algumas tradições, um jovem brasileiro, por exemplo, apresenta um pa­drão de comportamento (e até hábitos) muito semelhante ao de um jovem da mesma faixa etária australiano, norte­americano ou alemão, principalmente se pertencer à mesma classe social.

Considerando que não existe um lugar privilegiado para a corrupção, já que a conduta pode ser verificada tanto na esfera pública quanto na priva­da, bem como que nenhuma sociedade é por índole corrupta como apregoam alguns propagadores do culturalismo, é de suma importância considerar os interesses envolvidos na manutenção da concepção que atribui ao binômio personalismo-patrimonialismo supostamente arraigado na vida política da sociedade brasileira a responsabilidade pelo problema. Nesse sentido, ana­lisando a atual conjuntura sociopolítica brasileira, em que a corrupção tem sido decisiva, Souza identificou que,

O que está em jogo, no entanto, não é a melhoria do combate à corrupção por meio do melhor aparelhamento dos órgãos de controle. O que existe é uma dramatização da oposição mercado (virtuoso) e Estado (corrupto)

47 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1985. p. 257.

48 THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 167­194­195­344.

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construída como uma suposta evidência da singularidade histórica e cul­tural brasileira.49

Considerando, ainda, que o Brasil teve uma formação social econômica diferente da de Portugal, já que aqui tivemos a escravidão como fator funda­mental, bem como que, independentemente das peculiaridades culturais, as sociedades globalizadas são bastante parecidas e que não existe “comporta­mento automático”, é inaceitável que sigamos exortando o arcabouço racista fornecido pelo culturalismo50. Não é correto pensar que o Estado é único res­ponsável pelas mazelas sociais ou que a sociedade brasileira seja portadora de uma índole corrupta. Basta abandonarmos os paradigmas que colocam nossa sociedade em posição de inferioridade, para que os reais interesses que estão por trás do discurso sobre a corrupção, apoiado na teoria culturalista, restem escancarados. Não podemos ser inocentes ao ponto de desconsiderar, por exemplo, que a posição de inferioridade na qual alguns países como o Brasil são colocados é bastante interessante para os países ricos, pois, além do acesso à mão de obra barata, a “desconfiança” inerente a tal condição permite operações financeiras vantajosas, como o oferecimento de empréstimos me­diante o pagamento de juros elevadíssimos. Por fim, é possível concluir que o maior beneficiado pelo descrédito dos cidadãos nas instituições estatais e o consequente apoliticismo fomentados pela compreensão equivocada sobre a corrupção baseada nos subsídios fornecidos pelo culturalismo racista é o discurso (neo)liberal. É que tais argumentos servem perfeitamente para fo­mentar a defesa do Estado mínimo sob um prisma antiassistencialista, ideia que vem galgando cada vez mais espaço no contexto contemporâneo e que, consequentemente, contribui para o desgaste dos direitos e das garantias ine­rentes ao regime democrático, movimento que podemos observar com clare­za no caso do processo penal e que tentaremos analisar a seguir utilizando como marco a proposta de “ajuste das nulidades” contidas nas “Dez Medi­das contra a Corrupção”.

3 aNticorrupÇÃo ou corruptibilidade daS formaS?Se, como afirma Rui Cunha Martins51, o processo é o microcosmo do

Estado de Direito, a forma seria a espinha dorsal do processo penal. Com efeito, um processo despido de formas, ou melhor, um processo no qual as

49 Souza, op. cit., 2015, p. 33.50 Idem, p. 41­59­70­77.51 CUNHA MARTINS, Rui. A hora dos cadáveres adiados: corrupção, expectativa e processo

penal. São Paulo: Atlas, 2013.

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formas desempenham meras funções acessórias ou laterais, corresponde à própria derrocada das funções exercidas pelo processo, assim como a decre­tação de sua falência como instituição (lembrando aqui das teorias que enxer­gam o processo como instituição, na esteira de Fairén Guillén, Couture, etc.).

Não é de hoje que a forma processual vem sendo atacada, tanto dou­trinária quanto jurisprudencialmente. No Brasil, em específico, encontramos uma dissociação tal entre as descrições doutrinárias e as formulações dos tribunais que seria possível, sem exagero, afirmarmos que nos encontramos em dois universos distintos, que operariam segundo parâmetros e racionali­dades diversos. Uma das propostas legislativas encabeçadas pelo Ministério Público, no tratamento da redução à corrupção, seria um “ajuste das nulida­des”. De forma preliminar, o “ajuste das nulidades” encerra­se em uma pro­posta de mais largo espectro, batizada, na falta de melhores denominações, de “pacote anticorrupção”, “medidas anticorrupção” ou, ainda, “medidas de combate à corrupção”. O primeiro e imenso problema já ocorre no pla­no linguístico. De fato, salta aos olhos a impropriedade terminológica (que, contudo, não se esgota neste ponto) utilizada pela legislação, pois o uso de termos como “anti”, “combate”, etc., para além de operarem sob a rubrica maniqueísta de duas forças em colisão (o “nós” e o “eles”, que, consoante Baratta, alicerça um dos pilares da defesa social – princípio do bem e do mal), é sustentada por uma ideologia beligerante ou belicista, que inclusive desta­ca­se em outras leis, como no caso da Lei nº 11.343/2006 (war on drugs, war on crime, etc.).

Dessa maneira, o primeiro risco, que poderia ser submetido ao escrutí­nio por meio de uma leitura criminológica crítica, corresponde ao fenômeno que Prittwitz52 denominou como militarização direito penal. O segundo risco corresponde à própria transformação do processo penal em um dispositivo político criminal de prima ratio, isto é, convertido em um garantidor da eficiên- cia do direito penal. Eis o problema específico que atravessa o corpo dos ajustes, mormente o das nulidades no processo penal. Uma concepção que percebe o processo penal como uma ferramenta exclusiva de aplicação do direito penal material (e que, evidentemente, pressupõe uma cisão completa entre direito material e processual, tributária do pensamento de Bulow) tão somente consegue vislumbrar a forma processual como obstáculo. Assim,

52 PRITTWITZ, Cornelius. Sociedade de riesgo y derecho penal. In: ZAPATERO, Luis Arroyo; NEUMANN, Ulfrid; MARTÍN, Adán Nieto (Coord.). Crítica y justificación del derecho penal en el cambio de siglo: el análisis crítico de la Escuela de Frankfurt. Cuenca: Universidad de Castilla­La Mancha, 2003.

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tornar o processo penal mais “eficiente” requer, sobretudo, a transformação de alguns institutos processuais. Não é à toa que, além do recurso à acelera­ção do processo53 (no mesmo projeto “anticorrupção” encontramos a propos­ta para o trânsito em julgado da sentença penal condenatória em segundo grau), advoga-se um princípio que se poderia denominar de “elasticidade ou contingencialidade das formas processuais” (cujo escopo é, em última instân­cia, expurgar do ordenamento processual tanto as nulidades como a prova ilícita). Pretende-se abolir quaisquer consequências negativas do desrespeito à forma processual, o que acarretaria a modificação da própria natureza do ato jurídico processual (fattispecie). Os elementos dos atos processuais tornar­­se­ão, caso implementadas tais medidas, meros “conselhos normativos” aos magistrados. Por isso, cumprir ou não a forma prescrita para o ato será mera contingência, uma vez que, como referido, a ausência de institutos garantido­res contra o desrespeito à forma dos atos processuais tornará iníquo qualquer recurso a remédios processuais. O saneamento ou a convalidação automá­tica desses atos será o corolário de um processo penal que será orientado exclusivamente pelo “princípio da não dispersão probatória”54, conjugado ao postulado do aproveitamento máximo dos atos processuais (tão ao gosto ne­oliberal que acaba por se confundir com o princípio da economia processual).

Antes mesmo de adentramos na análise do conteúdo trazido pelas re­formas, não se pode esquecer de que o termo corrupção, tal como empregado pelos redatores dos conjuntos de medidas, constitui­se como uma via norma­tiva para se garantir a corruptibilidade da forma processual. Em latim, a pala­vra corrupção advém de corruptus, particípio do verbo rumpere (que significa romper, quebrar). Se, de fato, o termo corrupção admite emprego genérico e aberto, como aquele utilizado na confecção das “medidas” legislativas, a con­clusão, portanto, é a de que para se acabar com a corrupção se deve aceitar outra modalidade: a corrupção das formas processuais.

Não é difícil perceber, no “ajuste das nulidades”, a retórica que con­cebe o processo penal como um mero mecanismo de aplicação da lei penal. A Medida nº 7 trata do “ajuste das nulidades penais contra a impunidade e a corrupção” (grifo nosso).

53 Apresentamos tais teses em GLOECKNER, Ricardo. Risco e processo penal: uma análise desde os direitos fundamentais do acusado. 2. ed. Salvador: JusPodium, 2015.

54 DOMINIONI, Oreste. Un Nuovo Idolum Theatri: il principio di non dispersione della prova. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, Milano, a. 40, n. 3, p. 736­773, 1997.

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A primeira modificação introduzida pela medida seria, na nova redação dada ao art. 563 do CPP, a fixação de uma espécie de princípio, erigido à cate­goria jurídica de dever: o do “máximo aproveitamento dos atos processuais”. O parágrafo único do mesmo artigo adverte que a decisão que decreta a nu­lidade do ato deverá ser fundamentada, inclusive, indicando o motivo pelo qual o magistrado deixou de aproveitar o ato.

A segunda modificação vem operada no art. 564, que cuida de abolir o rol de atos processuais nulos, apresentando uma forma mitigada do princípio da instrumentalidade das formas. O novo art. 564 disporia que todo ato que atingir a sua finalidade não será decretado nulo. No § 1º do art. 564, o prejuízo será condição necessária para a decretação da nulidade. Por fim, no § 2º do mesmo artigo consta que o prejuízo não poderá ser presumido, devendo a parte especificar o impacto que a prática irregular do ato trouxe para o con­traditório e para a ampla defesa.

A terceira modificação encontra­se no art. 567, que trata da competência. Em suma, o novo artigo dispõe que os efeitos dos atos praticados perante juiz incompetente serão mantidos até a nova decisão proferida pelo juiz compe­tente, da mesma forma no juízo cautelar, salvo “circunstâncias evidentes da incompetência, somadas à negligência do magistrado”.

A quarta modificação introduzida pelo projeto se dá no art. 570, que esta­belece a preclusão das nulidades. Os defeitos da fase investigatória, da citação ou da denúncia deverão ser julgados pelo magistrado, sob pena de preclu­são, até a decisão que analisa a resposta à acusação; já os vícios que ocorrem entre a decisão que analisa a resposta e a audiência de instrução deverão ser analisados até a abertura da respectiva audiência; no procedimento do júri, as nulidades ocorridas após a pronúncia deverão ser julgadas até o anúncio do julgamento; por fim, os vícios ocorridos na audiência, em plenário ou na sessão de julgamento, deverão ser arguidos e analisados imediatamente.

A quinta modificação, contida no art. 571, diz respeito novamente à pre­clusão. A nulidade deverá ser arguida na primeira oportunidade pelas partes. Além disso, o § 1º afirma a inoperância da preclusão quando constatado justo impedimento para a arguição. O § 2º afirma que, não obstante a preclusão, a parte poderá requerer a renovação do ato, interrompendo­se a prescrição, que será contada a partir do momento em que o ato deveria ter sido alegado.

A sexta modificação encontra­se no art. 572, que trata do saneamento das nulidades. Traz, como primeira causa a preclusão e a segunda, por meio da concordância implícita da parte (seja através de ato comissivo ou omissivo).

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A sétima modificação, insculpida no art. 573, trata da renovação dos atos decorrentes do não saneamento. No § 1º, temos o princípio de causalidade, já conhecido do atual sistema (contaminação dos atos subsequentes); no § 2º, a redação trata do “fracionamento da nulidade” concernente ao “mesmo ato processual”. O § 3º, ao final, afirma que o juiz deve indicar os atos a serem refeitos, as circunstâncias impeditivas do aproveitamento dos atos, a análise de causalidade entre atos nulos originariamente e/ou derivados e demais providências para a repetição dos atos.

Quanto à primeira modificação no caput, o art. 563 traz uma “nova” ordem principiológica: a de que todo ato processual deve ser aproveitado ao máximo. Tal dispositivo parece um excerto recortado do Tratado da prova judiciária, de Bentham, aplicado às nulidades. Esquece­se, contudo, que os atos processuais não podem (leia­se não devem) ser avaliados mediante uma análise de custos e benefícios – que em última instância é o vetor sub-reptício incrustrado na formulação do artigo. Os atos processuais, preliminarmente, se encontram orientados axiologicamente, o que já indica que não podem ser avaliados como se estivéssemos diante de dois interesses de natureza dispo­nível e equivalentes. Na justificativa da medida, afirma-se que o “máximo aproveitamento dos atos” (que traz a nulidade como medida excepcional) é “praticamente unânime pela doutrina”. Dispensável citar­se diversas obras que opinam diversamente, não existindo o tal “panorama pacífico” sobre a excepcionalidade das nulidades.

Em seu parágrafo único, dispensável afirmar-se que toda decisão deve­rá ser motivada (art. 93, IX, da CF). Mas, em caso de descumprimento, o que sugerem os redatores? Uma declaração motivada que declara a nulidade de um ato (judicial) imotivado? O defeito da redação não para nisso. Se o juiz deve fundamentar apenas a declaração de nulidade – inclusive justificando­-se por não ter “aproveitado” o ato processual –, isso significaria que a não declaração de nulidade não precisa ser fundamentada? Uma vez mais a pés­sima técnica empregada.

A segunda modificação sugerida é a alteração do regime do prejuízo. Em primeiro lugar, ocorre o nivelamento entre nulidade absoluta e relativa (apesar dessa distinção ser inaplicável ao processo penal), já que todos os atos deverão demonstrar o prejuízo. Segundo, o prejuízo não seria mais pre­sumido. Além, novamente, do recurso a uma categoria própria da economia (prejuízo), deve-se questionar: O prejuízo é uma categoria fática (que depen­de de prova, portanto) ou normativa? No primeiro caso, se o prejuízo é fático, o juízo de cassação é obstado pela Súmula nº 7 do STJ. No segundo, se nor­mativo, o artigo exige prova sobre matéria de direito. Além do mais, a con­

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cepção injustificadamente estreita dos direitos e das garantias fundamentais encontrada no projeto acaba por vincular o prejuízo apenas ao contraditório e à ampla defesa. Isso quer dizer, portanto, que, se o juiz, exemplificativamen­te, aplica ao processo penal uma inversão da carga probatória, tem­se: a) O ato é nulo independentemente do prejuízo?; ou b) Não havendo lesão direta ao contraditório e à ampla defesa, não teremos nulidades? A redação sugere que o conjunto de princípios e garantias fundamentais, no processo penal, se resumiria a tão somente dois: contraditório e ampla defesa, olvidando­se de todos os demais. Diga­se de passagem que essa circunstância, por si só, revela a inconsistência epistêmica do projeto.

A terceira modificação pretende criar uma nova figura jurídica: aquela do ato inválido e eficaz. Assim, teríamos uma operação de “estabilização do ato processual”, que somente poderá ser desfeita diante de novo julgamento. Contudo, se há a incompetência do magistrado, qualquer ato praticado carece de validade. Sem validade, o ato, como decorrência, não pode possuir efeito. Tal pirotecnia legislativa, inclusive, acaba produzindo uma injustificável me­tástase no instituto da competência, que perderia seu caráter de elemento da validade do ato processual. Essa transmutação do instituto da competência produziria, como resultado, a equiparação entre atos juridicamente válidos e inválidos (já que todos produziriam efeitos a priori). Portanto, cria­se um lim­bo processual, no qual o ato inválido produz efeitos até o juiz “competente” cassar a decisão.

A quarta modificação, a exemplo da arguição do prejuízo, ratifica um processo penal composto unicamente de nulidades relativas (desconhecido em qualquer ordenamento processual penal ocidental), já que submete todas as irregularidades processuais ao instituto da preclusão. Novamente, de sal­tar aos olhos a precariedade técnica da redação, que prevê a preclusão (cuja natureza jurídica é a de uma sanção processual) tomando como destinatário o juiz (!). Assim, a declaração de nulidade estaria preclusa para o magistrado (!), que adquiriria, de acordo com a lei, um dever de atuação positiva, sendo o destinatário de uma sanção processual, cujos efeitos atingem as partes! Em outras palavras, o texto cria uma verdadeira condição impeditiva de ordem potestativa, a incidir sobre direitos alheios!

A quinta modificação, novamente fazendo menção à preclusão, cuida da criação de uma causa interruptiva da prescrição, cujo termo a quo seria justamente o momento preclusivo para a sua arguição, algo tampouco encon­trado em ordenamentos alienígenas.

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Por fim, a criação (também sem precedentes em outros ordenamentos jurídicos), o princípio do fracionamento da nulidade contido no art. 573, § 2º, que subverte a estrutura jurídica das nulidades.

A proposta corresponde à tentativa de se criar um processo penal des­pido de formas. A redação dessas medidas, nesse ponto, conseguiu inclusive “avançar” relativamente ao expoente do pensamento autoritário no proces­so penal brasileiro. Enquanto na exposição de motivos do CPP de 1941 as nulidades teriam sido “reduzidas àquele estrito mínimo”, homenagem que Francisco Campos faz a Vincenzo Manzini, a atual proposta visa à eliminação prática das nulidades. O que é proposto é, em analogia à obra de Baudrillard, um “simulacro de processo”, um processo penal mais autoritário do que o autoritarismo conseguiu imaginar...

coNSideraÇõeS fiNaiSAnte o exposto, ficou claro que o Estado é uma estrutura imprescindí­

vel para a efetivação do regime democrático, tendo em vista que sua drástica redução em prol do mercado certamente inviabilizaria o oferecimento de di­reitos substanciais a uma grande parcela da população, sobretudo aos estra­tos sociais economicamente inferiores. O discurso autodeclarado liberal que demoniza o Estado em detrimento do mercado (como se este fosse o (não)lugar mais propício para se exercer a “santidade”) ignora o fato de que se as classes populares têm acesso as mínimas condições de sobrevivência é por meio do poder estatal, na medida em que o setor privado, movido pelo lucro, não tem como objetivo (ou interesse) prover o bem­estar social.

Em relação ao tema proposto no presente escrito, não podemos deixar de observar que o problema da corrupção, ou melhor, sua compreensão equi­vocada, além de servir de combustível para o discurso do Estado mínimo, contribui para a erosão dos direitos e das garantias constitucionais, entre elas as direcionadas ao processo penal. Como demonstramos, as demandas puni­tivas se apropriam da corrupção na condição de um problema de índole so­cial ou como resultado da impunidade, baseando-se normalmente em índices imprecisos e nas conclusões do culturalismo racista, afetando diretamente o processo penal tanto na esfera legislativa como na prática.

A realidade do processo penal no Brasil demonstra que o discurso dis­torcido sobre a corrupção vem servindo de justificativa para o autoritarismo e a implementação de espaços de exceção no processo. A relativização dos direitos e das garantias assegurados pelas formas e pelo rigor dos atos pro­cessuais é um exemplo disso. No plano legislativo, essa dinâmica autoritária resta ainda mais evidente, conforme observamos no caso das propostas refe­

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rentes às nulidades contidas nas “Dez Medidas contra a Corrupção”, projeto de iniciativa do Ministério Público Federal.

À guisa de conclusão, é possível afirmar que a compreensão equivo­cada do problema da corrupção vem servindo de sustentáculo para o dis­curso que prega o Estado mínimo e, assim, fragilizando os princípios demo­cráticos, sobretudo em termos de efetividade, o que é bastante evidente no caso do processo penal. Percebe­se também que esses discursos tipicamente (neo)liberais e o autoritarismo processual se retroalimentam, na medida em que, se os primeiros viabilizam a radicalização do procedimento, o resíduo produzido por essa dinâmica, ou seja, os acusados sumariamente conde­nados, são extremamente úteis para a suposta (e fantasiosa) “comprovação empírica” de que o Estado é uma estrutura anacrônica, que viabiliza a ma­terialização da índole corrupta da sociedade brasileira, o que justificaria sua redução e a concessão de um maior espaço ao mercado. Em síntese, trata-se de uma questão demasiadamente complexa; entretanto, é necessário compre­ender que o processo penal não é o instrumento adequado (e nem é eficaz) para tratar da corrupção, já que trata­se de um problema que deve ser ame­nizado através de outros meios, como a redução dos déficits democráticos e a implementação de controles mais efetivos na origem.

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aproximaÇõeS à tutela peNal de aNimaiS: deSvelaNdo a perguNta pela

poSSibilidade de oS aNimaiS Serem titulareS de beNS Jurídico-peNaiS

approacheS to the peNal protectioN of aNimalS: uNveiliNg the QueStioN about the poSSibility

of the aNimalS to be victimS of crimeSJoão alves teixeiRa neto*

RESUMO: O presente estudo tem por objetivo a explicitação de al­gumas incompreensões e simplificações que velam a pergunta pela possibilidade de os animais serem titulares de bens jurídico-penais. Visa­se, por meio de um tal desvelamento, tão somente, retirar obs­curidades e mostrar uma direção.PALAVRAS­CHAVE: Tutela penal de animais; titulares de bens jurídico-penais; crimes contra animais.ABSTRACT: The present study has the purpose of explaining some misunderstandings and simplifications that guard the question about the possibility of the animals being victims of crimes. It is intended, through such an unveiling, just to remove obscurity and offer a direction.KEYWORDS: Protection of animals through criminal law; victims of crimes; crimes against animals.SUMÁRIO: Introdução; 1 A pergunta pela possibilidade de os ani­mais serem titulares de bens jurídico-penais não é uma pergunta pela possibilidade de a natureza em geral ser titular de bens jurí­dico­penais; 2 A pergunta pela possibilidade de os animais serem

* Doutor em Ciências Criminais (PUCRS/Universidade de Coimbra), Mestre em Ciências Criminais (PUCRS), Especialista em Direito Penal e Política Criminal (UFRGS), Membro da Delegação Brasileira junto ao International Forum on Crime and Criminal Law in the Global Era (IFCCLGE) – Pequim/China, Membro da Presidência do Instituto Eduardo Correia (IEC). Realiza Estágio Pós­Doutoral no Programa de Pós­Graduação em Ciências Criminais (PUCRS).

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titulares de bens jurídico-penais não é uma pergunta sobre o direito penal ambiental (stricto sensu); 3 A pergunta pela possibilidade de os animais serem titulares de bens jurídico-penais não é uma pergunta pela possibilidade de igualdade entre homem e animal; 4 A pergun­ta pela possibilidade de os animais serem titulares de bens jurídico­­penais não é uma pergunta pela possibilidade de um direito penal moralizador; Conclusão; Referências.

iNtroduÇÃoA tutela penal de animais é – hoje, mas não somente hoje –1 um dos

grandes desafios do direito penal2. O desafio é colocado, sobretudo, no ques­tionamento pela possibilidade de os animais serem titulares de bens jurídico­­penais. Perguntar pela possibilidade de os animais serem titulares de bens jurídico-penais é perguntar pelos limites de um direito penal liberal, que ambiciona ser “barreira intransponível da política criminal” (unübersteigbare Schranke der Kriminalpolitik)3, é questionar as possibilidades da sua função4. Porém, à pergunta pela possibilidade de os animais serem titulares de bens jurídico--penais não falta apenas uma resposta, falta o esclarecimento das condições de

1 A primeira legislação a tipificar o crime de crueldade contra animais (Tierquälerei) que se tem notícia foi o Código Penal da Saxônia, de 1838. Tal criminalização é verificada em seu art. 310 (HAEBERLIN, Carl Franz Wilhelm Jérôme. Grundsätze des Criminalrechts: Nach den neuen deutschen Strafgesetzbüchern. Leipzig: Friedrich Fleischer Verlag, 1848. p. 319 e 320).

2 Para aprofundar o estudo sobre o tema, ver o nosso “Tutela penal de animais: uma compreensão onto­antropológica” (TEIXEIRA NETO, João Alves. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017).

3 LISZT, Franz von. Strafrechtliche: Aufsätze und Vorträge. Berlin: J. Guttentag Verlagsbuchhandlung, 1905. p. 80. Liszt expõe uma visão que se projeta para o futuro, ao desenvolver a sua ideia de direito penal como “barreira intransponível” (unübersteigbare Schranke), pois sustenta que assim ele é “e deverá permanecer” (und soll das bleiben) (LISZT, Franz von. Strafrechtliche: Aufsätze und Vorträge. Berlin: J. Guttentag Verlagsbuchhandlung, t. II, 1905. p. 80).

4 Sobre a função do direito penal, vale lembrar o pensamento de Faria Costa: “A função do direito penal é a de proteger bens jurídicos. Hoje é uma realidade indesmentível que a função primeira do direito penal é a de defender ou proteger bens jurídicos que tenham dignidade penal”. É necessário registrar a abertura à historicidade assinalada pelo autor: “[...] convém ter presente que o entendimento do que seja um bem jurídico com dignidade penal – isto é, um bem jurídico que mereça a proteção do direito penal – insere-se no desenvolvimento teórico da doutrina do bem jurídico-penal que, muito embora esteja, nos tempos que passam, relativamente estabilizada, havendo, por isso, nela grandes espaços de consenso, não pode nem deve ser apreciada sem o sentido da relatividade histórica” (FARIA COSTA, José de. Noções fundamentais de direito penal: fragmenta iuris poenalis. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 2009. p. 23).

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possibilidade da própria pergunta. Essa pergunta está velada por camadas de incompreensões e simplificações que necessitarão ser superadas. Somente assim a pergunta poderá ser desvelada, ou seja, somente assim poderá ser realizada de modo suficiente. O objetivo deste estudo, assim, não é a apresen­tação da resposta à pergunta pela possibilidade de os animais serem titulares de bens jurídico-penais, mas, sim, a explicitação de algumas das referidas incompreensões e simplificações, com o intuito de retirar obscuridades e ofe­recer uma direção.

1 a perguNta pela poSSibilidade de oS aNimaiS Serem titulareS de beNS Jurídico-peNaiS NÃo É uma perguNta pela poSSibilidade de a Natureza em geral Ser titular de beNS Jurídico-peNaiS

A pergunta pela possibilidade de os animais serem titulares de bens jurídico-penais é bem menos ousada do que a pergunta pela possibilidade de a natureza em geral ser titular de bens jurídico-penais. Essa assertiva é justificada por uma razão simples: a superior complexidade dos animais em relação aos demais entes do meio ambiente. O meio ambiente (natural) é composto por elementos bióticos e abióticos. Os elementos bióticos são flo­ra e fauna. A flora é um conjunto de vegetais. A fauna é uma coletividade de animais. Já os elementos abióticos são água, ar e terra5. Observa­se que, entre todos os referidos elementos, somente os animais possuem uma supre­macia de sensibilidade, verdadeira capacidade de sofrimento (senciência), manifestação da sua superior complexidade6. Os elementos abióticos sequer possuem sensibilidade alguma. Porém, mesmo no outro elemento biótico, a flora, enfrenta-se grande dificuldade na identificação da sensibilidade, capa­cidade de sofrimento. De todo modo, é um fato irrefutável a verificação de sistema nervoso em animais (vertebrados), mas não em vegetais7.

A superior complexidade dos animais justifica a maior razoabilidade em serem reconhecidos como titulares de bens jurídico-penais. Tomando como premissa o esclarecimento dessa distinção, torna-se bem mais difícil

5 SPORLEDER DE SOUZA, Paulo Vinicius. O meio ambiente (natural) como sujeito passivo dos crimes ambientais. In: D’AVILA, Fabio Roberto; SPORLEDER DE SOUZA, Paulo Vinicius (Org.). Direito penal secundário: estudos sobre crimes econômicos ambientais, informáticos e outras questões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 247.

6 D’AGOSTINO, Di Francesco. I diritti degli animali. Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto, Milano: Giuffrè Editore, IV. Serie LXXI, p. 84 e 85, gennaio/marzo 1994.

7 FEIJÓ, Anamaria. Utilização de animais na investigação e docencia: uma reflexão ética necessária. Porto Alegre: Edipucrs, 2005. p. 63.

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sustentar que vegetais – ou mesmo elementos abióticos, como água, ar ou terra – possam ser titulares de bens jurídico-penais8.

A distinção, por meio daquilo que aqui chamamos de complexidade, é antes uma distinção sobre ter­mundo. Torna­se inevitável o chamamento – ainda que breve – da reflexão heideggeriana sobre a relação entre mundo, pedra, animal e homem. Heidegger sustenta a tese de que “a pedra é sem mundo, o animal é pobre de mundo e o homem é formador de mundo”9. Tal distinção, entre “o reino de três entes do planeta”10, é realizada não no intuito de afirmar a superioridade dos seres humanos em relação aos animais, mas, sim, para estabelecer o conceito de “mundo” (Welt)11. Porém, nesse exercício fenomenológico, é desvelada a “animalidade do animal”, demonstrando­se que este possui um mundo, portanto, possui um especial modo de ter algum acesso aos entes, por meio dos sentidos12. O que interessa é que o animal –

8 Não obstante o nosso posicionamento quanto à dificuldade de se reconhecer a titularidade de bens jurídico-penais em vegetais ou mesmo em elementos abióticos, registra-se a existência de vozes em sentido contrário. Ver, por todos, Sporleder de Souza, que defende a titularidade de bens jurídico-penais por parte do meio ambiente (natural) (SPORLEDER DE SOUZA, Paulo Vinicius. O meio ambiente (natural) como sujeito passivo dos crimes ambientais. In: D’AVILA, Fabio Roberto; SPORLEDER DE SOUZA, Paulo Vinicius (Org.). Direito penal secundário: estudos sobre crimes econômicos ambientais, informáticos e outras questões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 245­280).

9 HEIDEGGER, Martin. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão. 2. ed. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. p. 230.

10 STEIN, Ernildo. Pensar é pensar a diferença: filosofia e conhecimento empírico. 2. ed. Ijuí: Unijuí, 2006. p. 120.

11 Stein, analisando o modo como Heidegger utiliza o termo “mundo” na obra Os conceitos fundamentais da metafísica, afirma que, “ao utilizar o conceito de mundo para introduzir uma diferença entre o reino de três entes do planeta, o uso do conceito de mundo pressupõe toda a análise estrutural realizada em Ser e Tempo. O fundamental, nessa análise, consistia em mostrar a ambiguidade do conceito de mundo [...]” (STEIN, Ernildo. Pensar é pensar a diferença: filosofia e conhecimento empírico. Ijuí: Unijuí, 2006. p. 120 e 121). Vale por se dizer: o homem é “formador de mundo” porque “ele instaura o sentido”. Desse modo, “‘mundo’ passa a adquirir uma qualidade fundamental, de ser a dimensão que, ao mesmo tempo que recebe o ser humano, enquanto ser no mundo, dele recebe, por sua vez, a sua dimensão de sentido” (STEIN, Ernildo. Antropologia filosófica: questões epistemológicas. Ijuí: Unijuí, 2010. p. 15).

12 É claro que o animal possui acesso ao ente, mas não ao ente enquanto ente, pois lhe falta a dimensão de sentido. Agamben, corroborando essa compreensão, sustenta que nos enganamos ao imaginar que “as relações que um determinado sujeito animal mantém com as coisas de seu ambiente” teriam lugar no “mesmo espaço e no mesmo tempo daquelas que o ligam aos objetos de nosso mundo humano”. O fundamento dessa ilusão estaria na crença da existência de “um único mundo no qual se situariam todos os seres viventes”. Portanto, deve­se perceber que – entre os seres viventes – há uma diferença de mundo (AGAMBEN,

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para além do ser humano – é o único ente que possui, de um modo especial, por meio dos sentidos, alguma forma de acesso aos demais entes. Ainda que se possa argumentar que os vegetais também poderiam possuir algum modo de acesso aos entes, como, por exemplo, na realização da fotossíntese, indubi­tável é a sua limitação frente ao modo­de­ser do animal, que lhe permite um especial modo de ter algum acesso aos entes, por meio dos sentidos: visão, audição, olfato, tato e paladar13.

Somos levados à conclusão de que o animal é o ente privilegiado do meio ambiente (natural). A sua constituição existenciária, que lhe permite alguma forma de acesso aos entes, permite­lhe sofrer. Porém, se o sofrimento vier a ocorrer na sua – e pela sua – relação com o ser humano, em nível into­lerável, então o direito deverá socorrê­lo. Sendo ou não pobre o seu mundo, continuará a ter mundo, com as fragilidade e vulnerabilidades que lhe são próprias, em verdade ainda maiores que as do homem, já que este – ao con­trário dos animais – é “formador de mundo” (weltbildend)14.

2 a perguNta pela poSSibilidade de oS aNimaiS Serem titulareS de beNS Jurídico-peNaiS NÃo É uma perguNta Sobre o direito peNal ambieNtal (Stricto SeNSu)

A pergunta pela possibilidade de os animais serem titulares de bens jurídico--penais não é uma pergunta sobre o direito penal ambiental (stricto sensu),

Giorgio. O aberto: o homem e o animal. Trad. Pedro Mendes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 69).

13 Jonas, estabelecendo as distinções entre “vida animal” e “vida vegetal”, defende que “três características diferenciam a vida dos animais da vida das plantas: mobilidade, percepção, sensibilidade”. Para o autor, “a ligação entre movimento e percepção é necessária”. Para além disso, sustenta que “a referência real ao mundo somente surge com o desenvolvimento de sentidos específicos, de estruturas motoras definidas e de um sistema nervoso central” (JONAS, Hans. Das Prinzip Leben: Ansätze zu einer philosophischen Biologie. Frankfurt am Main, Leipzig: Insel Verlag, 1994. p. 184) (tradução livre).

14 As fragilidades e vulnerabilidades dos animais poderiam ser consideradas ainda maiores do que as do homem. A ausência do “elemento da compreensão”, a “dimensão de sentido”, faz com que os animais estejam especialmente sujeitos à dominação nas relações com os seres humanos. Ser “formador de mundo” (weltbildend), possuir o “elemento da compreensão”, permite ao homem dominar os demais entes viventes. Essa relação de domínio, com o desenvolvimento da técnica, torna­se crescente. Sobre a questão da técnica, ver, por todos, RÜDIGER, Francisco. Martin Heidegger e a questão da técnica: prospectos acerca do futuro do homem. Porto Alegre: Sulina, 2006. A relação de domínio do homem sobre o animal – domínio do “formador de mundo” (weltbildend) sobre o “pobre de mundo” (weltarm) – é o locus onde pode ocorrer o sofrimento desnecessário em nível intolerável. A possibilidade desse sofrimento implica o chamamento da sua proteção.

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pois está ancorada noutro âmbito de intervenção. Faz­se necessária a diferen­ciação entre tutela penal de animais e tutela penal do meio ambiente. A dogmática jurídico-penal, em algumas de suas correntes, engana-se facilmente ao con­siderar que: (i) se há tutela penal da fauna, então, necessariamente, há tutela penal de animais; (ii) se há tutela penal de animais, então, necessariamente, há tutela penal da fauna, pois – afinal de contas – a fauna é composta por animais. Esse olhar não consegue perceber a distinção entre o animal individualmente considerado e a coletividade de animais (fauna)15. Há aí uma diferença essencial no que diz respeito ao caráter instrumental da tutela. A tutela penal do meio ambiente tem um indiscutível – ainda que possa ser não exclusivo – caráter instrumental para o ser humano. A tutela do meio ambiente é realizada em dois seguimentos: (i) tutela da flora; e (ii) tutela da fauna. Busca­se, por meio de tal tutela, a preservação do equilíbrio ecológico. Portanto, se há a tutela da flora e da fauna, então há a tutela do equilíbrio ecológico. Se a Constituição Federal brasileira elevou o equilíbrio ecológico ao status de condição necessária para a sadia qualidade de vida, e esta, por sua vez, foi positivada como um direi-to fundamental, então torna­se notório o caráter instrumental da tutela penal do meio ambiente, ainda que tal tutela – vale, uma vez mais, ressaltar – possa não se esgotar na referida instrumentalidade16­17.

15 Entre os inúmeros autores que sustentam essa compreensão, destacam­se, aqui, por todos: Sirvinskas, Marcão, Fiorillo e Conte. O primeiro deles, Sirvinskas, sustenta que – no crime de crueldade contra animais (art. 32 da Lei nº 9.605/1998) – o bem jurídico tutelado seria “a preservação do patrimônio natural” (SIRVINSKAS, Luis Paulo. Tutela penal do meio ambiente. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 179). Para Marcão, na mesma hipótese, o bem jurídico tutelado seria “a proteção do meio ambiente” (MARCÃO, Renato. Crimes ambientais: anotações e interpretação jurisprudencial da parte criminal da Lei nº 9.605, de 12.02.1998. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 81). Já, para Fiorillo e Conte, o bem jurídico tutelado, igualmente na mesma hipótese, seria “a preservação do meio ambiente” (FIORILLO, Celso Antonio Pacheco; CONTE, Christiany Pegorari. Crimes ambientais. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 129).

16 Conforme o art. 225, caput, da Constituição Federal brasileira: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida [...]”. Krell, comentando o referido dispositivo, sustenta que “a inserção da fórmula ‘qualidade de vida’ no caput do art. 225 relaciona o direito ao ambiente à saúde física e psíquica e ao bem-estar espiritual do ser humano” (KRELL, Andreas Joachim. Comentário ao artigo 225. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz [Coord.]. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 2080).

17 Sporleder de Souza defende a existência de uma “cotitularidade” dos bens jurídicos na tutela penal do meio ambiente. Para o autor, o meio ambiente seria “titular de bens jurídicos supra-individuais autônomos” e “co-titular ou co-portador de certos bens jurídicos supra- ­individuais difusos”, pois a titularidade seria “compartilhada com outros dois sujeitos

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A tutela penal de animais, porém, está muito distante de um qualquer caráter instrumental. Não está relacionada ao equilíbrio ecológico, portanto, não está relacionada à sadia qualidade de vida (humana). Nem mesmo diz respeito à proteção do meio ambiente (natural)18. A tutela penal de animais, em boa parte das vezes, é tutela penal de animais fora do seu habitat natural, é tutela penal de animais domésticos e/ou domesticados, notadamente utili­zados: (i) na ciencia: em experimentações científicas; (ii) na religião: em sacrifí­cios religiosos; (iii) no entretenimento: em rinhas, em esportes, em espetáculos circenses, em companhia pessoal. Portanto, há uma diferença – que não é sutil – entre o caminho para a pergunta pela possibilidade de os animais serem titulares de bens jurídico-penais e o caminho para as perguntas sobre o direito penal ambiental (stricto sensu).

3 a perguNta pela poSSibilidade de oS aNimaiS Serem titulareS de beNS Jurídico-peNaiS NÃo É uma perguNta pela poSSibilidade de igualdade eNtre homem e aNimal

A discussão sobre a possibilidade de haver igualdade entre homem e animal está na pauta dos desafios contemporâneos da ética, mais especifica­mente da Animal Ethics, destacando­se o pensamento de Singer. O autor de­fende a igualdade entre homens e animais19, argumentando que não haveria uma razão moral para justificar a diferença, mas apenas o que ele vai chamar

passivos, a coletividade e a humanidade” (SPORLEDER DE SOUZA, Paulo Vinicius. O meio ambiente (natural) como sujeito passivo dos crimes ambientais. In: D’AVILA, Fabio Roberto; SPORLEDER DE SOUZA, Paulo Vinicius (Org.). Direito penal secundário: estudos sobre crimes econômicos ambientais, informáticos e outras questões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 273 e 274).

18 Greco sustenta que “só se pode admitir [...] que existe um delito de crueldade com animais, porque a proteção de animais não é proteção do meio ambiente” (GRECO, Luís. Proteção de bens jurídicos e crueldade com animais. Revista Liberdades, n. 3, p. 47­59, jan./abr. 2010. p. 53).

19 Singer sustenta que “o argumento para estender o princípio de igualdade além da nossa espécie é simples”, pois “esse princípio implica que a nossa preocupação com os outros não deve depender de como são, ou das aptidões que possuem”, o que resultaria na impossibilidade de explorar os seres não pertencentes à “nossa espécie”, já que o fato de “os outros animais serem menos inteligentes do que nós” não nos autorizaria a “deixar de levar em conta os seus interesses” (SINGER, Peter. Ética prática. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 66).

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de especismo20. Singer fundamenta a sua construção teórica na capacidade de so-frimento e no interesse em não sofrer, sustentando que tais características teriam o condão de projetar os animais para a condição de sujeitos de uma comunidade moral, ou seja, conferindo­lhes o status moral21. Porém, o autor deixa­se levar por um argumento falacioso: o argumento que presume a igualdade da capa­cidade de sofrimento entre homens e animais. Esse argumento é manifesta­do no que o autor vai chamar de princípio da igual consideração de interesses22. Singer oferece importantes contributos à doutrina da proteção dos animais, tais como a valorização da capacidade de sofrimento e a exaltação do interesse, enquanto condição para ser sujeito de uma comunidade moral, mas incorre em um grave erro argumentativo ao se valer de uma presunção – desacom­panhada de razões fortes – para sustentar uma pseudoigualdade entre homens e animais.

Entretanto, a pergunta pela possibilidade de os animais serem titulares de bens jurídico-penais passa ao largo dessa discussão. Ela prescinde da concep­ção de igualdade entre homem e animal. Não é uma pergunta sobre igualdade. É, sim, uma pergunta sobre a superação do paradigma antropocêntrico­radi­cal na dogmática jurídico-penal, ainda que se reconheça uma diferença abissal entre os dois entes, homem e animal, uma diferença de mundo. Porém, a dife-rença não é um obstáculo, mas, antes, um elemento constitutivo da pergunta. A pergunta, quando é colocada, é colocada a partir de uma pré­compreensão dessa diferença. A diferença é uma premissa. Na diferença, e pela diferença, per­cebemos que os animais são seres mais frágeis. São seres que estão sujeitos ao

20 O “especismo” é explicado, por Singer, com o seguinte argumento: “Os racistas violam o princípio de igualdade ao darem maior importância aos interesses dos membros de sua raça sempre que se verifica um choque entre os seus interesses e os interesses dos que pertencem a outra raça. [...] Da mesma forma, aqueles que eu ‘chamaria de especistas’ atribuem maior peso aos interesses dos membros da sua própria espécie [...]”. Em última análise, o autor compreende o “especismo” como uma violação ao princípio de igualdade (SINGER, Peter. Ética prática. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 68).

21 Para o autor, “se um ser sofre, não pode haver nenhuma justificativa de ordem moral para nos recusarmos a levar esse sofrimento em consideração. Seja qual for a natureza do ser, o princípio de igualdade exige que o sofrimento seja levado em conta em termos de igualdade com o sofrimento semelhante”. Desse modo, se um ser sofre, então ele tem interesse em não sofrer (SINGER, Peter. Ética prática. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 67).

22 A “igual consideração de interesses” tem por pressuposto que “a dor e o sofrimento são coisas más e, independentemente da raça, do sexo ou da espécie do ser que sofre, devem ser evitados ou mitigados” (SINGER, Peter. Ética prática. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 71).

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perigo23, assim como os seres humanos, mas em um nível de vulnerabilidade ainda maior. Os animais são dominados nas relações com os seres humanos. Essa é uma afirmação particularmente evidente quando falamos em animais domésticos e domesticados. Nessa relação de dominação, os animais estão sujeitos à vontade dos seres humanos. Estes podem lhe causar o sofrimento desnecessário em nível intolerável, surgindo o chamamento à sua proteção. A mesma diferença que permite a relação de poder, do homem sobre o animal, faz com que esse poder seja um poder-dever, um poder-dever-de responsabilida-de do homem para com o animal, responsabilidade de não causar­lhe sofri­mento desnecessário, responsabilidade em respeitar a fragilidade contida na diferença24.

23 Torna­se oportuno lançarmos luzes sobre a relação entre “perigo” e “cuidado”. Para tanto, valemo­nos do pensamento de D’Avila. O autor assevera que uma comunidade humana se constrói no seio de perigos, concluindo­se que “o perigo e o cuidado são, nesta perspectiva, nada mais que dimensões da mesma realidade”. Seria “no perigo e pelo perigo que o cuidado” encontraria “a sua razão de ser”, sendo, portanto, “cuidado­de­perigo” (D’AVILA, Fabio Roberto. Ontologismo e ilícito penal. Algumas linhas para uma fundamentação ontoantropológica do direito penal. In: SCHMIDT, Andrei Zenkner (Org.). Novos rumos do direito penal contemporâneo: livro em homenagem ao Professor Dr. Cezar Roberto Bitencourt. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 265). Compreendemos, com Faria Costa, que a relação entre “cuidado” e “perigo” se dá – dentre outras razões – “porque o perigo e o cuidado são uma matriz ontológica do ser-aí-diferente comunitariamente inserido”, e, dessa forma, “é que os podemos ver reflectidos, e diferenciadamente reflectidos, no nosso existir” (FARIA COSTA, José de. O perigo em direito penal: contributo para a sua fundamentação e compreensão dogmáticas. Coimbra: Coimbra, 2000. p. 327).

24 Jonas, ao tratar da responsabilidade, sustenta que – em algum momento – todos os homens, ainda que em âmbito parental, experimentam o “cuidado­para” (Fürsorge). O autor defende, também, que “apenas o ser vivo (Lebendige), em sua carencialidade (Bedürftigkeit) e fragilidade (Bedrohtheit) – e por isso, em princípio, todos os seres vivos –, pode ser objeto da responsabilidade”. Observa­se que Jonas, dentro do seu horizonte de compreensão, não trata apenas da responsabilidade do “homem” pelo “homem”, mas também do “homem” pelo “ser vivo” (JONAS, Hans. Das Prinzip Verantwortung: Versuch einer Ethik fur die technologische Zivilisation. Berlin: Suhrkamp, 1984. p. 185) (tradução livre). Jakob, ao desenvolver análise sobre a obra de Jonas, a partir de uma comparação com a obra de Heidegger, defende que, “embora Jonas tenha falhado no objetivo de uma ética operacionalizável para a civilização tecnológica (operationalisierbaren Ethik für die technologische Zivilisation), o seu princípio da responsabilidade claramente está um passo além das reflexões éticas de Heidegger” (JAKOB, Eric. Martin Heidegger und Hans Jonas: Die Metaphysik der Subjektivitat und die Krise der technologischen Zivilisation. Tubingen, Basel: Francke, 1996. p. 353) (tradução livre).

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4 a perguNta pela poSSibilidade de oS aNimaiS Serem titulareS de beNS Jurídico-peNaiS NÃo É uma perguNta pela poSSibilidade de um direito peNal moralizador

O direito penal é ultima ratio e jamais poderia ser utilizado como instru­mento para a moralização de indivíduos25. O direito penal não deve buscar virtuosos, mas, sim, entre outras coisas, oferecer limite ao Leviatã26. Toda e qualquer forma de compreender o direito penal dentro de uma perspecti­va moralizadora é inquestionavelmente descabida, devendo ser extirpada27. Porém, a pergunta pela possibilidade de os animais serem titulares de bens jurídico--penais está absolutamente distante de toda e qualquer forma de moralização por meio do direito penal, pois não pretende tornar os homens melhores, mas apenas refinar a compreensão da tutela penal de animais.

Ideias jurídico-penais, por vezes, são distorcidas em nome de abomi­náveis ideais. Esse, infelizmente, foi o caso de algumas ideias relacionadas à tutela penal de animais. No nacional-socialismo, a previsão do crime de cruel­

25 Falar na “moralização de indivíduos”, por meio do direito penal, é algo que inevitavelmente nos arremessa ao período pré-iluminista. Período histórico em que se confundia “crime” e “pecado”. O ilícito penal era compreendido dentro de uma “dimensão acentuadamente teológica”. Somente com a separação entre Estado e Igreja foi possível a distinção entre “crime” e “pecado”. D’Avila sustenta que, a partir dessa separação, “à igreja competiriam o pecado, a maldade, os vícios, enfim, o homem em suas dimensões interna e externa”, enquanto que “ao Estado, por outro lado, sem qualquer pretensão de interferir no modo de ser humano, na sua postura interior ou no seu modo de pensar, competiriam as intervenções do homem no mundo” (D’AVILA, Fabio Roberto. O modelo de crime como ofensa ao bem jurídico. Elementos para a legitimação do direito penal secundário. In: D’AVILA, Fabio Roberto; SPORLEDER DE SOUZA, Paulo Vinicius (Org.). Direito penal secundário: estudos sobre crimes econômicos ambientais, informáticos e outras questões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 74 e 75). Roxin, no mesmo caminho teórico, vai defender que cabe “ao Estado a tarefa de assegurar uma convivência livre e pacífica sob a égide dos direitos humanos”; porém, “a tarefa de tutelar os cidadãos em sentido moral, religioso, ideológico ou apenas paternalista, ao contrário, não lhe foi repassada pelo detentor do poder estatal (o povo)” (ROXIN, Claus. Fundamentos político-criminais e dogmáticos do direito penal. Trad. Alaor Leite. RBCCrim, 112, ano 23, p. 33­39, jan./fev. 2015, p. 34).

26 LISZT, Franz von. Strafrechtliche: Aufsätze und Vorträge. Berlin: J. Guttentag Verlagsbuchhandlung, t. II, 1905. p. 60.

27 Torna­se necessário, ainda hoje, lembrarmos o pensamento de Beccaria, contrário a toda e qualquer forma de moralização por meio do direito penal: “A única e verdadeira medida dos delitos é o dano provocado à nação” (l’unica e vera misura dei delitti è il danno fato alla nazione) (BECCARIA, Cesare. Dei delitti e delle pene. Milano: Feltrinelli Editore, 2009. p. 46) (tradução livre).

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dade contra animais (Tierquälerei) foi utilizada como argumento em favor da moralização por meio do direito penal. Essa ideia possuiu certa longevidade, pois no projeto da reforma de 1962 – do Código Penal alemão – o crime de crueldade contra animais foi inserido no capítulo dos “crimes contra a ordem moral”28.

Considerar os “crimes contra animais”, a exemplo do crime de cruel­dade contra animais, como mera imoralidade, ou como “crime de proteção de sentimentos” (Gefühlsschutzdelikt)29, é compreender ingenuamente o pro­blema. Porém, a miopia antropocêntrica­radical não permite um olhar para além do raso. A questão-dos-animais está para muito além de um mero binô­mio moralidade­imoralidade, ou de uma questão sobre sentimentos, ela diz respeito a uma compreensão existencial.

coNcluSÃoCom a compreensão apresentada, pode­se concluir que a pergunta pela

possibilidade de os animais serem titulares de bens jurídico-penais é uma pergunta privilegiada, pois questiona os limites do direito penal. Porém, uma tal per­gunta, como demonstrado, está cotidianamente velada por incompreensões e simplificações. Conquistou-se, por meio da análise empreendida no presente estudo, o esclarecimento de algumas das referidas incompreensões e sim­plificações: (i) a pergunta pela possibilidade de os animais serem titulares de bens jurídico-penais não é uma pergunta pela possibilidade de a natureza em geral ser titular de bens jurídico-penais, pois os animais são os entes exemplares

28 GRECO, Luís. Proteção de bens jurídicos e crueldade com animais. Revista Liberdades, n. 3, p. 47-59, jan./abr. 2010, p. 49. D’Avila, ao tratar do ordenamento jurídico-penal alemão vigente no nacional­socialismo, assevera que “a sociedade representada no Estado substitui o espaço antes ocupado pelo homem, e o centro do direito penal é ocupado por conceitos como fidelidade e obediência. E, neste abandono do particular em prol da coletividade, a noção de liberdade individual transmuta­se em deveres morais para com a comunidade”. Fala-se na existência de um “ordenamento jurídico destacadamente ético”, marcado, principalmente, pela “noção de violação do dever” e pela “obediência ao Estado” (D’AVILA, Fabio Roberto. O inimigo no direito penal contemporâneo. Algumas reflexões sobre o contributo crítico de um direito penal de base onto-antropológica. In: GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.). Sistema penal e violencia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 104).

29 Sobre os “crimes de proteção de sentimentos” (Gefühlsschutzdelikte), ver, por todos, HÖRNLE, Tatjana. Grob anstößiges Verhalten. Strafrechtlicher Schutz von Moral, Gefühlen und Tabus. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2004; HÖRNLE, Tatjana. Der Schutz von Gefuhlen im StGB. In: HEFENDEHL, Roland; HIRSCH, Andrew von; WOHLERS, Wolfgang (Org.). Die Rechtsgutstheorie: Legitimationsbasis des Strafrechts oder dogmatisches Glasperlenspiel? Baden­Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 2003.

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do meio ambiente (natural), distinguindo­se de todos os outros entes, devido ao fato de possuírem mundo, podendo sofrer; (ii) a pergunta pela possibilidade de os animais serem titulares de bens jurídico-penais não é uma pergunta sobre o direito penal ambiental (stricto sensu), pois a tutela da fauna não implica, necessariamente, a tutela do animal individualmente considerado e a tutela penal do animal individualmente considerado não implica, necessariamente, a tutela da fauna; (iii) a pergunta pela possibilidade de os animais serem titulares de bens jurídico-penais não é uma pergunta pela possibilidade de igualdade entre homem e animal, pois é a diferença entre os dois entes que impõe a necessidade de colocarmos tal pergunta; (iv) a pergunta pela possibilidade de os animais serem titulares de bens jurídico-penais não é uma pergunta pela possibi­lidade de um direito penal moralizador, pois a tutela penal de animais não visa à proteção de sentimentos. Conquista­se, com tais explicitações, alguns quadrantes de um solo fenomenológico para a reflexão sobre a possibilidade de os animais serem reconhecidos como titulares de bens jurídico-penais.

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uma viSÃo crítica marxiSta da dogmática peNal do riSco

a marxiSt critical vieW of the crimiNal riSk dogmaticMichelle giRonDa caBReRa*

RESUMO: Na ordem capitalista, o direito penal é direcionado à pro­teção e tutela dos interesses patrimoniais de seus membros, sob o pretexto do direito natural à propriedade da burguesia. O presente estudo visa a propiciar uma investigação a respeito da forma como as sociedades capitalistas ocidentais instrumentalizam a afirmação e a manutenção do capitalismo por meio do direito penal econômico do risco. Pretende-se estabelecer uma crítica à atual dogmática pe­nal que, cega à realidade social e às desigualdades, reforça o status criminalizante do excluído, expandindo seu âmbito de atuação aos crimes patrimoniais econômicos, demonstrando sua debilidade em lidar com as alternativas inerentes a um horizonte contradogmático mais complexo do que o atual.PALAVRAS-CHAVE: Dogmática penal; criminologia crítica; luta de classes; seletividade estatal.ABSTRACT: Each society generates fantasies according to the type of social order that strives to be. In the capitalist order, criminal law was directed to defend and safeguarding the interests of its mem­bers, under the pretext of the natural right to property of the bour­geoisie. The present study aims to provide a research about how western capitalist societies exploit the affirmation and the mainte­nance of capitalism through the criminal law of economic risk. It is intended to establish a criticism of the current criminal dogmatic that, blind to reality and social inequalities, strengthens the status of deleted, expanding its scope to property crimes economic, showing its weakness in dealing with the trade-offs inherent to a horizon more complex than the current.

* Doutoranda em Direito Econômico e Desenvolvimento pela Pontifícia Universidade Cató- lica do Paraná. Integrante do Grupo de Pesquisa Modernas Tendências do Sistema Cri­ minal e do Grupo de Pesquisas Tributação, Complexidade e Desenvolvimento Sustentá­vel, Professora de Direito Processual Penal na Faculdade de Pinhais, Advogada criminal. E-mail: [email protected]

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KEYWORDS: Criminal dogmatic; critical criminology; class stru­ggle; state selectivity.SUMÁRIO: Introdução; 1 A sociologia do risco no âmbito do direito penal; 2 A metáfora do mirante: luta de classes e a necessidade de superação do conteúdo excludente do direito penal; 3 Crítica a uma dogmática estéril e contraproducente; Considerações finais; Refe­rências.

iNtroduÇÃoA ciência do direito penal, a ferramenta mais grave de que dispõe o Es­

tado, é construída sobre bases bem definidas. Foram suas bases liberais, aliás, as responsáveis pelo alicerce do Estado Democrático de Direito. Ocorre que, sem abrir mão destas bases, surgem ao direito penal, na alvorada do milênio, novas dimensões de atuação, as quais se lhe impõem como pressão social da classe dominante.

A forma como o risco se estabeleceu na sociedade capitalista pós­mo­derna levou a dogmática penal a uma assunção de deveres pouco preocu­pados com a solução da desigualdade e das mazelas sociais, entre eles a ex­pansão da punição a crimes patrimoniais e econômicos – aqueles, através da hipercriminalização dos destituídos de posses; estes, por meio da criação de tipos penais culposos e de perigo.

Tal mecanismo de operação política no âmbito do direito penal levou a uma racionalização do sistema de desigualdades sociais e a uma consequente incriminação da classe excluída, deixando-a à margem da sociedade, à peri­feria. Potencializou, também, a chamada cifra negra de crimes, composto por aqueles crimes cometidos pelas classes mais altas da sociedade que, por esco­lha política dos agentes estatais, são menos perseguidos do que os cometidos pelos excluídos.

A crítica criminológica da virada do século demonstrou que a cada modo de produção corresponde formas de punição adequadas para sua re­produção e seu desenvolvimento, e que no Estado capitalista isto é realizado de forma a proteger o capital e o patrimônio burgueses. A presente investiga­ção prioriza a análise crítica da dogmática penal atual, preocupada que está com a satisfação dos referidos e obscuros interesses daquela classe.

1 a Sociologia do riSco No âmbito do direito peNal“Que maravilhosa adequação ‘científica’ entre a lógica, o determinis­

mo, os objetos isolados e recortados! Então, o pensamento simplificador não conhece nem ambiguidade, nem equívocos. É esta ideologia que pretende

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apropriar­se do conceito de ciência” [sic]. A reflexão de Edgar Morin (2005, p. 429­430) bem serve para ilustrar o momento histórico havido no último quarto do século passado, que trouxe consequências e uma nova abordagem nos estudos de direito penal.

Desde a Revolução Francesa e os ganhos do Iluminismo, considerados marcos na evolução social humana e na formação do Estado de Direito que até hoje conhecemos, o homem tratou de elevar e preservar seus direitos con­tra o Estado “Leviatã” e obteve êxito, a partir da criação das bases que iriam formular toda a estrutura do Direito, e, consequentemente, do direito penal. Essas bases estariam sustentadas e expressas em seu último (e primeiro) grau pelo princípio de legalidade.

Passava o direito penal a expressar­se por meio de um sistema de im­putação formulado a partir do que exigisse a norma. O Iluminismo implicou em uma valorização do indivíduo, própria de sua época, e ilustrada pela fór­mula cartesiana clássica do “penso, logo existo” ou cogito, ergo sum1. O princí­pio de legalidade torna­se o instrumento máximo do direito penal.

Tem­se, na esfera do direito público brasileiro, a introdução, realizada por Lourival Vilanova (2003), das categorias fenomenológicas de Edmund Husserl, que, através da percepção da essência, buscam compreender que as coisas, os conceitos, as ideias, são cada uma delas um todo acabado.

Essa influência do procedimento analítico vilanoviano elege o caminho que será percorrido fenomenologicamente pela norma jurídica: “O processo de decompor analiticamente uma realidade em objeto de várias ciências é um princípio de divisão do trabalho científico, exigido pela complexidade dos problemas que a realidade oferece” (Vilanova, 2003, p. 22). O resultado é que a ciência do Direito tenha por objeto apenas normas jurídicas e cada ciência específica do direito volte-se a normas de conteúdo bem específico, como as normas de direito penal. Obtém­se, assim, mediante expediente redutor, o objeto de estudo: as normas jurídicas que integram determinada especialização do direito positivo. Descobertas as formas lógicas, é possível compreender como o direito funciona, funcionou e funcionará, em qualquer espaço-tempo onde o fenômeno jurídico se verifique.

A dogmática jurídico-penal passou a se traduzir em uma estruturação positiva, produto do pensamento ilustrado do Século das Luzes. E o sistema da teoria geral do delito, impregnado que estava pelo racionalismo da época,

1 Expressão formulada por René Descartes, em seu Discurso do Método (1996).

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intentava produzir um estudo do crime a partir de sua subdivisão em subs­tratos analíticos objetivos.

Ocorre que o direito penal, a partir dos últimos quarenta anos, viu­se diante de novas formas de criminalidade, organizada, onipresente, de alcan­ce global e de consequências pouco palpáveis, que incentivaram o surgimen­to de um direito penal diferenciado. Esse novo ambiente em que se viu inse­rido o direito penal passou a admitir a existência de uma dogmática estéril, conforme palavras de Muñoz Conde (2007), que veio a ser abafada com a inserção do contributo da política criminal que, juntamente com a dogmática, pretendeu atuar como vaso comunicante da realidade social – acontece que a realidade é muito fácil de ser subestimada, como o foi.

A partir do último quarto de século, principalmente, passaram a exis­tir alguns sinais, nas sociedades modernas, indicativos do aumento da pre­ocupação em torno de alguns riscos, particularmente quando se verifica que desses riscos originaram­se desastres e catástrofes de grande potência e de severas consequências. É importante frisar que, enquanto os riscos são repre­sentativos de uma decisão humana, na medida em que seja a antecipação da tragédia a partir de uma tomada de decisão humana, os perigos são qualquer possibilidade considerável de um prejuízo, ou, em última análise, são prove­nientes da natureza, e, assim, independem de decisão humana.

Assim, deve­se falar de risco somente quando a própria decisão é um motivo indispensável da possível ocorrência de um prejuízo, quando, por­tanto, com outra decisão este prejuízo não ocorreria, pelo menos não daquela forma. O exemplo dado por Luhmann (1990, p. 69) é o do fumante que, acei­tando o risco de desenvolver câncer, prossegue fumando. Ao não fumante, não incide risco, mas perigo.

Apesar da pluralidade conceitual que gira em torno da noção de risco, há um elemento transversal em todas as suas definições, qual seja, a distinção entre possibilidade e realidade. Assim, o acontecimento ou a conduta arris­cada pode ou não acontecer, alçado que está o risco ao âmbito da incerteza.

As explosões periódicas de medo, riscos e insatisfações fazem parte de um histórico recorrente das civilizações. A observação é de Delumeau, que exemplifica o que ele chama de “medos escatológicos” com diversas passagens bem conhecidas: o medo dos soldados pela ameaça da fome, os massacres advindos das excomunhões, o avanço turco inquietante a partir das derrotas de Kossovo, as Cruzadas, etc. (Delumeau, 2009, p. 302). Diante disso, vislumbra­se a existência de um novo paradigma, permeado a partir

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da segunda metade do século passado e de contornos bastante ecoantes no direito penal moderno: o paradigma do risco.

Se, do ponto de vista objetivo, a sociedade pós­industrial é caracteriza­da pelo manejamento de novos riscos, do ponto de vista subjetivo essa nova ambientação refletiu-se no aumento generalizado da sensação de inseguran­ça. A incerteza a respeito do conhecimento científico e suas consequências, que podem atingir a todos indistintamente, intensificou a tomada de cons­ciência dos riscos (que, frise­se, são oriundos de tomadas de decisão huma­na), podendo­se constatar aquilo que Beck chamou de “irresponsabilidade organizada”2.

A partir dos anos 1980, o mundo assiste à crise do próprio sistema de regulação e vê crescer a intensidade do conflito dentro do campo econômico, o que, mais cedo ou mais tarde, iria resvalar no universo jurídico. O mundo observou, conforme descrição de Chesnais (1996, p. 300), uma destruição das relações que garantiam estabilidade e crescimento. Desse diagnóstico é que se desdobra a hipótese de que há uma ligação estreita entre a mundialização do capital e o efeito depressivo presente na década de 90 em todo o mundo.

Assim, e a despeito das críticas em torno do conceito de sociedade de risco, é certo que, fantasmagóricos ou não, há riscos (novos e velhos) que, em fins do século XX, são enxergados com outra força, o que tem colocado em xeque a validade do discurso científico pautado na razão como fio condutor do futuro humano.

De fato, a sociedade de que se trata, seja qual for o ângulo de análise, é “global”, expressão que se transformou em conceito mundial por meio da imprensa de língua inglesa e, em pouquíssimo tempo, proliferou de forma surpreendente (Chesnais, 1996, p. 23). Esses fenômenos, então, trouxeram consigo uma fumaça de incerteza, abalando, inexoravelmente, a desejada se­gurança jurídica e social. Para controlar a insegurança, lançou-se mão, no âmbito da política-criminal, de uma mais severa punição a crimes econômi­cos, esses definidos como aqueles cujo bem jurídico protegido seja a ordem econômica. Por esse conceito, toda vez que atingida a ordem econômica, tem­­se atuante o direito penal econômico. Ainda que, conforme salientado por Martínez-Buján Pérez (2011, p. 67), quando a doutrina utiliza as expressões “direito penal econômico”, “direito penal socioeconômico”, “direito penal da

2 Ulrich Beck, em “A ciência é a causa dos principais problemas da sociedade industrial” (Entrevista concedida a Antoine Reverchon, do “Le Monde”. Jornal Folha de São Paulo, em 20 nov. 2001).

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economia”, ou outras similares, “não pretende referir­se a um direito penal distinto, mas, sim, a uma qualificação fixada sobre a peculiar natureza do objeto que trata de tutelar”.

Com a criação de novos tipos penais em leis extravagantes (Lei nº 9.605/1998, que dispõe sobre crimes ambientais; Lei nº 8.137/1990, que de­fine crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de con­sumo, entre outras), emergiram novas “vítimas em potencial”, identificadas com a vontade de imputar os riscos aos pertencentes às camadas mais altas da sociedade, aos grandes grupos econômicos e políticos, sob o argumento de que, assim, estar­se­ia equilibrando a balança seletiva do sistema de justiça criminal que, no Brasil, sempre encontrou nos pobres clientela preferencial.

Tal fenômeno produziu um fenômeno de fascinação de diversas orga­nizações sociais pelo direito penal, o que fez Silva Sánchez (2001, p. 64) asse­verar que “já não está em primeiro plano a negativa às estruturas de poder, senão a intervenção nelas mesmas”. Ocorre que a seletividade do sistema de justiça criminal brasileiro não se alterou pelo fato de grupos econômicos e po­líticos terem adentrado no polo passivo de processos criminais. Os maiores clientes do sistema penal seguem sendo os excluídos e destituídos de posses.

2 a metáfora do miraNte: luta de claSSeS e a NeceSSidade de SuperaÇÃo do coNteúdo excludeNte do direito peNal

Durante quase um século, o homem, impulsionado pelas inovações in­dustriais e tomado pelo sentimento (individualista) de domínio da natureza e aproveitamento de tudo que ela pudesse lhe fornecer, não se dera conta da potência letal dos instrumentos tecnológicos que lançava mão.

O uso desenfreado dos meios para atingir fins de puro exibicionismo e consumismo, ápice da premissa antropocentrista moderna, assistiu, enfim, as forças produtivas perderem sua inocência (Beck, 2010, p. 15). Desde a ameaça coletiva da saúde humana (recorde-se o impacto do amianto, fibra extraída de uma rocha e utilizada na mineração em virtude de sua durabilidade e re­sistência), passando pela chamada “revolução verde” (movimento ecológico tendente a coibir o desmatamento da Amazônia e da Mata Atlântica) e pelas catástrofes de Chernobyl, há diversos exemplos que confirmam a constatação de que “desde o ascenso da ciência moderna, cujo espírito é expresso na filo­sofia cartesiana, o quadro conceitual tem estado inseguro. A dicotomia entre contemplação e ação não pôde ser sustentada quando a ciência se tornou ativa e fez para conhecer” (Arendt, 2011, p. 67).

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Na aposta que a modernidade fez sobre a ciência, o homem optou por ser o senhor de seu destino e a consequência dessa relação pode ser sentida naquilo que Giddens (1991, p. 35) chama de desencaixe tempo­espacial. É que a união do modelo econômico capitalista e o desenvolvimento técnico­­industrial perpetrado pela Revolução Industrial forjaram as circunstâncias em que as relações sociais globalizadas passaram a se traduzir: as relações de confiança cambiaram.

A confiança do homem em sistemas peritos foi a responsável pelo cres­cimento (em progressão geométrica) do ciclo de produção, distribuição e consumo de bens e serviços. Reconhece­se, para além da complexidade dessa sociedade, uma sociedade consumista, inserida em um movimento cíclico de perpetuação do consumo. Ocorre que o consumo dos bens tidos como os mais necessários à felicidade humana – desse homem de virada de século – mal sobrevive ao ato de sua produção. Como bem garante Arendt (2011, p. 118­119), “após uma breve permanência no mundo, retornam ao processo natural que as produziu, seja por meio da absorção no processo vital do ani­mal humano, seja por meio da deterioração”.

De fato, em um mundo onde a industrialização rápida extermina cons­tantemente as coisas de ontem para produzir os objetos de hoje, que amanhã já experimentarão a obsolência, constata­se o aspecto irônico da sociedade pós­industrial: o fato de que o consumismo desenfreado causa, por um lado, prazer instantâneo e, por outro, depressão e liquidez a prazo.

A efemeridade das coisas mundanas e a relação de confiança, então, contribuíram com a “lógica” da produção de riqueza, em prol de uma “ló­gica” de produção de riscos. Ainda que se questionem os limites da socie­dade de risco (e, até, sua própria existência, enquanto um novo modelo de sociedade conforme os moldes impostos por Beck), é certo que se discute, neste novo contexto, a maneira pela qual podem ser distribuídos “os ma­lefícios que acompanham a produção de bens, ou seja, verifica-se a autoli­mitação desse tipo de desenvolvimento e a necessidade de redeterminar os padrões de responsabilidade, segurança, controle, limitação e consequências do dano” (Leite, 2008, p. 31).

De fato, o direito penal atual tem se deparado com a séria dificuldade proveniente do clamor intensificado da opinião pública que, insegura, solici­ta sua atuação. A consequência direta deste fenômeno é sentida na expansão e no inchaço do campo de atuação do direito penal, mormente em relação à punição de crimes patrimoniais.

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A referência a mudanças sociais, conforme suscita Karl Marx (2011) em seu célebre O 18 de Brumário, traz duas reflexões: de um lado, a possibilidade de uma visão passiva ser construída a partir de forças cegas e contraditórias; de outro, e contrariamente, a possibilidade de uma construção ativa da his­tória suscitada por esforços intencionais de agentes humanos racionais em relação aos aspectos sociais, econômicos e políticos da vida. Uma vez que, nas sociedades complexas, ao direito penal é dada a função (equivocada) de estabilizar expectativas de comportamento, imunizando a sociedade de en­fermidades como o conflito, a violência e o risco, vê-se um enclausuramento normativo bastante perigoso, relativizador drástico de seu nível de obser-vação.

Afastando­se da neutralidade e da imparcialidade que pretende assu­mir, o direito penal, ao inchar e se expandir, acaba por tomar posição es­tritamente liberal, privilegiadora da esfera privada e da defesa de direitos subjetivos.

Conforme lição de Cirino dos Santos (1984, p. 85), a violência produ­zida pelo modo de produção capitalista possui duas principais vertentes: a violência estrutural, ligada às relações de produção nos processos de traba­lho, e a violência institucional, ligada ao conteúdo e à atuação diferencial das superestruturas do poder do Estado burguês.

O condicionamento histórico e social do pensamento, em contraposi­ção a um discurso científico pretensamente neutro e objetivo, tem no marxis­mo a sua entoação. O engajamento epistemológico forjado a partir da análise do condicionamento do proletariado visa a superar eventuais relativismos e tomadas de visão parciais da realidade.

Para Karl Marx, cada classe cria suas visões sociais de mundo, visões essas que se vinculam, porém, à própria situação social. Retomando a noção hegeliana de Aufhebung, Marx propõe uma mirada dialética, na qual o conhe­cimento passa a ser construído não mais a partir de uma lógica de acumula­ção, mas conforme um movimento de negação/conservação/superação do mesmo.

Não incide, assim, no erro de um reducionismo sociológico ultravalo­rizador da teoria social da luta de classes, e tampouco recai em uma disso­ciação integral entre realidade e posição social, tal qual acabou por incorrer o positivismo. Eis a magnitude de suas proposições.

É necessário resistir a uma dimensão unidimensional e reducionista da realidade. Os fenômenos sociais são multideterminados e demandam mirada mais complexa e alongada. A metáfora do mirante, empregada por Michael

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Löwy (2000), auxilia a compreender o quanto o horizonte de percepção da realidade pode se restringir (ou se ampliar), a depender da posição social em que se situa o observador. Daí que nem o reducionismo sociológico do ponto de vista de classe, nem, tampouco, seu completo alheamento (expresso pelo positivismo), sejam suficientes para desnudar a realidade, complexa que é.

Visto por essa perspectiva, o mirante dogmático não se permite falar em “excesso” de punição em relação aos crimes patrimoniais/econômicos, mas em eficiência técnica do direito penal. Por um mirante crítico, por outro lado, faz­se necessário examinar o que realmente há por detrás dessa neocri­minalização.

3 crítica a uma dogmática eStÉril e coNtraproduceNteOs homens, em seu convívio social, contraem, durante suas vidas, uma

série de relações de produção e consumo, o que se dá, não raras vezes, de for­ma aleatória a sua vontade. O conjunto de todas essas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade a qual pertencem, transformando­-se, também, em uma superestrutura jurídica, política e social. Daí porque, conforme ensinamento de Marx (1977, p. 300­303), “não é a consciência do homem que determina seu ser, mas, inversamente, é seu ser social que deter­mina sua consciência”.

A criminologia crítica vem, há algum tempo3, denunciando a discre­pância entre a criminalidade real da sociedade e a criminalidade que é levada a/investigada pelas agências punitivas. Há uma enorme cifra negra de con­dutas que não chegam ao conhecimento dos órgãos estatais. A criminalização secundária, que é a efetivação do programa criminalizador da tipificação pe­nal das condutas, ocorre mediante atuação de agentes específicos: polícia que investiga, promotor que denuncia, etc.

A burguesia, visando à defesa a seu direito de propriedade, direcio­nou o direito penal à proteção de seu patrimônio. A desigualdade aumenta o abismo entre os possuidores e os não possuidores de bens, contribuindo para a expansão da severidade das penas como forma de controlar as mas­sas e afastar as classes inferiores. Aos marginalizados e desprovidos de bens resta a perseguição criminal e a incriminação por crimes patrimoniais. As

3 Sobre o tema, é indispensável Baratta (2004). Ainda, afirmar que o Direito protege o “interesse geral” é uma falácia que, conforme suscita Baratta, despreza a grande parcela de não proprietários desta sociedade de consumo que, em feliz expressão, Gilberto Felisberto denominou de capitalismo videofinanceiro – porque os bancos e a mídia televisiva, em especial, condicionam toda as nossas escolhas ao longo da vida.

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cifras negras dizem respeito aos demais, aos incluídos, que dificilmente são perseguidos.

À medida que a sociedade exclui e marginaliza um ser humano, mais aumentam suas chances de derrapar para fora da norma. Tal fragilidade so­cial pode ser identificada com aquilo que Agamben (2007, p. 143) chamou de vida que não vale a pena ser vivida. É a vida que, ao ser assimilada para fora da norma, é banida, expulsa do centro, passando a pertencer à periferia.

A lógica adotada pela dogmática penal atual, cujo desejo de lidar com os riscos da sociedade de risco a levou às últimas consequências, é a respon­sável pela expansão da incriminação de crimes patrimoniais econômicos. O objetivo não é outro senão autoproteção, ou seja, a proteção da burguesia contra os não proprietários e, portanto, potenciais excluídos – leia-se, cri­minosos. A mencionada expansão combinou o uso de medidas legais e re­pressivas com o declínio da capacidade de luta do movimento sindical, cujo resultado final não poderia ser outro senão o aumento da permissividade à exploração da força de trabalho4.

O fio condutor do direito penal atual, político que é, pode ser com­preendido pelas proposições marxistas que desnudam o véu da ignorância e propõem uma análise conjuntural, em que se leem as análises das lutas de certos grupos por manterem sua hegemonia, o que encontra esteio na política estatal dotada de “recursos organizacionais” próprios (Marx, [s.d.], p. 80).

No seio do poder estatal, somente alguns setores detêm, em prejuízo de outros, capacidade decisória real – o que Marx (2003, p. 114) chama de “iniciativa governamental”. A capacidade de criar leis próprias a protegerem seus interesses é própria da burguesia, próxima que está do centro decisório mais importante. Assim, com o fim de controlar os riscos (econômicos, fun­damentalmente) da sociedade, a política-criminal da virada de século opta por justificar as deformidades sociais, ainda que não o faça oficialmente, en­carcerando os não absorvidos pelo sistema de produção (excedentes, como os desabrigados e desempregados).

Eles são identificados como inimigos. Carl Schmitt (1992, p. 48) faz im­portante crítica à leitura liberal de democracia que, submetendo o Estado à sociedade civil, serve apenas como instrumento de satisfação dos interesses daqueles que estão no poder. Abre­se caminho, assim, para a guerra contra as

4 Mutatis mutandis, a demonstração de que o desenvolvimento tecnológico supõe inten­sificação do trabalho e prolongamento da jornada segue válida, nos termos propostos por Marx (2008, p. 451­476).

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pessoas reconhecidas como inúteis e potencialmente perigosas, mais tóxicas até do que o próprio lixo (Crhistie, 1998, p. 65).

É de fácil percepção o fato de que o conjunto de seres humanos reuni­dos sob o rótulo de underclass é resultado direto da marginalização estrutural, vinculada à rearticulação contemporânea do capitalismo. Mas sempre há, en­tre os mais conservadores, os cínicos, que, sob o pretexto de os responsabili­zar pela própria existência, defendem que o traço distintivo dessa subclasse não é a (falta de) renda ou de bens, mas uma conduta autodestrutiva de seus membros, considerados parasitas do assistencialismo estatal5.

De fato, poucos autores afeitos a uma dogmática penal econômica con­seguem ultrapassar essa espessa cortina ideológica. Se, por um lado, é de se concluir que à underclass falta mobilidade social; por outro, é um equívoco supor que ela não está economicamente integrada. E não se trata de um pa­radoxo. Explica­se: sua integração vem pela exata realização de atividades informais – identificada com atividades marginais, periféricas, clandestinas, perigosas ou criminosas – que compensam a perda das tradicionais formas de obtenção de renda decorrentes do fim do emprego e do declínio do Estado de Bem­Estar Social (Ruggiero, 2008, p. 69­71).

Esse é um dos motivos, aliás, que fazem o Estado, por meio da pro­dução legislativa de proteção à propriedade, preocupar­se tanto com a un-derclass, pois ela efetivamente se apresenta como um dos principais entraves ao seu desenvolvimento, ao apresentar­se como contradição performática de sua dinâmica (Marx, 2003, p. 3).

É possível compreender a impotência e o desespero do ser humano ex­cluído retomando a tragédia orwelliana6. A subjetividade inerente ao uso de prognósticos de risco e sua atuação na política-criminal são medidas brutais do esvaziamento do conteúdo ético nas relações humanas em função de um interesse utilitário. De fato, contra a instrumentalização estatística do sistema punitivo e a seletividade da violência (perseguem­se apenas alguns tipos de crimes) sobra ao sujeito pouca capacidade de resistência.

Por esse motivo é que, em um Estado que se pretenda democrático, o papel do Direito e, consequentemente, do direito penal, deve ser – a curto e médio prazos – promover um garantismo criminologicamente fundamenta­

5 Para o aprofundamento de uma análise crítica a esse respeito, veja-se Wacquant (2003).6 “Proles” é a designação do proletariado na mais conhecida novela de George Orwell (1984,

p. 1­130).

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do, forjado na crítica ao real funcionamento do sistema criminal (Andrade, 2012, p. 233).

No horizonte utópico de superação das desigualdades racionalizadas por meio do controle punitivo estatal, deve estar presente não o controle so­cial da exclusão, mas o da inclusão, realizável através de um outro Estado (ou um não Estado), que funcione para além do capitalismo. Para tanto, tal pretensão pressupõe, previamente, a superação do atual discurso autolegi­timador do Direito que opera a estigmatização e exclusão de certas classes sociais, fazendo­as perderem a voz, a identidade e a própria humanidade.

Assim, não é mera coincidência a desproporcional criminalização por crimes patrimoniais (praticados pelos não proprietários) em detrimento das cifras negras existentes em relação aos demais tipos de crime: metade das pessoas enjauladas no sistema carcerário nacional foram punidas por essa espécie de delito. Por esse motivo, dois mirantes necessários se colocam para a compreensão e superação desse cenário: a um, para o positivismo, a refle­xão de que não há contumazes inimigos; a dois, para a crítica criminológica, a tomada de consciência da seletividade criminalizante, o que precisa ser in­vestigado amiúde.

É chegada a hora de abandonar o senso comum da dogmática positi­vista relativizadora da realidade e dar lugar a um arcabouço principiológico mais ajustado aos anseios sociais, mais humanitário e mais justo. O conheci­mento da questão criminal não pode – e não deve – abrir mão do plano do ser sob o risco de alheamento da dogmática às práticas reais seletivas das agências de criminalização estatal.

coNSideraÇõeS fiNaiSOs crimes patrimoniais são os mais recorrentemente punidos pelo sis­

tema penal no Brasil, o que não quer dizer que sejam os mais praticados. São, ademais, os mais selecionados, porquanto atentam contra o princípio basilar dessa forma de constituição da sociedade: a propriedade privada. Agrava­se a isso o fato de que, nos últimos quarenta anos, principalmente, visando à contenção dos riscos assumidos pela sociedade, a política-criminal passou a se expandir, visando à proteção da propriedade burguesa. A categoria da luta de classes é imprescindível ponto de partida dialético para entender o porquê desse fenômeno de encarceramento em massa da população miserá­vel. Faz-se necessária a reflexão por uma dogmática penal de cunho crimino­lógico, como saída mais justa e eficaz à superação dos efeitos deletérios de uma sociedade capitalista excludente e estigmatizante.

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Vi ontem um bichoNa imundície do pátioCatando comida entre os detritos.Quando achava alguma coisaNão examinava nem cheirava:Engolia com voracidadeO bicho não era um cão,Não era um gato,Não era um rato.O bicho, era um homem.(Bandeira, 1958, p. 356)

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o tribuNal peNal iNterNacioNal e o caSo omar al-baShir

the iNterNatioNal crimiNal court aNd the caSe omar al-baShir

MaRine caRRièRe De MiRanDa*

RESUMO: O artigo aborda o conflito entre o TPI e o Presidente do Sudão, Omar Al­Bashir, discutindo principalmente a questão a res­peito da (des)obrigação dos países em cooperar com o Tribunal de Haia. Traz também a discussão sobre as imunidades e a força das decisões do CS da ONU. Por fim, se os países devem cumprir o man­dado de prisão contra Al­Bashir.PALAVRAS­CHAVE: Tribunal Penal Internacional; Conselho de Segurança das Nações Unidas; imunidades internacionais; dever de cooperação.ABSTRACT: This article discusses the conflict between ICC and the President of Sudan, Omar Al­Bashir, mainly discussing the question about the (non)obligation of countries to cooperate with the Hague Tribunal. It also discuss about international immunities and the strength of decisions of the UN Council. Moreover, if the countries are duties to send Al­Bashir to prison.KEYWORDS: International Criminal Court; United Nations Coun­cil; international immunities; duty to cooperate.SUMÁRIO: Introdução; 1 O Conselho de Segurança das Nações Unidas; 2 Imunidades internacionais; 3 Dever de cooperar; Conclu­são; Referências.

iNtroduÇÃoO caso do Presidente do Sudão, Omar Hassan Ahmad Al­Bashir, gerou

consequências diversas na doutrina e jurisprudência internacional. Foi o pri­meiro Chefe de Estado em serviço que teve um mandado de entrega expedi­

* Doutoranda e Mestre (2014/2016) em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra, Especialista em Compliance pela Universidade de Coimbra, Advogada.

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do pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) contra ele1. Isso levou a questionar institutos como as imunidade internacionais e o seu limite, a legitimidade do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CS da ONU) em intervir no TPI e a (des)obrigação de os Estados cooperarem com o TPI, sendo eles Estados­­partes ou não do Estatuto de Roma.

De forma muito breve, deve­se perceber o que houve no caso “The Prosecutor v. Omar Hassan Ahmad Al­Bashir Case nº ICC­02/05­01/09”2. Desde a independência do Sudão, em 1956, houve uma guerra civil que teve relativa pacificação em 2003, porém o conflito continuou na região oeste do país, em Darfur3. Três grupo de etnias (Fur, Masalit e Zagawa) continuam sendo atacados pelas milícias (Janjaweed), comprovadamente apoiadas pelo governo e exército sudanês4.

Tomando conhecimento do conflito, em 31 de março de 2005, o CS da ONU expediu a Resolução nº 1.593, a qual, em seu parágrafo primeiro, deci­de informar ao Procurador do TPI da situação em Darfur, para que este faça

1 Já teve julgamento nos Tribunais ad hoc criados pelo CS da ONU, como foi o caso do ex­presidente da Sérvia Slobodan Milošević. PAPILLON, Sophie. Has the United Nations Council implicitly removed Al­Bashir’s immunity? International Criminal Law Review, n. 10, p. 275, 2010. Sobre a legitimação desses tribunais, cf. CAEIRO, Pedro. Claros e escuros de um autorretrato: breve anotação à jurisprudência dos tribunais penais internacionais para a antiga Jugoslávia e para o Ruanda sobre a própria legitimação. Revista Portuguesa de Ciencia Criminal, n. 12, p. 573­601, 2002.

2 Resumo do caso no site do Tribunal Penal Internacional (Disponível em: <http://www.icc-cpi.int/iccdocs/PIDS/publications/AlBashirEng.pdf>. Acesso em: 19 maio 2015).

3 HORTAL, María José Cervell. Darfur: un paso más para el castigo de individuos responsables de crímenes internacionales. Revista Brasileira de Ciencias Criminais, n. 56, p. 114­117, 2005; MARANGONI, Vivian. A efetividade do direito internacional penal à luz do caso Al­Bashir no TPI. Revista Brasileira de Ciencias Criminais, n. 101, p. 335 e s., 2013.

4 Office of the Prosecutor, Anexo A: “Public Redacted Version of the Prosecutor’s Application under Article 58”. Disponível em: <http://www.icc-cpi.int/library/cases/ICC-02-05-157- ­AnxA­ENG.pdf>. Acesso em: 19 maio 2015. Cf., também, PICHON, Jakob. The principle of complementarity in the case of Sudanese nationals Ahmad Harun and Ali Kushayb before the ICC. International Criminal Law Review, v. 8, n. 1 e 2, p. 214, 2008. Sobre a responsabilidade individual ou do Estado, cf. ABASS, Ademola. The ICC and the universal jurisdiction. International Criminal Law Review, v. 6, n. 3, p. 378­379; ALONSO, Héctor Olásolo. Los primeros casos a nivel internacional de aplicación autónoma del concepto de autoria mediata através de estructuras organizadas de poder. Revista Brasileira de Ciencias Criminais, n. 92, p. 384 e s., 2011; DUPUY, Pierre­Marie. International Criminal Responsibility of the individual and International Responsibility of the State. In: The Rome Statute of the International Criminal Court: A Commentary. Oxford University Press, v. I, 2002. p. 1085­1099.

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a denúncia. De forma a não cooperar e ir mesmo contra o TPI, o Presidente Omar Al­Bashir expediu o Decreto Presidencial nº 114/2006, o qual trouxe uma anistia para inúmeros políticos que haviam sido denunciados e tinham mandado de detenção já expedidos pelo TPI.

Em 5 de junho de 2008, o Procurador do TPI Luis Moreno Ocampo rela­tou que o Sudão recusava­se a cumprir esta Resolução e que havia provas as quais demonstravam que todo o aparato estatal encontrava­se envolvido no cometimento dos crimes. Ainda assim, o Sudão continuava a não cooperar e, então, em 4 de março de 2009, a Primeira Câmara de Pré­Julgamento do TPI expediu mandado de prisão5 para o Presidente Omar Al­Bashir (acusado de crimes contra humanidade, crimes de guerra e genocídios6).

Porém, em uma primeira impressão, parece um absurdo que a ONU tenha poder, por meio de uma Resolução de seu CS, de retirar a imunidade de um Chefe de Estado e de exigir a cooperação do Sudão, país não signa­tário do Estatuto de Roma (ER), a colaborar com o TPI. Sendo assim, teria direito Omar Al­Bashir, um Chefe de Estado, gozar das imunidades ratione personae? Poderia o CS da ONU obrigar países que não fazem parte do TPI a cooperarem com o mesmo? Ou, então, determinar ao Procurador do Tribunal Internacional de Haia que denuncie um país que não aderiu ao ER? Ainda, pode um país, no cenário atual, recusar-se a cooperar com o TPI em favor de sua ordem interna? Pretende­se responder estas e outras questões, espalha­das pela doutrina, condensando os entendimentos e elaborando um trabalho capaz de abordar as principais questões levantadas pelo caso.

1 o coNSelho de SeguraNÇa daS NaÇõeS uNidaSO Conselho de Segurança da ONU pode intervir no ER, de acordo com

o art. 13º, alínea “b”7, referindo (informando) uma situação de aparente vio­

5 O primeiro de dois (o segundo expedido em 12 de julho de 2010). Disponível em inglês em: <http://www.icc-cpi.int/iccdocs/doc/doc639078.pdf>. Acesso em: 19 maio 2015.

6 Crimes descritos no site do Tribunal Penal Internacional (Disponível em: <http://www.icc­cpi.int/en_menus/icc/situations%20and%20cases/situations/situation%20icc%200205/related%20cases/icc02050109/Pages/icc02050109.aspx>. Acesso em: 19 maio 2015). Há imensas análises a respeito de os crimes cometidos serem considerados genocídio. Para mais, cf. CAYLEY, Andrew. The Prosecutor’s Strategy in Seeking the Arrest of Sudanese President Al Bashir on Charges of Genocide. Journal of International Criminal Justice, n. 6, p. 829­840, 2008.

7 Art. 13º do ER: “O Tribunal poderá exercer a sua jurisdição em relação a qualquer um dos crimes a que se refere o art. 5º, de acordo com o disposto no presente Estatuto, se; b) O

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lação aos diretos protegidos nos crimes de competência do TPI ao Procura­dor do Tribunal, que, provavelmente, fará a denúncia. Isso ocorre de forma diferente quando se trata de um pedido ou denúncia dos Estados­partes ou do próprio Procurador, onde se é exigido um “requisito adicional” de verifi­cação de competência do TPI, além da adesão destes Estados ao Estatuto de Roma8.

Mesmo assim, o texto no art. 13º do ER mantém o caráter de decidir se o assunto será processado pelo TPI ou não à Corte9, fato esse que é relevante dada a característica de o Tribunal de Haia ser considerado um órgão judicial e não político. Diferentemente é o CS da ONU, um órgão político, regido pela Carta da ONU, conforme o Capítulo IV dessa Carta10.

Referente ao caso, o procedimento de intervenção do CS decorreu na seguinte ordem: o CS da ONU expede a Resolução nº 1.564 (em 2004)11, a qual estabeleceu que o Secretário de Segurança das Nações Unidas deveria ordenar a criação de uma Comissão12 para investigar os fatos em Darfur, e, a

Conselho de Segurança, agindo nos termos do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, denunciar ao Procurador qualquer situação em que haja indícios de ter ocorrido a prática de um ou vários desses crimes; ou [...]”. Cf., também, HORTAL, María José Cervell. Darfur: un paso más para el castigo..., p. 129­130.

8 Diferentemente do Conselho de Segurança que também cria jurisdição, pois está vinculado aos casos de crimes do ER e da Carta da ONU. TRAHAN, Jennifer. The relationship between the International Criminal Court and the U.N. Security Council: parameters and the best practices. Criminal Law Forum, n. 24, p. 419, 2013. A autora faz, na nota 22 da página 423, uma interpretação do art. 53º do ER que sugere que o Procurador do TPI “atenda” o pedido do CS da ONU dada, geralmente, sua relevância. Cf., também, KIRSCH, Philippe, QC; ROBINSON, Darryl. Referral by Sates Parties. In: The Rome Statute of the International Criminal Court: A Commentary. Oxford University Press, v. I, 2002. p. 619­626.

9 Art. 13º do ER: “The Court may exercise its jurisdiction...”.10 Ainda assim, o CS da ONU deve se manter dentro da jurisdição do TPI (arts. 5º e s. do ER),

e, conforme permite a Carta da ONU, só pode aferir o caso ao TPI se a paz for ameaçada com a ocorrência de um fato (art. 39º da Carta), ou seja, quando há um perigo potencial. Cf. TRAHAN, Jennifer. The relationship between the..., p. 422.

11 Resolução nº 1.564, de 18 de setembro de 2004. Disponível em: <http://www.un.org./es/comun/docs/?symbol=S/RES/1564%20(2004)>. Acessado em: 19 maio 2015.

12 Sobre a Comissão, cf. ALSTON, Philip. The Darfur Commission as a Model for Future Responses to Crisis Situations. Journal of International Criminal Justice, n. 3, p. 600­607, 2005; KRESS, Claus. The Darfur Report and Genocidal Intent. Journal of International Criminal Justice, n. 3, p. 562­578, 2005; SHANI, Yval. The road to the Genocide Convention and beyond. In: GAETA, Paola (Ed.). The UN Genocide Convention – A Commentary. Oxford: Oxford University, 2009. p. 18­21; BEN­NAFTALI, Orna. The obligations to prevent and to

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partir dos resultados aferidos por esta Comissão, o CS entendeu haver moti­vos suficientes para a intervenção do Tribunal de Haia13, portanto, expede a Resolução nº 1.593 (em 2005)14. Por meio dessa, desencadeou o procedimento explanado anteriormente, onde o Procurador Ocampo denuncia o caso ao TPI, e, diante do não cumprimento da Resolução (pela não cooperação) e dos mandados de detenção expedidos pelo TPI para políticos que ocupam cargos importantes no governo sudanês15, após uma investigação16, foi constituído um dossiê contendo incriminações contra o próprio Presidente do Sudão, re­sultando na expedição do mandado de captura contra ele17.

Um dos grandes problemas referentes ao caso advém desta última Re­solução.

Analisando os parágrafos mais conflitantes18, verifica-se o seguinte. Primeiramente, é conveniente ressaltar que a intervenção do CS da ONU no

punish Genocide. In: GAETA, Paola (Ed.). The UN Genocide Convention – A Commentary. Oxford: Oxford University, 2009. p. 41.

13 Cada vez mais o CS tem combatido o genocídio. Cf. GAJA, Giorgio. The role of UN preventing and suppressing Genocide. In: GAETA, Paola (Ed.). The UN Genocide Convention – A Commentary. Oxford: Oxford University, 2009. p. 404.

14 Resolução nº 1.593, de 31 de março de 2005. Disponível em: <http://www.un.org./es/comun/docs/?symbol=S/RES/1593%20(2005)>. Acessado em: 19 maio 2015.

15 Casos: The Prosecutor v. Ahmad Muhammad Harun (“Ahmad Harun”) and Ali Muhammad Ali Abd­Al­Rahman (“Ali Kushayb”), ICC­02/05­01/07; The Prosecutor v. Abdel Raheem Muhammad Hussein, ICC­02/05­01/12.

16 O CS emitiu a Declaração Presidencial nº 21, que não tem força jurídica, mas que tem caráter de recomendação e reforçou os pedidos de cooperação feitos na Resolução nº 1.593.

17 ZAPALLÀ, Salvatore. International Criminal Jurisdiction over Genocide. In: GAETA, Paola (Ed.). The UN Genocide Convention – A Commentary. Oxford: Oxford University, 2009. p. 276.

18 Outras análises podem ser feitas referentes ao §6º, que traz um reforço do CS ao entendimento norte­americano de que os nacionais de Estado não parte do TPI não podem ser julgados por este, e, se forem, terão imunidade naquela corte (que serão autorizadas pelo CS). Por isso também não menciona o art. 16º de ER, que permite ao CS “travar” o TPI por 12 meses (podendo ser prorrogado por mais 12 meses), possibilitando, nesse meio tempo, que o CS reconheça a celebração de tratados bilaterais que impeçam o TPI de atuar como é o que acontece com os EUA. O §7º declara que os custos serão exclusivamente do TPI e dos Estados-partes, mas, conforme o art. 115º, alínea “b”, do ER, os custos também serão arcados pela ONU, e, caso não for entendido dessa forma, deverá haver uma Assembleia­Geral para determinar quem arcará com as despesas; nesse caso, foi determinado unilateralmente pelo CS. Para mais, cf. ZEN, Cássio Eduardo. O relatório da Comissão Internacional de Inquérito sobre a situação em Darfur – Sudão: da suspeita de crime de genocídio, da necessidade de

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TPI é legítima por conta da previsão do art. 13º, alínea “b”, do ER, a qual permite que seja feito um pedido de verificação da situação para, caso o Pro­curador assim entenda, este denunciar o ocorrido ao TPI19. Os requisitos do art. 53º do ER devem estar preenchidos, ou seja, deve haver indícios da prá­tica de algum crime abrangido pela jurisdição do TPI (art. 5º do ER) e essa denúncia deve ser feita dentro dos poderes que o Capítulo VII da Carta da ONU concede ao CS. Para este caso em específico foi feita uma investiga­ção anterior, conforme explicitado antes, indicando haver indícios suficientes para uma possível intervenção do TPI (sempre submetido à apreciação do Procurador)20.

O § 1º da Resolução nº 1.593 decide submeter a situação ao Procurador do TPI, e, no § 2º, determina que o Sudão deve cooperar com o TPI de forma integral. Uma das críticas seria que o CS teria poder apenas para sugerir essa investigação pelo TPI21, como uma forma de “gatilho” à jurisdição (trigger mechanism), e, da forma que foi escrito, trata­se claramente de um comando22. Outro problema seria que o § 2º obriga o Sudão, que não é signatário do ER, a cooperar com o TPI. Então teria valor jurídico essa ordem por parte do CS da ONU, uma vez que o Sudão não aderiu ao Tribunal de Haia?

Aparentemente não, pois o ER é um tratado que deve ser assinado e ratificado pelo Estado que aceita ser membro, e, portanto, submeter-se a tal regulamento. O art. 86º do ER trata de uma obrigação geral de cooperar pelos Estados­partes, mas o mesmo não é válido para aqueles que não são mem­

julgamento no Tribunal Penal Internacional e das Imunidades conferidas pela Resolução nº 1.593 do CS da ONU. Revista Brasileira de Direito Internacional, v. 1, n. 1, p. 225­250, 2005.

19 O CS já referiu outras situações ao TPI, como foi o caso da Resolução nº 1.970 da Líbia. Cf. TRAHAN, Jennifer. The relationship between the..., p. 429.

20 Há uma diferença entre os requisitos, inclusive porque a Resolução expedida deve ser específica quanto ao seu conteúdo, inclusive com o poder do CS em fazer recomendações, o que torna o valor jurídico e o conteúdo destas de imensa significância no contexto internacional. Cf. PINHEIRO, Fábio Abel. “Core International Crimes” e as imunidades de direito internacional. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra, 2014, p. 110­111.

21 A “última palavra” é do TPI, por ser um órgão jurisdicional. Cf. art. 53º do ER.22 A autora reconhece que o CS sugeriu que os Estados da ONU cooperassem com o TPI,

mas não obrigou, motivo pelo qual os países podem se recusar. Cf. GAETA, Paola. Does President Al Bashir..., p. 332.

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bros23. Parece que o CS quis ir além da especificidade gerada pelo tratado, obrigando o Sudão a cooperar por ser membro da ONU; logo, é obrigado a acatar as decisões do próprio CS. Isso cria um conflito por conta de o CS ser vinculado a um órgão político (ONU) e de o TPI ser um órgão judiciário, ge­rando uma imposição ilegal sobre tal decisão24.

Mas há quem diga ser legal, uma vez que há essa obrigação dos mem­bros da ONU de acatarem as decisões do CS. Elas vinculam todos os Estados­­partes, conforme dispõe o art. 25º da Carta da ONU25, mas esse assunto será melhor tratado no último ponto do trabalho, relativo ao dever geral de coo­peração com o TPI26.

De forma a buscar “legitimar” a decisão do § 2º da Resolução, pode­­se entender que o CS obrigou apenas o Sudão a cooperar com a Corte, não “atropelou” os princípios gerais dos tratados estabelecidos pela Convenção de Viena e tornou o país um membro do ER. Talvez teria sido mais esclarece­dor se o CS tivesse determinado de uma vez que todos os membros da ONU são obrigados a cooperar com o TPI por meio dessa Resolução27. Ou seja, os termos deveriam ser mais objetivos, de forma a não limitar a cooperação somente ao Sudão, pois, dessa forma, existem meios de se burlar tal decisão que impedem a detenção de Omar Al­Bashir. Portanto, entende­se que nas próximas Resoluções expedidas pelo CS da ONU dirigidas ao TPI deve haver

23 Conforme destaca Caeiro, o art. 86º obriga a cooperação apenas para Estados­partes, em CAEIRO, Pedro. Ut puras servaret manus. Revista Portuguesa de Ciencia Criminal, n. 11, p. 40, 2001. Cf., também, CIAMPI, Annalisa. The obligation to cooperate. In: The Rome Statute of the International Criminal Court: A Commentary. Oxford University Press, v. I, 2002. p. 1612 e s.

24 TRAHAN, Jennifer. The relationship between the..., p. 417.25 O art. 25º da Carta diz que os membros da ONU acordam em aceitar e zelar pelas decisões

do CS. Cf. JAIN, Neha. A Separate Law for Peacekeepers: The Clash between the Security Council and the International Criminal Court. European Journal of International Law, v. 16, n. 2, p. 253, 2005.

26 Sobre uma possível solução dos problemas encontrados na Resolução emitida pela CS que poderiam ser “corrigidos” pelo Procurador do TPI. Cf. CIAMPI, Annalisa. The Proceedings against President Al Bashir and the Prospects of their Suspension under Article 16 ICC Statute. Journal of International Criminal Justice, n. 6, p. 885­897, 2008.

27 No caso da Líbia, a Resolução nº 1.970, de 26 de fevereiro de 2011, foi um pouco descritiva nesse aspecto. Cf. §6 da mesma Resolução. Disponível em: <http://www.icc-cpi.int/NR/rdonlyres/081A9013­B03D­4859­9D61­5D0B0F2F5EFA/0/1970Eng.pdf>. Acesso em: 19 maio 2015. O CS obrigou apenas o Sudão a cooperar com o TPI, enquanto os outros países são solicitados a cooperar (“urged to do so”), em GAETA, Paola. Does President Al Bashir Enjoy Immunity from Arrest? Journal of International Criminal Justice, n. 7, p. 330­331, 2009.

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uma linguagem mais direta e conforme a proposta de Trahan: “Decide que todos os membros da ONU deverão cooperar de plenamente e prover qualquer assistência necessária à Corte e ao Procurador diante desta resolução”28.

Além disso, pode, então, o CS da ONU, por meio da Resolução nº 1.593, exigir a entrega e detenção do Presidente do Sudão? Para isso, deve­­se entender que a dita Resolução retirou a imunidade de Omar Al­Bashir, o que convém, então seguir ao próximo tópico.

2 imuNidadeS iNterNacioNaiSNão é a primeira vez que as imunidades internacionais são discutidas

nas cortes criminais29. Com o julgamento dos tribunais ad hoc da antiga Iu­goslávia e Ruanda30, vários membros do alto escalão político tiveram suas imunidades ameaçadas e retiradas31. Um dos casos mais polêmicos até hoje foi o mandado de prisão expedido contra o Ministro dos Negócios Estran­geiros da República do Congo, Sr. Yerodia32. A diferença é que nesse caso foi um tribunal nacional que expediu o mandado, e não um tribunal de caráter internacional. Ainda assim, teve (e tem) importância pela discussão presente no acórdão sobre as imunidades internacionais e seus limites.

Existem dois tipos delas: em razão da matéria e em razão da pessoa. As primeiras são conhecidas também por funcionais (ratione materiae) e abran­gem todos os agentes do Estado quando atuam em nome do Estado. Já as pes­soais (ratione personae) só atingem aqueles que têm capacidade de representar o Estado no exterior, como o chefe de Estado, o primeiro ministro, membros

28 “Decides that all U.N. Member States shall cooperate fully with and provide any necessary assistance to the Court and the Prosecutor pursuant to this resolution.” (TRAHAN, Jennifer. The relationship between the..., p. 463)

29 Cf. AKANDE, Dapo; SHAH, Sangeeta. Immunities of State Officials, International Crimes, and Foreign Domestic Courts. European Journal of International Law, v. 21, p. 815 e s., 2010.

30 Resoluções nºs 827 (de 25 de maio de 1993) e 955 (de 8 de novembro de 1994), respectivamente, do CS da ONU.

31 Como foi o caso de Charles Taylor. Cf. GAETA, Paola. Does President Al Bashir..., p. 320.32 Mandado de detenção de 11 de abril de 2000 (República Democrática do Congo v. Bélgica),

Corte Internacional de Justiça, 14 de fevereiro de 2002. Caso na íntegra <http://www.icj- -cij.org/docket/index.php?p1=3&p2=3&case=121&p3=4> (Acesso em: 19 maio 2015). Cf. também ZUPPI, Alberto Luis. Immunity v. Universal Jurisdiction: The Yerodia Ndombasi Decision of the International Court of Justice. Louisiana Law Review, v. 63, n. 2, p. 309 e s., 2003; WIRTH, Steffen. Immunity for Core Crimes? The ICJ’s judgment in the Congo v. Belgium case. European Journal of International Law, n. 13, p. 877­893, 2002.

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do corpo diplomático, etc.33. Esta última é relativa a todos os tipos de crime, inclusive contra o Direito Internacional, porém não perdura após o fim do exercício da função34.

Conforme o julgamento de 4 de março de 2009 da Primeira Câmara sobre o caso do Sudão, mesmo que o CS não tenha retirado a imunidade de forma clara, a Corte Internacional declarou que a posição atual de Omar Al­-Bashir como Chefe de Estado de um país que não faz parte do ER não tem imunidade no TPI35, de forma que a decisão proferida na Resolução nº 1.593 se tornasse eficaz36.

O ER prevê, em seu art. 27º, n. 237, que as imunidades não podem ser causa de impedimento do exercício da jurisdição do TPI para qualquer pes­soa38, não sendo relevante seu cargo para os Estados que são membros. Po­

33 O Caso Yerodia também discutiu se as imunidades abrangiam o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros. Cf. §70 da decisão da Corte Internacional de Justiça. Para imunidades no Congo, cf. KALERE, Jean Migabo. Genocide in the African Great Lakes States: challenges for the ICC in the case of the Democratic Republic of Congo. International Criminal Law Review, v. 5, n. 3, p. 480-481, 2005; AKANDE, Dapo. International Law Immunities and the International Criminal Court. The American Journal of International Law, v. 98, n. 3, p. 409 e s., 2004.

34 PAPILLON, Sophie. Has the United Nations Council..., p. 278­279. Cf., também para imunidades, GAETA, Paola. Immunities and Genocide. In: GAETA, Paola (Ed.). The UN Genocide Convention – A Commentary. Oxford: Oxford University, 2009. p. 329 e s.; e GAETA, Paola. Ratione materiae immunities of former heads of State and international crimes: the Hissène Habré case. Journal of International Criminal Justice, v. 1, p. 186­196, 2003.

35 “[...] the current position of Omar Al Bashir as Head of a state which is not a party to the Statute, has no effect on the Court’s jurisdiction over the present case.” (§41 da decisão The Prosecutor v. Omar Hassan Ahmad Al Bashir)

36 KRESS, Claus. The International Criminal Court and Immunities under International Law for States Not Party to the Court’s Statute. Morten Bergsmo e Ling Yan (Ed.), State Sovereignty and International Criminal Law, n. 15, p. 227, 2012.

37 Art. 27º do ER: “1 ­ O presente Estatuto será aplicável de forma igual a todas as pessoas, sem distinção alguma baseada na qualidade oficial. Em particular, a qualidade oficial de Chefe de Estado ou de Governo, de membro de Governo ou do Parlamento, de representante eleito ou de funcionário público em caso algum eximirá a pessoa em causa de responsabilidade criminal, nos termos do presente Estatuto, nem constituirá de per si motivo de redução da pena. 2 ­ As imunidades ou normas de procedimento especiais decorrentes da qualidade oficial de uma pessoa, nos termos do direito interno ou do direito internacional, não deverão obstar a que o Tribunal exerça a sua jurisdição sobre essa pessoa”.

38 Tratado também no mandado de prisão no caso Yerodia, §61.

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rém, no art. 98º, n. 1, do ER39 a imunidade volta a ser mencionada, agora como forma de impedimento à cooperação por parte do Estado requerido, pois ele está protegido pela ordem internacional que este estabeleceu com outros tratados40. Ora, isso aparentemente gera um conflito dentro do pró­prio ER41. Para tentar solucionar essas incongruências, alguns autores discor­rem sobre o assunto.

Paola Gaeta entende que as imunidades podem ser alegadas apenas no campo da cooperação horizontal (Estado v. Estado), mas não no caso de cooperação com um órgão internacional, ou seja, onde a relação entre eles dá­se de forma vertical42. Sua interpretação a respeito do art. 98º, n. 1, é que o problema que gera a dúvida no ER poderia ser solucionado se tivesse o termo

39 Art. 98º do ER: “1 ­ O Tribunal não pode dar seguimento a um pedido de entrega ou de auxílio por força do qual o Estado requerido devesse actuar de forma incompatível com as obrigações que lhe incumbem à luz do direito internacional em matéria de imunidade dos Estados ou de imunidade diplomática de pessoa ou de bens de um Estado terceiro, a menos que obtenha previamente a cooperação desse Estado terceiro com vista ao levantamento da imunidade. 2 ­ O Tribunal não pode dar seguimento à execução de um pedido de entrega por força do qual o Estado requerido devesse actuar de forma incompatível com as obrigações que lhe incumbem em virtude de acordos internacionais à luz dos quais o consentimento do Estado de envio é necessário para que uma pessoa pertencente a esse Estado seja entregue ao Tribunal, a menos que o Tribunal consiga, previamente, obter a cooperação do Estado de envio para consentir na entrega”.

40 Sobre o art. 98º do ER, cf. BOGDAN, Attila. The US and the ICC: avoiding jurisdiction through bilateral agreements in reliance on Article 98. International Criminal Law Review, v. 6, n. 3, p. 22 e s., 2006.

41 O primeiro erro foi na criação do próprio TPI, que diferentemente dos tribunais ad hoc para Ruanda e a antiga Iugoslava, que eram obrigatórios, o TPI depende da adesão do Estado ao ER. Cf. GAETA, Paola. Does President Al Bashir..., p. 319.

42 As regras não são as mesmas para tribunais nacionais e internacionais. Cf. GAETA, Paola. Official Capacity and Immunities. In: The Rome Statute of the International Criminal Court: A Commentary. Oxford University Press, v. I, 2002. p. 991; GAETA, Paola. Does President Al Bashir..., p. 320­321; GAETA, Paola Ratione materiae immunities of former..., p. 194; ZIMMERMANN, Robert. La coopération judiciaire internationale em matière pénale. Berne: Staempfli Editions AS, 1999. p. 353-355. Também concorda que as imunidades não valem para órgãos internacionais, mas por conta de um princípio de “eficiência da comunidade internacional”, em KRESS, Claus. The International Criminal..., p. 246. No sentido oposto, afirmando que é muito complicado alegar que as imunidades só valem para alguns tipos de relação está ALEBEEK, Rosanne van. The immunities and their officials in international criminal law and international human rights law. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 277; PAPILLON, Sophie. Has the United Nations Council..., p. 287.

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“Estado não parte” e não “Estado terceiro”, como o é43; dessa forma, o artigo se aplicaria para Estados não membros do ER44. Da forma que está, o TPI apenas pode interferir nestes Estados que não são signatários do ER quando estes dispuserem (retirarem) a imunidade das pessoas em questão45. Quanto à decisão tomada pela Primeira Câmara, a autora tenta fragilizar os argu­mentos que embasam àquela, destacando que não se poderia alegar que esse seria o fim da impunidade (no momento em que não há mais imunidade), ou mesmo que o art. 27º do ER não seria, como alegado pela Câmara, essencial (core), pois, assim como todo o ER, deve ser ratificado para decorrer efeitos46.

Gaeta discute também acerca da ilegalidade na ordem do CS, pois defende que, quando as regras são regidas por um Tratado (ou seja, exige adesão), não podem ser impostas àqueles que não aderiram, independente do órgão que for: o CS não teria legitimidade para impor a um Estado não parte a obrigação de cooperar com o TPI47. Assim, para Gaeta, entregar Omar Al­Bashir seria agir de forma ilegal48.

Para Dako Akande, o art. 98º, n. 1, só se aplica para Estados não par­tes49, pois trata-se de uma questão de eficiência (no sentido hermenêutico, não da execução do artigo), de forma que seria a única maneira (lógica) de interpretar­se o dispositivo. Argumenta, ainda, que há uma prevenção má­xima da impunidade como objetivo do ER, presentes nos n. 4 e n. 5 de seu Preâmbulo50. No mesmo sentido, Papillon entende que o art. 98º, n. 1, do ER

43 GAETA, Paola. Does President Al Bashir..., p. 328; GAETA, Paola. Immunities and Genocide, p. 331.

44 GAETA, Paola. Official Capacity and..., p. 994.45 GAETA, Paola. Does President Al Bashir..., p. 328.46 GAETA, Paola. Does President Al Bashir..., p. 323­324.47 E isso se reafirma com a própria decisão da Primeira Câmara quando identifica que o Sudão

não faz parte do ER. Cf. GAETA, Paola. Does President Al Bashir..., p. 324.48 A autora diz que não é válido o mesmo raciocínio para os tribunais ad hoc, mesmo para

Estados não membros da ONU, pois estes eram tribunais do CS; logo, estavam vinculados diretamente com a Carta das Nações Unidas, não dependendo de um tratado. GAETA, Paola. Does President Al Bashir..., p. 325 e 330.

49 AKANDE, Dapo. The Legal Nature of Security Council Referrals to the ICC and its Impact on Al Bashir’s Immunities. Journal of International Criminal Justice, n. 7, p. 339, 2009; AKANDE, Dapo. International Law Immunities and the..., p. 339 e 421-422.

50 §4 do ER: “Afirmando que os crimes de maior gravidade, que afetam a comunidade internacional no seu conjunto, não devem ficar impunes e que a sua repressão deve ser efetivamente assegurada através da adoção de medidas em nível nacional e do reforço da

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deve ser interpretado com base no princípio da efetividade51, pois senão seria considerado contraditório dentro do Tratado.

Ultrapassada essa questão do aparente conflito dentro do próprio ER (entendendo que as imunidades não se aplicam apenas para os Estados­par­tes52), resta saber se o CS retirou a imunidade do Presidente do Sudão, e, diante disso, se é possível deter e entregar o mesmo ao TPI.

Akande conclui que o CS quis conferir ao Sudão uma posição seme­lhante aos Estados­partes do ER53; dessa forma, estaria despido das imunida­des. Já Gaeta entende que o CS não tem legitimidade para obrigar um Estado não parte do ER cooperar com o TPI; logo, o CS não pode retirar a imunidade de Omar Al­Bashir54.

Sophie Papillon diferencia­se de Gaeta, pois a autora entende que a Resolução nº 1.593 do CS retirou a imunidade que Omar Al­Bashir teria como Presidente de um Estado não parte de forma implícita55, por isso há uma obrigação internacional de deter e entregar ao TPI. Então só faria sentido a decisão se a imunidade fosse retirada, inclusive em conformidade com o próprio ER, em seu art. 98º, n. 1, que protege as imunidades para Estados não membros56. Menciona inclusive que o CS pode remover as imunidades in abstracto (como foi o caso dos tribunais ad hoc) com um caráter geral, ou seja, não pode referir­se a uma pessoa diretamente57. Faz ainda um comparativo com os tribunais ad hoc criados pelo CS, onde as imunidades foram removi­das explicitamente, pois, como não houve oposição de tal assunto nos tribu­nais de Ruanda e da Iugoslava, houve uma falsa impressão de que qualquer tribunal criado pelo CS não poderia alegar as questões de imunidades58.

cooperação internacional”; §5 do ER: “Decididos a por fim à impunidade dos autores desses crimes e a contribuir assim para a prevenção de tais crimes; [...]”.

51 PAPILLON, Sophie. Has the United Nations Council..., p. 283.52 Nesse sentido também ALEBEEK, Rosanne van. The immunities and their…, p. 279.53 AKANDE, Dapo. The Legal Nature of Security..., p. 340 e s.54 A autora também explica que o mandado de detenção não foi feito conforme o art. 98º do

ER. GAETA, Paola. Does President Al Bashir..., p. 324­326.55 PAPILLON, Sophie. Has the United Nations Council..., p. 276 e 285.56 Seria incoerente. Cf. PAPILLON, Sophie. Has the United Nations Council..., p. 284 e 287.57 Explica ainda que, por trás do art. 13º, alínea “b”, há a intenção de se evitar a criação de

tribunais ad hoc. PAPILLON, Sophie. Has the United Nations Council..., p. 285.58 PAPILLON, Sophie. Has the United Nations Council..., p. 282.

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Em outro sentido ainda é o entendimento de Zhu Wenqi. Para ele, os Estados­partes do ER devem entregar Al­Bashir, mas os Estados terceiros (não membros) não tem essa obrigação imposta, a não ser que estes façam parte da ONU; logo, se sujeitam às decisões do CS compulsoriamente59.

Pode­se também desprender outro problema das imunidades: porque estaria o Presidente do Sudão, mesmo com o mandado de detenção expedido contra si, circulando entre outros países sem ser capturado? Desde a emissão do mandado, Omar Al-Bashir já visitou uma série de países. Estes, ao serem questionados pelo TPI pela sua não captura, mencionam sempre o argumen­to do art. 98º, n. 1 (mesmo após a decisão da Primeira Câmara), o que se mos­tra errado conforme o entendimento de Papillon, onde o próprio CS já havia retirado a imunidade do então Presidente de forma implícita quando o caso foi encaminhado voluntariamente ao TPI60. Mas, em última hipótese, esses países poderiam considerar que o encaminhamento à Corte seria ilegal, po­rém o argumento não se sustenta. Isso porque, se for levado em consideração o art. 103º da Carta da ONU61, a decisão do CS vai prevalecer, ou seja, Omar Al­Bashir não terá mais imunidade fora do Sudão; logo., deve ser detido62.

3 dever de cooperarPara o TPI funcionar, além de investimento fiscal e de equipes de pro­

fissionais, é necessária a plena cooperação dos Estados63. É um tribunal que, por exemplo, não possui poder de polícia; logo, ao passo que pode emitir acusações internacionais, não pode tomar medidas judiciais, como a execu­ção de prisões dos réus acusados64. Precisa, então, fundamentalmente, da co­operação dos Estados­partes e, em alguns casos, dos Estados não partes65.

59 WENQI, Zhu. On co-operation by states not party to the International Criminal Court. International Review of the Red Cross, v. 88, n. 861, p. 97, 2006.

60 PAPILLON, Sophie. Has the United Nations Council..., p. 286.61 Art. 103º da Carta da ONU: “No caso de conflito entre as obrigações dos Membros das

Nações Unidas, em virtude da presente Carta e as obrigações resultantes de qualquer outro acordo internacional, prevalecerão as obrigações assumidas em virtude da presente Carta”.

62 AKANDE, Dapo. The Legal Nature of Security..., p. 344.63 WENQI, Zhu. On co-operation by states not party..., p. 88.64 Outros exemplos em MOTA, José Luís Lopes da. A cooperação internacional e o auxílio

judiciário no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Direito e Justiça, volume especial, p. 302, 2006.

65 MOTA, José Luís Lopes da. A cooperação internacional..., p. 301.

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Esses auxílios são obrigatórios para aqueles que declararam sua von­tade, tornando-se um membro do ER (assinar e ratificar o tratado), conforme explicita o art. 86º do ER66. Mas o próprio ER prevê a possibilidade de auxílio de Estados não partes nos arts. 12º 67 e 87º, n. 568, com um acordo ad hoc ou um convênio, ou seja, o Estado e o TPI celebram uma forma de auxílio, geralmen­te temporária, e decidem os termos de cooperação naquele instrumento. Para alguns autores, como Zhu Wenqi, quando se trata de um membro da ONU e houver um pedido de cooperação com o TPI feito pelo CS da ONU (invocan­do a obrigação gerada a partir da Carta da ONU, em seu Capítulo VII), esse auxílio é obrigatório69. Mas isso não pode ser afirmado para qualquer caso, visto que é essencial verificar a natureza de criação do Tribunal que se exige a cooperação. Por exemplo, o TPI depende da ratificação do ER pelo Estado; já, para os Tribunais ad hoc, em sua criação pelo CS, foi imposto que os membros da ONU deveriam cooperar com o ele70, ou seja, não se tratava de um acor­do. A princípio, tratados são obrigatórios apenas para Estados que o assina­ram e ratificaram; logo, para Estados considerados como parte, conforme os arts. 34º e 35º71 da Convenção de Viena de 1969.

66 Art. 86º do ER: “Os Estados partes deverão, em conformidade com o disposto no presente Estatuto, cooperar plenamente com o Tribunal no inquérito e no procedimento contra crimes da competência deste”.

67 Art. 12º, n. 2 e 3, do ER: “2. Nos casos referidos nos parágrafos a) ou c) do art. 13º, o Tribunal poderá exercer a sua jurisdição se um ou mais Estados a seguir identificados forem partes no presente Estatuto ou aceitarem a competência do Tribunal de acordo com o disposto no parágrafo 3º: [...] 3. Se a aceitação da competência do Tribunal por um Estado que não seja parte no presente Estatuto for necessária nos termos do §2º, pode o referido Estado, mediante declaração depositada junto do Secretário, consentir em que o Tribunal exerça a sua competência em relação ao crime em questão. O Estado que tiver aceito a competência do Tribunal colaborará com este, sem qualquer demora ou exceção, de acordo com o disposto no Capítulo IX”.

68 Art. 87º, n. 5, do ER: “a) O Tribunal poderá convidar qualquer Estado que não seja parte no presente Estatuto a prestar auxílio ao abrigo do presente Capítulo com base num convênio ad hoc, num acordo celebrado com esse Estado ou por qualquer outro modo apropriado. b) Se, após a celebração de um convênio ad hoc ou de um acordo com o Tribunal, um Estado que não seja parte no presente Estatuto se recusar a cooperar nos termos de tal convênio ou acordo, o Tribunal dará conhecimento desse fato à Assembleia dos Estados partes ou ao Conselho de Segurança, quando tiver sido este a referenciar o fato ao Tribunal”.

69 WENQI, Zhu. On co-operation by states not party..., p. 90 e 92.70 MOTA, José Luís Lopes da. A cooperação internacional..., p. 308.71 Art. 34º da Convenção de Viena: “Regra geral respeitante aos terceiros Estados. Um tratado

não cria obrigações nem direitos para um terceiro Estado sem o consentimento deste”.

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A cooperação é bilateral72, dos Estados com o TPI e vice­versa; há um respeito recíproco quanto aos princípios de soberania e igualdade, da mesma forma que um Estado tem as garantias de que certas condições de prestação de auxílio serão menos exigentes quando há um espaço de integração (como é o caso do Mandado de Detenção Europeu na UE73), em que os objetivos são estabelecidos por um tratado74. Esse tipo de cooperação temporária (sem ra­tificar o ER) já ocorreu, por exemplo, com a Costa do Marfim, em que o país pediu auxílio do Tribunal de Haia75.

Dessa forma, o art. 87º, n. 5, do ER permite que a Corte possa convidar um Estado não parte a fornecer e dar assistência com base em um acordo ad hoc ou qualquer outro modo apropriado, de forma voluntária pelo Estado. O problema surge, então, conforme Wenqi expõe, quando a decisão de coope­rar emana do CS da ONU, pois, de acordo com o art. 25º da Carta da ONU76, as decisões do Conselho têm caráter obrigatório para os Estados­membros da ONU. Assim, há de se falar em um dever geral de cooperar com o TPI?

A jurisdição do TPI só pode atuar de forma complementar, ou seja, residual, não sendo superior às justiças estatais77. O Sudão criou, na primeira metade de junho de 2005, na Cidade de Al Fashir (em Darfur do Norte), um tribunal para realizar o julgamento dos crimes cometidos na região, o que, a

Art. 35º: “Tratados que prevêem obrigações para terceiros Estados. Uma disposição de um tratado faz nascer uma obrigação para um terceiro Estado se as partes nesse tratado entenderem criar a obrigação por meio dessa disposição e se o terceiro Estado aceitar expressamente por escrito essa obrigação”.

72 MOTA, José Luís Lopes da. A cooperação internacional..., p. 303; WENQI, Zhu. On co-operation by states not party..., p. 109­110.

73 Decisão­Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho, e Lei nº 65/2003, de 23 de agosto.

74 Geralmente esses acordos não contêm disposições de recusa. MOTA, José Luís Lopes da. A cooperação internacional..., p. 304 e 309.

75 Para mais verificar o caso disponível em: <http://www.icc-cpi.int/en_menus/icc/situations%20and%20cases/situations/icc0211/Pages/situation%20index.aspx> (Acesso em: 19 maio 2015).

76 Art. 25º da Carta da ONU: “Os membros das Nações Unidas concordam em aceitar e executar as decisões do Conselho de Segurança, de acordo com a presente Carta”.

77 Art. 1º do ER: “É criado, pelo presente instrumento, um Tribunal Penal Internacional (‘o Tribunal’). O Tribunal será uma instituição permanente, com jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional, de acordo com o presente Estatuto, e será complementar às jurisdições penais nacionais. A competência e o funcionamento do Tribunal reger­se­ão pelo presente Estatuto”.

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priori, impediria o julgamento por parte do TPI (para não ocorrer bis in idem). Mas, de acordo com os §568 e §569 do relatório da Comissão do CS78, o Sudão foi declarado incapaz de julgar tais crimes por conta da complexidade e do vício em que o tribunal foi fundado. Em seis meses, o Tribunal de Al Fashir julgou cerca de 26 pessoas e condenou 1379. Mesmo assim, a Comissão do CS entendeu que não haveria julgamento efetivo e emitiu a Resolução nº 1.593. Então, diante da incapacidade de julgar do tribunal sudanês, deve ser aceito o TPI como tribunal competente para julgar o caso.

O Sudão não é um Estado­parte do Estatuto de Roma80, de forma que não há obrigação jurídica internacional (direta) em cooperar com o pedi­do de entrega de nenhum nacional sudanês ao Tribunal. María José Hortal defende que há outras possíveis soluções para se fazer justiça nesse caso, sem envolver o TPI. Destacando as mais relevantes, a primeira proposta se­ria de adotar o tribunal interno como competente para julgar os crimes em Darfur81, o problema é que por mais que Al Fashir possa julgar de forma legítima certas pessoas, nunca irá, por exemplo, se quer processar o Presi­dente do Sudão Omar Al­Bashir. Dessa forma, esse argumento parece não prevalecer. Em segundo lugar, a autora traz a possibilidade de, em nome da jurisdição universal82, que seja constituído um tribunal em um país ter­ceiro, imparcial à questão83. Porém, como já experimentado anteriormente no Caso da Bélgica v. Congo, não parece ser uma solução lógica. Um Estado que não tem qualquer conexão com os crimes não teria dever nem direito de julgar outro, estão no mesmo patamar referente à horizontalidade na esfera internacional. A própria escolha do país seria um conflito, enquanto uns não iriam querer se envolver, outros se envolveriam até demais, comprometendo

78 §569 da Comissão da ONU, de 25 de janeiro de 2005: “The Sudanese judicial system has proved incapable, and the authorities unwilling, of ensuring accountability for the crimes committed in Darfur. The international community cannot stand idle by, while human life and human dignity are attacked daily and on so large a scale in Darfur. The international community must take on the responsibility to protect the civilians of Darfur and end the rampant impunity currently prevailing there”.

79 MORENO­OCAMPO, Luis. Second Report of the Prosecutor of the International Criminal Court, Mr. Luis Moreno Ocampo, to the Security Council Pursuant to UNSC 1593 (2005).

80 Assinou o Estatuto de Roma em 8 de setembro de 2000, mas ainda não o ratificou.81 HORTAL, María José Cervell. Darfur: un paso más para el..., p. 131-132.82 Para mais, cf. HENZELIN, Marc. Le príncipe de l’universalité em driot penal – Droit et obligation

pour lês États de poursuivre et juger selon le príncipe de l’universalité. Basileia: Schulthess Verlag, 2001. p. 294 e s.

83 HORTAL, María José Cervell. Darfur: un paso más para el..., p. 132-137.

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a imparcialidade do tribunal (ao envolver conflitos políticos e econômicos)84. Outra opção seria, então, criar um Tribunal ad hoc ou misto, pelo próprio CS, em que o Sudão sendo parte da ONU deveria se submeter85; mas, para a au­tora, o que dificultaria esse processo seria a incompatibilidade das leis suda­nesas com as leis internacionais86 (mais ocidentalizadas), além da questão da legitimidade para julgar desses órgãos, muita discutida nos Tribunais para Ruanda e Iugoslava87.

Porém, de acordo com o entendimento Wenqi, o ER é uma jurisdição especial, que, inclusive, faz questão de destacar durante todo o texto legal a relação diferenciada entre Estados­membros e não membros, que prevê os acordos com países que não ratificaram o ER em prol de uma maior efetivi­dade da Corte88. No mesmo sentido é o entendimento de Danilenko, o qual afirma que o princípio pacta tertiis nec nocent nec prosint não quer dizer que tratados não terão efeito algum para Estados não partes89.

Se ainda esses argumentos não forem satisfatórios para o caso ser julgado pelo TPI, outra forma de entender que os países são obrigados a cooperar é em nome da lei internacional humanitária das Convenções de Genebra referentes ao direito humanitário internacional90. Todo ato de viola­ção pelas nações que ratificaram as Convenções de Genebra pode conduzir a um processo diante da Corte Internacional de Justiça (CIJ) ou TPI, ou seja, Estados não partes do ER, mas signatários das Convenções de Genebra são obrigados a respeitá­las. Portanto, o Sudão deve cooperar, pois é parte desta Convenção e membro da ONU.

Para Bourgon, quando ocorre um crime em um país que não faz parte do TPI, caso os crimes denunciados sejam os do art. 8º do ER (o n. 2 “a” fala

84 A Comissão que investigou os casos de crime em Darfur tratou sobre o assunto nos §610­615 e 651 do relatório.

85 HORTAL, María José Cervell. Darfur: un paso más para el..., p. 137-138.86 Relatório da Comissão, § 571 e s.87 Sem levar em conta que a ideia de se criar um Tribunal era evitar a criação de Tribunais ad

hoc. WENQI, Zhu. On co-operation by states not party..., p. 110.88 WENQI, Zhu. On co-operation by states not party..., p. 89.89 DANILENKO, Gennady M. ICC Statute and third States. In: The Rome Statute of the

International Criminal Court: A Commentary. Oxford University Press, v. I, 2002. p. 1871.90 Art. 89º do Protocolo Adicional 1: “In situations of serious violations of the Conventions or of this

Protocol, the High Contracting Parties undertake to act, jointly or individually, in co-operation with the United Nations and in conformity with the United Nations Charter”.

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em crimes de guerra como sendo violações às Convenções de Genebra91); se o CS que indicar o caso à Corte, esta terá jurisdição sobre aquele país, mesmo ele sendo um Estado não parte do Tribunal de Haia92. Diante disso, entende­­se que para core crimes a “denúncia” do CS vincula a jurisdição do TPI93.

Uma possível solução para esses conflitos de legitimidade seria a di­minuição do voluntarismo político dos Estados, que acaba por atrapalhar os processos de incriminação e condenação de políticos por motivos irrelevan­tes à jurisdição internacional ­ parafraseando Maragoni, solução que, além de ser mais democrática por permitir a participação dos cidadãos, acumula a vantagem de traduzir ademais uma diminuição de custos94. De qualquer forma, parece prudente o Presidente do Sudão tomar cuidado ao sair do país.

coNcluSÃoÉ claro que aqueles que cometem crimes, independente de quem forem

e principalmente quando se trata dos crimes elencados no ER, devem ser le­vados à justiça; porém, isso não pode ser feito do modo a se violar as regras e os acordos, como os tratados de natureza internacional95. Os institutos e as imunidades devem ser preservados nas hipóteses em que são válidos e não podem ser submetidos a uma aplicação diferente do sistema internacional que os protegem. Há uma confiança que rege as regras do jogo que não pode ser ultrapassada nem manipulada para fins puramente políticos, parâmetros que auxiliam a manter a paz e a credibilidade entre os países96.

O TPI é importante para a construção de um direito penal internacio­nal97. Mas o mandado emitido contra Omar Al­Bashir foi considerado por muitos países irrelevante, inclusive por questões políticas, motivo pelo qual o Presidente fez várias visitas a outros países, membros do ER, e não foi detido.

91 Mesmo assim, é curioso perceber que o CS da ONU não tomou nenhuma providência quanto aos mandados não cumpridos pelo TPI de detenção do Presidente do Sudão. PINHEIRO, Fábio Abel. “Core International Crimes” e as imunidades..., p. 116.

92 ARSANJANI, M. Reflections on the jurisdiction and trigger-mechanism of the International Criminal Court. Apud BOURGON, Stéphane. Jurisdiction ratione loci. In: The Rome Statute of the International Criminal Court: A Commentary. Oxford University Press, v. I, 2002. p. 566.

93 PINHEIRO, Fábio Abel. “Core International Crimes” e as imunidades..., p. 112.94 MARANGONI, Vivian. A efetividade do direito internacional..., p. 349.95 Não há obrigatoriedade na entrega para a autora GAETA, Paola. Does President Al Bashir...,

p. 332.96 Mantendo o mesmo raciocínio da Gaeta (p. 315).97 AMBOS, Kai. Principios generales de Derecho Penal em el Estatuto de Roma de La Corte

Penal Internacional. Actualidad Penal, n. 44, p. 948, 2000.

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A própria União africana pediu para que os países não cooperassem nesse caso, o que causou uma desmoralização da Corte98.

Porém, conforme explica Claus Kess, as imunidades não podem ser­vir como forma de fuga à jurisdição internacional, por isso elas devem ser sempre retiradas quando se trata de um órgão judicial internacional99 (o que indica uma cooperação vertical). Entende­se que não há de ser fazer diferença entre Estado­parte ou não parte do ER quando se trata de um caso referido pelo CS à Corte100, isso porque a obrigação gerada pela Carta da ONU, nos termos do seu Capítulo VII, tem a capacidade de criar uma vinculação com força de tratado internacional101. De forma indireta, obrigações que resultam de outros tratados (como é o caso de quem é membro da ONU, mas não ratifi­cou o ER) podem representar, no futuro, uma responsabilidade internacional ao Estado que não cumpriu a obrigação de entregar Omar Al­Bashir102. No entanto, mesmo que o ER represente uma instituição na nova ordem inter­nacional103 para se evitar a impunidade contra core crimes104, a dúvida ainda permanece se a obrigação de julgar ou extraditar pode ser considera agora uma norma de jus cogens para os Estados.

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98 MARANGONI, Vivian. A efetividade do direito internacional..., p. 339 e 344.99 KRESS, Claus. The International Criminal Court..., p. 254.100 CIAMPI, Annalisa. The obligation to cooperate, p. 1616.101 CIAMPI, Annalisa. The obligation to cooperate, p. 1636.102 SWART, Bert. Arrest and surrender. In: The Rome Statute of the International Criminal Court:

A Commentary. Oxford University Press, v. I, 2002. p. 1688.103 DANILENKO, Gennady M. ICC Statute and third States, p. 1873 e 1897.104 BADINTER, Robert. International Criminal Justice: from darkness to light. In: The Rome

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1. O envio de material editorial para a Revista de Estudos Criminais pressupõe a aceitação das diretrizes de publicação e avaliação de artigos. Da mesma forma, implica a cessão dos direitos autorais do material enviado para a Revista de Estudos Criminais. Uma vez en­viado o material, cabe à Revista decidir as características editoriais e gráficas, os modos de distribuição e disponibilização bem como a data em que o artigo será veiculado. A única contraprestação fi­nanceira pela cessão dos direitos autorais será o envio ao autor de um exemplar da Revista em que o seu trabalho for publicado. Em caso de artigo em coautoria, cada coautor receberá um exemplar. A Revista de Estudos Criminais fica autorizada a proceder modificações e correções para a adequação do texto às normas de publicação.

2. Os textos enviados para a Revista de Estudos Criminais deverão ser inéditos no Brasil, levando em consideração qualquer forma de pu­blicação impressa e/ou digital, sendo vedado o seu encaminhamen­to simultâneo a outras revistas.

3. O envio dos artigos deverá ser realizado unicamente por correio ele­trônico. Os trabalhos deverão ser endereçados diretamente à Direto­ria da Revista, para o endereço eletrônico: [email protected]. Re­comenda-se que os textos sejam enviados em formato word.doc. Tex­tos em formatos que não permitem modificações, a exemplo de .pdf, não serão aceitos.

4. Os artigos deverão ser enviados com uma folha de rosto na qual conste os dados pessoais do autor. Os dados exigidos são: nome completo; qualificação (incluindo a universidade, instituto ou fun­dação ao qual o autor está vinculado); endereço completo; endereço eletrônico.

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5. Os trabalhos deverão ter, preferencialmente, de 12 a 20 páginas. Casos excepcionais serão analisados pela Diretoria da Revista, no controle preliminar. Deverá ser utilizada a fonte times new roman, tamanho 12, no corpo do texto. Ainda, deverá ser utilizado espaçamento entre­linhas de 1,5, com margens superior e inferior 2,0 cm e laterais 3,0 cm. A formatação do tamanho do papel deverá ser A4 e o texto deverá estar justificado.

6. Os textos poderão estar em língua portuguesa, espanhola, italiana ou inglesa.

7. No que pertine à qualificação do autor, deverá ser iniciada por suas titulações acadêmicas e atividade de magistério, informando a exis­tência de possível vínculo com algum órgão financiador. Em segui­da, deverá ser complementada pelas atividades jurídicas práticas do autor.

8. Os textos deverão ser precedidos de um resumo de 05 a 10 linhas. Deverá constar uma versão do título e do resumo em língua portu­guesa e uma em língua inglesa.

9. Os trabalhos deverão ser precedidos, ainda, de 04 a 06 palavras­-chaves, as quais devem constar também em língua inglesa, e de um sumário numerado.

10. As referências bibliográficas deverão ser feitas de acordo com a NBR 6023/2002 (Norma Brasileira da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT – Anexo I). As referências devem ser citadas em notas de rodapé ao final de cada página, ou na forma (AUTOR, ANO). O texto deverá apresentar uma forma de citação uniforme.

11. Caso o autor queira dar destaque ao texto, deverá utilizar itálico e não negrito ou sublinhado. O uso de aspas deverá ser feito para a citação de outros autores.

12. No que concerne à referência legislativa, não há necessidade da ci­tação do diploma legal, seja no rodapé, seja na bibliografia ao final do texto.

13. A diretoria da Revista de Estudos Criminais não se compromete a efe­ tuar complementação dos requisitos de publicação não atendidos. Os trabalhos enviados sem o atendimento às normas de publicação da Revista não serão aceitos.

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14. Artigos em coautoria provenientes do Rio Grande do Sul deverão respeitar o limite de 3 autores.

b) da aNáliSe e SeleÇÃo doS trabalhoS1. Os trabalhos serão analisados e avaliados, tanto em forma, como em

conteúdo, pelo Comitê Científico da Revista de Estudos Criminais.2. Recebido o trabalho pela Diretoria da Revista, o autor será imedia­

tamente informado, presumindo­se a cessão de seus direitos auto­rais e a aceitação das diretrizes de publicação e avaliação de artigos. Será realizado um controle preliminar formal dos trabalhos anterior à avaliação por pares.

3. A avaliação será realizada pelo sistema de pareceres duplo blind. Para tanto, será suprimido do texto qualquer elemento que possa identificar o autor e, após, o trabalho será enviado para dois parece­ristas anônimos, membros do Comitê Científico da Revista de Estu-dos Criminais. Os pareceristas poderão aprovar o texto, não aprovar ou aprovar com ressalvas.

4. Os pareceres anônimos ficarão à disposição do autor, que será infor­mado do resultado da avaliação e das recomendações para adequa­ção do texto em caso de aprovação com ressalvas.

5. Em caso de haver dois pareceres discordantes sobre a publicação do trabalho, o texto será encaminhado para um terceiro parecerista.

6. Sendo o artigo aprovado sem ressalvas, ou realizada a adequação do texto pelo autor em caso de aprovação com ressalvas, a Diretoria da Revista avaliará a pertinência e a oportunidade para a publica­ção. A decisão final sobre a publicação do texto será da Diretoria da Revista de Estudos Criminais.

7. A par do sistema de pareceres duplo blind, em casos excepcionais, a Diretoria da Revista poderá aceitar trabalhos de autores convidados quando considerar sua contribuição científica de grande relevância para o tema em questão.

8. A Diretoria da Revista de Estudos Criminais ficará à disposição dos autores para qualquer queixa e/ou esclarecimento sobre a publi­cação ou não de seus trabalhos. O contato deverá ser feito, sempre, pelo endereço eletrônico: [email protected].

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