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SANCHES, M. A. (Org.) Congresso de Teologia da PUCPR, 9., 2009, Curitiba. Anais eletrônicos... Curitiba: Champagnat, 2009. Disponível em: http://www.pucpr.br/eventos/congressoteologia/2009/
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LECTIO DIVINA – DO MÉTODO A UM ITINERÁRIO ESPIRITUAL
Vanessa Roberta Massambani Ruthes1
Nos últimos anos – principalmente após o Sacrosanctum Concilium Vaticano II,
quando se volta a “propor a primazia da palavra de Deus na vida da Igreja” (FIORES, GOFFI.
1993. 897), – ocorreu uma orientação cada vez maior para a dedicação ao estudo e oração das
Sagradas Escrituras. A Constituição Dei Verbum, utilizando-se das Palavras de Santo
Agostinho, expressa a importância deste resgate para ação evangelizadora da seguinte forma:
“para que o mundo inteiro, ouvindo, acredite na mensagem da salvação, acreditando espere e
esperando ame” (DV. 01).
A mesma Constituição ressalta que é dever dos padres, dos religiosos e dos leigos
dedicar-se ao estudo profundo da Sagrada Escritura. Mas acima de tudo estes devem lembrar:
“que a Leitura deve ser acompanhada de oração para que seja possível o diálogo entre Deus e
o homem (...) a fim de que nenhum destes se torne pregador vão e superficial da palavra de
Deus, por não a ouvir de dentro” (DV. 25).
Assim, percebe-se que na dedicação à Palavra de Deus a dimensão da oração é
fundamental, por isso pretende-se, nesse pequeno ensaio, efetivar uma análise acerca da lectio
divina buscando, em suas fontes, a inspiração para sua prática, que não se constitui somente
um método, mas também um itinerário espiritual. Para tanto, proceder-se-á uma pequena
análise sobre o que é a lectio divina, quais são suas fontes, como ela se configurou na história,
quais foram quais foram suas reinterpretações e como ela se configura enquanto itinerário.
1 LECTIO DIVINA: DO SIGNIFICADO ORIGINAL ÀS SUAS
REINTERPRETAÇÕES
Como todo e conceito e toda a prática, a lectio divina durante toda a história recebeu
várias interpretações, ela possuía um sentido original, que foi sendo modificado. Por este
motivo se faz necessário uma caracterização deste e uma explicação de como e porque
ocorreram tais modificações.
1.1 A LECTIO DIVINA: COMPREENSÃO ORIGINAL.
1 Licenciada em Filosofia. Especialista em Bioética. Mestranda do Curso de Pós-Graduação em Teologia da
PUCPR. E-mail: [email protected] .
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A expressão lectio divina provém do latim. A palavra divina possui uma interpretação
mais fácil, ela é uma derivação do adjetivo latino divinu, que indica aquilo que é relacionado
ou pertencente a Deus. Já a palavra lectio significa, em primeiro, lição, num sentido derivado
pode significar também um texto ou conjunto de textos dos quais se obtenha uma lição ou
ensinamento. Posteriormente ela também foi traduzida por leitura, contudo, nesta
significância há dois problemas correlacionados: um etimológico e o outro de originalidade.
Etimologicamente a palavra leitura vem do latim legere, que significa a atitude de conhecer,
compreender e interpretar por meio da leitura, e retirar delas lições. Até aqui não há algum
problema, contudo tal atitude frente à Escritura não está ligada a uma racionalidade metódica,
a finalidade da lectio é acima de tudo espiritual e existencial. Referente a isso um dos Padres
da Igreja, Orígenes, já alertava para tais riscos:
Quanto a ti, entrega-te com zelo à leitura das Escrituras, com fé e com a boa vontade
que agrada a Deus. Não basta bater e procurar; o que é preciso, antes de tudo, para
obter a inteligência das coisas divinas, é a oração. (ORÍGENES. Contra Gregório
Taumaturgo, 3. in: CLÉMENT. 2003. 94)
Há também outro problema: originalmente a lectio não se configura uma atitude
humana perante o texto sagrado, mas sim a própria Sagrada Escritura, “lectio divina é
sinônima de sacra pagina” (VEILLEUX. 1995. 2). Isso pode ser visto em vários escritos da
época, como: “Tenha em mãos a lectio divina”2. É o próprio livro sagrado que nos ensina as
lições que deveriam ser observadas e vivenciadas. Assim a lectio divina é mais que uma
simples leitura espiritual, ou oração com a Palavra de Deus, ela é itinerário espiritual no qual
o fiel atento ao ensinamento procura aplicá-lo em sua vida por uma constante busca de
conversão de seus costumes.
Alguém perguntou a abba Antão: “que devo fazer para agradar a Deus?” Respondeu
o ancião: “Observa o que te ordeno: onde quer que vás, tem sempre a Deus diante
dos olhos; o que quer que faças, tem o testemunho das Sagradas Escrituras, de
qualquer lugar onde estiveres não te afastes facilmente”. Observa estas três coisas e
serás salvo (Abba. 34. in: REGNAULT. 2000.42-43).
Contudo aqui surge outro problema: para se ter acesso às estas lições é necessário
proceder-se uma leitura do texto, então como se deve entender leitura em toda a dimensão da
lectio divina? Efetivamente a leitura é um instrumento, mas ela não se constitui a finalidade,
ela é um primeiro passo que leva a atitude primordial uma meditatio, uma ruminatio, uma
meditação e ruminação do texto sagrado, da lectio divina, da lição divina. Isto é uma
2 (Lectio divina = Sagrada Escritura).
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assimilação de uma prática judaica, os rabinos ensinavam que a Palavra deveria ser meditada
e orada, pois era a presença de Deus, e São Paulo3, assim como os Santos Padres a utilizavam,
pois gerava “uma atenção constante, que em si mesma se torna uma oração constante”
(VEILLEUX. 1995. 3), cujo fruto é a uma conversão que se dá no cotidiano em uma
encarnação da Escritura.
A natureza da água é mole e da pedra é dura, mas o vaso que está suspenso acima da
pedra e que deixa cair a água gota a gota atravessa a pedra. Do mesmo modo, a
palavra de Deus também é macia e o nosso coração é duro, mas se o homem escuta
muitas vezes a Palavra de Deus, seu coração se abre ao temor de Deus. (Abba. 250.
in: REGNAULT. 2000. 144).
A lectio divina foi entendida e vivenciada desta forma nos primeiros séculos da Igreja.
Com o passar do tempo ela foi recebendo diferentes interpretações, segundo as diferentes
visões de mundo durante a progressão da história.
1.2 A LECTIO DIVINA: VARIAÇÕES DE COMPREENSÃO NA HISTÓRIA.
Nos primeiros séculos da fé cristã a visão de mundo se pautava, efetivamente, em uma
compreensão de que Deus estava presente e permeava todos os espaços. Ele era um Deus
conosco, próximo, existencial. Não havia a possibilidade de conhecê-lo, mas tinha-se a
convicção de que Ele era o promotor de todos os eventos, Ele movia toda a criação, Dele
descendiam todas as coisas.
Sendo assim, a vida era um eterno celebrar a Deus e uma eterna criação, na qual Deus,
a cada dia, refaz sua obra afim de que ela chegue à plenitude do ser4. Por este motivo o
homem procurava viver de forma tal que sua conduta agradava a Deus. Nos antigos
fragmentos dos Padres do Deserto – que se chamam: apoftegmas – das perguntas que os
discípulos faziam aos mestres a mais comum era: “O que devo fazer para agradar a Deus?”. A
vida do cristão, nos primeiros séculos da era cristã, se resumia a isto buscar, com sua vida
agradar a Deus.
Poder-se-ia perguntar: no que a lectio contribuiria para tal? Como se viu no item
anterior a lectio é a lição doada por Deus para ser constantemente vivenciada, ruminada,
transformada em vida. Por isso ela se constituía a prática primeira que proporcionava ao
3 Cf. 2 Tim. 3, 14-17.
4 Esta doutrina permanece até hoje. No Catecismo da Igreja Católica encontra-se a eterna providência a eterna
criação de Deus. “A criação tem a sua bondade e a sua perfeição próprias, mas não saiu completamente acaba
das mãos do Criador. Ela é criada „em estado de caminhada‟ (in status viae) para uma perfeição última a ser
ainda atingida, para qual Deus a destinou”. (CIC. 302).
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homem esta busca constante de conversão de vida, que paulatinamente vai proporcionando o
resgate de sua semelhança com Deus.
Contudo, esta forma de visão acabou sofrendo modificações essenciais ao longo dos
séculos e aproximadamente no século XI e XII ganhou uma nova interpretação. Aqui se deve
ter em mente que as mudanças sociais – a saída do campo (feudo) para as cidades, a Igreja já
estabelecida como instituição com poder espiritual e temporal (político) – influenciaram
muito na formação de uma nova visão de mundo. “Com a crescente prosperidade da Europa, o
clero da Igreja encontrava mais tempo para investigar os interesses intelectuais. (...) Sob essas
novas circunstâncias, a Igreja começou a patrocinar uma tradição de erudição e educação de
extraordinário fôlego, rigor e profundidade” (TARNAS. 2000. 197). Percebe-se que o
interesse desta época está no aprofundamento do conhecimento, a parte espiritual não é
descartada de forma alguma, mas já não é a principal preocupação. As obras piedosas não
estavam mais tão ligadas a uma vivencia profunda, mas a “assistência a alguns ofícios
religiosos, a certas procissões, a prática de certas devoções” (LE GOFF. 1988. 70). Cabe aqui
ressaltar que esta é a perspectiva predominante do que foi vivido pela Igreja, deve-se lembrar
que em reação a esta circunstância ocorreram algumas reformas das ordens religiosas, e o
nascimento de outras que buscavam viver de forma radical o Evangelho e a Regra. Cabe citar,
a título de exemplo; a Ordem dos Cartuxos fundada em 1084; a Ordem Cisterciense, fundada
em 1098; a Ordem dos Frades Menores, instituída por volta do ano de 1205; entre outras.
Nesta época, devido as grandes especulações intelectuais, a Sagrada Escritura era
tomada, muitas vezes, como um livro de simples estudo, a revelação da lição aplicável à vida,
já não era o centro. Ela era mais um livro do qual se retiravam questões para uma posterior
discussão intelectualizada, do que um livro que trazia lições a serem meditadas, rezadas e
vivenciadas. Nos mosteiros houve uma defesa contra tal prática, os monges buscaram
demonstrar que a lectio era, e é, o centro da vida cristã. Em especial um abade cartuxo, Guigo
II, em uma carta sobre a vida contemplativa, demonstra esta centralidade.
Contudo cada vez mais a lectio divina ia perdendo campo, até que no século XVI ela
cairá em desuso, isso porque o nominalismo indicava cada vez mais para a negação da
revelação divina e para a necessidade de se especular sobre as coisas concretas e materiais da
vida. É aqui que novas formas e métodos de mediação surgem todos procurando uma
introspecção uma análise existencial pautada na psicologia, em métodos racionais, de
descoberta de si, mas que não possuíam alguma relação com a Sagrada Escritura. Assim, no
que diz respeito à lectio divina, pode-se afirmar, que foi esquecida por muitos anos na prática
da Igreja. É certo que nos mosteiros ela continuava, mas isso era uma exceção.
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Somente no Concílio Vaticano II é que a Palavra de Deus volta do seu exílio, quando é
retomada a proposta de uma “genuína doutrina sobre a Revelação divina e sua transmissão”
(DV 1). Após este acontecimento central na vivência eclesial do século XX, o resgate da
Palavra, na celebração comunitária e na oração pessoal, se constituiu duas tarefas
fundamentais no caminho espiritual. Contudo, à luz da visão de mundo e valores
contemporâneos, ou seja, pautado em métodos a serem cumpridos para se chegar à finalidade:
uma conversão contínua. O grande problema é que leituras subjetivantes, individualistas,
tendenciosas e até mesmo aquelas que obedecem a uma ideologia específica, surgiram.
Gerando uma deturpação do que a lectio divina é em sua originalidade, em sua ação e
finalidade.
1.3 A LECTIO DIVINA: CONCEPÇÕES E MÉTODOS.
Na contemporaneidade existem muitas formas de se compreender a lectio, aqui estas
não serão abordadas uma a uma, o que é mais importante é a percepção desta variedade e
mais ainda, dos problemas que algumas perspectivas nos trazem.
Primeiro, quando se fala em concepções fala-se em formas de ser Igreja, de diferentes
maneiras de se viver a religião. Por exemplo, para as comunidades de base a Escritura é
celebrada com muita festa de um jeito bem popular e a mensagem dela é enraizada na vida
sofrida do povo, de um Deus libertador. Para as comunidades mais espiritualizadas – que
priorizam ou, por vezes admitem como única finalidade, a conversão espiritual – a Palavra
tem a centralidade, ela orienta e é lida meditada e rezada. São diferentes formas, lindas em seu
contexto, mas que podem gerar interpretações tendenciosas da Escritura. Não por maldade,
mas por priorizar uma realidade da vida humana, acabam por excluir a outra. Estudiosos
previnem sobre isso, sobre uma radicalização nas diferentes concepções:
Se há necessidade de fazer alguma advertência aos intérpretes „sociologizados‟
modernos, é a de que nem sempre o êxodo, por exemplo, nas interpretações que eles
dão, no fim chega a ser coroado pela páscoa do Senhor Jesus ressuscitado, que
oferece libertação „qualitativamente nova‟ em todos os níveis. (...) O tema
libertação, repele esta espécie de sociologismo mágico [de libertação existencial e da
pobreza]. (...) [Aos intérpretes espiritualistas, cabe advertir quanto ao
fundamentalismo que é] o afã de pedir resposta, sob a forma de receita mágica, à
palavra de Deus. [A Escritura dá lições de vidas passíveis de atualização, mas não
receitas para a resolução de problemas] (FIORES; GOFFI. 1993, p. 897-898).
Quando se fala em método fala-se de uma realidade racional pautada em etapas fixas
que devem ser percorridas em ordem para se chegar à finalidade. No que diz respeito à oração
eles podem ser uma auxílio, mas aqui se encontra o problema: estabelecer parâmetros, etapas
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e graus para oração não poderia torná-la mecânica e enquanto tal estéril? Esta é uma questão a
ser pensada, os Padres da Igreja já advertiam sobre isso e condenavam todo tipo de método
pré-estabelecido, exatamente porque ele pode mais prejudicar e dificultar do que auxiliar e
promover um relacionamento com Deus, por meio da Sagrada Escritura:
Se tentares reduzir o sentido divino ao significado puramente exterior das palavras, a
Palavra não encontrará motivo para abaixar-se vindo ao teu encontro, e voltará para
sua morada secreta (...). Esse sentido divino tem asas, ele as recebe do Espírito
Santo, seu guia (...). Não querer elevar-se acima da letra, mas ocupar-se somente
dela é sinal de uma vida de mentira (ORÍGENES. Comentário sobre o Livro dos
Provérbios, 23. in: CLÉMENT, 2003, p. 92).
Percebe-se assim que se deve tomar cuidado com concepções restritivas e também
com métodos que muitas vezes não proporcionam e até afastam o homem de um verdadeiro
relacionamento com Deus, por meio das Escrituras. Relacionamento esse que se pauta em
uma união de amor, mediada pela Palavra, pela ação do Espírito Santo e pela tradição da
nossa Igreja.
2 LECTIO DIVINA: PALAVRA – REVELAÇÃO – ESPIRITUALIDADE.
Como foi visto no capítulo anterior a lectio divina proporciona um relacionamento
profundo com Deus, por meio da Sagrada Escritura e que gera frutos de conversão. Portanto,
se faz necessário, em primeiro, analisar um pouco como se dá o processo e qual a finalidade
dele.
2.1 A PALAVRA: O VERBO DE DEUS SE FAZ CARNE.
A Palavra, tanto para os judeus, quanto para os cristãos dos primeiros séculos tinha um
importante papel na vida espiritual. Ela era entendida de forma diferente, mas com uma ação
semelhante.
Para os judeus a referência da Palavra se remetia à experiência criadora do Gênesis,
era o pronunciar dela que gerava a criação. “No princípio, criou Deus o céu e a terra. A terra
era um caos informe; a treva esta sobre o abismo. E o vento de Deus pairava sobre as águas.
Disse Deus: - Exista a luz. E a luz existiu” (Gn 1, 1-2.). O sentido etimológico da Palavra, em
hebraico, dabar, “é o âmago das coisas, [das realidades criadas,] o que nelas se encontra
escondido: [o seu ser]” (ROCHA, 1989, p. 44). Ela é viva e eficaz, torna visível e atuante a
essência da realidade, a vocação desta. Por isto a leitura e a meditação da Palavra, para os
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judeus são centrais, pois por meio dela Deus age, com seu poder criador atualizando a
essência humana e confirmando sua vocação.
Para os cristãos o sentido da Palavra não é muito diferente do que para os judeus. É no
Evangelho de São João que se encontra a passagem da qual se retira o conceito. “No princípio
já existia a Palavra e a Palavra se dirigia a Deus e a Palavra era Deus. (...) [E] e a palavra se
fez homem e habitou entre nós” (Jo 1, 1.14). O evangelista escreve para os gregos, e utiliza de
um conceito grego para se referir à Palavra. Etimologicamente Palavra, em grego, é
que também, como no hebraico, significa o ser, mas que possui segundo uma
interpretação judaico-cristã, dois outros sentidos: como agente da criação e como o
intermediador entre Deus e o homem. Nesta concepção a Palavra é deveras atuante na vida
humana, por meio dela é a Revelação divina acontece. A oração e a meditação da Palavra, da
Sagrada Escritura, é em primeiro, fonte de revelação dos mistérios de Deus e em segundo
fonte de recriação do ser, de remodelação, de conversão para que o homem chegue á plenitude
de sua vocação de filho de Deus. Esta palavra transformadora é encarnada na pessoa de Jesus
de Nazaré, Ele é o logos do Pai que veio “procurar e salvar o que estava perdido” (Lc. 19, 10)
e restabelecer um vinculo de união entre o homem e Deus.
Como o homem iria a Deus, se Deus não tivesse vindo ao homem? Como o homem
se libertaria de seu nascimento de morte, se não fosse regenerado segundo a fé por
um novo nascimento, concedido generosamente por Deus, graças àquele que nasceu
do seio da Virgem? (IRINEU DE LIÃO. Contra as heresias, IV, 33, 4. in:
CLÉMENT. 2003. 37)
A Revelação do Cristo, a Palavra de Deus, é ponto central da vida do cristão e da
lectio divina.
2.2 A REVELAÇÃO: A MANIFESTAÇÃO DA PALAVRA À HUMANIDADE.
Na Constituição Dogmática Dei Verbum é proposto para a comunidade cristã de uma
“genuína doutrina sobre a Revelação divina” (DV 1), que nos é transmitida tanto pela
Tradição apostólica quanto pela Sagrada Escritura. Elas se “constituem um só depósito
sagrado da Palavra de Deus, confiado a Igreja” (DV 9). Pois a Escritura, “deve ser lida e
interpretada com o mesmo espírito com que foi escrita, não menos atenção se deve dar, na
investigação do reto sentido dos textos sagrados, ao contexto e à unidade de toda a Escritura
tendo em conta a Tradição viva de toda a Igreja e a analogia da fé” (DV 12). Percebe-se assim
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que a Revelação divina, contida no texto possui estas “duas pernas” com as quais possibilita o
acesso ao Mistério de Deus.
Mas poder-se-ia perguntar, qual é o centro da Revelação? A pessoa de Jesus Cristo,
Nele, no mistério de seu nascimento, vida, pregação, paixão morte e ressurreição está o
núcleo central da fé cristã católica, e aqui se encontra a beleza: Jesus é o Logos do Pai, a
Palavra que encarnada assume sobre si a natureza pecadora do homem, para que fosse
possível revelar a este sua natureza divina:
O Senhor nos deu um sinal nas profundezas e nas alturas‟, sem que o homem
ousasse esperá-lo. Como poderia esperar ver uma virgem dar à luz um filho, ver
nesse Filho um Deus conosco que descesse às profundezas da terra para procurar a
„ovelha perdida‟, isto é, a criatura que ele tinha plasmado, e que voltasse depois para
apresentar ao Pai este „homem‟ (a humanidade) assim reencontrado? (IRINEU DE
LIÃO. Contra as heresias, III, 19, 3. In; CLÉMENT, 2003, p. 36).
Seu amor por mim humilhou sua grandeza. Ele se fez semelhante a mim para que eu
o receba, fez-se semelhante a mim par que eu possa revestir-me dele. Ao vê-lo, não
tive medo porque ele é misericórdia para mim. Assumiu a minha natureza para que
eu o compreenda, assumiu o meu rosto para que eu não me afaste dele (ODES DE
SALOMÃO, 7. In: CLÉMENT, 2003, p. 37).
E como Palavra encarnada, por meio da lectio divina – da oração e da meditação que
as lições desta nos incitam – acaba promovendo para nós a possibilidade de mudança das
realidades que em nossa natureza humana não vão de encontro com a Vontade de Deus. Isto
não significa um esvaziar-se de si, para um total preenchimento com a natureza divina, nunca
isso seria possível, caso contrário nos tornaríamos deuses, mas sim uma plenificação do ser
humano, que somente em um relacionamento profundo com seu Deus é que se torna
verdadeiramente humano.
Isso pode ser entendido, em primeiro lugar, no sentido (...) de que se dignou, por sua
vinda na carne, concentrar-se para tomar um corpo e nos ensinar, em nossa
linguagem humana e por parábolas, o conhecimento, que ultrapassa toda linguagem,
das coisas santas e ocultas...
Pode também ser entendido pelo fato de que, por amor a nós, se oculta
misteriosamente nas essências espirituais dos seres criados, como outras tantas
letras, totalmente presente em cada uma, em toda a sua plenitude. (...) Em tudo o que
é diverso está oculto aquele que é um e eternamente idêntico; nas coisas compostas,
aquele que é simples e sem divisão; no que um dia precisou começar aquele que não
tem começo, no visível, aquele que é invisível, no tangível, aquele que é intangível.
(...)
Pode ser entendido, finalmente, pelo fato de que, por amor a nós, que somos lentos
para compreender, dignou-se exprimir-se nas letras, nas sílabas e nos sons da
escritura, a fim de atrair-nos para o seu seguimento e unir-nos em espírito
(MÁXIMO, CONFESSOR. Ambígua. (PG 91, 1285- 1288). In: CLÉMENT, 2003,
p. 36).
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E aqui é interessante perceber que a revelação do mistério do Verbo de Deus e a
conseqüente plenificação, gradual, do humano não é feita de forma negativa, mas sim, por
uma aceitação verdadeira e convicta do amor de Deus, toda a necessidade de suprimir ímpetos
da natureza humana provém de um reconhecimento, no amor. “No seu grande amor, Deus não
quis forçar nossa liberdade, embora tivesse o poder de fazê-lo, mas deixou-nos vir a ele
unicamente pelo amor de nosso coração” (ISAAC, O SÍRIO. Tratados ascéticos, 81. In;
CLÉMENT, 2003, p. 55). Sendo que esta relação de amor é fruto do cultivo de uma
espiritualidade.
A história do amor entre Deus e o homem consiste precisamente no fato de que esta
comunhão de vontade cresce em comunhão de pensamento e de sentimento e, assim,
o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais: a vontade de Deus
deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impõem de fora os
mandamentos, mas é a minha própria vontade, baseada na experiência de que
realmente Deus é mais íntimo a mim mesmo de quanto o seja eu próprio (DCE. 17).
2.3 A ESPIRITUALIDADE: A PLENIFICAÇÃO DO HUMANO.
Como foi analisado anteriormente, somente em uma relação de amor é que a
proximidade com Deus acontece, essa é o chão onde se constrói o que se denomina
espiritualidade.
A palavra espiritualidade deriva, em português, de espírito palavra que possui sua raiz
na língua latina. A raiz dela, spiritus, significa, dentre várias outras coisas: o sopro doador da
vida. Aqui se deve entender vida de duas formas: a existencial e a vida nova em Deus. No que
diz respeito à primeira, encontramos no livro do Gênesis a narração da criação humana e a
confirmação de que é o espírito de Deus que doa a existência ao homem: “O Senhor Deus
formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o
homem se tornou um ser vivente” (Gn 2,7). A vida humana, portanto tem sua origem no sopro
divino.
No que diz respeito à vida nova em Deus tem-se a narração do Pentecostes, quando o
Paráclito, o prometido do Pai foi enviado aos discípulos para que estes pudessem ser
“revestidos da força do alto” (Lc 24,49b) e com esta renovar, remodelar, suas vidas e
compreendendo a Boa Nova pudessem anunciá-la. Eis o que o texto diz: “Chegando o dia de
Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do céu um ruído, como
se soprasse um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados” (At 2,1-2).
Mas para podermos conceituar a espiritualidade é necessário ter em mente o que
designa o sufixo dade. Este indica três situações: o estado, a ação e a qualidade de uma
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realidade definida. Assim espiritualidade significa um estado no qual o Espírito Divino age
em nós com vistas a doar-nos qualidades suas, os dons divinos, talhando nossa alma, a fim de
que possamos realizar em nossos corações o Reino de Deus. Como afirma um dos Santos
Padres: “O Verbo se fez „portador da carne‟ para que os homens pudessem vir a ser‟
portadores do Espírito” (CLÉMENT, 2003, p. 54).
Percebe-se assim a importância da vivência da espiritualidade, pois nos unindo à Deus
em uma relação de amor, podemos, paulatinamente recuperar nossa natureza de filhos. Assim,
para nós cristãos faz-se estritamente necessário esta experiência do Pai no nosso íntimo,
sabendo perceber quem somos, e mais importante, sabendo discernir se Deus é em nós. Sendo
que a vivência desta abertura a um relacionamento vem de encontro com uma proposta de
vivência da lectio divina para os homens da sociedade pós-moderna. Pois a necessidade deste
tipo de religiosidade é central na atualidade.
3 A LECTIO DIVINA: UMA PROPOSTA PARA HOJE
Poder-se-ia questionar: de que forma poder-se-ia vivenciar tal experiência? A lectio,
em seu sentido e prática original, tinha a perspectiva de um itinerário de conversão por meio
da aplicabilidade das lições divinas contidas na Sagrada Escritura. Para auxiliar a
compreensão utilizar-se-á o escrito do monge cartuxo Guigo II, uma carta que doava
diretrizes para a vivência da lectio: sobre a vida contemplativa, ou escada dos monges.
Ele inicia sua carta fazendo uma alusão à passagem do sonho de Jacó, quando viu
“uma escada, que, apoiando-se na terra, tocava com o cimo o céu; e anjos de Deus subiam e
desciam pela escada” (Gn 28,12), que como os anjos subiam esta escada também afirma que
os cristãos devem subi-la por meio de quatro degraus. Contudo, aqui é interessante ressaltar
que – apesar do monge fazer alusão a degraus e os abordar de forma subseqüente – não há a
defesa de um método, mas de etapas que são vivenciadas não importando a ordem, mas que
fazem parte de uma espiritualidade pautada na Palavra.
Para se compreender a passagem é necessário analisá-la: entre os dois planos, celeste e
terrestre, há uma escada que é sinal de união, os anjos sobrem e descem, podendo-se inferir
que antes o que estava no plano superior (céu) converte-se num plano inferior (terra). Portanto
eles não se auto-excluem, mas há uma dinâmica um movimento contínuo de ascendência e
descendência, esse movimento, que é eterno, reproduz o mesmo sempre novo, atualizando.
Portanto, a escada não indica somente subida, mas também descida; indica relacionamento.
Um subir da alma até Deus e um descer de Deus a te a alma. É nesse contexto que o escrito de
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Guigo deve ser inserido: os degraus são meios de se chegar a Deus, mas não se constituem um
caminho a ser seguido necessariamente e em ordem, não é método, mas diretriz espiritual.
Os quatro degraus, ou as quatro diretrizes são: a leitura, a meditação, a oração e a
contemplação. Cabe ressaltar que elas não se constituem diretrizes para um momento de
oração, mas são etapas vivenciadas ao longo do crescimento espiritual da pessoa.
A leitura e a meditação são as duas realidades primeiras para a lectio, pois é por meio
da leitura, do contato com a Escritura, que uma pequena análise existencial começa a ser
realizada, o impacto das Verdades divinas com a vida pessoal gera um momento de
questionamento, de perguntas que surgem sobre a vida. A partir disso pode ser que,
dependendo da Vontade da pessoa, um momento de meditação, de ruminação, de perceber no
que aquela Palavra nos incita a reconhecer e a mudar em nossas vidas. Essa realidade não é
simplesmente teórica, mas leva e impulsiona a prática, uma meditação que permaneça em si
mesma, em uma análise daquilo que Deus quer das pessoas, que não é aplicada à vida
cotidiana, como busca de conversão, não se constitui enquanto tal. A meditação cristã sempre
leva a uma mudança a uma ação, pois como diz São Paulo: “Cristo nos impulsiona” (2 Cor
5,14).
Mas ainda não acaba toda a dimensão da lectio, o meu impulso de mudança, de busca
de conversão não pode ser uma atitude meramente humana, o ser humano por si só não pode
realizar isso, é necessário ter consciência da necessidade de Deus, como o salmista diz: “Ó
meu Deus, criai em mim um coração puro, e renovai-me o espírito de firmeza (...), Senhor
abri meus lábios, a fim de que minha boca anuncie vossos louvores” (Sl 50,12), pois se ele
não criar, não renovar e não abrir; nada se pode fazer. Sendo essa a dimensão da oração, na
qual vamos ao encontro de Deus e perto dele queremos estar.
Nesta dimensão de vida: de um Deus, efetivamente, próximo, é que a contemplação é
possível. Poder-se-ia perguntar: no que consiste a contemplação? A palavra vem do latim:
contemplare, e significa estar sob o templo, sob a presença de Deus. É mais que um simples
ver, é estar, permanecer com e em Deus. Sendo essa a beleza da lectio, ela é encarnada na
vida, não é um momento, mas um contínuo ler, meditar, orar e contemplar.
Tudo o que foi visto, não é somente uma necessidade pessoal, mas comunitária da
Igreja. Portanto, enquanto filhos de Deus e enquanto Igreja, precisamos de “um novo impulso
de vida espiritual, [por meio da] (...) veneração da Palavra de Deus, que permanece para
sempre”(DV 26).
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REFERÊNCIAS
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