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[T] Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 26, n. 39, p. 777-797, jul./dez. 2014 A biopolítica no parque humano de Sloterdijk Bipolitics on the human park of Sloterdijk Itamar Soares Veiga Doutor em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, professor do Centro de Filosofia e Educação e do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Caxias do Sul, RS - Brasil, e-mail: [email protected] Resumo Este estudo trata da crítica que Sloterdijk faz ao humanismo e a Heidegger em seu livro Regra para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Essa crítica se desenvolve contra a concepção do humano como animal rationale de origem humanista e contra uma onto-antropologia imputada a Heidegger por Sloterdijk. O desenvolvimento mostra que elementos de domesticação e seleção persistem desde a Antiguidade e hoje se apresentam sob novas formas. A proposta de Sloterdijk é a ela- boração de uma antropotécnica para lidar com o humano. Nesse contexto, este artigo busca responder à seguinte questão: qual o estatuto da biopolítica em um cenário da antropotécnica plenamente desenvolvida? Os resultados mostram que, em tal cenário, ainda existiria biopolítica, mas a determinação das diretrizes poderia não mais ser feita por humanos, apenas por um aparato técnico. Palavras-chave: Humanismo. Domesticação. Seleção. Biopolítica. Antropotécnica. DOI: 10.7213/aurora.26.039.AO04 ISSN 0104-4443 Licenciado sob uma Licença Creative Commons

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Este estudo trata da crítica que Sloterdijk faz ao humanismo e a Heidegger em seu livro Regra para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Essa crítica se desenvolve contra a concepção do humano como animal rationale de origem humanista e contra uma onto-antropologia imputada a Heidegger por Sloterdijk. O desenvolvimento mostra que elementos de domesticação e seleção persistem desde a Antiguidade e hoje se apresentam sob novas formas. A proposta de Sloterdijk é a ela-boração de uma antropotécnica para lidar com o humano. Nesse contexto, este artigo busca responder à seguinte questão: qual o estatuto da biopolítica em um cenário da antropotécnica plenamente desenvolvida? Os resultados mostram que, em tal cenário, ainda existiria biopolítica, mas a determinação das diretrizes poderia não mais ser feita por humanos, apenas por um aparato técnico.

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    Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 26, n. 39, p. 777-797, jul./dez. 2014

    A biopoltica no parque humano de Sloterdijk

    Bipolitics on the human park of Sloterdijk

    Itamar Soares Veiga

    Doutor em filosofia pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, professor do Centro de Filosofia e Educao e do Programa de Ps-graduao em Filosofia da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Caxias do Sul, RS - Brasil, e-mail: [email protected]

    Resumo

    Este estudo trata da crtica que Sloterdijk faz ao humanismo e a Heidegger em seu livro

    Regra para o parque humano: uma resposta carta de Heidegger sobre o humanismo. Essa

    crtica se desenvolve contra a concepo do humano como animal rationale de origem

    humanista e contra uma onto-antropologia imputada a Heidegger por Sloterdijk. O

    desenvolvimento mostra que elementos de domesticao e seleo persistem desde

    a Antiguidade e hoje se apresentam sob novas formas. A proposta de Sloterdijk a ela-

    borao de uma antropotcnica para lidar com o humano. Nesse contexto, este artigo

    busca responder seguinte questo: qual o estatuto da biopoltica em um cenrio da

    antropotcnica plenamente desenvolvida? Os resultados mostram que, em tal cenrio,

    ainda existiria biopoltica, mas a determinao das diretrizes poderia no mais ser feita

    por humanos, apenas por um aparato tcnico.

    Palavras-chave: Humanismo. Domesticao. Seleo. Biopoltica. Antropotcnica.

    DOI: 10.7213/aurora.26.039.AO04 ISSN 0104-4443Licenciado sob uma Licena Creative Commons

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    Abstract

    This study addresses the criticism that Sloterdijk makes to humanism and the Heidegger in

    his book Rule for human park: a reply to letter of Heidegger on humanism. This criticism

    develops against the conception of human beings as animal rationale of humanist origin,

    and against an onto-anthropology, imputed to Heidegger by Sloterdijk. The development

    shows that elements of domestication persist since the Antiquity, and it shows new forms

    today. The proposal of Sloterdijk is the elaboration of an anthropotechnique to deal with

    the human. In this context, our research aims to answer the following question: what is the

    status of biopolitics in a scenario of a fully developed anthropotechnique? The results show

    that, in such a scenario, there still exists bipolitics, but the determination of the guidelines

    could no longer be made by humans, but only for technical apparatus.

    Keywords: Humanism. Domestication. Selection. Biopolitics. Anthropotechnique.

    A palestra de P. Sloterdijk proferida na metade de 1999 preten-de ser uma resposta para a Carta sobre o humanismo, texto escrito por Heidegger em 1946. Mas, essa informao resume apenas parte do con-texto que gerou a palestra de Sloterdijk. Uma outra parte a polmica que se seguiu, segundo ele, por causa de uma mdia oportunista. Neste artigo no vamos no deter nessa polmica, mas sim nos contedos de sua palestra, que, inclusive, foi convertida em livro. De uma forma ain-da mais precisa, nosso ponto de interesse aquele da ao da tcnica, ou da tecnologia, na configurao social e na possibilidade de a tcnica se tornar a principal base para a reflexo sobre o humano. Esses dois aspectos possuem elementos de biopoltica que, se mantiveram impl-citos na palestra de Sloterdijk porque ele prprio no os apontou e no os tematizou a principal tica de abordagem da sua palestra foi a antropologia filosfica. Contudo, as ligaes entre os contedos trata-dos e a biopoltica podem ser realizadas e so perfeitamente plausveis. Isso ser apresentado ao longo deste artigo. O resultado aponta, ento, para a incorporao de Peter Sloterdijk, mesmo que a contrapelo, no

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    rol dos filsofos que refletem sobre biopoltica, um campo em que os filsofos destacados so M. Foucault e G. Agamben.

    Assim, nossa principal obra Regras para o Parque Humano: uma resposta carta de Heidegger sobre o humanismo. A publicao em alemo ocorreu em 1999, e foi traduzida para o portugus em 2000. O texto de uma palestra de proferida em um Colquio sobre Heidegger em Elmau (Baviera). O nosso propsito inicial destacar os elementos que vincu-lam o texto de Sloterdijk ao modo usual de reflexo da biopoltica, a exemplo do que encontramos tambm em Foucault. A seguir, vamos orientar nossa anlise para a proposta de Sloterdijk de levar a srio a necessidade de pensar uma antropotcnica. Os posicionamentos, nessas duas partes, tero como objetivo responder seguinte questo: qual seria o estatuto da biopoltica em um horizonte no qual a antropo-tcnica estivesse plenamente desenvolvida?

    A crtica de Sloterdijk e o paralelo com a biopoltica

    Sloterdijk (2000, p. 7) inicia sua palestra abordando o papel de-sempenhado pelos livros, os quais so tidos como cartas dirigidas a amigos. Os livros, vistos sob a forma de cartas, visam construo do que ser chamado humano, ou humanismo, dentro da prpria civiliza-o ocidental. Nesse sentido, fixa-se um papel importante produo literria e, concomitantemente, da leitura. Em outras palavras, a lei-tura protagonista, pois ela consegue ser o parmetro da passagem do homem brbaro ao homem humanizado. Ela cumpriu historicamen-te essa funo humanizante e exerceu uma influncia que favorecia a conteno do impulso brbaro, em prol do humano, em tarefa que se denominou de humanismo.

    Sloterdijk expe que os livros clssicos universais so, em grande medida, transformados em um outro tipo de clssicos mais especfico Trata-se aqui da funo exercida pela literatura nacional de um pas em particular. Os novos autores e as novas obras reafirmam as tare-fas humanizantes do homem ante sua disposio embrutecida e br-bara. Os livros de novos autores repetem nacionalmente a mensagem

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    humanista contida nos autores clssicos, considerados universais. Com isso, o ser humano de posse do livro pode se tornar culto, pode e deve sentar e ler. Lendo, ele ir se acalmar e, com a prtica, abandonar o estado de barbrie e tornar-se- humano.

    Mas Sloterdijk aponta a decadncia do humanismo, o qual clas-sifica como burgus. Essa decadncia assinalada, porque nos tempos atuais a prtica de leitura, recomendada por parte dos humanistas, no consegue mais atar os laos telecomunicativos entre os habitantes (SLOTERDIJK, 2000, p. 13-14). Em seguida, ele apresenta dois pontos importantes que conduzem a um aprofundamento.

    O primeiro ponto o papel desempenhado pelas mdias, mes-mo em sua contextualizao histrica mais antiga, grega e romana. Sloterdijk explora principalmente o contexto romano. Ele afirma que j nessa poca h um embate entre mdias: o homem est entre dois contendores e a presa desejada. Na antiguidade romana, esses dois contendores so a mdia do teatro (a arena ou o estdio1) e da leitura. Cada lado delas disputa o homem de um modo especfico. A isso se acresce um segundo ponto, pois, pelo fato de estar entre uma disputa de mdias, o homem possui um carter influencivel: Faz parte do cre-do do humanismo a convico de que os seres humanos so animais influenciveis e de que portanto imperativo prover-lhes o tipo certo de influncias (SLOTERDIJK, 2000, p. 17).

    O segundo ponto compreende que, se os seres humanos so in-fluenciveis, ento eles so capazes de fazer uma escolha e necessitam faz-la. Sloterdijk afirma que a humanidade nada mais do que essa escolha. Mas ele tambm assinala que desde sempre essa escolha pos-sui um direcionamento especfico. Esse direcionamento visa recusa do teatro (arena) e aceitao da leitura. Entretanto, na poca contem-pornea, na sociedade burguesa atual, imersa na tcnica, a leitura dos clssicos deixou de cumprir seu papel humanizante.

    1 Na poca de Ccero, ambos os poderes [foras inibidoras e desinibidoras] so fceis de identificar, pois cada um deles possui sua mdia caracterstica. Durante a poca do Imprio, a proviso de fascnios bestializadores para as massas romanas havia se tornado uma tcnica de dominao indispensvel, rotineiramente aprimorada, [...], graas a frmula po e circo de Juvenal, persiste at hoje na memria (SLOTERDIJK, 2000, p. 17-18).

    ThiagoMarcador de texto

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    Diante desse contexto, preciso radicalizar, aprofundando o es-tudo das caractersticas da mdia, que deve lidar com o homem influen-civel. Nesse aprofundamento, a considerao das mdias se atualiza e Sloterdijk afirma que h dois tipos que disputam o humano: as mdias desinibidoras e as mdias domesticadoras. Desinibir ou domesticar o qu? A resposta : a bestialidade do homem, ou seja, aquele mesmo carter bestial que o humanismo procurava erradicar, em pocas anteriores, por meio da leitura edificante dos clssicos. Com essas duas categorias de desinibio e de domesticao, Sloterdijk assinala uma influncia oriunda de Nietzsche.

    Uma vez colocada a importncia da leitura na passagem entre o brbaro e o humano, e desenvolvida a noo do ser humano como um ser influencivel, percebe-se que a injuno das mdias desinibidoras e domesticadoras conduz ainda a um outro processo. Esse processo se coaduna perfeitamente com os processos biopolticos analisados por Foucault e Agamben2. Mas, antes de tratar das relaes possveis com biopoltica, vamos detalhar ainda mais o quadro das argumentaes de Sloterdijk.

    O papel das mdias desinibidoras e domesticadoras funda-mental para estabelecer, segundo Sloterdijk, uma humanidade en-quanto resultado de uma escolha. Ou seja, a humanidade huma-nidade porque pode fazer tal escolha, e a prpria humanidade se encontra submetida a uma dessas duas mdias. Os elementos bestiais, uma vez domesticados, podem ser compreendidos como implcitos no comportamento dos homens. Inclusive, de forma mais esclarece-dora, no comportamento de humanistas ou de pessoas que desejavam se edificar. dessa forma que tais comportamentos so retratados por Sloterdijk, e para ilustrar esse aspecto, retorna-se a um exemplo a partir da Antiguidade Clssica:

    O que os romanos cultos chamavam humanitas seria impensvel sem a exigncia de abster-se da cultura de massas dos teatros da crueldade.

    2 Em Foucault, encontramos primeiramente uma poltica sobre o indivduo e seu corpo, depois uma poltica sobre a sexualidade e as populaes. Em Agamben, encontramos o tema da vida nua e poder jurdico (2010), gerando assim um novo paradigma para anlise poltico-jurdica da sociedade: o Estado de Exceo (2004).

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    Se o prprio humanista se perder alguma vez em meio multido vo-ciferante, que seja to somente para constatar que tambm ele um ser humano e pode, por isso, ser contagiado pela bestializao. Ele retorna do teatro para casa, envergonhado por ter compartilhado involuntaria-mente as contagiantes sensaes, e est agora disposto a admitir que nada de humano lhe estranho. Mas o que se diz com isso que a humanidade consiste em escolher, para o desenvolvimento da prpria natureza, as mdias domesticadoras, e renunciar s desinibidoras. O sentido dessa escolha de meios consiste em desabituar-se da prpria bestialidade em potencial, e pr distncia entre si e a escalada desuma-nizadora dos urros do teatro (SLOTERDIJK, 2000, p. 18-19).

    A escolha, e a consequente definio do ser humano a partir da possibilidade de escolha, no algo simples e pacfico, mas sim o re-sultado de uma antropodiceia, na qual o homem se encontra a meio curso em face de sua abertura biolgica e de sua ambivalncia moral (SLOTERDIJK, 2000, p. 19). O resultado dessa antropodiceia deve se consolidar com o auxlio do papel da mdia, ou dos meios comuni-trios e comunicativos pelos quais os homens se formam a si mesmos para o que podem, e o que vo, se tornar (SLOTERDIJK, 2000, p. 19-20). Na comunidade ou na reunio dos homens nas cidades, produto genuno da antropodiceia, a humanidade se fortalece frente bes-tialidade e sua correspondente mdia desinibidora. Foucault encontra esse mesmo processo de amansamento ou docilizao do ser huma-no na sua proposta de analisar a biopoltica. A passagem do texto de Foucault que mostra esse paralelo a seguinte:

    [...] Um dos polos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como mquina: no seu adestramento, na ampliao de suas aptides, na extorso de suas foras, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integrao em sistemas de controle efica-zes e econmicos tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anatomopoltica do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do sculo XVIII, centrou-se no corpo-espcie, no corpo transpassado pela mecnica do ser vivo e como suporte dos processos biolgicos: a proli-ferao, os nascimentos e a mortalidade, o nvel de sade, a durao da

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    vida, a longevidade, com todas as condies que podem faz-los variar; tais processos so assumidos mediante toda uma srie de intervenes e controles reguladores: uma biopoltica da populao. As disciplinas do corpo e as regulaes da populao constituem dois polos em torno dos quais se desenvolveu a organizao do poder sobre a vida. A instalao durante a poca clssica, desta grande tecnologia de duas faces anatmica e biolgica, individualizante e especificante, voltada para os desempenhos do corpo e encarando os processos da vida caracteriza um poder cuja funo mais elevada j no mais matar, mas investir sobre a vida, de cima para baixo (FOUCAULT, 1980, p. 131).

    Nesse sentido, o paralelo conduz a uma descrio mais detalha-da da antropodiceia atravs de Foucault. Essa antropodiceia esta-ria tambm dividida em duas fases: a fase da sobrevivncia dos indiv-duos e a fase das cidades e da organizao. Ou seja, os paralelos com as categorias da disciplina e da regulamentao afirmadas por Foucault, no primeiro caso remetendo aos corpos dos indivduos, e no segundo caso remetendo ao modo de vida das populaes.

    Sloterdijk (2000, p. 24-25) faz uma anlise do tema do humanis-mo contido no texto de Heidegger. Ele parafraseia Heidegger, ao afir-mar que a a forma mais obstinada e mais perniciosa da metafsica europeia foi utilizar na definio de ser humano o conceito de animal rationale. Apesar de concordar com a crtica de Heidegger obstinao da metafsica europeia sobre esse assunto, ele se afasta rapidamente do filsofo da Floresta Negra e expe o ponto nuclear de sua crtica:

    Ao ouvir essas formulaes [as formulaes de Heidegger em Carta so-bre o humanismo] em princpio hermticas, comeamos a perceber por que a crtica heideggeriana ao humanismo est to certa de no condu-zir a um inumanismo. Pois ao mesmo tempo em que rejeita as alega-es do humanismo de j ter explicado suficientemente a essncia do homem, e contrape a isso sua prpria ontoantropologia, Heidegger preserva, entretanto, indiretamente, a funo mais importante do hu-manismo clssico, que o estabelecimento de amizade do ser humano pela palavra do outro; na verdade, ele radicaliza esse motivo de ami-zade e o transfere do campo pedaggico para o centro da conscincia ontolgica. (SLOTERDIJK, 2000, p. 26-27).

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    Sloterdijk vai explorar muito essa vinculao de homem com o outro homem, no sentido da amizade, o qual recupera a ideia humanista de escrever cartas (livros) como se fosse a um amigo. Esse era o ponto de partida do humanista ao prover as ferramentas (os livros) que conduzi-riam o homem da bestialidade ao humano. A crtica se situa justamente nesse ponto: Heidegger preserva uma das funes do humanismo, ao vincular um humano a outro, compartilhando a amizade atravs da lin-guagem, e essa linguagem aquela que constitui a casa do ser. Sloterdijk denomina isso a amizade do ser humano pela palavra do outro (con-forme citao supra).

    No processo de humanizao heideggeriano, segundo Sloterdijk, o humano fica escuta do Ser e balbucia o apelo do Ser que acolheu a outro humano, ambos vizinhos na casa do Ser. Para Sloterdijk, o grau de domes-ticao resultante dessa situao ontoantropolgica mais profundo do que o grau de domesticao que puderam alcanar os humanistas.

    Um dos fatores determinantes para esse grau elevado de domes-ticao a passagem do nvel pedaggico para o nvel ontolgico. Ao mencionar esse aspecto, Sloterdijk pretende no desprezar o foco onto-lgico-existencial da relao heideggeriana entre homem e Ser. Em Carta sobre o humanismo, poderamos questionar essa finalidade pedaggica implcita na relao de um homem com o outro. Carta sobre o humanismo trata de muitos temas diferentes, e um dos temas centrais a busca da essncia da verdade do Ser que vigora (HEIDEGGER, 1967, p. 51). Os outros temas organizam-se em torno desse eixo. Por isso, a aceitao do deslocamento de um carter pedaggico para um carter ontolgico no texto heideggeriano depende apenas do fio condutor argumentativo de Sloterdijk, que valoriza tanto o aspecto natural quanto o aspecto social de uma j referida antropodiceia. Veremos esses dois destaques mais adiante.

    certo de que a crtica de Sloterdijk avana sobre o texto heideg-geriano e lhe contrape cada vez mais elementos de contedo emprico. Em princpio, poderamos imediatamente assinalar que tais contedos no so parte do discurso filosfico, pois a filosofia no possui um neces-srio remetimento a uma base emprica, como ocorre no conhecimento cientfico e na sua prtica. Mas o encaminhamento da crtica de Sloterdijk

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    ao mbito da tecnologia aplicada e organizao social mostra um cami-nho importante sobre o qual se deve refletir com relao s intervenes da tcnica no humano, e, dentro do escopo desse artigo, preciso refletir tambm sobre as consequncias para compreender a biopoltica. Essa aproximao com a biopoltica pode ser constatada na considerao de Foucault sobre o efeito da construo de normas por parte da burguesia:

    [...] A norma o que pode tanto se aplicar a um corpo que se quer dis-ciplinar quanto a uma populao que se quer regulamentar. [...] A so-ciedade de normalizao uma sociedade em que se cruzam, conforme uma articulao ortogonal, a norma da disciplina e a norma da regula-mentao. Dizer que o poder, no sculo XIX, tomou posse da vida, dizer pelo menos que o poder, no sculo XIX, incumbiu-se da vida, dizer que ele conseguiu cobrir toda a superfcie que se estende do orgnico ao biolgico, do corpo populao, mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de regulamentao, de outra (FOUCAULT, 1999, p. 302).

    Contudo, preciso deixar suficientemente claro que o autor ana-lisado no faz o encaminhamento de sua crtica Heidegger dentro do mbito da biopoltica. Falta a Sloterdijk, ao insinuar elementos empri-cos na sua abordagem, detalhar ainda mais a sociedade burguesa atual e, assim, aproximar-se do tema da norma comentado por Foucault.

    Sloterdijk mantm seu questionamento no mbito da antropolo-gia e da constituio da sociedade. E, por outro lado, o tratamento da crtica, contraposta a Heidegger e aos humanistas, possui elementos bsicos encontrados na biopoltica, os quais se mostram nas referncias domesticao do ser humano e aos processos miditicos, aos quais esse ser influencivel est submetido.

    O encaminhamento de sua crtica a Heidegger e elementos ainda implcitos de biopoltica podem ser vistos nesta passagem:

    certo que o homem no guarda o ser como o doente guarda o leito, mas antes como um pastor guarda seu rebanho na clareira, com a im-portante diferena de que aqui, em vez de um rebanho de animais, o mundo que deve ser serenamente percebido como circunstncia aberta

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    e, mais ainda, que essa guarda no constitui uma tarefa de vigilncia livremente escolhida no interesse prprio, mas que o prprio ser que emprega os homens como guardies. O local em que esse emprego v-lido a clareira (Lichtung), ou o lugar onde o ser surge como aquilo que .O que d a Heidegger a certeza de ter apreendido e sobrepujado o hu-manismo com essa mudana de rumo a circunstncia de que ele inclui o ser humano concebido como clareira do ser em uma domesti-cao e estabelecimento de amizade que vo mais fundo do que jamais poderiam alcanar qualquer desembrutecimento humanista e qualquer amor cultivado pelos textos que falam de amor. Ao definir os seres hu-manos como pastores e vizinhos do ser, e ao chamar a linguagem de casa do ser, Heidegger vincula o homem ao ser em uma correspondn-cia que lhe impe uma restrio radical e o confina o pastor nas proximidades ou cercanias da casa; ele o expe a uma conscientizao que requer uma imobilidade e uma servido resignada maiores que as jamais conseguidas pela mais ampla formao. O ser humano sub-metido a uma restrio exttica que tem maior alcance que a civiliza-da imobilidade do leitor obediente ao texto diante do discurso clssico (SLOTERDIJK, 2000, p. 27-28).

    Cabe destacar a importncia de Heidegger perante a falncia do humanismo. Para Sloterdijk, Heidegger tem mrito de ter proporcio-nado o questionamento sobre o homem atual, sem resguardar-se na concepo metafsica de animal rationale. Sloterdijk amplia as consi-deraes de Heidegger, para salientar que, no questionamento sobre o humano, tal iniciativa no pode ser ignorada em uma reflexo que se pretenda ps-metafsica:

    Diante desses monstruosos deslocamentos e rejeies, tornou-se acon-selhvel recolocar a questo fundamento da domesticao e da forma-o do homem, e se a buclica pastoral ontolgica de Heidegger que j em sua poca soava estranha e escandalosa hoje parece comple-tamente anacrnica, ainda assim, apesar de seu carter desagradvel e de sua canhestra excentricidade, ela conserva o mrito de ter articulado a questo da poca: o que ainda domestica o homem, se o humanismo naufragou como escola da domesticao humana? O que domestica o homem, se seus esforos de autodomesticao at agora s conduziram, no fundo, sua tomada de poder sobre todos os seres? O que domestica

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    o homem, se em todas as experincias prvias com a educao do g-nero humano permaneceu obscuro quem ou o qu educa os edu-cadores, e para qu? Ou ser que a questo sobre o cuidado e formao do ser humano no se deixa mais formular de modo pertinente no cam-po das meras teorias da domesticao e educao? (SLOTEDIJK, 2000, p.31-32).

    A resposta a esses questionamentos encontra seu espao den-tro da biopoltica enquanto regulamentao do poder sobre a vida (Foucault) e enquanto dispositivo que tem como base a vida nua (Agamben). Alm disso, preciso destacar que estas vertentes da bio-poltica se aliceram nos efeitos do desenvolvimento cientfico e tecno-lgico que iniciou na poca moderna. Nesse sentido, tal fator histrico e decisivo encontra-se tambm na prpria perspectiva de Sloterdijk ao encaminhar sua anlise ao uso da tcnica (ou tecnologia) como um re-curso decisivo no modo de domesticao do humano. A tcnica deslo-cou o homem do projeto humanista e fez com que esse projeto e o tipo de domesticao que ele propunha naufragassem.

    Aps considerar que Heidegger tambm apresenta uma outra forma de domesticao, uma domesticao ontoantropolgica, a anlise de Sloterdijk se dirige para a clareira (Lichtung) apresentada por Heidegger em Carta sobre o humanismo. A perspectiva ontolgica no suficiente para tratar sobre a clareira do Ser. Para Sloterdijk, h tambm uma histria natural e uma histria social da entrada dos ho-mens na clareira, ou sada dos homens em direo clareira. Agora a crtica de Sloterdijk adquire dois novos pontos de apoio: a biologia e a constituio da sociedade.

    No que diz respeito histria natural, o ponto que Heidegger teria ignorado o processo gradativo no qual o homo sapiens se tornou sapiens ou da aventura da hominizao (SLOTERDIJK, 2000, p. 33). E, no que diz respeito histria social, essa se remete aos processos de domesticao: ao chegarem na clareira e encontrarem a linguagem como a casa do Ser, os homens se renem e se organizam. Eles se li-gam no somente atravs das suas casas da linguagem, mas tambm a casas construdas, e assim so domesticados por suas habitaes (SLOTERDIJK, 2000, p. 35). Essa domesticao do homem coloca em

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    jogo um processo de deciso e seleo do prprio humano. Nesse processo de domesticao est implcito um processo biopoltico que Sloterdijk no se preocupa em tematizar: o processo poltico que vige sobre a vida, um processo que decide e seleciona.

    Sloterdijk se mantm em parmetros antropolgicos e no apro-funda as caractersticas biopolticas do seu quadro conceitual. Esses parmetros filosficos e antropolgicos so reafirmados a partir do re-curso ao mestre do pensamento perigoso (SLOTERDIJK, 2000, p. 38): Nietzsche. Vejamos a seguir essa passagem, na qual Sloterdijk d um passo adiante, ultrapassando a parte de crtica a Heidegger. Ele reafir-ma a clareira como o local importante, onde se decidem e se realizam atos e coisas e, dessa vez, coloca a prpria perspectiva:

    Contudo, quando fazemos a segura vida domstica dar origem clarei-ra, estamos tocando apenas no aspecto mais inofensivo da humaniza-o nas casas. A clareira ao mesmo tempo um campo de batalha e um lugar de deciso e seleo. Quanto a isso, no mais importam as mu-danas de rumo de uma pastoral filosfica. L onde h casas, deve-se decidir no que se tornaro os homens que as habitam; decide-se, de fato e por atos, que tipos de construtores de casas chegaro ao comando. Na clareira, mostra-se por quais posies os homens lutam, to logo se destacam como seres construtores de cidades e produtores de riquezas. O que realmente vem ao caso aqui foi esboado em angustiantes insi-nuaes pelo mestre do pensamento perigoso, Friedrich Nietzsche, na terceira parte de Assim falou Zaratustra, sob o ttulo Da virtude apeque-nadora (SLOTERDIJK, 2000, p. 37-38).

    A seguir, vamos explorar as consequncias da proposta de Sloterdijk, a qual nos conduzir para o inusitado de uma valorizao da antropotcnica.

    A antropotcnica no centro do debate sobre o humano

    A proposta de Sloterdijk assume o seguinte ponto de partida: no podemos fazer uma anlise do ser humano que reincida em uma

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    inocuidade. A crtica de Heidegger ao humanismo foi importante, mas, a posio ontoantropolgica no o suficiente para Sloterdijk. Essa posio permanece incua, bem como a posio dos humanistas de ins-pirao clssica. Qualquer nova posio a respeito do assunto deve ter em vista o atual desenvolvimento tecnolgico e os recursos que esse desenvolvimento apresenta3. A considerao do atual desenvolvimen-to tecnocientfico confronta os possveis indcios de inocuidade (ou de metafsica) no questionamento sobre o humano.

    Assim, a observao propedutica de Sloterdijk contra a inocui-dade no tratamento do tema a seguinte:

    Mas o discurso sobre a diferena e a relao entre domesticao e cria-o, e qualquer referncia aurora de uma conscincia quanto pro-duo de seres humanos e, de maneira mais ampla, de antropotcnicas isto so processos dos quais o pensamento atual no pode desviar os olhos, a menos que se queira, novamente, aceder suposio de inocui-dade. provvel que Nietzsche tenha ido um pouco longe demais ao propalar a sugesto de que a transformao do homem em animal do-mstico foi o trabalho premeditado de uma associao pastoril de cria-dores, isto , um projeto do clero, do instinto paulino que fareja tudo o que no homem poderia resultar em voluntariedade e autonomia e con-tra o qual imediatamente faz uso de mtodos de apartao e mutilao (SLOTERDIJK, 2000, p. 42).

    Em outras palavras, os elementos que compem um discurso so-bre o humano, devem, ento, levar em conta os processos denunciados por Nietzsche: aqueles de domesticao e de seleo. Esses processos significam a compreenso da necessidade de tcnicas para transfor-mar o animal humano (bestializado) em apenas humano (dcil). Sob esse propsito, o processo de transformao carrega implicitamente uma concepo sobre o ser humano. nesse sentido que a estrat-gia humanista da recomendao da prtica da leitura dos clssicos

    3 Com o atual estabelecimento miditico da cultura de massas no Primeiro Mundo em 1918 (radiodifuso) e depois de 1945 (televiso) e ainda mais pela atual revoluo da internet, a coexistncia humana nas sociedades atuais foi retomada a partir de novas bases (SLOTERDIJK, 2000, p. 14).

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    orientada pela concepo do humano como animal rationale. Assim se deveria lidar com os humanos para que se tornassem humanos e no bestas, valorizando o aspecto racional. Esse humanismo que se vincula a uma concepo de animal rationale profundamente questionado por Heidegger. O resultado geral, segundo Sloterdijk, de que a anlise de uma tcnica que visa a lidar com o humano se torna um ponto de partida que no pode mais ser ignorado.

    Dentre os fatores que no podem ser ignorados e se cruzam com a anlise de Sloterdijk est a biopoltica, embora ele no faa essa aber-tura4. No contexto da biopoltica, o lidar com o humano envolveu um esforo da classe social que assumiu o papel de conduo da sociedade desde a Renascena: a burguesia. Assim, para lidar com o humano, a proposta humanista foi progressivamente se deslocando para o mbito mais aplicado, assumindo o emprego da disciplina sob a forma de um biopoder:

    [...] Esse novo tipo de poder, que j no , pois, de modo algum trans-critvel nos termos de soberania, , acho eu, uma das grandes invenes da sociedade burguesa. Ele foi um dos instrumentos fundamentais da implantao do capitalismo industrial e do tipo de sociedade que lhe correlativo. Esse poder no soberano, alheio portanto forma da sobe-rania, o poder disciplinar (FOUCAULT, 1999, p. 43).

    Os interesses de Sloterdijk encaminham-se para a especificidade da antropologia filosfica, mas o cerne de sua crtica a Heidegger abre uma dimenso para um cruzamento com a reflexo poltica e, nesse caso, diretamente sob a forma da biopoltica. O que fornece essa aber-tura para a poltica sua preocupao com a tangibilidade ante os temas do humano e a clareira heideggeriana. Essa referncia tangi-bilidade pode ser recuperada nesta passagem:

    Mostraremos que a permanncia humana na clareira em termos hei-deggerianos, o ficar dentro ou estar-preso-dentro do ser humano na

    4 Sloterdijk desloca a biopoltica para um mbito secundrio em sua anlise, quando ele menciona a poca em que o homem comeou a domesticar os animais.

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    clareira do ser no de nenhuma maneira uma relao ontolgica

    primitiva insuscetvel de qualquer exame posterior. Existe uma histria resolutamente ignorada por Heidegger da sada dos seres huma-nos para a clareira: uma histria social da tangibilidade do ser humano pela questo do ser e uma movimentao histrica no escancaramento da diferena ontolgica (SLOTERDIJK, 2000, p.32-33).

    Portanto, nessa tangibilidade na clareira est a valorizao de uma histria social e tambm de uma histria natural do homem5, sob a forma de uma antropoteodiceia. Nesse novo contexto, ps-humanista, urge desenvolver uma reflexo sobre a antropotcnica no lidar com o humano, mas no apenas isso; nesse contexto urge refletir sobre a bio-poltica. Ambos os requisitos so condies prvias para que a reflexo sobre o humano no recaia na inocuidade.

    Podemos visualizar uma aproximao de Sloterdijk com o m-bito da poltica, quando o autor fala de uma eminncia parda por trs do poder. Essa iminncia parda a seleo (a qual compreendida a partir do binmio domesticao e seleo): Certamente a leitura teve um imenso poder na formao humana e, em dimenses mais mo-destas, continua a t-lo; a seleo, contudo seja como for que tenha sido levada a cabo sempre funcionou como a iminncia parda do poder (SLOTERDIJK, 2000, p. 43).

    Um aprofundamento da reflexo sobre os efeitos da leitura pode conduzir a mais uma demonstrao, por parte de Sloterdijk, da existn-cia de uma seleo que o aproxima da biopoltica. Esse aprofundamen-to se inicia na seguinte passagem:

    A prpria cultura da escrita produziu at a alfabetizao universal recentemente imposta fortes efeitos seletivos: ela fraturou profun-damente as sociedades que a hospedavam e cavou entre as pessoas le-tradas e iletradas um fosso cuja intransponibilidade alcanou quase a rigidez de uma diferena de espcie. Se quisssemos, contrariamente

    5 Deve-se falar aqui, de um lado, de uma histria natural da serenidade, em virtude da qual o ser humano pde se tornar o animal aberto e capaz para o mundo e, de outro, de uma histria social das domesticaes, pelas quais os homens originalmente se experimentam como aqueles seres que se renem para corresponder ao todo (SLOTERDIJK, 2000, p. 33).

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    s advertncias de Heidegger, falar mais uma vez em termos antropo-lgicos, os homens dos tempos histricos poderiam ser definidos como aqueles animais dos quais alguns sabem ler e escrever e outros no. Daqui, s um passo, ainda que ambicioso, para a tese de que os ho-mens so animais dos quais alguns dirigem a criao de seus seme-lhantes enquanto os outros so criados um pensamento que desde as reflexes de Plato sobre a educao e o Estado faz parte do folclore pastoral dos europeus. Algo semelhante ecoa na afirmao de Nietzsche acima citada, de que, dentre os homens nas pequenas casas, alguns poucos querem; quanto maioria, porm, outros querem por eles. Que outros queiram por eles significa que eles existem apenas como objeto, e no como sujeito de seleo (SLOTERDIJK, 2000, p. 44).

    E, imediatamente o autor insere o tema da antropotcnica como necessria ao lidar do humano com o outro humano. Nesse caso, o re-torno do tema da antropotcnica se rene com a referncia tcnica e poder (poder de mando6) de um homem para o outro homem. A pas-sagem a seguinte:

    a marca da era tcnica e antropotcnica que os homens mais e mais se encontrem no lado ativo ou subjetivo da seleo, ainda que no pre-cisem ter se dirigido voluntariamente para o papel do selecionador. Pode-se ademais constatar: h um desconforto no poder de escolha, e em breve ser uma opo pela inocncia recusar-se explicitamente a exercer o poder de seleo que de fato se obteve. Mas to logo poderes de conhecimento se desenvolvam positivamente em um campo, as pes-soas faro uma m figura se como na poca de uma anterior incapaci-dade quiserem deixar agir em seu lugar um poder mais elevado, seja ele Deus, o acaso, ou os outros. J que as meras recusas ou abdicaes costumam falhar devido a sua esterilidade, ser provavelmente impor-tante, no futuro, assumir de forma ativa o jogo e formular um cdigo das antropotcnicas. Um tal cdigo tambm alteraria retroativamente o significado do humanismo clssico pois com ele ficaria explcito

    6 Esta expresso poder de mando de um homem para com o outro significa uma alterao poltica importante, pois no espao poltico, conforme Arendt (2011, p. 56-74), o poder de mando s se exerce de um homem para outro homem na situao mais especfica da dominao, ou seja, tradicionalmente o homem obedece s leis e no figura de mandante.

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    e assentado que a humanitas no inclui s a amizade do ser humano pelo ser humano; ela implica tambm e de maneira crescentemente explcita que o homem representa o mais alto poder para o homem (SLOTERDIJK, 2000, p. 44-45).

    Esse aprofundamento possui j elementos de biopoltica, pois trata principalmente do tema da seleo. Mas, esta implcita perspec-tiva biopoltica, que Sloterdijk no aprofunda diretamente, surge na sequncia quando o autor aborda Plato:

    Desde O Poltico, e desde A Repblica, correm pelo mundo discursos que falam da comunidade humana como um parque zoolgico que ao mesmo tempo um parque temtico; a partir de ento, a manuteno de seres humanos em parques ou cidades surge como uma tarefa zoopol-tica. O que pode parecer um pensamento sobre a poltica , na verdade, uma reflexo basilar sobre regras para a administrao de parques hu-manos. Se h uma dignidade do ser humano que merece ser trazida ao discurso de forma conscientemente filosfica, isso se deve sobretudo ao fato de que as pessoas no apenas so mantidas nos parques temticos polticos, mas porque se mantm l por si mesmas. Homens so seres que cuidam de si mesmos, que guardam a si mesmos, que onde quer que vivam geram a seu redor um ambiente de parque. Seja em par-ques municipais, nacionais, estaduais, ecolgicos por roda parte os homens tm de decidir como deve ser regulada sua automanuteno (SLOTERDIJK, 2000, p. 48-49).

    A antropotcnica possui inegavelmente uma, ou vrias tcnicas que regem o lidar com o humano com vista a amans-lo ou dociliz-lo, os quais eram e so propsitos da biopoltica, atravs do controle da populao ou do permanente estado de incluso e excluso da vida. No contexto das atuais sociedades fortemente industrializadas, a uti-lizao em larga escala da tecnologia um dos requisitos imprescin-dveis. A conjugao cada vez mais estreita entre tcnica, cincia, tec-nologia e poltica nos conduz ao questionamento possvel sobre quem poderia assumir o protagonismo no que se refere ao poder de deciso no processo biopoltico de seleo.

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    No interior desse questionamento cabe a advertncia de Heidegger a respeito da relao da tcnica com o homem, e um perigo que isso representa. Sobre a relao da tcnica com o homem, encontra-mos um desafio que posto pela tcnica:

    Apenas quando, por seu lado, o homem for desafiado a desafiar as energias naturais pode acontecer este desabrigar que requer algo. Se o homem requerido para tanto, desafiado, tambm ele ento no per-tence ainda mais originariamente do que a natureza, subsistncia? O discurso que nos cerca no cotidiano, sobre o material humano, sobre o material de doentes de uma clnica, testemunha a favor disso. O guarda florestal, que faz o levantamento da madeira derrubada na floresta e, ao que parece, tal como o seu av, percorre do mesmo modo os mesmos caminhos da floresta, hoje requerido pela indstria madeireira, saiba ele disso ou no. Ele requerido para a exigncia de celulose que, por sua vez, desafiada pela necessidade de papel, que fornecido para os jornais e para as revistas ilustradas (HEIDEGGER, 1997, p. 63).

    Os discursos sobre o material humano podem ser analisados, nos dias atuais, sob o enfoque da biopoltica. O crescimento da influ-ncia da tcnica e, com ela, de uma antropotcnica, a qual possui uma interface biopoltica, pode ser enfocado dentro do tema do perigo que a tcnica representa para o humano. Esse perigo justamente o de o hu-mano perder a possibilidade de pensar a essncia da tcnica e se tornar uma das formas de subsistncia requeridas pela tcnica. Heidegger ex-pe esse perigo com as seguintes palavras, considerando que o destino do desabrigar no em si qualquer perigo, mas o perigo:

    E se o destino impera no modo da armao [Ges-stell], ento ele o maior perigo. O perigo se anuncia a partir de duas direes. To logo o que estiver descoberto no mais interessar ao homem como objeto, mas exclusivamente como subsistncia, e o homem no seio da falta de objeto apenas for aquele que requer a subsistncia, o homem caminhar na margem mais externa do precipcio, a saber, caminhar para o lugar onde ele mesmo dever apenas mais ser tomado como subsistncia. Entretanto, justamente este homem ameaado, se arroga como a figura do dominador da terra. Desse modo, amplia-se a iluso de que tudo ao

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    encontro subsiste somente na medida em que algo feito pelo homem. Esta iluso torna madura uma ltima aparncia enganadora. Segundo esta aparncia, parece que o homem em todos os lugares somente en-contra mais a si mesmo (HEIDEGGER, 1997, p.77-79).

    O desenvolvimento da tcnica e tambm de uma antropotcnica coloca em curso um lidar biopoltico cada vez mais acentuado nas so-ciedades atuais. Em um cenrio mais radical, com o desenvolvimento cada vez mais efetivo da antropotcnica, esse deslocamento e perda do humano (da sua essncia, seja essa como for definida), em funo do requerer da tcnica, pode significar um deslocamento do prprio hu-mano como protagonista da tomada de deciso do projeto biopoltico acerca da espcie. Esse seria um quadro resultante do pleno desenvol-vimento da tcnica e, juntamente a isso, da antropotcnica.

    Concluses

    Ao longo do nosso texto, constatamos que a anlise de Sloterdijk privilegia a antropologia filosfica, mas possui, de forma latente, uma aproximao possvel com a biopoltica. Sloterdijk se dedica a susten-tar a aplicao de uma tcnica sobre o humano, ou antropotcnica. Ele se baseia na necessidade de domesticao e seleo humanas, e prope realizar uma crtica Carta sobre o humanismo de Heidegger. Para tanto, introduz alguns elementos da histria social e da histria natural na leitura do texto heideggeriano. Esses constructos so alheios abor-dagem heideggeriana. Mas a distncia entre ambos serve apenas para reforar a crtica de Sloterdijk a Heidegger e colocar o autor de Carta sobre o humanismo dentro do conjunto das tentativas fracassadas de domesticar o humano. Resta, ento, desenvolver explicitamente uma tentativa que no fracasse, na viso de Sloterdijk: uma antropotcnica.

    Somente a partir desses elementos da histria natural e da his-tria social que se torna compreensvel a concluso de Sloterdijk, ou seja, a de que h, em Heidegger, uma forma mais domesticadora do que a tradio humanista. evidente que essa concluso se coloca de

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    forma provocadora e a contrapelo dos propsitos de Heidegger em Carta sobre o humanismo. Mas nosso foco no a provocao e a pol-mica, e sim as consequncias posteriores crtica do texto heidegge-riano. Esses elementos posteriores so a defesa de uma antropotcnica por parte de Sloterdijk. Ns reafirmamos aqui uma aproximao com a biopoltica, uma vez que ambas dependem do desenvolvimento tecno-cientfico e possuem o mesmo foco: a vida humana.

    Essa dependncia em relao ao conhecimento tecnocientfico nos permite perguntar sobre os rumos de uma antropotcnica. Ns o fizemos, considerando-a em um suposto horizonte de pleno desenvol-vimento tecnocientfico. Para direcionar esse questionamento, recu-peramos a posio de Heidegger sobre as relaes entre tcnica e ser humano, expostas em seu texto A questo da tcnica. Desse material, retiramos a observao sobre o perigo de o homem se transformar em mera subsistncia no contnuo do requerer da tcnica de armazenar cada vez mais recursos e energia. Se o homem se tornar mera subsis-tncia, ento ele no conseguir mais pensar a essncia da tcnica e de alguma forma se perder. Atravs dessa posio heideggeriana, pos-svel encontrar um ponto de apoio para uma rplica ou modificao da proposta de antropotcnica de Sloterdijk.

    Assim, nossa indagao inicial sobre o estatuto da biopoltica num cenrio em que a antropotcnica estivesse plenamente desenvol-vida pode finalmente ser respondida. A resposta que a biopoltica continuaria a existir para reger o humano, nos moldes relatados por Foucault, em nveis cada vez mais amplos. Contudo, ainda nesse su-posto horizonte, as diretrizes da antropotcnica sobre a domesticao e seleo do humano no mais seriam de domnio do prprio huma-no, pois o homem seria apenas mais uma parte do requerer tcnico da subsistncia.

    Essa resposta mostra que, no contexto da antropotcnica ple-namente desenvolvida, h um alheamento do humano ante o pr-prio humano. A causa desse alheamento a profunda dificuldade de dizer, afinal de contas: o que o humano? E qual sua essncia? Heidegger, em Carta sobre o humanismo, e Sloterdijk, em Regras do parque

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    humano, encontram respostas distintas. Urge enfrentar novamente esse tema, pois o silncio pode conduzir a consequncias biopolticas avassaladoras.

    Referncias

    AGAMBEN, G. O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

    AGAMBEN, G. Estado de exceo: homo sacer II. So Paulo: Boitempo, 2004.

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    FOUCAULT, M. Histria da sexualidade: a vontade de saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1980. v. 1.

    FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collge de France (1975-1976). So Paulo: Martins Fontes, 1999.

    HEIDEGGER, M. A questo da tcnica. Cadernos de traduo, n. 2, p. 40-93, 1997.

    HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.

    SLOTERDIJK, P. Regras para o parque humano: uma resposta carta de Heidegger sobre o humanismo. So Paulo: Estao Liberdade, 2000.

    Recebido: 16/08/2013Received: 08/16/2013

    Aprovado: 14/05/2014Approved: 05/14/2014