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UNICESUMAR - CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS APLICADAS CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO A BIOÉTICA NA EDIÇÃO DO GENOMA, PENSAMENTOS SOBRE A NEO-EUGENIA IGOR CÉSAR PINTO DA SILVA MARINGÁ PR 2019

A BIOÉTICA NA EDIÇÃO DO GENOMA, PENSAMENTOS SOBRE A …

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UNICESUMAR - CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS APLICADAS

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

A BIOÉTICA NA EDIÇÃO DO GENOMA,

PENSAMENTOS SOBRE A NEO-EUGENIA

IGOR CÉSAR PINTO DA SILVA

MARINGÁ – PR

2019

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IGOR CÉSAR PINTO DA SILVA

A BIOÉTICA NA EDIÇÃO DO GENOMA,

PENSAMENTOS SOBRE A NEO-EUGENIA

Artigo apresentado ao Curso de Graduação em

Direito do UniCesumar – Centro Universitário

de Maringá, como requisito parcial para a

obtenção do título de Bacharel em Direito, sob

a orientação do Prof. Me. Ricardo da Silveira e

Silva

MARINGÁ – PR

2019

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IGOR CÉSAR PINTO DA SILVA

A BIOÉTICA NA EDIÇÃO DO GENOMA,

PENSAMENTOS SOBRE A NEO-EUGENIA

Artigo apresentado ao Curso de Graduação em Direito do UniCesumar – Centro Universitário

de Maringá, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito, sob a

orientação do Prof. Me. Ricardo da Silveira e Silva

Aprovado em: ____ de _______ de _____.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________

Nome do professor – (Titulação, nome e Instituição)

__________________________________________

Nome do professor - (Titulação, nome e Instituição)

__________________________________________

Nome do professor - (Titulação, nome e Instituição)

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A BIOÉTICA NA EDIÇÃO DO GENOMA,

PENSAMENTOS SOBRE A NEO-EUGENIA

Igor César Pinto da Silva

RESUMO

Frente ao grande desenvolvimento científico, fez-se possível a manipulação genética,

fomentando inúmeras discussões éticas que envolvem o tema. Por conseguinte, surgem

diversos pontos controversos, tal qual a possibilidade da alteração estética ou se a prática

desses tratamentos alcançará a classe social mais baixa da sociedade, e a ética envolvida

nesses casos. Além disso, surge o fenômeno da Eugenia e da Neo-Eugenia, que carregam

ideias confrontantes com a atual comunidade mundial, em face de todo contexto histórico.

Nesse sentido, é substancial que todos esses debates sejam analisados sob a perspectiva da

bioética, a fim de que se englobem, de forma interdisciplinar, as questões morais que cercam

o assunto, elevando cientificamente e de forma sistemática o estudo em questão.

Palavras-chave: Ética. Eugenia. Genética.

BIOETHICS IN GENE-EDITING, THOUGHTS ABOUT NEO-EUGENICS

ABSTRACT

Faced with the great scientific development, it was made possible the genetic manipulation,

raising ethical discussions that involve the subject. Therefore, controversial points arise, such as

the possibility of aesthetic alteration or whether these practices can include the lowest social

class of society and the ethics involved in these cases. Furthermore, the phenomenon of Eugenics

and Neo-Eugenics appears, which carry ideas confronting the thinking of the international

community in the face of the entire historical context. In this sense, it is substantial that all these

debates are analyzed from a bioethical perspective, so that the moral issues surrounding the

subject are examined in an interdisciplinary way, elevating the study scientifically and

systematically.

Keywords: Ethics. Eugenics. Genetics.

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1 INTRODUÇÃO

A Medicina, no curso de sua história, buscou promover a saúde e prevenir doenças;

disso decorre todo seu avanço, juntamente com o progresso tecnológico. Com isso, surge o

estudo do material genético humano e, consequentemente, a manipulação genética, que

consiste em compreender e modificar genes com o objetivo de desenvolver tratamentos,

fortalecendo genes e até evitando distúrbios genéticos.

A edição genética possibilitou que doenças fossem evitadas e eliminadas do

organismo humano, mas também se expandiu na questão estética, tornando viável a

modificação de gene nesse sentido. Assim, há inúmeros benefícios que proporcionam a boa

qualidade de vida, sobrepujando a saúde e, logo, ensejando a dignidade humana.

Ocorre que essa evolução nas pesquisas e em sua prática ocasionou o surgimento de

incontáveis questionamentos, tais quais os que dizem respeito à ética desses procedimentos. A

partir disso, a Bioética indaga se aqueles que sofreriam manipulação genética em sua estética,

antes mesmo de seu nascimento, gostariam de possuir tais atributos escolhidos por seus pais

ou qual seria a acessibilidade a esses tratamentos, se alcançariam tão somente as classes mais

abastadas ou também chegaria aqueles com menor poder aquisitivo.

Além disso, poderia o Estado, a partir de seus sistemas básicos de saúde, investir na

execução da manipulação? Apesar de essas questões serem fundamentais dentro do tema, o

presente trabalho transcenderá essas problemáticas e enfrentará a Eugenia. Esse movimento

científico-social que foi dividido na eugenia positiva e na eugenia negativa e se tornou

controverso com o tempo. Caiu em desgraça quando os atos praticados pelo Partido Nazista,

em uma eugenia negativa, no curso da Segunda Guerra Mundial, violaram os direitos

humanos, ferindo toda a comunidade global.

Agora, na virada do século, ressurge em uma nova forma, denominada neo-eugenia,

em que e iniciada uma nova discussão acerca desse polêmico tema.

2 DA EDIÇÃO GENÉTICA

Há muito tempo, usa-se do conhecimento advindo da ciência para melhorar as

condições da vida humana em um todo, procurando estender a existência ao máximo ao

encontrar meios para imunizar de doenças ou, ao menos, curar de enfermidades. Pensando um

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ponto de vista histórico, a Penicilina foi descoberta a menos de cem anos e, até tal momento,

uma pequena infecção poderia levar à morte e doenças consideradas fatais como a sífilis, a

gonorreia, a febre reumática e a tuberculose, finalmente, tiveram uma cura.

A edição genética que antes era impossível, realizável apenas em filmes que

retratavam sociedades utópicas ou distópicas, é atingível. Com a manipulação do Ácido

Desoxirribonucleico (DNA), é possível retirar uma característica “indesejada” ou até alterar

uma sequência do código genético, sendo essa a grande promessa para a medicina e a

agricultura no futuro. (DEWITT et al., 2017)

Em 2012, a técnica chamada de CRISPR-Cas9 foi finalmente aprimorada para uso

prático e, desde então, foram realizados experimentos que criaram cachorros com musculatura

maior, amendoins sem o gene que causa a alergia, um trigo que não é atacado por pragas, e

claro, a edição do genoma humano. (GENOME EDITING: AN ETHICAL REVIEW, 2016)

2.1. A TÉCNICA CRISPR-CAS9

As “Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas”, ou

CRISPR, sua sigla em inglês, é um sistema que ocorre no genoma de certas bactérias e

funciona como indicador para a enzima Cas9. Uma sequência-guia de Ácido Ribonucleico

(RNA) é introduzida nesta enzima, deixando-a com a capacidade de cortar precisamente o

DNA para a manipulação, criando um “bisturi molecular programável”, para que essa parte

especifica do DNA possa ser preenchida com outra informação. (CRIBBS; PERERA, 2017)

É possível verificar, no quadro 1, demonstrada abaixo, como é feito esse processo de

maneira simplificada, mas, é importante perceber que, após a sequência específica ser

“recortada”, além de silenciar ou reparar tal gene, é possível alterá-lo completamente, abrindo

possibilidades para a cura de doenças genéticas, a imunização de doenças que podem ser

contraídas durante a vida ou até alterações físicas e estéticas.

Quadro 1 – A utilização do CRISPR-Cas9 para manipulação do genoma

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Fonte: (DANTAS, 2019)

No artigo “CRISPR, the disruptor” (LEDFORD, 2015), verificam-se diversas

maneiras de uso dessa engenharia genética, por exemplo, criar alterações no genoma de

mosquitos Aedes aegypti para que a espécie pare de transmitir doenças, e fazendo a alteração

do genoma por meio de um propulsor genético em alguns milhares de mosquitos para uma

forma dominante sem a transmissão. Em pouco tempo, todo o ecossistema estaria livre dos

insetos transmissores, mas assim toda uma espécie seria alterada, como todo o meio ambiente

ao redor, fazendo um pequeno grupo de cientistas tomarem uma decisão pelo planeta todo,

tese amplamente estudada no artigo “Genome Engineering with CRISPR-Cas9 in the

Mosquito Aedes aegypti”, de Kistler, Vosshall e Matthews (2015).

A técnica também tem sido amplamente estudada no campo da agricultura, tornando a

produção com maior performance, com crescimento da biofortificação nas plantas, sua

resistência contra pragas e mais caminhos, apresentados, por exemplo, no artigo: “Use of

CRISPR systems in plant genome editing: toward new opportunities in agriculture”.

(RICROCH; CLAIRAND; HARWOOD, 2017).

Em julho de 2019, foi publicado um artigo científico chamado “Sequential LASER

ART and CRISPR Treatments Eliminate HIV-1 in a Subset of Infected Humanized Mice”.

Nele, é demonstrado como é eliminado o HIV de um rato, sendo que, atualmente, os estudos

avançaram para primatas e, com o possível sucesso desses, a futura realização em humanos.

Talvez, seja a primeira chance real de cura para o HIV. (DASH et al., 2019)

São cristalinos os avanços que a técnica do CRISPR-Cas9 já trouxe, e ainda vai trazer

à sociedade, mas ainda se vive em um momento de estudo e aprendizado. Não se cogita a

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banalização da técnica e a utilização em áreas que não vão para o desenvolvimento do

coletivo, mas sim para o uso individual.

2.2. A LINHA TÊNUE NA EDIÇÃO GENÉTICA: AS DOENÇAS, A ESTÉTICA E O

ELITISMO GENÉTICO

Tratamentos revolucionários e individualizados fazendo cânceres intratáveis entrarem

em remissão. Um potencial gigantesco para tratamento de doenças genéticas como as

distrofias musculares, cegueira congênita, fibrose cística e doença falciforme. Um método de

imunizar geneticamente a pessoa contra diabetes, HIV, ebola e até a gripe. O fim de

síndromes falhas genéticas. Esses são alguns dos benefícios apresentados com a evolução da

engenharia genética e seu uso na medicina.

Apesar dos tratamentos promissores, em se tratando desse tema, eles são, em sua

maioria, experimentais e com o valor exorbitante quando aprovados para o público em geral,

não havendo acessibilidade para população. Um elitismo genético seria criado, em que apenas

as famílias mais ricas teriam linhagens livres de doenças genéticas.

Dois exemplos da terapia genética já foram desenvolvidos e abertos ao público pela

empresa “Spark Therapeutics”, e eles confirmam tal apreensão. O primeiro deles foi a

distribuição do Spinraza, tratamento para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME

5q), que, no ano inicial, tem valor de US$ 750.000,00 e mais US$ 375.000,00 nos anos

seguintes, para uma doença degenerativa que dá um prazo de vida real à pessoa (PICCHI,

2016). O segundo foi o Luxturna, para pessoas com Distrofia Retiniana Associada à Mutação

Bialélica do Gene RPE65, doença que leva à cegueira na juventude, tendo um custo de US$

850.000,00 (DARROW, 2019).

A partir dessas considerações, é essencial atentar-se aos Artigos 4º e 6º da

“Declaração Universal Sobre O Genoma Humano e Os Direitos Humanos” (UNESCO,

1997):

Artigo 4 – O genoma humano em seu estado natural não deve ser objeto de

transações financeiras.

Artigo 6 – Nenhum indivíduo deve ser submetido à discriminação com base em

características genéticas, que vise violar ou que tenha como efeito a violação de

direitos humanos, de liberdades fundamentais e da dignidade humana.

Considerando-se o apresentado, a violação dos dois artigos da Declaração seria um

caminho natural ao que se vive momentaneamente. Com a manipulação genética, o genoma

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será objeto de transações e, com um subsequente elitismo genético, a discriminação genética

seria impendente.

Também há de se mencionar que, com a possibilidade de qualquer edição genética, um

dos possíveis “progressos” seria a manipulação estética, podendo escolher a cor de pele,

cabelos, olhos, altura etc., podendo aumentar as distorções sociais, aumentar a discriminação

genética e reduzir a diversidade de nosso povo. Pais que desejam filhos “atletas” teriam a

possibilidade de o “planejarem” sem os genes da miostatina, por exemplo, que limita o

crescimento muscular, como já feito em coelhos e porcos por Wang et al. (2015). Mas será

que o filho desejará ser um atleta? É ético escolher para ele antes mesmo de sua concepção?

3 A EDIÇÃO GENÉTICA SOB O VÉU DA BIOÉTICA

A Bioética teve seu nascimento em meados do século XX, junto ao crescimento de

tecnologias médicas e científicas que faziam alterações e descobertas sobre nosso corpo,

como transplantes, psicofarmacologia, diagnóstico da morte cerebral, pré-natal, entre outros.

Quando o ser humano tem um conhecimento mais profundo sobre si, a sua herança genética,

tudo muda (MALUF, 2010).

Etimologicamente, segundo a “Encyclopedia of bioethics”:

Bioética é um neologismo derivado das palavras gregas bios (vida) e ethike (ética).

Pode-se defini-la como sendo o estudo sistemático das dimensões morais - incluindo

visão, decisão, conduta e normas morais - das ciências da vida e do cuidado da

saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto

interdisciplinar. (REICH, 1995)

Como se vê, a Bioética é intrínseca à edição genética, embora esta seja mais nova,

desde seu início, esteve banhada nos princípios que regem aquela e tais princípios foram

primeiramente feitos pelo Congresso dos Estados Unidos em sua Comissão Nacional em

1978, sendo eles:

- Princípio da autonomia e respeito às pessoas por suas opiniões e escolhas, segundo

valores e crenças pessoais;

- Princípio da beneficência, que traduz na obrigação de não causar dano e de

extremar os benefícios e minimizar os riscos;

- Princípio da justiça ou imparcialidade na distribuição dos riscos e dos benefícios,

não podendo uma pessoa ser tratada de maneira distinta de outra, salvo haja entre

ambas alguma diferença relevante (NAMBA, 2009, p. 11).

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Claro que nos mais de quarenta anos da criação dos princípios, a tecnologia evoluiu

exponencialmente, mas os princípios ainda precisam ser apreciados e levados em

consideração. Deve-se remeter o Princípio da Justiça ao elitismo genético supracitado, pois,

senão, só uma pequena parcela da população que dispõe de maior poder aquisitivo poderia

usufruir dessas evoluções da engenharia genética, contrariando a distribuição dos benefícios,

não podendo, uma pessoa, ser tratada diferentemente da outra por mero valor virtual que é a

moeda.

Ainda assim, os princípios que são do século passado estão mais atualizados que a

Legislação Brasileira, observa-se no Artigo 6º, inciso III da Lei de Biossegurança

(11.105/2005):

Art. 6º Fica proibido:

III – engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião

humano;

A título de exemplificação, na Ucrânia e no México, onde não existem legislações

impeditivas sobre a engenharia genética em embriões e em zigotos humanos, a “Síndrome de

Leigh”, doença mitocondrial que impede mulheres de se reproduzirem, teve uma maneira de

ser sobrepujada, uma vez que o núcleo do óvulo da mãe é retirado e colocado em um óvulo de

uma doadora saudável, mas, sem núcleo, esse óvulo de “duas mães” é inseminado com o

espermatozoide do pai e, assim, já estão nascendo os bebês com três genitores, porém

saudáveis (REARDON, 2017). Deve-se levantar a questão ética de termos uma criança com

três pais naturais, mas também é crucial pensar na dignidade do casal e no seu direito à

reprodução.

Com o propósito de analisar a edição genética sob a luz da bioética, dividi-la-á em

caminhos e formas de estudos diferentes. A primeira seria de uma forma micro, em que é

possível examinar de forma individual a situação, como o exemplo no capítulo anterior. É

ético manipular os genes do meu filho para que tenha mais musculatura, pois quero um filho

atleta? É ético fazer alterações no genoma para que o resultado final seja um ser humano que

praticamente não carregue traço dos seus pais, tendo suas características estéticas alteradas?

A segunda seria uma forma macro, que, no futuro, embora as doenças as quais ainda

assolem o mundo tenham desaparecido em uma classe mais abastada da sociedade, a

diversidade diminuirá, por exemplo, porque ter cabelo ruivo pode ser considerado uma

doença que será extinta, por ser mutação da proteína MC1R, que também aumenta a chance

de desenvolver Parkinson e melanoma. Ter síndromes como a de Down, o nanismo e a

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cegueira podem ser consideradas doenças ou só outra maneira de viver o mundo? A

desigualdade social aumentará de forma galopante, assim como a discriminação genética, sem

contar os milhões de embriões que serão descartados. Eles podem ser tratados como seres

vivos? No final, viver-se-á em um mundo de “Gattaca”.

Menos de um século depois do ápice da Eugenia alemã, estaríamos revivendo mais

uma vez esta possibilidade?

3.1. BREVE HISTÓRICO DA EUGENIA

A Eugenia pode ser considerada um movimento científico-social iniciado no final do

século XIX por Francis Galton, o qual formava diretrizes propostas ao estudo e à manipulação

de traços da hereditariedade humana para melhorar suas características, delimitando-as por

raças, almejando principalmente o aprimoramento da capacidade mental. Sob a ótica do

aperfeiçoamento racial, era obrigatório que qualquer pessoa com algum tipo de deficiência ter

sua reprodução impedida, sendo, imperativamente, esterilizada. (MASIERO, 2005)

Recordemo-nos que, por eugenia, se entendem os procedimentos capazes de

melhorar a espécie humana. Como é sabido, foi Francis Galton quem utilizou o

termo (eugenics), no Reino Unido, em fins do século passado, e a definiu como a

"ciência que trata de todos os fatores que melhoram as qualidades próprias da

raça, incluídas as que a desenvolvem de forma perfeita." (...) Galton propugnava o

recurso a todos os fatores sociais utilizáveis que pudessem melhorar as qualidades

raciais, tanto físicas, como mentais das gerações vindouras. (CASABONA, 1999)

No início do Século XX, a eugenia foi separada em dois rumos, a eugenia positiva e a

eugenia negativa. A primeira tratava de formas para estimular a “boa reprodução” em

humanos, com características preferíveis à sociedade, fomentando matrimônios de casais

selecionados, ou, mais recentemente, coletando gametas de pessoas com físico ou intelecto

excelentes. (JUNGES, 1999)

Ao seu turno, à eugenia negativa caberia selecionar as características “indesejáveis à

sociedade”. Os métodos dessas práticas eram de esterilização em massa, abortos e até a morte

do recém-nascido para as tais “raças inferiores”. Para Casabona, a proteção de nossa espécie e

a melhora das condições sociais e da coletividade foram a justificativa do pensamento

eugênico principalmente no início do século XX, nos Estados Unidos “onde um influente

conjunto de intelectuais e políticos estava preocupado com a deterioração da ’qualidade’

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biológica da população frente a qual deveria prevalecer o interesse da espécie”.

(CASABONA, 1999, p. 171-172)

Na mesma velocidade em que os pensamentos eugênicos cresceram no início do

século XX, eles decaíram nas décadas de 30 e 40, com a grande eugenia do partido nazista

alemão que exaltava a raça ariana, que, no momento pré-guerra, esterilizou e matou em torno

de 700.000 pessoas e, no pós-guerra, as estimativas recentes apontam que 6 milhões de judeus

foram assassinados, além de 11 milhões de ciganos, poloneses, comunistas, homossexuais,

prisioneiros de guerra soviéticos, Testemunhas de Jeová e deficientes físicos e mentais.

3.2. A NEO-EUGENIA

Com a evolução do nosso conhecimento sobre o genoma humano e o aperfeiçoamento

da engenharia genética e da reprodução assistida, é criado um potencial pensamento eugênico

no senso comum, e é inevitável a reformulação do conceito clássico para reapresentá-lo com

um novo termo, a chamada neo-eugenia.

Finalmente, a chamada engenharia genética ou do ADN recombinante, da mesma

maneira que pode - ou poderá - ser utilizada como instrumento terapêutico (terapia

gênica em linha somática e em linha germinal), com sua complexa problemática

ética e jurídica, é outro meio de aperfeiçoamento da espécie ou de sua seleção, como

procedimento de eugenia positiva, cujas enormes possibilidades ficam abertas no

futuro. Todas estas técnicas ou meios, ou alguns deles, podem ser o pano de fundo

do ressurgimento das correntes eugênicas de fins deste século: a neo-eugenia.

(CASABONA, 1999)

A neo-eugenia positiva é a expressão precisa do já mencionado uso do CRISPR-Cas9

para a manipulação genética do embrião com fins de retirar qualquer possibilidade de doenças

ou síndromes do feto e, também, sua utilização para alteração estética a fim de um maior

enquadramento e aceitação social. É a nova forma de retratar a “boa reprodução” humana, o

fim de “defeitos” genéticos, a criação de uma raça realmente superior, sendo, dessa forma, um

meio de discriminação entre os indivíduos. Como bem pontuado por Ivana Fraga e Mônica

Aguiar no artigo “Neo-eugenia: o limite entre manipulação gênica terapêutica ou

reprodutiva e as práticas biotecnológicas seletivas da espécie humana”:

A neo-eugenia, diversamente da tradicional, além de utilizar métodos ainda não bem

conhecidos e acessíveis para a grande maioria da população, pelo menos em nosso

país, se reveste de incertezas e temores quanto ao futuro dos seres que a ela se

submetem como também no que diz respeito à evolução da espécie humana, uma

vez que interfere no curso natural do patrimônio genético humano. (FRAGA;

AGUIAR, 2010)

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Salienta-se que a neo-eugenia positiva traz a promessa da cura, do fim da transmissão

de doenças hereditárias, que, com o passar do tempo, seriam diminuídas ou erradicadas do

genoma humano, esquecendo-se do fim da diversidade causada pela prática e a afronta aos

direitos fundamentais individuais dos sujeitos nela envolvidos, como o direito à identidade

genética, quando as características de um indivíduo deixam de ser obra do acaso e passam a

estar sujeitas à vontade de terceiros. (FRANCO, 1996)

Sendo assim não é difícil reconhecer um ponto em comum entre a eugenia

tradicional e a neo-eugenia, uma vez que hoje, em função de interesses econômicos

e sociais se age da mesma maneira coercitiva que antes, quando se obedecia a uma

finalidade de purificação racial, sacrificando direitos individuais fundamentais em

atendimento a anseios coletivos. (FRAGA; AGUIAR, 2010)

Quando se trata da neo-eugenia negativa, vem à tona o chamado aborto eugênico, em

que o aborto pode ser realizado a qualquer momento desde que exista alta probabilidade de

que o nascituro seja portador de condição grave e incurável no momento do diagnóstico,

apoiada, por exemplo, na legislação francesa, com o chamado “Interruption médicale de

grossesse” (IMG). Há de se evidenciar que, com essa legislação, 77% dos fetos

diagnosticados com síndrome de Down são abortados e este número chega a 90% no Reino

Unido, 98% na Dinamarca e 100% na Islândia, ou seja, o feto ser diagnosticado com a

síndrome, em um desses países, é praticamente uma sentença de morte.

4 CONCLUSÃO

A partir dos tópicos analisados, é demonstrado que esse tema ainda é e será alvo de

incontáveis discussões científicas, tecnológicas e éticas. Todavia, o que se extrai é que a

tecnologia não dá pausas para tais debates, não espera que se conclua o que é ético ou não, o

que parece justo, certo ou até razoável. Pelo contrário, os estudos continuam e buscas

incessantes a fim de melhoria no nosso genoma seguem e são de extrema necessidade.

Por um lado, vê-se a importância desse crescimento visando à saúde humana, à cura de

doenças e um mundo melhor para se viver. Contudo, por outro lado, reconhece-se a

possibilidade de resgate às ideais e contextos extremamente perigosos à humanidade enquanto

raça, caso a chamada Neo-eugenia, seja em seu desdobramento positivo ou negativo, é vista

de maneira histórica como uma afronta aos direitos humanos, origem de debates éticos acerca

da manipulação genética.

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Ademais, constata-se que há grandes chances de ascensão das desigualdades racial e

social pela presença da neo-eugenia, pois o entendimento da possibilidade de uma raça

superior seja nos aspectos estéticos ou de saúde permitiria, até mesmo, o aborto daqueles que

não correspondem às expectativas. Também são salientadas as desigualdades no que diz

respeito à dissensão social, originada da falta de acessibilidade aos possíveis tratamentos pelas

classes menos abastadas, que não teriam poder aquisitivo para tal feito, originando um

elitismo genético.

O nó da questão das biotecnologias em reprodução humana é a dificuldade em

assumir e transignificar limites, criada pelo desejo de onipotência e pela oferta de

sentido, dado pelas próprias técnicas. (JUNGES, 2006)

Como José Roque Junges aborda em seu livro Bioética: hermenêutica e casuística, do

qual se extrai a citação acima, o desejo de melhorar e mudar a qualquer custo, sem a criação

de um limite nesse sentido, além de criar mais conflitos com a bioética, gera um conflito com

a própria sociedade. Claro que estas novas tecnologias para alteração de nosso genoma e até

de nosso ambiente tendem a ser benéficas para situações específicas, mas é fulcral que se

tome cuidado para que a pressa na utilização da técnica não seja uma reabertura da “Caixa de

Pandora”.

REFERÊNCIAS

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