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1 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS ANTÔNIO JOSÉ LOPES ALVES A CIENTIFICIDADE NA OBRA MARXIANA DE MATURIDADE: UMA TEORIA DAS DASEINSFORMEN TESE DE DOUTORADO APRESENTADA AO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DA UNICAMP PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE DOUTOR EM FILOSOFIA. ORIENTADOR: JOÃO CARLOS KFOURI QUARTIM DE MORAES ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO, E ORIENTADA PELO PROF.DR. JOÃO CARLOS KFOURI QUARTIM DE MORAES CPG, 27 de agosto de 2012.

A Cientificidade Na Obra Marxiana de Maturidade

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    ANTNIO JOS LOPES ALVES

    A CIENTIFICIDADE NA OBRA MARXIANA DE MATURIDADE:

    UMA TEORIA DAS DASEINSFORMEN

    TESE DE DOUTORADO APRESENTADA

    AO INSTITUTO DE FILOSOFIA E

    CINCIAS HUMANAS DA UNICAMP PARA

    OBTENO DO TTULO DE DOUTOR EM

    FILOSOFIA.

    ORIENTADOR:

    JOO CARLOS KFOURI QUARTIM DE MORAES

    ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE VERSO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO, E

    ORIENTADA PELO PROF.DR. JOO CARLOS KFOURI QUARTIM DE MORAES

    CPG, 27 de agosto de 2012.

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    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA POR

    CECLIA NICOLAU CRB8/3387 BIBLIOTECA DO IFCH

    UNICAMP

    Informao para Biblioteca Digital

    Ttulo em Ingls: The scientific character in the Marxs work maturity: a theory of forms of being

    Palavras-chave em ingls:

    Marx, Karl, 1818-1883 Criticism and interpretation Marxism

    Marxist philosophy

    Political science

    Categories (Philosophy)

    Epistemology

    rea de concentrao: Filosofia

    Titulao: Doutor em Filosofia

    Banca examinadora:

    Joo Carlos Kfouri Quartim de Moraes [Orientador]

    Armando Boito Junior

    Ester Vaisman

    Jorge Lus da Silva Grespan

    Mrcio Bilhanrinho Naves

    Data da defesa: 27-08-2012

    Programa de Ps-Graduo: Filosofia

    Alves, Antnio Jos Lopes, 1966-

    AL87c A cientificidade na obra marxiana de maturidade: uma

    teoria das Daseinsformen / Antnio Jos Lopes Alves.

    - - Campinas, SP : [s. n.], 2012.

    Orientador: Joo Carlos Kfouri Quartim de Moraes.

    Tese (doutorado) - Universidade Estadual de

    Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.

    1. Marx, Karl, 1818-1883 Critca e interpretao. 2. Marxismo. 3. Filosofia marxista. 4. Cincia poltica.

    5. Categorias (Filosofia). 6. Epistemologia. I. Moraes, Joo

    Carlos Kfouri Quartim de, 1941- II. Universidade Estadual de

    Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo.

  • A Comissao Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, em sessao publica

    realizada em 27 de agosto de 2012 , considerou o candidato ANTONIO JOSE LOPES AL YES aprovado.

    Este exemplar corresponde a redac;:ao final da Tese defendida e aprovada pela Comissao Julgadora.

    Prof. Dr. Joao Carlos Kfouri Quartim de Moraes

    Prof. Dr. Armando Boito Junior

    Prof. Dr. Ester Vaisman

    Prof. Dr. Jorge Luis da Silva Grespan

    :::r Prof. Dr. Marcio Bilharinho Naves -...

    Prof. Dr. Antonio Rago Filho

    Profa. Dra. Ligia Osorio Silva

    Profa. Dra. Monica Hallak Martins da Costa

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    Dedico este trabalho aos meus queridos filhos, Stefano,

    que chegou quando o itinerrio ainda estava em seu

    nascedouro, e Eleonora, que aportou em minha vida

    quando o roteiro j se conclua, e minha amada

    esposa, Sabina, companheira de afeto, intelecto e

    esprito, que com sua parceria e temperana suavizou a

    rudeza do caminho.

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    Agradeo em primeiro lugar, ao meu pai (in

    memorian), minha me e minha irm, queridos

    familiares. Em segundo lugar, ao Professor Quartim,

    orientador da presente tese, que com sua postura

    acadmica exemplar deu provas de que as diferenas de

    posio no redundam necessariamente no silncio

    indiferente ou na rotunda hostilidade. E, por fim, aos

    colegas do Grupo de Pesquisa Marxologia, que com as

    discusses travadas e observaes feitas em muito

    colaboraram para correo de rumos e esclarecimento

    de problemas.

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    Pois sim, com doutor erudito trato!

    O que ele prprio no apalpa, abstrato;

    O que no pega em mos, cousa nula,

    Ser mentira o que ele no calcula;

    O que no pesa, jamais ser vlido;

    O que no cunha, tem por traste esqulido.

    Mefistfeles, Doutor Faustus, Goethe.

    (...) toda a cincia seria suprflua se a aparncia e a

    essncia das coisas diretamente coincidissem.

    Marx, O Capital.

    Papel, em vez de ouro e de prata, um bem;

    To cmodo , sabe-se o que tem;

    No h da troca e regatear a praga,

    Com vinho e amor cada qual se embriaga;

    Para quem quiser metal, tem-se um cambista,

    E se faltar, cava-se em nova pista;

    Colares, clices, vendem-se em hasta,

    Com que o papel logo salda. Basta

    Para que ao ctico de asno se tache;

    Nada mais se requer: vingou a praxe.

    No imprio, assim, para sempre perdura,

    De ouro, papel e gemas a fartura.

    Mefistfeles, Doutor Faustus, Goethe.

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    RESUMO

    A presente tese resulta de pesquisa de doutoramento a qual teve por objeto o padro de

    cientificidade que orienta e estrutura a crtica marxiana da economia poltica em sua fase de

    maturidade. Nesse sentido, buscou-se apreender, compreender e explicitar o conjunto de

    elementos e determinaes conceituais a partir dos quais se organizou o pensamento de

    Marx no enfrentamento da decifrao do modo capitalista de produo da vida humana,

    bem como quando da tarefa de avaliao de pensadores e correntes da economia poltica

    que pretenderam explicar cientificamente o mundo da produo do excedente. A questo

    inicial a que se volta Marx precisamente explicitar a natureza do mais-valor, a forma da

    riqueza como capital, superando as aporias e inconsistncias que caracterizaram as

    aproximaes tericas dos economistas. O trabalho de investigao dos textos marxianos

    evidenciou a existncia de uma teorizao cuja base a definio do estatuto das categorias

    como Daseinsformen, Existenzbestimmungenen, como formas sociais de ser do existente,

    seja este ente, processo ou relao. As relaes sociais mesmas apareceram a partir desse

    horizonte como formas de existncia historicamente determinada dos indivduos sociais, de

    sua atividade e dos produtos desta. Essa determinao vai de encontro com o que a tradio

    das interpretaes marxistas, majoritariamente, assumia como base da exercitao cientfica

    de Marx: a dialtica hegeliana. Contrapondo-se a essa posio predominante, a pesquisa, e

    a tese que nela se arrima, intentou descortinar e revelar o carter da teoria marxiana acerca

    do capital, como uma analtica categorial das formas de ser da produo capitalista. No

    mbito do desenvolvimento da pesquisa, buscou-se ento determinar o mais precisamente

    possvel o que distingue essa analtica, a delimitao da differentia specifica do objeto da

    reflexo marxiana. Nesse contexto, o Forschungsweise marxiano, o seu modo de

    investigao, e no tanto o seu modo de apresentao constante de O Capital, foi

    prioritariamente considerado como o centro da prpria atividade cientfica de Marx. Assim,

    o Darstellungsweise revelou-se como instncia determinada, e no determinante do

    discurso marxiano, estando sempre subsumida ordem da analtica da forma do existente

    em questo a cada momento, bem como das relaes que aquele guarda com outras

    determinaes dentro de um complexo particular. Resulta disso, que a determinao mesma

    do momento preponderante no tributria da eleio a priori de uma categoria em

    particular tomada como princpio ou chave explicativa. Ao contrrio, depende da marcha da

    analtica como tal, da articulao que preside o ser da coisa como concreto efetivamente

    existente, independentemente da teoria ou dos procedimentos. A esse respeito, a prpria

    questo de mtodo acabou por ser reposicionada em funo disso, no sendo mais

    entendida como ncleo da cientificidade, mas como momento igualmente determinado pelo

    talhe do objeto. O que encaminhou a tese da existncia de um antimtodo no pensamento

    marxiano.

    Palavras-chave: Marxologia, Cientificidade, Crtica da Economia Poltica, Formas de ser.

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    ABSTRACT:

    This thesis results from doctoral research which had the object of scientific standard and

    structure that guides the Marxian critique of political economy at its stage of maturity.

    Accordingly, we sought to learn, understand and explain the range of conceptual and

    determinations from which was organized Marx's thought in coping with the unraveling of

    the capitalist mode of production of human life, and when the evaluation task of thinkers

    and currents of political economy that sought to explain scientifically the world's

    production surplus. The threshold issue that turns Marx is precisely explain the nature of

    surplus-value, the shape of wealth as capital, overcoming the aporia and inconsistencies

    that have characterized the theoretical approaches of economists. The research of the

    Marxist texts revealed the existence of a theory whose foundation is the definition of status

    categories as Daseinsformen, Existenzbestimmungen as social forms of being of the

    existent, is this entity, process or relationship. The same socials relations that emerged from

    the horizon as the existence of historically determined forms of social individuals, their

    activity and products thereof. That determination runs counter to the tradition of Marxist

    interpretations, mostly, assumed as the basis of scientific exercitation Marx: the Hegelian

    dialectic. Opposed to this dominant position, research, and the thesis that it is anchored,

    brought uncover and reveal the character of the Marxian theory of capital as an analytical

    categorical ways of being of capitalist production. In developing the survey, we sought then

    to determine as precisely as possible what distinguishes this analysis, the delimitation of the

    differentia specifica of the object of Marxist reflection. In this context, the Marxian

    Forschungsweise, its mode of inquiry, rather than its mode of presentation contained in the

    Capital, was primarily considered as the center of scientific activity itself of Marx. Thus,

    the Darstellungsweise proved to be instance specific, not a determinant of Marxian

    discourse, being always subsumed to the order of the analytical form of matter exists in

    every moment, as well as that of relations with other custody determinations within a

    particular complex. It follows that the same determination of the tax is not currently leading

    the election in advance of a particular category or taken as a key explanatory principle.

    Rather, it's the march of analytics as such, who chairs the joint is the real thing as actually

    existing, regardless of theory or procedures. In this respect, the very question of method

    turned out to be repositioned because of this, no longer seen as core scientific, but also time

    as determined by the intaglio of the object. What forwarded the theory that there was an

    antimetod in Marxian thought.

    Key words: Marxology, Scientific, Critique of Political Economy, Forms of Being.

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    Sumrio:

    Introduo: Para uma crtica do Mtodo da Suspeita ............................................... 15

    Parte 1

    Captulo 1: Arqueologia Crtica do Problema I. Questes Introdutrias ................................................................................................... 33

    II. Pressupostos Crticos .................................................................................................... 35

    III. Kautsky e a Aproximao Naturalista ........................................................................ 42

    IV. Engels e as Leis da Dialtica ...................................................................................... 54

    V. Lnin ............................................................................................................................ 63

    VI. A Interpretao Logicista ........................................................................................... 71

    Captulo 2: As Categorias como Daseinsformen I. As Categorias e as Coisas .............................................................................................. 89

    II. A Centralidade da Differentia Specifica ..................................................................... 100

    III. Differentia Specifica e Produtividade Analtica ....................................................... 115

    IV. Modos e Formas: precises conceituais da crtica marxiana da economia poltica.. 128

    Captulo 3: Crtica Marxiana da Questo de Mtodo I. Fundamento e Mtodo ................................................................................................. 145

    II. A Crtica do Mtodo. .................................................................................................. 156

    III. Para Alm de Hegel: o fundamento materialista da crtica ....................................... 169

    IV. A Determinao Social do Pensamento e o Problema do Standpunkt ...................... 176

    Parte II

    Captulo 4: O Valor e suas Formas I. A Forma Mercadoria como Unidade do Diverso ........................................................ 195

    II. O Valor como Determinao ...................................................................................... 204

    III. Dinheiro, Circulao e Realizao ............................................................................ 224

    IV. O Capital como Totalidade ....................................................................................... 241

    Captulo 5: As Relaes Sociais como Formas de Ser: a questo do trabalho produtivo

    I. Colocao do Problema ............................................................................................... 267

    II. A Forma Social da Produo ...................................................................................... 265

    III. A Precedncia da Determinao pela Forma ............................................................ 283

    IV. O Produtivo como Carter da Atividade .................................................................. 296

    Captulo 6: Algumas Leituras num Roteiro de Pesquisa Apresentao ................................................................................................................... 321

    I. Christopher Arthur e Bertel Ollman ............................................................................ 323

    II. Giannotti e Ruy Fausto ............................................................................................... 338

    III. Lukcs ....................................................................................................................... 350

    IV. Althusser ................................................................................................................... 364

    Concluso Questes Finais ............................................................................................................... 385

    A Metfora do Anatomista .............................................................................................. 386

    Da Possibilidade do Conhecimento Objetivo da Realidade Social ................................ 392

    Referncias Bibliogrficas ............................................................................................... 399

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    INTRODUO

    Para uma crtica do Mtodo da Suspeita

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    oportuno no momento em que cabe expor inicialmente, e de modo bastante

    sumrio, os principais pressupostos, elementos e questes envolvidas num trabalho de

    pesquisa textual do pensamento marxiano, ter bem claro a justificativa apresentada pelo

    prprio Marx para no incluir uma introduo geral em seu Para a Crtica da Economia

    Poltica de 1859. Argumentava o pensador alemo que ao principiar-se um escrito com

    uma exposio de tal natureza, corria-se o risco de anteciparem-se os resultados da

    investigao, sem que as mediaes e proposies neles pressupostas pudessem ainda ser

    devidamente esclarecidas. Como no se pode optar-se aqui por no faz-lo, dado o carter

    do trabalho que trazido a pblico, ao menos tentar se considerar a advertncia marxiana

    de, na medida do possvel, no se adiantar aquilo que somente o desenvolvimento da

    anlise dos textos pode efetivamente corroborar.

    Uma vez posta essa ressalva primeira, necessrio explicitar o porqu do esforo de

    investigao conceitual empreendido, tanto no que tange s suas origens particulares,

    quanto com relao justificativa sobre a qual se acha assentada. Nesse sentido, no

    obstante a importncia que pode ser reconhecida ao tema da cientificidade da crtica da

    economia poltica, a posio deste, do modo como se o fez pretende-se prov-la como

    uma teoria das Daseinsformen (formas do ser) dependeu de circunstncias bastante

    peculiares ao autor da propositura. Por um lado, a definio mesma do carter do padro de

    cincia que subjaz crtica marxiana da economia poltica, deve sua figura discursiva ao

    resultado obtido quando em pesquisa de mestrado, o investigador chegou concluso de

    que, para Marx, a categoria da individualidade seria a forma de ser do ser social1.

    Formulao essa cujo arrimo se encontra na indicao marxiana encontrada nos Grundrisse

    objeto da pesquisa anterior segundo a qual as categorias seriam Daseinsformen,

    Existenzbestimmungenen. Nesse sentido, a determinao do prprio estatuto das categorias

    em Marx, bem como o modo como que estas integram a teorizao da crtica da economia

    poltica, apareceu como um desafio necessrio compreenso do pensamento marxiano.

    1 Para maiores esclarecimentos remete-se a esse particular ao texto da dissertao em tela A Individualidade

    nos Grundrisse de Karl Marx, dissertao de mestrado, UFMG, Belo Horizonte, 1999, p. 7-8 bem como ao do artigo desta originado A individualidade Moderna nos Grundrisse, In Ensaios Ad Hominem 1, Tomo IV, Estudos e Edies Ad Hominem, So Paulo, 2001.

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    Como consequncia, emergiu das leituras e elaboraes preparatrias a uma proposta de

    pesquisa a designao da cientificidade marxiana como teoria das formas de ser. Por outro

    lado, a propositura dessa hiptese que animou a pesquisa e se acha exposta na presente tese

    tambm procede dos desenvolvimentos tericos levados a efeito por Jos Chasin, dentro do

    projeto mais amplo de Retorno a Marx. No caso especfico do presente trabalho esse

    volteio aos prprios termos e textos de Marx tem por objetivo o esclarecimento do talhe de

    sua cientificidade, assim como o delineamento do conjunto de questes e temas

    correlacionados.

    No se ignora que ao intuito de tomar como objeto de investigao o carter da

    cientificidade marxiana exercitada em sua obra madura, no contexto de sua crtica da

    economia poltica, pode-se levantar algumas objees. Dentre as possveis redarguies

    proposta est a de que o seu tema talvez esteja esgotado; e isso em um duplo sentido.

    Primeiramente, poder-se-ia afirmar que, dados os desdobramentos histricos do ltimo

    sculo e meio, a posio marxiana no estaria mais em condies de fazer frente aos

    desafios do tempo social. Em segundo lugar, a pergunta pela resoluo da cincia de Marx

    estaria, pois, ela mesma exaurida pelas discusses no interior da tradio marxista; tese do

    mtodo dialtico marxista, no haveria ento mais nada a acrescentar. Com relao

    primeira objeo, cabe uma dupla observao. A cada advento de crise que assoma e

    baloua a normalidade da produo capitalista, os enunciados marxianos acabam sendo

    aqui e acol referidos, ao menos para pretensamente serem desacreditados e afastados. De

    certo modo, a emergncia, continuada e reiterada, de anomias ao funcionamento pleno do

    capital termina esta mesma por recolocar se no seriam estes pretensos escapes da curva,

    em verdade, a forma mesma de o capital operar como modo de produo histrico-social da

    vida humana. Em outros termos, a crise aparece, nem que seja pela sua insistente

    repetio e pela gravidade com que se manifesta em diversos momentos, como a via

    normal, o padro, de realizao da riqueza como capital. Algo que a crtica marxiana da

    economia poltica afirma explicitamente. Frente a isso se torna deveras difcil tratar o

    pensamento de Marx como um esplio empoeirado ou um cadver enterrado e entregue

    pura putrefao. No que respeita segunda objeo, a qual , por assim dizer, de natureza

    interna ao marxismo tanto vertente acadmica como partido terico-prtico, decisivo

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    assinalar que a suposta resoluo da ordem de procedimentos de O Capital pela sua

    remisso sem mais dialtica especulativa de Hegel se mostrou, desde seus momentos

    primevos, como algo no mnimo inconsistente. Haja vista o enorme esforo que diversos

    autores da tradio marxista, dentre os quais verdadeiros gigantes do pensamento,

    empreenderam para tornar factvel e aceitvel um Marx hegeliano. Essa tarefa herclea

    incluiu e ainda inclui desde a simples subsuno da reflexo marxiana aos ditames da

    dialtica como padro de pensamento at proposituras extremamente sofisticadas, seja do

    ponto de vista propriamente filosfico seja daquele do travejamento de uma forma

    estilstica de leitura. O grande problema que se pode depreender de todo o roteiro de

    interpretaes que reforam, e s vezes foram tambm, o lao de Marx a Hegel, reside na

    incongruncia flagrante entre o que o autor de O Capital aponta como o fundamento

    (Grundlage) de sua teoria e aquele sobre o qual se ergue a monumental arquitetnica do

    filsofo do Esprito. Em geral, o que se observa o recobrimento do modo de pesquisa pelo

    modo de apresentao das categorias. A dialeticidade da exposio se sobrepe sobre o

    teor analtico ao conjunto de pressuposies no epistmicas da extrao e compreenso

    das categorias como formas da efetividade. Some-se a isso, a questo candente de buscar

    enquadrar Marx dentro dos cnones a partir dos quais o pensamento filosfico opera com a

    questo do conhecimento, ao menos desde Descartes o mtodo como o princpio da

    cognio cientfica e as diversas concepes metafsicas de sujeito e objeto. Emaranhado de

    vieses e de posturas filosficas algo inerciais que constitui o que se pode denominar,

    analogicamente, de imperialismo gnosiolgico, a tendncia filosoficamente preponderante

    na tradio de pretender dar resoluo autnoma ao problema do conhecimento, e a partir

    dele recolocar em perspectiva todas as demais candencias do pensamento (CHASIN, 2009,

    P. 26-27). Acerca dessa srie de problemas, a anlise textual e a discusso com a tradio

    se voltou nos trs primeiros captulos da presente tese, para o qual se remete com o fito de

    maior aprofundamento.

    Um segundo ponto a esclarecer, ou encaminhar uma via de aclaramento, o

    referente traduo de Daseinsformen por formas de ser. Longe de definir-se como uma

    mera questo filolgica ou de estilo, essa aparente firula terminolgica guarda, em

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    realidade, uma relao profunda e essencial para com o tema da pesquisa. Afora o desafio

    de ao menos verter decentemente um termo ou vocbulo de uma lngua extremamente

    sinttica para o vernculo luso do pesquisador2, reside no entendimento de seu sentido

    preciso a possibilidade de compreenso do estatuto marxiano das categorias. O que poderia

    tornar-se um problema verdadeiramente indisputvel em Marx e at mesmo com certa

    ressonncia metafsica ou escolstica, dirige diferentemente sua resoluo com base nos

    prprios elementos textuais. Na passagem da Einleitung zun den Grundrisse em que a

    referida caracterizao das categorias aparece, Marx ape a mesma, como acima j se

    mencionou, um complemento cujo talhe ultrapassa a sinonmia e se coloca como um

    desdobramento terico. Ao acrescentar Existenzbestimmungenen delimitao das

    categorias como Daseinsformen, Marx indica o carter mesmo das formas. A indicao

    marxiana se distancia num s movimento do paradigma metafsico, segundo o qual as

    categorias so formas puras e autnomas, figuraes da razo autossustentada, bem como

    do entendimento empirista ou pragmtico, para o qual aquelas seriam somente esquemas

    abstratos de pensamento. Contrariamente aos dois tradicionais disputantes, as formas se

    definem em Marx como determinaes de existncia, o que as envia enfaticamente aos

    entes ou processos objetivos, ao finito concretamente existente.

    O ncleo problemtico do vocbulo se situa obviamente no substantivo Dasein,

    principalmente em virtude da sua incorporao tcnica ao glossrio particular de uma das

    correntes mais influentes do ltimo sculo. A traduo por ser-a carrega um lastro

    demasiado complicado em se tratando da compreenso do pensamento marxiano. Enquanto

    nas verses nascidas de Heidegger, e mesmo no seu nascedouro, o Dasein traz consigo

    explicitamente o sentido de derrelito, de algo lanado no mundo, desamparado, no caso

    marxiano, a determinao social aparece como contedo precpuo e determinante. Alm

    disso, se no caso do autor de Ser e Tempo parece viger, apesar das declaraes em

    contrrio, uma delimitao antropolgica, no que tange a Marx, o Dasein designa o ente

    2 Com referncia a essa questo vide a maneira extremamente circnvaga pela qual uma das duas tradues

    brasileiras completas da Introduo de 1857, at o presente momento, verte Daseinsformen: formas de modo de ser. Cf. Marx, Karl. Introduo [ Crtica da Economia Poltica], In Coleo Os Pensadores, Volume Marx, Editora Abril, So Paulo, 1974, p. 127. Sobre essa verso voltar-se- mais frente, na parte dedicada

    discusso da questo de mtodo em Marx.

  • 21

    concreto realmente existente em geral, prximo ao que seria, por exemplo, o Gegenstand.

    O termo em tela aponta para o que objetivamente, de modo independente, autnomo com

    relao aos modos de sua apreenso, e no de sada a uma forma especfica de existncia,

    mediada j por algum nvel ou tipo de vivncia ou prescincia. Assinale-se igualmente o

    cunho precisamente determinado do ente ativo, o homem concreto sempre, homens

    concretos em sua relao com o mundo, o que faz distar o pensamento marxiano das

    sendas heideggerianas. Delimitao essencial ao pensamento marxiano desde os seus

    primeiros momentos, determinao objetiva do carter do ente/processo existente algo

    observvel, juntamente com o talhe eminentemente ativo do comportamento dos indivduos

    sociais, j nos Manuscritos de 1844, mas de modo mais concretizado e desdobrado nas Ad

    Feuerbach e na Die deutsche Ideologie. Coisa que no abandonada na maturidade, mas

    ganha um contedo determinativo mais concreto, porquanto passe a integrar a decifrao da

    anatomia do moderno modo de produo capitalista, na crtica da economia poltica. Nesse

    sentido, a pesquisa assume aqui explicitamente a identidade entre ser e existente, a juno

    essencial do ser com aquilo que . O que no exclui, evidentemente, a acepo de ser como

    predicado ou definio particular o ser de alguma coisa, mas faz com que esse sentido

    se subsuma ao primeiro. Desse modo, a definio conceitual depende sempre da forma

    concreta, particular e finita do existente, no um ato puro do intelecto, nem tem sua

    validade atestada por uma suposta homologia essencial com uma razo substantivada.

    Assim, formas de ser no tem a significao lassa do referimento a um algo indeterminado

    ou inespecfico. Ao contrrio, a determinao particular e precisa de um existente dado

    ente ou processo em sua inerncia e imanncia, como sntese objetivo-efetiva de

    determinaes, como uma configurao plena de categorias, como existncia atual, a

    delimitao categorial pensada rigorosa porque expresso aproximada da delimitao

    categorial real que perfaz o existente tal como este . Ainda a respeito da justificao do

    modo como se verteu Daseinsformen, assinale-se que na traduo da Introduo constante

    da primeira edio completa dos Grundrisse em portugus3 tambm se opta pela soluo

    apresentada nesta tese, o que de certo modo se constitui em importante apoio aos nossos

    3 Cf. Marx, K. Grundrisse: manuscritos econmicos de 1857-1858, esboos da crtica da economia poltica.

    So Paulo: Editorial Boitempo, 2011, p. 59.

  • 22

    argumentos, ainda que no exclua uma futura reviso se o andamento de pesquisas

    ulteriores assim indicar.

    No intento de seguir o compromisso inicial, de no se antecipar apenas o que

    marcha da anlise pode dar conta de tornar explcito e compreensvel, somente necessita-se

    ento esclarecer, ainda que brevemente, outra questo importante. Relativa ordem dos

    procedimentos observados para com os materiais investigados os textos marxianos da

    crtica da economia poltica da maturidade , a qual extravasa em muito o stio do

    puramente tcnico.

    Mais uma vez o compromisso com os textos e termos de Marx desempenha o papel

    de parmetro. O exame da problemtica da cientificidade marxiana de maturidade, em que

    pese o enorme conjunto de leituras e interpretaes da mesma, tomou como divisa

    fundamental o afastamento daquilo que pode denominar-se, com certa licena, de mtodo

    da suspeita. Ou seja, o procedimento um tanto comum de tomar-se o texto de Marx como

    simples pr-texto para a afirmao de uma chave de leitura, em geral a contrapelo do que o

    autor mesmo diz. Por essa rubrica, pode contar-se entre essas posies aquelas que,

    independentemente do dito, buscam surpreender no pensamento marxiano um momento

    especulativo ou tentam ancor-lo, a despeito das observaes de Marx, numa

    fundamentao lgico-dialtica, ignorando olimpicamente o carter analtico de sua

    cientificidade, o qual explicita e largamente assinalado por ele. Ao reverso disso, a

    pesquisa preferiu, por regra geral, dar o benefcio da dvida ao pensamento marxiano,

    intentando conferir e aferir as suas declaraes com aquilo que o seus procedimentos

    efetivamente operam.

    Por conseguinte, ao invs de ler nos desdobramentos argumentativos marxianos a

    eficcia de um esquema lgico ou a vigncia analgica de uma concatenao dialtica

    herdada de A Cincia da Lgica ou de outras, a investigao procurou por confirmar, ou

    no, mediante o escrutnio textual, o funcionamento de uma analtica das Daseinsformen

    que extrai e explicita determinaes de existncia. Diversamente de tentar o vislumbre

    duma concatenao a priori de momentos do capital como infinito substantivado,

    empreendeu-se, o quanto foi possvel, uma analtica dos textos, recolhendo um a um os

  • 23

    elementos que configuram a cientificidade marxiana madura. Intentando compreender esse

    estudo das formas de ser pista fornecida, alis, pelo prprio Marx que perfazem a

    organicidade funcional no necessariamente sistmica do capital e de sua regulao

    no equilbrio pela forma valor. Dessa maneira, a dialeticidade da exposio aparece mais

    como uma alternativa expressiva posta pelas relaes intrincadas, dinmicas e abertas

    havidas entre as determinaes formais da atividade humana e dos seus produtos como

    capital. Portanto, no tanto como sinal de uma filiao filosfica de fundo ou mesmo da

    afirmao de uma continuidade entre o finito e a linguagem peculiar de Hegel, tomada

    como expresso objetiva de uma substncia que transita em sua infinitude. O que remete

    questo de saber se poderia Marx expor ou apresentar o modo de produo capitalista,

    contraditrio em essncia, prescindindo de elementos discursivos ou formas de mediao

    conceituais recolhidas dos modos peculiares de expresso da especulao hegeliana. Afinal

    o Darstellungsweise de O Capital ter tomado a forma duma exposio dialtica se reveste

    de uma necessidade, no sentido estritamente filosfico do termo? Isso algo que

    evidentemente no pode nem deve ser decidido nos limites de uma introduo.

    Afora esse jaez de aproximao da obra marxiana, dominante em certo perodo

    dentro do marxismo, h tambm que referir criticamente as tentativas que, no obstante

    afastando ou pretendo afastar a crtica da economia poltica da sua pretensa matriz

    hegeliana, tomaram apenas o caminho oposto e igualmente abstrato. No interior dessas

    formulaes est pressuposta uma concepo abstrata de determinao conceitual, segundo

    a qual, qualquer discusso de pressupostos resvalaria obrigatoriamente para a metafsica em

    geral. Basicamente, podem-se apontar dois modos de situar-se frente questo da

    delimitao das categorias. Posies essas para as quais a recusa da suposta fundamentao

    dialtica do mtodo de Marx equivaleria ao abandono mesmo de qualquer noo de

    determinao.

    Nesse sentido, para uma das vertentes crticas da determinao categorial, o que

    emergiria do exerccio cientfico de Marx seria uma forma de indeterminismo, ao menos

    inicialmente. No mbito dessas posies, a teoria marxiana, ao abdicar da pressuposio de

    um princpio absoluto a priori, abriria mo, por consequncia, de qualquer pressuposto

    determinativo. O materialismo marxiano seria ento um discurso em cujo cerne no poderia

  • 24

    ser identificado nenhum posicionamento geral acerca da prpria natureza do efetivo. O que

    resultaria em que a teoria mesma se converteria num articulado de conceitos dependentes

    de uma contingncia absoluta, sem parmetros fora dela, sem uma cauo categorial. Em

    primeiro lugar, importante assinalar que uma objeo da questo dos princpios que aceita

    os termos da metafsica segundo os quais, os princpios so necessariamente de natureza

    imaterial ou transcendente acaba por soobrar, ou ao menos a isso tende na medida em

    que contrape determinao metafsica absoluta sua mera contrafao: a indeterminao

    absoluta. Em que pese a tentativa de desvencilhar o pensamento dos vcios metafsicos, o

    resultado a que se chega somente uma simples inverso de sentidos, a qual aceita,

    tacitamente ou no, o contedo e o carter imputados pela tradio filosfica preponderante

    noo mesma de determinao. Assim, uma inverso no deixa de ser especulativa,

    apenas por ser uma inverso. Desde a Die deutsche Ideologie, Marx indica esse problema,

    por exemplo, quando toma para exame a concepo de Stirner, a qual, entre outras coisas,

    faz substituir o universal abstrato por um singular abstrato4. Em segundo lugar, essa

    posio parece encontrar-se invalidada se a quiser como uma consequncia do padro de

    reflexo de Marx. Tome-se tanto a advertncia marxiana acerca das pressuposies, com as

    quais ns comeamos (Voraussetzungen, mit denen wir beginnen)5, contida na obra

    supracitada, assim como nas primeiras linhas da Einleitung aos Grundrisse de, 1857, acerca

    do ponto de partida; a produo dos indivduos socialmente determinada: indivduos

    produzindo em sociedade logo, produo socialmente determinada dos indivduos

    naturalmente o ponto de partida {Ausgangspunkt} 6.

    A outra leitura crtica da determinao na obra marxiana de carter mais amplo e

    no referida imediata ou principalmente questo da resoluo do conhecimento ou do

    mtodo, mas que tem consequncias tambm para esse domnio. Essa postula uma

    fundamentao de carter estritamente naturalista para o pensamento de Marx. No contexto

    dessa variante de interpretao, o materialismo marxiano seria de talhe naturalstico ou no

    4 Cf. Silva, Sabina. A Fenomenologia do Egosmo, In Ensaios Ad Hominem 1, Tomo IV, Estudos e Edies

    Ad Hominem, So Paulo, 2001, p. 239-248. 5 Cf. Marx, Karl. Die deustche Ideologie, In Marx-Engels Werke, Band 3, Dietz Verlag, Berlin, 1969, p. 20-

    21. 6 Cf. Marx Karl. Einleitung zun Grundrisse, In Marx-Engels Werke, Band 42, Dietz Verlag, p. 19.

  • 25

    ento no poderia ser propriamente materialista. Apesar da proximidade com o

    indeterminismo acima mencionado porquanto sustente um afastamento para com a

    dialtica, dele se diferencia porquanto pretenda, ao mesmo tempo, postular uma instncia

    determinativa e coloc-la referida necessariamente ao natural. A determinao concebida

    biologicamente est base dessa posio, ainda que no do mesmo modo das apropriaes

    enviesadas do darwinismo pelas cincias sociais durante certas quadras histricas. Trata-se,

    sobretudo da tentativa de fornecer ou encontrar uma fundamentao naturalista, arrimada

    nas aquisies tericas e cognitivas advindas do desenvolvimento das cincias da natureza,

    em especial aquelas que se dedicam ao entendimento dos viventes. No obstante o mrito

    de se opor s elucubraes de cunho idealista presentes em algumas verses do marxismo

    que rejeitavam o economicismo, em especial as de talhe historicista, parece correr o risco de

    no atinar para a centralidade da determinao da forma (Formbestimmung) na crtica

    marxiana da economia poltica. A pesquisa, cujo resultado agora se expe, levanta como

    uma das questes fundamentais para a compreenso da cientificidade de Marx exatamente a

    prioridade da determinao da forma social de ser para a apreenso do que constitui a

    differentia specifica da produo capitalista. Tal o caso, p.ex., do exame marxiano da

    disputa acerca da determinao de trabalho produtivo/improdutivo nas diferentes verses

    da economia poltica a partir da colocao original do problema feita por Adam Smith7.

    A tese que ora apresentamos se divide em duas grandes partes. A primeira se volta a

    questes mais gerais, num registro de abstrao maior. O primeiro captulo, intitulado

    Arqueologia Crtica do Problema se prope a explicitar como a definio do carter da

    cientificidade marxiana foi abordado nos clssicos do marxismo, bem como nos

    primeiros representantes da vertente lgica que intentam resolver o epistemolgico

    sustentando j um nexo, em algum nvel, essencial de Marx com a filosofia hegeliana. O

    segundo captulo voltado ao problema da determinao da prpria cientificidade da crtica

    marxiana da economia poltica em sua fase madura, tratando basicamente do estatuto das

    categorias como Daseinsformen. O terceiro captulo versa sobre o tema do mtodo em

    7 Cf. Marx, Karl. Theorien ber den Mehrwert, viertes Kapitel, In Marx-Engels Werke, Band 26.1, Dietz

    Verlag, Berlin, 1971.

  • 26

    Marx, no somente pretendo aproximar-se de uma delimitao do que distingue sua esfera

    dos procedimentos, mas, e principalmente, indicando o aporte crtico com relao

    tradio filosfica moderna, contido na posio marxiana sobre a questo de mtodo. No

    momento em questo tem-se a indicao de elementos tericos que permitem sustentar a

    posio de que Marx, por assim dizer, desmonta o discurso do mtodo. Nesse sentido,

    estabelece como resoluo a figura do antimtodo. A segunda parte da tese tem como

    momentos mais importantes os dois captulos temticos: um sobre a forma valor e o outro

    sobre a posio de Marx acerca da discusso em torno da determinao da categoria

    trabalho produtivo no interior da economia. Ambos os captulos so concebidos como

    abordagens de anlises de problemas particulares, no curso das quais possvel demonstrar

    a cientificidade marxiana como analtica das formas sociais de ser. O ltimo captulo

    Algumas Leituras num Roteiro de Pesquisa tem por objeto as posies produzidas nos

    ltimos 50 anos dentro marxismo acerca do problema focado pela pesquisa, tendo por eixo

    o debate da posio de cada autor com referncia s relaes do pensamento marxiano com

    o de Hegel, em particular com a dialtica. Ao final da tese, oferece-se uma breve concluso,

    na qual se discute alguns resultados gerais da pesquisa.

    Como ltimo esclarecimento acerca desta tese, cabe ressaltar um detalhe tcnico,

    mas nem por isso desimportante, e que pode interferir em sua leitura e compreenso. As

    referncias bibliogrficas constantes das citaes de obras de Marx no corpo do texto

    remetem quelas originais, conforme publicadas nas Marx/Engels Werke, editadas pela

    Dietz Verlag, consoante o disposto na lista que se encontra ao final do presente trabalho.

    Nesse contexto, foram adotadas algumas solues terminolgicas que no

    obrigatoriamente seguiram os cnones, formais ou informais, de traduo que se fixaram na

    leitura e interpretaes marxistas em portugus. Como exemplos disso, tm-se dois casos

    importantes, porquanto sejam expresses do intento a que a pesquisa e sua exposio

    buscaram realizar. Em primeiro lugar, a escolha por formas de apario como opo em

    portugus para Erscheinungsformen, ao invs de formas de manifestao, a qual se

    observa, entre outras, na verso brasileira de O Capital editada pela Abril Cultural, na

    Coleo Os Pensadores. Ou ainda como est traduzida na primeira verso em portugus dos

  • 27

    Grundrisse, realizada sob a coordenao editorial do Professor Mario Duayer: forma

    fenomnica8. Aqui, a forma de verter foi dirigida pela meta de transmitir o mais fielmente

    possvel a relao havida entre as formas da sociabilidade, das essenciais para aquelas da

    aparncia. Apontando explicitamente para o carter expressivo do aparecer numa dada

    forma imediata das determinaes essenciais, sem que com isso se casse na dicotomia ou

    mesmo contraposio, incorreta neste mbito categorial, entre fenmeno e essncia. A

    segunda ocorrncia que importa destacar aquela relativa traduo de Mehrwert por

    mais-valor. O sentido da eleio pela quase literalidade se encontra na posio terica de

    indicar o contedo categorial mais preciso dos termos, neste caso, do excedente em valor.

    Em que pese a perda de eufonia ou de elegncia, pareceu a soluo mais adequada. Visto

    que o presente trabalho se prope dilucidao das categorias e de seu estatuto no

    pensamento marxiano, um certo desconforto terico se instalou no curso do exame dos

    textos para com as maneiras como tradicionalmente o conceito em tela era vertido ao

    portugus, seguindo sempre de perto a forma francesa plus-value. Assim, a soluo aqui

    operada parece, at o momento, ainda a mais adequada.

    A esse respeito importante referir que a tese que se apresenta no est sozinha.

    Posteriormente finalizao da pesquisa e de sua exposio, a primeira verso em

    portugus dos Grundrisse, acima referida, coincide em muito em diversos momentos desta

    tese com respeito tradutibilidade conceitual. Especialmente em relao ao caso da

    categoria Mehrwert9. Essa remisso no tem, evidentemente, o sentido de um tipo qualquer

    de apelo autoridade. Mas tenta ressaltar que a opo terminolgica encontra amparo

    tambm em esforo de monta de tornar disponvel um texto marxiano central da fase

    madura ao pblico de lngua portuguesa, o que pressupe, entre outros, o exame refletido

    arrimado na tentativa de compreenso aprofundada do contedo. Alm disso, no significa

    tambm, por outra parte, que se acompanhe sempre o equacionamento do trasladamento

    vocabular. Tal se passa exempi gratia com a escolha feita pelo autor da tese de traduzir por

    8 Cf. Karl Marx. Grundrisse: manuscritos econmicos de 1857-1858 esboos da crtica da economia

    poltica. So Paulo: Editorial Boitempo, 2011, por exemplo, p. 95. 9 Cf. Duayer, M. Apresentao, In Karl Marx. Grundrisse: manuscritos econmicos de 1857-1858 esboos

    da crtica da economia poltica. Op.Cit., p. 23.

  • 28

    momento preponderante10

    a expresso bergreifendes Moment. Diversamente na

    publicao anteriormente referida optou-se por momento predominante, talvez se tentando

    atenuar o sentido de uma determinao cujo carter poderia ser interpretado como absoluto.

    No trabalho ora apresentado, buscou-se, diferentemente, acentuar exatamente o talhe de

    determinao central que uma dada categoria assume, num contexto problemtico

    especfico, frente s demais, estando presente inclusive como momento de delimitao real

    destas ltimas11

    .

    10

    Cf. Marx, K. Grundrisse: manuscritos econmicos de 1857-1858 esboos da crtica da economia

    poltica. Op.Cit., em especial, p. 49. 11

    Tal se observa, por exemplo, na exposio analtica que faz Marx das relaes efetivas existentes entre

    produo, consumo, distribuio e troca, objetando e recusando as aproximaes meramente lgico-

    silogsticas elaboradas tanto pelo socialismo belletrista quanto pela Economia Poltica, na Introduo de 1857

    aos Grundrisse.

  • 29

    PARTE I

  • 30

  • 31

    CAPTULO 1

    ARQUEOLOGIA CRTICA DO PROBLEMA

  • 32

  • 33

    I

    Questes Introdutrias

    A hiptese basilar da qual se parte no presente trabalho a de que a obra de

    maturidade de Marx se constitui no numa cincia econmica particular, nem na aplicao

    de um mtodo filosfico qualquer aos problemas da economia. Ao contrrio, se perfaz

    numa teoria das formas de ser da sociabilidade em sua configurao moderna, da ordem do

    capital. Seria assim, a reflexo marxiana madura, um exerccio de dilucidao da

    efetividade social do capital em seus nexos mais essenciais e em sua lgica especfica.

    Produzida atravs da articulao rigorosa das categorias, das determinaes fundamentais

    deste tipo de sociabilidade. Afastar-se-ia igualmente, deste modo, a identificao desta a

    uma aproximao do real de natureza emprico-dedutiva. O que a pe distante tambm de

    um amoldamento de dados ou objetos dentro de um quadro formatado atravs de uma

    lgica a priori de natureza especulativa.

    Assim posta, a tese proposta pela investigao se relaciona ao tema da cincia

    econmica de Marx, explicitando seus aspectos distintivos. Pois pretende deixar

    delineados os nexos principais que conformam teoricamente o exerccio cientfico

    marxiano, esclarecendo seus pressupostos e implicaes. Bem entendido, o exame no se

    dirige discusso de detalhe acerca de problemas particulares da economia, como o seriam

    investigaes ou polmicas sobre aspectos pontuais como, por exemplo, a vigncia ou no

    da lei do valor no mundo contemporneo. No obstante a importncia cientfica deste

    ltimo ponto ou de outros quaisquer, o exame da obra marxiana madura ter por escopo a

    determinao da sua malha categorial constitutiva. Pretende-se demonstr-la como analtica

    de formas de ser. Portanto, um problema de cunho geral, por definio, filosfico, e no a

    sua prospeco no nvel de uma cincia particular ou em questes mais pontuais. Alm

    disso, mesmo admitindo ser o conjunto dos escritos marxianos um estudo e exposio

    crticos de um dado objeto particular, o modo de produo capitalista, importante ressaltar

    que no curso deste enfrentamento crtico, pela primeira vez na histria da filosofia, as

    categorias econmicas aparecem como as categorias da produo e reproduo da vida

    humana (LUKCS, 1979, p. 14-15). Ou seja, compreendem-se seus conceitos no como

    esquemas arbitrrios de aproximao, mas como descrio do modo pelo qual um modo

  • 34

    histrico concreto de ser social se pe. Esta inquirio cientfica do modo que se efetuou

    veio a tornar possvel a explicitao dos liames societrios em termos materialistas, da qual

    o carter especfico prope-se aqui rigorosamente a apresentar e demonstrar. Devendo ser,

    por este motivo, apreendida na totalidade da reflexo marxiana, e no apenas como

    exercitamento cientfico particular.

    Numa palavra, o que a tese pretende deixar evidente que a cientificidade marxiana

    seria ento algo outro que um corpus cientfico e metodolgico influenciado e delimitado

    pelo modo da cincia de seu tempo ou a aplicao de A Cincia da Lgica de Hegel

    analtica da forma mercadoria. Teses estas quase consagradas nas leituras tradicionais da

    obra marxiana, s quais julgamos importante referir, ainda que de modo bastante sumrio.

    Nesse sentido, o enfrentamento dessa tradio hermenutica se reveste de uma dplice

    importncia. Primeiro, ao revelar a forma como uma dada interpelao do pensamento de

    Marx se estabeleceu, indicando os protagonistas da cena interpretativa do marxismo. Em

    segundo lugar, permite, ao mesmo tempo, j o afastamento de certos vieses que se

    consolidaram no decorrer da trama acadmica e poltica de ndole trgica, que caracterizou

    a relao dos comentadores com a obra marxiana. No ser abordada, neste momento, toda

    a srie de leituras de Marx, mas somente aquelas que desempenharam um papel

    posicional do problema em torno do tipo de cincia de O Capital. Trata-se de uma resenha

    da questo, da verificao inicial do estado da arte. Por esse motivo, quatro autores que se

    julgam como importantes no aparecero ainda aqui. Sendo a eles reservado um espao

    prprio ao fim da segunda parte deste trabalho, quando todo conjunto de temas

    relacionados quele enfrentado e exposto tiver sido o mais que possvel tratado. Trs

    destes, Althusser, Giannotti e Lukcs, constituem-se, cada um a seu modo e com

    determinado significado, personagens de alta relevncia para a discusso aqui levada a

    cabo. Um quarto autor, Chasin, diferentemente dos acima referidos, no se afirma apenas

    como um intrprete de Marx. Em sua elaborao terica deixou configurado um verdadeiro

    roteiro de pesquisa, ao desvelar uma srie de aspectos e temas centrais da obra marxiana, os

    quais ou bem se encontram desencaminhados ou bem mesmo intratados pela tradio

    marxista. O que, alis, se acha expresso em seu repto investigativo de retorno a Marx,

    lanado frente ao conjunto de abordagens do pensamento de Marx, em especial de sua

  • 35

    crtica da economia poltica. Nesse sentido, quem pretende retornar a algum lugar, assevera

    simultaneamente duas coisas: que um dado rumo se perdeu e que, no obstante os bices

    histricos, reencet-lo uma tarefa possvel. Para tanto, consequentemente, cumpre repisar

    o caminho em que o horizonte da crtica marxiana da economia poltica se perdeu de vista,

    a fim de, no rascunho do mapa desta desorientao, se desviar das sendas acadmicas.

    Pode-se, grosso modo, dividir a hermenutica marxista acerca da questo do padro

    de cincia da obra de maturidade de Marx em duas vertentes. As quais se separam em

    funo da forma sofisticada da aproximao ou no e da presena ou no de certo rigor

    lgico no trato com as enunciaes. Uma vertente pretende certificar para a reflexo

    marxiana um nicho junto s cincias em geral, em alguns momentos, apresentando desta

    uma verso naturalista. Enquanto outra intenta enquadr-la como prtica de um tipo

    particular de armao lgica. No entanto, nas duas prevalecem preponderantemente tanto

    da questo de mtodo, quanto a assero da vizinhana da obra marxiana com a de Hegel.

    Esses dois traos, a busca por uma via de acesso ao pensamento marxiano atravs da

    identificao de seu mtodo e a posio de Marx prximo especulao hegeliana, esto

    ambos presentes na quase totalidade das correntes e dos intrpretes.

    II

    Pressupostos Crticos

    uma postura filosfica consolidada, com o peso de um mandamento protocolar,

    que quando se coloca o debate da cientificidade imediatamente se pe a problemtica do

    mtodo da subjacente teoria e ao seu discurso. Com relao a Marx, no diferente. E

    isso, com o agravante de se impor sempre uma respeitosa, quando no, obrigatria,

    deferncia dialtica hegeliana. Meno esta a qual, em grande parte das vezes, tende a

    identificar o padro reflexivo de Hegel, em especial a lgica como explicitao do

    movimento da essncia racional do mundo, como o ncleo terico de O Capital. Neste

    sentido, a dupla crtica marxiana da economia poltica, a qual no somente dirigida

    teoria, mas tambm ao mundo do capital, acaba por aparecer como um tipo especial de

    aplicao da dialtica realidade social moderna. Assiste-se a um desvio que se configura

    como produzido em duas etapas ou possuindo duas faces. A averiguao da forma

  • 36

    marxiana de cientificidade se reduz a uma inquisio metodolgica e esta ltima se resolve

    no achegar de Marx a Hegel, na afirmao de uma apropriao epistemolgica da filosofia

    do conceito. Normalmente, no apenas o carter preciso da teoria marxiana se esfuma, mas

    o prprio Hegel se v logicizado. A interrogao sobre as categorias em que se assenta a

    teoria fica, portanto obnubilada por esse predomnio da epistemologia lgica. O estatuto

    prprio dos conceitos marxianos, o que estes so, e a identificao de sua contextura terica

    especfica, do modo pelo qual se encadeiam num perfil elaborado particular, so temas

    relegados ao ostracismo. A definio categorial, a que afinal remetem as categorias em

    Marx, um sujeito sobre o qual o silncio assume a funo explicativa. Ou melhor, tem sua

    resoluo derivada daquela do mtodo. Dessa discusso em particular, a presente tese

    voltar a ocupar-se no captulo 3.

    Outro modo sob o qual aparece o problema da definio do estatuto prprio da

    cientificidade da obra marxiana aquele da periodizao do itinerrio de sua constituio.

    Normalmente, no traado dessa histria de construo intelectual, convencionou-se nos

    crculos do marxismo opor ao Marx de O Capital, produtor de cincia, ao Jovem Marx. O

    que caracteriza esse Marx imaturo, ora apontado como hegeliano, ora como feuerbachiano,

    o fato de seu pensar ser uma reflexo ainda demasiadamente filosfica e prxima ao

    idealismo de seu tempo, no obstante nunca se determine com preciso de que tipo de linha

    idealista ele se filie. Assim sendo, a maneira como se entende o rumo seguido por Marx em

    direo forma madura da crtica da economia poltica no uma questo meramente

    acadmica ou de histria do pensamento. Ao contrrio, a posio mesma da problemtica

    revela no seu encaminhamento, ou desentendimento, os pressupostos que configuram uma

    dada aproximao da elaborao terica marxiana.

    Ento, o que significa traar a periodizao da obra de um autor? Para alm da mera

    pretenso de classificar os seus diversos escritos ou de simplesmente dividir a sequncia

    cronolgica de fases, a organizao do itinerrio de desenvolvimento de um dado

    pensamento revela ou pode explicitar o conhecimento, ou desconhecimento, da natureza

    especfica de seu padro de reflexo. A forma como se faz a histria de um determinado

    pensamento, evidencia de maneira clara o modo sob o qual este abordado. Assim,

    historiografia e filosofia, reflexo e histria esboada, denunciam sua interdependncia

  • 37

    radical. De tal modo que a incompreenso para com as origens ou a forma pela qual um

    exercitamento filosfico se instaura gera necessariamente distores no seu trato, fazendo

    da tarefa de exp-lo um jogo definido por regras quase sempre arbitrrias. Resida essa

    arbitrariedade no msero arranjo mal acabado de momentos que se sucedem no tempo, da

    obra e da vida, sem o menor sentido de rumo, continuidade e ruptura. Isto , na imposio,

    grosseira ou extremamente sofisticada, de critrios extrnsecos ou de parmetros ditados

    pela mais recente moda intelectual, em nada muda o resultado. O estipndio da

    arbitrariedade somente pode ser a perda do efetivamente gerado, do posicionamento ou do

    contedo de dada reflexo, em benefcio de sua atualizao postia ou de sua rpida e

    violenta condenao como paradigma ultrapassado.

    Neste sentido, podemos dizer, no sem ousadia, que a grande maioria das tentativas

    de organizao do pensamento marxiano no correr de nosso ltimo sculo primou, da ponta

    mais rasa e vulgar quela caracterizada por elevada erudio, pelo desconhecimento da

    natureza prpria obra de Marx. Nas suas mais variadas verses, tais empreendimentos

    analticos redundaram no obscurecimento do modus marxiano, quando no na pura e

    simples supresso de seu carter distinto. Destituio de conhecimento filosfico que no

    poupou nem mesmo representantes mais dignos e/ou tecnicamente competentes da tradio

    recente em historiografia do pensamento. Apenas para novamente registrar, no que tange s

    relaes do pensamento marxiano para com o idealismo em geral, Hegel em particular. De

    maneira pendular ora foi aproximado em desmedida da especulao hegeliana, a ponto de

    ser tratada sua obra madura como mera aplicao de A Cincia da Lgica realidade

    econmica do capital, ora esta posta como gerao ex nihilo de um mtodo no

    inteiramente discernido pelo prprio autor, uma verso mais refinada de naturalismo ou de

    logicismo. Na confluncia da aparente oposio de tais proposituras acerca da obra

    marxiana, ressoa um rudo de fundo comum, um eco de uma nica atitude fundante, a de

    apor leitura o maneirismo da interpretao. Apropriar-se de Marx, sem ler Marx, ou de l-

    lo e dele se apropriar por meio de um vis. A leitura transtornada de extrao sem dvida,

    mais ou menos rica, dependendo de suas condies e instrumentais em exerccio de

    imputao de significado, de implicaes e demandas do prprio intrprete, reverte-se em

    amputao do sentido efetivo do texto. Evidentemente, esta situao no caracteriza to

  • 38

    somente o abordo da reflexo marxiana. De certo modo todo e qualquer autor est sujeito

    aos traumas da imputao de sentido, da violao que disseca o corpo discursivo

    espargindo seus elementos constituintes em abstraes isoladas, membros apartados por

    disjuno, ou estabelecendo aqui e acol conexes destes com modos de pensamento ou

    problemticas estranhas, gerando uma monstruosidade insustentvel.

    A forma de entendimento (ou de desentendimento) da obra marxiana no decorrer do

    sculo XX fixou certas diretivas de abordagem e inteleco que ganharam o estatuto de

    verdadeiras chaves de leitura, com fora de preconceito arraigado. Duas proposituras se

    impuseram com maior vigor e sucesso. A primeira foi a do trplice origem do pensamento

    de Marx, o amlgama fantstico entre economia poltica, poltica francesa e filosofia alem.

    A segunda, a do corte epistemolgico cunhado por Althusser, da oposio entre um "jovem

    Marx", ainda ligado ao humanismo ou filosofia, e um "Marx maduro", "cientfico", dono

    afinal de um mtodo prprio, gnosiologicamente emancipado. No primeiro caso, o

    pensamento de Marx aparece como produto curioso de uma juno entre trs elementos ou

    tradies estranhas entre si em suas motivaes, determinaes e condies, prodgio

    nascido de uma tanto tempestuosa quanto confusa fecundao. Como poderia semelhante

    origem gerar algo com um mnimo de coerncia questo para a qual se faz muda quase

    toda tradio do campo marxista. No segundo caso, a origem mesma que se encontra

    descartada como problema. Aqui o pensamento no tomado como produto de um

    itinerrio, com todas as idas e vindas, ratificaes ou retificaes, mas unilateralmente

    fixado por um de seus momentos. Esse eleito como mais pertinente, no a partir de um

    desdobramento ou evolver que pusesse uma inflexo, mas de uma regra ou critrio exgeno

    sua prpria emergncia, no caso a instaurao de um mtodo. Diversamente do panorama

    marxista assim tracejado, Chasin assinala que,

    (...) a nova posio formulada por Marx no uma pura instaurao

    endgena. Sua gnese, por isso, no apenas uma questo para a histria

    intelectual ou de mera erudio, mas problema condicionante do acesso ao

    entendimento efetivo de sua natureza terica, bem como da qualidade do

    complexo categorial que integra sua fisionomia (CHASIN, 2009, p. 26).

    Neste texto, ponto de chegada - julgado parcial por seu autor - do investimento

    intenso e rigoroso de pesquisa dos textos marxianos, Chasin traa de sada o perfil da

  • 39

    questo da origem e do desenvolvimento conforme enfrentada pela tradio marxista.

    Desenho justo e impiedoso das vicissitudes e descaminhos da interpretao da obra

    marxiana. Afastando logo na primeira formulao qualquer carter miraculoso ou

    "original" da reflexo marxiana, Chasin a afirma como ato de apropriao ideal de mundo.

    Ou seja, no ela posio discursiva autossuficiente, produto de um lance genial, mas fruto

    do desenvolvimento de um dado padro de exercitamento intelectivo. Propositura esta,

    portanto, que pe na ordem do dia o problema da origem do pensamento marxiano, o

    entendimento de como veio a ser a reflexo do autor de O Capital.

    Assim a justa compreenso do corpus marxiano somente pode ser alcanada na

    medida em que se volta aos prprios textos, na apreciao rigorosa destes na marcha

    mesma em que aquele se gerou. Esforo a exigir o exato contrrio das prescries mais

    atuais em matria de exegese. O domnio da natureza especfica do pensamento marxiano

    somente pode ser obtido sob a condio de um efetivo retorno a Marx. Retorno este

    modulado por uma estrita obedincia ao posto pelo texto, sua singular forma objetiva, o

    que,

    (...) exige a captura imanente da entificao examinada, ou seja, a

    reproduo analtica do discurso atravs de seus prprios elementos e

    preservado em sua identidade, a partir da qual, e sempre no respeito a essa

    integridade fundamental, at mesmo em 'desmascaramento', busca

    esclarecer o intrincado de suas origens e desvendar o rosto de suas

    finalidades (CHASIN, 2009, p. 40).

    Deste modo, ler responder ao desafio de facear um objeto, obviamente de tipo

    diverso daquele da materialidade, trazendo de suas entranhas a rede de determinaes que o

    compe e o sustenta. A abordagem de uma obra ento seu enfrentamento nos seus

    prprios termos e no na sua inquirio atravs de um repertrio de problemas extrnsecos.

    A leitura , por conseguinte, exerccio de apropriao da imanncia do texto, por isso a

    revelao de sua estrutura argumentativa por meio da subsuno ativa do leitor, e no o

    desvelamento a si dos limites do pesquisador a pretexto e custa do texto.

    Posio rigorosa da leitura como crtica imanente que encontrou sua expresso mais

    elaborada no escrito supracitado, mas a qual se apresenta j como pressuposto terico da

    abordagem da obra marxiana em textos anteriores de Jos Chasin. Em particular, no que

    respeita ao problema da periodizao da reflexo de Marx, encontramos o exercitamento

  • 40

    deste padro rigoroso de exegese filosfica em Marx ao Tempo da Nova Gazeta Renana.

    Publicado sob a forma de prefcio ao livro A Burguesia e a Contra-Revoluo, no qual

    esto reunidos quatro dos mais importantes artigos de Marx trazidos pblico em Nova

    Gazeta Renana (1848), este artigo se prope a explicitar a dimenso decisiva deste perodo

    da vida intelectual do autor alemo. O escrito em tela perfila o itinerrio de

    desenvolvimento do corpus marxiano at aquele momento e indicando as consequncias e

    inflexes futuras para a posterior crtica da economia poltica. Assim define Chasin o

    momento marcado pelos acontecimentos revolucionrios contemporneos da Nova Gazeta

    Renana: "O ano de 1848 de extrema importncia para Marx, para o marxismo e para todo

    processo mundial (passado e futuro) da revoluo - reconhecida esta como atualizao

    virtual da potncia oniparente do trabalho" (CHASIN, 1987, p. 12-13). Deste modo,

    encontra-se fixada natureza determinante do ano de 1848 para o pensamento marxiano.

    Perodo em que, segundo Chasin, pde emergir e emergiu com clareza a possibilidade

    efetiva de transformao cabal de mundo, atravs da lgica do trabalho, representada

    praticamente pela sua figura social. Percepo que tem tanto de definitiva, quanto pouco

    tem de sbita. Ou seja, esta inteleco fruto de um intenso, apesar de relativamente pouco

    extenso, rumo de elaborao de um padro reflexivo prprio. Arrimando-se nos

    testemunhos marxianos contidos no prefcio Para Crtica da Economia Poltica, Chasin

    refaz toda a rota terica e prtica que leva do Marx ainda ligado aos modos de proceder e

    de refletir do idealismo ativo quele que, realizando a crtica da forma especulativa da

    compreenso hegeliana do Estado, consegue fundar uma nova maneira de abordar a

    mundaneidade social.

    Marx nem sempre foi marxiano. desta evidncia histrica concreta, trazida, alis,

    pelo prprio Marx no prefcio acima referido, que parte Jos Chasin. Do fato de que a

    forma marxiana de pensar, no obstante deva em muito ao gnio da individualidade, nem

    por isso constitui apangio de herdado natural. Desta maneira, Chasin intenta, no obstante

    de modo sumrio, a seguir os passos tericos que tornaram a posio marxiana necessria e

    possvel. Neste sentido, subverte os termos em que a expresso "Jovem Marx" comumente

    aparece, enquanto referncia baseada mais na idade precoce do intelectual que na produo

    efetivada naquele perodo, para lig-la a um momento anterior e diverso daquele no qual

  • 41

    surge o pensamento efetivamente marxiano. Ao contrrio de estabelecer a cronologia sobre

    critrios usuais, mas externos obra pesquisada, como o caso da linha temporal

    abstratamente tomada, segue-se aqui a prioridade do objeto, os escritos de Marx, para,

    partindo deste, poder delimitar as fases de seu pensamento. Considerando o intervalo de

    tempo definido pelos anos de estudos, compreendido entre 1837 e 1841 de maneira alusiva,

    Chasin se dirige exposio da primeira ocasio em que Marx pe em ao o arsenal

    filosfico-metodolgico do idealismo ativo. O ano 1842 e o empreendimento a chefia da

    redao de A Gazeta Renana. Jornal que no deve ser confundido com seu sucessor de seis

    anos mais tarde, esta publicao existiu brevemente como veculo da burguesia liberal

    renana em seus confrontos polticos e ideolgicos com a autocracia prussiana. Como

    jornalista, Marx tem a oportunidade de exercitar seu conjunto de conceitos e pressupostos

    forjados sob a gide do idealismo nos mais variados assuntos, da educao ao matrimnio,

    da liberdade de imprensa aos direitos consuetudinrios, tendo sempre por divisa e norma

    uma concepo antropolgica racional do Estado e direito fundada na filosofia da

    autoconscincia: o homem definido como sujeito racional e livre, e o Estado sendo a

    realizao desta sua essncia atemporal. Dentre os temas aos quais Marx devotar sua

    ardorosa ateno, aquele reunidos sob a rubrica de "interesses materiais" (a questo das

    deliberaes parlamentares sobre o roubo de lenha do vale do Mosela e as discusses sobre

    o livre-comrcio) constituir o mbil emprico a exigir a reviso do idealismo ativo.

    Acompanhando com rigor o traado resumido dado pelo prprio autor a este

    respeito, Chasin situar no ano de 1843, quando Marx abandona a chefia da redao do

    jornal, pouco antes de seu fechamento pela censura prussiana. Momento de inflexo

    inaugural no qual Marx passa a empreender um exame minucioso e crtico dos seus

    pressupostos tericos, da especulao hegeliana sobre o Estado em particular. No se

    encontra no enorme manuscrito resultante deste empreendimento crtico, Crtica da

    Filosofia do Direito de Hegel, o que Chasin denominar de determinao onto-negativa da

    politicidade. Ou seja, a identificao da poltica como trao no essencial do homem,

    apontando para sua necessria superao. Entretanto, certamente neste momento se abre

    com a crtica do feitio especulativo da reflexo hegeliana, a crtica ontolgica

    especulatividade, o perodo propriamente marxiano. Neste sentido, assiste-se emergncia

  • 42

    de um padro novo de inteleco, arrimado no comportamento terico atinente para com a

    objetividade das entificaes, ao por-si da mundaneidade. Alicerce sobre o qual se erguero

    as outras duas crticas, as da politicidade e da economia poltica - realizadas em escritos

    como Sobre a Questo Judaica e Misria da Filosofia, por exemplo, a crtica da

    especulao, portanto, pode ser entendido como ato inaugural, balizamento de parmetros

    filosficos que jamais sero abandonados por Marx. Pense-se apenas a ttulo de ilustrao

    na assertiva contida em A Ideologia Alem, de que seu pensamento parte do nico

    pressuposto do qual no se pode fazer abstrao seno na imaginao: os indivduos vivos

    e ativos, bem como na declarao constante de Glosas Marginais ao Tratado de Economia

    Poltica de Adolph Wagner, distante dcadas da crtica aos neo-hegelianos, onde ele afirma

    que eu no parto nunca de conceitos. Meu ponto de partida a mercadoria. a esta que

    eu analiso, na forma sob a qual ela aparece. Assim sendo,

    (...) ntido, portanto, que o itinerrio de 42 a 47 perfila a constituio do

    iderio marxiano. Que ao fim desse tempo cumprira-se uma extensa e

    complexa trajetria intelectual, resultando na configurao adulta, ainda

    que no plenamente madura do pensamento de Marx (CHASIN, 1987, p.

    19).

    A esse respeito, vale chamar a ateno para o fato de que se 1843 se crava como ano

    fundante da reflexo marxiana, isto no equivale de modo algum a infirm-lo como posio

    de completude. antes o aflorar inicial de um padro filosfico que o parir de uma frmula

    pronta e multiformemente acabada.

    O pensamento marxiano ir desenvolver-se, aprofundar-se, direcionado agora para a

    decifrao das determinaes essenciais da sociabilidade moderna, para o

    esquadrinhamento crtico da anatomia da sociedade civil. Este exerccio de crtica do real se

    efetivar no sentido da escavao das categorias que definem o modus societrio do capital

    e suas expresses, o Estado e a poltica modernos. O que trar a cada novo passo,

    ratificaes e retificaes, enriquecimento de alguns esquemas categoriais e alterao de

    alcance de outros, sempre na direo indicada pela apropriao do real na forma do

    pensamento, que na sua marcha empreende a concreo progressiva das categorias. Neste

    particular, Chasin assinala o ganho intelectivo trazido pela maturidade, aberta com a

    redao dos Grundrisse, afirmando que,

  • 43

    (...) este recomear, que proporcionar o trnsito do delineamento adulto

    para a fisionomia madura do pensamento cientfico de Marx, compreende

    a transio da Misria da Filosofia para os Grundrisse. Trata-se, no plano

    da cincia, da superao de uma anlise econmica, ainda um tanto no

    desembaraada da teoria da oferta e da procura, pela formulao plena da

    teoria da mais-valia, ou dito de forma mais restrita: Marx introduz nos

    Grundrisse a distino entre trabalho e fora de trabalho. Distino

    fundamental, inexistente na Misria da Filosofia, onde ainda no figura a

    descoberta da categoria essencialmente diferente: Arbeitskraft - no uma mercadoria entre outras, mas uma mercadoria nica, produtora de

    valor (CHASIN, 1987, p. 20).

    Assim sendo, a elevao de patamar do pensamento marxiano adita na maturidade o

    discernimento mais aprofundado da forma de ser do capital. Delimita essa enquanto modo

    de produo da vida humana assentado na contradio essencial e profunda do trabalho

    assalariado, na qual a potncia criadora de riqueza, convertida em mercadoria, trocada por

    seu valor, materializado num quantum de trabalho morto, tornando-se, desta maneira,

    matria alienada e de alienao; a perda radical como resultado da posse de suas foras

    essenciais de objetivao como mercadoria: Esa e o prato de lentilhas (CHASIN, 1987, p.

    228).

    Potencializao da posio terica de extrair cientificamente do concreto as suas

    determinaes essenciais, cujo carter crtico. Assumindo em cada nova configurao um

    perfil mais definido e uma solidez categorial maior. A constituio do padro marxiano de

    reflexo dista em muito da forma como foi e habitualmente entendida. Viciada essa

    ltima que foi por seu duplo vis, gnosio-epistmico e politicista, na problematizao da

    questo de mtodo, a aproximao da obra de Marx feita anteriormente se caracterizou por

    uma deturpao explcita da ordem de prioridades categorial por ele mesmo fixada. Para

    Marx, a delimitao precisa do modo de ser da coisa analiticamente faceada precede e faz

    assim possvel uma tematizao da esfera do conhecimento em sua natureza e jurisdio

    (Cf. CHASIN, 1987, p. 21). A este respeito, Chasin ir tornar ainda mais radical sua

    posio quando, partindo do aprofundamento da sua pesquisa da fase adulta e incio da

    madura oito anos mais tarde, Estatuto Ontolgico e Resoluo Metodolgica, declarar que

    a rigor no h uma questo de mtodo no pensamento marxiano (CHASIN, 2009, p.89).

  • 44

    III

    Kautsky e a Aproximao Naturalista

    Para a primeira vertente de comentadores, a obra marxiana seria atravessada por um

    rigoroso determinismo a modus naturalista ou fatalista, como se afirmaria desde Kautsky

    at os representantes do marxismo vulgar. No texto inaugural deste tipo de aproximao da

    obra de Marx, Kautsky pretende apresentar o pensamento marxiano, no que ele tem de

    original, como uma curiosa juno de trs tradies tericas diversas, o pensamento ingls,

    francs e alemo, representadas, respectivamente, pela economia poltica ilustrada, pela

    poltica francesa e pela filosofia clssica do idealismo alemo. No interior desta estranha

    figura, deste hbrido ou, como o denominou Chasin, trplice amalgama (Cf. CHASIN,

    2009, p. 29-37), surgiria uma teoria que permitiu a Marx fundar a unidade das cincias.

    Com toda a carga de reducionismo a implicado, afirmada a anulao da especificidade do

    ser social em relao naturalidade e a aplicao do padro de cientificidade tpico das

    cincias da natureza (Cf. CHASIN, 2009, p. 31-35).

    Neste sentido, Marx teria sido o iniciador de uma verdadeira revoluo cientfica no

    que tange compreenso dos fenmenos sociais, no curso da qual se veriam superadas as

    deficincias tanto dos autores tradicionais, moralistas e juristas, que assentavam sua anlise

    do social em noes como liberdade, vontade etc., quanto aquelas dos naturalistas, como

    denomina Kautsky os iluministas. Argumenta Kautsky que, se nos primeiros no havia a

    percepo de necessidades causais nos fatos sociais, j nos segundos a ideia de Natureza

    explicava to somente os atos simples, determinaes que os homens compartilham com

    os animais, deixando os atos complexos, aqueles constitudos pelas ideias sociais e

    ideais, na penumbra do inexplorado cientificamente. Com Marx ter-se-ia ento inaugurado

    um novo momento cientfico, no qual,

    (...) [a] evoluo social foi situada no quadro geral da evoluo natural; o

    esprito humano, mesmo nas suas manifestaes mais elevadas e mais

    complicadas, nas suas manifestaes sociais, era explicada como sendo

    uma parte da Natureza; a conformidade causal de sua atividade foi

    demonstrada em todos os domnios e a ltima base do idealismo e do

    dualismo filosfico foi aniquilada (KAUTSKY, s/d, p. 17).

    Marx teria dessa maneira operado uma subsuno de ordens de existncia, natureza e

    sociabilidade, a uma mesma e nica legalidade, a dialtica. Assim, naturalidade e

  • 45

    sociabilidade seriam duas formas de manifestao de um nico princpio material da

    realidade, cuja determinao decisiva seria aquela da contraditoriedade, traduzida em

    mbito humano pela luta de classes, que regeria como fundamento os andamentos da

    histria, bem como, por consequncia as ideias e ideais ativos dos homens. A indistino

    das ordens de ser da realidade aparece aqui como o ponto central desta dmarche

    interpretativa. Na busca da definio da cincia de Marx, na sua determinao em analogia

    com os desenvolvimentos havidos em outros campos do saber, os traos distintivos da

    realidade humanosocietria so sumariamente apagados. Assim, por mais distinta que

    possa parecer a sociedade do resto da natureza, nesta, como naquela, encontramos a

    evoluo dialtica, quer dizer: o movimento provocado por uma luta de oposies que

    surgem espontnea e continuamente no prprio meio (KAUTSKY, s/d, p. 17). Ao mesmo

    tempo em que se pe a sociabilidade como submetida a leis naturais tm-se, por outro lado,

    a dialetizao da prpria naturalidade. Tal questo da relao entre o desvendamento das

    determinaes essenciais do capital e a suposta relao deste com uma pretensa teoria

    dialtica geral, da qual Marx teria sido, seno o fiador, ao menos um filiado, j aparece,

    como o veremos mais frente, em Engels.

    exatamente no contexto desse empreendimento de cientificizao do estudo da

    sociabilidade que Kautsky situa a importncia, bem como a superioridade, que o

    pensamento de Marx possui. Ressalta a superioridade e a fora inerentes ao pensamento

    marxiano frente s tentativas de anlise cientfica da sociabilidade, a qual resulta de uma

    particularidade metodolgica. Nesse sentido, declara que,

    Teria sido completamente incompreensvel a sua influncia ser to

    extraordinria se Marx no tivesse conseguido descobrir as bases ainda

    ignoradas da sociedade capitalista. Depois de tais descobertas, no

    existem mais conhecimentos sociolgicos de importncia primordial a

    obter que ultrapassem Marx, enquanto se mantiver a forma atual de

    sociedade. Pode-se dizer tambm que durante todo este perodo o seu

    mtodo ser mais frutuoso do que qualquer outro (KAUTSKY, s/d, p. 9-

    10).

    No entanto, os aspectos mais gravosos da aproximao que Kautsky realiza da obra

    de Marx a meta da obra, a qual se anuncia no prprio ttulo. A forma como o tema das

    origens que concorreram para o nascimento, constituio e consolidao da teorizao

    marxiana tratado, pode ser considerado um critrio de leitura. No caso em tela, v-se aqui

  • 46

    claramente a exogeneidade da qual sero vitimadas grande parte das interpretaes da

    reflexo cientfica marxiana. Na circunscrio que define este, por assim dizer, territrio

    hermenutico do marxismo, o pensamento de Marx visto como algo que brota e viceja

    na periferia de sistemas ou de perspectivas terico-filosficas alheias, como um ramo de

    uma rvore maior ou resultado de um hibridismo acadmico. A obra marxiana seria uma

    quimera, para usar uma imagem vinda da gentica. Uma entidade resultante da mistura de

    elementos essenciais vindos das mais diferentes ordens temticas. No exame de como o

    tema das origens do marxismo podemos flagrar a origem mesma amalgama denunciado

    por Chasin, como acima o referimos.

    A teoria marxiana aparece a Kautsky como a fuso, bem rara, da profundidade

    cientfica com a audcia revolucionria, que o faz viver com muito mais intensidade meio

    sculo depois de sua morte do que quando se encontrava entre os vivos (KAUTSKY, s/d,

    p. 10). Sustenta-se aqui uma pretensa assimilao de Marx pelos vrios mbitos da vida

    social moderna, daquele circunscrito pela pesquisa acadmica queles onde se do os

    embates decisivos da ordem societria. Penetrao esta a qual para Kautsky tem fora de

    uma constatao autoevidente, que cumpre, para ele, explicar com plausibilidade: a

    energia das origens e o poder do mtodo, da dialtica materialisticamente reconfigurada.

    Intentando determinar com um pouco mais de rigor, nosso autor migrar da imagem,

    desmesuradamente genrica e indefinida, da fuso para a noo de uma sntese de ordens

    do saber cientfico. O pensamento marxiano ento uma sntese de diversos domnios

    cientficos, de distintas tradies de reflexo filosfica e de formas de prtica, aparecendo

    assim como resultado de uma rara fuso entre filosofia, cincia e prtica revolucionria.

    Sntese que explica a seu ver no apenas a especificidade terica de Marx, mas acima de

    tudo tambm sua fora:

    Se queremos definir o carter da contribuio histrica deste homem

    prodigioso, o melhor ser talvez dizer que tal contribuio uma sntese

    de domnios diferentes e com frequncia at contraditrios: encontramos

    a, antes de tudo, a sntese do pensamento ingls, francs e alemo, a do

    movimento operrio e do socialismo e, por fim, a da teoria com a prtica

    (KAUTSKY, s/d, p. 10-11).

  • 47

    Com relao ao ltimo problema constante da citao de Kautsky acima, aquele da

    relao entre teoria e prtica, cabe apontar um mrito importante, no obstante seu

    conhecido cientificismo. Ele reconhece explicitamente que a atividade prtica de Marx

    sempre se orientou pela tentativa e consecuo da apreenso terica rigorosa das

    determinaes centrais da realidade social e dos nexos essenciais existentes entre elas.

    Portanto, em se pretendendo uma compreenso da ao proposta nos marcos do marxismo,

    a que necessariamente apreender com a mxima correo seus fundamentos tericos. No

    por outra razo a temtica das origens que presidiram a emergncia da teoria marxiana o

    alvo principal da inteleco.

    O esquema da sntese se realiza numa construo que tenta dar conta de dois

    aspectos, dificilmente conciliveis, como j o referimos, uma vez que se supe a amalgama,

    por um lado, e, de outro lado, se constata o poderio e a coerncia da elaborao marxiana.

    No curso da exposio de Kautsky, o pensamento de Marx aparece por fim como

    resultado de um processo de sntese, mais que de confluncia, de trs tradies de

    pensamento da vida moderna: a alem, a francesa e a inglesa. No interior dessa articulao

    ideal, cada nao oferece a Marx uma determinada poro ou um momento do saber.

    Inglaterra coube a parte material, o desenvolvimento o mais pleno das formas, meios e

    relaes da produo capitalista. O que engendrou um, por assim dizer, esprito

    puramente pragmtico, o qual se caracteriza pela estreiteza de viso e o conservadorismo,

    marcadamente absteno de qualquer veleidade de aquisio de largos horizontes, o que

    penetrou em todas as classes. Sua caracterstica mais marcante a avaliao desmesurada do

    trabalho de detalhe tanto na poltica quanto na cincia. Em Inglaterra, segundo Kautsky,

    no teria havido um processo de revolvimento da vida social e poltica, mas uma

    acomodao de antigos componentes numa nova articulao. Da Frana veio o princpio

    motor da poltica. Um pas de desenvolvimento capitalista mais atrasado quando

    comparado ao dos ingleses, baseado na agricultura e numa indstria de luxo, com grande

    predomnio das populaes dos centros urbanos, em especial Paris. Ao contrrio do

    esprito de compromisso bardo, o desenvolvimento social francs foi sempre

    caracterizado pela contestao dos poderes arcaicos e suas formas de dominao e

    articulao polticas. No houve aqui um processo de reforma ou acomodao, mas sim a

  • 48

    conquista do poder poltico, a qual encetada por uma classe oprimida, produz sempre

    uma modificao do mecanismo social, em contraste com o caso ingls, predominava o

    esprito radical e o entendimento poltico. No que tange Alemanha, a reflexo marxiana

    herda o mtodo cientfico propriamente dito, a dialtica. O que j demarca uma diferena

    com relao a Engels, por exemplo, para quem a dialtica uma lgica do mundo. Em

    Kautsky, a doutrina emanada da obra hegeliana surge como uma organizao especfica do

    esforo de inteleco cientfica. O mundo germnico se define por um desenvolvimento

    capitalista retardatrio entre as naes europeias dominantes poca, sem a constituio

    completa das classes que realizavam, em Inglaterra pelo compromisso pragmtico e em

    Frana pela revoluo poltica, a consolidao da sociedade e do Estado modernos. E isso

    no obstante o estmulo e o exemplo vindos dos seus dois contemporneos europeus mais

    fortes, na sociedade alem o desejo de ao dos seus elementos mais enrgicos e mais

    elementos mais inteligentes no pode se realizar em nenhum dos domnios que a burguesia

    da Europa ocidental tinha conquistado (KAUTSKY, s/d, p. 40). Assim, no podendo obrar

    seno na elucubrao terica, os representantes filosficos da sociedade alem

    imaginavam os melhores mtodos para o avano do pensamento e da investigao

    intelectual (KAUTSKY, s/d, p. 41). Um esprito demasiadamente contemplativo, que

    vicejava e se fortalecia quando ficava-se pela posse das teorias juntas e negligenciava-se

    lutar para se conquistar o poder necessrio para aplic-las. Desse resumido esboo

    histrico feito por Kautsky, h que reter que cada princpio realizado pelos trs grandes

    pases europeus, deixado a si mesmo, revela-se insuficiente e no resolutivo. O que se

    comprovaria pelo fato de que Os alemes durante muito tempo, no souberam

    desembaraar-se d idealismo inativo, como os ingleses do conservadorismo e os franceses

    da fraseologia extremista (KAUTSKY, s/d, p. 42).

    De certa maneira, assiste-se ao mesmo modo de operar esquemtico quando o

    problema enfrentado da relao de trabalho e produo intelectual de Marx e Engels.

    Kautsky pretender explicar as diferenas e comunidades entre os dois pensadores fazendo

    recurso a uma espcie de genealogia sociolgica. Marx por sua origem, uma famlia de

    advogados, voltou-se s questes terico-filosficas e jurisprudncia, e Engels, por ser

    oriundo de um lar de industriais, ir ocupar-se da compreenso da vida econmica concreta

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    (KAUTSKY, s/d, p. 27-29). O que aparecer mais tarde, no livro, no problema das fontes

    do marxismo, como genealogia geopoltica, toma a feio neste passo de uma sntese de

    genealogias pessoais. Desse modo, Marx se dirigir, para usarmos a nomenclatura do

    prprio autor, para as cincias psicolgicas antigas, e Engels para a moderna economia

    poltica. Kautsky parece ignorar que Marx, segundo o Prefcio de 1859 Para uma Crtica

    da Economia Poltica, j em fins de 1843 foi obrigado a dedicar-se, pelo enfrentamento de

    questes concretas, a encetar o estudo da anatomia da sociedade civil. A concordncia de

    ambos, tendo em vista a disparidade de origens, reside no seu assentimento Revoluo. O

    encontro de dois atores vindos de origens dspares se d pelo reconhecimento de um repto.

    Tem-se aqui a origem de outra concepo que fez poca seja no interior da academia seja

    fora dela, aquela da quase inseparabilidade de Marx e Engels que a tradio tanto marxista,

    quanto antimarxista se apega como verdade autoevidente. Por conseguinte, segundo

    Kautsky, Foi seu