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A COMPLEXA PRODUÇÃO DA INTERSETORIALIDADE: uma análise bibliográfica da produção científica (2001-2016) Rafael Nicolau Carvalho 1 RESUMO O trabalho tem por objetivo mapear a utilização do termo intersetorialidade nos discursos científicos produzidos sobre as políticas públicas no Brasil. Como metodologia utilizou-se a pesquisa bibliográfica sistemática. A revisão sistemática utiliza métodos explícitos e sistemáticos para identificação, seleção e avaliação dos estudos publicados. O levantamento bibliográfico foi realizado na base de dados SciElo com o descritor intersetorialidade, com recorte temporal de 2001 a 2016, considerando artigos científicos em português. Foram encontrados 130 artigos e destes 108 incluídos na análise. Conclui-se que há imprecisão do termo considerando às diferentes abordagens teóricas e metodológicas. Constata-se que a discussão está em curso. Palavras-chave: Intersetorialidade, Políticas Públicas, Revisão sistemática ABSTRAC This work aims to map the use of the term intersectoriality in the scientific discourses produced on public policies in Brazil. As a methodology, systematic bibliographic research was used. The systematic review uses explicit and systematic methods for the identification, selection and evaluation of published studies. The bibliographic survey was carried out in the SciElo database with the descriptor intersectoriality, with a temporal cut from 2001 to 2016, considering scientific articles in Portuguese. We found 130 articles and 108 included in the analysis. We conclude that there is imprecision of the term considering the different theoretical and methodological approaches. It is said that the discussion is ongoing. Keywords: Intersectoriality, Public policy, systematic review. I. INTRODUÇÃO O presente trabalho é um recorte da tese intitulada: “A complexa produção da intersetorialidade no campo da saúde mental” desenvolvida no Programa de Pós-graduação 1 Doutor em Sociologia e professor do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Vice-líder do Setor de Estudos e Pesquisas em Saúde e Serviço Social (SEPSASS).

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A COMPLEXA PRODUÇÃO DA INTERSETORIALIDADE: uma análise bibliográfica da produção científica (2001-2016)

Rafael Nicolau Carvalho1

RESUMO

O trabalho tem por objetivo mapear a utilização do termo intersetorialidade nos discursos científicos produzidos sobre as políticas públicas no Brasil. Como metodologia utilizou-se a pesquisa bibliográfica sistemática. A revisão sistemática utiliza métodos explícitos e sistemáticos para identificação, seleção e avaliação dos estudos publicados. O levantamento bibliográfico foi realizado na base de dados SciElo com o descritor intersetorialidade, com recorte temporal de 2001 a 2016, considerando artigos científicos em português. Foram encontrados 130 artigos e destes 108 incluídos na análise. Conclui-se que há imprecisão do termo considerando às diferentes abordagens teóricas e metodológicas. Constata-se que a discussão está em curso. Palavras-chave: Intersetorialidade, Políticas Públicas, Revisão sistemática

ABSTRAC

This work aims to map the use of the term intersectoriality in the scientific discourses produced on public policies in Brazil. As a methodology, systematic bibliographic research was used. The systematic review uses explicit and systematic methods for the identification, selection and evaluation of published studies. The bibliographic survey was carried out in the SciElo database with the descriptor intersectoriality, with a temporal cut from 2001 to 2016, considering scientific articles in Portuguese. We found 130 articles and 108 included in the analysis. We conclude that there is imprecision of the term considering the different theoretical and methodological approaches. It is said that the discussion is ongoing. Keywords: Intersectoriality, Public policy, systematic review.

I. INTRODUÇÃO

O presente trabalho é um recorte da tese intitulada: “A complexa produção da

intersetorialidade no campo da saúde mental” desenvolvida no Programa de Pós-graduação

1 Doutor em Sociologia e professor do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal da Paraíba

(UFPB). Vice-líder do Setor de Estudos e Pesquisas em Saúde e Serviço Social (SEPSASS).

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em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) no período de 2012 a

2015.

A tese trata da intersetorialidade a partir de sua inserção no campo da saúde

mental por meio de sua incorporação tanto nas discussões do próprio campo quanto da

construção da política de saúde mental brasileira.

No entanto, o presente artigo não discute ou aprofunda a relação da

intersetorialidade com a saúde mental conforme os objetivos da tese. O texto é resultado do

primeiro estudo do referido trabalho que teve por objetivo mapear os discursos produzidos

sobre a intersetorialidade na produção científica brasileira.

Considerou-se imprudente tomar a intersetorialidade como categoria de análise

das práticas sociais em saúde mental sem a elaboração prévia de um quadro conceitual

para o termo, por isso, buscou-se inicialmente mapear o discurso científico sobre a

intersetorialidade. Todavia, tal quadro não foi fixado a priori, mas baseado nas evidências

dos pesquisadores do tema, que nos possibilitou à análise do nosso objeto de estudo.

Assim, empreendeu-se a pesquisa bibliográfica sistemática como ferramenta necessária

para a construção desta etapa, tendo em vista a construção de um referencial analítico, seja

nas constatações empíricas ou nos relatos de experiências de utilização da

intersetorialidade como estratégia política e nas práticas sociais.

Apesar da conclusão da tese em 2015, a pesquisa continua em desenvolvimento

por meio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq/UFPB)

com vigência de 2016 a 2017. Deste modo, estamos atualizando os dados da pesquisa

bibliográfica sistemática e documental bem como aprofundando aspectos relativos às

praticas de saúde mental como a caracterização da Rede de Atenção Psicossocial de João

Pessoa-PB e a construção de ações/práticas intersetoriais.

A emergência do tema parte do reconhecimento que nenhuma política pública,

ou área é capaz de responder unilateralmente as demandas complexas que emergem no

campo social. Esta constatação encontra terreno fértil no contexto das políticas públicas

brasileiras que são marcadas pela fragmentação e focalização da ação estatal no trato

destas demandas de forma setorializada.

O destaque ao tema deve-se também não só a configuração das políticas

públicas, mas, sobretudo, pelo debate que os diferentes campos e áreas do conhecimento

têm travado sobre a intersetorialidade proporcionando formas de compreensão dos

empreendimentos intersetoriais, o que tem exigido cada vez mais diálogo entre esses

campos.

De todo modo, a presente análise procurou responder às seguintes questões de

pesquisa: quais as principais noções que são atribuídas à intersetorialidade na produção

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científica brasileira? Quais os pressupostos teóricos que fundamentam a discussão sobre a

intersetorialidade nas políticas públicas e nas práticas sociais? Quais os principais temas

que se relacionam com a intersetorialidade no campo da gestão?

II. METODOLOGIA

Essa abordagem analítica da produção bibliográfica foi utilizada para delinear as

categorias teóricas do estudo e levantar as primeiras respostas para os problemas de

pesquisa.

A opção pela pesquisa bibliográfica nesse primeiro momento deu-se pela

possibilidade de reunir uma grande quantidade de informações sobre o objeto de estudo,

dispersas em inúmeras publicações, possibilitando além de sua sistematização e análise,

uma construção de um quadro conceitual.

A pesquisa sistemática é um tipo de pesquisa que envolve um olhar mais atento

para as teorias utilizadas pelos estudos; para a análise crítica da literatura; para a busca em

resolver conflitos entre os conceitos; e para o levantamento de questões a serem

investigadas.

Os parâmetros de análise da pesquisa bibliográfica deste estudo foram definidos a

partir das Diretrizes Metodológicas para Elaboração de Revisão Sistemática e Metanálise do

Ministério da Saúde (BRASIL, 2014) associados ao esquema operacional proposto por Lima

e Mioto (2007).

Os dois parâmetros temáticos decorrem diretamente do objeto de estudo:

intersetorialidade e saúde mental. O parâmetro linguístico da pesquisa considerou os artigos

publicados em português, tendo em vista o objetivo do estudo: analisar a produção científica

sobre o tema. O parâmetro fontes vinculou-se à base de dados eletrônica SciElo (Scientific

Eletronic Library Online) (http://www.scielo.org/php/index.php), considerando que o referido

portal congrega importantes periódicos por área do conhecimento, facilitando, assim, o

processo de pesquisa. O parâmetro cronológico foi especificado por dois marcos legais que

se relacionavam com os objetivos da tese. Assim, o início do período foi 2001, ano referente

à aprovação da Lei 10.216/01, conhecida como a “Lei da Reforma Psiquiátrica brasileira”, a

qual passou a nortear os demais documentos legais sobre a estruturação da Saúde Mental

no Brasil. O final do período foi demarcado como 2011, referente à publicação da Portaria

GM 3.088/11, que institui a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). No entanto,

considerando a produção sobre a temática nos anos posteriores a 2011 resolveu-se ampliar

esse período até meados do ano de 2014, quando finalizamos a coleta do estudo

bibliográfico. No entanto, com o projeto PIBIC, buscou-se dar continuidade ao levantamento

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até o ano 2016. Achamos apropriado considerar como marco cronológico as duas

referências legais, dada a sua importância para o campo da saúde mental, entendendo que

o nosso objeto de estudo desenvolve-se em interface com esse campo.

Definiu-se como principal técnica de abordagem dos artigos selecionados a

leitura sistematizada. Para Salvador (1986 apud MIOTO; LIMA, 2007) devem ser realizadas

leituras sucessivas do material em cada fase da pesquisa de modo a possibilitar ao final, por

meio de um processo contínuo de reflexão, a construção de uma síntese integradora.

Na etapa da investigação das soluções (LIMA; MIOTO, 2007) foi construída uma

ficha de coleta com as indicações básicas do material selecionado, tais como: Identificação

do artigo; Caracterização da obra (tema; objetivo; conceitos utilizados; abordagem teórica;

referencial teórico) e Contribuições da obra para a pesquisa. Neste último campo foram

registradas as impressões, ideias e reflexões proporcionadas pela leitura do material,

consistindo num conjunto rico de informações que foram posteriormente trabalhadas na

construção da síntese dos resultados.

Na primeira fase da pesquisa bibliográfica (metanálise), procedeu-se com o

levantamento do material no portal SciELO, utilizando o descritor intersetorialidade e

posteriormente o descritor Saúde Mental. Esse momento da pesquisa foi realizado no

período entre agosto de 2012 e outubro de 2014. Após esse levantamento esses descritores

foram combinados de modo a identificar uma produção específica da intersetorialidade no

campo da saúde mental. Este último ponto não foi abordado neste texto.

Considerou-se como critério de inclusão do artigo para análise a evidência do

descritor no título do artigo, no Resumo ou nas palavras-chave. Assim, procedeu-se a leitura

de reconhecimento para a realização das possíveis exclusões de dos artigos que não

apresentavam os critérios já mencionados e dos artigos duplicados.

Assim, foram encontrados com o descritor intersetorialidade 130 artigos

publicados no período de 2001 a 2016. Porém, a partir dos critérios elencados foram

selecionados 108 artigos para análise.

III. ANÁLISE PRELIMINAR COM O DESCRITOR INTERSETORIALIDADE

O primeiro tratamento dado aos artigos levantados com o descritor

intersetorialidade foi distribuí-los pelo ano de sua publicação, com o intuito de verificar o

movimento das publicações sobre a temática ao longo do tempo. Assim, obtivemos o

seguinte resultado: 2001 (01); 2002 (02); 2003 (04); 2004 (03); 2005 (02); 2006 (04); 2007

(04); 2008 (03); 2009 (06); 2010 (07); 2011 (13); 2012 (08); 2013 (11); 2014 (21); 2015 (12);

2016 (07).

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De um modo geral há uma tendência crescente da produção sobre o tema. Nota-

se uma concentração considerável no número de publicações no período entre os anos

2010 e 2014 e uma redução a partir do ano de 2015.

Evidencia-se que a maioria das publicações está frequentemente vinculada à

grande área das Ciências da Saúde, com 64% de recorrência. Seguidos pelos artigos

relacionados à área das Ciências Humanas com 31% e 6% de recorrência na área das

Ciências Sociais Aplicadas.

O segundo tratamento dado aos artigos selecionados com o descritor

intersetorialidade referiu-se às análises qualitativas das seguintes variáveis: 1) tipo de

estudo; 2) Análise temática;

Como relação aos tipos de estudos identifica-se a seguinte classificação e os

resultados:

• Artigo de pesquisa de campo: essa categoria congregou estudos que

tiveram como principal abordagem metodológica a análise de situações concretas que

envolveram o uso da intersetorialidade (39 artigos);

• Artigo de pesquisa documental: reuniu artigos que analisaram a

incorporação da intersetorialidade a partir da inserção do conceito em políticas; programas e

projetos por meio do estudo de documentos como portarias; legislações; programas e etc

(23 artigos);

• Artigo de reflexão teórica: reuniu aquelas publicações com diferentes

abordagens de elementos teóricos, mas tendo como objetivo principal colaborar com o

debate conceitual sobre a intersetorialidade. São artigos que tratam a temática como uma

categoria e tentam definir um conceito preciso para o termo (15 artigos);

• Artigo de pesquisa bibliográfica: reuniu aqueles artigos que também

colaboraram com o debate sobre a intersetorialidade a partir de pesquisa bibliográfica e

levantamento da produção sobre a intersetorialidade e aos temas relacionados (17 artigos);

• Artigo sobre relato de experiência: artigos que apresentam experiências de

incorporação da intersetorialidade em programas e serviços por meio das práticas

profissionais das equipes de saúde e de gestão (10 artigos);

• Artigo de pesquisa-ação: reuniu um artigo que combinou a incorporação de

estratégias de ação em conjunto com o processo de pesquisa (04 artigos).

Há uma predominância da categoria artigos de pesquisa de campo com 39%

das publicações, seguidos de artigos de pesquisa documental com 21% e de artigos de

pesquisa bibliográfica com 16%.

Se agruparmos as categorias pesquisa de campo e pesquisa documental infere-

se que 60% das publicações utilizam a noção sobre a intersetorialidade como ferramenta de

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análise das práticas sociais dos diversos agentes sociais, notadamente profissionais de

saúde e gestores (estudos de campo), ou de análise de estruturas institucionais ligadas aos

serviços sociais ofertados pelas políticas públicas (estudos documentais).

IV. DISCUSSÃO

A partir da leitura dos artigos classificados como pesquisas de campo, podemos

organizá-los em duas subcategorias: a) os artigos empíricos que tratam das práticas

profissionais; b) os artigos empíricos que tratam das práticas de gestão.

Consideramos pertinente essa classificação pelo fato de evidenciarmos que o

conceito de intersetorialidade é largamente descrito como um modelo de gestão e como um

tipo de prática profissional engendrada pelas políticas públicas.

Após analisarmos os conteúdos dos artigos que abordam as práticas

profissionais, identifica-se que a maioria deles trata das práticas na Estratégia Saúde da

Família (ESF), seja da equipe multiprofissional ou de categorias profissionais específicas,

como enfermeiros e odontólogos; alguns trabalhos analisam as práticas relacionadas com

algumas políticas sociais e o trabalho em rede; enquanto uma pequena parcela se dedica à

análise das práticas no Programa Saúde na Escola (PSE).

A predominância dos artigos que se relacionam com a ESF talvez se justifique

pelo fato da intersetorialidade ser tomada como princípio fundamental da Política Nacional

de Atenção Básica no Brasil (PNAB), que orienta as práticas profissionais nesse campo. A

referida política destaca que as ações intersetoriais são necessárias para estabelecer

parcerias e também como meio de levantar recursos na comunidade para o fortalecimento

das ações em saúde.

Também na Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS) a

intersetorialidade aparece enquanto um princípio que é definido como: “uma articulação de

possibilidades de distintos setores de pensar a questão complexa da saúde e de mobilizar-

se na formulação de intervenções que a propiciem” (BRASIL, 2010, p.13). Assim, fica

evidente o interesse dos pesquisadores em analisar como a intersetorialidade é processada

na ESF, bem como os profissionais e gestores da saúde articulam o principio da

intersetorialidade em suas práticas.

Se analisarmos apenas os estudos que enfocaram as práticas de gestão destaca-

se que 38% deles trabalharam a intersetorialidade como um mecanismo de planejamento

estratégico, principalmente o planejamento local em saúde, levando em conta a dimensão

gerencial dos serviços. 37% analisaram a intersetorialidade a partir do controle social e da

participação social em saúde e outros 25% centraram seus esforços na interface entre

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saúde e assistência social, notadamente a partir da emergência do Programa Bolsa Família

(PBF).

A principal definição da intersetorialidade destacada por esses artigos emerge do

campo da gestão das políticas públicas.

Os artigos contribuem para perceber que na ausência de uma teoria da

intersetorialidade os autores tendem a associar ao termo às noções definidas pelos campos

da saúde coletiva e da gestão das políticas públicas. Tais abordagens são tentativas de

garantir uma base de sustentação para o termo, ao relacioná-lo com diferentes aportes

teóricos. Então, os trabalhos possibilitaram perceber que os motivos e paradigmas que

justificam o uso da intersetorialidade como ferramenta de análise estão pautados na

discussão teórica sobre a promoção da saúde, integralidade e interdisciplinaridade.

Reconhece-se também que esses termos ainda carecem de elaborações teóricas, mas, no

entanto, possuem uma discussão mais ampliada e associada às teorias consolidadas no

campo da Saúde Coletiva. Nesse sentido, a intersetorialidade é tomada como um espaço de

compartilhamento de saberes e de poder, de construção de novas linguagens, de novas

práticas e conceitos (COMERLATO et al., 2007).

No tocante aos artigos classificados como pesquisa documental, evidencia-se

que todos eles se dedicam às análises das políticas públicas em seus processos de

formulação, implementação e avaliação das ações. Com o objetivo de analisar tais políticas

públicas, os autores utilizaram relatórios e outros documentos que são relacionados a elas.

As políticas públicas de meio ambiente e de promoção da saúde são as mais

numerosas, cada tipo representa 19% dos artigos de pesquisa documental que foram

analisados. A política de segurança alimentar e o PSE aparecem com 13% cada e com 12%

as políticas de base territorial. Saúde do trabalhador, políticas de transferência de renda,

envelhecimento e proteção social da criança e adolescente com uma menor quantidade de

artigos, cada uma com 6%.

Os artigos de pesquisa documental que foram analisados utilizam como

referencial teórico o debate conceitual sobre a intersetorialidade dos autores que

demarcaram a temática no campo da Gestão Pública, como exemplos: Junqueira (1998;

1999; 2000; 2004) e Inojosa (1998; 2000; 2001). Tais discussões teóricas são

complementadas com as elaborações de autores do campo da Saúde Coletiva como

Mendes (1996); Feurwerker e Costa (2000); Buss (2000); Campos et al. (2005); Westphal,

(2006); Mendes e Akerman (2007). Essas discussões conceituais são costuradas de modo a

corroborar com o conceito de intersetorialidade proposto pela PNPS.(BRASIL, 2006).

Apesar de nos artigos analisados encontrarmos evidências da identificação e

recorrência da intersetorialidade nos documentos políticos-normativos e nas experiências de

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gestão intersetorial, tais artigos indicam que há, ainda, dificuldades de implementação das

iniciativas intersetoriais, o que contraditoriamente torna-se um entrave para a concretização

dessas políticas.

Na análise dos artigos que fazem uma reflexão teórica sobre o tema, foram

encontradas abordagens vinculadas ao surgimento da intersetorialidade e como a mesma é

conceituada pelos autores. Também se percebeu um incremento de discussões sobre o

conceito de intersetorialidade ancorado numa perspectiva mais prática, geralmente ligada a

um campo específico. Assim, os artigos foram organizados em duas subcategorias:

• Aspectos teórico-conceituais que claramente fazem um esforço de definir

conceitualmente a intersetorialidade;

• Aspectos teórico-práticos que utilizam o debate conceitual para estabelecer

interlocuções com outros temas, enfatizando elementos e processos interventivos.

Percebemos que a maioria dos artigos (60%) foi classificada na subcategoria

aspectos teórico-práticos, enquanto 40% dos trabalhos abordam os aspectos teórico-

conceituais da intersetorialidade.

Os artigos classificados como teórico-práticos utilizam-se da discussão teórica

estabelecida pelos artigos categorizados como teórico-conceituais.

Este eixo sistematiza uma visão panorâmica sobre a intersetorialidade a partir do

debate dos autores dos artigos classificado como teórico-conceituais. Destacam-se nessa

categoria os artigos de Junqueira (2004); Nascimento (2010); Monnerat e Souza (2011); e

Akerman et al (2014).

O que nos leva a perceber a intersetorialidade como uma expressão tanto do

aparato governamental das políticas públicas, das organizações, quanto do processo

interdisciplinar da produção do conhecimento.

Portanto, a intersetorialidade seria muito mais que juntar setores e compartilhar

uma agenda comum de ações, e sim a criação de uma nova dinâmica de governança das

políticas sociais e urbanas.

O artigo de Monnerat e Souza (2011) com a sobreposição dos diversos conceitos

as autoras conseguem sistematizar um quadro referencial que supera algumas limitações

dos autores mencionados.

Para nós há a superação da dimensão local atribuída por Junqueira (2004) ao seu

conceito de intersetorialidade, pois incorpora processos mais amplos. Supera também a

lógica de ação integrada de base interdisciplinar, transpondo-a para além do âmbito da

gestão, levando essa possibilidade para todo o ciclo das políticas (concepção, implantação,

implementação, monitorização e avaliação), envolvendo a participação da comunidade e o

controle social.

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Akerman et al (2014) afirmam que há uma multiplicidade de questões e aspectos

para se investigar e analisar a intersetorialidade nas políticas públicas e nas práticas sociais

e defendem a ideia, margeada pela imprecisão terminológica, que não existe uma

intersetorialidade, mas sim intersetorialidadeS (grafia dada pelo autor), que como ondas vão

se revelando, se alternando e se transformando ao logo do tempo em decorrência das

conjunturas e dos atores sociais.

Ainda para os autores, a última onda ainda está por vir, que seria a

interdependência “generosa” em que as intersetorialidadeS não serão apenas a instalação

de arranjos multisetoriais, mas o compromisso ético-político do Estado e sua gestão em

compreender que as políticas servem ao interesse comum ( AKERMAN et al., 2014).

Na subcategoria reflexões teórico-práticas, os artigos analisados nos permite

evidenciar a capacidade indutora do termo “intersetorialidade”. Referimo-nos ao termo por

considerar que há uma profusão semântica para o mesmo, e mesmo sem uma definição

precisa ou uma teoria específica a intersetorialidade emerge como uma “grande” categoria

que carrega fortes noções de integração, justaposição de setores, criação de novos

conceitos, compartilhamento de saberes e experiências. Essas noções empregadas ao

termo são objetos de estudo, debates acadêmicos e pesquisas teóricas em busca de uma

definição, ao mesmo tempo em que fomenta outros trabalhos e pesquisas de natureza

empírica e ações práticas.

A partir do modo de “incorporação” da intersetorialidade nesses trabalhos foi

possível visualizar propostas metodológicas de adoção do conceito ou metodologias de

ação que consideram as principais noções que o termo carrega. Talvez mesmo sem uma

definição precisa, tendo em vista as particularidades que autores e pesquisadores dos mais

variados campos tenham sobre o termo, a intersetorialidade nos parece induzir novas

relações e novas práticas e cada vez mais se torna um elemento fundamental ao se analisar

uma política pública.

Nesta primeira análise não “definimos” um conceito para a intersetorialidade, o

material coletado nos mostrou as principais temáticas que se relacionam com o termo, as

ideias que se relacionam com uma ação intersetorial, bem como as abordagens teóricas e

os principais autores que trabalham o tema.

Sobre os artigos classificados na categoria pesquisa bibliográfica, observamos

que 50%, dos estudos tratam do Cotidiano de Trabalho, enquanto 30% dedicam-se a

Gestão das Políticas Públicas e 20% dão centralidade à discussão teórica sobre a

intersetorialidade.

Ressalta-se que em todos os trabalhos há uma “conexão” estabelecida entre a

intersetorialidade com temas específicos da saúde e da gestão das políticas públicas, que

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parecem ser apenas equacionados em interface com a dimensão intersetorial. A

intersetorialidade aparece como uma possibilidade transformadora das práticas profissionais

e dos atuais modelos de gestão.

No conjunto, os artigos selecionados nesta categoria contribuem para perceber a

dimensão das possibilidades de investigação da intersetorialidade com outros temas, e

principalmente em várias dimensões sejam sobre o cotidiano profissional, os cuidados em

saúde ou as práticas de gestão das políticas públicas. Observamos também que há uma

preocupação conceitual, principalmente em definir um conceito preciso para o termo, mas

essa preocupação acaba sendo eclipsada pelas possibilidades de integração, arranjos e

ações que a intersetorialidade pode induzir nas dimensões já mencionadas. No entanto, é

evidente, por se tratar de estudos bibliográficos, que há uma produção crescente de

pesquisas dessa natureza que demonstram as possibilidades de uso para o termo.

Nesse sentido, a intersetorialidade possibilita a criação de uma linguagem

transversal às áreas e outros conhecimentos, o que nos leva a pensar nas ideias

trabalhadas pelos teóricos da temática que sugerem a criação de espaços de comunicação,

interação e socialização de saberes e experiências intersetoriais.

Os artigos classificados na categoria relatos de experiências dão evidências

mais concretas sobre o uso da intersetorialidade em ações profissionais e de gestão. Assim,

nossas análises indicaram duas subcategorias de publicações: 1) relatos de práticas

profissionais intersetoriais; 2) relatos de práticas de gestão.

Os artigos classificados como relato de práticas profissionais, destacam a

estreita conexão no campo das práticas sociais de cuidado em saúde entre

interdisciplinaridade, transdisciplinaridade e intersetorialidade. Esta evidência que já foi

demonstrada por autores da saúde coletiva e dos pesquisadores do tema. Percebe-se uma

estruturação de ações coletivas e estratégias de atuação mais complexas com capacidade

de enfrentamento dos problemas apresentados, que são considerados complexos

(WIMMER; FIGUEIREDO, 2006). Nesse sentido, a intersetorialidade é tomada nesses

trabalhos como uma prática de coordenação e cooperação de diferentes atores e de

integração ou articulação entre os setores, que se complementam e interagem para a

resolução dos problemas complexos.

Os trabalhos classificados como pesquisa-ação apontam para o uso do termo

intersetorialidade como categoria de análise e ao mesmo tempo capaz de induzir ações

práticas, definidas por seus autores, como ações intersetoriais. Destacam-se experiências

em programas específicos que articulam educação, lazer e cultura ou ações intersetoriais

desenvolvidas no âmbito do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) e ações na

ESF.

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Os trabalhos apresentam uma dimensão interessante ao combinar metodologias de

investigação e intervenção ancoradas em diferentes abordagens, o que a nosso ver é uma

característica bastante positiva dos estudos interdisciplinares.

Como observamos por meio da nossa pesquisa bibliográfica o termo

intersetorialidade possui uma rica diversidade semântica, o que nos leva a acreditar que

este termo não tem sido definido com precisão. Evidencia-se na verdade um conjunto de

noções empregadas ao termo, que nem sempre estão articuladas, mas que tentam traduzir

processos complexos de intervenção na realidade social e organizar experiências e práticas

no âmbito da gestão das políticas públicas. Neste sentido, corrobora-se com Pereira (2014)

quando aponta que a imprecisão da intersetorialdiade é terminológica e não conceitual

tendo em vista que a intersetorialidade ainda não é um conceito definido, ou seja, não é uma

formulação teórica representativa dos fenômenos sociais captados pelo processo científico

de produção do conhecimento.

V. CONCLUSÃO

No âmbito empírico e teórico, os atores das políticas públicas tendem a definir a

intersetorialidade como modelo de gestão, considerada em sua dimensão política, e como

eixo orientador das ações profissionais, tentando imprimir em suas ações as noções

atribuídas ao termo. Todavia, alcançar esta integração no âmbito das práticas sociais tem se

tornado algo extremamente complexo. Observam-se esforços e experiências exitosas de

alguns gestores e profissionais que tentam consolidar estes empreendimentos como uma

boa prática de gestão e de implementação de muitas políticas. Entretanto, essas

experiências cruzam rígidos espaços de lutas, marcados historicamente pela separação

entre os setores, da fragmentação das políticas e das ações do Estado.

Apesar de verificarmos um movimento crescente na produção científica de

estudos sobre a temática na última década e de reconhecer a importância deste debate para

o campo das políticas públicas e para as práticas sociais, a constatação que a

intersetorialidade não é um conceito definido fica bastante evidente.

O desenvolvimento da nossa pesquisa bibliográfica evidenciou diferentes formas

de incorporação da ideia de intersetorialdiade em seus aspectos práticos, metodológicos e

“conceituais”. Advém também a perspectiva que a ideia de intersetorialidade tem

“remodelado” o debate em torno de várias questões, como a definição e enfrentamento da

pobreza, dos problemas relacionados ao meio ambiente, da saúde, da moradia, do

envelhecimento e das práticas sociais. Portanto, é concreta a constatação da imprecisão do

Page 12: A COMPLEXA PRODUÇÃO DA INTERSETORIALIDADE: uma …...O presente trabalho é um recorte da tese intitulada: “ A complexa produção da intersetorialidade no campo da saúde mental

termo intersetorialidade como também a busca de compreendê-la em suas dimensões e

enquanto processo em curso.

A partir da leitura do conjunto desses trabalhos entendemos a intersetorialidade

como um campo conceitual, mesmo que em construção, mas que já possui uma direção

concreta no sentido de propor uma articulação, integração e compartilhamento de uma

agenda política, técnica e ética para as políticas públicas e para as práticas sociais.

Entendida, também, como um campo político, não apenas limitada às práticas de gestão,

mas um campo da proposição de ideias, princípios e diretrizes que devem orientar o

processo de construção das políticas públicas. E também como um campo metodológico

onde se integram as práticas sociais em suas várias dimensões de ordem objetiva, subjetiva

e culturais, representando de certa forma um verdadeiro “ethos” nas práticas que engendra.

REFERÊNCIAS

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