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1 A INTERSETORIALIDADE DAS POLÍTICAS SOCIAIS NUMA PERSPECTIVA DIALÉTICA Potyara A. P. Pereira 1 Introdução A intersetorialidade é um termo dotado de vários significados e possibilidades de aplicação prática que, recentemente, vem despertando crescente interesse intelectual e político. Sua defesa no âmbito da política social pública apóia-se no reconhecimento de que a relação entre “setores” dessa política implica mudanças substanciais na sua gestão e impactos, bem como ampliação da democracia e da cidadania. Portanto, além de principio ou paradigma norteador, a intersetorialidade tem sido considerada uma nova lógica de gestão, que transcende um único “setor” da política social, e estratégia política de articulação entre “setores” sociais diversos e especializados. Ademais, relacionada à sua condição de estratégia, ela também é entendida como: instrumento de otimização de saberes; competências e relações sinérgicas, em prol de um objetivo comum; e prática social compartilhada, que requer pesquisa, planejamento e avaliação para a realização de ações conjuntas. Enfim, trata-se, a intersetorialidade, de um conceito polissêmico que, tal como a política social, possui identidade complexa e, talvez por isso, se afinem. 1 Professora titular do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília. Pesquisadora do CNPq e do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Política Social (NEPPOS), do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) da UnB. Líder do Grupo de Estudos Político-Sociais (POLITIZA) do Programa de Pós-Graduação em Política Social da UnB e registrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq.

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A INTERSETORIALIDADE DAS POLÍTICAS SOCIAIS NUMA PERSPECTIVA DIALÉTICA

Potyara A. P. Pereira1

Introdução

A intersetorialidade é um termo dotado de vários significados e

possibilidades de aplicação prática que, recentemente, vem despertando

crescente interesse intelectual e político. Sua defesa no âmbito da política

social pública apóia-se no reconhecimento de que a relação entre “setores”

dessa política implica mudanças substanciais na sua gestão e impactos, bem

como ampliação da democracia e da cidadania.

Portanto, além de principio ou paradigma norteador, a intersetorialidade

tem sido considerada uma nova lógica de gestão, que transcende um único

“setor” da política social, e estratégia política de articulação entre “setores”

sociais diversos e especializados. Ademais, relacionada à sua condição de

estratégia, ela também é entendida como: instrumento de otimização de

saberes; competências e relações sinérgicas, em prol de um objetivo comum; e

prática social compartilhada, que requer pesquisa, planejamento e avaliação

para a realização de ações conjuntas.

Enfim, trata-se, a intersetorialidade, de um conceito polissêmico que, tal

como a política social, possui identidade complexa e, talvez por isso, se afinem.

1 Professora titular do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília.

Pesquisadora do CNPq e do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Política Social (NEPPOS), do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) da UnB. Líder do Grupo de Estudos Político-Sociais (POLITIZA) do Programa de Pós-Graduação em Política Social da UnB e registrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq.

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Com efeito, como já dizia Titmuss2 (1991) a política social não se dá no

vácuo e nem é desfalcada de relações. O seu trato (intelectual e político) não

prescinde do “exame da sociedade como um todo no conjunto de seus

variados aspectos [históricos, culturais] sociais, econômicos e políticos” ( p.16).

Em vista disso, tal política se impõe como um conceito complexo3 que não

condiz com a idéia pragmática de mera provisão, ato governamental, receita

técnica ou decisões tomadas pelo Estado e alocadas verticalmente na

sociedade (como entendem os enfoques funcionalistas). E, para além de um

conceito, a política social constitui um processo internamente contraditório, que

simultaneamente atende interesses opostos - o que exige esforço mais

aprofundado de conhecimento dos seus movimentos, tendências,

contratendências e relações, com vista ao estabelecimento de estratégias

políticas compartilhadas favoráveis à extensão da democracia e da cidadania.

Portanto, é pela perspectiva dialética, e não linear, ou meramente

agregadora, que a intersetorialidade das políticas sociais deve se pautar, caso

queira ser fiel à realidade – que, por natureza, é dialética - e não pretenda

transformar processos políticos, potencialmente conflituosos, em neutras

prescrições administrativas.

Uma medida necessária no trato dialético da intersetorialidade da

política social é descobrir a importância de seus vínculos orgânicos essenciais

(conceituais e políticos) com outros fenômenos e processos, a partir da

constatação da inoperância do saber e da ação fragmentados, e conhecer os

fundamentos teóricos e históricos dessa vinculação.

Para tanto, convém precisar o significado da intersetorialidade pela

comparação e contraste com outros vocábulos que lhes assemelhados, como o

de interdisciplinaridade - que lhe serve de referência - além de outras

denominações correntes, como multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade e

2 O inglês Richard Morris Titmuss (1907-1973) foi precursor nos esforços de conceituar política

social pelo ângulo de suas relações complexas e como política eminentemente comprometida com as necessidades sociais. É dele a primeira classificação do bem-estar social e do Estado de Bem-Estar (Welfare State), que serviu de inspiração para as classificações contemporâneas, como, por exemplo, a de Esping-Andersen (1991). 3 Complexo aqui tem o sentido de um conjunto que encerra vários elementos e determinações.

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transdisciplinaridade. Esta providência faz-se necessária por dois motivos

principais:

i) Pela urgência de precisar o termo intersetorialidade, visto que o

mesmo vem sendo constantemente invocado, mas não possui

sentido unívoco e tem se prestado a diferentes interpretações. O

mesmo pode ser dito dos termos que lhe são assemelhados,

acima descritos, e que costumam ser confundidos com ele;

ii) Pela importância de explicitar o caráter dialético que, neste texto,

o prefixo “inter” quer significar como superação da setorialidade

das políticas sociais e como medida de requalificação da

disciplinaridade no conhecimento e na práxis dessas políticas.

Como os termos setor e disciplina já estão sacramentados na literatura

sobre o tema, eles não podem ser desconsiderados nesta discussão. A

problematização de seu uso e pertinência far-se-á no momento de sua

aparição.

Principais características dos termos afins à inter setorialidade

Reflexões críticas preliminares

Começando pela intersetorialidade vale reiterar que este termo não tem

sido definido com precisão. O elemento comum que une a esmagadora maioria

dos intentos de demarcá-lo conceitualmente é o da superação não

propriamente da idéia de setorialidade, mas da desintegração dos diferentes

setores, que compõem um dado campo de conhecimento e ação, e do

conseqüente insulamento de cada um deles. De acordo com esse

procedimento, a noção de “setor” é ponto pacífico e, portanto, permanece

intacta, principalmente quando se fala de políticas públicas e, dentro destas,

das políticas sociais. Isso porque, se convencionou achar que tais políticas são

divididas em “setores” particulares, incluindo-se nessa categorização até

mesmo a assistência social, que tem visível vocação supra “setorial”.

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Esse convencionalismo se torna mais insólito quanto mais se sabe que

os chamados “setores” das políticas sociais, como a saúde, a educação, a

previdência, a assistência, fazem parte, na realidade, de um todo indivisível, já

que cada política contém elementos das demais, o que dificulta a sua

programação e financiamento específicos. No caso da assistência, vale lembrar

que a transferência de recursos dessa área para a de outras políticas, que

também a contemplam, é um sinal de que a política de assistência está

presente nas demais e as demais nela. Portanto, se o termo “setor” não

corresponde à realidade, é lícito inferir que ele é um arranjo técnico ou

burocrático criado para facilitar a gestão das demandas que pululam no

universo complexo da política social e nas arenas de conflito que nesse

universo se estabelecem. Mas, como arranjo técnico não funciona como critério

político, é um erro tomá-lo como base definidora de políticas compartilhadas.

Talvez seja por isso que o discurso corrente da intersetorialidade ora se refira a

esta como articulação, soma, síntese, unidade, rede, ora como superação da

fragmentação desses “setores”. Contudo, embora as palavras síntese, unidade

e superação sejam usadas na linguagem dialética, o seu significado no atual

discurso da intersetorialidade geralmente é outro: significa integração de

“setores”, com reforço à permanência destes.

É em meio a essa imprecisão terminológica que a intersetorialidade nas

políticas sociais é definida, revelando ambivalências e incorências.

Assim, embora a intersetorialidade seja identificada como

transcendência do escopo “setorial”, essa transcendência geralmente traduz-se

como articulação de saberes e experiências, inclusive no ciclo vital da política4,

que compreende procedimentos gerenciais dos poderes públicos em resposta

a assuntos de interesse dos cidadãos. Por outro lado, ao ser, a

intersetorialidade, considerada um rompimento da tradição fragmentada da

política social, que se divide em setores, admite-se que ela propicie mudanças

de fundo, isto é, de conceitos, valores, culturas, institucionalidades, ações e

4 Esse ciclo vital “inicia-se com a fixação de uma agenda e adoção de critérios de atuação”

(MORENO, 2000, p. 131), que prevêem a identificação do problema, a tomada de decisões, o planejamento e a execução compartilhados, com vista ao atendimento conjunto de demandas e necessidades sociais.

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formas de prestação de serviços, além de um novo tipo de relação entre

Estado e cidadão. A primeira vista esta mudança poderia ser identificada como

dialética, principalmente quando, nela, o Estado, a sociedade e os cidadãos

são vistos como sujeitos das políticas e, como tais, assumem papéis ativos na

identificação de problemas e na definição de soluções. No entanto, nesse

processo, a relação entre estrutura e história não são considerados e conceitos

mais totalizantes são substituídos por outros, mais restritos, como quando, em

lugar de espaço público, isto é de todos, que está na base das políticas

universais, fala-se de territorialização como lócus biofísico com o qual um

coletivo social se identifica e por ele se responsabiliza (por exemplo, a escola).

E há, ainda, quem veja no exercício da intersetorialidade a possibilidade de

substituição de necessidades por direitos, como se as políticas sociais não

tivessem como principal atribuição a concretização de direitos sociais para

atender necessidades que, no sistema capitalista, constituem a força

desencadeadora da conquista da cidadania. Afinal, não se pode esquecer que

o trabalho constitui uma necessidade vital e eterna, que intermedia a relação

do homem com a natureza e propicia a transformação de ambos. Por fim, e em

maior conformidade com a perspectiva dialética, há os que percebem a

presença de contradições e conflitos nas relações intersetoriais, o que indica,

no contexto dessa temática, o prenúncio de uma abordagem analítica mais

complexa, dinâmica e relacional, que pode ser melhor explicitada, a partir do

exame da contribuição que o conceito de interdisciplinaridade fornece à

compreensão da intersetorialidade.

Efetivamente, a concepção de intersetorialidade vincula-se

primariamente à discussão de interdisciplinaridade que, por ser mais antiga e

com maior produção bibliográfica, lhe serve de referência. Daí a importância da

explicitação dos principais traços da interdisciplinaridade como o paradigma

epistemologicamente mais analisado – embora não esgotado - da concertação

de saberes com vista ao conhecimento mais denso e abrangente de realidades

complexas.

A interdisciplinaridade como necessidade e acerto de contas

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Parafraseando Japiassu (1976, p. 30), pode-se dizer que a

interdisciplinaridade surgiu não propriamente do avanço real da ciência, mas do

sintoma de uma espécie de “patologia do saber” ou de uma “alienação

científica”. Ou melhor, a interdisciplinaridade surgiu da consciência de um

estado de carência no campo do conhecimento, causado pelo aumento

exagerado das especializações e pela rapidez do desenvolvimento autônomo

de cada uma delas. Com efeito, diz Japiassu,

o saber chegou a um tal ponto de esmigalhamento, que a exigência interdisciplinar mais parece, em nossos dias, a manifestação de um lamentável estado de carência. Tudo nos leva a crer que o saber em migalhas seja o produto de uma inteligência esfacelada. Nesse domínio, até parece que a razão tenha perdido a razão, desequilibrando a própria personalidade humana em seu conjunto (30/31).

Diante desse fato, diagnosticar o problema constituiu o primeiro passo

em busca de solução que culminou na descoberta da interdisciplinaridade

como um recurso aglutinador de saberes desconexos e independentes. Mas,

esse recurso pode trazer ou agravar problemas, ou não surtir efeitos

desejados, se o seu sentido não for explicitado e adequadamente aplicado à

luz da comparação com outros recursos congêneres – mais adiante definidos.

Como diz Jupiassu (IDEM), a interdisciplinaridade “não possui ainda um

sentido epistemológico único e estável” (p. 72) e, por isso, mais se assemelha

a um neologismo do que a um conceito. Mas, nada impede que, uma vez tendo

o seu sentido explicitado, a partir das carências reais que o solicitam, ela

constitua algo mais do que uma reorganização metódica no campo

fragmentado do conhecimento. E, longe de configurar uma panacéia científica,

ela poderá constituir uma nova maneira de encarar a repartição dos saberes

disciplinares e ir mais fundo e mais longe nas análises, desde que as

especializações produzam conteúdo consistente.

Isso quer dizer que a interdisciplinaridade não propõe o aniquilamento

das especializações, como será visto mais à frente. Entretanto, o exercício de

sua constituição como unidade de saberes diversos exige a elaboração de uma

concepção que, ao optar por uma dada visão de mundo, terá de romper com

outra que lhe é oposta.

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Em outras palavras, o esforço cognitivo despendido para qualificar o

caráter dialético da interdisciplinaridade terá de romper com a visão de mundo

positivista, que não apenas impera no reino da disciplinaridade, mas também

se infiltra em muitas propostas de superação dessa visão.

Eis porque, em nome da interdisciplinaridade, observa-se, nos anos

recentes, especialmente no Brasil, um significativo empenho de intelectuais,

políticos e gestores em romper com a hegemonia da metodologia positivista de

cientificidade que levou “a uma fragmentação do saber e ao sacrifício da

unidade do real” (SEVERINO, 1995, p.15). Ou melhor, caminhando na

contramão de uma tradição de pensamento que, desde a filosofia clássica,

passando pela razão iluminista, estava ciente da íntima ligação da consciência

com a prática humanas e da necessidade de uma inteligibilidade universal, o

positivismo seguiu rumo diferente. Escravizou-se em demasia “ao protocolo da

experiência” e privilegiou a “autonomização dos vários aspectos da

manifestação do real”, tornando-se, consequentemente, “o maior responsável

pela fragmentação do saber e o maior obstáculo à interdisciplinaridade” (Id.

Ib.). E, ao ganhar foros de autoridade como filosofia da ciência adepta da

precisão, da formalização e da comprovação empírica de fatos específicos, o

positivismo marcou profundamente a cultura contemporânea, comprometendo

os esforços de unificação do saber, particularmente no âmbito das Ciências

Sociais (id. Ib.).

Por isso, defender a interdisciplinaridade implica, como bem diz Severino

(Id. Id.), “acertar contas com o positivismo” e renegar a sua herança, que

contempla: o domínio da disciplinaridade; a classificação ou tipologização dos

saberes; a verticalização das especialidades; o raciocínio dicotômico; a perda

de contato do conhecimento com a realidade e a linguagem incomunicável

entre diferentes áreas(PEREIRA-PEREIRA, 1992). Em suma, o positivismo

prevê e provê um “discurso tanto mais rigoroso quanto mais bem separado da

realidade global, pronunciando-se num esplendido isolamento relativamente à

ordem das realidades humanas” (GUSDORF, 1975).

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Um caso exemplar dessa tendência, que pode também ser

representativa de outros casos, é o da medicina, assim comentado por

Gusdorf:

A medicina contemporânea tornou-se, por excelência, o reduto privilegiado dos ‘especialistas’, cuja competência se exerce sobre um território cada vez mais reduzido. O homem doente é um homem cortado em pedaços; um clínico se encarrega de seu coração, outro de seus pulmões, outro ainda de seus órgãos sexuais ou do seu sistema nervoso, etc. Cada um aplica sua terapêutica própria, sem pensar nas possíveis repercussões sobre os órgãos vizinhos, nem nas reações do moral sobre o físico. O inconveniente dessa medicina fragmentária surge com toda evidência nos países ditos ‘avançados’ que chegam a reclamar a instituição de uma nova categoria de especialistas, os ‘clínicos gerais’, que seriam os especialistas da não-especialidade, atentos às regulações de conjunto da vida humana, não somente na ordem fisiológica, mas também no domínio da psicologia e da psicossomática, da psiquiatria e da psicanálise (IDEM, p. 25).

E a tentativa de romper com esta postura positivista fez com que se

descobrisse na lógica dialética a orientação para um conhecimento da

realidade no seu conjunto (ou totalidade) sem suprimir as suas contradições,

sem retificar as suas sinuosidades e sem desconsiderar o seu caráter dinâmico

e relacional.

Contudo, nem sempre o que se diz dialético merece essa denominação.

Correntemente, o discurso do chamado pós-modernismo, que também critica o

positivismo como uma anacrônica herança da modernidade5 e reivindica a sua

superação, vem ganhando adeptos. Só que, sob esse discurso, o acerto de

contas com o positivismo seria romper com a ciência moderna, datada do

século XIX, de pureza kantiana – cujos pilares são a neutralidade, a

experimentação, a quantificação - colocando em seu lugar uma ciência pós-

moderna, assim definida por Boaventura de Souza Santos (Apud SOUSA

JUNIOR & AGUIAR, 1992, p. 449): uma “ciência assumidamente analógica que

procura ‘descobrir categorias de inteligibilidade globais, conceitos quentes que

5 Ganhando evidência no século XVIII, o projeto da modernidade visava “usar o acúmulo do

conhecimento gerado por muitas pessoas trabalhando livre e criativamente em busca da emancipação humana e do enriquecimento da vida diária. O domínio científico da natureza prometia liberdade da escassez, da necessidade e da arbitrariedade das calamidades naturais. O desenvolvimento das formas racionais de organização social e modos racionais de pensamento prometia a libertação das irracionalidades do mito, da religião, da superstição, liberação do uso arbitrário do poder, bem como do lado sombrio da nossa própria natureza humana” (HARVEY, 1993, p. 23)

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derretem as fronteiras em que a ciência moderna dividiu e encerrou a

realidade’ ”.

Donde se conclui que a crítica ao positivismo e o uso de categorias de

inteligibilidade globais nem sempre convergem para um mesmo entendimento

acerca da relação dialética entre saberes, seja no terreno da pesquisa e do

ensino, seja no campo da prática.

Em verdade, o apelo ao discurso da pós-modernidade contém um

complicador, a despeito de o mesmo se apresentar como transgressor dos

estilos de pensamento, sensibilidades e estéticas da modernidade, qual seja: a

estreita relação desse discurso com “a envolvente e vertiginosa dinâmica do

capitalismo globalizado” (BORON, 2001, p. 369) que, ao mesmo tempo em que

articula, fragmenta. Não por acaso, Jamenson (2002), em trabalho pioneiro,

definiu o pós-modernismo como “a lógica cultural do capitalismo tardio” (isto é,

avançado), ou “o reflexo e aspecto concomitante de mais uma modificação

sistêmica do próprio capitalismo” (p.16).

Sendo assim, não é de estranhar a atual combinação do pós-

modernismo com o neoliberalismo, já que ambos se configuram como estágios

avançados do capitalismo e compartilham do mesmo desprezo pela reflexão

teórica, pelo universalismo, e por qualquer concepção que não seja

eminentemente relativa. E disso resulta, no campo da política social, um

reforço à focalização, ao pragmatismo, ao localismo, ao presentismo, ao

desenvolvimento tecnológico, ao mundo da imagem, à construção plural e à

concepção do todo como um mosaico ou caleidoscópio feito de pedaços

diversos (BORON, IDEM; MAFFESOLI, 2004).

Isso posto, cabe fazer brevemente a distinção entre a

interdisciplinaridade e seus principais termos vizinhos, para, no próximo item,

qualificar o caráter dialético da intersetorialidade à luz da concepção de

interdisciplinaridade, que lhe serve de referência.

Os sentidos da multi, pluri e transdisciplinariedade

Partindo das concepções de disciplina, como ciência ou ramo de

conhecimento científico, e de disciplinaridade, como

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a exploração científica especializada de determinado domínio homogêneo de estudo, isto é, o conjunto sistemático e organizado de conhecimentos que apresentam características próprias nos planos do ensino, da formação, dos métodos e das matérias, [com vista a] fazer surgir novos conhecimentos que se substituem aos antigos (JAPIASSU, IDEM, p. 72),

fica mais fácil precisar o sentido que os prefixos multi, pluri e trans conferem à

disciplinaridade, em comparação com o inter. Mas, desde logo, é preciso

informar que se está fazendo apenas um exercício didático, já que, para os

propósitos da discussão aqui desenvolvida, considera-se o prefixo inter o mais

adequado e pertinente.

Assim, diferentemente da interdisciplinaridade (que evoca vínculos

orgânicos entre especialidades) a multidisciplinaridade refere-se a um conjunto

de disciplinas ou de ramos especializados de saberes que se agregam em

torno de um tema, uma problemática ou um objetivo comum, mas não se

interpenetram. Isso significa dizer, conforme Japiassu (IDEM), baseado em

Jantsch, que a relação entre as diferentes especialidades “só exige

informações tomadas de empréstimo”, sem que essas especialidades sejam

”modificadas ou enriquecidas”. Trata-se, em outros termos, de um

agrupamento, intencional ou não, de conhecimentos, experiências, profissões,

achados de pesquisa, informações, recursos, agentes, sem necessariamente

requerer “trabalho de equipe e coordenado”; ou, então, de um objeto estudado

“sob diferentes ângulos, mas sem que antes tenha havido um acordo prévio

sobre métodos a seguir ou sobre os conceitos a serem utilizados” (pp. 72/73).

Um exemplo ilustrativo do exercício da multidisciplinaridade, concebido

por Vasconcelos (2006) no campo das práticas da saúde mental, é a seguir

apresentado. Segundo ele, tal exercício pode ser

visualizado nas práticas ambulatoriais convencionais, onde profissionais de diferentes áreas trabalham isoladamente, geralmente sem cooperação e troca de informações entre si, a não ser por meio de um sistema de referência e contra-referência dos clientes, com uma coordenação apenas administrativa (p. 46).

Essa mesma forma de agrupamento disciplinar é observada na proposta

pluridisciplinar, com uma diferença: há, nesta, “justaposição de diversas

disciplinas situadas geralmente no mesmo nível hierárquico e agrupadas de

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modo a fazer aparecer as relações existentes entre elas” (JAPIASSU, IDEM,

p.73). Dessa feita, tanto a multi quanto a pluridisciplinaridade, a despeito das

diferenças de seus respectivos objetivos (diversos, na primeira, e distintos, na

segunda), apresentam a mesma tendência: de um “monólogo de especialistas”

ou de “diálogos paralelos”, em torno de um assunto de interesse comum. É o

que pode ser aferido nos exemplos referentes à pluridisciplinaridade,

fornecidos por Vasconcelos (IDEM), a saber:

Reuniões clínicas em que casos de clientes são discutidos trocando-se informações dos diferentes profissionais que os acompanham, ou reuniões de equipe técnica com profissionais variados que planejam ou avaliam ações e procedimentos científicos ou assistenciais, sem ainda criar uma axiomática própria que coordene seus trabalhos. Painéis e mesas redondas em congressos com especialistas de várias áreas ou artigos do tipo ‘enciclopédico’ com contribuições em geral superficiais e isoladas de várias áreas, também podem constituir outros exemplos desse tipo (p. 46).

Por fim, a transdisciplinaridade que, segundo Japiassu (IDEM), foi

concebida por Piaget para significar uma etapa superior das relações

disciplinares, compondo um sistema total e sem fronteiras de saberes, é uma

proposta ambiciosa, de difícil realização. O próprio Piaget, diz Japiassu, a

considerava um “sonho”, passível de previsão, mas ainda não realizado. Por

isso, concordando com Piaget, acrescenta: “estamos ainda muito longe de

chegar a um sistema total, de níveis e objetivos múltiplos, coordenando todas

as disciplinas, tomando por base uma axiomática geral” (IDEM, p. 76).

Todavia, percebe-se atualmente, no campo da produção do

conhecimento, um movimento favorável ao uso do termo transdisciplinaridade,

o qual, embasado na teoria da complexidade6, poderia, segundo esse ponto de

vista , expressar melhor o significado de interdisciplinaridade. É nesse sentido

que Inojosa (2001) associa a interdisciplinaridade à transdisciplinaridade, da

mesma forma que associa, no âmbito das políticas públicas, das organizações

e das instituições, a intersetorialidade à transetorialidade. E informa que, na

literatura, é possível encontrar esses termos como sinônimos, o que a leva a

6 Teoria adotada e difundida por Edgar Morin, sociólogo francês, considerado pai do

pensamento complexo, que inclui o pensamento não pertencente aos círculos acadêmicos convencionais. Tal teoria pauta-se por uma visão transdisciplinar de sistemas complexos e diversos.

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optar pela noção de transdisciplinaridade, empregada por Morin. Este, por sua

vez, apresenta dois exemplos de transdisciplinaridade: a ecologia “porque usa

várias disciplinas, porém é mais do que a mera composição de saberes

disciplinares, pois cria um novo conhecimento apoiado em diversas disciplinas”;

e, a universidade, porque esta “poderá romper as clausuras setoriais e criar

conhecimentos articulados” (INOJOSA, 2001, p. 103).

A essa altura, e com base na convicção de que o termo

interdisciplinaridade é o que melhor se presta a um trato dialético - além de

constituir a referência mestra da concepção da intersetorialidade - indica-se a

seguir o que, neste texto, é considerada a sua melhor interpretação, iniciando-

se com uma explicação sobre o prefixo inter.

Características da relação dialética que qualifica a interdisciplinaridade e a

intersetorialidade

O prefixo inter, aqui adotado, que serve tanto para nomear a

interdisciplinaridade quanto a intersetorialidade, remete à relação dialética, isto

é, à relação que não redunda em um amontoado de partes, mas em um todo

unido, no qual as partes que o constituem ligam-se organicamente, dependem

umas das outras e condicionam-se reciprocamente. Trata-se, portanto, de uma

relação em que nenhuma das partes ganha sentido e consistência quando

isolada ou separada das demais e das suas circunstâncias (de suas condições

de existência e de seu meio).

Esse enunciado expressa uma primeira característica da relação

dialética: a de ser unitária ou total. Essa característica sempre foi necessária ao

progresso do conhecimento e das conquistas sociais. Mas, essa mesma

relação possui outras características que devem ser consideradas, como a

reciprocidade e a contradição. Isso quer dizer que a totalidade dialética

propiciada pela relação dinâmica e interdependente entre partes, comporta ao

mesmo tempo atitudes recíprocas e caráter contraditório.

É pela reciprocidade que diferentes aspectos da realidade prendem-se

por laços necessários e cooperantes. Esse princípio é de grande importância

prática, pois, ao mesmo tempo em que demonstra que não há, nem na

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natureza e nem na sociedade, um caos incompreensível, adverte para o fato de

que toda e qualquer atividade deve considerar as condições que a determinam

e a explicam. A relação dialética, por conseguinte, não se realiza com base em

voluntarismos. Entretanto, apenas a totalidade e a reciprocidade não bastam

para revelar a existência de uma relação dialética. Tal relação afigura-se

também contraditória, o que permite dizer que se a totalidade não for

contraditória, ela não é dialética e vice-versa: toda contradição se exerce na

totalidade de relações.

O caráter contraditório da relação dialética tem a ver com a constatação

de que tudo que é unitário é também movimento, mas não qualquer

movimento. Aqui não se está falando de deslocamento mecânico ou de

mudança de algo de um lugar para outro, como os ponteiros do relógio. Está-se

falando de movimento de transformação de quantidades em qualidades,

porque não há movimento que não seja conseqüência de contradições, de luta

de contrários, que lhes são internas e, portanto, inerentes. A mera soma de

partes, ou a articulação entre elas, não propicia mudança qualitativa. Toda

mudança na qualidade da relação requer o reconhecimento de que o todo,

constituído pela relação entre partes, tem potencialidades de se desenvolver,

de inovar, de superar o passado, a partir do desaparecimento de alguns

elementos e aparecimento de outros, no seu interior. É a oposição entre o novo

e o velho, instaurada num todo orgânico e dialeticamente reacional, que

desencadeia o processo de mudança e de superação desejadas e operadas

por agentes. Até nas atividades de estudo, de pesquisa e de experimentação

de novas ações essa dinâmica está presente. Veja-se o caso de alguém que

se disponha a estudar algum assunto. Esse estudo só será promissor se o

estudante ou o estudioso simultaneamente tiver consciência de sua ignorância

a respeito desse assunto e quiser superá-la para conquistar o saber almejado.

O confronto entre a ignorância e a vontade de superá-la constitui a contradição

ou a luta dos contrários inerente a todo processo. A conquista do saber, que se

desenvolve por meio do confronto entre a ignorância e o seu contrário (a busca

de conhecimento), e se processa num trajeto de contínuas superações de

novas contradições que aparecem após cada conquista, caracteriza a

contradição interna de que se está falando. A mudança qualitativa que daí

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decorre, é produto de relações orgânicas que se desenvolvem no tempo e, por

isso, é histórica e tem caráter inovador, já que representa a fecundidade da

contradição, isto é, a prevalência do novo como síntese dos termos que se

opunham; ou a conversão de um no outro: o velho tendo necessidade do novo

para se renovar e o novo se apoiando no velho para se desenvolver.

Superação dialética, portanto, não significa aniquilações das particularidades,

mas ultrapassagens, apoiando-se nas particularidades.

Essa percepção conduz ao entendimento de que a contradição, apesar

de ser um princípio (ou lei) universal, não deve se realizar de forma indistinta,

passando por cima das formas particulares e concretas de movimentos, já que

toda forma de movimento contém suas contradições específicas. Ao se tomar a

ciência como exemplo dessa afirmação, ver-se-á que ela constitui a unidade

não só da teoria e da prática, mas de particularidades da vida concreta que

contem contradições específicas referentes aos seus próprios objetos. Isso,

porém, não quer dizer que esses objetos sejam irredutíveis uns aos outros e

que essas contradições particulares não se observem também dentro de uma

mesma ciência. Saber examinar concretamente caracteres e contradições

específicos da realidade é condição imprescindível para evitar o dogmatismo

no campo científico e a aplicação uniforme de um paradigma a situações

diferentes.

Tal observação explica a existência de saberes particulares no conjunto

unitário da ciência, mas de uma forma que cada saber particular não seja visto

como absoluto, e sim relativo. Na relação dialética é inconcebível a existência

de saberes absolutos desvinculados de um movimento do conjunto que os

condiciona, assim como é inconcebível a existência de um conjunto ou do

universal que não esteja inscrito no particular. Em síntese: o particular ou

específico só tem valor quando relacionado ao universal, o que significa dizer

que o particular e o universal são inseparáveis, ou que um existe no outro.

É por esse entendimento de raízes seculares que a concepção de

interdisciplinaridade e de intersetorialidade deve se pautar, exigindo a dispensa

de relações não dialéticas que, embora se considerem inovadoras ou pós-

modernas, são incapazes de ofertar uma alternativa relacional mais

Page 15: Texto Potyara - intersetorialidade

15

consistente. Na verdade, poder-se-ia até dizer, com base em Jameson (2006),

que as novas visões de mundo, geralmente identificadas como “pós” a algo que

lhes antecede, não passam de um pastiche7. O caso do pós-modernismo é,

nesse sentido, exemplar: conforme Jameson (IDEM), a sua unidade (se existe),

“é dada não por si mesma, mas pelo próprio modernismo que busca destronar”

(p..18).

Retomando e explicitando o significado de interdisciplinaridade e de

intersetorialidade na perspectiva dialética

Como já mencionado, a forma mais simples de caracterizar a

interdisciplinaridade é contrapô-la à disciplinaridade, conceito com o qual a

interdisciplinaridade mantém divergências, mas não total rejeição. Ou, tomando

de empréstimo uma antiga expressão de Otávio Ianni (1986): mantém relação

de reciprocidade e antagonismo ao mesmo tempo, o que põe em evidência o

caráter dialético dessa relação. Se não, veja-se:

Disciplina significa domínio especializado do saber, domínio este que

tende a ficar cada vez mais confinado a um recorte da realidade quanto mais

essa realidade se torna complexa e mutável e amplia a cadeia de fatos a serem

conhecidos e cientificamente controlados. Diante dessa tendência, cada

ciência, ou ramo de conhecimento, interrompe a cadeia de fatos no ponto em

que julga dominar, perseguindo uma verdade particular, ao mesmo tempo em

que renuncia a outros conhecimentos por não serem de sua alçada. Tal

procedimento, embora propicie conhecimentos parciais, passíveis de compor

um todo articulado, tem incentivado o isolamento intelectual, a fragmentação de

objetos de estudos e o distanciamento do sujeito (cognoscente) do mundo real

(cognoscível), que só é real porque é a síntese de múltiplas determinações,

como já dizia Marx (1982). Portanto, a disciplina, ao se isolar no seu recorte, ou

no seu ponto de repouso arbitrário (artificial), deixa, por isso mesmo, de

merecer o nome de ciência, porque a ciência tem caráter universal.

7 Imitação pálida, ou infiel, de um estilo peculiar e único.

Page 16: Texto Potyara - intersetorialidade

16

É em contraposição a essa tendência que a interdisciplinaridade se

impõe. E se impõe não como uma proposta de aniquilamento da

especialização, já que esta configura o particular que se realiza no universal e

vice-versa, mas como um convite ou um alerta ao especialista para que este se

torne também sujeito da totalidade. Significa, portanto, procurar realizar a

unidade, e não a mera articulação, entre diferentes disciplinas no interior de um

projeto (intelectual ou de intervenção) de interesse comum. Nesse sentido, a

interdisciplinaridade diferencia-se não só da disciplinaridade e da sua

propensão individualista, mas também da multi , da pluri e

transdisciplinaridade, que mais se assemelham a “justaposição disciplinar” .

A interdisciplinaridade sugere, pois, relação de reciprocidade entre

saberes distintos, com suas contradições específicas e inerentes, tendo em

vista à recomposição da unidade segmentada do conhecimento, que, na

realidade, não é compartimentalizado (PEREIRA-PEREIRA, 1992 ).

Tal afirmação remete à complexa questão epistemológica da existência

ou não de espaços específicos ou singulares de conhecimento que seriam do

domínio exclusivo de disciplinas particulares.

Embora reconhecendo a complexidade da questão e a incipiência do

debate sobre a mesma, tem-se que admitir a existência de interfaces entre as

disciplinas, que permitem a interconexão de seus achados científicos, apesar

de sua delimitação formal. E isso só é possível porque não existem territórios

cativos do saber, mas espaços móveis cujas fronteiras se alteram e se

expandem de acordo com o movimento do real e do vivido que não comporta

segmentações. Assim, para que cada especialidade possa ser a representação

confiável desse real e desse vivido é preciso se abrir para o intercâmbio

interdisciplinar (PEREIRA-PEREIRA, IDEM).

É por essa visão interdisciplinar que a intersetorialidade deve ser

tratada, com uma diferença: os denominados “setores”, que devem se

interligar, não são propriamente “setores”, mas políticas particulares, ou

especiais, com seus movimentos concretos e contradições específicas, mas

com uma lógica comum. Como cada política é um conjunto de decisões e

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ações, que resulta da relação conflituosa entre interesses contrários, fica claro

que a intersetorialidade é a representação objetivada da unidade dessas

decisões e ações. Portanto, é preciso ter claro que a divisão da política social

em “setores” é procedimento técnico. E só nesse sentido essa divisão tem

cabimento, pois o conhecimento, assim como os bens públicos e os direitos,

não são divisíveis e sua separação para efeitos de estudo não é disciplinar ou

setorial, é temática. O conhecimento avança à medida que seu objeto se

amplia e se desvenda na sua integralidade (PEREIRA-PEREIRA, 2004).

Por isso, a intersetorialidade não é uma estratégica técnica,

administrativa ou simplesmente gerencial. É um processo eminentemente

político. Ela envolve interesses competitivos e jogo de poderes que, muitas

vezes, se fortalecem cultivando castas intelectuais, corporações, linguagem

hermética e auto-referenciamento de seus pares. Por isso, a tarefa de

intersetorializar não é fácil, mas também não é impossível, desde que todos

estejam conscientes de que vale a pena persegui-la em prol da democracia.

O status da aplicação da intersetorialidade no Brasil 8

No Brasil, segundo Monnerat e Souza (2010), há poucas publicações

sobre a intersetorialidade. A maioria da bibliografia disponível é oriunda das

áreas da Administração Pública e da Saúde Coletiva. As áreas da Educação e

da Assistência Social têm produção pequena embora a assistência se

apresente como intersetorial por princípio e por sua própria natureza dita

transversal.

Com isso fica claro que, apesar dos avanços sociais inscritos na

Constituição Federal de 1988, prepondera a fragmentação da ação social

estatal. E esta fragmentação se torna mais acentuada quanto mais a realidade

se torna complexa e portadora de novos desafios sociais (envelhecimento

populacional, transformação da família, problemas migratórios, ameaça ao

meio ambiente, etc). Em face dessa tendência e da prevalência dos discursos

pós-modernos, a intersetorialidade vem sendo pensada de forma pragmática:

como uma estratégia de gestão competente e eficaz, com o objetivo de otimizar 8 O conteúdo deste item apóia-se basicamente no artigo de Monnerat e Souza (2010)

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recursos humanos e financeiros. Esta é uma visão mais própria da

Administração pública.

Visão da Administração Pública: intersetorialidade como síntese

Segundo essa visão, a intersetorialidade é uma condição imprescindível

para articular áreas de conhecimento e de práticas com memórias técnicas e

institucionais específicas (MONNERAT E SOUZA, IDEM, p.203).

O maior debate recai no planejamento de ações. Esse planejamento,

sob o prisma da intersetorialidade, não é entendido na perspectiva normativa e

prescritiva, mas como negociação de interesses, considerada a chave para a

construção de sinergias entre diferentes saberes e áreas. Neste caso, o

planejamento deve ser conjunto, traduzindo-se como a articulação entre

saberes e práticas setoriais, na qual a intersetorialidade funciona como síntese

de conhecimentos diversos para atuar sobre problemas concretos. Mas, a idéia

de síntese não prescinde dos fazeres e atribuições setoriais, pois dá grande

importância aos domínios particulares.

Entretanto, essa perspectiva esbarra nos seguintes desafios:

a) Enfrentar a lógica dominante da ciência moderna que continua a

valorizar a segmentação dos campos de conhecimento e ação e,

consequentemente, a fortalecer a esquizofrenia intelectual e

operativa. Esse enfrentamento requer análise global dos

problemas e das estratégias de gestão intersetorial em relação a

práticas mais eficazes;

b) Avaliar os prós e os contras da defesa da territorialização para a

“boa” prática da intersetorialidade. É que para muitos a

delimitação de uma área comum para a ação de diferentes

políticas setoriais é condição primeira para a promoção da

intersetorialidade (IDEM, p.202). Mas isso é polêmico.

Geralmente essa área comum recai no município por ser o locus

mais descentralizado e onde as pessoas vivem. Entretanto, há

que se ter cuidado com o prorização do localismo,

desresponzabilizando as esferas estaduais e federal. É certo que

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muitas iniciativas inovadoras vêm ganhando espaço nos

municípios, mas é forçoso reconhecer que estas ações esbarram

em limites locais. É problemático restringir as práticas

intersetoriais no âmbito local e torná-las experimentais, porque os

municípios tendem a reproduzir a fragmentação prevalecente na

gestão de cada política setorial devido às dificuldades de

implementação de políticas que cada um enfrenta. Ademais, não

se pode esquecer que o Brasil é uma Federação;

c) Promover mecanismos que favoreçam o diálogo e os fluxos de

informação e comunicação (IDEM, 204). “Estes aspectos são

considerados cruciais para o enfrentamento das diferentes formas

de pensar dos atores envolvidos e das disputas de poder que

atravessam a concretização de ações intersetoriais” (Id.Ib).

Em suma, por essa perspectiva a intersetorialidade afigura-se como uma

síntese possibilitada pela predisposição ao diálogo. E a sua pedagogia é a da

comunicação. A sua grande tarefa é romper as barreiras comunicacionais que

impedem o diálogo entre diferentes setores. Isso não significa anular

particularidades, mas reconhecer os domínios temáticos, comunicando-os para

a construção de uma síntese. E, para ser conseqüente, a ação intersetorial

implica trabalhar com problemas concretos, de gentes concretas, em territórios

concretos.

Visão da Saúde Coletiva: intersetorialidade como articulação

Embora a Saúde coletiva não discorde da concepção de

intersetorialidade da Administração Pública, ela possui um entendimento mais

específico sobre este assunto. Essa área concebe a intersetorialidade no

mesmo sentido da Organização Mundial de Saúde (OMS), a saber, qual seja:

“uma articulação de ações de vários setores para alcançar melhores resultados

de saúde” (MONNERAT e SOUZA, IDEM, p.205).

Além disso, diferente da Administração, ela “vem apresentando uma

visão bastante endógena de intersetorialidade”, por entender que são as

outras áreas da política pública “que devem se juntar a ela para intervirem

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coletivamente sobre um problema de saúde previamente identificado” (IDEM,

p.206). Para flexibilizar essa compreensão a Organização Pan-Amerticana de

Saúde (OPAS) considera que “a ação intersetorial demanda da área de saúde

não somente iniciativas, mas atendimentos a convocatórias de outros setores”

(Id.Ib).

Entretanto, a preocupação atual da saúde com a intersetorialidade pode ser observada na revitalização do debate sobre os determinantes sociais do processo saúde-doença e o resgate de princípios fundamentais do projeto de Reforma Sanitária [universalidade, por exemplo]. Isso indica a intenção de recuperar a potência política da reforma setorial e, ao mesmo tempo, buscar saídas para os impasses setoriais após vinte anos de implementação do Sistema Único de Saúde (SUS). Em virtude disto, a perspectiva da promoção da Saúde, cuja lógica incorpora necessariamente ações intersetoriais, vem ganhando cada vez mais centralidade no âmbito das discussões nesta arena política (IDEM, p. 206)..

No campo da Assistência Social o governo federal, por meio do

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS, “tem investido

na reconstrução da política de assistência social com base na formulação de

programas com desenho intersetorial. Essa preocupação pode ser vista na

concepção do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e do Programa

Bolsa Família (IDEM, p. 206). Mas, o problema com a assistência social é que

ela é tratada formalmente como setorial, quando, mesmo nesse nível, ela se

revela intersetorial.

Na Educação,

principalmente no período mais recente, são notórios os esforços para empreender experiências de gestão intersetorial. A necessidade de articulação se evidencia com a persistência de indicadores negativos quanto à evasão escolar, altas taxas de analfabetismo, disparidade na relação idade série. Assim, o olhar da educação sobre a intersetorialidade tem como base o reconhecimento de que os problemas estruturais que afetam as famílias repercutem diretamente nas condições de aprendizagem das crianças e adolescentes (IDEM, p. 206/207)

Há, portanto, “um campo de possibilidades de diálogos entre as áreas

citadas, mas que se traduzem em enormes desafios práticos” (Id. Ib).

Por isso, pode-se dizer que, sobre a intersetorialidade,

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há um consenso discursivo e um dissenso prático. Esse dissenso nasce da contradição entre a necessidade de integração de práticas e saberes requeridos pela complexidade da realidade e um aparato de Estado setorizado no qual se acumulam, com maior ou menor conflito, poderes disciplinares e poderes advindos de composições político-partidárias (ANDRADE, 2006, apud MONNERAT e SOUZA, IDEM, p.208).

Isso sem falar que só pelo diálogo e comunicação não se articula e nem

sintetiza nada.

Na verdade a integração desejada é muito audaciosa. “Passa

necessariamente pela construção criativa de um novo objeto de intervenção

comum aos diferentes setores do Estado” (Id. Ib. ). . Isso difere da mera

sobreposição ou justaposição de ações setoriais (articulações e sínteses) e

requer também uma nova institucionalidade.

E, dessa forma, a intersetorialidade surge não só como uma alternativa

de gestão social, mas como uma ruptura epistemológica com os modelos

disciplinares prevalecentes. Mas, novamente adverte-se que a

intersetorialidade assim pensada não anula os espaços específicos das

políticas particulares, ditos setoriais, pois a intersetorialidade fortalece e

atualiza essas políticas, universalizando-as.

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