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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC-SP
Erico de Lima Azevedo
A Crise das Cincias Europias e a Fenomenologia Transcendental
de Edmund Husserl: uma apresentao
MESTRADO EM FILOSOFIA
SO PAULO
2011
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC-SP
Erico de Lima Azevedo
A Crise das Cincias Europias e a Fenomenologia Transcendental
de Edmund Husserl: uma apresentao
MESTRADO EM FILOSOFIA
Dissertao apresentada Banca Examinadora da
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como
exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em
Filosofia, sob a orientao do Professor Doutor Mrio
Ariel Gonzlez Porta.
SO PAULO
2011
Banca Examinadora
____________________________
____________________________
____________________________
AGRADECIMENTOS
Professor Doutor Mrio Ariel Gonzlez Porta, cujo rigor filosfico e sbia pacincia
serviram de esteio firme para que eu me mantivesse na reta estrada ao longo deste trabalho.
Professor Doutor Edlcio Gonalves de Souza, a quem sou muitssimo grato pelos
conselhos amigos, que me consentiram serenidade diante da estrada acadmica que me foi
aberta pela Filosofia na PUC/SP.
Professor Doutor Urbano Zilles, a quem devemos, no Brasil, a publicao da primeira
traduo, em 1996, da conferncia de Husserl em Viena.
Professor Acadmico Antonio Meneghetti (Itlia, 1936), cujos seguros passos na
investigao do mundo-da-vida serviram de oxignio para superar os momentos nos quais
me faltou flego para seguir adiante na escalada desta montanha, que a Crise, de
Edmund Husserl.
Calcular o percurso do mundo no significa compreend-lo.
Rudolph Hermann Lotze
Sentimos que, ainda que todas as perguntas possveis da cincia recebam uma resposta, os problemas da nossa vida no tero sido nem mesmo tocados.
Ludwig Wittgenstein, Tractatus logicus-filosoficus (Prop. 6.52)
preciso conseguir finalmente compreender que nenhuma cincia exata e objetiva explica seriamente, nem pode explicar, coisa alguma. Deduzir no equivale a explicar. Prever, ou ainda,
reconhecer e depois prever as formas objetivas da estrutura e dos corpos qumicos ou fsicos tudo isso no explica nada, antes, tem necessidade de uma explicao. A nica real explicao a
compreenso transcendental. O saber em torno natureza, que prprio das cincias naturais, no equivale a um conhecimento verdadeiramente definitivo, a uma explicao da natureza, porque as
cincias naturais no indagam a natureza na conexo absoluta na qual o seu ser prprio e real desdobra o seu sentido de ser; as cincias naturais jamais enfrentam tematicamente o ser da natureza.
Com isso, no se quer de fato desvalorizar a grandeza dos gnios criativos que operaram no seu mbito na atitude natural, e a prpria atitude natural, no devem de fato ser perdidos pelo fato de
serem compreendidos, por assim dizer, na esfera do ser absoluta na qual definitiva e verdadeiramente so.
Edmund Husserl, A crise das cincias e a fenomenologia transcendental.
Esses cientistas (...) vem a correspondncia de alguns efeitos, mas no sabem a motivao dessas leis. Isso demonstrado pelo fato de que o homem organiza algumas hipteses que, em seguida,
define como leis, porque fazem parte daquele contnuo cotidiano no qual a natureza acontece. Porm, depois ausente do ponto fundamental do seu viver e, tranquilamente, passa a definir mistrio,
onde ele concretamente vivente.
Antonio Meneghetti, Manual de Ontopsicologia.
RESUMO
AZEVEDO, Erico de Lima. A Crise das Cincias Europias e a Fenomenologia
Transcendental de Edmund Husserl: uma apresentao. 126 fls. Dissertao (Mestrado).
Faculdade de Filosofia, Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo, 2011. Este trabalho tem por objetivo apresentar uma das mais importantes e intricadas obras do filsofo alemo Edmund Husserl: A crise das cincias europias e a fenomenologia transcendental, de 1936. Trata-se de uma obra significativa no desenvolvimento de Husserl por causa da elaborao do conceito de mundo-da-vida (Lebenswelt), mas, alm disso, o texto contm uma dimenso adicional, igualmente inovadora: a primeira publicao na qual Husserl toma expressamente uma posio sobre a histria e na qual trata o problema da historicidade da filosofia, empreendendo longas anlises histrico-teleolgicas. Porm, antes de compreender porque possvel falar de uma crise das cincias, porque, para Husserl, a lgica, a matemtica e a fsica ainda precisassem de um fundamento ltimo, e, finalmente, porque, para ele, a filosofia seja a cincia capaz de prover este fundamento, o primeiro passo compreender a sua noo de cincia. As anlises histrico-teleolgicas ocupam uma posio de destaque na ltima grande obra de Husserl, correspondendo ao prximo passo lgico: demonstrar como, historicamente, tenham-se construdo os equvocos da filosofia e da cincia. Husserl analisa a teleologia nsita no percurso histrico da filosofia na busca de um fundamento definitivo, o qual, no fora corretamente capturado pelas duas principais posies da filosofia moderna: o objetivismo fisicalista e o subjetivismo transcendental. Tal percurso conduz a filosofia necessidade de uma tarefa especfica, que a fenomenologia. Esta chamada a realizar o empreendimento de uma anlise intencional da conscincia constitutiva do mundo, a qual desvelar pela primeira vez como tema filosfico o mundo-da-vida, o qual surge como fundamento de todas as cincias: filosofia, lgica, matemtica, cincias naturais etc. O trabalho faz ento uma reviso de parte da vasta literatura acerca da noo de mundo-da-vida, seguindo as minuciosas consideraes de alguns autores: segundo a perspectiva da evoluo da idia de mundo na obra de Husserl, segundo a constituio intersubjetiva do mundo e o relativismo histrico, mas tambm segundo a considerao do problema filosfico do mundo-da-vida enquanto um universo de ser e de verdade, apresentando, por fim, uma anlise segundo a perspectiva da totalidade da vida intencional. No que se refere ao problema das vias para a reduo fenomenolgica transcendental, que ocupa a terceira parte da obra, analisamos apenas a via por meio da reconsiderao do mundo-da-vida j dado, deixando a via da psicologia para uma investigao futura. Palavras-chave: Husserl, mundo-da-vida, crise das cincias, fenomenologia transcendental.
ABSTRACT AZEVEDO, Erico de Lima. Edmund Husserls The crisis of European sciences and transcendentalphenomenology: an apresentation. 126 pages. Dissertation (Master Degree), Philosophy College Department, Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo, 2011.
The present study aims to present one of the most important and difficult works of the
German philosopher Edmund Husserl The crisis of European sciences and transcendental
phenomenology, 1936. It is a significant work in Husserls development because he evolves
the concept of life-world (Lebenswelt), but, besides, the text also reveals another novelty
dimension: this is the first work in which Husserl takes expressly a position about history and
deals with the problem of historicity of philosophy, doing long historical-teleological
analysis. However, before understanding why it is possible to declare a crisis of sciences,
why, for Husserl, logic, mathematics and physics were still in need of a last grounding and,
finally, why philosophy is the science capable of providing such grounding, it is necessary to
pay special attention to his notion of science. The historical-teleological analysis play, indeed,
an outstanding role in the last great work of Husserl, corresponding to the next logic step: to
show how, historically, the mistakes of philosophy and science have been possible. Husserl
analyses the intrinsic teleology of the history of philosophy in the search for its own
grounding, which was not correctly captured by both of main positions of modern philosophy:
physicalistic objectivism and transcendental subjectivism. Such path leads philosophy to the
need of a specific task, which is phenomenology. This is called to accomplish an authentic
and consistent intentional analysis of the consciousness that constitutes the world, revealing
for the first time as a philosophical theme the life-world, which appears then as the
grounding soil for all sciences: philosophy, logic, mathematics, natural sciences etc. The
study then performs a revision of part of the literature regarding the concept of life-world,
following detailed considerations of a few important critics: in the perspective of the
evolution of the idea of world in Husserls texts, in the perspective of intersubjective
constitution of the world and historical relativism, but also in the perspective of a universum
of being and truth, and finally, in the perspective of the totality of intentional life. Regarding
the problems of the ways into transcendental philosophy, corresponding to the third part of
the text, we have analysed in this study only the way by inquiring back from the pregiven life-
world, while the way from psychology was left for a future investigation.
Key-words: Husserl, life-world, crisis of sciences, transcendental phenomenology
SIGLAS E ABREVIATURAS
As seguintes siglas so adotadas para a citao das obras de Edmund Husserl,
conforme a Husserliana: Edmund Husserl Gesammelte Werke (Husserl Archives
Leuven):
Hu I = Cartesianische Meditationen und Pariser Vortrge. (1991)
Hu III = Ideen zu einer reinen Phnomenologie und phnomenologischen Philosophie.
Erstes Buch: Allgemeine Einfhrung in die reine Phnomenologie. (1976)
Hu IV = Ideen zu einer reinen Phnomenologie und phnomenologischen Philosophie.
Zweites Buch: Phnomenologische Untersuchungen zur Konstitution. (1991)
Hu V = Ideen zu einer reinen Phnomenologie und phnomenologischen Philosophie.
Drittes Buch: Die Phnomenologie und die Fundamente der Wissenschaften. (1971)
Hu VI = Die Krisis der europishen Wissenshaften und die transzendentale
Phnomenologie. Eine Einleitung in die phnomenologische Philosophie. (1976)
Hu VII = Erste Philosophie (1923/24). Erster Teil: Kritische Ideengeschichte. (1956)
Hu VIII = Erste Philosophie (1923/24). Zweiter Teil: Theorie der phnomenologischen
Reduktion. (1959)
Hu IX = Phnomenologische Psychologie. Vorlesungen Sommersemester 1925. (1968)
Hu XV = Zur Phnomenologische der Intersubjektivitt. Texte aus dem Nachlass. Dritter
Teil: 1929-1935. (1973)
Hu XVII = Formale un Transzendentale Logik. Versuch einer Kritik der logischen
Vernunft. Mit ergnzenden Texten. (1974)
Hu XVIII = Logische Untersuchungen. Erster Band: Prolegomena zur reinen Logik. Text
der 1. und 2. Auflage. (1975)
Hu XIX = Logische Untersuchungen. Zweiter Band: Untersuchungen zur Phnomenologie
und Theorie der Erkenntnis. (1984)
Hu XXV = Aufstze und Vortrge (1911-1921), pp. 3-62: Philosophie als strenge
Wissenschaft (1987)
Hu XXXII = Natur und Geist. Vorlesungen Sommersemester 1927. (2001)
Hu XXXIX = Die Lebenswelt. Auslegungen der vorgegebenen Welt und ihrer
Konstitution. Texte aus dem Nachlass (1916-1937). (2008)
Crise = A crise das cincias europias e a fenomenologia transcendental.
Ideias = o conjunto da obra Hu III, Hu IV e Hu V
Citaes dos manuscritos seguem a nomeclatura do Manuscript index, disponvel no stio
dos Arquivos Husserl: http://www.hiw.kuleuven.be/hiw/eng/husserl/ToC.php
SUMRIO
INTRODUO .....................................................................................................................10
CONSIDERAES ACERCA DA SITUAO DO TEXTO..............................................10
ESTRUTURA DA CRISE ......................................................................................12
SNTESE PROSPECTIVA ...........................................................................................13
CAPTULO I PORQUE HUSSERL FALA DE UMA CRISE DA CINCIAS?................................19
1.1 A NOO DE CINCIA EM HUSSERL...................................................................19
1.2 QUAL A FUNO DA FENOMENOLOGIA PARA A CINCIA? ....................................21
1.3 OS SENTIDOS DE CRISE E O PROBLEMA DA FUNDAO DA FILOSOFIA ............23
1.4 APRESENTAO DOS PARGRAFOS DA PARTE I DA CRISE ................................24
CAPTULO II ANLISES HISTRICO-TELEOLGICAS NA CRISE .......................................35
2.1 O PROBLEMA DA HISTRIA EM HUSSERL ..........................................................35
2.2 A NECESSIDADE DE UMA REDUO HISTRICA .................................................43
2.3 A CRTICA DA TRADIO FILOSFICA NA CRISE................................................45
2.4 A MATEMATIZAO DA NATUREZA COM GALILEU ( 9 DA CRISE) ...................46
2.5 O PERCURSO DE GALILEU KANT ( 10 A 27 DA CRISE) ................................52
2.6 CRTICA DO OBJETIVISMO FISICALISTA ................................................................59
2.7 CRTICA DO SUBJETIVISMO TRANSCENDENTAL ................................................63
CAPTULO III O MUNDO-DA-VIDA .................................................................................69
O CONCEITO DE MUNDO-DA-VIDA ..............................................................................69
3.1 AS DIFICULDADES NA ANLISE DO MUNDO-DA-VIDA........................................70
3.2 O CONCEITO DE MUNDO-DA-VIDA SEGUNDO ALGUNS COMENTADORES ............72
3.2.1 A PERSPECTIVA DA EVOLUO DA IDIA DE MUNDO, EM DAVID CARR ............72
3.2.2 A PERSPECTIVA INTERSUBJETIVA, EM DAN ZAHAVI .........................................79
3.2.3. A IDIA DE UM UNIVERSUM DE SER E DE VERDADE, EM MARBACH ET. AL. .......84
3.3. POSSVEL CONCILIAR AS DIVERSAS NOES DE MUNDO-DA-VIDA? ................91
CAPTULO IV A VIA DO MUNDO-DA-VIDA................................................................105
4.1. A EPOCH DA CINCIA OBJETIVA ........................................................................105
4.2 A ONTOLOGIA DO MUNDO-DA-VIDA E A EPOCH TRANSCENDENTAL ..............107
4.3 CARACTERIZAO DA NOVA VIA PARA A REDUO........................................111
4.4 O PARADOXO DA SUBJETIVIDADE HUMANA ........................................................117
CONCLUSO ....................................................................................................................121
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................124
10
INTRODUO
CONSIDERAES ACERCA DA SITUAO DO TEXTO
Antes de examinar a obra A crise das cincias europias e a fenomenologia
transcendental, deve-se atentar para o status peculiar desse texto. Trata-se do ltimo grande
trabalho do filsofo Edmund Husserl, cujo manuscrito principal remonta a 1935-1936.
Husserl trabalhou sobre os problemas pertinentes Crise, segundo o organizador do texto,
Walter Biemel, de 1935 a 1937.
O texto encontrou ocasio de ser elaborado a partir de um convite que Husserl
recebera para realizar uma conferncia no Wiener Kulturbund, a qual se realiza em Viena,
aos 7 de maio de 1935. O acolhimento foi tal que, sob solicitao geral, Husserl repete-a em
10 de maio. A conferncia de Viena foi intitulada A filosofia na crise da humanidade
europia. Acerca das conferncias realizadas em Viena, em uma carta de 10 de julho de
1935, endereada Roman Ingarden1, Husserl escreve:
Em Viena as coisas andaram de modo surpreendente. Havia chegado sem um verdadeiro e prprio manuscrito completo, porque havia adiado a deciso de falar naquela cidade, aps postergar as conferncias de Praga, e tambm em seguida a outros obstculos. Superei o excesso de cansao e falei em 7 de maio, com um sucesso inesperado. Quanto ao essencial, improvisei. A filosofia e a crise da humanidade europia Primeira metade: a idia filosfica da humanidade europia (ou da cultura grega) esclarecida em base s suas origens histrico-teleolgicas (em base filosofia). Segunda parte: a causa das crises a partir do final do sculo XIX, a causa da falncia da filosofia, ou seja, das suas ramificaes, das cincias particulares modernas da falncia da sua vocao (da sua funo teleolgica) e fornecer um guia normativo quele tipo superior de humanidade que, enquanto idia, deveria historicamente tornar-se a Europa. A primeira parte era uma conferncia em si completa e ocupava uma boa hora. Decidi, logo, concluir e desculpar-me pela excessiva amplitude do tema. Mas o pblico insistiu para que continuasse a falar, e assim, aps uma pausa, continuei e tambm para a segunda parte encontrei um vivaz interesse. Tive que repetir dois dias depois a conferncia dupla (e ainda com a sala repleta) mas foram de novo duas horas e meia. (Hu VI, pp. xiii, xiv)
Em novembro do mesmo ano, proibido de publicar ou falar em pblico na Alemanha,
Husserl realiza, convidado pelo Cerche Philosophique de Prague pour ls recherches sur 1 Cfr. HUSSERL, Edmund. Briefe an Roman Ingarden (The Hague: Martinus Nijhoff, 1968), p. 89.
11
lentendement humain, duas conferncias na Universidade Alem, e duas na Universidade de
Praga, as quais, ampliadas, tornaram-se a Crise propriamente dita.
Em 1936, Husserl publica o incio do trabalho (partes I e II) no volume I da revista
Philosophia, em Belgrado, com a seguinte apresentao:
O escrito ao qual dou incio com o presente artigo, e que levarei a termo atravs de uma srie de artigos que aparecero em Philosophia, prope-se a fundar, atravs de uma considerao histrico-teleolgica dos incios da nossa situao crtica, cientfica e filosfica, a inevitvel necessidade de uma revoluo fenomenolgico-transcendental da filosofia. Assim, estes artigos tornar-se-o uma introduo autnoma fenomenologia transcendental. O escrito nasceu da elaborao de pensamentos que constituam o contedo essencial de um ciclo de conferncias que eu, aderindo ao amigvel convite do Circle de Prague pour les recherches sur lentendement humain, realizei metade em novembro de 1935 nas aulas cordiais da Universidade Alem e Tcheca de Praga.
A terceira parte da Crise (III A e B) deveria ter sido publicada na mesma revista, em
1937, mas Husserl manteve o manuscrito para fazer algumas modificaes, neles trabalhando
at o manifestar-se da doena, em agosto de 1937.
O texto final foi ento reconstrudo, aps sua morte, em base aos manuscritos de
Husserl, mas o texto principal restou incompleto. Coube ao seu assistente mais prximo no
momento, Eugen Fink, com quem Husserl havia discutido mais detalhadamente o trabalho,
transcrever o manuscrito principal. Os manuscritos dos ltimos anos ligados s questes da
Crise foram reunidos no grupo K III 2, classificados como manuscritos de pesquisa, o que
significa que o texto apresenta desafios especficos, como andamento por vezes descontnuo,
como ressalta na introduo da obra o prprio organizador. O fato que os manuscritos foram
publicados em sua forma original, mas reagrupados pelo organizador em conexo com o texto
central que Husserl havia destinado publicao. Outro elemento importante o fato que,
dado o grande volume de manuscritos, a publicao foi limitada ao j citado grupo K III e,
mesmo dentro desse grupo, houve uma escolha.
Ao final, a Crise talvez seja um dos textos mais complexos e intricados de Husserl,
uma vez que, embora se constitua em uma introduo fenomenologia, traz importantes
inovaes metodolgicas, como a considerao da historicidade de maneira essencial, bem 2 K III: Manuskripte nach 1930 zur Krisisproblematik (http://www.hiw.kuleuven.be/hiw/eng/husserl/ToC.php)
12
como uma nfase particular sobre o conceito de mundo-da-vida (Lebenswelt). Sobre esses
dois pontos retornaremos em captulos especficos, mas para efeito desta introduo, basta
antecipar que esses dois elementos, dada sua importncia, constituem o centro de nossas
consideraes.
ESTRUTURA DA CRISE
O texto sobre o qual trabalhamos foi o Band VI da Husserliana, Die Crise der
europishen Wissenshaften und die transzendentale Phnomenologie. Eine Einleitung in die
phnomenologische Philosophie, aos cuidados de Walter Biemel, editado pela Martinus
Nijhoff em 1976 (2 edio), sendo que todas as citaes tm como base esta edio.
O texto completo da Crise tem a seguinte estrutura:
Introduo de Walter Biemel;
Primeira Parte: A crise das cincias como expresso da crise radical da vida da
humanidade europia, correspondendo aos pargrafos 1 a 7;
Segunda Parte: A origem do contraste moderno entre objetivismo fisicalista e
subjetivismo transcendental, correspondendo aos pargrafos 8 a 27;
Terceira Parte: Esclarecimento do problema transcendental e a inerente funo da
psicologia, a qual inclui as subpartes A (A via de acesso filosofia transcendental
fenomenolgica por meio da reconsiderao do mundo-da-vida j dado) e B (A via
de acesso filosofia transcendental fenomenolgica a partir da psicologia),
correspondendo, respectivamente, aos pargrafos 28 a 55 e 56 a 73.
Quanto aos textos anexos, estes tambm se subdividem em duas partes. A parte
A trata das Dissertaes:
o A primeira dissertao, intitulada Cincia da realidade e idealizao. A
matematizao da natureza., remonta aos anos 1926-28 e trata do problema da
idealizao, o qual ocupa uma posio significativa na Crise;
o A segunda dissertao de 1930, e intitula-se A atitude das cincias
naturais e a atitude das cincias do esprito. Naturalismo, dualismo e psicologia
13
psicofsica. Dedica-se a distinguir a atitude das cincias da natureza e aquela
das cincias do esprito, problema que constitui o centro da parte II da Crise.
o A crise da humanidade europia e a filosofia, nada menos que a
conferncia realizada por Husserl em Viena (1935).
A parte B trata propriamente dos Apndices I a XXIX.
Na seo seguinte, faremos uma primeira abordagem sinttica aos problemas que
constituem as motivaes de Husserl na Crise.
SNTESE PROSPECTIVA
Na seo anterior vimos como a Crise um texto particularmente intrincado e, ao
mesmo tempo, que apresenta um carter inaudito dentro da obra de Husserl.
Trata-se de uma obra significativa no desenvolvimento de Husserl por causa da
elaborao do conceito de mundo-da-vida (Lebenswelt), mas, alm disso, o texto contm
uma dimenso que ainda igualmente inovadora: a considerao da historicidade na anlise
filosfica. Como dir Walter Biemel em sua introduo Crise: esta a primeira
publicao na qual Husserl tome expressamente posio sobre a histria e na qual trate
tematicamente o problema da historicidade da filosofia. (Hu VI, p. xviii)
Husserl, porm, como vimos em sua carta endereada Roman Ingarden, insistir na
importncia de realizar reflexes teleolgico-histricas, as quais serviro como uma
introduo fenomenologia transcendental. Talvez ainda mais importante, afirma David Carr
(1974), o fato de que ele ataca a epistemologia tradicional por pensar que pudesse ignorar a
histria, insistindo que a teoria do conhecimento uma tarefa histrica peculiar (Hu VI, p.
370).
Com isso queremos pr em relevo que no se trata apenas de um novo modo de
apresentao da fenomenologia, que mantm a sua essncia inalterada, mas sim que a Crise
faz parte de um processo de contnuo desenvolvimento (e reflexo) que Husserl faz sobre a
fenomenologia, ao ponto tal que ele afirmar ter finalmente alcanado o verdadeiro incio da
filosofia. (Hu VI, p. xxix)
14
Mas porque h para Husserl uma crise das cincias e de que tipo de crise se trata?
Como enquadrar esta ltima grande obra no quadro geral das investigaes de Husserl?
Afirma-se, talvez tomando por base consideraes de Merleau-Ponty (CARR, 1974),
que a Crise se constitui em uma ruptura clara de Husserl em relao sua prpria filosofia,
mais particularmente com relao aos aspectos de seu idealismo transcendental. Paul Ricoer
(1949) falar de repugnncia da fenomenologia transcendental pelas consideraes
histricas. No estamos de pleno acordo com essa posio e apresentaremos nossos
argumentos nos captulos posteriores. De fato, entendemos que a Crise possui uma funo
clara no processo de desenvolvimento da fenomenologia. Husserl mantm-se fiel a um fim
que permeia toda sua obra e, aplicando o mtodo de anlise por ele mesmo proposto na
Crise, compreende-se que no h ruptura, mas sim avano na direo do fim estabelecido,
qual seja, a fundao da filosofia e da unidade das cincias em torno filosofia e a elaborao
do mtodo para a reduo transcendental. Nesse sentido, vale ressaltar que a Parte IV da obra,
no escrita, mas citada por Fink em seus esboos, era intitulada justamente: A idia de que
todas as cincias sejam reassumidas na unidade da filosofia transcendental. (Hu VI, p. xxii)
No prefcio de Phenomenelogy and the problem of history, David Carr afirma que a
abordagem histrica sistemtica utilizada na Crise por Husserl forma uma nova parte do
mtodo fenomenolgico (CARR, 1974, p. xxvi), a qual chama de reduo histrica,
entendida como uma crtica da tradio filosfica. O curioso desse mtodo, que ele fora
Husserl a criticar no apenas seus predecessores, mas tambm o seu prprio trabalho, em
aspectos cruciais, como o prprio entendimento de mundo.
Ns adicionamos: a crtica dos pr-conceitos histricos e a sua relao com o mtodo
fenomenolgico, em Husserl, aparecem j em A filosofia como cincia de rigor (Hu XXV),
texto de 1911. Na concluso do texto, Husserl afirma:
Sofremos ainda demais os preconceitos que provm do Renascimento. Para quem realmente isento de preconceito, indiferente que uma afirmao seja de Kant ou de Toms dAquino, de Darwin ou de Aristteles, de Helmholtz ou de Paracelso. No preciso insistir para que se veja com os prprios olhos: necessrio, antes, no alterar, sob a coero dos preconceitos, o que foi visto. (Hu XXV, p. 62)
O que parece ser fundamentalmente novo na Crise, como dissemos, a elaborao
madura da noo de mundo-da-vida (Lebenswelt) e, com ela, da nova via para a reduo
15
transcendental. Husserl criticar abertamente a via cartesiana, expondo suas motivaes3 e,
ao mesmo tempo, dar um passo importante para o desenvolvimento geral da fenomenologia,
ao renovar seu mtodo4: isso determinar, de agora em diante, o mtodo da fenomenologia
transcendental (Hu VI, p. 190). Nesse sentido, podemos ento concordar com as afirmaes
de ruptura.
Para alm desses significados metodolgicos de agudo interesse filosfico, para
compreender as ideias expostas por Husserl na Crise, preciso partir daquele entendimento
perene sobre o mtodo das cincias e sobre os seus critrios de certeza, e mais ainda, preciso
entender a noo de cincia a qual Husserl se refere. Trata-se, como veremos, de uma crise de
fundamentos, uma crise acerca da cientificidade das cincias, uma crise que as prprias
cincias no so capazes de resolver, visto que cabe filosofia, na viso de Husserl, resolver o
problema da das cincias em seu conjunto, partindo da fundao da prpria filosofia.
Do ponto de vista do mtodo empregado pelas cincias, classicamente temos o mtodo
indutivo e o mtodo dedutivo. O mtodo dedutivo encontra suas origens no silogismo
aristotlico (CAROTENUTO, 2007). O mtodo indutivo, que tem seus rudimentos na
maiutica socrtica, ser elaborado em seus particulares por Francis Bacon, sistematizado de
modo matemtico por Galileu Galilei e, posteriormente levado a extremos pelo positivismo
cientfico, que reduz o conceito de cincia quilo que pode ser conhecido por meio desse
exclusivo mtodo. Tudo o que se pode conhecer para alm do mtodo positivista no seria
cientfico. A crtica aos limites dessa noo de cincia abundante. J em 1911, Husserl
chama a ateno para o fato que nas cincias matemtico-fsicas, a maior parte do trabalho
resulta de mtodos indiretos. Por conta disso, somos muito propensos a superestimar tais
mtodos e a desconhecer o valor das apreenses diretas (...), da intuio direta (Hu XXV, p.
62).
A questo que podemos colocar de modo preliminar a seguinte: qual o fundamento,
o critrio de certeza desses dois procedimentos racionais?
Classicamente falando, o critrio de certeza universal a evidncia. Se tomarmos o
silogismo, por exemplo, este apelar, em ltima instncia, evidncia de primeiros princpios
ou axiomas, como o princpio de identidade e o princpio de no contradio. Eis que
retornamos a Parmnides com o ser , o no ser no . Para alguns filsofos, como Kant,
por exemplo, a lgica estaria ento j devidamente fundada, devidamente esgotada
3 43. Caractersticas de uma nova via para a reduo em distino via cartesiana. 4 55. A retificao de princpio da primeira epoch por meio da reduo ao ego absolutamente nico e atuante.
16
naquilo que Aristteles havia desenvolvido. Kant no se questionar sobre o que efetivamente
nos consente realizar esta operao evidente. Ir se questionar sobre como possam ser
possveis a matemtica e a fsica como cincias enquanto no seja possvel tornar cientfica a
metafsica (GONZLEZ PORTA, 2002). A matemtica e a fsica se fundam em indues
completas e incompletas, respectivamente, mas tampouco apresentam o seu fundamento.
Como dar um fundamento evidente ao ponto, ao nmero, ao tomo etc.?
A cincia positivista, em particular aquela que inicia com Galileu Galilei, , para
Husserl, ingnua na medida em que no se questiona sobre o fundamento de suas operaes
metdicas, mas tambm o a lgica. Tais operaes, em ltima instncia, apelam para a
evidncia do operador de cincia, mas os positivistas no se perguntam o que permita realizar
esta operao evidente. Mais ainda, a ingenuidade das cincias naturais positivas reside no
fato de que elas, de fato, no se ponham como tema o problema do ser da natureza, no
atingindo, portanto, um conhecimento rigoroso: Deduzir no equivale a explicar. Prever, ou
ainda, reconhecer e depois prever as formas objetivas da estrutura e dos corpos qumicos ou
fsicos tudo isso no esclarece nada, antes, tem necessidade de um esclarecimento. (Hu VI,
p.193)
A resoluo deste enigma, dir Husserl, passa pela resoluo do conflito entre as duas
posies principais da filosofia moderna: o objetivismo fisicalista e o subjetivismo
transcendental (Hu VI, Parte II, 8 a 27). No possvel resolver este conflito apelando para
modelos de subjetividade postulados (Kant), nem tampouco para a necessidade (no
demonstrada) de um objeto transcendente (Descartes). Em outras palavras, essas duas
posies no souberam colocar (nem resolver), adequadamente, o problema transcendental.
Foi preciso uma superao de pr-juzos histricos milenares, para que se empreendesse uma
verdadeira anlise intencional, uma fenomenologia em sentido prprio, para que se retirasse
do anonimato o mundo-da-vida e, com isso, para que a filosofia pudesse centrar e investigar
o problema transcendental. As anlises histrico-teleolgicas tm a funo, portanto, de
explicitar quais so esses pr-juzos.
Husserl abre uma nova estrada e percorre esta estrada ao longo de sua vida de filsofo.
Na Crise, Husserl repercorre esta estrada, analisando-a criticamente na relao com a
histria da filosofia, mas no apenas. Em sua ltima grande obra, ser central no uma anlise
em sentido de retrospectiva histrica das principais ideias que antecederam fenomenologia,
mas no sentido de uma historicidade, a qual precisa ser desvelada para consentir, como j
17
acenamos, uma filosofia em sentido autntico. O tema da historicidade na Crise, de fato,
merecer um captulo parte, como um dos temas centrais deste trabalho.
O ponto de partida desse empreendimento a reflexo sobre a profundidade no
atingida por Descartes em suas Meditaes. Para Husserl, Descartes chega ao porto de
entrada daquele reino de evidncias originrias, que denomina mundo-da-vida (Hu VI, p.
130), mas ali se paralisa por uma necessidade de demonstrar que havia, ento, descoberto a
alma (Hu VI, 17 e 18). Ao contrrio, afirmar Husserl, ser preciso seguir adiante por esta
via e percorr-la at o fim, descrever como o mundo, que consideramos uma obviedade, de
fato se constitua na subjetividade, e por meio de que operaes. Husserl no se prope a
descrever esta subjetividade pura5 a qual chama de Ur-ich ou tambm plo egolgico mas
descrever suas vivncias, chegando tambm a afirmar que o objeto de estudo de uma
psicologia verdadeiramente cientfica seja este eu originrio (Ur-ich), como ele constitua o
mundo, por meio de que operaes e como se d a sua relao com os outros plos
egolgicos, ou seja, como seja possvel a intersubjetividade (ZILLES, 1996).
Outro aspecto fundamental da Crise a soluo para o problema crtico do
conhecimento proposta pela fenomenologia transcendental. A soluo deve passar
necessariamente pela soluo daquilo que denomina paradoxo da subjetividade, a qual
contemporaneamente objeto no mundo e sujeito para o mundo (Hu VI, 53).
Na Crise Husserl trata de duas vias de acesso filosofia transcendental
fenomenolgica: 1) a partir da reconsiderao do mundo-da-vida j dado e 2) a partir da
psicologia. A terceira parte do texto, de fato, ocupa-se da descrio dessas duas vias de acesso
filosofia transcendental fenomenolgica (Hu VI, 28 a 73). No que tange, porm, a via a
partir da psicologia, Husserl afirmar que necessria uma psicologia distinta daquela de
Wundt, de Freud ou mesmo daquela de Brentano; esclarece quais so os limites da psicologia
de seu tempo e qual deveria ser a tarefa de uma autntica psicologia.
Sintetizando o quanto dito, podemos assim descrever a estrutura lgica da Crise:
1) Fazer cincia enfrentar o problema do ser, de um setor ou regio do ser,
portanto, a verdadeira compreenso cientfica, para Husserl, uma compreenso
filosfica, transcendental.
5 No que tange ao ego, damo-nos conta de nos encontrarmos em uma esfera de evidncia; a tentativa de ingagar para alm dela, seria um no-senso. (Hu VI, p. 192)
18
2) A verdadeira cincia rigorosa, portanto, a filosofia, e no a fsica, a
matemtica ou a lgica, as quais precisam de um fundamento ltimo.
3) A filosofia, portanto, se quer exercer o seu papel fundante no quadro das
cincias, deve saber centrar e resolver o problema transcendental.
4) Husserl demonstra, por meio de anlises histrico-teleolgicas, que o problema
transcendental no havia at ento sido tratado adequadamente pela filosofia. Os pr-
juzos histricos ocultaram o verdadeiro problema transcendental, na medida em que
ocultaram o mundo-da-vida, que restou um mundo annimo de fenmenos jamais
investigados.
5) Foi preciso, na histria da filosofia, o trabalho da fenomenologia, uma verdadeira
anlise intencional, para desvelar o mundo-da-vida.
6) Husserl estudou ao longo de sua vida algumas vias para realizar a filosofia
fenomenolgica transcendental. Na Crise, supera de certo modo a assim chamada
via cartesiana, privilegiando a via do mundo-da-vida e a via da psicologia, que,
porm, no pode ser uma psicologia nos moldes das cincias objetivas exatas, uma
psicologia cindida da filosofia.
Neste trabalho nos restringiremos via de acesso fenomenologia transcendental pela
reconsiderao do mundo-da-vida j dado.
19
CAPTULO I PORQUE HUSSERL FALA DE UMA CRISE DA CINCIAS?
1.1 A NOO DE CINCIA EM HUSSERL
Um dos motivos principais pelos quais, em uma primeira leitura, as ideias da Crise
podem restar incompreensveis , sem sombra de dvida, a no compreenso do que Husserl
entende exatamente por cincia e, particularmente, por cincia rigorosa.
Portanto, antes de compreender porque possvel falar de uma crise das cincias,
porque, para Husserl a lgica, a matemtica e a fsica ainda precisassem de um fundamento
ltimo, e, finalmente, porque, para ele, a filosofia a cincia capaz de prover este
fundamento, preciso atentar para a sua noo de cincia.
A pergunta que Husserl se coloca, e que serve de pano de fundo para sua ltima
grande obra, : a ideia clssica de cincia, a ideia de cincia que nasce no mundo grego com
Aristteles, Plato etc. e que atravessou milnios, possvel?
O seu texto de 1911, A filosofia como cincia rigorosa 6 (Hu XXV), pode ser aqui
de extrema utilidade, visto que ali j se encontram dispostos os elementos para compreender a
sua noo de cincia. Em particular, serve iniciar com a clebre citao que Husserl faz de
Rudolph Hermann Lotze7, filsofo alemo do sculo XIX, quando afirmava que calcular o
curso do mundo no significa compreend-lo. Essa compreenso, qual Lotze chama a
ateno, para Husserl o compreender filosfico que deve desvelar os enigmas do mundo e
da vida, a compreenso transcendental (Hu XXV).
Husserl defende a ideia de que as cincias devam superar essencialmente dois
preconceitos: 1) aquele com relao s ideias de outros pensadores visto que, de fato, boa
parte do trabalho realizado pelos cientistas resulta do usufruto de resultados atingidos por
outros cientistas, e no de intuies diretas prprias e 2) o preconceito dos fatos, para que
no reste prisioneira de mtodos indiretos de matematizao e simbolizao. (Hu XXV)
Verificar-se-ia um grande progresso nas cincias, caso se reconhecesse e recuperasse o
enorme valor da intuio direta, que , para ele, sinnimo de apreenso fenomenolgica da
6 Philosophie als strenge Wissenschaft, 1911 (Hu XXV). 7 1817-1881.
20
essncia. H aqui um campo infinito de pesquisa por realizar, uma cincia de novo tipo, a
qual, embora no faa uso dos mtodos indiretos de matematizao e simbolizao, pode
obter conhecimentos autenticamente rigorosos8 (Hu XXV). A funo da filosofia, como
cincia dos fundamentos ltimos, dar rigor cientfico evidncia, sendo esta o fundamento
para, depois, poder fazer cincia: matemtica, lgica, fsica etc.
A carncia desse fundamento ltimo, ou seja, a ausncia de um mtodo
verdadeiramente intuitivo que atinja metodicamente a evidncia originria e, por outro
lado, a hiper-presena de mtodos indiretos matematizao e simbolizao provoca uma
espcie de atrofia da cincia, que resta prisioneira do preconceito dos fatos. Alm disso,
conforme afirmar na Crise, a carncia desse mtodo intuitivo, faz com que as assim
chamadas cincias exatas e objetivas no sejam capazes de tematizar o ser da natureza, ou
dito de outro modo, as cincias naturais no indagam a natureza na conexo absoluta na qual
o seu ser prprio e real desdobra o seu sentido de ser. (Hu VI, p. 193) Para Husserl, a nica
real explicao a compreenso transcendental e, por consequncia, o saber em torno
natureza, que prprio das cincias naturais, no equivale a um conhecimento
verdadeiramente definitivo, a uma explicao da natureza. (Hu VI, p. 193) A possibilidade de
deduzir, induzir e prever requer uma ulterior explicao e fundamentao.
Partindo dessa perspectiva, Husserl considera que as teorias so pouco mais do que
mquinas computacionais acompanhadas apenas de um mnimo de insight racional que os
gregos honraram com o nome de teoria. A racionalidade tcnica das cincias relativa e
unilateral que deixa o outro lado [a intuio] na completa irracionalidade. (Hu XVII, p. 15)
A reao natural a tais afirmaes no poderia ser outra que de surpresa e, tambm
compreensivelmente, de indignao, visto que as cincias obtm, notoriamente, contnuos
sucessos. Husserl no quer, de fato, desvalorizar a grandeza dos gnios criativos que
operaram no mbito na atitude natural, nem tampouco desmerecer a prpria atitude natural
(Hu VI, p. 193), na qual operam as cincias exatas e objetivas. O mtodo das cincias deve
recuperar, para sua prpria completude, a intuio direta, pois, por outro lado, a excluso da
compreenso transcendental decapita, por assim dizer, as cincias da possibilidade de uma
verdadeira compreenso e explicao de seus objetos de estudo.
8 Estamos aqui ainda nos primrdios da formalizao do mtodo fenomenolgico: as Idias, de fato, sero elaboradas principalmente entre 1912 e 1929.
21
Eliminada a compreenso transcendental, no se pode atingir, uma verdadeira
compreenso dos fenmenos do mundo e, por outro lado, do prprio ser humano. Elaboram-
se leis, mas no se compreende a motivao dessas leis:
Esses cientistas (...) vem a correspondncia de alguns efeitos, mas no sabem a motivao dessas leis. Isso demonstrado pelo fato de que o homem organiza algumas hipteses que, em seguida, define como leis, porque fazem parte daquele contnuo cotidiano no qual a natureza acontece. Porm, depois ausente do ponto fundamental do seu viver e, tranquilamente, passa a definir mistrio, onde ele concretamente vivente. (MENEGHETTI, 2010, p. 107)
So indicadores dessa atrofia, para Husserl, o fato de que as cincias tenham
perdido o seu sentido para a vida. Acusa-se a dificuldade da pesquisa, a insuficincia e a
impreciso dos instrumentos de medida, mas os problemas de uma autntica humanidade, os
assim chamados problemas da razo, restam margem da cincia.
De todo modo, a cincia deve ser capaz de compreender a vida, o mundo e o homem.
Esse elemento possui uma surpreendente correspondncia com a clebre proposio 6.52 do
Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein, o qual foi publicado, como se sabe, anos
antes da Crise:
Sentimos que, ainda que todas as possveis questes da cincia recebam resposta, os
problemas da nossa vida no foram nem mesmo tocados (WITTGENSTEIN, 1921).
1.2 QUAL A FUNO DA FENOMENOLOGIA PARA A CINCIA?
Compreendida a noo de cincia presente em Husserl, para que elas atinjam o seu
pleno esclarecimento, faz-se necessria uma crtica da cincia, ou melhor, uma cincia da
cincia (KOCKELMANS, 1970, p. 5), que , para Husserl, a fenomenologia. Isso se justifica
pelo fato de que a crtica das cincias leva a uma crtica da experincia e, esta, torna-se uma
crtica da razo. Todas as cincias esto em ltima instncia fundadas na evidncia e isso,
pode-se dizer, um dado comumente aceitvel. Podemos afirmar, adicionalmente, que a
evidncia e a experincia sempre envolvem um sujeito, e isso quer dizer, em termos
fenomenolgicos, que todas as cincias esto fundadas na intencionalidade produtiva da
22
subjetividade. As consequncias desse fato, porm, que no so to fceis de enfrentar, pois,
nos levam concluso que para sermos radicalmente objetivos, temos que tornar a
investigao radicalmente subjetiva (KOCKELMANS, 1970, p. 6).
A necessidade da fenomenologia pode ento ser assim sintetizada: dado que a cincia
um produto do esprito, a prpria cincia no pode ser investigada por uma cincia da
natureza. Uma cincia da cincia , necessariamente, uma cincia do esprito
(Geistwissenschaft). Cabe filosofia cuja forma ltima para Husserl a fenomenologia
transcendental a tarefa de ser a cincia ltima, de ser a cincia dos fundamentos ltimos.
Embora os cientistas no precisem desse conhecimento para atuar:
(...) sem uma racionalidade intrnseca e clareza dos prprios fundamentos, uma cincia operativa reduz-se a uma mera tecnologia, cujas tcnicas permitem prever eventos futuros e o controle tcnico da natureza. Isso torna o mundo mais til, mas no por isso mais compreensvel (KOCKELMANS, 1970, p. 10).
O fundamento do conhecimento, para Husserl, est na intuio imediata, e no em
uma inferncia mediada. Porm, ao invs de apoiar-se na deduo a partir do ego, como fez
Descartes, ele prope-se a realizar uma descrio da vida do ego em sua correlao intuitiva
com o campo das objetividades categoriais e eidticas , as quais constituem os conceitos
elementares e os pressupostos de todas as cincias. Trata-se de um retorno evidncia
originria e no s falsas evidncias do naturalismo. O rigor do mtodo fenomenolgico
apia-se no ver diretamente ao invs de apoiar-se na exatido dedutiva. A fenomenologia,
portanto, nega a impossibilidade de ir alm dos dados da conscincia e busca o fundamento
ltimo das cincias. Isso significa que o fundamento das cincias, ou melhor, o paradigma da
razo husserliana a evidncia, e no as concluses dos mtodos indutivo e dedutivo. por
meio da intuio das essncias que a fenomenologia prov um fundamento radical para as
cincias, ou seja, o fundamento em uma evidncia racional, na qual o objeto d-se pura e
simplesmente conscincia (KOCKELMANS, 1970, p. 25).
Eis porque para Husserl fundamental a tarefa da fundao de todas as cincias a
partir da fundao da filosofia. A fenomenologia teria assim a funo de cincia da cincia, de
mathesis universalissima (Hu VIII, p. 249). Nesse sentido, portanto, a crtica mais radical de
Husserl dirige-se aos filsofos, aos quais, na qualidade de funcionrios da humanidade, cabe a
23
tarefa de investigar os fundamentos ltimos da cincia e, desse modo, re-estabelecer o nexo
entre as cincias e o mundo-da-vida.
1.3 OS SENTIDOS DE CRISE E O PROBLEMA DA FUNDAO DA FILOSOFIA
Analisando retrospectivamente a primeira parte da obra, podemos assim enunciar os
problemas tratados por Husserl:
1) Foi necessria a crtica fenomenolgica a fim de recuperar o verdadeiro tlos da
filosofia, o qual se encontrava encoberto por uma srie de equvocos histricos;
2) Tal tlos pode ser desvelado apenas por meio da aplicao do mtodo
fenomenolgico. Rumo a uma autntica fundao da filosofia como cincia rigorosa, a
Crise traz tona a necessidade de uma crtica adicional, a qual denominaremos, com
David Carr, de reduo histrica. Todo filsofo filho de seu tempo, herdeiro
dos resultados j atingidos por seus predecessores, mas tambm dos pr-juzos
constitudos historicamente. Por conta disso, no se d conta da prpria tarefa da
filosofia, pois coloca seus problemas, j na partida, de um modo determinado, no
necessariamente errneo, mas comprometido pelo vis histrico. O filsofo, portanto,
se no faz reduo histrica, poder ser pr-condicionado historicamente e, se quer
ser um pensador autnomo, dever submeter-se a esta reduo histrica.
3) Logo, essencial esse passo metdico ulterior no sentido da fundao da filosofia,
qual seja, analisar a filosofia segundo o critrio da reduo histrica, de modo a
encontrar como resduo, a sua interna teleologia, desvelando seus equvocos para
elucidar a autntica tarefa do filsofo. No se trata, portanto, de rever a histria da
filosofia, ao estilo aristotlico, para ento apresentar a fenomenologia ou qualquer
outra corrente filosfica, mas sim de levar a srio e at as ltimas consequncias, o
sentido da historicidade no mtodo filosfico, levar a cabo uma reviso histrica para
compreender a tarefa da filosofia.
4) Uma vez levada a cabo esta reviso histrica particular, est-se em condies de
recuperar ou atingir o mundo-da-vida, o qual ser para Husserl a fonte ou
fundamento ltimo tanto para a filosofia, quanto para as demais cincias.
24
5) Esse ltimo elemento desvelado, o mundo-da-vida, dada a sua problematicidade
e complexidade, ser enfocado em um captulo parte, mas para efeito destas
consideraes iniciais, pode-se caracteriz-lo como um reino de evidncias originrias,
em distino s falsas evidncias derivadas de ingenuidades filosficas, das quais o
filsofo deve precaver-se por meio de uma radical reflexo consentida a partir do
mtodo fenomenolgico.
Tomando ento como guia a noo de cincia analisada na seo anterior, bem como o
retrospecto acima traado, estamos em condies de apresentar a Parte I do texto da Crise, a
qual se compe de sete breves pargrafos. O escopo destas anlises explicitar as motivaes
que permitem a Husserl falar de uma crise das cincias.
1.4 APRESENTAO DOS PARGRAFOS DA PARTE I DA CRISE
1. EXISTE VERDADEIRAMENTE UMA CRISE DAS CINCIAS, TENDO EM VISTA OS SEUS CONTNUOS
SUCESSOS?
J do ttulo apreende-se que, antes de tudo, Husserl tem plena conscincia de que no
h, entre os seus contemporneos, um comum acordo quanto ao fato de que as cincias em
geral possam estar passando por uma crise.
Devo esperar que nesta sede, consagrada s cincias, j o ttulo destas conferncias: A crise das cincias europias e a psicologia9 suscite alguma controvrsia. Pode-se seriamente falar de uma crise das nossas cincias em geral? Este discurso, hoje habitual, no constitui talvez um exagero? (Hu VI, p.1)
Se considerarmos duas linhas fundamentais de compreenso da Crise, quais sejam, a
demonstrao da necessidade de uma fenomenologia luz de uma anlise da essncia
histrico-teleolgica da situao filosfica atual; e, ao mesmo tempo, uma introduo
fenomenologia, onde aparece com destaque uma discusso das contradies da psicologia
como cincia da vida subjetiva, deveramos ser levados suspeita de que o problema da
9 Era este o ttulo originrio do ciclo de conferncias de Praga.
25
crise da psicologia (como contido no ttulo original do ciclo de conferncias em Praga,
conforme citao acima) no poderia ser colhido como um problema isolado, mas como um
ndice de um contexto muito maior para o qual a crise se alarga, qual seja, a crise da
cientificidade das cincias.
Husserl deve, portanto, ocupar-se inicialmente de definir exatamente o que entende
por crise das cincias. Trata-se, como afirmarmos, de questionar o fundamento da
cientificidade das cincias em geral, ou seja, questionar se o modo como as cincias pem as
suas prprias tarefas, bem como o mtodo pelo qual pretendem resolv-las, possuam um
fundamento.
Se tal crise de fundamentos pode passar despercebida no mbito das cincias naturais,
em parte por causa de sua produo de resultados, em parte por causa de sua reduo a tecns,
no que tange especificamente filosofia, para Husserl, tal crise evidente. Quanto
psicologia, no entendida como cincia positiva de fatos, tal crise tambm a atinge, antes, ser
justamente ali onde, historicamente, surgiro os primeiros paradoxos apontados por ele. De
fato, para Husserl, a psicologia assumir um papel central, posto que a extenso do mtodo
indutivo das cincias fsicas para o seu mbito de pesquisa representaria no apenas uma crise
de fundamentos da prpria psicologia, mas tambm uma crise do objetivismo como um todo
e, por fim, tambm uma crise da filosofia.
Retornando, porm, ao mbito geral das cincias naturais no esqueamos que o
momento histrico em que Husserl escreve esta obra corresponde ao de mxima confiana
nos princpios positivistas, cujos resultados s poderiam ser a prova (em sentido pragmtico)
de sua verdade seria tambm possvel falar de crise na fsica, na matemtica e nas demais
cincias consideradas exatas? De fato, a fsica restava modelo exemplar de cientificidade e
seria muito difcil, poca de Husserl, atribuir-lhe um status de beira do abismo.
Aristteles e Galileu, Newton e Einstein pareciam ser membros de um movimento de
progresso contnuo, o qual sob nenhum ponto de vista estaria ameaado ou em crise.
O modo como Husserl prope colocar o fato de que a amplitude da crise atingiria
tambm a fsica e a matemtica, segue a seguinte linha de raciocnio: Husserl pergunta-se
quanto solidez dos princpios da fsica e da matemtica, consideradas as mudanas
estruturais decorrentes de novas abordagens tericas, como as de Plank ou Einstein, e das
discusses entre tericos matemticos sobre os fundamentos da matemtica, que
posteriormente culminaro com a prova do teorema da incompletude fornecida por Gdel. Em
outros termos: quando novas descobertas e avanos so realizados, que impem uma reviso
26
estrutural de nossas cincias, o que podemos dizer dessas cincias antes de tais descobertas e
avanos: elas eram menos cientficas do que se tornaram aps tais descobertas e avanos?
Pode-se dizer que elas ainda no tinham atingido seu fundamento ltimo e definitivo? Quando
poderemos dizer que elas se tornaram finalmente cientficas?
Retornando ao caso especfico da cientificidade da psicologia, Husserl acrescenta:
Apenas com relao psicologia, que at mesmo pretende ser a cincia fundamental, abstrata, definitivamente explicativa com relao s cincias concretas do esprito, no seremos talvez to seguros. Mas, considerando que o evidente desvio no mtodo e nas operaes deriva de um desenvolvimento por natureza mais lento, se ser geralmente dispostos a reconhecer tambm ela a sua validade. (Hu VI, p.2)
No que se refere filosofia e ao seu mtodo, impe-se, para Husserl, um abismo, ao
qual dedicar suas consideraes, indicando que o escopo central da obra seja, efetivamente,
dar um fundamento cientfico para a filosofia, levando em conta o papel inerente da
psicologia para a resoluo desse problema:
De todo modo, o contraste entre a cientificidade deste grupo de cincias e a no-cientificidade da filosofia indiscutvel. Por isso, ns reconhecemos as boas razes do interior protesto dos cientistas, seguros do seu mtodo, contra o ttulo destas conferncias. (Hu VI, p.2-3)
Porm, at este ponto, ainda no possvel colher a conexo da carncia de
fundamento da filosofia e em que medida tambm as cincias positivas sejam carentes de uma
fundamentao ltima e definitiva.
2. A REDUO POSITIVISTA DA IDEIA DA CINCIA IDEIA DE UMA CINCIA DE FATOS. A CRISE DAS
CINCIAS COMO PERDA DO SEU SIGNIFICADO PARA A VIDA.
No obstante a aparente inatacabilidade das cincias, em particular do ponto de vista
da legitimidade do seu mtodo, h uma crtica sria e necessria, que tem o seu aspecto mais
exposto na psicologia. A problematicidade prpria da psicologia refere-se ao que Husserl
chama de paradoxo da subjetividade, o qual est intimamente conexo com a temtica e o
27
mtodo da psicologia. De fato, para atingir o seu intento de fundamentar a filosofia, e por
consequncia, fundamentar todas as cincias, enquanto ramificaes da filosofia, Husserl ter
que, primeiramente, resolver o enigma da subjetividade.
Ele afirma: Tudo isso no constitui outro que uma primeira indicao do sentido
profundo ao qual estas conferncias se propem. (Hu VI, p.3)
Husserl toma como ponto de partida o significado que a revoluo positivista, ocorrida
no final do sculo XIX teve para a humanidade, a qual, por um lado trouxe uma notvel
prosperity, mas que por outro distanciou a humanidade dos problemas que, para ele, so
justamente aqueles que caracterizam uma humanidade autntica:
As meras cincias de fatos criam meros homens de fatos. A revoluo da atitude geral do pblico foi inevitvel, especialmente aps a guerra, e sabemos que na mais recente gerao ela se transformou at mesmo em um estado de nimo hostil. Na misria da nossa vida ouve-se dizer esta cincia no tem dada a nos dizer. Ela exclui por seu prprio princpio aqueles problemas que so os mais pungentes para o homem, o qual, nos nossos tempos atormentados, sente-se merc do destino; os problemas do sentido ou no-sentido da existncia humana como um todo. (Hu VI, p.4)
Para Husserl, a cincia do nosso tempo nada tem a dizer sobre os problemas
tipicamente humanos, pois ela abstrai justamente de qualquer forma de subjetividade. Tal
tambm o caso das assim chamadas cincias do esprito (Geistwissenschaften), nas quais, para
que haja uma rigorosa cientificidade, faz-se necessrio evitar qualquer tomada de posio
subjetiva. Essa e no outra a perda de sentido das cincias para a vida. Para Husserl, a
humanidade europia, em um certo sentido, est doente e cabe filosofia abrir o percurso pelo
qual se chegou a esse estado de coisas, mas tambm recuperar o sentido que nos torna
verdadeiramente humanos.
Sob este ngulo, pode-se afirmar que as cincias como um todo, e no apenas a
filosofia ou a psicologia, encontram-se em crise. Trata-se, para James Dodd: [de um]
sentimento de fracasso, advertido no ntimo de qualquer cientista e que pode ser representado
por meio da seguinte pergunta: que tipo de humanidade a nossa cincia est produzindo?
(DODD, 2004, p. 29).
Em sua ltima introduo fenomenologia, Husserl inicia de modo inusitado: admite
que o ttulo das conferncias seja uma espcie de clich popular. Porm, ao defender a noo
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de crise como lamento geral acerca da crise de nossa cultura, na qual a cincia est implicada,
no atingiremos toda a profundidade das anlises de Husserl.
Como veremos, por meio das anlises histrico-teleolgicas, esse apenas um dos
sentidos da ideia de crise, sendo aquele da necessidade de fundao da filosofia e, por
consequncia de todas as cincias, aquele que Husserl quer efetivamente por em relevo. Seria,
a nosso ver, mais adequado tomar como parmetro introdutrio a passagem onde Husserl (Hu
VI, p.7) afirma que com a falncia da filosofia, as cincias como um corpo veem-se
decapitadas (o positivismo dacapita, por assim dizer, a filosofia), ou para adotar uma analogia
com Descartes, so ramos que florescem de um tronco sem razes.
3. A FUNDAO DA AUTONOMIA DA HUMANIDADE EUROPIA COM A NOVA CONCEPO DA IDEIA
DE FILOSOFIA NO RENASCIMENTO.
Apesar do pessimismo inicial, Husserl retoma nesse pargrafo elementos histricos
que demonstram que nem sempre a cincia mirava uma verdade rigorosamente fundada no
sentido daquela objetividade que ora domina metodicamente as nossas cincias positivas (Hu
VI, p. 5), viso esta que tambm atinge a prpria filosofia e a viso de mundo dos filsofos.
O momento histrico para o qual Husserl chama a ateno o Renascimento, no qual
se d uma virada essencial no significado da cincia para a humanidade, no sentido de uma
limitao positivista da ideia de cincia. Nesse perodo, a humanidade abandona o modo de
vida medieval e reivindica a plena liberdade fundada na razo10.
Como notrio, a humanidade europia atua durante o Renascimento uma virada revolucionria. Ela volta-se contra os seus precedentes modos de existncia, aqueles medievais, desvaloriza-os e exige plasmar a si mesma em plena liberdade. Ela descobre na humanidade antiga um modelo exemplar. Sobre esse modelo, ela quer elaborar as suas novas formas de existncia. (Hu VI, p.5)
10 Galileu precedido por homens que deram a forma mentis ao humanismo histrico: Coluccio Salutati, Gianozzo Manetti, Pico della Mirandolla, Marsilio Ficino, Alfono Daragomma, Aldo Manuzio, Lorenzo Valla entre outros.
29
A forma filosfica da existncia, ou seja, a capacidade de dar livremente a si mesma, a
toda a prpria vida, regras fundadas na pura razo, extradas da filosofia (Hu VI, p. 5) o
elemento recuperado pelo humanismo. O homem tal se construdo em base livre razo.
Outro elemento decisivo o significado de filosofia herdado dos antigos, a qual tem o
sentido de uma cincia omnicompreensiva, cincia da totalidade do ser. As cincias
particulares, portanto, so entendidas como ramos de uma nica filosofia, cujo escopo reunir
todas as questes por meio de uma metdica apoditicamente evidente em um progresso
infinito e racional de pesquisa. Para Husserl, o conceito positivista de cincia abandonou
todos aqueles problemas que podemos incluir no conceito de metafsica, os quais implicam os
problemas da razo seja no tocante ao problema do conhecimento, da ao tica, do sentido
da histria, de deus, da imortalidade, da liberdade etc.
Todos esses problemas metafsicos, entendidos no modo mais amplo possvel, os problemas especificamente filosficos no sentido corrente, ultrapassam o mundo enquanto universo de meros fatos. Ultrapassam-no exatamente enquanto problemas que miram idia da razo. E todos eles pretendem uma maior dignidade com relao aos problemas que concernem os fatos, os quais so subordinados a eles tambm com referncia ordem na qual se dispem. O positivismo decapita, por assim dizer, a filosofia. (Hu VI, p.7)
Na nova concepo de filosofia que se inicia com a renovao do ideal grego no
Renascimento , cabia metafsica as questes ltimas e supremas, bem como conferir s
demais cincias o seu sentido peculiar. No momento de sua renovao, afirma Husserl, a
filosofia acreditou ter descoberto um mtodo universal que consentiria construir uma filosofia
sistemtica, que pudesse levar metafsica, uma filosofia concebida como uma philosophia
perennis.
Conforme destaca Zilles (1996),
na fase da crise Husserl indaga o porqu do fracasso das cincias, perguntando pela origem dessa crise e redescrevendo a trajetria da razo ocidental. Constata que, pela matematizao, as cincias se afastam do mundo da vida e da teleologia que fundamenta a cultura ocidental.
Com essa passagem, queremos destacar, adicionalmente, que tambm a existncia
humana requer um fundamento, cuja evidncia , em um certo sentido, mais rica do que
30
aquela evidncia meramente lgica. Ao que parece, o ser humano teria essa fundamental
necessidade por significado e evidncia existencial, a qual a cincia, por ter abandonado os
problemas perenes de uma humanidade autntica, no mais consegue dar conta (DODD,
2004, p. 30).
4. A FALNCIA DA CINCIA, QUE PARECIA INICIALMENTE DESTINADA AO SUCESSO, E O MOTIVO
INEXPLICADO DESTA FALNCIA.
Para Husserl, o fracasso da humanidade moderna ocorreu porque a fora de propulso
emanante da f em uma filosofia universal perdeu o seu ideal e no compreendeu o porte do
seu mtodo (Hu VI, p.8). Mas o que isso significa? Que o novo mtodo das cincias s podia
ser aplicado nas cincias positivas. Na metafsica, mas em sentido mais amplo no mbito dos
problemas filosficos, o resultado histrico foi a ciso dos movimentos filosficos em
filosofias sistemticas muito imponentes, mas desgraadamente incapazes de atingir um
acordo, antes, reciprocamente hostis (Hu VI, p.8).
A crena na possibilidade de chegar a uma unificao da filosofia, de fato, no
conseguiu sobreviver e, considerando os progressivos sucessos obtidos pelas cincias
positivas, pode-se constatar um distanciamento progressivo dos profissionais das cincias
positivas em relao filosofia, bem como, por outro lado, um sentimento de falncia entre os
filsofos. Em termos da histria da filosofia, Husserl chama a ateno para o perodo que, de
Hume a Kant, chega at os dias atuais, onde a filosofia buscou compreender os motivos dessa
falncia: (...) uma luta que, naturalmente, foi conduzida apenas por pouqussimos eleitos,
enquanto a maioria encontrava e continua a encontrar com muita desenvoltura as frmulas
capazes de tranquilizar a si mesmos e aos prprios leitores. (Hu VI, p.9)
5. O IDEAL DE UMA FILOSOFIA UNIVERSAL E O PROCESSO DO SEU NTIMO DISSOLVIMENTO.
O problema, como Husserl o desenvolver, pode ser proposto da seguinte forma:
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A filosofia tornou-se um problema para si mesma, antes de tudo, como compreensvel, o problema da possibilidade de uma metafsica; este problema investia, no sentido que implcito no que j se disse, a possibilidade de toda a problemtica racional. (Hu VI, p.9)
Ocorre que a crise no se restringir apenas metafsica, mas tambm envolver o
fundamento das cincias positivas, posto que estas so, ainda que possam repelir qualquer
forma de metafsica, estudos de setores particulares do ser. Os problemas da razo englobam,
por assim dizer, os problemas particulares das cincias:
possvel separar a razo e o essente11 (Seiendes) se justo a razo que, no processo
cognoscitivo, determina o que o essente ? (Hu VI, p.9)
importante para tanto compreender a forma do processo histrico da filosofia. A
tarefa preliminar dos filsofos, para Husserl, justamente realizar uma explicitao da
motivao interna da filosofia universal e, particularmente, compreender as linhas de
desenvolvimento da filosofia a partir da fundao originria da poca moderna (Hu VI, p.9).
Aqui cabe a antecipao de um questionamento: no contexto de uma sria
considerao quanto ao ponto de partida de uma filosofia consequente e radicalmente
fundada, considerando que os filsofos so como seres histricos herdeiros de
determinados pontos-de-vista histrico-filosficos, o que dizer de tal afirmao? Residiria
nela algum resqucio de pr-juzos histricos? Em que medida tambm Husserl est imune de
sua prpria crtica? Em que medida a Crise no seria tambm uma autorreflexo e uma
autocrtica feita por Husserl sua filosofia? Retornaremos a esta citao, dada a sua
relevncia, quando tratarmos do tema da historicidade. O que se verificou na histria da
filosofia, dir Husserl, foi a dissoluo desse ideal. O problema do ideal autntico de uma
filosofia universal ir tornar-se a mola propulsora dos movimentos filosficos, mas, ao
mesmo tempo, uma vez que esse ideal no foi realizado, o ponto focal da crise de todas as
cincias modernas:
(...) a crise da filosofia equivale a uma crise de todas as cincias modernas enquanto ramificaes da universalidade filosfica; ela torna-se uma crise, primeiramente latente e depois cada vez mais claramente evidente, da humanidade europia, do significado global da sua vida cultural, da sua global existncia. (Hu VI, p.10)
11 Embora a forma verbal particpio presente tenha cado em desuso na lngua portuguesa, restando apenas na forma de adjetivos (fervente, poente etc.), optamos por preserv-la ao invs de utilizar expresses aproximativas, como o ser que ou existente. David Carr (1970), em sua traduo para o ingls da Crise, utiliza a expresso that-which-is (aquilo-que-). Optamos, consistentemente, traduzir Seiende por essente.
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As formas de ceticismo contras as quais Husserl tanto lutou o historicismo, o
naturalismo e, em particular o psicologismo indicam a queda da f na razo, no sentido que
os antigos contrapunham episteme doxa. O resultado a perda do sentido prprio do que
chamamos humanidade. A histria da filosofia, ento, assumir a forma de uma luta pela
possibilidade de existncia da prpria filosofia, pois aceitar a derrota na fundao da filosofia
aceitar a derrota do sentido de uma humanidade fundada na filosofia. Do ponto de vista dos
argumentos empiristas, a razo torna-se um enigma, visto que no mundo da experincia
concreta no encontramos a razo ou suas ideias, e mais ainda, o prprio mundo que o que
em virtude da razo, que lhe confere sentido torna-se um enigma, juntamente com o
problema de quais sejam e como se estabeleam as ligaes entre razo de um lado e ser em
geral de outro. A filosofia moderna passa a ter como problema central, portanto, para Husserl,
a fundao da filosofia, ela deve tornar-se segura de seus problemas e mtodos, alm de
superar suas precedentes ingenuidades. Faz-se necessria, portanto, uma anlise radical das
motivaes que impulsionaram a filosofia em seus desdobramentos.
6. A HISTRIA DA FILOSOFIA MODERNA COMO LUTA PELO SENTIDO DA HUMANIDADE.
Embora a filosofia moderna possa apresentar aparentes contradies, possvel,
afirma Husserl, encontrar um fio condutor que revele uma unidade de sentido, de Descartes
at hoje, sem o qual no possvel compreender a filosofia de seu tempo. Husserl chamar as
filosofias cticas aquelas que no acreditam e no trabalham pela fundao de uma
metafsica de no filosofias, as quais mantiveram apenas o nome de filosofia, mas que
no podem propriamente assim serem denominadas; e de verdadeiras filosofias aquelas
correntes que mantiveram vivo o problema da fundao da filosofia.
Ao abrir mo do problema da fundao da filosofia, ao abrir mo do problema de uma
metafsica, estamos abrindo mo daquela via aberta pelos gregos, que consiste na vontade de
ser uma humanidade fundada na razo filosfica e sobre a conscincia de no poder ser de
outro modo (Hu VI, p.13). Significaria, portanto, admitir que a humanidade grega no tenha
revelado aquela entelequia12, que prpria da humanidade como tal, para a qual a filosofia e a
cincia no seriam outro que a revelao da razo universal inata na humanidade.
12 Termo grego que significa saber o ponto, saber o sentido.
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Alternativamente, a concluso poderia ser a seguinte: a humanidade grega (europia)
no revelou tal entelequia, mas trata-se apenas de um fenmeno histrico, no se constituindo
em uma ideia absoluta, mas em um mero tipo antropolgico emprico como a China ou a
ndia (Hu VI, p.14). Como ser tratado nos pargrafos seguintes, fato que a filosofia nos
tempos de Husserl teve que admitir e renunciar a uma certa forma de racionalismo, aquele do
sculo XVIII, considerando-o ingnuo e at mesmo contraditrio, mas no por isso, afirma
Husserl, devemos renunciar ao sentido autntico do racionalismo, visto que ao faz-lo,
estamos renunciando consequentemente possibilidade de fundao das cincias e da
filosofia.
7. O PROPSITO DESTAS PESQUISAS.
Na concluso desta Primeira Parte, Husserl coloca claramente o propsito ao qual a
Crise se prope, exortando os filsofos a um retorno ao problema da fundao da filosofia:
(...) viemos aqui apenas para escutar uma proluso acadmica? Podemos retornar tranquilamente ao trabalho que interrompemos, aos nossos problemas filosficos, construo da nossa prpria filosofia? Podemos seriamente faz-lo aps termos descoberto com certeza que a nossa filosofia, como aquela de todos os filsofos presentes e passados, no ter mais que a efmera existncia de uma jornada no mbito da flora filosfica que sempre de novo se renova e que depois torna a despetalar-se? (Hu VI, p. 15)
O filsofo, para Husserl, um funcionrio da humanidade, e tem a responsabilidade de
explicitar o verdadeiro ser da humanidade, o qual deve orientar-se a um tlos, por meio da
filosofia. Faz-se necessria, portanto, uma considerao crtica da finalidade e do mtodo da
filosofia. Essa considerao requer uma atitude radicalmente ctica requer uma epoch
radical, mas no em sentido negativo. Tal via de anlise, segundo Husserl, conduz
fenomenologia transcendental, a qual implica a mudana do sentido global da filosofia.
Simultaneamente, por meio dessas anlises, ser possvel compreender aquilo que Husserl
chama de a trgico falncia da psicologia moderna, qual seja, o fato de que a psicologia
exista em meio a uma contradio: pretende ser a cincia filosfica fundamental, mas d
origem, por outro lado, a contra-sensos, como aqueles do psicologismo, evidenciado na
filosofia do sculo XIX.
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Nessa ltima passagem, para James Dodd, h alguns pontos centrais que merecem
destaque. Para ele, Husserl quer provocar os filsofos responsabilidade em relao crise
das cincias. No se trataria, portanto, de uma anlise destacada, descomprometida,
estritamente acadmica, mas algo que toca o ntimo dos filsofos enquanto tais. Em outras
palavras: se somos verdadeiros filsofos, devemos nos importar com o fato de que justo a
filosofia carea de fundamento. (DODD, 2004, p. 13) Para ele, tambm o problema da
evidncia decisivo e central na evoluo da fenomenologia, e no apenas na Crise, mas
tambm nos escritos tardios de Husserl como um todo, em particular conexo com a questo
da origem do significado. Residiria a o sentido da relevncia posta por Husserl no mundo-
da-vida, como fundamento das cincias e em particular da filosofia, por entender que o
mundo-da-vida o nico contexto onde um significado pode ser significante doador de
significado , mas aos sentidos do conceito de mundo-da-vida para a crtica filosfica
retornaremos em outro captulo.
Ora, no que tange especificamente ao sentido da fundao proposto pela Crise,
algumas consideraes ulteriores fazem-se necessrias para seu esclarecimento.
Antes de tudo, o problema da fundao bastante anterior em Husserl. Tome-se como
exemplo as Investigaes Lgicas. Ali vemos Husserl ocupado, quando comparamos com
as reflexes da Crise, aparentemente, com um problema parcial, o da fundao da lgica
(Hu XIX) e o da refutao dos argumentos psicologistas (Hu XVIII). Porm, analisadas
dentro do conjunto da obra, as Investigaes Lgicas adquirem o significado de uma
pesquisa parcial-setorial, mas essencial e necessria, dentro de um mbito de pesquisa mais
amplo, o da fundao da filosofia e, em ltima anlise, das cincias como ramos do saber
filosfico.
Poderamos arriscar afirmar que o problema constante ao longo da vida de Husserl ,
verdadeiramente, o problema crtico do conhecimento, o qual inicialmente reconhecido em
um mbito setorial da cincia, a Lgica, que se via ameaada em meio ao ceticismo de origem
psicologista. Uma vez superado esse problema, nos prolegmenos (Hu XVIII), Husserl v-se
compelido a investigar um problema ainda maior, que o fundamento das cincias (Hu
XXV), discutindo o problema do historicismo e do naturalismo. Esse empreendimento
implica, porm, a necessidade de novos desenvolvimentos, em particular o desenvolvimento
do mtodo fenomenolgico (Hu III, Hu VI) em diversos aspectos, at atingir a radicalizao
ltima da epoch na Crise (Hu VI).
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CAPTULO II ANLISES HISTRICO-TELEOLGICAS NA CRISE
2.1 O PROBLEMA DA HISTRIA EM HUSSERL
Como j precedentemente destacado, as anlises histrico-teleolgicas tm um papel
de destaque na ltima grande obra de Husserl. Uma vez que foi possvel compreender porque
Husserl fala de uma crise de todas as cincias e, em particular, que foi possvel compreender o
papel da filosofia no interno desta problemtica, o prximo passo lgico da argumentao
de Husserl aquele de demonstrar analiticamente como, historicamente, tenham-se
construdo os equvocos da filosofia e da cincia. Mais ainda, Husserl quer demonstrar com
suas anlises que h uma teleologia nsita no percurso histrico da filosofia, a qual busca um
fundamento definitivo, o qual, no foi segundo Husserl corretamente capturado pelas duas
principais posies da filosofia moderna: o objetivismo fisicalista e o subjetivismo
transcendental. Tal percurso de anlises histricas conduz a filosofia necessidade de uma
tarefa especfica, que a fenomenologia. Esta chamada a realizar o empreendimento, at
ento no realizado, de uma anlise intencional consequente da conscincia constitutiva do
mundo. Esta anlise intencional, por sua vez, desvelar pela primeira vez como tema
filosfico, o mundo-da-vida e, este, revelar-se- como fundamento, sempre procurado, de
todas as cincias: filosofia, lgica, matemtica, cincias naturais etc.
Portanto, o problema da histria da filosofia e, em particular, o problema da histria
em Husserl, tem, como pano de fundo, questes bem mais complexas do que poderia parecer
em uma primeira leitura.
Uma distino preliminar, sem a qual se pode concluir equivocadamente acerca do
ineditismo das tratativas histricas da Crise, a tentao de confundi-las com aquelas
empreendidas em obras anteriores de Husserl, como a j citada A filosofia como cincia
rigorosa, de 1911, ou mesmo Filosofia Primeira, de 1923-24 (Hu VII). Em A filosofia
como cincia rigorosa, Husserl trata explicitamente do problema do historicismo (Hu
XXV), que para ele, uma das faces do ceticismo, na medida em que implica um relativismo
perene, por causa do prprio devir histrico, do conhecimento. Ao relativizar o conhecimento
em funo da histria cada momento histrico implica e produz a sua verdade a
filosofia terminaria por v-se reduzida a uma mera viso de mundo, a mera produo
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cultural literria, como propunha o filsofo da Weltanschauung, Wilhelm Dilthey13. Husserl
demonstra como o ideal de filosofia estivesse ameaado por duas correntes daquele tempo:
naturalismo e historicismo.
J em Filosofia Primeira (1923-24), temos uma significativa mudana em relao s
obras precedentes. Certamente, aqui, a histria j entra em foco, quando ele dedica todo o
Volume I da obra a descrever criticamente a histria das ideias (Kritische Ideengeschichte).
Porm, ainda no clara nessas obras a ideia de que, nsita na histria da filosofia, haja uma
teleologia, um fio condutor que leva at a fenomenologia.
Nesse sentido, de natureza totalmente diversa, a discusso da histria da filosofia
empreendida na Crise. No ao acaso, questiona-se acerca da possibilidade de coerncia do
prprio projeto da filosofia transcendental com o da realizao de anlises histricas,
portanto, fala-se de ruptura com o idealismo transcendental, na Crise, e no em outras
obras.
O presente captulo busca, justamente, apresentar as anlises histrico-teleolgicas de
Husserl na Crise e, ao mesmo tempo, advertir o leitor da obra quanto a eventuais equvocos
de interpretao do sentido de tais anlises.
Por um lado, cabe ressaltar a importncia para a crtica filosfica, dessa questo em
Husserl. O historicismo poderia levar a uma forma de irracionalismo, com o qual Husserl
no estaria absolutamente de acordo, mas, por outro, h a tentao de acusar Husserl ele
mesmo de ser um historicista, por causa da sua reviso histrica do conceito de razo.
Para sermos exatos, Husserl no est absolutamente propondo um relativismo em torno ao
conceito de razo, mas sim quer revelar que o racionalismo no se desenvolveu
historicamente na direo adequada. No por causa de seus fracassos a filosofia deve
renunciar a um autntico racionalismo, sucumbindo aos absurdos do irracionalismo seja de
origem psicologista, historicista ou naturalista , mas sim, ela deve renovar a prpria
pesquisa, buscando o sentido genuno do racionalismo.
Feita esta premissa, compreende-se mais facilmente a escolha de Husserl pelas
anlises histricas. Elas precisam ser empreendidas para que se possa responder aos diversos
questionamentos que surgem a partir da refutao do irracionalismo. A histria, nesse sentido,
seria um instrumento, utilizado em alguns momentos do desenvolvimento da fenomenologia,
13 1833-1911.
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que permite a Husserl apontar para a necessidade de circunscrever a ideia genuna de
conhecimento racional ou de cincia.
A nfase dada s anlises histricas, porm, clara e distinta na Crise, perpassando
de maneira quase que constante toda a obra: na Parte II, intitulada A origem do contraste
moderno entre objetivismo fisicalista e subjetivismo transcendental, Husserl discute o
surgimento da cincia matemtica moderna com Galileu, e qual seja a sua influncia na
filosofia de Descartes, Hume e Kant. Husserl cita praticamente todos os principais filsofos
do perodo moderno at chegar fenomenologia. Tambm na Parte III, na qual Husserl trata
do mundo-da-vida e da psicologia, ele inicia com amplas anlises histricas (CARR, 1974).
Para Walter Biemel, organizador do texto, todo esse tratamento histrico no tem
outro objetivo que explicitar as causas pelas quais a cincia moderna deveria falir (Hu VI), o
que uma perspectiva bastante coerente e fiel s proposies de Husserl.
Como j destacamos anteriormente, falir significa a perda do tlos surgido para a
humanidade europia com a filosofia grega, aquele de querer ser uma humanidade em base
razo filosfica e de poder ser apenas como tal. A perda desse tlos significa, integralmente,
a perda do sentido da filosofia enquanto movimento histrico da revelao da razo
universal, inata como tal humanidade (Hu VI).
Paul Ricoer, por outro lado, talvez o autor que questione com maior rigor como
possa a fenomenologia incorporar vises histricas e, mais ainda, se essa anlise histrica seja
coerente com a ideia geral da fenomenologia transcendental: Como uma filosofia do cogito,
do retorno radical ao ego fundador de todo ser, torna-se capaz de uma filosofia da histria?
(RICOER, 1949). Para ele, a resposta que concilia esse aparente contra-senso decorre de uma
leitura que ponha em relevo o papel mediador entre a conscincia e a histria, atribuindo a
Ideias I (Hu III) o sentido de tarefas infinitas, as quais, por sua vez, implicam um progresso
sem fim e, portanto, uma histria. Ou seja, embora em Ideias I Husserl no realize
investigaes genuinamente histricas, para Ricoer encontramos ali as razes conceituais para
justificar tais anlises na Crise: a historicidade da conscincia (RICOER, 1949). Ocorre que
Ricoer escreve o seu artigo14 Husserl e o sentido da histria em 1949, quando a terceira
parte da Crise ainda no havia sido publicada, bem como o texto Filosofia Primeira, cuja
primeira edio, em alemo, de 1956.
Mas qual seria a significncia desse novo modo de considerar a histrica em Husserl?
14 Primeira publicao na Revue de Mtaphysique et de Morale, 54, 1949, p. 280-316.
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Um aspecto preliminar o fato de Husserl levar a srio a sua afirmao de que os
filsofos so funcionrios da humanidade, em um momento histrico onde parecia haver uma
concordncia geral acerca do fato de que a Europa como modelo tivesse chegado a um limite,
a um ponto de inflexo. Aceitando o seu papel, Husserl procuraria com suas reflexes
histricas fazer compreender o papel ocupado pela fenomenologia no quadro histrico da
filosofia. Tudo isso, segundo David Carr (1974) poderia ser reforado pela tendncia de seus
ex-estudantes a seguirem em caminhos filosficos diversos, em particular pela
Existenzphilosophie, com a qual a filosofia viu uma renovao da orientao histrica do
sculo XIX. Segundo essa anlise, a abordagem histrica de Husserl seria uma concesso ao
temperamento do momento (CARR, 1974), mas tal anlise reduziria a Crise a uma obra
de ocasio, as reflexes histricas teriam efeito mais retrico, do que propriamente
filosfico.
O papel das reflexes histricas da Crise, como j apontado anteriormente, parece-
nos ser bem outro. A crtica histrica tem um carter metodolgico, no obstante no se possa
negar o forte impacto que d obra.
Em sua introduo Crise, Walter Biemel afirma em um longo pargrafo:
esta a primeira publicao na qual Husserl tome expressamente posio sobre a histria e na qual trate tematicamente o problema da historicidade da filosofia. J a conferncia de Viena funda-se em uma determinada concepo da histria. A histria ento concebida como uma superao da atitude natural (enquanto prtico-natural), do atrito com o que imediatamente dado, como o desdobramento da filosfica, que na prospectiva de Husserl representa uma espcie de epoqu da vida originria dos interesses, e, positivamente, um modo (Erfassen) do essente (des Seienden) em sua totalidade. Com este pretenso de totalidade surge a idia de infinidade, que foi decisiva para a humanidade ocidental. Esta revoluo, que segundo Husserl representa juntamente uma superao do mtico, torna possvel antes de mais nada o nascimento das cincias europias, que depois vm cada vez mais em primeiro plano e terminam por desconhecer as prprias referncias com a filosofia. (Hu VI, p. xviii)
Por quanto se possa discordar da concepo husserliana da histria ou mesmo da
essncia do mundo grego por ele proposta, o essencial compreender o motivo pelo qual a
essncia da histria devesse desdobrar-se para ele no modo que resulta na Crise e nos
manuscritos de pesquisa deste perodo. (Hu VI, p. xviii)
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A pergunta central da Crise pode, em termos histricos, ser assim enunciada: como,
no obstante o grandioso desenvolvimento das cincias modernas, pde delinear-se uma crise
das cincias, que representa juntamente uma crise da humanidade europia? (Hu VI, xviii)
Por esse motivo, estaria justificado para Biemel o fato de Husserl ater-se
detalhadamente no tema do surgimento da cincia moderna com Galileu, que vem ocupar
quase metade da Parte II, no extenso 9. Alm de Galileu, Husserl trata detalhadamente do
pensamento de Descartes, por conta de sua importncia na formao das duas direes
filosficas tratadas na Parte II da obra, intitulada A origem do contraste moderno entre
objetivismo fisicalstico e subjetivismo transcendental (Hu VI).
Carr (1974), seguindo na mesma linha, afirma que o sentido das anlises histricas em
Husserl , mais do que til, necessrio: deve-se conhecer a tarefa da filosofia para ver no
apenas que ela fracassou no passado, mas tambm para filosofarmos adequadamente. A
familiaridade com os erros e tentativas da filosofia pode nos ajudar a evit-los.
A esse ponto, estamos prontos para introduzir o sentido que julgamos ser central nas
anlises histricas empreendidas por Husserl na Crise, o aspecto que lhe d um carter
verdadeiramente fenomenolgico e metdico. Ao final da Parte I, Husserl afirma:
(...) isso provocar uma mudana fundamental e essencial do sentido global da filosofia (...) que foi avaliado como bvio por meio de todas as suas formas histricas. Esta nova tarefa e o seu terreno apodtico universal (...) revelam tambm como toda a filosofia do passado fosse orientada, ainda que no conscientemente, a este sentido [tlos]. (Hu VI, pp. 16-17, grifos nossos)
Chamamos a ateno para o trecho avaliado como bvio, o qual indica, no modo
como queremos destacar.
O sentido parece ser realmente aquele de desmascarar uma obviedade, o que requer
uma reflexo e uma superao, exatamente ao estilo do que podera