A Dinastia de Jesus

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    PRÓLOGO

    A DESCOBERTA DA DINASTIA DE JESUS

    Não é comum existir um livro que leve quarenta anos a ser criado.Mas de certo modo é o que ocorre com A Dinastia de Jesus. Hámais de quarenta anos, era eu um adolescente, visitei a Terra Santapela primeira vez, com os meus pais e a minha irmã. Foi essa a expe-riência que me lançaria toda a vida na minha própria «busca pelo

     Jesus histórico». É aquela expressão a que os académicos recorremquando descrevem a pesquisa histórica que se tem desenvolvido nosúltimos duzentos anos em torno da figura de Jesus e das origens doProtocristianismo.

    O que sabemos realmente sobre Jesus? Como o sabemos? Há qua-renta anos, eu não havia sequer formulado esta questão com qualquertipo de erudição. Não sabia nada sobre arqueologia, nem sobre osManuscritos do Mar Morto, ou quaisquer outros textos antigos oupesquisa histórica. Mas havia começado a minha leitura da Bíblia,sobretudo do Novo Testamento, e estava fascinado pela figura de

     Jesus. Nessa viagem à Terra Santa, este interesse começou a transfor-mar-se num desejo mais intenso em aprender tudo o que pudesse seraprendido sobre Jesus e, de alguma maneira, em tocar esse passado.

    Lembro-me nitidamente de caminhar pela Cidade Velha de Jeru-salém. Pejada de turistas, todos cristãos. Nem judeus nem israelitas.Isto foi antes da Guerra dos Seis Dias em 1967, no tempo em que aparte oriental da Cidade Velha era ainda governada pela Jordânia.Fomos levados por um de entre as centenas de guias existentes que se

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    diziam residentes locais, e que se faziam contratar forçosamente alimesmo. Visitámos todos os locais tipicamente visitados pelos pere-grinos cristãos: a Igreja do Santo Sepulcro, o Monte das Oliveiras, o

     Jardim de Getsêmani, a Sala da Última Ceia, a Cúpula do Rochedo,no qual se erguera outrora o Templo dos Judeus. Num circuito des-tes, penetram-se em dezenas de igrejas, todas elas construídas séculosdepois do tempo de Jesus, mas nos locais exactos, dizia-se, onde ocor-rera este ou aqueloutro acontecimento.

    Ao longo dos três dias que ali passámos, comecei a sentir-me algodesiludido. Mesmo na imaginação, era-me difícil estabelecer uma liga-ção entre a Jerusalém do século XX com a cidade do tempo de Jesus talcomo era descrita no Novo Testamento. Mesmo que os nomes e oslocais fossem os mesmos, e identificados correctamente, o que eu viaà minha frente eram vestígios dos turcos, das Cruzadas, do ImpérioBizantino, com muito pouca, se alguma, coisa visível do século I d. C.Até o nível das ruas modernas, aprenderia mais tarde, se encontrava de3 a 5 metros acima das ruas dos tempos romanos. Comprara um guiaturístico cujo título era Caminhando por onde Jesus caminhou, e naminha ingenuidade era o que eu desejava fazer, de alguma forma.

    Alojámo-nos num pequeno hotel no cimo do Monte das Oliveiras,um pouco a oriente da Cidade Velha. Por volta da meia-noite, irrequie-to, saí da cama com a Bíblia na mão, e resolvi caminhar até ao Jardimde Getsêmani, nas faldas do Monte. O caminho íngreme até abaixo estáagora pavimentado, mas era visível, de ambos os lados, a rocha dura aespreitar, indicando assim que este era o caminho desde tempos antigos.Imaginei Jesus a descer por aquele mesmo trilho, montado num burro,entrando na Cidade Velha, e aclamado pelas gentes como o Messias, umasemana antes de ser crucificado. Nesses dias antigos era possível entrarno Jardim de Getsêmani a qualquer hora do dia e da noite, pois o por-tão estava sempre aberto, o que não acontecia nos dias em que eu fizesta visita. Os visitantes eram também autorizados a passear por entreas oliveiras centenárias. Naquela noite, e àquela hora, eu era a única pes-soa no local. As minhas leituras haviam-me convencido de que este erao sítio onde Jesus passara a sua última noite, rezando. Pela primeira vezna nossa visita, naquele lugar e naquele jardim, senti que podia alcan-çar e ligar-me a esse passado que buscava. Deixei-me ali estar duranteum longo período, tentando imaginar tudo. Pensava para mim mesmo

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    que este era o local. Que era ali que tudo acontecera. O «historiador»em mim começava a despertar, e talvez mesmo o «arqueólogo». Dealgum modo, dava os primeiros passos para o que haveria de ser umasenda de toda a vida, uma busca pela compreensão e a revelação da vidade Jesus tal qual ele a viveu.

    Há algo em cada um de nós que se entusiasma com esta experiên-cia de auscultar o passado. Pode ocorrer com uma carta antiga, umdocumento genealógico, um campo de batalha, um cemitério, oufragmentos de um qualquer texto antigo. Hoje é possível visitar o Reli-cário do Livro, no Museu de Israel, e ver os Manuscritos do Mar Mor-to, que datam sensivelmente do tempo de Jesus. Julgo que muitos dosvisitantes partilham das sensações que senti da primeira vez que os vi.Atrás de um vidro, a uma distância mínima, os documentos palpáveisque tinham sido escritos há mais de dois mil anos. Lembro-me deparar durante longos minutos em frente de cada uma das vitrinas,esforçando-me por me inteirar da realidade que se me apresentavanesse momento. Nesse local, uma pessoa está a olhar para os rolos depapiro desse tempo passado, com palavras em hebraico e aramaicoque talvez tivessem sido lidas por Jesus ou os seus seguidores.

    Muitos outros pontos em Jerusalém já foram alvos de escavaçõesaté à data. Podemos hoje caminhar e sentarmo-nos sobre os degrausque levam ao Templo que fora construído no tempo de Herodes, oGrande. Da primeira vez que visitei Jerusalém, em 1962, estes degrausencontravam-se a sete metros e meio abaixo da superfície, totalmen-te ocultos dos olhares modernos. Em alguns pontos, as imensas pedrasdos pavimentos romanos foram expostas. A três metros e meio abai-xo do nível moderno das ruas, no Bairro Judeu, pode-se caminhar porentre as ruínas de uma moradia rica, que provavelmente pertencera àfamília de um dos sacerdotes que presidira ao Sinédrio que condena-ria Jesus. No Verão de 2004, a piscina de Siloé, referida no Novo Tes-tamento, foi descoberta, depois de ter estado esquecida e escondidados olhares durante séculos. Em todo o país, o passado tem sidoexposto ao presente através da pá do arqueólogo, tal como através dadecifração dos textos antigos pelo historiador.

    Desde então, tenho retornado a Israel e à Jordânia dezenas de vezes,na qualidade de investigador e académico. Quer esteja a escavar emestações arqueológicas, a pesquisar numa biblioteca, ou a estudar

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    directamente um qualquer local ou área específicos, o meu fito nuncase altera: recriar o passado que mais relevância tenha para o nossopresente. A Dinastia de Jesus é uma nova investigação histórica sobre

     Jesus, a sua família real, e o nascimento do Cristianismo. É, ao mesmotempo, um reflexo da minha demanda pessoal, abarcando os resulta-dos das minhas pesquisas e das minhas reflexões ao longo de toda aminha carreira profissional.

    A Dinastia de Jesus apresenta a história de Jesus sob uma pers-pectiva completamente diferente. Trata-se de história, e não de ficção.Todavia, apresenta diferenças consideráveis, se não mesmo radicais,da imagem usual de Jesus transmitida pela fé, pela tradição, e pelosdogmas teológicos. A Dinastia de Jesus propõe uma versão originaldo Cristianismo, versão perdida e esquecida há muito, mas que podeser retraçada de forma fidedigna até ao seu fundador, o próprio Jesus.O impacto e as implicações deste livro são extremamente amplas epotencialmente revolucionárias. Sente-se algo nele que nos leva acaracterizá-lo como «a mais bela história que jamais foi contada».Emocionará e provocará alguns leitores, encolerizará e aborreceráoutros, mas desafiará todos a ponderar franca e honestamente as evi-dências e a considerar novas possibilidades, sejam quais forem as suasinclinações.

    A Dinastia de Jesus não tem quaisquer associações às noções popu-larizadas muito recentemente de que Jesus casou e teve filhos comMaria Madalena. Ainda que se trate de uma soberba ideia ficcional,é uma concepção que já tem sido especulada há anos mas que apre-senta poucas provas. Mas, como sucede muitas vezes, a verdade éainda mais surpreendente que a ficção, e igualmente misteriosa.

    Em A Dinastia de Jesus o leitor deparar-se-á com o facto de que Jesus é o filho varão de uma família real , isto é, descendente do reiDavid da antiga Israel. Jesus foi mesmo proclamado como «Rei dos

     Judeus», e mandado executar pelos romanos pela mesma razão. Aoinvés de uma igreja ou de uma nova religião, tal como comummenteentendido, Jesus estabeleceu uma dinastia real dos seus própriosirmãos e família mais imediata. Em vez de fundador de uma igreja,

     Jesus reclamou um trono. De acordo com os profetas hebraicos, oMessias, o varão de David, que reinaria sobre a nação de Israel nosúltimos dias, despontaria desta linhagem específica. Trechos recente-

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    mente publicados dos Manuscritos do Mar Morto trouxeram novosdados à colação, no que diz respeito à natureza concreta desta expec-tativa. Esta linha genealógica sobre a qual caíam todas as invejas, alinha da família de David era conhecida pela família de Herodes, osgovernantes nativos da Palestina da época, mas também pelas auto-ridades romanas que governavam o país, e até mesmo pelos impera-dores. Esta «linha real» não era somente observada com atençãocomo, em momentos de maior tensão, os seus membros eram perse-guidos e mortos.

    Pouco tempo antes de ter morrido, Jesus constituiu um governoprovisório com doze oficiais regionais, um sobre cada uma das dozetribos, ou distritos, de Israel, deixando ao seu irmão Tiago a respon-sabilidade máxima sobre este jovem governo. Tiago tornar-se-ia olíder incontestável do primeiro movimento cristão. Este significativofacto histórico foi esquecido na sua quase totalidade. Ou mais pro-priamente, escondido. Devidamente esclarecido, modificará tudo oque julgávamos saber de Jesus, do seu papel, da sua mensagem. Todosjá ouviram falar de Pedro, de Paulo, de João, mas o papel fulcral deTiago, o discípulo mais amado, e irmão mais novo de Jesus, foi real-mente apagado da memória cristã.

    A Dinastia de Jesus examina o como e o porquê dos cristãos teremperdido paulatinamente a noção de Jesus ter pertencido a uma grandefamília, cujos membros exerceram uma chefia dinástica sobre os seusseguidores. Esta história crítica e alternativa, que sobrevive ainda hojeno Novo Testamento e em trechos e pedaços da tradição posterior doCristianismo, pode ser efectivamente recuperada. Uma combinaçãoentre as mais recentes descobertas arqueológicas e a emergência de tex-tos já muito esquecidos permite-nos uma nova perspectiva a partir daqual podemos observar o nascimento do Cristianismo. Entender as ori-gens desta imensa religião global não nos consente apenas alcançarinteressantes dados sobre o passado, como também nos abre novoshorizontes em relação ao Cristianismo dos nossos dias. Temos agoraum entendimento sobre Jesus, tal como ele era no seu tempo e lugarpróprios, bem mais nítido, e historicamente mais exacto.

    Hotel American Colony, Jerusalém7 de Junho de 2005

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    INTRODUÇÃO

    UMA HISTÓRIA DE DOIS TÚMULOS

    Várias das maiores descobertas arqueológicas dos nossos tempostêm sido acidentais. É como se estivesse um misterioso axiomavelado em uso – aquilo que mais desejamos encontrar raramente des-cobrimos, e o que menos esperamos descobrir é revelado subitamente.Esta ideia parece-me particularmente aplicável no que concerne aoestudo histórico de Jesus e ao movimento iniciado por ele, que viriaa ser conhecido por Cristianismo. Podemos trazer à colação a desco-berta em grutas no deserto da Judeia dos Manuscritos do Mar Mor-to em 1947, ou o achado de uma ossada completa de um homem cru-cificado do século I d. C., por construtores de uma estrada, em

     Jerusalém em 1968, ou a descoberta inesperada, em 2000, do túmulodo sumo-sacerdote Caifás, que presidira o Sinédrio que condenou

     Jesus1. No que diz respeito à arqueologia, portanto, parece que otempo e o acaso têm tanto direito à cidadania quanto o método e umaplanificação rigorosa.

    Uma descoberta pela noite dentro em Jerusalém

    Vim a saber deste acontecimento em primeiríssima mão, já ao fimda tarde, de uma quarta-feira, mais precisamente a 14 de Junho de2000, enquanto fazia uma caminhada com cinco alunos meus2 no Valede Hinom, a sul da Cidade Velha de Jerusalém, numa área conhecida

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    por Aceldama. Estávamos em Israel há duas semanas, numa escava-ção de uma caverna recentemente achada, a alguns quilómetros a oes-te de Jerusalém, num local chamado Suba, que comporta os mais anti-gos desenhos de João, o Baptista3, alguma vez encontrados. Foi aUniversidade da Carolina do Norte, na cidade de Charlotte desse esta-do norte-americano, e na qual sou docente, que providenciou o apoioacadémico da escavação. Eu e o professor Shimon Gibson assumimosa direcção conjunta da mesma. Tinha sido uma viagem empolgante,a segunda vez que visitaríamos a «caverna de João, o Baptista», comoacabámos por lhe chamar. Tínhamos decidido fazer uma pausa, depoisde um duro dia de escavações sob um sol abrasador de Verão, e fazerum pequeno passeio de turismo arqueológico. O Vale de Hinom é umaárea pejada de antigos túmulos esculpidos na rocha, a um passo daaldeia árabe de Silwan. Muitos destes túmulos estão abertos, tendosido pilhados e esvaziados há séculos. Mas há ainda um número con-siderável de túmulos selados, intactos, cobertos pela terra que pisa-mos, e assim preservados ao longo de dois mil anos. Nesse fim de tarde,Gibson, um arqueólogo israelita, tinha-se oferecido para nos guiar porentre alguns dos túmulos abertos, dando-nos uma ideia em relaçãoaos modos funerários judeus do tempo de Jesus.

    Nenhum de nós fazia a mínima ideia da magnífica descoberta quese apresentava mais à frente, nem da sigilosa operação que se inicia-ria ali. Eu, pelo menos, não poderia sequer imaginar que tropeçaría-mos em algo que iria ter a ver com a pesquisa de toda a minha vida,concernente a Jesus histórico, e mais especificamente à própria dinas-tia de Jesus. O passeio por uma meia-dúzia de túmulos terminou pelassete da tarde. Já começava a ficar escuro e precisávamos de regressara Jerusalém, à Escola Britânica de Arqueologia na qual estávamos alo-jados, para descansar um pouco. No entanto, acabaríamos todos pornão dormir nada nessa noite.

    Quando regressávamos aos carros, Jeff Poplin, um dos meus alunos,apontou para o fundo da encosta onde tínhamos estacionado. A luz dopôr do Sol iluminava claramente a entrada de um túmulo recente-mente aberto. Havia um montículo de solo húmido à entrada e eramtambém visíveis pedaços de ossadas espalhados à volta. Encontravam--se ali as arcas de pedra que os judeus do século I usavam para guar-dar os ossos dos defuntos. À medida que nos aproximávamos, a

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    entrada rectangular do túmulo estava claramente à vista, medindo cer-ca de um metro quadrado. Enfiámos as cabeças lá dentro. Estava com-pletamente escuro, mas o cheiro a mofo húmido do espaço, fechadodurante milhares de anos, invadiu-nos as narinas. Não é um cheirodesagradável, mas é único, e jamais se esquece.

    Pilhagens a túmulos são relativamente raras por aqui. Numadécada, talvez se tenham verificado dois ou três casos. O governoisraelita tem uma unidade especial, armada, especificamente res-ponsável pela protecção das antiguidades, e a profanação de túmu-los é considerada um crime grave. Tendo em conta as ossadas que-bradas espalhadas à entrada e a terra fresca removida, era quasecerto que o túmulo com que nos deparávamos tinha sido saqueadona noite anterior.

    Gibson alertou de imediato as autoridades israelitas por telemó-vel e, dada a autorização, ele e o seu assistente Rafi Lewis, e doisdos meus alunos, penetraram no túmulo para fazer uma avaliaçãodos estragos, enquanto as autoridades não chegavam ao local.Quanto a mim e aos restantes, esperámos cá fora, vigiando. Escu-receu muito rapidamente. O túmulo tinha mais de uma câmara ounível. O grupo desapareceu no seu interior e passados uns minutosjá não os escutávamos. E as autoridades demoraram muito maistempo a chegar do que julgáramos. O tempo voava. Ao fim de cer-ca de vinte minutos, sem ouvir ou ver nada, os que estavam fora dotúmulo começaram a pensar se não deveríamos entrar e procurar osoutros.

    De repente, ouvimos os gritos de excitação de Lee Hutchinson,outro dos meus alunos, de início abafados, depois mais distintos, àmedida que vinha trepando para a câmara superior. Gritava: «Pro-fessor Tabor, Professor Tabor! O Professor Gibson descobriu algomuito importante!» Lee estava tão excitado que mal podia articularas palavras. Com a cabeça fora da abertura e o corpo no interior dacâmara, disse-nos que o túmulo tinha três câmaras ou níveis, e que namais baixa de todas, num nicho mortuário esculpido nas paredes, seencontrava um esqueleto com pedaços ainda intactos do tecido dosudário.

    Gibson acabou por emergir e explicou-nos as consequências desteachado magnífico. O culto fúnebre judeu do tempo de Jesus era efec-

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    tuado em dois momentos, que se podiam considerar como um pri-meiro e um segundo sepultamento ou funeral. Na primeira fase, o cor-po era lavado e ungido com óleos e especiarias, e envolvido numamortalha. Era então colocado numa prateleira de pedra, ou num nichoconhecido como loculus, esculpido directamente nas paredes de rochado túmulo. Deixava-se o corpo entregue à sua decomposição e desse-cação por um período até um ano. Quando finalmente não restassesenão quase ossos, esses restos eram guardados e colocados num ossá-rio ou «arca de ossos», usualmente esculpida em calcário4. O nomedo defunto era muitas vezes cinzelado ou riscado na superfície de umdos lados dessa arca. Alguns dos ossários guardam os ossos de maisde um indivíduo, e alguns apresentam mais do que um nome também.Estas arcas rectangulares com tampa variam de tamanho, mas a maio-ria compreende-se entre os 50x25x30 cm, compridas o suficiente paraalbergar um fémur, o osso da perna, e largas o suficiente para contera caveira.

    Foto com desenho em corte transversal do Túmulo do Sudário

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    Os ossários eram comummente utilizados nos funerais judaicos nazona de Jerusalém e área circundante, desde mais ou menos 30 a. C.até 70 d. C., isto é, um período de cerca de 100 anos em torno do davida de Jesus. As mais das vezes, acabam por ser achados graças apilhagens falhadas a túmulos, ou acidentalmente devido a um qual-quer projecto de construção. Quando um túmulo é violado desta for-ma, os arqueólogos são chamados como medida de emergência ou desalvamento, para serem registados todos os dados possíveis. Todos osartefactos, incluindo os ossários, são catalogados e armazenados, e osossos são devolvidos de imediato à comunidade ortodoxa judaica,para serem enterrados de novo.

    Milhares de ossários foram encontrados em Israel, sobretudo nostúmulos esculpidos em pedra nas imediações da cidade de Jerusalém,mas encontrar um esqueleto intacto ainda no loculus e envolvido namortalha era algo de inédito. Por alguma razão, a família do mortonão voltara após o primeiro funeral para o colocar no ossário, lugardefinitivo.

    Materiais orgânicos, como tecido, não sobreviveriam normalmentefora de uma área desértica, e com Jerusalém nas montanhas, com osseus Invernos húmidos e chuvosos, um achado destes era quase ina-creditável. Muito provavelmente, este túmulo não tinha conhecidointervenção humana desde o século I d. C. A maioria dos túmulos daárea de Aceldama datava do tempo de Jesus, e apenas alguns delestinham sido abertos ou saqueados ao longo dos séculos. Não haviaqualquer sinal que distinguisse, de modo especial, este dos restantestúmulos. Todavia, Gibson admitia que este esqueleto em particular,envolto no sudário, pudesse ter sido ali colocado numa época poste-rior, talvez nas Cruzadas, o que explicaria o seu estado de preserva-ção. Há casos em que túmulos mais antigos foram reutilizados poste-riormente. Mas Gibson estava convencido de que tínhamos encontradoo único exemplar alguma vez encontrado de uma mortalha do século I.Apenas os testes do carbono-14 ao tecido poderiam trazer-nos certe-zas. Todo este acontecimento fazia-me recordar as primeiras análisesdos Manuscritos do Mar Morto. Nessa altura, os académicos acharamuma ideia difícil de admitir que eles pudessem ter sobrevivido durantedois mil anos. Mas esses rolos haviam sido preservados graças ao calorseco do deserto da Judeia, e nós encontrávamo-nos na parte monta-

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    nhosa de Jerusalém, cujos Invernos eram, como dissemos, chuvosos ehúmidos. Quer isto dizer que nós estávamos perfeitamente preparadospara aceitar o facto de este tecido datar de uma época tardia medievalou das Cruzadas.

    Os israelitas chegaram com o supervisor Boaz Zissu, da Autori-dade para as Antiguidades de Israel. Passámos o resto da noite aremover e a etiquetar todos os fragmentos e bocadinhos do fragi-líssimo tecido que restava. Boaz informou-nos que este túmulo játinha sido aberto em 1998, por ladrões, e que ele e Amir Ganor, oresponsável pela protecção dos túmulos nesta área, tinham conse-guido selá-lo de novo e impedir assim que fosse completamente rapi-nado5. Na altura, ninguém notara o esqueleto amortalhado na câ-mara inferior.

    Uma vez que os meus alunos tinham estudado arqueologia, foramautorizados a participar. Gibson passou algumas horas agachadosobre as mãos e os joelhos, encolhido no interior do estreito loculus.Os estudantes fotografaram, etiquetaram, registaram todo e cada pas-so desta recuperação. Terminámos a tarefa já perto da madrugada, ea nossa carga, cuidadosamente acondicionada, seguiu para os labo-ratórios da Autoridade para as Antiguidades de Israel, no Museu Roc-kefeller, a norte da Cidade Velha.

    A nossa equipa voltou aos Estados Unidos poucos dias depois, eum precioso pedaço do tecido, ao qual foi rapidamente concedida alicença para exportação científica, foi enviado para o Laboratóriode Espectrometria de Massa por Acelerador da Universidade do Ari-zona, em Tucson, para efectuar a datação por carbono-14. Foi nestelaboratório que, em 1988, o famoso «Sudário de Turim» foi datadodo ano de 1300 d. C., demonstrando, assim, tratar-se de uma falsi-ficação medieval. E o destino fez com que o cientista com quem con-tactei em Tucson, o Dr. Douglas Donahue, fosse o mesmo que super-visionou os testes de carbono-14 ao sudário de Turim. Não disse aDonahue de onde vinha esta mostra, exceptuando o facto de que nãoera contemporânea, e de que precisávamos dos resultados o maisdepressa possível. Enquanto os dias passavam, era-me difícil pensarem qualquer outra coisa ou concentrar-me nos meus outros traba-lhos.

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    Na tarde de 9 de Agosto, Donahue telefonou-me para o meu gabi-nete da universidade. Já tinha os resultados do teste. Falou de um modocalmo e imperturbável. Perguntou-me se eu estava sentado e quandocomeçou a ler em voz alta o relatório, eu apercebi-me de uma ponti-nha de entusiasmo. A mortalha de Aceldama tinha sido cientificamentedatada da primeira metade do século I a. C. Exactamente a época de

     Jesus!Donahue enviou uma cópia do relatório por fax, que fiz chegar de

    imediato a Gibson em Jerusalém. Na carta que acompanhava o rela-tório, Donahue terminava o texto com uma singular observação: «Osnossos amigos do tempo do Sudário de Turim gostariam certamentede ter tido um resultado destes. Gostaria que me informasse das impli-cações deste resultado.» Estávamos apenas no início do estudo dotúmulo e do que restava do seu conteúdo. Nenhum de nós imaginavaas amplas ramificações que viriam a tornar-se reais.

    O próprio túmulo estava cheio de centenas de fragmentos espa-lhados, quer de ossos quer de ossários quebrados. Apenas um grandee pesado permanecia intacto, mas não apresentava qualquer inscrição.O que os ladrões de túmulos fazem habitualmente é retirar apenas unspoucos dos melhores ossários, preferencialmente os que apresentamas inscrições mais nítidas ou interessantes, o que impede um fluxodemasiado visível no mercado de antiguidades, podendo, assim con-tinuar a fazer vendas clandestinas ilegais a certos coleccionadores. Pro-positadamente quebram tudo o resto, levando apenas as peças comas inscrições, uma vez que são esses pedaços os que mais facilmentese vendem sem levantar grandes atenções.

    O Professor Gibson conseguiu reunir uma extraordinária equipa deespecialistas, para iniciar as análises científicas às ruínas do Túmulodo Sudário, incluindo antropólogos forenses, especialistas em tecidos,especialistas em ADN, paleobiólogos e epígrafos. Os ossários frag-mentados tinham de ser restaurados, o tecido do sudário analisado, efeitos testes de ADN e outros testes biológicos nos ossos. No final,tínhamos vinte ossários restaurados, e três deles contendo inscriçõesque tinham escapado aos ladrões. O mais nítido deles tinha escritoo nome «Maria», na sua forma aramaica. Um outro talvez tivesseescrito «Salomé».

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    Os testes de ADN realizados nas várias mostras de osso foramcoroados de êxito apesar de passados dois mil anos. Conseguimos esta-belecer laços de parentesco entre os indivíduos sepultados neste túmulo,a saber, de irmandade e de maternidade. Famílias próximas e famíliasalargadas utilizavam o mesmo túmulo esculpido em rocha ao longodas gerações. Quanto ao nosso indivíduo amortalhado, conseguimosdeterminar que «ele» era de facto um adulto do sexo masculino,provavelmente da classe aristocrática, que sofria de lepra (a doençade Hansen) e, após testes microbiológicos, que provavelmente teriamorrido de tuberculose.

    Eu e Gibson começámos a passar toda a literatura antiga a pentefino, em busca de pistas relacionadas com o uso de mortalhas e ossá-rios entre os judeus da Judeia e da Galileia no período romano. Comoé conhecido, as do Novo Testamento sobre o funeral secreto de Jesusfornecem-nos algumas das mais valiosas provas no que concerne aoscostumes judaicos em uso durante a primeira parte do século I d. C.,em Jerusalém – a mesma data do homem da mortalha. Afinal de con-tas, o corpo de Jesus foi lavado e envolto num sudário de linho deduas peças, deitado sobre uma prateleira ou uma lousa de pedra, com

    Fragmentos de ossários quebrados do Túmulo do Sudário

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    as especiarias, no interior de um túmulo escavado na rocha da famí-lia de um aristocrata, a poucos passos fora das muralhas da CidadeVelha de Jerusalém. O nosso homem amortalhado havia passado decerteza pelos mesmos passos, no seu funeral. Não havia qualquerrazão que nos permitisse especular que o túmulo que encontráramosestaria de algum modo relacionado com aquele que recebera o cor-po de Jesus, mas Gibson chamou-me a atenção uma vez, dizendo-meque o nosso «homem da mortalha» tinha vivido e morrido em Jeru-salém durante o tempo de Jesus e, enquanto membro das classes maisprivilegiadas, teria com toda a segurança observado os fatídicosacontecimentos daquele festival da Pesah, a Páscoa judaica, quando

     Jesus foi crucificado.No ano seguinte, no Verão de 2001, quando voltei a Israel para

    continuar a nossa pesquisa na caverna de João, o Baptista, não con-seguia deixar de pensar no Túmulo do Sudário. Comecei por fazeralgumas perguntas discretas um pouco por toda a Cidade Velha de

     Jerusalém, junto de alguns contactos que tinha no mercado das anti-guidades e em quem podia confiar. Consegui descobrir que alguns

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    Ossários restaurados do Túmulo do Sudário

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    dos fragmentos com inscrições desaparecidos dos nossos ossáriostinham entrado no mercado ilegal e podiam eventualmente vir a serresgatados. A dada altura a principal pessoa com quem eu estava anegociar perguntou-me se haveria um pagamento extra se todas asinscrições em falta fossem resgatadas. Tentei manter-me calmo comesta revelação implícita, fascinado pela ideia de que o material rou-bado do nosso túmulo poderia vir a ser recuperado. Por outro lado,eu sabia que pagar por bens roubados era algo que não poderíamosfazer. Por isso respondi tão-somente que discutiríamos este assuntoassim que eu pudesse ver os fragmentos. Pensei que era importantefrisar o aspecto científico do nosso projecto. Afinal de contas, aminha universidade seria agora a responsável pela publicação de umestudo académico sobre o Túmulo do Sudário, e nós não éramoscoleccionadores a querer deitar a mão a mais alguns novos artefac-tos. Tive a nítida impressão de que se ninguém fosse processado,poderia dar a ideia de que até se poderia pensar em alguma espécie de«transacção». Recuperar estes fragmentos teria sido algo de incal-culavelmente valioso para o nosso estudo do Túmulo do Sudário, pois

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    O nome «Maria» inscrito num fragmento do Túmulo do Sudário

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    assim estaríamos em condições de reunir os nomes dos defuntos, efazê-los corresponder, através do ADN, aos mais pequenos resíduoshumanos ainda detectáveis no interior dos ossários restaurados. Gib-son e eu estávamos a estudar a forma como isso poderia ser feito den-tro da legalidade, quando a Intifada, ou a revolta palestina, atingiutais níveis que nos apercebemos do perigo de continuar com estaideia. Numa dada ocasião, nesse Verão, depois de três ataques à bom-ba num fim-de-semana, fomos prevenidos para nem sequer entrar nacidade de Jerusalém. Tínhamos instalado a nossa estação de traba-lho na caverna de João, o Baptista, no Kibbutz de Suba, perto dolocal, mas fora das zonas de perigo.

    Consegui, na minha subsequente visita a Jerusalém, retomar os pas-sos da minha investigação a fim de recuperar os fragmentos dos ossá-rios em falta, através dos meus contactos no mercado de antiguida-des. Rapidamente descobri que tudo tinha mudado. Até aqueles comquem havia falado antes agiam como se jamais nos tivéssemos cru-zado. O que tinha mudado era o seguinte: em Outubro de 2002 foifeito o dramático anúncio de que um ossário com a inscrição «Tiagofilho de José irmão de Jesus» tinha sido subitamente achado. O seusurgimento e a controvérsia daí resultante tinham levado a que os quenegociavam antiguidades na Cidade Velha se mantivessem calados.

    A arca funerária de Tiago, o irmão de Jesus?

    Era precisamente meio-dia, no dia 21 de Outubro de 2002, quan-do Hershel Shanks, editor da Biblical Archeology Review («Revistade Arqueologia Bíblica»), anunciou numa conferência de imprensana cidade de Washington, que um ossário de calcário, ou «arca deossos», onde estavam inscritas as palavras, em antigo aramaico,«Tiago filho de José irmão de Jesus», tinha aparecido em Jerusalém.A Associated Press espalhou a história por todo o globo nessa tarde,e na manhã seguinte havia artigos sobre o ossário de Tiago nas capasdo New York Times, do Washington Post , e de quase todos os jor-nais de todo o mundo. À noite, os telejornais das maiores cadeiastelevisivas falaram do assunto. Artigos maiores seguir-se-iam, empublicações como a Time, a Newsweek, a U.S. News & World 

    INTRODUÇÃO 31

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    Report . Apesar de este ossário ter, há muito tempo, encerrado osossos de Tiago, e não de Jesus, a esmagadora maioria dos textossublinhava o facto de a inscrição ser o único artefacto, a única pro-va física, alguma vez encontrada do século I d. C. que mencionava onome de Jesus. Os escritores tiveram que soar as estopinhas para lidarcom a perspectiva da história deste «Tiago», pois rapidamente se tor-nou óbvio que poucas pessoas, quer do mundo dos media quer dopúblico em geral, tinham ouvido falar sequer de um irmão de Jesuschamado Tiago.

    Fomos informados que um coleccionador particular, que preferiramanter o anonimato, mas que mais tarde viria a ser revelado tratar--se de um israelita chamado Oded Golan, tinha comprado o ossáriohá quinze anos a um antiquário de Jerusalém, que dissera ter vindo oossário da área de Silwan, a sul da Cidade Velha de Jerusalém. Golannão tinha dado grande atenção à inscrição nem se tinha apercebidoda sua importância. Em Abril de 2002, mostrou uma fotografia do

    O Ossário de Tiago em exposição no Museu Real de Ontário

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    ossário a André Lemaire, um professor de línguas semitas na univer-sidade de Sorbonne, que estava de visita a Jerusalém. Lemaire ficouintrigado de imediato, reconhecendo que aquela combinação e paren-tesco entre os nomes apontava não para um qualquer Tiago, mas oTiago, irmão do Jesus na tradição cristã. Lemaire não acreditava noque via. Golan permitiu que Lemaire estudasse o ossário pouco depois.Após um cuidadoso exame, Lemaire estava convencido, graças aosseus conhecimentos de antigas escritas, de que esta se tratava de umainscrição verdadeira. Mais tarde, em entrevistas, perguntaram a Golancomo é que não se tinha apercebido da importância virtual de um arte-facto daqueles, aquando da sua compra. A sua explicação foi a de que,apesar de ser judeu, estava familiarizado obviamente com a doutrinacristã sobre a virgindade de Maria, e jamais imaginara que Jesus, o «filhode Deus», teria tido um irmão. É óbvio que Golan não era o único apensar assim.

    Lemaire falou a Shanks do ossário quando este passou por Jeru-salém em 2002. Shanks foi, como seria de esperar, cauteloso, pois esteossário em particular não tinha vindo de nenhuma estação arqueoló-gica autorizada, o que minava desde logo a sua autenticidade. Shankspediu a Lemaire que escrevesse um artigo detalhado sobre este acha-do, para que saísse no próximo número da Biblical ArchaeologyReview a ser publicado, e insistiu quanto à necessidade de fazer tes-tes científicos ao ossário. Golan concordou, e foram feitas todas asdiligências para que os especialistas da Inspecção Geológica de Israel,em Jerusalém, o pudessem analisar.

    As inscrições nos ossários podem, como é natural, ser falsifi-cadas, mas quaisquer cortes modernos que sejam feitos em calcá-rio antigo, não terá a mesma pátina velha que naturalmente sedepositaria sobre a superfície da pedra após tanto tempo. Entretanto,Shanks contratou outros paleógrafos especialistas, para que pudes-sem igualmente opinar sobre a autenticidade da própria escrita.O ossário passou em todos os exames de autenticidade, com as melho-res notas possíveis. Os cientistas concluíram que a pátina no interiordas letras era antiga, que estava firmemente agarrada à pedra, nãoobstante o facto de alguém ter limpo a inscrição. Não havia qual-quer sinal de uso de uma ferramenta ou utensílio moderno. Ospaleógrafos concordaram com a análise de Lemaire, de que se tra-

    INTRODUÇÃO 33

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    tava de uma escrita autêntica, e em consonância com a que se pra-ticava no século I d. C. Parecia não haver grandes dúvidas, que esteossário transportara os ossos de «um» Tiago, filho de «um» José, eirmão de alguém com o nome de «Jesus», e que havia morrido e sidoenterrado no século I d. C.

    Shanks estava preparado para publicar isto e fê-lo rapidamente.Ele sabia que, conjuntamente com a descoberta dos manuscritos doMar Morto, esta era talvez a descoberta arqueológica mais sensacio-nal dos tempos modernos. Contratou de imediato Simcha Jacobovici,um produtor que já ganhou um prémio Emmy, para produzir umdocumentário para o Discovery Channel, sobre o Ossário de Tiago,que estrearia no Domingo de Páscoa de 2003. Conseguiu também umcontrato de publicação para um livro a escrever a quatro mãos comos académicos de Estudos Bíblicos Ben Witherington, que deveria serlançado ao mesmo tempo que o filme6. A descoberta foi aclamada nolivro e no filme como «o primeiro elo arqueológico com Jesus e a suafamília». Com a autorização de Golan, Shanks conseguiu montar umaexposição especial no Museu Real de Ontário, em Toronto, Canadá.Abriria no final de Novembro de 2002. A cidade de Toronto e o mêsde Novembro não tinham sido escolhidos por acaso. Toronto era acidade anfitriã para o encontro anual desse mesmo ano de milhares deacadémicos de Estudos Bíblicos, arqueólogos, e estudiosos da religião,o qual iria decorrer no fim-de-semana imediatamente antes do da

    O desenho de Shimon Gibson da inscrição do Ossário de Tiago

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    Páscoa. A Sociedade de Literatura Bíblica rapidamente obteve umnicho de tempo para dedicar à discussão sobre a autenticidade e o sig-nificado eventual do Ossário de Tiago.

    A Autoridade das Antiguidades Israelita (AAI) teve de aceitar alicença de exportação temporária, mas houve um momento em quese apercebeu da atenção potencialmente explosiva que este ossáriopoderia provocar. Quando o ossário finalmente atingiu os cabeçalhosde jornais do mundo inteiro, após a conferência de imprensa deShanks a 21 de Outubro na cidade de Washington, as autoridades deIsrael foram apanhadas completamente desprevenidas, e naturalmenteembaraçadas. Mas todos os preparativos para a exposição em Toron-to estavam já em acção. As autoridades israelitas iniciaram de ime-diato uma investigação sobre as circunstâncias da aquisição do ossá-rio por Golan, mas autorizaram a sua saída do país. De acordo comas leis nacionais, se Golan o havia adquirido depois de 1978, o ossá-rio teria sido comprado de forma ilegal, e poderia ser confiscado peloEstado.

    Quando o ossário chegou a Toronto estava rachado devido aotransporte, e a equipa científica do Museu Real de Ontário pôs mãosà obra para o reparar para a exposição. Uma das brechas atravessavaparte da inscrição, o que permitiu a essa equipa científica do museuum exame ainda mais profundo à maneira como as letras haviam sidogravadas na pedra. Concordaram com os investigadores israelitas deque a pátina antiga ainda se mantinha nas letras, que era aderente àpedra de um modo firme e que apresentava traços consistentes emrelação ao resto do ossário.

    Mesmo antes da reunião de Toronto ter lugar, foram levantadasalgumas questões sobre as conclusões de Lemaire e Shanks. Ninguémquestionava a autenticidade do próprio ossário – era claramente umartefacto do tempo de Jesus. Algumas pessoas objectavam qualquerdiscussão possível sobre o ossário, uma vez que se tratava de um arti-go do «mercado negro», sem qualquer contexto arqueológico. Outrosargumentavam que a expressão «irmão de Jesus» parecia ter sidoescrita por um punho diferente do que escrevera «Tiago filho de José»,e que poderia ter sido acrescentado por um falsificador. Outros ain-da sustentavam que, mesmo que isso fosse genuíno, não haveria modoalgum de comprovar que o «Tiago filho de José» indicado no ossário

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    fosse irmão do Jesus da Nazaré, uma vez que estes três nomes eramcomuns na sua época.

    A primeira vez que eu vi o ossário foi nesse encontro de Novem-bro em Toronto, numa reunião privada, fora de horas, de especialis-tas ao Museu Real de Ontário. Cerca de vinte e cinco de nós foramconvidados, entre historiadores, arqueólogos, epígrafos, e exegetas doNovo Testamento. Eu encontrava-me mesmo ao lado de Shanks, porisso pude escutar em primeira mão três dos principais especialistas domundo em inscrições antigas a confirmarem que se tratava de umainscrição autêntica. O sentimento partilhado naquela sala era conta-giante e electrificante, no entanto estranhamente sóbrio e controlado.Penso que a maioria dos presentes acreditava, eu incluído, que estavaperante a verdadeira arca funerária de há 2000 anos que contivera osossos de Tiago, o irmão de Jesus da Nazaré.

    Quando o Ossário de Tiago voltou a Israel, em Fevereiro de 2003,a AAI confiscou-o, e indicou uma equipa de quinze especialistas paraefectuarem novos exames à autenticidade de toda ou de parte da ins-crição. A comissão estava dividida em epígrafos, especialistas em ins-crições antigas, e em cientistas físicos, que realizaram testes geoquí-micos no artefacto. Em Junho de 2003, a comissão da AAI declarouque o ossário era genuíno mas a inscrição uma falsificação parcial.Um mês mais tarde, Golan foi preso por alegada falsificação de anti-guidades. Até à data, Golan já foi formalmente acusado e pronun-ciado por ter acrescentado a frase «irmão de Jesus» a um ossário,de resto inteiramente genuíno, e que continha a inscrição «Tiagofilho de José», tentando cobrir as letras com uma pátina falsa cozi-da sobre as mesmas, e mentindo em relação à aquisição do ossário– tudo com o intuito de gerar publicidade à escala mundial e obterganhos financeiros. As conclusões da comissão da AAI e a acusaçãode Oded Golan, foram bem publicitadas pelos media, fazendo pas-sar a ideia ao público em geral de que os especialistas tinham ago-ra concluído que o Ossário de Tiago era uma falsificação7. Mas nãoé isso o que se passa, e a discussão sobre a sua autenticidade estálonge do fim8.

    André Lemaire, o epígrafo da Sorbonne, continua a defender aautenticidade da inscrição, e providencia, aos detractores do Ossá-rio, respostas detalhadas. Ada Yardeni, que não pertence à comissão

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    da AAI mas que é uma das mais destacadas especialistas em escritaantiga, concorda com Lemaire. Yardeni aponta várias especificida-des das expressões aramaicas presentes na inscrição, e que nenhumfalsificador poderia conhecer. A escritora chega mesmo a concluirdesta forma: «Se isto é uma falsificação, eu despeço-me»9. Até à data,nenhum epígrafo ou paleógrafo com as qualificações necessárias assi-nalou qualquer prova de falsificação. Na verdade, um dos membrosda comissão da AAI que seguiu o voto original, em desacordo comuma melhor avaliação que poderia ter feito, revela agora que consi-dera esta inscrição autêntica. Outros especialistas qualificados ques-tionaram os testes geoquímicos à pátina, realizados pela AAI. Os geó-logos da AAI foram obrigados a arrepiar caminho em relação àsteorias que haviam proposto inicialmente sobre o modo como essaalegadamente falsa pátina tinha sido produzida. Um dos membrosda comissão da AAI disse que encontrou alguma pátina antiga nasduas últimas letras da inscrição: precisamente naquela parte que sejulgava falsa. Os geólogos da Inspecção Geológica de Israel, que pen-savam ao princípio tratar-se de uma inscrição verdadeira não altera-ram essa sua posição, tal como acontece com a equipa científica doMuseu Real de Ontário, que examinou o ossário depois de este se terrachado10.

    A inscrição do Ossário de Tiago é provavelmente autêntica. Hátambém prova circunstancial credível, que foi saqueada do nossoTúmulo do Sudário, quando foi roubado em 1998, ou talvez antes deo descobrirmos roubado uma segunda vez em Junho de 2000. Seria

     possível termos deparado sem saber com o túmulo da família de Jesus?A inconsistência principal da história contada por Oded Golan

    relaciona-se com a data que ele indica como a da aquisição do ossá-rio. Quando a história veio a lume pela primeira vez, em Outubro de2001, ele dissera a Shanks estar na posse do artefacto há cerca de quin-ze anos. Numa série de entrevistas que veio a dar mais tarde reveloutê-lo adquirido em «meados da década de 1970», ou seja, vinte e cin-co anos antes. Isso colocaria a data antes de 1978, quando ainda eralegal comprar esses objectos. Num qualquer momento, admitira tê-loadquirido em 1967, imediatamente após a Guerra dos Seis Dias, o quesignificaria que o ossário fora seu durante os últimos trinta e cincoanos. Mas o resto da sua história é consistente. Diz que o comprou a

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    um vendedor de antiguidades árabe na Cidade Velha de Jerusalém, oqual lhe contara que o objecto provinha da área de Silwan, a aldeiaárabe a sul da Cidade Velha, ponto de convergência dos vales deKidron e de Hinom.

    Odel Golan acrescentaria alguns pontos sobre a sua «Silwan»numa conversa informal com Rafi Lewis no apartamento do primeiroem Dezembro de 2002. (Em Junho de 2000, Rafi Lewis era assistentede Shimon Gibson, e encontrava-se connosco na noite do achado donosso túmulo pilhado.) Rafi perguntou a Golan se «Silwan» incluíao Vale de Hinom, e Golan respondeu afirmativamente, explicando queo Ossário de Tiago tinha na verdade vindo do Vale de Hinom. Ora éclaro que Aceldama, em Hinom, é o exacto local do nosso Túmulodo Sudário11.

    De acordo com Shimon Gibson, apenas dois túmulos foram pilha-dos na área do Vale de Hinom na década de 1990. No primeiro nãohouve escavações e foi selado novamente. Não há indícios de que osossários tenham sido retirados desse local. O segundo era o nossoTúmulo do Sudário. Recordemos que as minhas investigações na Cida-de Velha, pouco depois de o termos descoberto, indicavam que o mer-cado negro tinha sido subitamente «invadido» por novos materiais rela-tivos a ossários.

    Há um ossário em particular, no nosso túmulo, que cativou o meuinteresse e o de Gibson. Este ossário apresenta uma bordadura, fei-ta por simples incisão, e que dá a volta aos cantos dos painéis late-rais, exactamente no mesmo estilo apresentado no Ossário de Tiago.Os ossários apresentam uma variedade muito grande de estilos edecorações, e muitos deles têm bordaduras, mas jamais havíamos vis-to um outro ossário com o mesmo estilo de bordadura. Para poder-mos verificar em primeira mão, eu e Gibson dirigimo-nos recente-mente aos armazéns em Bet Shemesh, nos quais se guardavam osnossos ossários. Este a que me refiro é mais pequeno do que o de Tia-go, provavelmente feito para uma criança, mas tendo em conta a simi-litude entre ambos, podiam bem ter sido fabricados pelo mesmo can-teiro. Ao perscrutarmos as amplas filas de prateleiras onde sedepositava a imensa colecção de ossários do Estado de Israel, nãodeparámos com qualquer outro exemplo parecido com estes dois.Parecia termo-nos deparado com mais uma peça do puzzle. Fazia todo

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    o sentido que uma mesmafamília comprasse dois ossáriosde um mesmo artesão – e assimos dois estilos condiziam.

    Havia um modo de termosa certeza sobre este assunto.O Ossário de Tiago continharesquícios de osso o suficientequando foi mostrado pela pri-meira vez a Hershel Shanks eao produtor Simcha Jacobovici.Simcha, um judeu ortodoxo,

    disse, de acordo com a New Yorker: «Olhei para o interior da arca,e havia ainda alguns fragmentos de osso. Pensei que se isto fosse ver-dadeiro, então havia ADN de Jesus ali dentro!»12 Oded Golen lim-pou e deitou fora estes fragmentos antes de o enviar para Toronto, eao mesmo tempo mostrou a um repórter da revista Time, uma caixaTupperware que ele disse estar cheia com estes ossos. É possível queos israelitas que revistaram o seu apartamento estejam na posse des-tes resíduos. Uma vez que já tínhamos feito testes ADN extensivosaos resíduos de osso a todos os que foram sepultados no Túmulo doSudário, porque não poderíamos realizar testes também no materialencontrado no Ossário de Tiago, para procurar ligações entre o ADNmitocondrial? Isso revelar-nos-ia se o defunto encontrado no Ossá-rio de Tiago teria algum tipo de parentesco com as pessoas do nossotúmulo, ou se algumas das mulheres seria a sua mãe. Ou poderíamosdeparar-nos com um beco sem saída. Seria particularmente interes-sante comparar a sequência de ADN entre os restos do Ossário deTiago e a nossa «Maria» do Túmulo do Sudário.

    A 17 de Novembro de 2003, eu e Gibson entregámos um pedidoformal por carta a Shuka Dorfman, director da Autoridade das Anti-guidades Israelita, para que nos fosse autorizada a prossecução detestes de ADN aos fragmentos de esqueleto do Ossário de Tiago. Nonosso entendimento, quer a inscrição fosse uma falsificação quer fos-se verdadeira – e Dorfman acredita que é falsa – era de um interessecientífico incontestável determinar de onde o próprio ossário viria.Dadas as provas circunstanciais de que ele podia ter vindo do nosso

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    Um ossário do Túmulo do Sudáriosimilar ao Ossário de Tiago

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    Túmulo do Sudário, uma correspondência entre as cadeias de ADNou a sua inexistência poderia ajudar-nos no nosso conhecimento, nãosendo fulcral qual das posições tomadas no que dizia respeito à pró-pria inscrição.

    O nosso pedido foi imediatamente recusado, com o argumento deque os ossos tinham sido colocados pelo próprio Golan, para enco-brir o trabalho da falsificação e não tinham qualquer ligação com omaterial original, o que tornava quaisquer testes desnecessários. Nóssabíamos não ser esse o caso. Mas os testes de ADN aos ossos de um«Tiago» e de uma «Maria», sobretudo se esse Tiago tinha um irmãochamado Jesus, significava uma passagem do reino da arqueologiapara o da teologia. A nossa esperança residia no facto de que quandoo julgamento de Golan acabasse, e as emoções se acalmassem, pode-ríamos conseguir continuar estes testes científicos. Mas há um outromisterioso aspecto nesta história inacabada.

    O mistério do túmulo Talpiot

    O «Ossário de Tiago» não é o primeiro caso a fazer cabeçalhos nosjornais de todo o mundo sobre antigas ossadas e as suas possíveis rela-ções com Jesus. Pouco tempo antes da Páscoa de 1996, um outro casoficou famoso: «Descoberto Túmulo da Família de Jesus.» Alegada-mente, um túmulo que tinha sido descoberto em 1980, mas quejamais tinha chegado à atenção do grande público, continha um con-junto de nomes associados à família de Jesus, incluindo uma Maria,um José, uma outra Maria, um Judas filho de Jesus, um Mateus e ain-da, mais expressivamente, um Jesus filho de José. O jornal SundayTimes, de Londres, a 31 de Março, relatou esta história num artigode primeira página, com o título: «O Túmulo que não se atreve a pro-nunciar o seu nome.» Na manhã de Páscoa, a BBC emitiu um filmedocumentário sobre esse túmulo, cujo título era O Corpo em Ques-tão. As agências noticiosas Associated Press, Reuters e Gannett, rapi-damente trouxeram a lume artigos a partir deste aprofundado trata-mento inicial, e acrescentaram-lhe os seus próprios relatos, enviadospor correspondentes que caíram como aves de rapina sobre os incau-tos oficiais da AAI na Cidade Velha de Jerusalém, e que diziam saber

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    muito mais. Tal como no caso do Ossário de Tiago, os israelitas foramapanhados no meio disto tudo.

    As perguntas acumulavam-se: «Quando é que este túmulo foi des-coberto? Por que razão não foi imediatamente tornado público? Seráque houve alguma espécie de ocultação devido aos chocantes conteú-dos do túmulo?»13

    Em 1995, um ano antes deste caso se tornar público, uma equipade filmagens britânica da BBC/CTVC, liderada por Ray Bruce e ChrisMann, encontrava-se em Jerusalém para filmar um documentário sobrea Ressurreição, para a emissão especial da Páscoa que se aproximava.O objectivo desta equipa era oferecer ao público inglês as mais recen-tes e melhores provas históricas e arqueológicas relacionadas com asnotícias sobre o túmulo vazio de Jesus e a sua ressurreição. Deseja-vam compor um programa estimulante e desafiador, mas jamais espe-ravam a surpresa com a qual se iriam deparar.

    Acabavam de chegar aos armazéns arqueológicos da AAI emRomemma, um subúrbio abandonado de Jerusalém, com a qual tinhamacordado umas filmagens de rotina, para ter algumas imagens de unsquantos «ossários» do século I d. C. Ray Bruce e Chris Mann tinhamfeito algum trabalho preparatório, e tinham lido num catálogo publi-cado em 1994 por L. H. Rahmani14 que dos mais de um milhar deossários armazenados e catalogados nas várias colecções israelitas, seisdeles continham o nome de «Jesus» (Yeshu, Yeshua ou Yehoshua, emhebraico), e que desses seis dois tinham inscrito a designação «Jesusfilho de José ».

    O primeiro, descoberto em 1926, está maravilhosamente grava-do, e é claramente legível15. O segundo, encontrado em 1980, quasenão se consegue ler, estando a inscrição riscada na pedra como setivesse sido feita com um prego ou um outro qualquer objecto pon-tiagudo. Graças ao destino, ambas se encontravam no armazém deRomemma. O conservador, Baruk Brendel, estava disposto a mos-trar à equipa britânica ambos os objectos16. E a equipa estava natu-ralmente contente por poder filmar um ossário intacto, do períododa vida de Jesus, com uma tal inscrição. Mas até este ponto, tudo erapura rotina, pois ainda que um ossário com a inscrição «Jesus filhode José» possa fascinar o público, não era considerado particular-mente notável ou significativo entre os especialistas, uma vez que

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    estes eram nomes muito vulgares no dito período. Mas foi então quea agitação começou.

    Chris e Ray perguntaram a Baruk se algum dos outros ossáriosdaquela colecção tinha alguma relação com os ossários «Jesus filhode José». Consultaram-se o catálogo e as etiquetas, e descobriu-se quecinco outros, armazenados num ponto próximo, haviam sido desco-bertos no mesmo túmulo do ossário que dizia «Jesus filho de José».O túmulo encontrava-se na parte leste de Talpiot, mesmo a sul daCidade Velha de Jerusalém. Tinha sido descoberto graças a explosõesde TNT, utilizadas por uma equipa de construção que erigia um novocomplexo de apartamentos. O arqueólogo israelita Joseph Gath, jáfalecido nesta data, escavara esse local o mais depressa possível quepôde, para que a construção pudesse prosseguir.

    Apenas por curiosidade, Ray e Chris perguntaram quais eram osnomes das pessoas dos outros cinco ossários. Mais tarde, Chriscomentaria que enquanto Brendel dizia os nomes, «parecia que osnúmeros da lotaria continuavam a sair e a aproximar-se do jackpot ».A acrescentar ao ossário de «Jesus filho de José», juntavam-se osnomes de um José, uma Maria, presumivelmente a esposa, uma outraMaria, um Judas filho de Jesus e um Mateus17.

    Para a equipa em questão, este era um momento jornalístico dese-nhado nos céus. O túmulo tradicional no qual Jesus fora sepultadodepois da sua crucificação encontra-se apenas um pouco a norte daCidade Velha, o local onde hoje se encontra a igreja do Santo Sepul-cro. Jesus fora colocado rapidamente num túmulo nas vizinhanças dolocal da crucificação por um aristocrata e simpatizante influente, Joséde Arimateia, e não no túmulo da sua própria família. Mesmo os Evan-gelhos afirmam implicitamente que esse era um local provisório, dadaa urgência resultante do feriado da Páscoa. Apesar da sua família serda Nazaré, uma cidade no norte da Galileia, o Novo Testamento indicaque tanto Maria como os irmãos e irmãs de Jesus se tinham mudadopara uma residência em Jerusalém. A tradição conta, por sua vez, queMaria, mãe de Jesus, morreu e foi sepultada em Jerusalém e não naGalileia, e actualmente há pelo menos dois locais que são mostradosaos turistas como sendo os locais exactos do seu túmulo. Escusado serádizer que este túmulo de Talpiot nunca tinha sido colocado nos mapasturísticos.

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    Seria possível que os restos mortais de Jesus tivessem sido final-mente sepultados juntos com os do seu pai e da sua mãe? Seria asegunda Maria uma das suas irmãs ou ainda a companheira próximade Jesus, Maria Madalena? Seria o «Judas filho de Jesus» um seu filhobiológico? As possibilidades aqui apresentadas eram tão misteriosasquanto chocantes e heréticas.

    Os produtores entrevistaram então vários arqueólogos e historia-dores judeus e cristãos que conheciam esse túmulo. Todos eles con-cordaram que, ainda que a combinação de nomes fosse deveras inte-ressante, eram tão comuns na época em questão, que fazer deste umgrupo único era inconclusivo. Alguns desses especialistas sublinharamo facto de Maria ser o nome mais comum nas mulheres nesse perío-do, e o nome José era o segundo nome masculino mais comum, depoisde Simão. Amos Kloner, que viria subsequentemente a publicar o rela-tório oficial das escavações em Talpiot, manteve a ideia de que «a pos-sibilidade desta ser a família de Jesus [é] quase nula»18. Motti Neiger,

    Um ossário de Talpiot com a inscrição «Jesus filho de José»

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    porta-voz da Autoridade para as Antiguidades de Israel, concordava«que as probabilidades de este ser o verdadeiro túmulo da famíliasagrada são praticamente inexistentes»19.

    Mas era este «quase» que interessava aos produtores. E todos pare-ciam concordar que este especial agrupamento de nomes, de entre ascentenas de ossários catalogados, não tinha paralelo, por maiscomuns que fossem cada um deles. Joe Zias, conservador no MuseuRockefeller, e possivelmente tão conhecedor deste túmulos judaicosda área como qualquer outro dos intervenientes, parecia ser o únicoa pensar que o agrupamento poderia ter alguma relevância estatís-tica, e que mereceria, pelo menos, uma mais aturada investigação.Nas suas palavras: «Se não tivessem sido encontrados num túmulo,teria a certeza absoluta de se tratar de falsificações. Mas vieram deum contexto arqueológico excelente e jamais molestado. Não foi algode inventado»20.

    O único outro passo científico que se podia dar era realizar testesde ADN mitocondrial nos ossos, pelo menos para nos certificarmosse os indivíduos ali sepultados pertenciam à mesma linha materna.Tais testes, independentemente dos resultados, não poderiam «pro-var» que este Jesus em particular seria aquele que viria a ser conheci-do como o Cristo, mas mostrariam pelo menos se algum dos indiví-duos era filho de alguma das duas Marias, ou se tinha algum grau deparentesco, que o fizesse irmão ou irmã de outro.

    Se nenhuma das Marias fosse mãe deste «Jesus», pelo menos eli-minaria a ideia de que estes seriam a mãe e o filho da fé cristã. Masuma das Marias podia ainda ser uma irmã. E já que José era um nometão comum entre os homens, nada nos levava a crer que o ossário como nome «José» fosse necessariamente o do pai do que tinha o nome«Jesus filho de José». Poderia ter um outro qualquer grau de relação,ou nenhum. Por exemplo, Jesus da Nazaré também tinha um irmãochamado José.

    Neil Silberman cita David Flusser, um eminente e recentemente fale-cido professor de Judaísmo antigo e Paleocristianismo da Universida-de Hebraica [Jerusalém]:

    Há muitos anos atrás um homem da BBC veio ter comigo e per-guntou-me se os Manuscritos do Mar Morto trariam algum dano ao

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    Cristianismo. Eu disse-lhe então que nada poderia causar dano ao Cris-

    tianismo. A única coisa que poderia ser perigosa para o Cristianismoseria encontrar um túmulo com um sarcófago ou um ossário de Jesus,com os seus ossos intactos. Depois disse-lhe que esperava que tal nãofosse encontrado no território do Estado de Israel.21

    Esta é a matéria de que os romances são feitos, e apesar de teremsurgido vários livros de ficção sobre «a descoberta dos ossos de Jesus»,no mundo real da arqueologia esse tipo de coisas tresanda a sensacio-nalismo. O académico bíblico padre Jerome Murphy O’Connor, daÉcole Biblique de Jerusalém, chegou a dizer que apesar de não existirqualquer maneira de provar que o ossário da inscrição «Jesus filho de

     José» tivesse contido os ossos de Cristo, se tal prova pudesse vir a tor-nar-se possível, «as consequências para a fé seriam desastrosas»22.

    Os israelitas são extremamente sensíveis ao mundo cristão, e man-têm relações diplomáticas com o Vaticano. Agrada-lhes cumprir opapel dos hospitaleiros custódios do turismo cristão na Terra Santa.A última coisa que desejariam seria estar envolvidos numa descobertaarqueológica que iria lançar a controvérsia ou provocar debates teo-lógicos cristãos. Um «túmulo de família» de Jesus já seria um pro-blema grande, mas um túmulo que contivesse um ossário inscrito com«Jesus filho de José» colocá-los-ia na mais delicada das situações quese possa imaginar.

    Todavia, apesar de ser impossível provar que este túmulo estariarelacionado de alguma forma com Jesus da Nazaré, o que o tornavanotável não era apenas o agrupamento dos nomes, mas o facto de queestes ossários provinham de um contexto arqueológico documentadoe controlado. O túmulo e os seus elementos podiam ser cientificamenteestudado. Talvez houvesse mais para aprender com um novo e cui-dadoso exame de todas as provas relacionadas com o túmulo e talvezcom mais uma investigação ao próprio lugar. Afinal de contas, JosephGath, o arqueólogo que fez as primeiras escavações, já morrera, e orelatório oficial sobre o túmulo ainda não tinha sido publicado.

    No entanto, os media relatavam que um edifício de apartamen-tos tinha sido construído nesse local pouco depois da sua escavaçãoem 1980, ocultando o local para sempre, hipotecando assim quais-quer possibilidades de fazer um trabalho directo de investigação. Até

    INTRODUÇÃO 45

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    à publicação do relatório oficial do túmulo, pouco poderíamos des-cobrir.

    Nesse ano de 1996, eu não fazia a mínima ideia de que este túmulode Talpiot viria a fazer parte da minha própria investigação pessoaldos anos subsequentes, nem como estaria de alguma forma relacio-nado com a minha pesquisa sobre a dinastia de Jesus. Eu e ShimonGibson ainda não nos tínhamos conhecido pessoalmente. Quase umadécada depois, no início de 2004, viria a saber que Gibson assistiraGath nas escavações de 1980 desse túmulo, e que tinha sido ele a ela-borar os desenhos oficiais para publicação. Vezes sem conta ShimonGibson torna-se o homem certo na altura certa, associando furtiva-mente descobertas que, à partida, nem sequer suspeitaríamos teremqualquer tipo de ligação.

    Ray Bruce e a sua equipa foram informados de que os ossários esta-vam «vazios» de ossos, indicando que o túmulo teria sido provavel-mente alvo de pilhagem anteriormente, e os ossos ou perdidos ou espa-lhados. Sabemos agora que isto não é verdade. Segundo o relatóriooficial sobre o túmulo de Talpiot, finalmente publicado em 1996 por

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    A fachada misteriosa sobre a entrada do túmulo de Talpiot 

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    Amos Kloner, esses ossários definitivamente contiveram ossos23. Deacordo com a lei de Israel, todos e quaisquer restos mortais humanosde um túmulo devem ser entregues às autoridades ortodoxas judaicaspara que sejam de novo sepultados, aparentemente excluindo qual-quer possibilidade de realização de testes de ADN ou outro tipo detestes científicos. Se digo «aparentemente» é porque a maior parte dosossários, mesmo aqueles que se encontram na colecção de arquivo doEstado de Israel, ainda têm resíduos de restos humanos e fragmentosde ossos. A não ser que os ossários tenham sido limpos escrupulosa-mente, o que não acontece normalmente, os mais modernos e tecno-lógicos testes de ADN podem obter resultados da mais pequena dasamostras.

    Fiz alguma perguntas a Gibson sobre o túmulo de Talpiot aquandode uma visita minha a Israel, em 2004. Ele lembrava-se de duas coi-sas extraordinárias nesse túmulo, para além do agrupamento interes-sante dos nomes da família. A entrada do túmulo tinha uma decora-ção estranha esculpida na fachada – um círculo com uma pirâmide

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    Desenho original de Shimon Gibson do túmulo de Talpiot, com as caveiras

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    invertida por cima. Ninguém parecia entender o que significaria ousimbolizaria. Além disso, encontraram-se três caveiras colocadas demodo curioso no chão do túmulo, cada uma delas directamente emfrente de um loculus ou de um espaço oco que guardaria os ossários.Gibson mostrou-me, dos seus ficheiros, uma foto antiga dessa entra-da do túmulo. Mostrou-me também os seus desenhos originais e deta-lhados do plano do túmulo. As caveiras estavam visíveis, indicadasneste plano tal qual ele as encontrara.

    Curiosamente, no relatório oficial sobre este túmulo, que AmosKloner publicou, as caveiras pareciam ter sido apagadas dos desenhosde Gibson. Resolvemos, Gibson e eu, fazer algum trabalho de detec-

    tive. Penso que fomos os pri-meiros arqueólogos na históriaque partiram em busca de umtúmulo antigo batendo à portadas pessoas.

    Voltámos ao bairro em ques-tão, à mesma rua na qual otúmulo estivera visível há quasevinte e cinco anos atrás. De fac-to, encontrava-se ali agora umedifício de apartamentos. Come-çámos a fazer perguntas e,curiosamente, os residentes maisantigos sabiam a localização deum «apartamento do túmulo».Algumas pessoas acreditavammesmo que esse apartamentoestava assombrado, e tornou-sealvo de muitas histórias de ter-ror locais. Batemos a essa porta,e o morador confirmou-nos queexistia um túmulo sob o chão doseu apartamento, um poucoafastado da cozinha, onde seencontrava uma espécie de ter-raço elevado. Duas aberturas de

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     James Tabor ao lado das aberturasde ventilação sobre o túmulo

    de Talpiot 

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    O ossário desaparecido

    O desenho original de Shimon Gibson das escavações no túmulo deTalpiot mostra, claramente, um total de dez ossários. Na publicação ofi-cial de Amos Kloner, também se confirma o resgate e armazenamentopela Autoridade para as Antiguidades de Israel de dez ossários. Klonerrefere-se a cada um deles, detalhadamente, em relação aos seus tama-nhos, decorações e inscrições. Quando chega ao último, o décimo, apre-senta-nos uma descrição de uma só palavra: simples. Nada mais. Pelosvistos, não havia qualquer informação nos seus ficheiros sobre estedécimo ossário, para além das suas dimensões: 60 x 26 x 30 cm. Emcada descrição dos ossários em questão, Kloner inclui uma fotografia.Mas não o faz em relação ao décimo. Uma vez que Kloner não era oarqueólogo da descoberta original, baseava-se para o seu relatório tão--somente nas notas deixadas pelo falecido Gath.

    Mas o catálogo oficial dos ossários da colecção do Estado de Israel,publicado por Rahmani em 1994, apenas inclui nove ossários prove-nientes deste túmulo. Todavia, sabemos que o décimo recebeu umnúmero de catalogação pela AAI: 80.509.

    Quando chegámos ao armazém de Bet Shemesh, o conservador dis-se-nos, mesmo antes de nos dirigirmos à área onde se guardavam osossários de Talpiot, que havia um pequeno problema – um dos ossá-rios tinha desaparecido. O 80.509 da AAI, o décimo do relatório deKloner, não se encontrava em lado algum. Tinha desaparecido.

    Não sabia o que pensar disto. Nesta colecção tão grande de anti-guidades sob a custódia do Estado de Israel é natural que as coisaspossam ficar arrumadas fora do sítio. Mas até ao momento não pare-ce ter surgido ainda nenhuma razão plausível para este caso em par-ticular, e que eu saiba fomos nós os primeiros a reconhecer este pro-blema e a investigá-lo. Desde que o túmulo de Talpiot continha dezossários, três sem inscrições, mas seis com um grupo de nomes tãointeressante, é óbvio que qualquer um de nós gostaria de se certificarse a descrição sumária de «simples» é tudo o que pode ser dito dodesaparecido décimo ossário. Se pudesse ser localizado, e se tivessealgum nome inscrito, era do máximo interesse saber que nome seria.

    Apenas há pouco tempo me vim a aperceber de que as dimensõesdeste ossário em falta são precisamente as mesmas, ao centímetro,

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    daquelas do Ossário de Tiago. É remotamente possível que OdedGolan tivesse adquirido o seu ossário há muitos anos – talvez não emmeados dos anos 70, como agora alega, mas não muito tempodepois – por volta de 1980, quando o túmulo de Talpiot foi encon-trado? Seria esse décimo ossário roubado depois de ter sido catalo-gado mas antes das escavações do túmulo terem sido concluídas?Gibson recordava-se de que quando chegou para realizar os seus dese-nhos, poucos dias depois de terem começado os trabalhos das esca-vações, que nem todos os ossários se encontravam no sítio certo.Alguns tinham sido deslocados para facilitar o trabalho. Gibson dese-nhou-os a todos de acordo com as indicações do director da escava-ção, Joseph Gath. Gibson não se recorda se todos os dez ossários seencontravam no local nesse momento.

    Agora, pendente de mais provas, sejam estas obtidas por testes deADN ou pelo resgate do ossário perdido, este é o momento em que ahistória dos dois túmulos tem de terminar. Mas, por outro lado, équando começa a nossa história da dinastia de Jesus. Estes dois túmu-los esculpidos na rocha, situados mesmo à saída da Cidade Velha de

     Jerusalém, revelam como eram os sepultamentos familiares no tempode Jesus, de uma forma bem mais expressiva que qualquer fonte escri-ta. E é neste ponto também que começamos a aprender sobre a vidade Jesus e a dinastia estabelecida por ele pouco antes da sua morte,pois a sua morte não foi, obviamente, o fim da sua missão ou do seulegado. A história apaixonante da dinastia de Jesus que se segue nãoestá dependente de nenhuma forma da autenticidade da inscrição doOssário de Tiago, nem sequer de se saber se algum destes dois túmu-los é na verdade o túmulo da família de Jesus. O que podemos dizeré que Maria, a mãe de Jesus, foi muito provavelmente sepultada jun-to à sua família, num túmulo perto da Cidade Velha de Jerusalém,muito idêntico a um destes. Há algo que nos é tão familiar nos túmu-los deste tipo, com os seus ossários, ossos preservados, e nomes ins-critos, mesmo passados dois mil anos, que trazem calafrios à espinhaquando os tentamos imaginar e associar ao passado. Mas o maisempolgante ainda é que não sabemos a que momento podem surgirnovas provas que nos permitam colocar mais peças na nossa história.Afinal, como vimos, as coisas que menos se esperam acabam por sem-pre surgir e surpreender-nos.

    INTRODUÇÃO 51

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    PARTE PRIMEIRA

    NO INÍCIO ERA A FAMÍLIA

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    UMA VIRGEM CONCEBERÁ

    Quando penso na Virgem Maria, mãe de Jesus, penso na cidadeesquecida de Séforis. Segundo a tradição, Maria foi a primogénitade um casal já idoso, Joaquim e Ana, que ali vivia1. Poucos ouviramfalar, nos nossos dias, de Séforis. Não há qualquer menção à cidade noNovo Testamento, e até há muito pouco tempo nem sequer era incluí-da nos mapas da Terra Santa que usualmente se incluem nas edições daBíblia. Tornar-se-ia numa cidade perdida – até há pouco tempo.

    A primeira vez que levei alunos meus a escavações em Séforis foino Verão de 1996. Regressaríamos em 1999 e em 2000, para efectuarmais duas estações de escavações. Juntáramo-nos a uma das equipaspresentes, a do Professor James Strange, da Universidade da Floridado Sul, que havia começado o seu projecto arqueológico ali em 1983.Após quase duas décadas de escavações, por diversas equipas dearqueólogos, nem sequer um décimo da antiga cidade romana haviasido exposta. No entanto, já se oferecia o suficiente para podermoster uma ideia do esplendor que este local deveria ter conhecido na erade Maria e o seu filho Jesus.

    Enquanto Jesus crescia na Nazaré, Séforis era a cidade principalde toda a região. Construída num monte que se ergue a 120 metrosacima da planície que fica abaixo, é visível a quilómetros de distân-cia. A conhecida expressão de Jesus, de que «uma cidade construídanum monte não pode ser escondida» pode ter-lhe vindo à mente gra-ças a ter habitado na Nazaré e olhar a norte, observando o brilho da

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    cidade de Séforis, a uns seis quilómetros e meio de distância. Eraimpossível não dar por ela. A Nazaré era insignificante. Perdida entreos montes baixos, a sudeste, perto de uma fonte, e provavelmente comuma população que rondaria as 200 almas na altura. Não era maisdo que uma das dezenas de pequenas aldeias que mosqueavam a pla-nície, em torno da imensa e impressionante cidade capital.

    Hoje, a situação inverteu-se. A Nazaré é uma das maiores cidadesárabes de Israel, com uma população de cerca de 60 000 pessoas,metade cristãos, metade muçulmanos. Esta cidade enche literalmenteos montes e vales à sua volta, com subúrbios impressionantes e igre-jas magníficas. Os pacotes turísticos cristãos incluem quase sempre aNazaré como uma etapa obrigatória. Quanto a Séforis, não é mais doque um monte despido, pintalgado por uma mão-cheia de ruínas àdistância. Todos os dias, durante as escavações, sentávamo-nos nasencostas a sul das ruínas de Séforis e almoçávamos, perscrutando aofundo do vale a héctica cidade da Nazaré, brilhando à luz do sol dofim da manhã. Tentávamos imaginar quão diferentes podiam ter sidoas coisas no tempo de Jesus, com a proeminência invertida entre estesdois locais. Apesar de ter vivido numa aldeia pequena, Jesus cresceumesmo ao lado de uma cidade capital da Galileia. As implicações desse

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    As ruínas de Séforis vistas da Nazaré actual 

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    facto geográfico são imensas nesta nossa busca pelo restabelecimentohistórico de alguns aspectos escondidos ou esquecidos dos primeirosmomentos da vida de Jesus.

    Quando Maria nasceu, mais ou menos no ano de 18 a. C., os Roma-nos ocuparam a zona a norte da Palestina, conhecida pelo nome deGalileia. Séforis era uma cidade judaica, mas os romanos transfor-maram-na no centro administrativo de toda a região. Era HerodesMagno, ou o Grande, que havia sido amigo próximo de Marco Antó-nio e de Cleópatra, quem governava o país. O general romano Octa-viano, que mais tarde se tornaria o Imperador Octávio Augusto,confirmaria Herodes como «Rei dos Judeus». No entanto, faltava aHerodes pertencer à vital linhagem da casa de David, que lhe dariatodos os direitos a esse trono2. Herodes era filho de uma mulher judia,mas o seu pai era um idumeu. Por isso, era muito sensível quanto aesta questão de ser um meio-judeu, que muitos judeus «puros» viam

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    Maria em criança com Joaquim e Ana, por Strozzi

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    como algo que o desqualificava como legítimo governador de Israel.Movido pela inveja e pelo temor, ordenou que fossem destruídos osarquivos genealógicos públicos das principais famílias israelitas.Casou-se com Mariana, uma princesa da sacerdotal dinastia hasmó-nea, numa tentativa gorada em aplacar a oposição judaica às suas ori-gens humildes. A linhagem hasmónea era a que dera origem aos Maca-beus, que haviam reinado no país durante um século, antes dosromanos invadirem a Palestina. Num acesso de fúria, Herodes viria aassassinar Mariana e os dois filhos que teve com ela. Flávio Josefo, ohistoriador judeu do século I, conta-nos que Herodes chegou mesmoa mandar equipar a sua fortaleza em Masada, como medida de pre-venção no caso de ter de fugir, se a população o depusesse em detri-mento de um governante da linhagem real de David3. Os imperado-res romanos Vespasiano e Domiciano iniciariam buscas aos membrosda família real da «casa de David», nas décadas finais do século I, eexecutá-los-iam4. Nesse tempo, ter poder era uma coisa, mas perten-cer a certas genealogias, sobretudo se relacionadas com a família reallocal, era bem diferente. E esta questão de sangue leva-nos de novo àNazaré.

    A 4 a. C., quando Maria alcançava os seus 14 anos de idade,Herodes, o Grande, morria. Pouco tempo depois da sua morte, umtal de Judas filho de Ezequias entrava pelo palácio real de Séforisadentro. Depois de capturar todas as armas que pôde ali encontrar,ele e os seus seguidores lançaram-se num saque total sobre a Gali-leia. Pequenas bolsas de revoltosos e de opositores ao governo roma-no explodiram um pouco por todo o país5. Flávio Josefo escreve que,nesse tempo, «qualquer um se podia proclamar rei à frente de umbando de rebeldes», e chega mesmo a citar os nomes de várioshomens que o tentaram6. A reacção dos romanos foi célere e comuma força insuperável. O Governador romano da Síria, o infamePúblio Quintílio Varo, comandou três legiões da Síria para esmagarimplacável e brutalmente a oposição ao poder romano7. Se se incluí-rem as tropas auxiliares, penetraram no país, vindos do norte, vintemil soldados: queimaram Séforis de uma ponta à outra, e castigaramos seus habitantes por terem participado na revolta, tornando-os atodos escravos. Varo reuniu revoltosos capturados em todo o país, ecrucificou dois mil homens que tinham participado na insurreição8.

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    O trauma provocado sobre a Galileia deve ter sido terrível, comhomens morrendo pregados à cruz espalhados pelas estradas princi-pais e nas faldas das montanhas, a intervalos regulares, e visíveis atodos quantos passavam.

    Após esta insurreição, os romanos dividiram a Palestina em trêsdistritos, sendo cada um destes distritos governado por um dos filhosde Herodes, o Grande. Arquelau recebeu a Judeia, que ficava a sul ecompreendia o território montanhoso a norte conhecido por Sama-ria. Filipe ficaria encarregue da região na margem oriental do rio Jor-dão, em torno do Mar da Galileia. Herodes Ântipas receberia o ter-ritório da Galileia, a norte da Judeia, tal como a Pereia, na margemoriental do Jordão. Este seria o mesmo Herodes que mais tarde orde-naria que fosse cortada a cabeça a João, o Baptista, e que participa-ria no Sinédrio condenatório de Jesus. Herodes Ântipas optou por for-tificar e reconstruir a cidade de Séforis, tornando-a a sua própriacapital palaciana, e fê-lo de acordo com os mais recentes estilos gre-co-romanos do seu tempo. Ocupava então um local estratégico, porsobre o vale de Bet Netofa, no qual várias estradas principais se inter-

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    Desenho de Séforis vista da Nazaré, no tempo de Jesus

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    sectavam. Apesar de continuar a ser uma cidade judaica, tinha aindaum teatro com 4000 lugares (tão impressionante quanto o que o seupai havia construído em Cesareia, na costa do Mediterrâneo), ruascolunadas, mercados, edifícios cívicos elaborados, um complexo sis-tema de canalização, e banhos públicos. Flávio Josefo, enquanto tes-temunha do seu esplendor, escreve que Séforis havia-se tornado o«brinco de toda a Galileia»9. Mas à medida que Herodes Ântipas con-solidava o seu poder nos territórios que lhe haviam sido legados, asua legitimidade ao trono continuava sob suspeição: seria ele o rei legí-timo de Israel?

    Algum tempo antes da conflagração de Séforis, Maria e a sua famí-lia ter-se-iam mudado para a pequena aldeia da Nazaré, a pouco maisde seis quilómetros de distância. Não há qualquer documento sobreo que sucedeu aos seus pais, Joaquim e Ana, ou se estariam ainda vivosna altura sequer, mas sabemos pelo menos o que viera a acontecer coma sua filha10.

    Durante a revolta e a sua subsequente terrível repressão, Maria,que teria entre 14 a 15 anos, já seria considerada uma mulher, e foiprometida em casamento a um artesão local chamado José. Seriaaqui, na Nazaré, e nesse tempo, que ela se depararia com os seusprimeiros problemas: ficaria grávida antes do casamento, e não era

     José o pai da criança. Lucas afirma que quando o casal partiu entãopara Belém, para o nascimento de Jesus, Maria era ainda a «prome-tida» de José (Lucas 2:5). A palavra grega que Lucas utiliza nessecontexto é claríssima11. Significa que apenas se encontravam em noi-vado mas que estava pronta a dar à luz a criança. Depois do nasci-mento da sua criança em Belém, o casal retornaria à Nazaré, ime-diatamente após a calamidade, ainda com o fumo da arruinadaSéforis no ar12.

    Com um claro entendimento sobre a história de Séforis, surgemlogo uma série de novas imagens a serem adicionadas à «História doNatal»: corpos crucificados a apodrecer nas cruzes, a cidade adjacenteem chamas, e muitos dos vizinhos ora mortos, ora levados para longecomo escravos. O futuro desta família e desta criança era, no mínimo,incerto.

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    uma tradição absolutamente diferente, retratando Jesus como um entedivino e o sublime Filho de Deus. Nesse sentido, João apresenta umaorientação bem mais teológica, mas isso não quer dizer de modoalgum que a sua versão não tem qualquer valor informativo históri-co. Como veremos adiante, sem o registo independente de João fal-tar-nos-iam importantíssimos pormenores geográficos e cronológicos.

    Há ainda outros evangelhos para além dos canónicos, tal como oEvangelho segundo Tomé , escrito em cóptico e descoberto em 1945no Egipto, uma versão do de Marcos escrito em hebraico e que foipassado de mão em mão nos círculos rabínicos, e ainda uma meiadúzia de evangelhos ditos «apócrifos» que foram escritos entre osséculos II e III d. C. Estes serão introduzidos e discutidos no nosso textoà medida que os formos encontrando na nossa investigação. Mas ape-sar de tudo, continua a ser um dado adquirido que as fontes mais cre-díveis para a reconstrução do que se poderá saber sobre Jesus são mes-mo os quatro evangelhos do Novo Testamento. Como tambémveremos, se forem lidos criteriosa e criticamente, há uma série de sen-tidos novos e magníficos a descobrir. Começaremos a nossa investi-gação com aquilo que se pode saber da gravidez de Maria e o nasci-mento do seu primogénito, Jesus.

    Problemas na Nazaré

    Podemos tentar imaginar o burburinho causado pela gravidez deMaria numa aldeia tão pequena quanto a da Nazaré. Dizer que houvefalatórios seria de somenos. Ambas as famílias eram conhecidas13. Ascasas eram próximas, e os filhos casados muitas vezes habitavam emmeras extensões da casa principal dos seus pais, partilhando assim umpátio comum. Todos os aspectos da vida na aldeia estavam estreita-mente interdependentes, quer de um ponto de vista económico quersocial, algo que se me tornou claro de imediato na minha primeiravisita à «aldeia da Nazaré». Num local hoje no meio da grande emoderna cidade da Nazaré, arqueólogos encontram-se num processode reconstrução de uma versão autêntica de uma aldeia judaica doséculo I14. Podem-se entrar nas pequenas divisões das casas, caminharpor entre os pátios contíguos e as ruas estreitas, e experimentar a ine-

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    xorável rede de ligações que atravessaria toda a vida local. Não haviagrande espaço para segredos na Nazaré.

     José deparava-se com um sério problema, o qual nenhum noivogostaria de imaginar. Ele encontrava-se prometido a Maria, ambasas famílias haviam acordado o casamento, mas a sua futura noiva«encontrava-se de esperanças» antes do casamento (Mateus 1:18). Deacordo com o evangelho de Mateus, José foi quem descobrira a gra-videz, e ele resolveu abandonar os planos do casamento, mas dei-xando o assunto permanecer secreto, não a fosse humilhar. Talvezestivesse mesmo a planear ajudá-la a sair da aldeia, para ter o filhoem segredo. Não nos é revelado nada. Mas uma coisa é certa: nãoera ele o pai desta criança que viria a nascer. Com ou sem a ajudadele, Maria acabou por sair da aldeia à pressa e, de acordo com astradições, dirigiu-se para sul, para a pequena aldeia de Ein Kerem, aalguns seis quilómetros a ocidente de Jerusalém, nos territórios mon-tanhosos da Judeia. Aí Maria deixou-se ficar durante três meses commembros próximos da sua família, um casal mais velho, Isabel eZacarias (Lucas 1:39). A própria Isabel também se encontrava grá-vida, no sexto mês, com a criança que viríamos a conhecer como

     João, o Baptista. Não sabemos que graus de parentesco uniam Isa-bel a Maria, se eram primas, ou tia e sobrinha, mas estas circuns-tâncias apontam para o facto de que seriam próximas. O que signi-fica igualmente que Jesus e João eram parentes.

    Segundo Lucas, o nascimento teve lugar em Belém, devido à obri-gatoriedade de um recenseamento fiscal, ordenado por Roma. Belém,logo à saída de Jerusalém, na Judeia, fica a sul do país, ao passo quea Nazaré fica a norte da Galileia, ou seja, estes locais separam-se portrês dias de viagem. Lucas conta-nos como o casal, ao encontrar acidade a abarrotar de pessoas e todos os alojamentos cheios, acaboupor se alojar num estábulo, no qual Jesus nasceria. É muito comumencontrarmos estruturas similares a cavernas, esculpidas na própriarocha, dessa altura, mesmo ao lado de um edifício ou moradia, e queserviriam para guardar animais domésticos. Como, ainda de acordocom Lucas, José e a sua prometida Maria ainda não se tinham casa-do, não saberemos jamais quando é que o casamento ocorreu, masteria de ser seguramente após o parto da criança (Lucas 2:5). Lucasreferir-se-á mais tarde a Jesus como «filho de José», mas é mais do

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    que evidente que o autor não acredita ser José o pai verdadeiro de Jesus. Pela linguagem que utiliza, implica antes que o casal se casarae que José se tornara assim o pai adoptivo legal de Jesus (Lucas 4:22).Mateus indica que José «tomou a sua esposa», mas não nos diz quan-do, apesar de acrescentar uma estranha e fascinante nota, indicandoter o casal relações sexuais apenas após o nascimento da criança(Mateus 1:25)15. Esta informação estaria em consonância com o queestá implícito em Lucas, a saber, que o casamento teve lugar depoisdo nascimento. Na cultura judaica, o acto sexual de «conhecer» amulher era o que consumava o casamento16.

    Esta é a simples estrutura apresentada nos primeiros capítulos do