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A ERA DOS ZERO DIREITOS

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A ERA DOS ZERO DIREITOSTRABALHO DECENTE, TERCEIRIZAÇÃO

E CONTRATO ZERO-HORA

PATRÍCIA MAEDAJuíza do trabalho substituta no Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (Campinas/SP).

Associada à AMATRA-15 (Associação dos Magistrados da 15ª Região), à ANAMATRA (Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho),

à AJD (Associação Juízes para a Democracia) e à ALJT (Associação Latino-americana de Juízes do Trabalho). Doutoranda em Direito do Trabalho na Faculdade de Direito da

Universidade de São Paulo, pesquisadora do Grupo de Pesquisas Trabalho e Capital — GPTC/USP e articulista na coluna “Sororidade em pauta” do site justificando.

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EDITORA LTDA.

© Todos os direitos reservados

Rua Jaguaribe, 571CEP 01224-003São Paulo, SP — BrasilFone (11) 2167-1101www.ltr.com.brJunho, 2017

Produção Gráfica e Editoração Eletrônica: GRAPHIEN DIAGRAMAÇÃO E ARTEProjeto de Capa: FABIO GIGLIOImpressão: GRÁFICA PAYM

versão impressa — LTr 5761.7 — ISBN 978-85-361-9222-2 versão digital — LTr 9138.6 — ISBN 978-85-361-9234-5

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Maeda, Patrícia

A Era dos zero direitos : trabalho decente, terceirização e contrato zero-hora / Patrícia Maeda. — São Paulo : LTr, 2017.

Bibliografia.

1. Capitalismo 2. Contrato de trabalho 3. Flexibilização do trabalho 4. Precarização do trabalho 5. Terceirização 6. Trabalho I. Título.

17-03285 CDU-34:331

Índices para catálogo sistemático:

1. Direito do trabalho 34:331

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Para Pitchu, Chuchu e Pik.

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Sumário

Apresentação • Jorge Luiz Souto Maior ............................................................................................................. 11

Introdução ............................................................................................................................................................ 13

Capítulo 1 — TRABALHO NAS CONDIÇÕES ATUAIS DO CAPITALISMO ........................................... 15

1.1 TRABALHO E DIREITO NO CAPITALISMO ........................................................................................ 15

1.2 ESTADO COMO FORMA POLÍTICA DO CAPITALISMO ................................................................... 22

1.3 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO PÓS-FORDISMO ....................................................................... 26

1.3.1 Taylorismo ............................................................................................................................................ 27

1.3.2 Fordismo .............................................................................................................................................. 28

1.4 PÓS-FORDISMO .......................................................................................................................................... 34

1.4.1 Reestruturação produtiva no pós-fordismo ........................................................................................... 43

1.4.2 Precarização do trabalho no pós-fordismo ............................................................................................ 46

Capítulo 2 — ANÁLISE DA CONCEPÇÃO DE TRABALHO DECENTE .................................................. 55

2.1 CONCEPÇÃO DE TRABALHO DECENTE NAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS ............ 55

2.2 TRABALHO DECENTE NO BRASIL....................................................................................................... 68

2.3 PELA CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO DE TRABALHO DECENTE ........................................ 75

Capítulo 3 — TERCEIRIZAÇÃO NO BRASIL COMO NEGAÇÃO DO TRABALHO DECENTE ........ 83

3.1 TERCEIRIZAÇÃO: ANTECEDENTES, CONCEITOS E REFLEXÕES ............................................. 83

3.2 TERCEIRIZAÇÃO EM PERSPECTIVA — O PROJETO DE LEI ......................................................... 103

3.3 TERCEIRIZAÇÃO E TRABALHO DECENTE ....................................................................................... 108

Capítulo 4 — CONTRATO ZERO-HORA E SEU POTENCIAL PRECARIZANTE ................................. 113

4.1 CONSULTAS E PESQUISAS PARA LEGITIMAR DECISÃO POLÍTICA NEOLIBERAL .............. 114

4.2 O CONTRATO ZERO-HORA NA PERSPECTIVA DOS ENTES SINDICAIS .................................... 119

4.3 JORNADA MÓVEL E VARIÁVEL NO BRASIL ..................................................................................... 126

4.4 CONTRATO INTERMITENTE OU CONTRATO ZERO-HORA BRASILEIRO ................................. 130

Conclusão .............................................................................................................................................................. 133

Referências Bibliográficas ................................................................................................................................... 141

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“Quem tem a razão?Um burocrata ou um padre com o evangelho em mãos?

Um momento instante entãoPalavras não justificam a ida em vão

Esclarece por favorO que é tão temido só acontece com os outros

O que você faria?Justiça é tão bela

Se funcionasse só uma vezA lei não ressuscita

Burocratiza o que eu já sei[...]”

Plebe Rude, A Ida (1987)

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Apresentação

Ter a grande honra de apresentar o trabalho da colega Patrícia Maeda é a expressão nítida do sentimento que nos envolve na realidade atual: um misto de alegria e de tristeza.

Nos sentimos felizes porque percebemos que cada vez mais temos oportunidades de compreender como a sociedade capitalista de organiza, o que nos possibilita uma melhor compreensão de nós mesmos e uma correta visualização de nossa existência histórica.

Mas essas oportunidades de compreensão são dadas por conta das explicitações da exploração, das opressões e mesmo do reacionarismo conservador, que é fruto, em certa medida, das preocupações econômicas que impulsionam um sistema predatório e seletivo. Sem ameaças revolucionárias e com as crises atingindo níveis cada vez mais profundos, os limites de contensão criados pelo próprio sistema são desconsiderados e mesmo as formas ideológicas de preservação do modelo são abandonadas.

Tudo se assume e se apresenta muito claramente e é aí que a felicidade da compreensão atinge o ponto da tristeza, pois o que resulta é a constatação de um mundo se despedaçando, de pessoas se deteriorando, física e mentalmente, sem a percepção, por outro lado, da constituição de vias eficazes de resistência e de construção de uma nova sociedade.

Ler o trabalho da Patrícia trouxe-me a enorme alegria de ver o quanto a própria autora, ao longo de um processo de envolvimento com estudos e dedicação à pesquisa, evoluiu em sua capacidade de compreender o mundo, chegando mesmo ao ponto, ideal, de conseguir ensinar a todos àqueles que, um dia, de algum modo, contribuíram com o seu percurso.

Enfim, de uma ideia inicial de defesa do trabalho decente, a autora, embrenhando-se nos estudos da história, da sociologia, da filosofia, da economia e, claro, do direito, valendo-se também de uma perspectiva comparada, tendo, para tanto, inclusive, residido um semestre no Canadá, acabou fazendo uma obra que explica, com extrema qualidade conceitual, o funcionamento do modo de produção capitalista, elaborando, em conclusão, uma crítica consistente à noção de trabalho decente, à estratégia da terceirização e àquilo que, presentemente, o atual desgoverno Temer traz como suposta inovação nas relações de trabalho, que é o contrato intermitente, ou, como chamado em outros países, o contrato zero hora.

Como dia a autora:

O discurso que trata da terceirização como uma forma de promoção de trabalho decente é, pois, uma falácia. Se, de um lado, o trabalho decente não representa a emancipação da classe trabalhadora, de outro, não se preza a justificar a precarização das condições de trabalho – ou pelo menos não deveria.(....)

... está em trâmite no Congresso Nacional a regulamentação de um modelo contratual que se aproxima do contrato zero-hora britânico, inclusive com a indicação de pontos de discussão similares, como a questão da exclusividade – art. 3º. Daí a importância da reflexão sobre os problemas decorrentes dessa máxima fle-xibilização do tempo de trabalho já experimentados no Reino Unido e, de forma ainda isolada, no Brasil, e sobre o rumo que tomaremos no que tange ao futuro próximo do direito do trabalho.

A leitura da obra, aliás, faz-se bastante oportuna, para que se possa perceber o quanto de retrocesso a proposta do trabalho intermitente, vendida como moderna, representa.

Esse é o aspecto que, portanto, traz bastante felicidade com relação à obra.

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No entanto, quando, lendo o belíssimo texto da Patrícia, se compreende o que de fato está acontecendo, e sem que se perceba a existência de um movimento social de resistência consistente, que traga consigo propostas concretas para a superação das bases produtivas que dão sustentação a esse modelo de sociedade, cujos desajustes se aprofundam de forma consciente e assumida e são encarados como inexoráveis, a alegria cede lugar à tristeza.

Esse sentimento, no entanto, não representa, de modo algum, desânimo ou desistência, pois “se o samba é a tristeza que balança”, a luta, fruto da consciência e do conhecimento, é a tristeza que reage. Então, “é preciso um bocado de tristeza”, se não, não se mudam as coisas não.

E, de todo modo, “a tristeza tem sempre uma esperança, de um dia não ser mais triste não”!Obrigado companheira!

Jorge Luiz Souto Maior

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Introdução

O mundo nunca produziu tanta riqueza, mas esse fato pouco altera a vida do trabalhador. A desigualdade entre as classes sociais continua sendo um desafio diário para quem lida com o direito do trabalho, uma vez que este regula a base do sistema capitalista, qual seja, o trabalho assalariado.

Atuar no campo do direito do trabalho exige mais do que a técnica do operador, uma vez que em regra a técnica não resolve a tensão que subjaz do conflito trabalho versus capital e, não raro, faz o contrário: agrava a tensão. Para compreender o papel atual do direito do trabalho, escolhemos estudar o próprio trabalho e, então, apontar algumas das contradições no capitalismo pós-fordista, dentre as quais destacamos a concepção do trabalho decente; a generalização da terceirização e a invisibilidade do terceirizado; o enaltecimento da liberdade individual e a falta de opção que impõe ao trabalhador vincular-se a um contrato de trabalho precário — o contrato zero-hora.

A ideia de que “o trabalho dignifica o homem” é repetida desde o século XVI, com a Reforma Protestante liderada por Martinho Lutero e João Calvino, em geral, por quem se apropria dos resultados do trabalho para quem o realiza. A tentativa de disfarçar a exploração da classe trabalhadora por meio da ideologia não é recente, muito embora seja cada vez mais difícil camuflá-la. Nesse contexto, a concepção do trabalho decente, ainda que originalmente seja resultado de razões humanistas dos técnicos e dirigentes da Organização Internacional do Trabalho (OIT), tem o potencial de reforçar o quadro de precarização do trabalho, caso esta não desenvolva uma definição tão clara que a torne à prova de inversão de sentido.

É possível seguir a vida sem essas preocupações, mesmo atuando no campo do direito do trabalho. Uma das estratégias consiste em reduzir a importância do princípio protetor, ignorando que ele é o motivo da existência do próprio direito do trabalho. Contribui para a paz interior do juspositivista não admitir que o trabalho seja uma mercadoria; invocar a liberdade e a igualdade formais, a dignidade, a flexibilidade, os direitos fundamentais e os direitos humanos.

Olhar o mundo apenas com as lentes do direito positivo não nos permite enxergar as estruturas da sociedade em que vivemos. Esse é um problema potencial para os juristas. O direito não é atemporal nem tampouco universal, como quer fazer parecer a construção positivista, que tende a naturalizar a exploração.

O conflito capital versus trabalho tem assumido contornos diversos ao longo do tempo do capitalismo, mas o trabalho manteve sua especificidade de assalariamento e abstração, de modo a garantir sua circulação no mercado. A forma-mercadoria é o núcleo da economia e da sociabilidade capitalistas.

De fato, não é fácil para o jurista perceber que a forma jurídica do sujeito de direito, assim como o Estado, constitui uma forma social capitalista — e que ambos, estruturalmente, promovem não a justiça social, mas a reprodução do capital.

É necessário avançar na compreensão da terceirização para além da descrição aparentemente neutra e isenta da forma de gestão em que se procura melhorar a produtividade, no espaço da livre-iniciativa. Essa perspectiva desconsidera a figura do trabalhador; como se no mundo houvesse apenas o capitalista, que de maneira sagaz é chamado de “produtor”, e o consumidor. Nosso intuito é fazer o caminho inverso: com base nas relações sociais, investigar o fenômeno da terceirização historicamente, além da interação entre o plano fático e o normativo.

No campo teórico, a liberdade é um ideal incontestável e norteia uma série de outros princípios e valores. Todavia, na materialidade das relações sociais, a exaltação da liberdade contratual — associada à competitividade, dentre outros fatores — pode ser fundamento para a flexibilização do tempo de trabalho, o que potencializa a superexploração do trabalhador zero-hora.

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14 A ERA DOS ZERO DIREITOS — Patrícia Maeda

Para atender à proposta deste estudo, qual seja, a análise do trabalho no capitalismo pós-fordista, em especial o trabalho decente, a terceirização e o contrato zero-hora, adotamos os métodos analítico-sintético e dialético, buscando perquirir sobre a relação fenômeno-essência, revelar a verdade subjacente às aparências e compreender o trabalho assalariado como parte de um todo. O método de procedimento é a interdisciplinariedade, com a interação entre a dogmática jurídica, a história, a filosofia e a sociologia. Como técnicas de pesquisa, por sua vez, são empregadas a documental e a bibliográfica, incluindo fontes de pesquisa disponíveis na doutrina, na legislação e na jurisprudência dos tribunais, tanto nacionais como estrangeiras.

O trabalho está estruturado em quatro capítulos, além desta Introdução e da Conclusão.O Capítulo 1 inicia-se com uma abordagem multidisciplinar sobre o trabalho humano. Além do aspecto jurídico,

para a compreensão da relação social do trabalho optamos por tangenciar outras áreas das ciências humanas, como a filosofia e a sociologia.

No capitalismo, para além de uma atividade transformadora da natureza, o trabalho é uma relação social, ao mesmo tempo em que assume a forma-mercadoria. O direito, na forma jurídica como o concebemos na atualidade, surge para estabilizar as relações de venda e compra decorrentes do capitalismo, em especial o contrato de trabalho. Trabalho e direito possuem especificidades que são analisadas no item 1.1.

O Estado é a forma política que garante a reprodução capitalista. A relação entre as formas mercantil, jurídica e política e o papel do Estado no capitalismo são estudadas no item 1.2.

De posse desse arcabouço teórico, passamos a enfrentar questões sobre os antecedentes históricos do pós-fordismo. O taylorismo e o fordismo podem ser compreendidos em suas diversas perspectivas nos itens 1.3.1 e 1.3.2.

O recorte temporal deste trabalho é fixado no item 1.4, quando tratamos do pós-fordismo, que abrange em linhas gerais o período que sucede às chamadas crises dos anos 1970. Assumimos o pós-fordismo como uma nova forma preponderante de organização do trabalho (toyotismo) e uma nova estruturação da vida social (acumulação, regulação e hegemonia), um rearranjo do próprio capitalismo. A reestruturação produtiva e a precarização do trabalho verificadas nesse contexto são abordadas nos itens 1.4.1 e 1.4.2 com o objetivo de fornecer subsídios para as análises subsequentes.

No Capítulo 2, analisamos a concepção de trabalho decente, primeiro de acordo com as organizações internacionais. No item 2.1, damos atenção aos principais pontos de diversos textos legais que mencionam o trabalho decente, contextualizando-os. Além disso, apresentamos a produção doutrinária sobre o assunto de autores, preferencialmente, que atuaram em organizações internacionais ou que tiveram artigos publicados por elas. No item 2.2, estudamos o que o trabalho decente representa no Brasil e qual a sua abrangência em termos de proteção do trabalho, relacionando-o com as concepções jurídicas de dignidade humana e de mínimo existencial. Sugerimos um caminho para a construção do conceito de trabalho decente e apontamos para outro conteúdo da dignidade humana no item 2.3.

A problemática da terceirização é enfrentada no Capítulo 3. A investigação de qual seria a gênese da terceirização e de como ela se opera nos planos fático e normativo consiste em questões cotejadas no item 3.1 com o contexto brasileiro — como o trabalho livre se desenvolveu no Brasil; qual seria a abrangência da regulação pública dos contratos de trabalho; como se deram a introdução e a “evolução” do modelo terceirizante no Brasil. No item 3.2 perquirimos sobre as perspectivas desse modelo com o projeto de lei que pretende a regulamentação da terceirização em trâmite no Congresso Nacional. A reflexão sobre a (in)conciliação entre a terceirização e o conceito de trabalho decente dá-se no item 3.3.

O contrato zero-hora é a tradução literal de zero hour contract, um modelo contratual que se tem expandido rapidamente nos últimos anos, cuja denominação é encontrada no site do governo britânico (https://www.gov.uk/contract-types-and-employer-responsibilities/zero-hour-contracts). No entanto, há outras formas de grafia, como por exemplo, zero hours contracts, utilizada no projeto de lei em trâmite no Parlamento britânico (http://services.parliament.uk/bills/2014-15/zerohour scontracts.html); e zero-hours contract, adotada pelo jornal The Guardian, também britânico (http://www.theguardian.com/uk-news/2015/sep/02/ number-of-workers-on-zero-hours-contracts-up-by-19).

Como uma forma extrema de flexibilizar o tempo de trabalho, esse modelo vem desafiando grande controvérsia partidária, sindical e acadêmica no Reino Unido. Conhecer esse debate e avaliar o potencial precarizante do contrato zero-hora constituem não apenas um interesse teórico, mas, sobretudo, uma necessidade premente, conforme demonstraremos no Capítulo 4.

Ao final, a Conclusão retoma os pontos mais importantes debatidos ao longo deste estudo para, então, refletir de modo sintético e específico sobre cada um deles.

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Capítulo 1

TRABALHO NAS CONDIÇÕES ATUAIS DO CAPITALISMO

1.1 TRABALHO E DIREITO NO CAPITALISMO

O trabalho, como “processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza”(1), sempre existiu. Mais do que a atividade em si, o trabalho comporta ainda a vontade orientada a um fim e é esse telos que “desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha”(2), na célebre frase de Marx.

Nesse sentido, Antoine Bevort et al. afirmam que, para além da atividade transformadora e teleológica da natureza, o trabalho possui, ainda, uma implicação subjetiva: ao trabalhar, o ser humano transforma não só a natureza, mas também a si mesmo. Trata-se, ademais, de uma categoria de compreensão, pois é na oposição trabalho/não trabalho que muitos fenômenos são percebidos — tempo social, identidades. Trabalho seria ainda um estatuto na medida em que trabalhar implica penetrar em um mundo de regras, que confere direitos e deveres, que indica um lugar em uma hierarquia. Concluímos, pois, que o trabalho é uma relação social que envolve diversos tipos de relações — trocas econômicas, cooperação, dominação, subordinação — entre indivíduos ou até entre classes sociais(3).

Harry Braverman destaca que o trabalho, como atividade proposital e orientada pela inteligência, é produto especial da espécie humana, assim como esta, por sua vez, é produto especial dessa forma de trabalho. Além disso, a unidade entre a força motivadora do trabalho (concepção) e o trabalho em si mesmo (execução) pode ser dissolvida nos seres humanos, diferentemente dos animais(4).

Marilena Chauí diz, em apertada síntese, que a sociedade grega antiga e a sociedade medieval distinguiam os homens entre superiores (cidadãos gregos e senhores feudais) e inferiores (escravos e servos). Em consonância com essa realidade social e histórica determinada, a teoria aristotélica da causalidade concebia como mais importante as causas da permanência, relacionadas com a atividade política ou práxis, do que as causas do movimento, relacionadas com a atividade técnica ou poiésis. Assim, o trabalho, como atividade técnica e causa motriz ou eficiente de transformação da natureza, é hierarquicamente inferior à atividade política (contemplativa) e causa final para a qual ele (o trabalho) é mero instrumento. Essa desqualificação do trabalho justifica a divisão social dos períodos pré-capitalistas. A ideia de que o trabalho dignifica o homem surge apenas na sociedade que superou como forma social a escravidão e a servidão. O trabalho humano só passa a ser valorizado quando adquire um valor de troca, ou seja, na sociedade capitalista(5).

Helena Hirata observa que o conceito de trabalho assalariado, como aquele em que o assalariado trabalha sob o controle do capitalista ao qual pertence o produto de seu trabalho, dá conta de duas relações: homem-natureza e homem-homem. No entanto, parte de um modelo assexuado de trabalho, ou melhor, modelo em que o sujeito universal é o masculino(6). A partir da problemática da divisão sexual do trabalho(7), Danièle Kergoat descontrói/reconstrói o

(1) MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 255.

(2) Ibidem, p. 255/256.(3) BEVORT, Antoine et al. (Org.). Dictionnaire du travail. Paris: Presses Universitaires de France, 2012. p. VII-VIII.(4) BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. 3. ed. Tradução de Nathanael C. Caixeiro. Rio de

Janeiro: LTC, 2014. p. 52-53.(5) CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia? São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 12.(6) HIRATA, Helena; ZARIFIAN, Philippe. Trabalho (conceito de). Tradução de Miriam Nobre. In: HIRATA, Helena et al. (Org.). Dicionário crítico

do feminismo. São Paulo: UNESP, 2009. p. 252.(7) De acordo com Danièle Kergoat, “A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais de sexo; essa

forma é historicamente adaptada a cada sociedade. Tem por características a destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres

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conceito de trabalho. Danièle Kergoat juntamente com outras pesquisadoras francesas na década de 1970 propuseram uma reconceituação do trabalho, para incluir o sexo social e o trabalho doméstico e abranger também o trabalho não assalariado, não remunerado, não mercantil e informal, pois “Trabalho profissional e trabalho doméstico, produção e reprodução, assalariamento e família, classe social e sexo social são considerados categorias indissociáveis”(8). Esse conceito abrangente de trabalho é muito importante para a compreensão das questões de gênero e da consubstancia-lidade(9) que permeia o conflito de classes, mas extrapola o objeto dessa pesquisa, qual seja, o trabalho assalariado. Todavia, mencionamos alguns achados durante a pesquisa que nos sugerem pistas sobre a divisão sexual do trabalho.

Harry Braverman ressalva que o trabalho é uma propriedade inalienável do indivíduo humano, pois “O que o trabalhador vende e o que o capitalista compra não é uma quantidade contratada de trabalho, mas a força para trabalhar por um período contratado de tempo”(10),(11).

Por sua vez, Alysson Leandro Mascaro afirma que a dominação entre as classes sociais antes do Estado Moderno tem um caráter direto, pois é exercida pela força ou pela posse direta da terra. O que chamamos de Idade Antiga caracteriza-se pelo modo de produção escravagista, no qual a sociedade se estrutura com base na força. Já na Idade Média, pode-se dizer que a posse do meio de produção é suficiente para dar a coesão social(12).

A transição do feudalismo para o capitalismo não ocorre como um salto na história, mas compreende o período entre o final do século XIV até o início do século XIX, como Jorge Luiz Souto Maior bem sintetiza:

A desintegração do feudalismo se dá com a transferência das terras das mãos dos senhores feudais para a nova classe burguesa e a formação concreta do capitalismo se dá com a instituição de uma classe de pessoas desprovidas de meio de subsistência, em grande quantidade, obrigadas, então, a vender sua força de trabalho a baixo preço, diante da lógica da concorrência pelos postos de trabalho oferecidos(13).

Sob o aspecto jurídico-político, ressaltamos que no Estado de Polícia, primeira etapa do Estado Moderno, cor-respondente ao Absolutismo, o monarca não era subordinado ao direito, atuando com liberdade incondicionada e, por vezes, de forma arbitrária, sob a égide de princípios como o da regis voluntas suprema lex (a vontade do rei é a lei suprema), do quod principi placuit legis habet vigorem (aquilo que agrada ao príncipe tem força de lei), the king can do no wrong (o rei não pode errar), como nos ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro(14).

Até então, o direito é lateral à sociedade, que dele não necessita para garantir sua coesão, pois o Absolutismo apoia-se no poder divino. No entanto, os privilégios da nobreza concedidos pelo monarca são contrários aos interesses da burguesia emergente, ou melhor, “o Estado moderno absolutista passou a ser entrave para o livre desenvolvimento das forças produtivas, sendo um problema para a burguesia, que ganhou ainda mais espaço e poder econômico-social nessa forma estatal”(15) e que promoveu as chamadas revoluções liberais. David Harvey, por sua vez, esclarece:

A acumulação original do capital no fim da época medieval na Europa se fundamentou em violência, depre-dação, furto, fraude e roubo. Por esses meios extralegais, piratas, padres e comerciantes, complementados pelos usurários, reuniram “poder de dinheiro” inicial suficiente para começar a circular o dinheiro de forma sistemática sob a forma de capital. O roubo espanhol de ouro incaico foi o exemplo paradigmático. Nos

à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a ocupação pelos homens das funções de forte valor social agregado (políticas, religiosas, militares etc.). Essa forma de divisão social do trabalho tem dois princípios organizadores: o da separação (existem trabalho de homens e outros de mulheres) e o da hierarquização (um trabalho de homem “vale” mais do que um de mulher).” (KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. Tradução de Vivian Aranha Saboia. In: HIRATA, Helena et al. (Org.). Op. cit., p. 67).

(8) HIRATA, Helena; ZARIFIAN, Philippe. Trabalho (conceito de). In: HIRATA, Helena et al. (Org.). Dicionário crítico do feminismo, p. 255.(9) Danièle Kergoat esclarece: “O termo, emprestado da teologia, não deve gerar confusão: ele é utilizado aqui em sua acepção mais trivial, de “uni-

dade de substância”. Falar em consubstancialidade sugere que a diferenciação dos tipos de relações sociais é uma operação por vezes necessária à sociologia, mas que é analítica e não pode ser aplicada inadvertidamente à análise das práticas sociais concretas.” (KERGOAT, Danièle. Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Tradução de Antonia Malta Campos. Revista Novos Estudos CEBRAP, n. 86, p. 93-103, mar. 2010, p. 94. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script= sci_arttext&pid=S0101-33002010000100005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 5 nov. 2015).

(10) BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX, p. 54, grifo do autor.(11) Utilizamos de maneira indistinta as denominações trabalho, força de trabalho e trabalho assalariado, exceto quando expressamente ressalvado.(12) MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao estudo do direito. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 18.(13) SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Curso de direito do trabalho: teoria geral do direito do trabalho — parte I. São Paulo: LTr, 2011. v. I, p. 66.(14) DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 06.(15) VECCHI, Ipojucan Demétrius. Noções de direito do trabalho: um enfoque constitucional. 3. ed. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2009.

v. I, p. 28.