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UNIVERSIDADE DE COIMBRA Faculdade de Direito DENIS DOMINGUES HERMIDA A ETICIDADE COMO INSTRUMENTO DE ESTABILIZAÇÃO NORMATIVA EM ESTADOS DEMOCRÁTICOS 2014

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UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Faculdade de Direito

DENIS DOMINGUES HERMIDA

A ETICIDADE COMO INSTRUMENTO DE

ESTABILIZAÇÃO NORMATIVA EM ESTADOS

DEMOCRÁTICOS

2014

2

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................................4

Capítulo I – INTERPRETAÇÃO E MUTAÇÃO NORMATIVA..........................................7

1 Norma jurídica. Conceito e Estrutura...................................................................................7

2. Interpretação Jurídica. Conceito e Características..............................................................12

2.1. Os princípios como valores condutores da interpretação jurídica...................................18

2.2. A interpretação constitucional e seus princípios.................................................................21

2.3 A interpretação de direitos fundamentais.............................................................................26

2.4.1 Conceito e espécies de Direitos Fundamentais...................................................................26

2.4.2 A interpretação de enunciados prescritivos introdutores de Direitos Fundamentais.....30

II – A TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO DE MIGUEL REALE, A ETICIDADE COMO

PROCEDIMENTO INTERPRETATIVO E O FENÔMENO DA MUTAÇÃO

NORMATIVA................................................................................................................................34

1 O ambiente temporal de desenvolvimento da Teoria Tridimensional do Direito................34

2 As espécies de Tridimensionalidade do Direito.......................................................................38

2.1 A Tridimensionalidade genérica e abstrata do direito........................................................38

2.2 A Tridimensionalidade Específica.........................................................................................40

2.2.1 As características da Tridimensionalidade do Direito de Miguel Reale..........................41

3 A “Eticidade” como reflexo da Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale............46

3.1 Análise semântica do termo “Eticidade”...............................................................................46

3.1.2 A polissemia da palavra “Ética”.........................................................................................48

3.1.3 A definição de “ética” para Miguel Reale .........................................................................53

3.1.3.1 Conduta e valor.................................................................................................................53

3.1.3.2 Fins e categorias do agir...................................................................................................54

3

3.4.3.3 Momentos da conduta.......................................................................................................58

3.1.3.4 Especificidade da conduta ética.......................................................................................59

3.1.3.5 Modalidades de conduta...................................................................................................61

3.1.3.6 O conceito e a aplicabilidade de “Eticidade” em Miguel Reale....................................66

3.1.4 A “Eticidade” como instrumento de “mutação normativa”............................................68

Capítulo III – EXEMPLO DE APLICAÇÃO DA “ETICIDADE” COMO INSTRUMENTO DE

ESTABILIZAÇÃO NORMATIVA: AS NOVAS TECNOLOGIAS DE VIGILÂNCIA E A MUTAÇÃO

NORMATIVA DO ARTIGO 62, I, DA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO NO

BRASIL.........................................................................................................................................72

1 Espaço Ampliado. Conceito e características..........................................................................72

1.1 O regime de visibilidade como “valor” e fonte de “mutação normativa”.........................78

2 A mutação normativa do artigo 62, I, da CLT em função da mudança do regime de

Visibilidade....................................................................................................................................80

2.1 O contrato de trabalho e a jornada laboral..........................................................................80

2.2 Análise histórica do enunciado prescritivo constante do inciso I do artigo 62 da CLT....86

2.3 A elasticidade semântica do enunciado contido no artigo 62, I, da CLT e

as hipóteses interpretativas...........................................................................................................89

2.4 Da relação entre a norma jurídica oriunda do artigo 62, I, da CLT e os Direitos Fundamentais

contidos no artigo 7º, IX e XVI, da Constituição Federal Brasileira........................................91

2.5 Aplicação do princípio da unidade do Direito Positivo Brasileiro. Necessidade de interpretação do

inciso I do artigo 62 da CLT frente ao conteúdo das demais normas jurídicas

vigentes............................................................................................................................................93

2.5.1 Os “Valores Sociais do Trabalho” e a “Dignidade da Pessoa Humana” como fundamentos da

República Federativa do Brasil e, consequentemente, das normas jurídicas vigentes.............94

2.5.1.1 A Dignidade da Pessoa Humana.............................................................. ............................96

2.5.1.2 Os “Valores Sociais do Trabalho” e a “Valorização do Trabalho Humano”.................101

3 O atual regime de visibilidade e a sua influência na interpretação do inciso I do artigo 62 da

CLT.....................................................................................................................................................115

CONCLUSÃO....................................................................................................................................120

BIBLIOGRAFIA.................................................................................................. ..............................121

4

INTRODUÇÃO

Primeiramente, fixamos que a despeito da existência na doutrina de

pluralidade de significado para a expressão “Estado Democrático de Direito”,

adotaremos, ao longo desta exposição e como premissa do desenvolvimento do

raciocínio, o conceito defendido por José Afonso da Silva, no sentido de que a

configuração do Estado Democrático de Direito não significa apenas unir formalmente

os conceitos de Estado Democrático e Estado de direito, consistindo, em realidade,

num conceito novo, que leva em conta os conceitos dos elementos componentes, mas

os supera na medida em que incorpora um componente revolucionário de

transformação do status quo1 vez que a democracia que o Estado Democrático de

Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa

e solidária, em que o poder emana do povo, que deve ser exercido em proveito do

povo, diretamente ou por representantes eleitos, participativa, porque envolve a

participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de

governo pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e

pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade

de convivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade; há de

ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não

depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e

sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de

favorecer o seu pleno exercício2.

A democracia, enquanto característica de um Estado, tem como uma de

suas pilastras a compatibilidade das normas jurídicas vigentes com os valores

cultuados pela respectiva Sociedade. Os Estados que adotam sistema jurídico baseado

no modelo romano-germânico baseiam os seus respectivos direitos positivos em

enunciados prescritivos (leis). Referidas leis, produzidas pelo povo direta ou

indiretamente, caracterizam-se pela tendência à perenidade, vez que a manutenção do

1 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32ª edição. São Paulo: Malheiros, 2009, p.108.

2 Ibidem, p.108.

5

texto normativo produzido mantém-se até a prática de ato de derrogação (revogação

parcial) ou abrogação (revogação total), mediante novo procedimento

legiferante(produtor de novas leis).

A oportunidade e o tempo necessários à prática de novos atos legiferantes

pelo poder constituído objetivando modificar enunciados prescritivos existentes

(derrogando-os ou os abrogando) nem sempre acompanham a evolução/modificação

dos valores sociais incidentes sobre os fatos-hipóteses submetidas às leis existentes ( o

que ocorre não só em razão da rapidez como, no mundo contemporâneo, os valores se

alteram – o que tem como algumas de suas razões a globalização e o impacto da

velocidade da disseminação de informações – , como também a demora na tramitação

de projetos de lei – por exemplo, o projeto de lei que deu origem ao atual Código Civil

Brasileiro cuja vigência iniciou-se no ano de 2003 teve o seu primeiro anteprojeto

apresentado em 1972-), o que gera instabilidade normativa sob os aspectos das

exigências democráticas.

Objetivando-se a manutenção da democracia no sentido da compatibilidade

das normas jurídicas com os valores cultuados pela Sociedade, propõe-se a

normatividade concreta baseada na Teoria Tridimensional do Direito como

instrumento de aplicabilidade dos enunciados prescritivos existentes, capaz de

promover o que denominamos “mutação normativa”, tida como modificação do

conteúdo de uma norma jurídica, sem a alteração do enunciado prescritivo que lhe

serve de fonte, o que ocorre graças à “eticidade”(procedimento de incidência do

“valor” ao fato gerando a escolha de uma das possibilidades semânticas do texto

normativo interpretado levando-se em consideração a sua “elasticidade semântica”,

realizando-se, assim, a experiência jurídica nos moldes compatíveis com o pensamento

tridimensional de Miguel Reale).

Pretende-se com a presente pesquisa buscar solução para o seguinte

problema sendo a compatibilidade das normas jurídicas vigentes com os valores

cultuados pela sociedade uma das pilastras de um Estado democrático e, nos Estados

que adotam o modelo romano-germânico de direito, a oportunidade e o tempo

necessários para a prática de atos legiferantes objetivando a modificação de

enunciados prescritivos existentes nem sempre acompanham a evolução/modificação

6

dos valores sociais incidentes sobre os fatos-hipóteses, o que é capaz de gerar

instabilidade normativa sob os aspectos das exigências democráticas, existe

mecanismo de aplicabilidade de enunciados prescritivos que seja capaz de afastar

referida instabilidade?

No intuito de solucionar o problema apresentado, levantamos a seguinte

hipótese cuja veracidade objetivamos demonstrar ao longo desta exposição:

objetivando-se a manutenção da democracia no sentido da compatibilidade das normas

jurídicas com os valores cultuados pela Sociedade, propõe-se a normatividade concreta

baseada na Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale como instrumento de

aplicabilidade dos enunciados prescritivos existentes, capaz de promover o que

denominamos “mutação normativa”, tida como modificação do conteúdo de uma

norma jurídica, sem a alteração do enunciado prescritivo que lhe serve de fonte, o que

ocorre graças à “eticidade”(procedimento de incidência do “valor” ao fato gerando a

escolha de uma das possibilidades semânticas do texto normativo interpretado

levando-se em consideração a sua “elasticidade semântica”, realizando-se, assim, a

experiência jurídica nos moldes compatíveis com o pensamento tridimensional de

Miguel Reale).

7

Capítulo I – INTERPRETAÇÃO E MUTAÇÃO NORMATIVA

A mutação normativa é fenômeno jurídico produto da interpretação

jurídica. A compreensão de como a interpretação jurídica é capaz de produzir a

mutação normativa impõe prévias reflexões a respeito não só da estrutura das normas

jurídicas, como também em relação ao conteúdo da interpretação jurídica e a relação

entre a “eticidade”, procedimento inerente à visão fenomenológica do Direito sob o

enfoque da Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale, e a modificação do

conteúdo da norma jurídica sem a alteração do seu respectivo enunciado prescritivo

(texto de lei).

1 Norma jurídica. Conceito e Estrutura

Num Estado dirigido pelo princípio da legalidade realiza-se o Direito

quando se aplica, a um caso concreto, uma norma jurídica, que é produto de

interpretação de enunciados prescritivos, interpretação essa que leva em consideração

os valores adotados pela sociedade e busca a justiça para o caso concreto.

Isto é, no processo de realização do Direito (experiência jurídica) em sua

concretude, têm-se alguns fatores que devem ser harmonizados. Esses fatores devem

ser analisados frente às características de um Estado Democrático de Direito”, classe

essa de Estado que possui nuances específicas que interferem diretamente na

composição e na harmonização dos fatores que instrumentalizam o Direito. Para tal

demonstração, apresentamos o conceito e as características do Estado Democrático de

Direito no Brasil através do magistério de José Afonso da Silva:

A configuração do Estado Democrático de Direito não significa

apenas unir formalmente os conceitos de Estado Democrático e

Estado de direito. Consiste, na verdade, na criação de um conceito

novo, que leva em conta os conceitos dos elementos componentes,

mas os supera na medida em que incorpora um componente

revolucionário de transformação do status quo3.

3 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32ª edição. São Paulo: Malheiros, 2009, p.108.

8

A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser

um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e

solidária (...), em que o poder emana do povo, que deve ser exercido

em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos (...);

participativa, porque envolve a participação crescente do povo no

processo decisório e na formação dos atos de governo pluralista,

porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupõe

assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a

possibilidade de convivência de formas de organização e interesses

diferentes da sociedade; há de ser um processo de liberação da pessoa

humana das formas de opressão que não depende apenas do

reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e

sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas

suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício4.

Dessas palavras podemos extrair que o papel do “Estado Democrático de

Direito” é a preservação da convivência social (possibilitar a vida harmoniosa em

sociedade), numa sociedade livre (não oprimida, livre para cultuar os seus valores) e

justa (como realização da justiça vista na forma exposta por Alcides Telles Júnior

como “adaptação recíproca da pluralidade dos entes, sua conexão e harmonia”5).

O papel da lei no Estado Democrático de Direito também é enfocado por

José Afonso da Silva:

O princípio da legalidade é também um princípio basilar do Estado

Democrático de Direito. É da essência de seu conceito subordinar-se à

Constituição e fundar-se na legalidade democrática. Sujeita-se, como

todo Estado de direito, ao império da lei, mas da lei que realize o

princípio da igualdade e da justiça não pela sua generalidade, mas pela

busca da igualização das condições dos socialmente desiguais. Deve,

pois, ser destacada a relevância da lei no Estado Democrático de

Direito, não apenas quanto ao seu conceito, forma de ato jurídico

abstrato, geral, obrigatório e modificativo da ordem jurídica existente,

mas também à sua função de regulamentação fundamental, produzida

segundo um procedimento constitucional qualificado. A lei é

efetivamente o ato oficial de maior realce na vida política. Ato de

decisão política por excelência, é por meio dela, enquanto emanada da

atuação da vontade popular, que o poder estatal propicia ao viver

social modos predeterminados de conduta, de maneira que os

membros da sociedade saibam, de antemão, como guiar-se na

realização de seus interesses.6

4 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32ª edição. São Paulo: Malheiros, 2009, p.108.

5 TELLES JÚNIOR, Alcides. Discurso, Linguagem e Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986, p. 33.

6 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9ª edição. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 110.

9

O instrumento de formação da norma jurídica é exatamente a interpretação,

vista como procedimento de obtenção da significação de um determinado enunciado

prescritivo, a partir da interação entre o instrumento de observação (o texto legal) e a

coisa observada (a situação fática concreta, com todas as suas peculiaridades), tendo

como finalidade a prática do Direito.

A interpretação jurídica é verdadeiro ato de enunciação7, nos moldes

expostos por José Luiz Fiorin8, que realiza a função de harmonizar os instrumentos de

realização do direito em determinado caso concreto, tendo como seu produto

(enunciado) a norma jurídica.

A norma jurídica é o resultado de um processo de harmonização de

fatores(interpretação) e que essa harmonização, para a construção da norma jurídica, é

feita levando em consideração, inclusive, as características do caso concreto em

análise. Isto é, o caso concreto assume um duplo papel passivo, um primeiro de

incidência de valores sociais e da justiça para efeito do alcance da norma jurídica e um

segundo, posterior, de incidência da própria norma jurídica, regulando o

comportamento. Nesse sentido, transcreve-se o magistério de Celso Ribeiro Bastos:

Distinguem-se, claramente, no processo de efetivação da norma

jurídica, dois momentos distintos. Num primeiro momento, tem-se a

seleção da norma aplicável ao caso, dentre as várias potencialmente

incidentes. Num segundo momento, há então sua efetiva aplicação.

Contudo, antes desta... é necessário interpretar a regra. E, também, no

processo de seleção da norma aplicável, há um processo

interpretativo, ainda que não seja “exauriente”.9

Passamos, agora, a nos atentar ao processo de incidência da norma jurídica

ao caso concreto, especificamente no sentido de se investigar a estrutura interna da

7 Enunciação é o ato de enunciar, que é a enunciação, é a “colocação do homem na história”, isto é,

temporalizar, especializar e actorizar a linguagem (tempo, espaço e ator como categorias enunciativas) ou, como ensina Benviste, citado por Fiorin, a enunciação é essa colocação em funcionamento da língua por um ato individual de utilização, é o ato de produzir enunciado, “é a instância de mediação, que assegura a discursivização da língua, que permite a passagem da competência à performance, das estruturas semióticas virtuais às estruturas realizadas sob a forma de discurso”. Conforme FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. As categorias de pessoa, espaço e tempo. 2ª edição. São Paulo: Editora Ática, 1998, p. 31. 8 FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. As categorias de pessoa, espaço e tempo. 2ª edição. São Paulo:

Editora Ática, 1998, p. 31. 9 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos Editor:

Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999, p. 46.

10

norma jurídica. Afinal, de que forma a norma jurídica incide ao caso concreto?

Através da implicação existente entre o antecedente e o consequente dessa norma, que

é bem analisada por Lourival Vilanova:

O revestimento verbal das normas jurídicas positivas não obedece a

uma forma padrão. Vertem-se nas peculiaridades de cada idioma e em

estruturas gramaticais variadas. Geralmente, usam o indicativo-

presente ou indicativo-futuro, modo verbal esse que oculta o verbo

propriamente deôntico. O dever-ser transparece no verbo ser

acompanhado de adjetivo participial: “está obrigado”, “está facultado

ou permitido”, “está proibido”(sem falar em outros verbos, como

“poder” no presente ou futuro do indicativo), Transparece, mas não

aparece com evidência normal. É preciso reduzir às últimas

modalidades verbas à estrutura formalizada de linguagem lógica para

se obter a fórmula “se se dá um fato F qualquer, então o sujeito S’”,

deve fazer ou deve omitir ou poder fazer ou omitir conduta C ante

outro sujeito S’’’, que representa o primeiro membro da proposição

jurídica completa.

Como se vê, no interior desta fórmula, destacamos a hipótese e a tese

(ou o pressuposto e a consequência). A estrutura interna desse

primeiro membro da proposição jurídica articula-se em forma lógica

de implicação: a hipótese implica a tese ou o antecedente (em sentido

formal) implica o consequente. A hipótese é o descritor de possível

situação fática do mundo (natural ou social, inclusive), cuja ocorrência

na realidade verifica o descrito na hipótese. Não cabe (...) interpretar a

hipótese como proposição prescritiva(“se alguém morre, deve ser a

sucessão de seus bens”: nada se prescreve na hipótese). É descritiva,

mas sem valor veritativo. Quer dizer, verificado o fato jurídico, no

suporte fático, ou não verificado, a hipótese não adquire valor-de-

verdade. Mas a hipótese da proposição normativa do Direito tem um

valer específico: vale, tem validade jurídica, foi posta consoante

processo previsto no interior do sistema jurídico. (...) Diremos: o

deôntico não reside na hipótese como tal, mas no vínculo entre a

hipótese e a tese. Deve ser o vínculo implicacional. Em outro giro:

deve ser a implicação entre hipótese e tese.10

Assim, temos que, após a interpretação, encontramos uma estrutura lógica

(que é a própria norma jurídica) composta de dois fragmentos, o antecedente – que

descreve uma situação de fato permitida, proibida ou obrigatória – e o consequente –

que impõe determinado comportamento ou efeito jurídico – sendo que ambos os

fragmentos estão unidos por uma relação de implicação (se acontecer o antecedente,

então deve ser o consequente) gerada pelo modal deôntico genérico “deve ser”. No 10

VILLANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de Direito Positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 95-96 .

11

interior do consequente (tese) temos a incidência de modal deôntico específico, que

pode ser “é proibido”(V), é “obrigatório”(O) e “é permitido”(P).

Há, assim, esquematicamente, a seguinte estrutura primária:

“D( h c)”11

Chama-se de “estrutura primária” em razão da existência de uma “estrutura

secundária” da norma jurídica, sobre a qual apresentamos as palavras de Villanova:

Seguimos a teoria da estrutura dual da norma jurídica: consta de duas

partes, que se denominam norma primária e norma secundária.

Naquela, estatuem-se as relações deônticas direitos/deveres, como

conseqüência da verificação de pressupostos, fixados na proposição

descritiva de situações fáticas ou situações já juridicamente

qualificadas; nesta, preceituam-se as conseqüências sancionatórias, no

pressuposto do não-cumprimento do estatuído na norma determinante

da conduta juridicamente devida.

(...) O Direito-norma, em sua integralidade constitutiva,

compõe-se de duas partes. Denominemos, em sentido inverso do da

teoria kelseniana, norma primária a que estatui

direitos/deveres(sentido amplo) e norma secundária a que vem em

conseqüência da inobservância da conduta devida, justamente para

sancionar seu inadimplemento (impô-la coativamente ou dar-lhe

conduta substitutiva reparadora). As denominações adjetivas

“primária” e “secundária” não exprimem relações de ordem temporal

ou causal, mas de antecedente lógico para consequente lógico.”12

Finalizando a análise da norma jurídica como “estrutura lógica”,

apresentamos a “fórmula” completa da norma jurídica (primária mais secundária):

“D|{- [D( h c)]13

} -> s14

|”.

11

Tal que “D” simboliza o modal deôntico genérico “Deve ser”, “H” a hipótese, “C” o conseqüente e “ ” o conector lógico condicional (que, na linguagem não formalizada, significa “se...., então....”. 12

VILLANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de Direito Positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 111-112.

13

Tal que “D” simboliza o modal deôntico genérico “Deve ser”, “H” a hipótese, “C” o conseqüente e “ ” o conector lógico condicional (que, na linguagem não formalizada, significa “se...., então....”. 14

Tal que “s” simboliza a norma secundária, de conteúdo sancionatório pelo não cumprimento da norma primária, o “-“ simboliza “não”, isto é, o não cumprimento da norma primária “D(h->c)”, o primeiro “D” simboliza o modal deôntico genérico (Deve-ser) que implica o não cumprimento da norma primária à norma secundária.

12

O que pretendemos com essa exposição é formar a estrutura conceitual

necessária para o estudo de como a interpretação é capaz de, sem alteração necessária

da estrutura do enunciado prescritivo (texto de lei), realizar a modificação da norma

jurídica, dando origem ao fenômeno da mutação normativa.

2. Interpretação Jurídica. Conceito e Características

Primeiramente, partimos da premissa de que a interpretação não deve ser

realizada tendo como base a visão de Direito como algo abstrato e exclusivamente

sistêmico, como vem sendo feito, por exemplo, por grande parte da comunidade

jurídica brasileira, debruçando-se numa normatividade abstrata que gera prejuízos não

só ao próprio Direito, que acaba não cumprindo o seu desiderato, como também, e

principalmente, à sociedade, que não vê o Estado cumprindo o seu papel de “construir

uma sociedade livre, justa e solidária”, com a promoção do “bem de todos”. Nesse

sentido, importante a transcrição de reflexão realizada por Lenio Luiz Streck:

Como saber “operacional”, domina no âmbito do campo jurídico o

modelo assentado na idéia de que o processo interpretativo possibilita

que o sujeito (a partir da certeza-de-si-do-pensamento-pensante,

enfim, da subjetividade instauradora do mundo) alcance a

“interpretação correta”, o “exato sentido da norma”, “ o exclusivo

conteúdo/sentido da lei”, “o verdadeiro significado do vocábulo”, “o

real sentido da regra jurídica” etc. Pode-se dizer que o pensamento

dogmático do Direito acredita na possibilidade de que o intérprete

extrai o sentido da norma, como se estivesse contido na própria

norma, enfim, como se fosse possível extrair o sentido-em-si-mesmo.

Trabalha, pois, com os textos no plano meramente epistemológico,

olvidando o processo ontológico da compreensão.

(...) é possível afirmar que, explícita ou implicitamente, parcela

expressiva da doutrina brasileira sofre influência da hermenêutica de

cunho objetivista de Emilio Betti, baseada na forma metódica e

disciplinada da compreensão, onde a própria interpretação é fruto de

um processo triplo que parte de uma abordagem objetivo-idealista.

Com isso, a interpretação é um processo reprodutivo, pelo fato de

interiorizar e traduzir para a sua própria linguagem objetificações da

mente, através de uma realidade que é análoga à que originou uma

forma significativa. Assim, a atribuição de sentido e a interpretação

são tratadas separadamente, pois Betti acredita que só isso vai garantir

a objetividade dos resultados da interpretação.15

15

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p.48.

13

Nesse ponto da investigação, procuramos responder à pergunta “O que é a

interpretação jurídica?”, no sentido de conhecermos o objeto de nosso estudo, sendo

que um trabalho que aborde a análise de um caso concreto de interpretação não

poderia ser satisfatoriamente desenvolvido sem que, preliminarmente, tivéssemos a

noção do que significa “interpretação jurídica”.

Todos interpretam as leis ou até mesmo a Constituição, mas pouquíssimos

são capazes de afirmar, com bases sólidas, qual o procedimento por eles utilizado, qual

fora a finalidade do procedimento interpretativo e o que se perseguiu com o trabalho

interpretativo. E mais, no trabalho interpretativo, em raras oportunidades há a reflexão

do papel da interpretação na realização do Direito.

A questão que se coloca é: em que incide a interpretação, sobre que objeto

incide o trabalho interpretativo? Interpreta-se o “Direito” ou interpretam-se

“enunciados prescritivos” (entendendo-se “enunciados” como “produto da atividade

psicofísica de enunciação, que se apresenta como um conjunto de fonemas ou de

grafonemas que, obedecendo a regras gramaticais de determinado idioma,

consubstancia a mensagem expedida pelo sujeito emissor para ser recebida pelo

destinatário”16

). Importante, neste ponto, distinguirmos o Direito e as Leis (enunciados

prescritivos) e, com tal objetivo, transcrevemos trechos das lições de Friederich

August Von Hayek:

O Direito, no sentido de normas de conduta aplicadas, é

indubitavelmente tão antigo quanto a sociedade; só a observância de

normas comuns torna possível a existência pacífica de indivíduos em

sociedade. Muito antes que o homem desenvolvesse a linguagem ao

ponto de esta lhe permitir enunciar determinações gerais, um

indivíduo só seria aceito como membro de um grupo na medida em

que se conformasse às suas normas.17

(...) para o homem moderno, por outro lado, a ideia de que toda lei

que governa a ação humana é produto de legislação parece tão óbvia,

que a afirmação de que o Direito é mais antigo que a legislação se lhe

afigura quase paradoxal. No entanto, não pode haver dúvida de que

existiam leis séculos antes de ocorrer ao homem que ele podia fazê-las

ou alterá-las. A ideia de que era capaz disso praticamente não surgiu

16

CARVALHO, Paulo de Barros. Apostila do curso “Filosofia do Direito I. Lógica Jurídica”, lecionado no Programa de Pós-Graduação da PUC-SP, capítulo II, p. 13.

17 HAYEK, Friederich August Von. Direito, Legislação e Liberdade: uma nova formulação dos princípios liberais

de justiça e economia política. São Paulo: Visão, s.d., p. 93.

14

antes da era clássica grega; posteriormente desapareceu, ressurgindo

no final da Idade Média, quando gradualmente obteve aceitação mais

geral.18

Se o Direito e a Lei (vista essa num sentido lato, como “enunciado

prescritivo”) não mantêm entre si uma relação de identidade, não podemos deixar de

reconhecer que a “Lei” é adotada, pelos Estados Democráticos de Direito que adotam

sistema jurídico baseado no modelo romano-germânico, como o principal instrumento

de prática do Direito.

Assim, desde já fixamos a premissa de que se interpretam os enunciados

prescritivos (leis) e não o Direito!

Se fixamos o objeto sobre o qual incide a interpretação, é importante

traçarmos mais alguns pontos a respeito desses enunciados prescritivos, buscando

sabedoria no magistério de José Luiz Fiorin, para quem:

O primeiro sentido de enunciação é o de ato produtor do enunciado.

Benviste diz que “a enunciação é essa colocação em funcionamento da

língua por um ato individual de utilização”. Ascombre e Ducrot

afirmam que “A enunciação será para nós a atividade linguageira

exercida por aquele que fala no momento que fala. Se a enunciação é a

instância constitutiva do enunciado, ela é a “instância linguística

logicamente pressuposta pela própria existência do enunciado (que

comporta seus traços e suas marcas” (...) O enunciado, por oposição à

enunciação, deve ser concebido como o “estado que ela resulta,

independentemente de suas dimensões sintagmáticas”...

Considerando dessa forma enunciação e enunciado, este comporta

frequentemente elementos que remetem à instância de enunciação: de

um lado, prenomes pessoais, demonstrativos, possessivos, adjetivos e

advérbios apreciativos, dêiticos espaciais e temporais – em síntese,

elementos cuja eliminação produz os chamados textos enuncivos, isto

é, sem nenhuma marca de enunciação; de outro lado, termos que

descrevem a enunciação, enunciados e reportados no enunciado...19

Aplicando os ensinamentos de Fiorin para o nosso objeto de estudo,

necessário termos o conhecimento da existência de um fenômeno de produção

linguística denominado “enunciação”, em que determinado indivíduo através de

18

HAYEK, Friederich August Von. Direito, Legislação e Liberdade: uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política. São Paulo: Visão, s.d., p. 93.

19

FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. 2ª edição. São Paulo: Editora Ática, 1998, p. 36.

15

trabalho intelectual e físico produz, sob a forma escrita ou falada, enunciados, que são,

em realidade, além de, por óbvio, produtos da enunciação, um conjunto de

signos(fonemas ou grafonemas) que, dispostos sob uma determinada forma (sintaxe),

são capazes de gerar significados (semântica), criando uma mensagem.

Ainda aproveitando as lições do renomado linguista, o enunciado, sob o

ponto de vista daquele que o recebe (o intérprete), é o suporte físico, do qual se extrai

o significado e a significação com o fim de se obter a mensagem. Sobre a relação entre

suporte físico, significado e significação, transcrevem-se as palavras de Paulo de

Barros Carvalho:

O falar em linguagem remete o pensamento, forçosamente, para o

sentido de outro vocábulo: signo. Como unidade de um sistema que

permite a comunicação inter-humana, signo é um ente que tem o

status lógico de relação. Nele, um suporte físico se associa a um

significado e a uma significação, para aplicarmos a terminologia

husserliana. O suporte físico, da linguagem idiomática, é a palavra

falada (ondas sonoras, que são matéria, provocadas pela

movimentação de nossas cordas vocais, no aparelho fonético) ou a

palavra escrita (depósito de tinta no papel ou de giz na lousa). Esse

dado, que integra a relação sígnica, como o próprio nome indica, tem

natureza física, material. Refere-se a algo do mundo exterior ou

interior, de existência concreta ou imaginária, atual ou passada, que é

seu significado; e suscita em nossa mente uma noção, ideia ou

conceito, que chamamos de significação.20

Isto é, através do contato do receptor21

com o enunciado (código utilizado)

se é capaz de extrair um significado (a “coisa”, de existência concreta ou imaginária, a

que se vincula o signo utilizado no enunciado) e uma significação (que é o conceito, a

noção que é suscitada na mente do receptor da mensagem – intérprete).

Do que já foi apresentado, percebe-se que começamos a tocar na

interpretação através da análise dos signos, do significado e da significação. E nesse

20

CARVALHO, Paulo de Barros. Apostila do curso “Filosofia do Direito I. Lógica Jurídica”, lecionado no Programa de Pós-Graduação da PUC-SP, capítulo II, p. 12.

21

Estamos utilizando os termos apresentados por Roman Jakobson (em sua obra Linguística e Comunicação, p. 19) como fatores fundamentais da comunicação linguística com seus 4(quatro) elementos: o emissor, o receptor, o tema da mensagem e o código utilizado.

16

ponto, indaga-se: a interpretação é um ato produtor ou meramente um ato reprodutor?

Ou, utilizando-nos dos termos de Roman Jakobson, a interpretação se identifica com a

“tradução” ou é um fenômeno próprio que, a partir de um enunciado, produz novos

enunciados dirigidos a um determinado fim, no caso, a prática do Direito?

Nicola Abbagnano apresenta dois momentos do significado do termo

“interpretação”, um ligado à “Escolástica Latina”, sob a influência dos ensinamentos

de Aristóteles, e outro vinculado à “Semiótica Americana”, da seguinte forma:

Aristóteles denominou I.22

o livro em que estudou a relação entre os

signos linguísticos e os pensamentos e entre os pensamentos e as

coisas. Ele de fato considerava as palavras como “sinais de afeição da

alma, que são as mesmas para todos e constituem as imagens dos

objetos que são idênticos para todos”, considerando ademais como

sujeito ativo dessa referência a alma ou o intelecto.

Boécio, graças a quem essa doutrina passou para a Escolástica

Latina, entendia por I. os substantivos, os verbos e as preposições, e

excluindo as conjunções, as proposições e em geral os termos

gramaticais, que não significam nada por si mesmos. Para ele,

referência do signo ao que ele designa era o essencial da

interpretação...

Conquanto não falte hoje quem considera a I. um processo mental

(...), a semiótica americana apresentou outra doutrina fundamental da

I., que toma como base o comportamento. Os pressupostos dessa

doutrina são encontrados na obra de Pierce, que entendeu a I. como

um processo triádico que se dá entre um signo, seu objeto e seu

interpretante, constituindo este último a relação entre o primeiro e o

segundo termo...23

Nessa maturação de raciocínio, importante a transcrição do pensamento do

linguista russo Roman Jakobson, que diferencia “interpretação” de “tradução”:

É claro que os interpretarei e não serei uma máquina de tradução

que, como o mostrou de modo excelente nosso amigo Y.Bar-Hillel,

não compreende e por conseguinte traduz literalmente. Desde que haja

interpretação, emerge o princípio da complementariedade,

promovendo a interação do instrumento de observação e da coisa

observada.24

Da lição acima, conclui-se claramente que a interpretação, no sentido que se

deve adotar para o Direito (que tem como objeto os comportamentos humanos

intersubjetivos) não é uma mera tradução, não é uma mera enunciação que apresenta,

22

Abreviatura de “Interpretação”. Nota nossa. 23

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 579. 24

JAKOBSON, Nicolla. Linguística e Comunicação. 24ª edição. São Paulo: Editora Cultrix, 2001, p. 19.

17

com signos diversos, o mesmo significado do texto interpretado, mas é um processo

que contém não só a apreensão do significação do enunciado analisado, mas que

possui o efetivo caráter de “complementariedade”, promovendo a adequação do

significado do enunciado ao objeto sob o prisma do qual é procedida à interpretação.

Ora, se desde que haja interpretação, emerge o princípio da

complementariedade, não é difícil afirmar, com convicção, que o resultado da

interpretação não se prende ao exato significado do enunciado analisado, mas,

promovendo a interação do instrumento de observação e da coisa observada, expande

os seus horizontes a uma finalidade, dirigida à coisa que será o “foco” da

interpretação.

Já sob o enfoque eminentemente jurídico, Luís Roberto Barroso afirma que

a interpretação é atividade prática de revelar o conteúdo, o significado e o alcance de

uma norma, tendo por finalidade fazê-la incidir num caso concreto. Tal conceito de

interpretação jurídica apresentado por Barroso é feito sob um contexto em que a

“hermenêutica jurídica é um domínio teórico, especulativo, cujo objeto é a formulação,

o estudo e a sistematização dos princípios e das regras de interpretação do direito” e a

“aplicação da norma jurídica” é o momento final do processo interpretativo, é a sua

concretização pela efetiva incidência do preceito sobre a realidade de fato25

.

Das simples, porém relevantes, palavras de Barroso, atentamo-nos para a

finalidade da interpretação no Direito, que é fazer incidir num caso concreto a norma

jurídica. Assim, se a interpretação atua promovendo a interação do instrumento de

observação e da coisa observada, temos que, para o direito, o “instrumento de

observação” é o enunciado prescritivo e a “coisa observada” é o caso concreto sob

análise jurídica.

Do todo exposto, concluímos, como nosso conceito de “interpretação

jurídica”, o procedimento de obtenção da significação de um determinado enunciado

prescritivo, a partir da interação entre o instrumento de observação (o texto legal) e a

coisa observada (a situação fática concreta, com todas as suas peculiaridades), tendo

como finalidade a prática do Direito. Dessa forma, uma interpretação de enunciado

25

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 107.

18

prescritivo não deve ser afastar jamais da realidade concreta para a qual é realizada,

isto é, a interpretação, sob o enfoque que ora analisamos, é uma atividade

eminentemente construtiva e re-construtiva26

, o que pode ser constatado da transcrição

abaixo dos ensinamentos de Alexandre de Moraes que, apesar de se referir à

interpretação constitucional, pode ser estendida à interpretação de qualquer norma

jurídica:

A Constituição Federal há de ser sempre interpretada, pois somente

por meio da conjugação da letra do texto com as características

históricas, políticas, ideológicas do momento, se encontrará o melhor

sentido da norma jurídica, em confronto com a realidade

sociopolítico-econômica e almejando sua plena eficácia.27

2.1. Os princípios como valores condutores da interpretação jurídica

Os princípios são valores, ideias centrais de um sistema, que lhe dão sentido

lógico, harmônico, racional, permitindo a compreensão do modo de organizar-se do

sistema28

, são regras-mestras dentro do sistema positivo, que identificam as estruturas

básicas, os fundamentos e os alicerces desse sistema29

, iluminando a compreensão de

setores normativos, imprimindo-lhes caráter de unidade e servindo, em virtude dessa

mesma unidade, de fator de agregação das normas integrantes dos respectivos setores

normativos30

. Ou, como descreve Miguel Reale, são verdades fundantes de um sistema

de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido

26

A característica de “reconstrução” é encontrada na interpretação nas oportunidades em que a modificação dos fatos normados ou até mesmo a modificação dos valores sociais incidentes sobre os fatos normados pode levar à modificação do conteúdo da norma jurídica (modificação frente à uma significação anterior que compunha a norma jurídica), o que se caracteriza como mutação normativa. 27

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2008, p. 15. 28

SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 137. 29

ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 59.

30

CONRADO, Paulo César. Introdução à Teoria Geral do Processo. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 25.

19

comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto

é, como pressupostos exigidos pelas necessidades de pesquisa e da praxis31

.

Ensina Mauricio Godinho Delgado que os princípios podem ser comuns a

todo o fenômeno jurídico ou especiais a um ou alguns dos segmentos particularizados

do fenômeno jurídico, sendo construídos a partir de certa realidade, direcionando a

compreensão da realidade examinada, atuando no processo de exame sistemático

acerca de certa realidade – processo que é típico das ciências – conduzindo tal

processo32

.

Explorando mais profundamente as funções dos princípios frente ao sistema

jurídico, tem-se a atuação dos mesmos não só na construção dos enunciados

prescritivos (textos legais), atuando, pois, na fase pré-jurídica, de natureza

eminentemente política, como também na fase jurídica propriamente dita,

desempenhando função interpretativa (também denominada descritiva ou

informativa), função normativa subsidiária (atuando como fontes normativas frente à

ausência de outras regras jurídicas utilizáveis pelo intérprete e aplicador do Direito

Positivo frente a um determinado caso concreto) ou função normativa concorrente

(inerente aos princípios essenciais do sistema jurídico, com status até mesmo

prevalecente sobre o papel normativo característico das demais normas jurídicas)33

.

No que se refere à função interpretativa, que é de mais importante análise

no presente momento de construção desta tese, Maurício Godinho Delgado ensina que:

A mais comum e recorrente dessas funções é a descritiva ou

interpretativa (ou, ainda, informativa), atada ao processo de revelação

e compreensão do próprio direito.

De fato, os princípios atuam, na fase jurídica, contínua e

incessantemente, como proposições ideais propiciadoras de uma

direção coerente na interpretação da regra de direito. São veios

iluminadores à compreensão da regra jurídica construída.

31

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 299. 32

DELGADO, Mauricio Godinho. Princípios de direito individual e coletivo do trabalho. 2ª edição. São Paulo: LTr, 2004, p. 14-15.

33

Ibidem, p. 17-18.

20

Os princípios cumprem, aqui, sem dúvida, sua função mais clássica e

recorrente, como veículo de auxílio à intepretação. Nesse papel,

contribuem no processo de compreensão da regra, balizando-a à

essência do conjunto do sistema jurídico. São chamados princípios

descritivos ou informativos (ou interpretativos), à medida que

propiciam uma leitura reveladora das direções essenciais da ordem

jurídica analisada. Os princípios informativos ou descritivos não

atuam, pois, como fonte formal do Direito, mas como instrumental de

auxílio à interpretação jurídica.34

É de se concluir que, uma vez realizada a técnica gramatical de

interpretação, extraindo-se as várias possibilidades semânticas do texto legal

(enunciado prescritivo) sob procedimento interpretativo, os princípios atuarão como

meio de seleção das hipóteses interpretativas que se compatibilizem não só com os

valores incidentes sobre o Direito Positivo como um todo (dentre eles, principalmente,

os valores constitucionais), como também os valores incidentes sobre o setor

normativo específico (como, por exemplo, o Direito do Trabalho) em que esteja

inserido o texto legal em interpretação, oferecendo efetiva unidade ao sistema jurídico,

como destacado por Maria Helena Diniz:

O rigor científico requer que o jurista, ao estudar e ao interpretar

normas, estabeleça um entrelaçamento entre elas, de tal sorte que haja

unidade e coerência lógica do sistema normativo por ele criado

epistemologicamente.

O sistema apresentará unidade se as várias normas forem conformes

à norma-origem (Constituição); consequentemente haverá uma

coerência, ante a impossibilidade lógica de existirem preceitos

infraconstitucionais antagônicos à Lei Maior. Isto é assim pelo critério

hierárquico (lex superior derrogat legi inferior), baseado na

superioridade de uma fonte de produção jurídica sobre a outra. O

princípio lex superior quer dizer que, num conflito entre normas de

diferentes níveis, a de escalão mais alto, qualquer que seja a ordem

cronológica, terá a preferência em relação à de nível mais baixo.

Logo, a norma constitucional que deu início à ordem jurídica, por ser

norma-origem, prevalece sobre todas as disposições normativas

subconstitucionais. Daí falar-se em inconstitucionalidade da lei.

Portanto, a ordem hierárquica entre as fontes servirá de guia para

solucionar conflitos de normas de diferentes escalões. Kelsen ensina-

nos... que não pode haver, no sistema, em normas de diversos níveis,

34

DELGADO, Mauricio Godinho. Princípios de direito individual e coletivo do trabalho. 2ª edição. São Paulo: LTr, 2004, p. 17.

21

contradição, porque a norma inferior retira seu fundamento de

validade da superior. Só será válida a norma inferior se estiver em

harmonia com a do escalão superior.

O sistema apresentará incoerência lógica se houver divórcio

entre suas normas no que atina ao processo de sua elaboração ou ao

seu conteúdo empírico.35

Daí a necessidade de se buscar interpretação que não só seja compatível

com a realidade social e tecnológica atual, como também com os ditames

constitucionais e valores que sistematizam o sistema jurídico de um Estado

Democrático de Direito.

Passamos, agora, a apreciar não só os princípios inerentes à interpretação

constitucional.

2.2. A interpretação constitucional e seus princípios

Willis Santiago Guerra Filho afirma que uma tarefa de importância

inexcedível que se apresenta no momento para quem lida profissionalmente com o

Direito é a de tomar consciência das peculiaridades da hermenêutica constitucional36

.

Ainda segundo o referido Professor, praticar a “intepretação constitucional”

é diferente de interpretar a Constituição de acordo om os cânones tradicionais da

hermenêutica jurídica, desenvolvidos, aliás, numa época em que as matrizes do

pensamento jurídico assentavam-se em bases privatísticas37

.

Celso Ribeiro Bastos ensina que a interpretação constitucional não despreza

a interpretação jurídica de um modo geral, mas apresenta uma série de particularidades

que justificam seu tratamento diferenciado, num estudo de certa forma autônomo dos

demais métodos interpretativos presentes no sistema jurídico38

, além de compreender o

35

DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 120. 36

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Da interpretação especificamente constitucional. In Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 32, n

o128, out/dez.1995, p. 255.

37

Idem. 38

BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 49.

22

campo de atuação da “interpretação constitucional” sob um espectro mais amplo,

envolvendo não só a atividade interpretativa dos enunciados prescritivos constantes da

Constituição, mas também a interpretação dos enunciados infraconstitucionais

segundo a Constituição:

... a interpretação constitucional não pode ser simplesmente

considerada como a interpretação da Constituição, exclusivamente. O

que se pode dizer, é certo, é que só haverá interpretação constitucional

quando a Constituição estiver envolvida.39

Dentre as razões que levam à essa diferenciação interpretativa dos

enunciados prescritivos40

constitucionais, estão: a ”inicialidade” fundante das normas

constitucionais, sendo a Constituição o fundamento de todas as demais normas do

ordenamento jurídico e o caráter aberto das normas constitucionais e sua atualização,

vez que a norma constitucional, muito frequentemente, apresenta-se como uma petição

de direitos ou mesmo como uma norma pragmática sem conteúdo preciso ou

delimitado41

.

Objetivando a plena eficácia constitucional, a doutrina constitucionalista

construiu diversos princípios interpretativos das normas constitucionais, sendo que

nesta tese adotamos, por entendê-lo como o mais completo e suficiente para o nosso

objetivo, o rol apresentado por J.J. Gomes Canotilho, acrescentando-lhe somente o

princípio da supremacia da Constituição, destacado por Celso Ribeiro Bastos.

Segundo Canotilho, têm-se os seguintes princípios de interpretação

constitucional: princípio da unidade da Constituição, princípio da máxima efetividade,

princípio da justeza ou da conformidade funcional, princípio da concordância prática

ou da harmonização e princípio da força normativa da Constituição. Analisemos cada

um deles:

39

BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 87. 40

Referimo-nos às diferenças entre as interpretações de enunciados normativos infraconstitucionais e constitucionais. 41

BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 53-54.

23

Por princípio da unidade da Constituição entende-se a obrigação do

intérprete de considerar a Constituição na sua globalidade e de procurar harmonizar os

espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar. Trata-se de

uma consequência de uma visão sistêmica das normas constitucionais, em que todas

são elementos de um mesmo sistema, harmonizando-se e se inter-relacionando. Daí

que o intérprete deve sempre considerar as normas constitucionais não como normas

isoladas, mas sim como preceitos integrados num mesmo sistema interno, unitário de

normas e princípios42

. Sobre esse princípio, transcrevemos os ensinamentos de Celso

Ribeiro Bastos:

Como consequência deste princípio, as normas constitucionais

devem sempre ser consideradas como coesas e mutuamente

imbricadas. Não se poderá jamais tomar determinada norma

isoladamente, como suficiente em si mesma. É que a Constituição

pode perfeitamente prever determinada solução jurídica num

determinado passo seu, para noutro tomar posição contrária, dando

lugar a uma relação entre norma geral e outra específica. Esta

predomina no espaço que abrange. Não há, pois, qualquer fratura

constitucional. E isso porque se a Constituição é uma, e se é ela o

documento supremo da nação, todas as normas que contempla

encontram-se em igualdade de condições, nenhuma podendo se

sobrepor à outra para lhe afastar o cumprimento. As duas normas

vigem por inteiro, apenas que em situações diversas (nunca para a

mesma situação). Assim, cada uma vige em seu campo próprio, do

que resulta a aplicação de ambas.43

Como princípio do efeito integrador, temos que na resolução dos problemas

jurídico-constitucionais deve-se dar primazia aos critérios ou pontos de vista que

favoreçam a integração política e social e o reforço da unidade política. Trata-se de

princípio muitas vezes associado ao princípio da unidade44

.

42

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª edição. Coimbra: Almedina, 1999, p. 1096-1097.

43

BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 103.

44

CANOTILHO, J.J. Gomes. Op. Cit., p. 1097-1098.

24

O princípio da justeza, também denominado princípio da conformidade

funcional, visa impedir que, em sede de concretização da Constituição, a alteração da

repartição de funções constitucionalmente estabelecidas. Hoje, este princípio tende a

ser considerado mais como um princípio autônomo de competência45

.

Quanto ao princípio da máxima efetividade, à uma norma deve ser atribuído

o sentido que maior eficácia lhe dê, sendo que a eficácia de que trata esse princípio é a

eficácia social46

, isto é, deve-se preferir interpretações que maximizem a sua atuação

efetiva no mundo social concreto47

, principalmente quando se trata de Direitos

Fundamentais.

O princípio da concordância prática, também denominado “princípio da

harmonização” é, na realidade, uma forma de superação de tensões entre normas

jurídicas que introduzem Direitos Fundamentais. Esse princípio impõe a coordenação

e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício (total) de

uns em relação aos outros. Subjacente a este princípio está a ideia de igual valor dos

bens constitucionais (e não uma diferença de hierarquia) que impede, como solução, o

sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e

condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou

concordância prática entre estes bens48

.

Segundo o princípio da força normativa da Constituição, na solução dos

problemas jurídico-constitucionais deve-se dar prevalência aos pontos de vista que,

tendo em conta os pressupostos da Constituição (normativa), contribuem para uma

eficácia ótima da lei fundamental. Consequentemente, deve dar-se primazia às

45

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª edição. Coimbra: Almedina, 1999, p. 1097-1098 46

Ibidem, p. 1097-1098. 47

MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição. 3ª edição. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 72.

48

CANOTILHO, J.J. Gomes. Op. Cit., p. 1098.

25

soluções hermenêuticas que, compreendendo a historicidade das estruturas

constitucionais, possibilitam a atualização normativa, garantindo, do mesmo pé, a sua

eficácia e permanência49

.

Finalmente, temos o princípio da supremacia da Constituição, segundo o

qual, pelo fato da Constituição ser a norma superior do ordenamento jurídico, não se

dá conteúdo à Constituição a partir das leis. A forma a adotar-se para a explicação de

conceitos opera sempre “de cima para baixo”, o que serve para dar segurança em suas

definições. Esse princípio repele todo o tipo de interpretação que venha de baixo, é

dizer, repele toda a tentativa de interpretar a Constituição a partir da lei50

, bem como

dá origem ao princípio da interpretação conforme a Constituição, destinado

principalmente à interpretação de textos infraconstitucionais, que é detalhadamente

descrito por Glauco Barreira Magalhães Filho no trecho abaixo, extraído de sua obra

Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição:

Princípio da interpretação conforme à Constituição – De acordo com

esse princípio, a Constituição deve ser interpretada segundo os seus

valores básicos, e a norma infraconstitucional deve ser compreendida

a partir da Constituição. Assim, se uma norma infraconstitucional

admite várias interpretações, dar-se-á preferência àquela que

reconheça a constitucionalidade da norma e realize melhor os fins

constitucionais.

As normas definidoras de direitos fundamentais trazem a enunciação

de valores e não reportam aos fatos sobre os quais incidem, sendo

estes previstos nas normas infraconstitucionais ou identificados no

caso concreto. Embora tragam a previsão de um fato, as normas

infraconstitucionais (regras) não enunciam um valor, embora o

pressuponham. No caso, deve-se preferir a interpretação que vai ao

encontro de um valor constitucionalmente almejado.

Atingindo a norma infraconstitucional os fins constitucionais em

situações típicas (aquelas que, pela sua ocorrência habitual, podem ser

previstas pelo legislador), apenas em uma situação atípica (situação

limite ou situação não habitual), a norma será afastada para que se

possa fazer valer diretamente o preceito constitucional.

49

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª edição. Coimbra: Almedina, 1999, p. 1099.

50 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos

Editora, 1999, p. 101-102.

26

A interpretação conforme à Constituição está limitada pela

literalidade do texto normativo, ou seja, não pode, sob o pretexto de

economia normativa, dar a uma norma um sentido que contrarie suas

potencialidades linguísticas, a fim de que ela possa ser conciliada com

a Constituição e ter a sua validade preservada. Também não será

válida a regra infraconstitucional que, apesar de não agredir

diretamente um preceito da Constituição, tire a sua funcionalidade,

pois aí terá ocorrido violação ao princípio da proporcionalidade e ao

da razoabilidade.51

2.3 A interpretação de direitos fundamentais

Aos Direitos Fundamentais, termo que utilizamos nesta tese como sinônimo

de Direitos Humanos, agregam-se técnicas de interpretação que objetivam a maior

efetividade possível das normas jurídicas qualificadas como introdutoras dessas

espécies de Direito.

2.4.1 Conceito e espécies de Direitos Fundamentais

O conceito jurídico atual de “vida” é produto da evolução da sociedade, não

se restringindo ao conceito então pensado pelo Poder Constituinte Originário, mas se

ampliando a cada dia. Pietro de Jesus Lora Alarcón aponta a existência de 4(quatro)

acepções de “vida” na Constituição Federal de 1988, quais sejam: a integridade física

do ser humano (manutenção da anatomia e da fisiologia que caracterizam o corpo

humano); a liberdade (o homem como sujeito livre e autodeterminado); vida digna, no

sentido do homem poder contar com os recursos, inclusive materiais, necessários ao

alcance de sua felicidade (homem como sujeito social); e a tutela da vida a partir da

ótica genética52

. Todas essas acepções de vida não surgiram ao acaso, mas foram

resultado de um longo processo histórico em que foi se dilatando o conceito de vida e,

consequentemente, viu-se a necessidade de uma proteção mais ampla pelo Direito.

Nesse sentido, as lições de Airton Ferreira Pinto que, inclusive, utiliza a expressão

51

MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição. 3ª edição. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 72-73.

52

ALARCÓN, Pietro de Jesus Lora. Patrimônio Genético Humano e sua proteção na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Editora Método, 2004, p. 167-219.

27

“homem total” (modelo de ser humano, com todas as suas necessidades e fragilidades,

que necessitam de proteção) como a referência para a construção dos Direitos

Fundamentais:

Um direito humano é aquele que é construído e que tem como

verdade pragmática a construção da igualdade entre os humanos, a

liberdade dignificante e respeitosa nas relações promovidas e

garantidas pelo Estado. Ele é legítimo pelo processo democrático de

sua construção que se realiza onde o princípio da razoabilidade

acontece. O direito é o que traz na própria essência o sentido real e

último do justo, e tendo o homem total no centro de sua preocupação,

trata a dignidade como expressão singular a ser promovida e

protegida. É preciso empreender, finalmente, que o direito individual

somente existe no conjunto social. Sem este aquele deixa sua condição

para ser exclusivo.53

A proteção da vida humana é dialética, confundindo-se a sua evolução com

a do Direito e, particularmente, com a evolução do Direito Constitucional, o que se

comprova examinando-se a preocupação da positivação constitucional, a partir da

Magna Carta, passando pelas Declarações de Direitos, por Constituições consideradas

marcos na história jurídica do mundo, como a Constituição soviética e a Constituição

de Weimar, finalizando com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, com a

proteção do direito à vida. Pode-se até afirmar que o conjunto positivado de liberdades

e garantias forma o desdobramento do direito a viver, seja direito a existir, direito a

conviver, ou direito a viver protegido dos impactos e choques do convulsionado

mundo contemporâneo54

.

Francisco Pedro Jucá, dissertando sobre os direitos fundamentais do

trabalhador, conceitua Direitos Fundamentais como um conjunto de direitos que, por

sua natureza e papel desempenhado no contexto, servem de fundamento para a

construção do ser qualificado como humano, isto é, aqueles sem os quais não se pode

53

PINTO, Airton Pereira. Direito do trabalho, direitos humanos sociais e a Constituição Federal. São Paulo: LTr, 2006, p. 243.

54

ALARCÓN, Pietro de Jesus Lora. Patrimônio Genético Humano e sua proteção na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Editora Método, 2004, p. 85.

28

entender a condição humana desse ser55

e acrescenta, Jucá, a respeito da variação do

conteúdo do direito à vida no tempo, que:

... os valores, especial e destacadamente o Justo, sobrepairam,

integram o universo fundamentalmente da organização cultural da

sociedade, pertinindo ao seu imaginário, ao seu caldo de cultura como

categoria ideal e, em razão disso, serve de referência à matriz na

formulação das normas de conduta que são obrigatórias aos membros

daquela comunidade, na medida em que estas normas buscam...

materializar, como representação, este valor nas suas repercussões e

rebatimentos às necessidades da vida social.56

De acordo com o raciocínio até aqui seguido, entendemos direitos

fundamentais como sendo o conjunto de normas jurídicas que têm por objetivo a

proteção do direito à vida em todas as suas acepções absorvidas pelo Direito, contendo

no seu antecedente normativo a descrição abstrata de um comportamento, obrigatório,

proibido ou permitido, que realiza a proteção do direito à vida sob cada uma das suas

acepções absorvidas pelo Direito. Em consonância com o conceito por nós

apresentado, Airton Pereira Pinto conclui que:

Os direitos que tratam da vida humana, em todos os seus aspectos,

complexidades e dimensões, não são algo dado, mas construído. Os

direitos humanos são o resultado do esforço e do engenho humano, em

dar conta da proteção da vida coletiva do homem – animal político.

Por isso, os direitos humanos não são separáveis, fragmentados e

estanques, e sim formam um todo conexo, enfeixado.57

A despeito do caráter de sistema dos Direitos Fundamentais, o que afasta

a possibilidade da compreensão efetiva dos mesmos de forma individualizada ou

fragmentada, o doutrina, com objetivos eminentemente didáticos, agrupa os Direitos

Fundamentais em subclasses que são denominadas gerações ou famílias de Direitos

Fundamentais, com as seguintes características:

55

JUCÁ, Francisco Pedro. Os direitos individuais fundamentais do trabalhador. In: NASCIMENTO, Amauri Mascaro (Coord.). A transição do Direito do Trabalho no Brasil. São Paulo: LTr, 1999, p. 264.

56

Ibidem, p. 266. 57

PINTO, Airton Pereira. Direito do trabalho, direitos humanos sociais e a Constituição Federal. São Paulo: LTr, 2006, p. 241.

29

- Direitos Fundamentais de Primeira Geração: conjunto de normas jurídicas que têm

por objetivo a proteção da vida do ser humano sob o enfoque de “liberdade

individual”, prendendo-se à ideia de que o poder central (estatal) deve se afastar de

tudo aquilo que não seja essencial para manter os Direitos individuais do ser humano,

passando a ter importância o indivíduo e o individualismo, a liberdade e a propriedade;

- Direitos Fundamentais de Segunda Geração: conjunto de normas jurídicas que têm

por objetivo a proteção da vida do ser humano sob o enfoque de “vida com qualidade”,

a vida com dignidade, a necessidade de intervenção do Estado nas relações jurídicas

no sentido de tentar igualar os diversos polos dessas relações, caracterizados por

efetiva diferença, oriunda da situação de fato em que são construídas e desenvolvidas

essas relações, no que tange a poder (político, econômico e/cultural) e privilégios.

Essas normas jurídicas (Direitos Fundamentais de Segunda Geração), que também são

denominadas “Direitos Sociais”, buscam equilíbrio nas relações jurídicas, garantindo

direitos mínimos à parte vulnerável. Sobre tal geração, Manoel Messias Peixinho

ensina que:

A dimensão social dos direitos fundamentais não suplantou a ideia

clássica dos direitos individuais, mas imprimiu profundas

transformações no conceito oriundo do liberalismo. Dentre outros

fatores responsáveis por essas mudanças, constata-se a influência da

ideologia marxista, segundo a qual as liberdades normais são, na

verdade, ficção jurídica, que tem o objetivo de mascarar a dominação

de uma classe por outra. A liberdade deve ser a de participação, na

qual os indivíduos são atores sociais da transformação. A

característica fundamental responsável pela mudança no conceito de

liberdade é a inclusão, na dimensão inseparável das liberdades, dos

direitos econômicos e sociais, que objetivam assegurar aos cidadãos as

condições materiais que lhes permitam exercer a cidadania plena. Não

se trata, aqui, ao contrário da concepção clássica, de proteger as

liberdades negativas e formais, mas garantir a intervenção do Estado

para que tutele as políticas públicas, concretize-as e torne acessíveis

aos cidadãos as garantias mínimas para que possam viver com

dignidade.58

58

PEIXINHO, Manoel Messias. As Teorias e os Métodos de Interpretação Aplicados aos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2010, p. 27-28.

30

- Direitos Fundamentais de Terceira Geração: conjunto de normas jurídicas que têm

por finalidade a proteção da vida do ser humano sob o enfoque de “proteção da

humanidade como um todo”, visto que os avanços tecnológicos, com a maior

capacidade do homem de intervir na natureza, explorando-a, juntamente com uma

realidade retratada na irresponsabilidade do homem em seu ato de exploração dos

recursos naturais, fez com que surgisse a preocupação com a manutenção da existência

humana, mas não somente sob um referencial individual, mas sob toda a humanidade

- Outras gerações de Direitos Fundamentais: há Autores que já se referem a Direitos

Fundamentais de quarta, quinta e sexta gerações59

, sendo certo que tais gerações ainda

não se encontram consolidadas na doutrina, valendo, para os contornos da presente

tese, somente a indicação do início de construção das mesmas.

2.4.2 A interpretação de enunciados prescritivos introdutores de Direitos

Fundamentais

Os Direitos Fundamentais, como classe formada por normas jurídicas que

têm em comum o objetivo da proteção da vida sob cada uma das acepções absorvidas

pelo Direito, possuem características uniformes, dentre elas a universalidade (no

sentido de que os Direitos Fundamentais devem ser aplicados a todas as pessoas, sem

distinção de qualquer espécie), indivisibilidade e interdependência (um direito

fundamental somente alcança a plenitude de sua realização quando os demais direitos

fundamentais são respeitados60

; como afirma Flávia Piovesan, “todos os direitos

humanos constituem um complexo integral, único e indivisível, em que os diferentes

59

Como Pietro de Jesús Lora Alarcon, que cita a existência de Direitos Fundamentais de quarta geração -cujo foco é a proteção do ser humano no campo genético, frente à biotecnologia – (Cf. ALARCÓN, Pietro de Jesús Lora. Patrimônio Genético Humano e sua proteção na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Editora Método, 2004, p. 87-100) e Arion Sayão Romita, que indica a existência de Direitos Fundamentais de Quinta Geração - cujo objetivo é a proteção da vida humana frente à utilização dos conhecimentos fornecidos pela cibernética e pela informática – e de Sexta Geração – cuja finalidade é a proteção da vida humana frente aos efeitos decorrentes da globalização – (Cf. ROMITA, Arion Sayão. Direitos Fundamentais nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2005, p. 107-108). 60

ROMITA, Arion Sayão. Direitos fundamentais nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2005, p.68.

31

direitos estão necessariamente inter-relacionados e são interdependentes entre si”61

),

historicidade (entre os Direitos Fundamentais não são um dado, mas um construído) e

unidade (os Direitos Fundamentais, apesar de compreenderem diversas famílias ou

gerações, estabelece-se uma interação pela qual uma geração de Direitos

Fundamentais se relaciona com outra e dela recebe influência62

).

Ora, na interpretação de enunciados prescritivos introdutores de Direitos

Fundamentais, em especial na exploração da elasticidade semântica dos enunciados, há

que se atentar para a manutenção de todas as características típicas dessa espécie de

norma jurídica, incluindo-se no procedimento interpretativo as seguintes limitações:

a) excluir hipóteses interpretativas que criem limitação subjetiva à aplicabilidade da

norma jurídica, destinando a aplicação da norma jurídica somente a determinados

sujeitos, excluindo a aplicação sobre outros sujeitos que se encontrem na mesma

situação objetiva. Dessa forma, garante-se a manutenção da “universalidade” do

Direito Fundamental;

b) levar em consideração o “Sistema de Direitos Fundamentais”, não se permitindo a

interpretação de um texto introdutor de Direito Fundamental sem levar em

consideração os demais Direitos Fundamentais aplicáveis no Direito Pátrio, evitando-

se, assim, ao máximo possível, a colisão entre Direitos Fundamentais. Utilizando-se tal

procedimento busca-se garantir a unidade, a indivisibilidade e a interdependência dos

Direitos Fundamentais;

c) dentre as hipóteses interpretativas que se apresentarem frente à elasticidade

semântica do enunciado prescritivo, deve-se adotar aquela que melhor se compatibilize

com o real conteúdo do Direito Fundamental frente ao seu processo de criação e

desenvolvimento até a data da realização da interpretação. Garante-se, assim, a

historicidade.

61

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional. 5ª edição. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 151.

62

ROMITA, Arion Sayão. Direitos fundamentais nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2005, p.77.

32

É de se destacar, também, o princípio interpretativo da máxima

efetividade que, apesar de já apresentado por nós no item 2.2 deste Capítulo como

princípio aplicável à interpretação constitucional em geral, tem peculiar aplicabilidade

na interpretação de enunciados prescritivos introdutores de Direitos Fundamentais.

Impõe referido princípio que, à uma norma deve ser atribuído o sentido que maior

eficácia lhe dê, sendo que a eficácia de que trata esse princípio é a eficácia social63

,

isto é, deve-se preferir interpretações que maximizem a sua atuação efetiva no mundo

social concreto64

. Sobre este princípio, cabe transcrição dos ensinamentos de Luís

Roberto Barroso:

A ideia de efetividade, conquanto de desenvolvimento relativamente

recente, traduz a mais notável preocupação do constitucionalismo nos

últimos tempos. Ligada ao fenômeno da juridicização da Constituição,

e ao reconhecimento e incremento de sua força normativa, a

efetividade merece capítulo obrigatório na interpretação

constitucional. A doutrina contemporânea refere-se à necessidade de

dar preferência, nos problemas constitucionais, aos pontos de vista

que levem às normas a obter a máxima eficácia ante as circunstâncias

de cada caso.

É oportuno, aqui, para a operatividade do princípio, um

aprofundamento conceitual da efetividade. Os fatos jurídicos

resultantes de uma manifestação de vontade denominam-se atos

jurídicos. Quando emanados do Poder Público, tais atos serão

legislativos, administrativos ou judiciais. Classicamente, os atos

jurídicos comportam análise científica em três planos distintos e

inconfundíveis: o da existência, o da validade e o da eficácia. Não é

possível, nesta instância, aprofundar esses conceitos. Faz-se apenas o

registro de que a existência do ato jurídico está ligada à presença de

seus elementos constitutivos (normalmente, agente, objeto e forma) e

a validade decorre do preenchimento de determinados requisitos, de

atributos ditados pela lei. A ausência de algum dos requisitos conduz à

invalidade do ato, à qual o ordenamento, considerando a maior ou

menor gravidade, comina as sanções de nulidade ou anulabilidade.

De maior interesse para os fins aqui visados é a eficácia dos atos

jurídicos, o terceiro plano de análise, que se traduz na sua aptidão para

a produção de efeitos, para a irradiação das consequências que lhe são

próprias. Eficaz é o ato idôneo pra atingir a finalidade para a qual foi

gerado. Tratando-se de uma norma, a eficácia jurídica designa a

63

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª edição. Coimbra: Almedina, 1999, p. 1097-1098.

64

MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição. 3ª edição. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 72.

33

qualidade de produzir, em maior ou menor grau, os seus efeitos

típicos, ao regular, desde logo, as situações, relações e

comportamentos nela indicados; neste sentido, a eficácia diz respeito à

aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma. Atente-se

bem: a eficácia refere-se à aptidão, à idoneidade do ato para a

produção de seus efeitos.65

Por fim, frente à universalidade dos Direitos Fundamentais e à máxima eficácia

que deve ser buscada na interpretação e na aplicação dos Direitos Fundamentais, surge

questão importante no que tange à interpretação de textos legais infraconstitucionais

introdutores de normas jurídicas limitadoras da aplicação objetiva de Direitos Fundamentais.

Tais enunciados prescritivos devem ser interpretados restritivamente, limitando a

idoneidade das hipóteses interpretativas (surgidas frente à elasticidade semântica do texto

normativo) àquelas que indiquem a não aplicação, num caso concreto específico, de

determinado Direito Fundamental em razão exclusiva de efetiva impossibilidade concreta de

verificação quantitativa (constatação da quantidade) e/ou de verificação qualitativa

(constatação da qualidade) de fatos do mundo fenomênico capazes de se enquadrar no

antecedente de uma norma jurídica introdutora de Direito Fundamental.

65

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 253-254.

34

II – A TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO DE MIGUEL REALE, A

ETICIDADE COMO PROCEDIMENTO INTERPRETATIVO E O

FENÔMENO DA MUTAÇÃO NORMATIVA

A “Eticidade”, no contexto da ciência do direito, é fenômeno resultante do

desenvolvimento da Teoria Tridimensional do Direito, daí a necessidade de, para a

efetiva comprovação da veracidade da hipótese por nós levantada nesta tese,

aprofundarmo-nos nas características de tal “Teoria”.

1 O ambiente temporal de desenvolvimento da Teoria Tridimensional do Direito

A mentalidade do século XIX foi fundamentalmente analítica ou

reducionista, sempre atentada a encontrar uma solução unilinear ou monocórdica para

os problemas sociais e históricos, ao passo que em nossa época prevalece um sentido

concreto de totalidade ou de integração, na acepção plena destas palavras, superadas as

pseudototalizações realizadas em função de um elemento ou fator destacado do

contexto da realidade66

. A suposta correspondência entre a infraestrutura social e o

sistema de normas vigentes levava, por conseguinte, o jurista a concentrar a sua

atenção nos elementos conceituais ou lógico-formais, não havendo razões para

distinguir entre Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito67

.

Impõe-se reconhecer que houve plausíveis razões históricas para que, no

século XIX, por exemplo, predominasse a imagem do Direito com base na certeza

objetiva da lei. É que as estruturas jurídicas do Estado de Direito, modelado sob o

influxo do individualismo liberal dominante na cultura burguesa, cujos valores se

impunham como expressão natural de toda uma época histórica, correspondiam,

consoante crença generalizada, às necessidades e tendências da sociedade oitocentista.

Dominando entre os juristas a convicção de uma correspondência essencial entre a

66

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 10. 67

Ibidem, p. 5.

35

realidade socioeconômica e os modelos jurídicos consagrados nas leis, era natural que

o problema da validade fosse posto em termos de validade formal ou de vigência68

.

Sobretudo a partir do segundo pós-guerra, uma generalizada aspiração no

sentido da compreensão global e unitária dos problemas jurídicos, abandonadas as

predileções reducionistas que levam a pseudototalizações69

. Se é certo que as

estruturas lógicas da Dogmática Jurídica tradicional não correspondem mais às

transformações operadas na sociedade atual, nem às exigências morais e técnicas do

Estado do Bem-Estar Social ou da Justiça Social – expressões com as quais se

reclamada um Estado de Direito concebido em função de uma comunidade humana

plural e, ao mesmo tempo, solidária-, também é verdade que ao lado de salutar crise de

ordem metodológica, põe-se outro problema não menos essencial: o da nova

determinação do significado da Ciência do Direito para o destino do homem70

.

Reconhecido, com efeito, o desajuste entre os sistemas normativos e as

correntes subjacentes da vida social, os domínios da Ciência do Direito viram-se

agitados por uma nova “ventania romântica”, tal como qualificado o movimento do

“Direito Livre”(Freis Recht) ou da libre recherche du droit, chegando a ser postos em

xeque os elementos de certeza indispensáveis à ordem jurídica positiva. Foi através

dos debates sobre a teoria geral da interpretação que as inquietações filosófico-

jurídicas penetraram nos redutos da Ciência Jurídica. Ao mesmo tempo, a Filosofia do

Direito embebia-se de problemática positivista, achegando-se mais concretamente às

exigências práticas do direito71

. Eis as palavras de Gény, destacadas por Miguel Reale:

“É, pois, na essência e na vida mesma do Direito Positivo que, antes de mais nada, nos

cabe penetrar, recolocando-o no meio do mundo social, do qual ele é um elemento

68

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 16. 69

Ibidem, p. 20. 70

Ibidem, p. 10. 71

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 6.

36

integrante, para estudá-lo em função das forças intelectuais e morais da humanidade,

que, somente elas, lhe podem dar real valor”72

.

A busca do essencial e do concreto surge, assim, como uma exigência

indeclinável dos novos tempos. Há um chamado vivo para a Filosofia do Direito,

porque está em jogo o destino mesmo das hierarquias axiológicas de cuja estabilidade

os códigos eram ou ainda se pretende sejam reflexos73

. Nem é demais observar que,

paralelamente ao crescente interesse pelos estudos filosófico-jurídicos, o que afirma

cada vez mais é a exigência de uma Ciência Jurídica concreta, permanentemente

ligada aos processos axiológicos e históricos, econômicos e sociais, o que se pode

observar em múltiplas direções, sob variadas formas e expressões, amiúde empregadas

pelos diversos autores, tais como “infraestrutura econômica”, “experiência jurídica”,

“realidade do direito”, “fato normativo”, “jus vivens”, “direito como conduta”, “direito

como ordenamento”, “direito como fato, valor e norma”, “socialidade do direito”,

“jurisprudência dos interesses”, “jurisprudência dos valores”etc74

.

Se os juristas, porém, interessam-se cada vez mais pela Filosofia, a

recíproca também o é, visto como os filósofos do direito abandonaram também os seus

esquemas formais e abstratos para tomarem contato cada vez mais vivo com a

positividade do direito, aprendendo a dar valor ao particular, ao contingente e ao

empírico, tal como se desenrola e se dramatiza a vida dos advogados e dos juízes, em

suma, da experiência jurídica75

.

Quem assume, porém, uma posição tridimensionalista já está a meio

caminho andado da compreensão do Direito em termos de “experiência concreta”,

pois, até mesmo quando o estudioso se contenta com a articulação final dos pontos de

vista do filósofo, do sociólogo e do jurista, já está revelando salutar repúdio a

quaisquer imagens parciais ou setorizadas, com o reconhecimento da insuficiência das

72

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 6. 73

Ibidem, p. 7. 74

Ibidem, p. 8. 75

Idem.

37

perspectivas resultantes da consideração isolada do que há de fático, de axiológico ou

ideal, ou de normativo na vida do Direito. Se, como adverte Recasén Siches, o Direito

é essencialmente tridimensional, essa qualidade não pode existir só para o jurista, no

plano de sua atividade científico-positiva, mas deve constituir antes um pressuposto de

validade transcendental, condicionando, por conseguinte, todas as estruturas e modelos

que compõem a experiência do direito. Se assim não fora, começaria a existir, nos

domínios da Filosofia do Direito, um pernicioso divórcio entre filósofos e juristas76

.

Nesse contexto, vê-se que a Filosofia do Direito não pode se alienar dos

problemas da Ciência do Direito, mas, ao contrário, deve achegar-se a eles,

convertendo-os em seus problemas, sob outro prisma que não o da Ciência, empregada

a palavra problema no seu sentido original, como algo posto como objeto de análise,

implicando a possibilidade de alternativas77

. É claro que, nessa procura de novos

caminhos, visando atingir o direito concreto, o problema da efetividade ou da eficácia

assumiu posição de primeiro plano, passando os juristas a se preocupar com soluções

forjadas ao calor da experiência social, ainda que com os sacrifícios dos valores da

certeza e da segurança78

. É nesse amplo contexto histórico que se situam as diversas

formas de tridimensionalismo jurídico, infensos a interpretações setorizadas ou

unilaterais da experiência jurídica, a soluções, em suma, que impliquem a

desarticulação de uma estrutura, fora da qual os conceitos de vigência, eficácia e

fundamento resultariam mutilados79

.

Na visão de Reale, vigência, eficácia e fundamento são qualidades inerentes

a todas as formas de experiência jurídica, muito embora prevaleça mais esta ou aquela,

segundo as circunstâncias, sem que se possa partir o nexo que as vincula ao todo,

como é próprio da estrutura do Direito80

, devendo-se correlacioná-los segundo uma

76

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 11. 77

Ibidem, p.12. 78

Ibidem, p.17-18. 79

Ibidem, p.20. 80

Ibidem, p.21.

38

compreensão dialética de complementariedade81

. Tudo isto está a demonstrar como a

pesquisa filosófica, penetrando no âmago da validez formal, anima e fecunda, dando-

lhe um novo sentido de integralidade e concreção, a Ciência Dogmática do Direito,

colaborando com os juristas positivistas em sua difícil e árdua tarefa de determinar e

sistematizar as categorias jurídicas reclamadas por um mundo em mudanças82

.

2 As espécies de Tridimensionalidade do Direito

São múltiplas as teorias que põem em relevo a natureza tridimensional da

experiência jurídica, nela discriminando três “elementos”, “fatores” ou “momentos” (a

diversidade dos termos já denota as diferenças de concepção), usualmente indicados

com as palavras fato, valor e norma83

. Analisemos algumas dessas teorias para, ao fim,

apontar aquela que se identifica com o pensamento de Reale.

2.1 A Tridimensionalidade genérica e abstrata do direito

Destacam-se a posições de Emil Lask e Gustav Radbrucj, mestres da Escola

Sud-Ocidental Alemã, que recorreram a um elemento intermédio ou de ligação posto

entre os valores ideais e os dados da experiência jurídica: esse ponto de conexão entre

a realidade empírica e o ideal do Direito seria o mundo da cultura ou da história, isto

é, o complexo de bens espirituais e materiais constituído pela espécie humana através

dos tempos84

. Plano do valor ou do dever ser, plano da realidade causalmente

determinada e plano da cultura ou do ser referido ao dever ser, eis aí assentes as bases

de um tipo de tridimensionalidade, segundo três ordens lógicas distintas,

correspondentes, respectivamente, a juízos de valor, juízos de realidade e juízos

81

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p.22. 82

Idem. 83

Ibidem, p.23. 84

Ibidem, p. 24.

39

referidos a valores85

. Destarte, procuravam Lask e Radbruch superar a antinomia posta

entre a historiciedade de um valor transcendental (do qual o jusnaturalismo pretendera

deduzir artificialmente todo o sistema das normas positivas) e o mero significado

contingente das relações de fato, insuscetíveis de compreensão de validade universal,

como sustentavam os positivistas86

.

Lask e Radbruch apontavam cômoda distribuição de pesquisas entre o

filósofo, o sociólogo e o jurista, o primeiro incumbido de estudar a transcendentalidade

dos valores jurídicos, ou os valores jurídicos em si mesmos, com a consequente

redução da Filosofia do Direito numa Axiologia Jurídica Fundamental, o segundo,

com a tarefa de indagar das leis que regem as estruturas e os processos fáticos do

direito, isto é, o direito como fato social, nos quadros da Sociologia e o terceiro,

finalmente, empenhado na análise do Direito enquanto realidade impregnada de

significações normativas, segundo os cânones da Jurisprudência ou Ciência do Direito,

distinta pela especificidade do método jurídico-dogmático87

. Desdobra-se, nos

raciocínios de Lask e Radbruch, de maneira mais nítida neste último, o que Miguel

Reale denomina Tridimensionalidade Genérica ou Abstrata do Direito, visto como a

análise ôntica do fenômeno jurídico que os conduz a conceber, abstrata e

separadamente, cada um dos três elementos encontrados, fazendo corresponder a cada

um deles, singularmente considerado, respectivamente, um objeto, um método e uma

ordem particular de conhecimentos: a Ciência Integral do Direito seria obtida graças à

integração dos três estudos(na forma apontada por Lask), ou em virtude de simples

justaposição de três perspectivas entre si irreconciliáveis e antinômicas (como na visão

de Radbruch)88

. Ainda no campo do tridimensionalismo genérico, interessantes são as

palavras de Josef L. Kunz, que, segundo Miguel Reale, evidenciam sobremaneira as

características de tal espécie de tridimensionalidade:

85

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p.23. 86

Ibidem, p.25. 87

Idem. 88

Ibidem, p. 25-26.

40

Eu sempre defendi a opinião – escreve Kunz – que há três ramos da

Filosofia do Direito e que esses ramos existem atualmente: o Analítico

(que inclui a Teoria Jurídica Pura), o Sociológico e o

Axiológico(Direito Natural). A Escola Analítica é de maior

importância para o Juiz, o Advogado e o Jurista teórico: concebe o

direito como norma, como sistema de normas, de um ponto de vista

analítico, teórico, formal, construtivo. Porém, para compreender o

direito, em toda a sua complexidade, não é menos necessário estudá-lo

do ponto de vista sociológico e axiológico. O enfoque sociológico do

direito é uma ciência causal: mais do que o direito mesmo, examina a

sua criação, e esta é, naturalmente, um fato histórico, social e político:

pertence ao reino do ser, enquanto as normas criadas em tal processo

se acham inseridas no reino do dever ser. A filosofia sociológica

considera também a efetividade do direito, e aqui se trata igualmente

de investigações causais. A filosofia jurídica axiológica, de seu lado,

critica o direito e toma como parte dessa crítica uma série de normas

extrajurídicas: o Direito Natural não é direito, mas sim Ética. Esta

tripartição, desejo acrescentar logo, corresponde às ideias de Verdross,

que reconheceu a necessidade de combinar as três direções, não

obstante as suas grandes diferenças metodológicas, para compreender

o direito em toda a sua complexidade89

.

2.2 A Tridimensionalidade Específica

Afirma Miguel Reale que era natural que, num dado momento dos estudos,

parecesse insustentável a posição correspondente à uma concepção tridimensional

genérica ou abstrata, vacilante entre uma justa posição extrínseca de perspectivas e

uma confessada antinomia ou aporia entre os três pontos de vista possíveis suscitados

pela experiência do Direito. Foi por volta de 1940 que surgiram as primeiras tentativas

no sentido de se mostrar a ilogicidade das teorias que, apresentando a realidade

jurídica como sendo constituída de três elementos, isto não obstante, continuavam a

conferir plena juridicidade a cada um deles, abstraído dos demais90

. Tal concepção

(tridimensionalidade específica) cessa de apreciar fato, valor e norma como elementos

separáveis da experiência jurídica e passa a concebê-los, ou como perspectivas ou

89

KUNZ, Josef L. La Filosofia Del Derecho de Alfred Verdross, 1962, p. 213. Apud REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 38-39.

90

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 38-39.

41

como fatores e momentos “inilimináveis” do Direito: é o que Reale denomina

“tridimensionalidade específica”91

.

Mesmo o tridimensionalismo específico oferece múltiplas e até mesmo

contrastantes formulações, de tal sorte que uma doutrina não pode se distinguir das

demais pelo simples afirmar-se de uma tricotomia essencial92

. Jerome Hall, após

considerar profunda a compreensão dos “realistas” norte-americanos quando

reclamavam uma base fática para as ciências sociais, afirmava que, segundo uma

perspectiva sociológico-humanística, o Direito não é puro fato, mas um tipo distinto de

realidade social: uma certa conduta que representa a fusão de ideias legais (normas)

com fatos e valores. O problema que fica em aberto consiste em saber como é que os

três elementos(fato, valor e norma) correlacionam-se na unidade essencial à

experiência jurídica, pois sem unidade de integração não há “dimensões”, mas simples

“perspectivas” ou “pontos de vista”, sendo que, conforme ensinamentos de Reale, é só

graças à compreensão dialética dos três fatores que se torna possível atingir uma

compreensão concreta da estrutura tridimensional do Direito, na sua natural

temporalidade93

.

2.2.1 As características da Tridimensionalidade do Direito de Miguel Reale

Pensa Reale que o saber jurídico não se apresenta, em seu todo, como uma

espécie de scientia omnibus, na qual todas as investigações se justaponham, mas que

ele se desdobra em planos lógicos que não podem e não devem ser confundidos, o

plano transcendental e o plano empírico-positivo, e, mais ainda, que, no segundo,

discriminam-se âmbitos ou campos distintos de pesquisa, que dão título de autonomia

à Sociologia do Direito, à Política do Direito, à Ciência Dogmática do Direito, ou à

História do Direito. O Direito é, por certo, um só para todos os que o estudam,

91

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 48-49. 92

Ibidem, p.49. 93

Ibidem, p. 50.

42

havendo necessidade de que os diversos especialistas se mantenham em permanente

contato, suprimindo e complementando as respectivas indagações, mas isto não quer

dizer que, em sentido próprio, possa-se falar numa única Ciência do Direito, a não ser

dando ao termo “ciência” a conotação genérica de “conhecimento” ou “saber”

suscetível de desdobrar-se em múltiplas “formas de saber”, em função dos vários

“objetos” de cognição que a experiência do Direito logicamente possibilita94

.

A unidade do Direito é uma unidade de processos, essencialmente dialética

e histórica, e não apenas uma distinta aglutinação de fatores na conduta humana, como

se esta pudesse ser conduta jurídica abstraída daqueles três elementos (fato, valor e

norma), que são o que a tornam pensável como conduta e, mais ainda, como conduta

jurídica. Não se deve pensar, portanto, na conduta jurídica como uma espécie de

mansão onde se hospedam três personagens, pois a conduta é a implicação daqueles

três fatores e com eles se confunde, ou não passa de falaciosa abstração, de uma

inconcebível atividade desprovida de sentido e de conteúdo95

.

Quando se fala em conduta jurídica não devemos pensar em algo de

substancial ou de “substante”, capaz de receber os timbres exteriores de um sentido

axiológico ou de uma diretriz normativa: ela, ao contrário, só é conduta jurídica

enquanto e na medida em que é experiência social dotada daquele sentido e daquela

diretriz, ou seja, enquanto se revela fático-axiológico-normativamente, distinguindo-se

das demais espécies de conduta ética por ser o momento bilateral-atributivo da

experiência social96

.

A Teoria Tridimensional do Direito desenvolvida por Miguel Reale

distingue-se das demais, de caráter genérico ou específico, por ser concreta e

dinâmica, isto é, por afirmar que:

94

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p.56. 95

Idem. 96

Ibidem, p. 57.

43

c.1) Fato, Valor e Norma estão sempre presentes e correlacionados em qualquer

expressão da vida jurídica, seja ela estudada pelo filósofo ou sociólogo do direito ou

pelo jurista como tal, ao passo que, na tridimensionalidade genérica ou abstrata,

caberia ao filósofo somente o estudo do valor, ao sociólogo o do fato e ao jurista o da

norma. Tem-se, assim, na forma desenvolvida por Reale, a Tridimensionalidade como

requisito essencial ao Direito97

.

c.2) A correlação entre os três elementos (fato, valor e norma) é de natureza funcional

e dialética, dada a “implicação-polaridade” existente entre fato e valor, de cuja tensão

resulta o momento normativo, como solução superadora e integrante nos limites

circunstanciais de lugar e de tempo. Trata-se da concreção histórica do processo

jurídico numa dialética de complementariedade98

.

Seria absolutamente falho, portanto, reduzir o pensamento de Miguel Reale

sobre o Direito, como ele próprio destacou, aos dois enunciados discriminados acima,

omitindo-se outros pontos não menos relevantes, sem os quais a concepção do

Tridimensionalismo de Miguel Reale ficaria irremediavelmente mutilada, podendo-se

exemplificar com o acréscimo das seguintes proposições:

c.3) As diferentes ciências, destinadas à pesquisa do direito, não se distinguem umas

das outras por se distribuírem entre si fato, valor e norma, como se fossem fatias de

algo divisível, mas sim pelo sentido dialético das respectivas investigações, pois ora se

pode ter em vista prevalentemente o momento normativo, ora o momento fático, ora o

axiológico, mas sempre em função dos outros dois. É o que Reale reduz como

tridimensionalidade funcional do saber jurídico99

.

c.4) A Jurisprudência é uma ciência normativa (mais precisamente, compreensivo-

normativa), devendo, porém, entender-se por norma jurídica bem mais que uma

simples proposição lógica de natureza ideal: é antes uma realidade cultural e não mero

97

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994,p. 57 98

Idem. 99

Idem.

44

instrumento técnico de medida no plano ético da conduta, pois nela e através dela se

compõem os conflitos de interesses, e se integram renovadas tensões fático-

axiológicas, segundo razões de oportunidade e prudência. Trata-se do normativismo

jurídico concreto ou integrante100

.

c.5) A elaboração de uma determinada e particular norma de direito não é mera

expressão do arbítrio do poder, nem resulta objetiva e automaticamente da tensão

fático-axiológica operante em dada conjuntura histórico-social: é antes um dos

momentos culminantes da experiência jurídica, em cujo processo se insere

positivamente o poder (quer o poder individualizado de um órgão do Estado, quer o

poder anônimo difuso do corpo social, como ocorre na hipótese das normas

consuetudinárias), mas sendo sempre o poder condicionado por um complexo de fatos

e valores, em função das quais é feita a opção por uma das soluções regulativas

possíveis, armando-se de garantia específica. Trata-se da institucionalização ou

jurisficação do poder na monogênese jurídica101

.

c.6) A experiência jurídica deve ser compreendida como um processo de objetivação e

discriminação de modelos de organização e de conduta, sem perda de seu sentido de

unidade, que vai desde as “representações jurídicas”, que são formas espontâneas e

elementares de juridicidade (experiência jurídica pré-categorial), até o grau máximo de

expansão e incidência normativas representado pelo direito objetivo estatal, com o

qual coexistem múltiplos círculos intermédios de juridicidade, segundo formas

diversificadas e autônomas de integração social, com a concomitante e complementar

determinação de situações e direitos subjetivos. Trata-se da teoria dos meios jurídicos

e da pluralidade gradativa dos ordenamentos jurídicos102

.

c.7) A norma jurídica, assim como todos os modelos jurídicos, não pode ser

interpretada com abstração dos fatos e valores supervenientes, assim como da

totalidade do ordenamento em que ela se insere, o que torna superados os esquemas

100

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p.61. 101

Idem. 102

Ibidem, p. 61-62.

45

lógicos tradicionais de compreensão do direito. É o que Reale denomina como

elasticidade normativa e semântica jurídica103

.

c.8) A sentença judicial deve ser compreendida como uma experiência axiológica

concreta e não apenas como um ato lógico redutível a um silogismo, verificando-se

nela, se bem que no sentido da aplicação da norma, um processo análogo ao da

integração normativa104

.

c.9) Há uma correlação funcional entre fundamento, eficácia e vigência, cujo

significado só é possível numa teoria integral da validade do Direito105

.

c.10) A compreensão da problemática jurídica pressupõe a consideração do valor

como objeto autônomo, irredutível aos objetos ideais, cujo prisma é dado pela

categoria do ser. Sendo os valores fundantes do dever ser, a sua objetividade é

impensável sem ser referida ao plano da história, entendida como “experiência

espiritual”, na qual são discerníveis certas invariantes axiológicas, expressões de um

valor-fonte (a pessoa humana), que condiciona todas as formas de convivência

juridicamente ordenada. Trata-se do historicismo axiológico106

.

c.11) Reale aponta consequente reformulação do conceito de experiência jurídica

como modalidade de experiência histórico-cultural, na qual o valor atua como um dos

fatores constitutivos dessa realidade (função ôntica) e, concomitantemente, como

prisma de compreensão da realidade por ela constituída (função gnoseológica) e como

razão determinante da conduta (função deontológica)107

.

c.12) Em virtude da natureza trivalente do valor e da tripla função por ele exercida na

experiência histórica, o Direito é uma realidade in fieri, refletindo, no seu dinamismo,

a historiciedade mesma do ser do homem, que é o único ente que, de maneira

103

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 62. 104

Idem. 105

Idem. 106

Idem 107

Ibidem, p. 62-63.

46

originária, é enquanto deve ser, sendo o valor da pessoa a condição transcendental de

toda experiência ético-jurídica. Trata-se do personalismo jurídico108

.

c.13) Há a necessidade de uma Jurisprudência que, no plano epistemológico,

desenvolva-se como experiência cognoscitiva, na qual sujeito e objeto se co-implicam

e, no plano deontológico, não se perca em setorizações axiológicas, mas atenda sempre

à solidariedade que une entre si todos os valores, assim como à sua condicionalidade

histórica. Trata-se da Jurisprudência histórico-cultural ou axiológica109

.

3 A “Eticidade” como reflexo da Teoria Tridimensional do Direito de Miguel

Reale

Apresentados, através de breve descrição, o fundamento e as características

da Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale, importante destacar, frente ao

objetivo por nós quisto – explicar cientificamente, tendo como pano de fundo a Teoria

Tridimensional do Direito de Miguel Reale, como a modificação do regime de

visibilidade cultuado por uma sociedade implica na modificação das normas jurídicas

postas, mesmo sem a eventual alteração de texto de lei – a “Eticidade” como uma das

consequências da aplicação da Teoria Tridimensional do Direito no Direito posto.

3.1 Análise semântica do termo “Eticidade”

Objetivando a busca do conceito do “Eticidade”, entendemos importante

iniciar pelo estudo semântico da palavra que representa tal instituto, do suporte físico

introdutor do instituto no mundo da linguagem. O termo “Eticidade” é a soma da

palavra “ética”, que pode ser utilizada, na língua portuguesa tanto como substantivo

como sob a modalidade de adjetivo, com o sufixo “idade”. Referido sufixo tem

relevante e específico papel na língua portuguesa ao atuar como formador de

substantivos abstratos derivados de adjetivos, com o significado de “qualidade ou

108

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p.63. 109

Idem.

47

característica do que x”(em que x corresponde ao adjetivo que serve de base)110

. Sobre

o tema, vale transcrever as lições de Adriana Cristina Chan-Vianna e Maria Aparecida

Curupaná da Rocha Mello:

Em português, a formação de substantivos a partir de adjetivos faz-se

por sufixação, estando entre as estruturas mais produtivas aquelas

formadas por –idade (juntamente com –eza e –ice). O sufixo –idade é

o sufixo mais utilizado para a formação de substantivos a partir de

adjetivos, dado que, embora possa ocorrer em qualquer tipo de

construção, adiciona-se sobretudo a formas já derivadas a partir de

adjetivos com as estruturas X–al, X-vel, X-ico, X-ário. O sufixo

normalizador –idade, do português, é classificado como sufixo

categorial não significativo, pois determina transposição da classe dos

adjetivos para a classe dos substantivos abstratos, sem especificar

qualquer acréscimo semântico além daquele da base.111

No caso específico do termo “Eticidade”, aplicando-se o quanto acima

exposto, podemos afirmar que tal termo é substantivo abstrato que significa qualidade

ou característica de ser ético. Essa conclusão não é muito diferente daquela apontada

pelo Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa ao trazer o sentido denotativo da

palavra “Eticidade”, qual seja: qualidade ou caráter do que é condizente com a

moral112

. No entanto, parece-nos que a definição apresentada no referido dicionário

não pode ser simplesmente transposta para o raciocínio que travamos nesta pesquisa,

vez que parte da sinonímia entre “ética” e “moral” que, parece-nos, não é o sentido

utilizado para o radical “ética” no termo derivado “Eticidade” quando utilizado por

Miguel Reale.

Para que possamos ter uma definição mais profunda do que vem a ser

Eticidade é necessário que investiguemos o significado do adjetivo que serve de

radical para a formação de tal termo, isto é, o significado em que o adjetivo “ética” é

utilizado.

110

“Ciberdúvidas da Língua Portuguesa”. 2008. Disponível em: <http://ciberduvidas.sapo.pt/pergunta.php?id=21193>. Acesso em 12.set.2008.

111

CHAN-VIANNA, Adriana Cristina e MELLO, Maria Aparecida Curupaná da Rocha. A construção da gramática guineense. 2008. Disponível em: <http://www.abecs.net/papia/docs/17/Chan-Vianna%20&%20Melo%202007.pdf>. Acesso em: 12.set. 2008.

112

Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em: <www.uol.com.br>. Acesso em 12.set. 2008.

48

3.1.2 A polissemia da palavra “Ética”

O termo “ética” é, sem dúvida alguma, polissêmico, podendo, a partir do

seu mesmo suporte físico, gerar grande quantidade de significados. Passamos, nos

próximos parágrafos, a apontar alguns significados que são utilizados para o referido

termo para que, num passo seguinte, possamos investigar, de forma certeira o sentido

do adjetivo “ética” que se encontra qualificado pelo sufixo “idade” formando o

substantivo abstrato “Eticidade” sob o enfoque do raciocínio desenvolvido por Miguel

Reale.

O Homem diferencia-se dos demais animais pela sua racionalidade, pela

sua capacidade de, tendo conhecimento da realidade que o envolve e da potencialidade

de seus atos, exercer a sua própria razão. Esse processo de atuação racional do Homem

envolve o livre-arbítrio, entendido como a liberdade de praticar os atos desejados, mas

que tem como baliza os efeitos potenciais dos atos realizados sob a permissão do livre

agir. Esses efeitos potenciais do agir humano se dirigem não só à individualidade do

ser atuante, mas também à comunidade que o cerca, motivo pelo qual o binômio

liberdade-responsabilidade interessa não só à cada cidadão, mas à sociedade.

A manutenção da sociedade e o seu funcionamento harmônico dependem

diretamente da responsabilidade, do cuidado de cada indivíduo no exercício de seu

livre arbítrio. O Homem, frente à uma determinada situação concreta que é enfrentada,

realiza o seu juízo de valor, que é a parte da psique humana onde reside o

discernimento primordial entre o erro e a verdade. É o hábito mental de apreciar as

coisas, as pessoas e as situações. Através do juízo de valor, há a efetiva análise das

possibilidades que tem o Homem, naquele momento, de agir, isto é, dos

comportamentos possíveis frente à situação, bem como dos efeitos potenciais que

cada um desses comportamentos possíveis é capaz de gerar na sua individualidade e

no mundo que o rodeia. Exemplifiquemos: atrasado para o serviço, o Homem trafega

pela via pública, quando avista um idoso caído ao chão em razão de um acidente

automobilístico sem que qualquer pessoa estivesse por perto para ajudá-lo. Nesse

momento, o Homem tem a liberdade de agir, praticando o ato que bem entender. Aqui

começa a agir o seu livre-arbítrio. Munido pelo juízo de valor, o Homem passa a

49

enumerar os comportamentos que lhe são possíveis naquela situação, como continuar o

seu percurso sem auxiliar o ferido, continuar o percurso e telefonar para que alguém

socorra o ferido, entre outros. Para cada um desses comportamentos possíveis, o

Homem analisa os efeitos potenciais de cada um deles: se continuar o seu percurso, o

idoso poderá vir a falecer por omissão de socorro; se suspender o seu percurso, poderá

sofrer punições de seu empregador em razão do atraso; entre outras possibilidades.

Aberta na mente humana essa virtualidade de possibilidades e seus potenciais efeitos,

cabe ao homem optar por um dos comportamentos possíveis, realizando-os e se

responsabilizando por seus efeitos.

A relação entre o livre arbítrio e os efeitos por ele gerados resulta na

necessidade de existência de parâmetros, de balizas, de limites para o livre agir

humano. Tais parâmetros são gerados pelo próprio Homem, vez que, sentindo no seu

interior que foi criado para aperfeiçoar a sua essência, passa a direcionar o seu juízo de

valor para a realização do bem, buscando a sua auto-perfeição, perfeição essa que

também é buscada pela sociedade, que impulsiona o indivíduo para a realização de

comportamentos que não desarmonizem a vida social. Através da experiência, do

conviver e da observação do mundo que o rodeia, o homem acumula um grupo de

regras que acredita serem eficazes e úteis para o seu aperfeiçoamento. A formulação

dessas regras, bem como o conjunto sistemático de normas oriundas dessa formulação,

recebem a denominação de moral113

.

Assim, por moral entende-se não só a formulação das normas morais, como

também a “moral positiva”, que é o conjunto de normas e valores morais de fato

aceitos por uma comunidade para regular as relações entre os seus membros114

. E

mais, se a moral está diretamente relacionada à comunidade a que é inerente, a

variedade de contextos históricos, sociais e culturais leva à uma pluralidade de morais,

significando dizer que morais concretas podem coexistir ou suceder uma às outras,

113

DROPA, Romualdo Flávio. Ética, Política e Justiça. 2006. Disponível em: < http://dropa.sites.uol.com.br/etica3.htm>. Acesso em 15.mar.2006.

114

GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel e SAAD, Alya (organizadores). Bases conceituais da bioética: enfoque latino-americano. Tradução de Luciana Moreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Gaia, 2006, p. 122-123.

50

sendo nessa pluralidade que o Homem, como sujeito moral, expressa seu papel ativo e

criador115

. Essa teoria é percebida na prática ao, por exemplo, verificarmos que numa

mesma cidade existem bairros com diferentes características, gerando morais positivas

diferentes em cada um desses.

Apresentado o conceito de moral, partimos para o conhecimento da ética.

Muitos estudiosos não conseguem constatar a diferença entre a ética (que advém do

grego ethos, que significa modo de ser) e moral (que tem origem no latim mores, cujo

significado é costumes), tratando-as, em razão da semelhança semântica dos termos,

como sinônimos116

. Essa, entretanto, não será a forma que compreenderemos ética e

moral. Tratando-se o presente texto de um estudo científico, devemos nos atentar à

precisão dos termos, que é uma característica da ciência, evitando-se a ambiguidade

dos vocábulos, já que a delimitação do objeto é pressuposto do controle da incidência

das proposições descritivas produzidas pelo conhecimento científico117

.

A ética é a ciência que tem como objeto a moral, é um conhecimento

racional que, a partir da análise de comportamentos concretos, caracteriza-se pela

preocupação em definir o que é bom, enquanto a moral preocupa-se com a escolha da

ação que, em determinada situação, deve ser empreendida118

. A ética foi

profundamente tratada pelos filósofos gregos, sendo que para eles a ética se

subordinava à ideia de felicidade da vida presente e do soberano bem, entendendo que

o objetivo supremo era encontrar uma definição desse bem, de tal maneira que o sábio

se bastasse a si mesmo, isto é, que dependesse dele mesmo para ser feliz, estando a

115

SOARES, André Marcelo M. e PIÑERO, Walter Esteves. Bioética e Biodireito: uma introdução. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p.25.

116

Ibidem, p.21. 117

CARVALHO, Paulo de Barros. Língua e Linguagem – Signos Linguísticos – Funções, Formas e Tipos de Linguagem – Hierarquia de Linguagem. In Apostila de Filosofia do Direito I (Lógica Jurídica), utilizada como material de apoio na cadeira de “Lógica Jurídica” no curso de pós-graduação stricto sensu na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo no 2º semestre do ano de 2002, p. 33.

118

GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel e SAAD, Alya (organizadores). Bases conceituais da bioética: enfoque latino-americano. Tradução de Luciana Moreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Gaia, 2006, p.24.

51

felicidade ao alcance de todo homem racional119

. Para muitos, ética e moral não se

excluem e não estão separadas, embora os problemas teóricos e práticos se

diferenciem, de maneira que decidir e agir concretamente é um problema prático e,

portanto, moral. Investigar essa decisão e essa ação, a responsabilidade que a elas é

inerente, e o grau de liberdade e de determinismo aí envolvidos é um problema teórico

e, portanto, ético120

.

Hoje, muito se fala sobre a “crise da ética”, fenômeno gerado em nome da

modernidade, do avanço tecnológico ou das novas tendências em que se verifica a

existência de um modo de pensar, de agir, de viver fora dos princípios morais que até

pouco tempo eram respeitados e aceitos, essa é a chamada crise ética. E a aceitação

natural e constante dessa nova situação caracteriza a denominada crise da ética, ao

arrepio das regras que regem os atos humanos, tanto particulares, como públicos,

existindo uma superestimação das coisas em detrimento do sentido da vida121

. A ética

se divide em dois grandes campos de estudo, quais sejam: a Deontologia (que é a

“ciência dos deveres”) e a Diceologia (que é a “ciência dos direitos”). Como a ética

cobra o comportamento moral, abre, por consequência, caminho para o exercício de

direitos e cumprimento de obrigações. No campo da ética, o que pode ser feito ou

realizado é chamado direito, no sentido do que é autorizado, aceito ou admitido, e o

que não pode é denominado dever, no sentido de obrigação122

.

Diversos são os tipos de moral ou de sistema ético, vez que, como já

tratamos, a moral está diretamente relacionada à comunidade a que é inerente, sendo

que a variedade de contextos históricos, sociais e culturais leva à uma pluralidade de

morais. Assim, cada tipo de moral, que leva, respectivamente, a diversos sistemas

119

BARONI, Robison. Cartilha de ética profissional do Advogado: perguntas e respostas sobre ética profissional baseadas em consultas formuladas ao Tribunal de Ética da OAB/SP. 3ª edição. São Paulo: LTr, 1999, p. 23.

120

SOARES, André Marcelo M. e PIÑERO, Walter Esteves. Bioética e Biodireito: uma introdução. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 24-25.

121

BARONI, Robison. Cartilha de ética professional do Advogado: perguntas e respostas sobre ética profissional baseadas em consultas formuladas ao Tribunal de Ética da OAB/SP. 3ª edição. São Paulo: LTr, 1999, p. 27.

122

BARONI, Robison. Cartilha de ética professional do Advogado: perguntas e respostas sobre ética profissional baseadas em consultas formuladas ao Tribunal de Ética da OAB/SP. 3ª edição. São Paulo: LTr, 1999, p. 43.

52

éticos, possui características próprias, onde cada uma delas foca-se em questões

particulares. Assim, têm-se as “éticas grupais”, as “éticas profissionais”, entre

outras123

.

Importante também a distinção que é feita entre “ética formal” e “ética de

valores”. Em relação à primeira, segue-se a visão kantiana, em sua filosofia prática, no

sentido de que a significação moral do comportamento não reside em seus resultados

externos, mas na pureza da vontade e na retidão dos propósitos do agente considerado.

Afere-se a moralidade de um ato a partir do foro íntimo da pessoa. A boa vontade não

é boa pelo que efetue ou realize, não é boa por sua adequação para alcançar algum fim

que nos tenhamos proposto, é boa só pelo querer, isto é, é boa em si mesma.

Considerada por si mesma, é, sem comparação, muitíssimo mais valiosa do que tudo

aquilo que por meio dela pudéssemos realizar em proveito ou graça de alguma

inclinação124

. A compatibilidade externa entre a conduta e a norma é mera legalidade,

sem repercussão no valor ético da ação. Moralmente valioso é o atuar que, além da

concordância com aquilo que a norma impõe, exprime o cumprimento do dever pelo

dever, ou seja, por respeito à exigência ética125

.

O fundamento da lei moral, para a ética formal, não está na experiência,

mas se apoia em princípios racionais apriorísticos. A lei cuja representação deve

representar o móvel da conduta eticamente boa é o imperativo categórico, o critério

supremo da moralidade: “age sempre de tal modo que a máxima de tua ação possa ser

elevada, por sua vontade, à categoria de lei de universal observância”126

.

Já a “ética de valores” é uma inversão da tese kantiana. Para Kant, o valor

de uma ação depende da relação da conduta com o princípio do dever, o imperativo

123

BARONI, Robison. Cartilha de ética professional do Advogado: perguntas e respostas sobre ética profissional baseadas em consultas formuladas ao Tribunal de Ética da OAB/SP. 3ª edição. São Paulo: LTr, 1999, p. 24.

124

KANT, Emmanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Versão castelhana de Manuel García Morrente, Madrid: Caple, 1921, p. 22. Tradução nossa.

125

NALINI, José Renato. Ética Geral e Profissional. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 53-54. 126

KANT, Emmanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Versão castelhana de Manuel García Morrente, Madrid: Caple, 1921, p. 67. Tradução nossa.

53

categórico. Para a filosofia valorativa, o valor moral não se baseia na ideia de dever,

mas dá-se o inverso: todo dever encontra fundamento num valor127

. Só deve ser aquilo

que é valioso e tudo o que é valioso deve ser. A noção de valor passa a ser o conceito

ético essencial, o valor não arbitrariamente convencionado, pois, o que é valioso vale

por si, ainda quando seu valor não seja reconhecido nem apreciado.

Frente à essa multiplicidade de significados de “ética”, é necessário que

investiguemos, de forma específica, aquele que é utilizado no termo “eticidade” nos

moldes delineados por Miguel Reale, vez que é exatamente essa a definição que nos

levará à correta conclusão quanto ao conteúdo e a aplicabilidade da “eticidade” no

sentido em que o termo é ora estudado.

3.1.3 A definição de “ética” para Miguel Reale

“Ética” é vista por Reale como uma espécie de conduta, havendo

necessidade, portanto, de uma leitura sobre a relação feita pelo referido Mestre entre

conduta e valor e, posteriormente, os tipos de conduta por ele apresentados.

3.1.3.1 Conduta e valor

Afirma Reale que o Homem, enquanto meramente causado, não se

distingue dos outros animais, a não ser pela consciência de sua determinação,

porquanto realiza os mesmos atos de que participam todos os seres do mesmo gênero.

O específico do Homem é conduzir-se, é escolher fins e pôr em correspondência meios

e fins128

. A ação dirigida finalisticamente (o ato propriamente dito ou a ação em seu

sentido próprio e específico) é algo que só pertence ao Homem. Não se pode falar, a

não ser por metáfora, de ação ou de ato de um cão ou de um cavalo. O “ato” é algo

pertinente, exclusivamente, ao ser humano. Ação, em seu sentido rigoroso, ou o ato, é

energia dirigida para algo, que sempre é um valor. O valor, portanto, é aquilo a que a

ação humana tende, porque se reconhece, num determinado momento, ser motivo, 127

NALINI, José Renato. op.cit., p.57. 128

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 378.

54

positivo ou negativo da ação mesma (a que se denomina relatividade temporal do

valor). Atuar sem motivo é próprio do alienado. Alienado é aquele que está alheio ao

seu conduzir-se, é o que perdeu o sentido de sua direção e de sua dignidade129

.

Valor e dever ser implicam-se e se exigem reciprocamente. Sem a idéia de

valor, não temos a compreensão do dever ser. Quando o dever ser se origina do valor,

e é recebido e reconhecido racionalmente como motivo da atuação ou do ato, temos

aquilo a que se chama fim, que é o dever ser do valor reconhecido racionalmente como

motivo de agir130

. O que se declara fim não é senão um momento de valor abrangido

por nossa racionalidade limitada, implicando um problema de meio adequado à sua

realização. O nexo ou relação de meio e fim é, não pode deixar de ser, de natureza

racional, mas a referibilidade ou imantação a um valor pode ser ditada por motivos que

a razão não explica. A História humana é um processo dramático de conversão de

valores e fins e de crises culturais resultantes da perda de força axiológica, verificada

em fins que uma nova geração se recusa a “reconhecer”131

.

3.1.3.2 Fins e categorias do agir

Sendo diversos os valores e, por consequência, os fins que o Homem se

propõe, ensina Reale que a ação teleologicamente determinada, ou o ato, pode ser

discriminada segundo tenha por fim:

- conhecer ou realizar algo, sem visar direta e necessariamente a outras ações possíveis

(ações de natureza teorética, ou de natureza estética);

- conhecer ou realizar algo, visando direta e necessariamente a outras ações possíveis

(ações de natureza prática: ou econômicas, ou éticas)132

.

129

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p.379. 130

Idem. 131

Ibidem, p. 379. 132

Ibidem, p.380.

55

Na primeira categoria (atividades teoréticas e estéticas), a lei e a forma

constituem, de certo modo, a plenitude do agir, delas não brota uma atitude necessária

para a ação, pois são ambas modalidades de conhecimento, de explicação ou de

compreensão, mas não postulam fins em razão do fim já atingido pelo conhecimento.

Na segunda categoria (ações de natureza prática – econômicas ou éticas), o que

distingue é o fato de não visarem a um resultado como tal, mas como simples

momento que conduz a outros comportamentos possíveis: não é senão ponto de partida

para novas ações complementares. Assim, por exemplo, o alcance de um bem

econômico é condição ou estímulo para novas atividades tendentes à conquista de

novas utilidades, pois, na realidade, só é econômica uma ação enquanto é momento ou

elo no processo da produção das riquezas. Como se trata de ações que são base ou

condição de ações sucessivas da mesma natureza, dizemos que são ações práticas133

.

Neste tipo de ações (ações práticas) cabe distinguir, porém, as que sucedem segundo

um nexo opcional de conveniência ou de oportunidade, o que lhes dá um cunho

técnico (ações econômicas), e aquelas que se ligam por uma necessidade deontológica

reconhecida pelo agente como razão essencial de seu agir (ações éticas)134

.

Desse modo, podemos distinguir certas ações ou atividades, as de ordem

ética, que, ao atingirem um termo visado, subordinam-se a normas ou a regras, abrem-

se para o campo das ações possíveis, como uma flor que se vai converter em fruto: a

ação possível é, no fundo, o conteúdo mesmo da norma ética, o seu destino, o seu

significado. Sem referibilidade à praxis, a norma não tem significado, vez que

erradicada do processo de que provém e do processo a que se destina, não é

compreendida em sua verdadeira natureza, daí se originando o equívoco dos que a

concebem como puro juízo lógico ou mera forma sem conteúdo135

.

Momento da dinâmica social e da existência coletiva, em seu projetar-se

como linha entre passado e o futuro, a norma exprime sempre a congruência e a

133

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p.381. 134

Ibidem, p.383. 135

Idem.

56

integração de dois elementos: o valor e a ação. Há, por conseguinte, uma modalidade

de ação que é de tipo normativo. É a essa categoria de ação que se dá o nome de

conduta ética, que pode ser religiosa, moral, política, jurídica136

.

Eis uma ilustração do exposto até o presente momento:

Integração e congruência AÇÃO de tipo Religiosa

entre VALOR e AÇÃO NORMATIVO CONDUTA ÉTICA Moral

Política

Jurídica

NORMA NÃO É MERO JUÍZO LÓGICO OU FORMA SEM CONTEÚDO

NORMA É FRUTO DA CONGRUÊNCIA ENTRE VALOR E AÇÃO

Se a ação humana subordina-se a um fim ou a um alvo, há direção, ou pauta

assinalando a via ou a linha de desenvolvimento do ato. A expressão dessa pauta de

comportamento é o que se chama de norma ou de regra. Não existe possibilidade de

“comportamento social” sem forma ou pauta que não lhe corresponda. A cada forma

de conduta corresponde a norma que lhe é própria. A conduta religiosa implica normas

ou regras religiosas, assim como a conduta moral implica regras ou normas de origem

moral. Em geral, somos levados a confundir conduta com a sua norma, tão difícil é

separar o problema do comportamento ético da sua medida137

.

Comportar-se, de certa forma, é proporcionar-se uma regra, é integrar, no

processo da ação, aquela pauta que marca a sua razão de ser. É por tais motivos que

não podemos compreender o estudo das regras jurídicas ou morais como simples

136

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 383. 137

Ibidem, p. 384.

57

entidades lógicas, como meras noções, sem a referência necessária ao problema da

ação, ao problema da realidade social138

. Tem-se, assim, uma necessária relação entre

a norma e a realidade social, isto é, a impossibilidade de análise normativa meramente

abstrata.

Contesta Reale que uma regra possa ser erradicada da conduta a que se

refere, porque, se fizermos abstração do problema da conduta, não estaremos fazendo

Ciência Jurídica, mas, sim, Lógica Jurídica, por esforço de abstração (não

desqualificando o estudo de ordem lógica, que é legítimo e necessário, mas deve ser

completado com a implicação da realidade social ordenada, sem a qual a norma não

tem valor de norma jurídica). Norma e conduta são, portanto, termos que se exigem e

se implicam, mas sem se reduzirem um ao outro, subsistindo cada um deles em

implicação recíproca, segundo o que Miguel Reale identifica como “dialética de

complementariedade”, que caracteriza e governa todo o processo histórico-cultural139

.

Elucidada a correspondência entre norma e conduta, podemos esclarecer

que a Ética não é a doutrina da ação em geral, mas propriamente a doutrina da

conduta enquanto inseparável de sua razão ou critério de medida, de sua norma,

mediante a qual se expressa teleologicamente um valor. A Ética é, em suma, a

ordenação da conduta, o que equivale a dizer: a teoria normativa da ação140

. Eis a

definição de Ética para Miguel Reale.

Fica, assim, delineada uma distinção essencial entre Economia (atividade

prática de cunho opcional e técnico) e Ética (atividade não subordinada a fins

particulares, e de caráter obrigatório), compondo ambas a esfera de estudos

denominada Teoria da Conduta141

. Quando o homem age, desloca-se em relação a

outros homens, toma uma posição nova perante os demais, assume uma “dimensão”

nos planos social e histórico, e o faz sempre na dependência de suas circunstâncias. A

138

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 384. 139

Ibidem, p.385. 140

Idem. 141

Idem.

58

conduta, portanto, é sempre um fato social e humano, um acontecer no “habitat”

natural do homem, que é a sociedade, embora, como já se verificou, nem toda ação

seja “conduta”. A sociedade não é simples dado da natureza, mas também um

“construído”, algo que a espécie humana veio modelando através do tempo, tendo

como fator inicial o instinto de socialidade, a força que levou o Homem à convivência,

dada a sua estrutura ou conformação biopsíquica142

. A socialidade é tendência natural

do homem, mas a sociedade é permanentemente “construída”, algo que uma geração

recebe e transmite a outra, quando mais não seja pelo fato fundamental da linguagem,

sendo uma das gerações mais felizes por poderem transferir proporcionalmente mais

do que receberam. Portanto, toda conduta é um fato social e histórico, porque envolve

sempre um enlace concreto do Homem com outros Homens, ou uma posição do

Homem com referência a outros homens e a seus bens, numa trama de interesses e de

fins que se desenrola no tempo143

.

3.4.3.3 Momentos da conduta

O Homem reconhece nas verdades encontradas um motivo preferencial de

ação, caso em que o verdadeiro é estimado como bem144

. A meta da atividade ética é

dada pelo valor do bem que pode ser de cunho moral, religioso, jurídico, econômico,

estético etc, desde que posto como razão essencial do agir. Certos valores assumem

uma espécie de dupla valoração, como se passa, por exemplo, quando o valor

puramente lógico da verdade, tornando-se também objeto de uma valoração ética,

reveste o caráter de um bem moral, dando lugar a um dever, cujo cumprimento é uma

virtude que se chama veracidade145

.

142

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p.386. 143

Ibidem, p.387. 144

Ibidem, p.388. 145

Ibidem, p.389.

59

Na realidade, atribuir a um valor a força determinante da conduta é, no

domínio da “prática”, convertê-lo em fim ético, o que explica possam o esteticismo, o

utilitarismo ou o cientificismo assumir a dignidade de concepções morais da vida. Em

tais casos temos valores objetivados nas ciências, nas artes, nas instituições jurídicas,

valendo como bens morais, sem alteração de seu conteúdo axiológico específico146

. O

certo é que o bem ético implica sempre “medida”, ou seja, regras ou normas,

postulando nesse sentido de comportamento, com possibilidade de livre escolha por

parte dos obrigados, exatamente pelo caráter de dever ser e não de necessidade física

(ter que ser) de seus imperativos147

. Tem-se, assim, a norma como “medida” do

comportamento, compreendendo-se “medida” como atribuição de valor.

Em geral, o bem, que na conduta ética se atinge, representa um momento

maravilhoso de plenitude do ser, não deixa de ser um momento cuja atualização gera

novos ideais, o que demonstra o caráter transcendental dos valores148

, podendo-se

concluir pela relatividade temporal do bem, com a consequente modificabilidade

natural frente a novos ideais.

3.1.3.4 Especificidade da conduta ética

É no plano específico da conduta ética, mais do que no plano da ação

prático-econômica, exatamente em razão de seu projetar-se obrigatório e geral para

ações futuras, que a tridimensionalidade se mantém como característica ou traço

essencial, sem jamais se resolver em unidade capaz de pôr termo à tensão entre fato e

valor. Não se trata, em tal caso, de se expressar um juízo, de se formular uma lei, nem

tampouco de se subordinar um conteúdo à plasticidade de uma forma. Trata-se de se

modelar o Homem mesmo, de legalizar-se ou de formalizar-se, daí o caráter

146

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 389. 147

Idem. 148

Idem.

60

provisório, insuficiente de toda norma ética particular, cuja universalidade ética reside

na tensão inevitável que a liberdade espiritual estabelece entre a realidade e o ideal149

.

O Homem jamais se desprende do meio social e histórico, das

circunstâncias que o envolvem no momento de agir. Delas participa e sobre elas reage,

são forças do passado que atuam como processos e hábitos lentamente constituídos,

como laços tradicionais e linguísticos, que a educação preserva e transmite, são forças

do presente com seu peso histórico imediato, são forças do futuro que se projetam

como ideias-força, antecipações e programas de existência envolvendo

dominadoramente a psique individual e coletiva150

. Esse elemento que cerca o Homem

e lhe impõe limites, que é de certa maneira negativo perante uma liberdade criadora

sem peias, é o que se denomina fato. Não há conduta humana (e o “humano” aqui é

redundante) que não se desenvolva condicionalmente a um complexo de fatos (físicos,

econômicos, históricos, estéticos, jurídicos, morais, religiosos) de maneira que sempre

o valor é atingido ou negado, não só na proporção da capacidade realizadora subjetiva

do agente, mas também em função da totalidade das circunstâncias em que o seu agir

se situa, a norma representa tensão entre fato e valor, e o sentido concreto e unitário

dessa relação151

.

Quando Reale afirma que o processo cultural só é compreensível segundo

uma dialética de implicação e polaridade, ou de complementariedade, quer o mesmo

se referir à tensão fato-valor, pois estes elementos não são suscetíveis de se resolverem

um no outro, mas tão somente de se comporem em implicação ou integração, quer

através de formas estéticas, quer através de normas éticas. Daí a impossibilidade de se

compreender a norma como algo per se stante, fora do processo em que se instaura e

que lhe dá conteúdo, de seus pressupostos fáticos e axiológicos. Isto posto, se toda

espécie de conduta ética é tridimensional, não bastará apontar a existência de três

elementos ou fatores para caracterizar e distinguir qualquer de suas modalidades, a

diferença deverá resultar do modo de enlace que se constitui entre os elementos fático

149

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 391-392. 150

Ibidem, p.392. 151

Idem.

61

e o axiológico para dar nascimento a distintas espécies de normas morais, religiosas ou

jurídicas152

.

3.1.3.5 Modalidades de conduta

Afirma Reale que as principais modalidades de conduta que compõem o

amplo domínio da ética são as condutas religiosa, moral, costumeira e jurídica,

passando a analisar cada uma delas:

a) conduta religiosa: o Homem, em primeiro lugar, pode agir sem encontrar em si

mesmo a razão de agir, nem tampouco nos demais, mas adaptando a sua conduta ou

comportamento a algo que é posto acima dos homens individualmente considerados ou

de sua totalidade. Tais valores não se referem também à “sociedade” tomada como um

todo distinto de seus elementos componentes ou à síntese das aspirações humanas. Em

tais casos, tem-se que o valor determinante da ação transcende aos indivíduos e à

sociedade. Quando o Homem age no pressuposto dessa direção transcendente, tem-se

a conduta religiosa. Manifesta-se, pois, um valor transcendente, que não se refere ao

indivíduo, ao social ou ao histórico. Trata-se da conduta religiosa, que se desenvolve

no espaço e no tempo, como toda conduta, mas subordinada intencionalmente a

valores não temporais153

.

b) conduta moral: os homens não se vinculam em seu agir apenas por valores de

transcendência, mas também se ligam por algo que está neles mesmos ou, então, nos

outros homens. Praticamos determinado ato e sentimos que é reflexo ou expressão de

nossa personalidade e que, portanto, o motivo de nosso agir é um motivo que se põe

radicalmente em nós. A última instância do agir é o Homem na sua subjetividade

consciente. Quando a ação se dirige para um valor, cuja instância é dada por nossa

própria subjetividade, estamos perante um ato de natureza moral. O que distingue a

conduta moral é esta pertinência da estimativa ao sujeito mesmo da ação. De certa

forma, poder-se-ia dizer que, no plano da conduta moral, o Homem tende a ser o

legislador de si mesmo. Não é preciso, porém, que ele mesmo tenha posto a regra

152

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p.393. 153

Ibidem, p.394.

62

obedecida, porque basta que a tenha tornado sua. Quando o nosso comportamento se

conforma a uma regra e nós a recebemos espontaneamente, como regra autêntica e

legítima de nosso agir, o nosso ato é moral154

.

O que importa, pois, é que haja sempre recepção e assentimento. Ninguém

pode praticar um ato moral pela força ou pela coação. A moral é compatível com

qualquer ideia ou plano de natureza coercitiva, quer de ordem física, quer de ordem

psíquica. No ato moral é essencial a espontaneidade, de tal maneira que a educação

para o bem tem de ser sempre uma transmissibilidade espontânea de valores, uma

adesão ao valioso, que não implica nenhuma subordinação que violente a vontade ou a

personalidade. A ideia de pessoa vem exatamente desse reconhecimento do Homem

como um ser que deve ser autenticamente ele mesmo. O Homem é pessoa enquanto

age segundo sua natureza e seus motivos, na totalidade de seu ser, sem se alienar a

outrem. O indivíduo é o Homem enquanto casualmente determinado, mas a pessoa é o

Homem enquanto se propõe fins de ação, sendo raiz inicial do processo estimativo.

Por outras palavras, o Homem enquanto mero indivíduo, como ser puramente

biológico, não foge às regras determinadas causalmente, só superando o plano

naturalístico quando se põe como instaurador de valores e fins. O homem, visto na

essência de sua finalidade, é pessoa, isto é, um ser com possibilidade de escolha

constitutiva de valores155

.

Portanto, existe uma modalidade de conduta cuja direção se encontra no

Homem mesmo como instância que valora o agir e dá a pauta do comportamento: é a

conduta moral156

. O ato moral é um ato que encontra no plano da existência do sujeito-

agente a sua razão de ser e, mais propriamente, tem sua instância axiológica no plano

da existência do sujeito que pratica a ação. A instância valorativa, a medida axiológica

da ação, é dada, em última análise, pelo foro do sujeito, que, no fundo, é o juiz último

154

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002 p.396. 155

Ibidem, p.397. 156

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p.397.

63

que mede, com seu critério, a ação moral, que não é possível ser concebida sem adesão

e assentimento157

.

c) conduta costumeira: é possível conceber-se e se admitir uma outra espécie de

conduta ética, que é aquela em que a instância valorativa ou medida fundamental do

agir não se encontra propriamente no sujeito que age, mas, ao contrário, no outro

sujeito, nos demais sujeitos. Esse campo vastíssimo das ações que se referem aos

costumes sociais, às regras consuetudinárias de trato social, ou de civilidade, tais como

as de etiqueta, cortesia ou cavalheirismo. Efetivamente, existem condutas que o

homem segue em razão do que lhe dita a convivência social, sendo mais guiado pelos

outros do que por si mesmo, mais se espelhando na opinião alheia do que na própria

opinião, recebendo do todo social a medida de seu comportamento, donde falar-se em

moral social, na qual a força dos usos e hábitos é relevante158

.

O costume coloca o Homem na atitude de quem está se conformando ao

viver comum e, em certos casos, fá-lo partícipe do comportamento dos demais,

subordinando-se ao estalão apreciativo dominante no seio do grupo social. Pelas regras

de costume se situa o Homem na sociedade, por sua maneira de ser e de se conduzir,

de participar dos bens da vida, assim como em suas reações perante o mal sofrido, em

sucessivos atos de participação. O que nessas regras sobreleva é a “conformidade

exterior”. Não é dito que não seja possível nesse domínio haver espontaneidade e

sinceridade, ciência e consciência de sua legitimidade, mas estes não são requisitos

essenciais. Há, nesse domínio das regras de trato ou civilidade social, certa nota

dominante de exterioridade, porquanto a pauta do julgamento, a instância axiológica

do agir, é mais dada pela pessoa dos outros do que por nossa própria pessoa. Pode

haver coincidência entre nossa sinceridade e o nosso agir, mas o elemento intencional,

em tal caso, é acessório. O ato de cortesia ou de gentileza, por exemplo, subsiste desde

que a exterioridade do gesto ou do comportamento seja observada159

.

157

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 298-399. 158

Ibidem, p.399. 159

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p.400.

64

Comparando a conduta costumeira com a conduta moral, podemos observar

que ambas são bilaterais, no sentido de que pressupõem sempre a presença de dois ou

mais homens. Trata-se, porém, de bilateralidade diversa do ponto de vista estimativo,

porquanto o ato moral não prescinde jamais da íntima e sincera participação do sujeito

da ação160

.

d) conduta jurídica: a palavra bilateralidade pode ser usada ou em sentido ôntico ou em

sentido axiológico, ora levando-se em conta a relação ou nexo entre dois ou mais

indivíduos, ora atendendo-se mais propriamente o sentido dessa relação mesma. Tanto

o Direito quanto a Moral são bilaterais, porquanto são sempre fatos sociais que

implicam a presença de dois ou mais indivíduos. Não existe ato moral fora do meio

social. Quando se fala, portanto, em bilateralidade do Direito, o que se visa é mais o

sentido dessa relação, a instância valorativa ou deontológica que nela se verifica, e não

o seu aspecto de puro enlace social que também existe na moral161

.

Segundo o prisma valorativo ou deôntico é que podemos falar em

unilateralidade ou bilateralidade. No plano moral, como é o sujeito mesmo a medida

de seu agir, a regra diz-se axiologicamente unilateral. Já no campo dos costumes

sociais, como o indivíduo encontra na sociedade, no outro sujeito, a pauta de seu agir,

deve-se dizer que, axiologicamente, as respectivas regras são bilaterais, mas de uma

bilateralidade não exigível. Não podemos ser obrigados a cumprimentar alguém, nem

haverá obediência às regras de cortesia se nos coagirem a sermos gentis. Acontece,

porém, coisa diversa quando devemos cumprimento a um magistrado em audiência ou

quando o soldado deve continência ao capitão. Já aí o tratamento de Excelência devido

ao magistrado não é mero tratamento de cortesia, embora o homem bem-educado não

precise de regras obrigatórias para ser cavalheiro. Trata-se de obrigação que Reale

reconhece como sendo jurídica162

. O fato é que o capitão pode exigir que o soldado lhe

preste continência e, ante a recusa, pode e deve aplicar-lhe uma pena. Aquilo que para

160

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 400-401. 161

Ibidem, p.401. 162

Ibidem, p.402-403.

65

os demais homens é uma simples convenção ou costume, para determinado campo da

atividade humana passa a ser obrigação jurídica. A medida deste comportamento,

porém, não é dada nem pelo sujeito que age, nem pelo outro sujeito a que se destina,

mas é dada por algo que os entrelaça numa objetividade discriminadora de pretensões,

muitas vezes, mas nem sempre e necessariamente, recíprocas. A razão de medir do

Direito não se polariza num sujeito ou no outro sujeito, mas é transobjetiva. A relação

jurídica apresenta sempre a característica de unir duas pessoas entre si, em razão de

algo que atribui às duas certo comportamento e certas exigibilidades. O enlace

objetivo de conduta que constitui e delimita exigibilidades entre dois ou mais sujeitos,

ambos integrados por algo que os supera, é o que Reale chama de bilateralidade

atributiva. A essência do fenômeno jurídico é dada por esse elemento que não se

encontra nas outras formas de conduta163

.

É de se notar que não se trata de transcendência para além do real, mas de

superação da subjetividade no plano social, razão pela qual se fala em

transubjetividade. Na relação jurídica há sempre um valor que integra os

comportamentos de dois ou mais indivíduos, permitindo-lhes e lhes assegurando um

âmbito de pretensões exibíveis. É da essência da vida jurídica a exigibilidade

objetiva164

.

Do quanto exposto, pode-se concluir que o termo Ética, para Reale, não tem

relação de sinonímia com moral (apesar de versarem sobre ideias intimamente

relacionadas, de difícil distinção, chegando a ser empregadas como sinônimos, mesmo

porque, do ponto de vista etimológico, tanto em grego quanto no latim, ambas provêm

da palavra costume, que indica as diretrizes de conduta a serem seguidas165

),

refletindo, portanto, gênero de conduta onde se inserem as espécies condutas religiosa,

moral, costumeira e jurídica, sendo certo que toda conduta tem relação com

determinado valor (conduta como ação finalisticamente dirigida, tendo valor

163

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 403. 164

Ibidem, p. 403-404. 165

REALE, Miguel. Variações sobre Ética e Moral. 2005. Disponível em: < www.miguelreale.com.br>. Acesso em: 12. Setembro.2008.

66

significado daquilo que a ação humana tende, porque se reconhece, num determinado

momento, ser motivo, positivo ou negativo, da ação mesma).

Dessa forma, podemos afirmar que o termo Ética, sob o sentido de adjetivo

e de acordo com a visão de Miguel Reale, é a qualidade da ação finalisticamente

dirigida, que se compatibiliza com os valores que levaram à sua prática e caracterizada

pela obrigatoriedade (dever ser). Portanto, qualquer conduta ética não pode ser

apreciada sem o devido relevo ao valor que a dirigiu, restando afastada a construção

ou a análise de qualquer conduta ética de forma abstrata, desvinculada dos valores a

ela inerentes ante a sua finalidade, havendo clara vinculação de Reale à visão de ética

de valores.

3.1.3.6 O conceito e a aplicabilidade de “Eticidade” em Miguel Reale

Frente às informações colhidas nos itens anteriores, possível é afirmarmos o

conceito de “Eticidade” como método de incidência, na construção da norma jurídica

(que envolve não só a atividade legislativa de produção de enunciados prescritivos,

como também a atividade de interpretação com vistas à aplicação da norma jurídica ao

caso concreto) de valores incidentes na realidade fatual (no momento da aplicação da

norma jurídica) sob o prisma do fato a ser normado e do sistema jurídico como um

todo, afastando-se, dessa forma, qualquer visão abstrata ou pseudototalizante da norma

jurídica, bem como qualquer método mecanicista de mera subsunção do texto legal ao

caso concreto.

No que se refere à sua aplicabilidade, é de se afirmar que:

- No campo da produção legislativa: a elaboração de uma determinada e particular

norma de direito não é mera expressão do arbítrio do poder, nem resulta objetiva e

automaticamente da tensão fático-axiológica operante em dada conjuntura histórico-

social: é antes um dos momentos culminantes da experiência jurídica, em cujo

processo se insere positivamente o poder (quer o poder individualizado num órgão do

Estado, quer o poder anônimo difuso no corpo social, como ocorre na hipótese das

67

normas consuetudinárias), mas sendo sempre o poder condicionado por um complexo

de fatos e valores, em função dos quais é feita a opção por uma das soluções

regulativas possíveis, armando-se de garantia específica166

.

- No campo da interpretação jurídica: sintetiza-se a “Eticidade” como incidência do

“valor” ao fato gerando a escolha de uma das possibilidades semânticas do texto

normativo interpretado (tal escolha terá como vertente a incidência do “valor” ao fato

concreto em análise) levando-se em consideração a sua “elasticidade semântica” (a sua

polissemia, capacidade de um mesmo suporte físico referir-se a mais de um

significado), realizando-se, assim, a experiência jurídica nos moldes compatíveis com

o pensamento tridimensional de Miguel Reale, que bem pode ser caracterizada através

dos seguintes trechos de sua obra:

... sendo a experiência jurídica uma das modalidades da experiência

histórico-cultural, compreende-se que a implicação polar fato-valor se

resolve, a meu ver, num processo normativo de natureza integrante,

cada norma ou conjunto de normas representado, em dado momento

histórico e em função de dadas circunstâncias, a compreensão

operacional compatível com a incidência de certos valores sobre os

fatos múltiplos que condicionam a formação dos modelos jurídicos e

a sua aplicação.167

A norma jurídica, assim como todos os modelos jurídicos, não pode

ser interpretada com abstração dos fatos e valores supervenientes,

assim como da totalidade do ordenamento em que ela se insere, o que

torna superados os esquemas lógicos tradicionais de compreensão do

direito (elasticidade normativa e semântica jurídica).168

... não destaco a experiência jurídica da experiência social, da qual é

uma das formas ou expressões fundamentais, distinguindo-se pela

nota específica de “bilateralidade-atributiva” que lhe é própria, isto é,

por implicar, em cada uma das relações que a constituem, sempre um

nexo de validade objetiva que correlaciona entre si duas ou mais

pessoas, conferindo-lhes e assegurando-lhes pretensões ou

competências que podem ser de reciprocidade contratual, ou de tipo

166

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 61. 167

Ibidem, p. 74. 168

Ibidem, p. 62.

68

institucional, sob forma de coordenação, subordinação ou

integração.169

...como a experiência jurídica não se destaca da experiência social, da

qual é uma das formas ou expressões fundamentais, distinguindo-se

pela nora específica de “bilateralidade-atributiva”170

... ela só pode ser

compreendida em termos de normativismo concreto,

consubstanciando-se às regras de direito toda a gama de valores,

interesses e motivos de que se compõe a vida humana, e que o

intérprete deve procurar captar, não apenas segundo as significações

particulares emergentes da “praxis social”, mas também na unidade

sistemática e objetiva do ordenamento vigente.171

3.1.4 A “Eticidade” como instrumento de “mutação normativa”

Sendo o Direito Positivo um conjunto de normas jurídicas aplicáveis num

determinado Estado, num determinado momento, objetivando a organização social, é

indiscutível a necessidade de tais normas jurídicas acompanharem a evolução da

sociedade e, mais especificamente, as mudanças dos valores sociais, principalmente

num Estado Democrático de Direito, sob pena de falta de eficácia social172

. Tal

necessária compatibilização entre valores sociais e comandos normativos impõe tantas

modificações normativas quantas forem as alterações dos valores sociais, sendo que

tais modificações normativas podem se realizar de 2(duas) formas:

- alteração do enunciado prescritivo(texto legal), o que se faz através de emendas

constitucionais (obviamente nas hipóteses de alteração textual da Constituição) ou de

produção de novas leis infraconstitucionais que tácica ou expressamente alterem textos

legais anteriores (nas hipóteses de alteração dos textos legais infraconstitucionais);

169

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 75. 170

Idem. 171

Ibidem, p. 77. 172

A eficácia social é a capacidade de uma norma jurídica de ser efetivamente cumprida pela sociedade, tendo em vista a compatibilidade da mesma com os valores cultuados pela sociedade que lhe é sujeita. Como afirma Luís Roberto Barroso, a eficácia social, a que denomina efetividade (utilizando os termos como sinônimos), simboliza a “aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever ser normativo e o ser da realidade social”. Conforme BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 375.

69

- opção por nova hipótese interpretativa, explorando a elasticidade semântica173

do

texto normativo vigente.

É exatamente nesta segunda forma de atualização das normas jurídicas que

se enquadra a “mutação normativa”, isto é, a modificação da norma jurídica sem a

alteração do texto legal da qual origina (necessariamente, em razão do princípio da

legalidade, imposto pelo art. 5º, II, da Constituição Federal), através de técnicas de

interpretação que, explorando a elasticidade semântica dos textos legais, passa a

selecionar, para fins de aplicabilidade, hipótese interpretativa compatível com novos

valores sociais.

A figura da “mutação normativa” é objeto de estudo do Direito

Constitucional há muito tempo, normalmente sob a denominação de “mutação

constitucional” que é, conforme conceito de Gilmar Mendes, Inocêncio Mártires

Coelho e Paulo Gustavo Gonet:

... as alterações semânticas dos preceitos da Constituição, em

decorrência de modificações no prisma histórico-social ou fático-

axiológico em que se concretiza a sua aplicação...decorrentes da

conjugação da peculiaridade da linguagem constitucional, polissêmica

e indeterminada, com os fatores externos, de ordem econômica, social

e cultural, que a Constituição – pluralista por antonomásia -, intenta

regular e que, dialeticamente, interagem com ela, produzindo leituras

sempre renovadas das mensagens enviadas pelo constituinte.174

O que busca esta tese, no atual momento de desenvolvimento do raciocínio

de seu objeto, é generalizar o conceito de “mutação constitucional”, estendendo-o às

normas jurídicas infraconstitucionais, afastando a sua limitação às normas

constitucionais, sob o enfoque de que a modificação do conteúdo de uma norma

jurídica, sem a alteração do enunciado prescritivo que lhe serve de fonte, é fenômeno

típico da experiência jurídica e não característica inerente exclusivamente as normas

constitucionais. Daí a utilização, neste trabalho, da expressão “mutação normativa”.

173

A elasticidade semântica é a capacidade de um determinado enunciado (no caso, um texto de lei) de gerar vários significados possíveis em razão da ambiguidade das palavras que o compõem. 174

MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008, pp. 129-130.

70

Importante destacar que vários Autores já se referiram ao objeto a que ora

denominamos “mutação normativa”, utilizando-se de outras denominações, como, por

exemplo, Celso Ribeiro Bastos, que faz uso do termo interpretação evolutiva, como se

verifica da transcrição a seguir:

O desenvolvimento técnico da ciência em geral, com as repercussões

que acarreta na vida do indivíduo em sociedade, e que a legislação

muitas vezes não é capaz de acompanhar, acaba por propiciar um

substrato favorável ao desenvolvimento da interpretação evolutiva.

Esta forma de interpretação baseia-se na realidade para, a partir dela,

mas sem se descurar dos limites normativos do texto legal, chegar a

resultados mais satisfatórios do ponto de vista do nível evolutivo em

que se encontra a sociedade.175

Vê-se, na realização da mutação normativa, a aplicação da “Eticidade” (que

já conceituamos como procedimento de incidência do “valor” ao fato gerando a

escolha de uma das possibilidades semânticas do texto normativo interpretado

levando-se em consideração a sua “elasticidade semântica”, realizando-se, assim, a

experiência jurídica nos moldes compatíveis com o pensamento tridimensional de

Miguel Reale), daí que a mutação normativa somente pode ser efetivamente

compreendida quando inserido o Jurista numa visão “normativista concreta”176

do

Direito, valendo, mais uma vez, a transcrição do magistério de Celso Ribeiro Bastos:

Não é apenas no sentido de incorporação dos avanços técnicos que

o dado empírico deve ser incorporado à norma para fins de lhe revelar

a plenitude de sua significação.

175

BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 157.

176

O normativismo concreto se caracteriza pela compreensão do ato normativo e do ato interpretativo como elementos que se co-implicam e se integram, não se podendo, senão como abstração e linha de orientação de pesquisa, separar a regra e a situação regulada, a norma e a situação normada (Cf. COELHO, Inocêncio Mártires. Legado de Miguel Reale – IV : O tridimensionalismo jurídico concreto e o problema da interpretação/apliação do direito. 2007. Disponível em: <www.lubjus.com.br/bjur.php?artigos&ver=2.10356>. Acesso em 01.outubro.2011). Em contraposição ao normativismo concreto, tem-se o normativismo abstrato, caracterizado pela visão de que o Direito se confunde com a lei, e que somente a lei positiva é Direito, fazendo surgir a exegese, o silogismo, a dogmática analítia, o servilismo do Poder Judiciário ao Poder Legislativo, já que, para os positivistas (normativistas abstratos), o julgador deve buscar exclusivamente na lei (sempre justa e absoluta) a vontade do legislador e que é exatamente essa vontade do produtor do enunciado prescritivo a referência para a interpretação do respectivo texto, sem qualquer interferência do valores incidentes sobre o fato concreto sujeito à normatização (Cf. WELTER, Belmiro Pedro. Teoria Tridimensional do Direito de Família. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 82).

71

É que o intérprete simplesmente não pode cindir a norma do caso a

ser solucionado (ainda que seja hipotético). Ao analisar a norma, o

intérprete está estudando-a em relação a um caso. Consequentemente,

o dado decorrente deste caso entra no processo interpretativo.

Para se chegar a uma interpretação de uma norma, ter-se-á de estar

levando em consideração uma hipótese, sob pena de não ser possível

enunciar, decidir nada, caso não se esteja decidindo sobre alguma

hipótese... A interpretação é fruto dessa atividade de cotejo da norma

com o fato ou caso hipotético, e com o próprio valor, aqui substituído

pelo princípio. Isso porque não se consegue interpretar em abstrato. É

necessário olhar a norma e imaginar situações sobre as quais se passe

a emitir opiniões. É isto que permite a variedade muito grande de

interpretação. É porque muitas vezes o que está variando não é o

aspecto normativo, mas o aspecto fático. Pode haver divergência

numa interpretação num caso concreto, sobre o aspecto da

qualificação fática.

Cumpre anotar ainda que os valores não são passíveis de

concretização, no sentido de se elaborar um rol taxativo das hipóteses

de sua aplicação. E isso é assim por contemplarem eles, em si

mesmos, as mais variadas e amplas situações, dada sua abstratividade

exacerbada.177

177

BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª edição. São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 157-158.

72

Capítulo III – EXEMPLO DE APLICAÇÃO DA “ETICIDADE” COMO

INSTRUMENTO DE ESTABILIZAÇÃO NORMATIVA: AS NOVAS

TECNOLOGIAS DE VIGILÂNCIA E A MUTAÇÃO NORMATIVA DO

ARTIGO 62, I, DA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO NO

BRASIL

Neste capítulo demonstraremos a aplicação prática da “eticidade” como

instrumento de estabilização normativa frente à modificação de valores sociais. Tal

demonstração será realizada através da apreciação da mutação normativa do artigo 62,

I, da Consolidação das Leis do Trabalho no Brasil (dispositivo que afasta o direito de

percepção de horas extras trabalhadores que realizam atividade laboral externa

incompatível com controle da jornada de trabalho) frente à modificação do “regime de

visibilidade” cultuado pela sociedade brasileira, ocorrida através da incorporação das

novas tecnologias de transmissão de dados sem fio e de locação de objetos e pessoas

(principalmente através do sistema GPS – Global Position System-).

1 Espaço Ampliado. Conceito e características

Como ensinam Fernanda Bruno, Marta Kanashiro e Rodrigo Firmino em

recente estudo intitulado “Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e

identificação”178

, os parâmetros e os limites a partir dos quais estava a sociedade

habituada a ordenar os comportamentos de “ver” e de “ser visto” estão em plena

mutação, vez que as margens do visível ampliam-se e se modificam, o mesmo

ocorrendo em relação à forma de ser visto, graças a técnicas e instrumentos como as

tecnologias de geolocalização (como o GPS – Global Position System - e o GIS –

Sistema de Informações Geográficas), visualização miniaturizada e individualizada

das pequenas telas de celulares, palmtops e laptops, passando pelas câmeras de vídeo-

vigilância cada vez mais presentes tanto nos espaços públicos quanto privados, ou

ainda pelos discretos sensores e tecnologias que monitoram o espaço físico e o

178

BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo. Vigilância e visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010.

73

informacional, tornando sensíveis processos usualmente desapercebidos e criando o

que se convenciona chamar de “realidade ou espaço ampliados”, assim como formas

sutis de vigilância de dados179

.

A existência de “espaços ampliados” tem direta relação com os dispositivos

de vigilância, que participam ativamente desses múltiplos e concorrentes modos de

fazer ver e de ser visto na nossa sociedade, articulando tais modos de visibilidade com

procedimentos mais ou menos explícitos de monitoramento, identificação, controle,

coleta e produção de informações sobre os indivíduos e suas ações180

.

As tecnologias fundadas em dispositivos móveis (como telefones celulares,

smartphones, módulos GPS), redes telemáticas sem fio (Wi-Fi, Wi-Max, Bluetooth181

)

e sensores geraram uma mudança no regime de visibilidade antes existente, criando

um regime que se baseia não exclusivamente no espaço físico ou nos limites do

alcance do olho humano, mas também fundado no espaço informacional (constituído

por serviços e tecnologias baseados em localização que estão em franca expansão e

que possibilitam aliar localização, vigilância e mobilidades física e informacional -

capacidade de consumir, produzir e distribuir informação -)182

.

Se, antes de tais tecnologias, o regime de visibilidade (entendido como

forma pela qual “se vê e se é visto” na sociedade) baseava-se exclusivamente no

alcance do campo ocular, isto é, no alcance visual do olho humano, hoje tal regime se

179

BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo. Vigilância e visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010, p.7.

180

Idem, p.8. 181

Wi-Fi significa é uma marca registrada da Wi-Fi Alliance, que é utilizada por produtos certificados que pertencem à classe de dispositivos de rede local sem fios (WLAN) baseados no padrão IEEE 802.11. Wi-Max(Worldwide Interoperability for Microwave Access/Interoperabilidade Mundial para Acesso de Micro-ondas) trata-se de tecnologia de comunicação sem fio para redes metropolitanas. Bluetooth é uma especificação industrial para áreas de redes pessoais sem fio (Wireless personal area networks – PANs) que provê uma maneira de conectar e trocar informações entre dispositivos como telefones celulares, notebooks, computadores, impressoras, câmeras digitais e consoles de videogames digitais através de uma frequência de rádio de curto alcance globalmente não licenciada e segura. 182

LEMOS, André. Mídias locativas e vigilância. Sujeito inseguro, bolhas digitais, paredes virtuais e territórios informacionais. In BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo (org.). Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010, p.61.

74

baseia em “espaços ampliados”, que não se fundam no espaço físico ou nos limites do

alcance do olho humano, mas sim em espaço informacional (que é o resultado de

serviços e tecnologias baseados em localização e transmissão de dados). Sobre regimes

de visibilidade, vale transcrever ensinamento de Michel Foucault:

Cada sociedade tem seu próprio regime de verdades, sua própria

“política geral”: os tipos de discursos que suportam e quais são

considerados como verdadeiros; os mecanismos e os grupos que

permitem distinguir as posições verdadeiras das falsas, o modo como

as pessoas são sancionadas; as tecnologias e os procedimentos válidos

para a obtenção da verdade; o status dos encarregados de dizer o que é

considerado verdade.183

Se antes o cidadão somente percebia aquilo que naturalmente se encontrava

à mostra em seu campo visual, agora esse mesmo cidadão, sem qualquer necessária

evolução de seu sentido visual, vê de forma ampliada, vez que representações (sob a

forma de imagem, sons ou até mesmo sensações táteis) de uma realidade que lhe é

fisicamente distante (e seria inatingível naturalmente pela visão) lhe são apresentadas,

inclusive em tempo real e com altos graus de acurácia e fidedignidade, passando não

só o cidadão a ter acesso à tal realidade, mas também podendo com ela interagir.

Inaugura-se, portanto, um novo regime de visibilidade. Cabe, neste ponto do

desenvolvimento do raciocínio, transcrever o magistério de Fábio Duarte e Rodrigo

Firmino:

Se as câmeras de vigilância representam a cidade fragmentariamente

sem se constituir um campo de ação direta, os mapas

georreferenciados alimentados pelas imagens de satélite buscam a

compreensão do espaço em sua totalidade e em suas minúcias, e sua

compressão em uma representação extremamente codificada, onde

qualquer existência ou manifestação no espaço de origem será

“significada” apenas se suas características estiverem previamente

inscritas no código desse espaço informacional (...) uma vez que o que

interessa à análise informacional, assim, não é saber o que diz uma

mensagem, mas quantas dúvidas ela elimina – e nesses mapas a

existência de um signo implica que qualquer dúvida sobre a natureza

foi eliminada ao não ser filtrado pelos tamises do código constituinte

desse espaço.

183

FOUCAULT, Michel. La fonction politique de l’intellectuel (entrevista com P. Rabinow). Radical Philosophy, vol. 17, 1977, p. 12-14. Tradução nossa.

75

A alimentação constante e reconstituinte das imagens de satélite sobre

uma base informacional georreferenciada cria a “aura” de uma

espacialidade mais que abrangente, plena; a ilusão de que a

representação é “fidedigna” e supremamente descritiva, com aspectos

que não são vistos a olhos nus (temperatura da superfície, intensidade

de luminescência etc) cria um espaço mais completo que o próprio

espaço “vivido”: a hiperespacialidade. Tal ilusão descritiva é tamanha

que essa hiperespacialidade torna-se o campo exclusivo de análise e

de ações: movimentos populacionais, padrões de ocupações urbanas

ou análises socioeconômicas prescindem da “ida a campo”, e ações de

rearranjo urbanos têm decisões tomadas com referência à hiper

espacialidade codificada.184

Nesse sentido, deve ser fixado para regular apreciação científica, o conceito

de “espaço ampliado”, qual seja: representações, sob a forma de imagem, sons e até

mesmo de sensações táteis, de uma realidade que é fisicamente distante do cidadão

comum (isto é, realidade que lhe seria inatingível naturalmente pela visão), permitindo

ao cidadão não só ter efetivo acesso à essa realidade, como também com ela interagir.

No que se refere às características do novo regime de visibilidade, baseado

no conceito de “espaço ampliado”, ensina André Lemos que as mídias locativas, onde

localização e mobilidade significam possibilidades de produção de sentido no espaço e

nos lugares, são também instrumentos de controle, monitoramento e vigilância de

lugares, espaços e indivíduos enredados em bancos de dados moduláveis, sensores

ubíquos e onipresentes, redes sem fios fluidas e inteligentes, dispositivos de

localização, associando mobilidade e localização, podendo ser utilizada para monitorar

movimentos, vigiar pessoas e controlar ações no dia-a-dia.”185

. Não se trata mais de

fechar e imobilizar para vigiar, mas de deixar fluir o movimento, monitorando,

184

DUARTE, Fábio; FIRMINO, Rodrigo. Espaço, visibilidade e tecnologias: (Re)caracterizando a experiência urbana. In BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo (org.). Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010, p. 105.

185

LEMOS, André. Mídias locativas e vigilância. Sujeito inseguro, bolhas digitais, paredes virtuais e territórios informacionais. In BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo (org.). Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010, p.71.

76

controlando e vigiando pessoas, objetos e informações para prever consequências e

exercer domínio186

.

Tem-se, pois, como uma das principais características do novo regime de

visibilidade, a realização do monitoramento do comportamento de pessoas sem a

necessidade de fixar a elas um espaço físico próprio de vigilância, sendo que o “espaço

informacional” acompanha o ser vigiado independentemente do local físico onde se

encontre. E mais, o novo regime permite o efetivo controle do controlado à distância e

independentemente das características do espaço físico que ocupa quando da

realização de cada um de seus comportamentos.

O novo regime de visibilidade também cria um novo conceito de território,

o “território informacional”, constituído por áreas de controle de fluxo informacional

digital em uma zona de intersecção entre o ciberespaço (i.e. espaço cibernético,

caracterizado por representações geradas por instrumentos tecnológicos de última

geração) e o espaço urbano. No “território informacional” o acesso e o controle se

realizam a partir de dispositivos móveis e de redes sem fio, caracterizando-se como um

espaço movente, híbrido, formado pela relação entre o espaço eletrônico e o espaço

físico187

. Para demonstração, utilizamos exemplo trabalhado por André Lemos: o lugar

de acesso sem fio num parque por redes Wi-Fi é um território informacional, distinto

do espaço físico parque e do espaço eletrônico internet. Ao acessar a internet por essa

rede Wi-Fi, o usuário está num território informacional imbricado no território físico

(e político, cultural, imaginário etc) do parque, e no espaço das redes telemáticas.

Assim, o território informacional cria um lugar, dependente dos espaços físico e

eletrônico a que ele se vincula188

. É criada uma nova tensão de controle, logo um novo

território, informacional, criado por redes sem fio e dispositivos digitais nos lugares.

Posso, assim, ser monitorado, controlado ou vigiado num “café” se estiver usando o

186

LEMOS, André. Mídias locativas e vigilância. Sujeito inseguro, bolhas digitais, paredes virtuais e territórios informacionais. In BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo (org.). Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010, p.72. 187

LEMOS, André. A cidade e mobilidade. Telefones celulares, funções pós-massivas e territórios informacionais. In Matizes, Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Computação, Universidade de São Paulo, ano 1, no. 1, São Paulo, 2007, p. 128.

188

Ibidem, p. 128.

77

celular, o laptop, ou se houver um reader que acione a etiqueta RFID189

da minha

caneta190

.

Se de um lado o “território informacional” depende do “território físico,

tradicional”191

, de outro lado, conceitualmente, aquele é uma evolução deste. Entende-

se “território físico, tradicional” como “extensão da superfície terrestre”192

, “área certa

e delimitada da superfície da terra”193

, delimitado e fixo por si só. No contexto do

território físico, ou o cidadão encontra-se no interior do território ou no exterior do

território, diferentemente do que ocorre no contexto do território informacional, em

que o território acompanha o vigiado onde quer que o mesmo se encontre.

Laurent Beslay194

e Hannu Hakala195

introduzem, no texto intitulado

“Digital Territory: Bubbles”196

, o conceito de “bolha digital”, afirmando que o

território digital deve ser pensado em vários níveis, com permeabilidades

diferenciadas, sendo que bolhas informacionais podem evitar que informações

“pinguem” para fora desses níveis. Um primeiro território seria o pessoal (o corpo e a

189 Identificação por radiofrequência ou RFID é um método de identificação automática através de sinais de

rádio, recuperando e armazenando dados remotamente através de dispositivos denominados etiquetas RFID. Uma etiqueta ou tag RFID é um transpondedor, pequeno objeto que pode ser colocado em uma pessoa, animal, equipamento, embalagem ou produto, dentre outros. Contém chips de silício e antenas que lhe permite responder aos sinais de rádio enviados por uma base transmissora. Além das etiquetas passivas, que respondem ao sinal enviado pela base transmissora, existem ainda as etiquetas semipassivas e as ativas, dotadas de bateria, que lhes permite enviar o próprio sinal. São bem mais caras que do que as etiquetas passivas.

190 LEMOS, André. Op. Cit., p. 128.

191

Tal “dependência” se faz em razão de que o “território informacional” é representação do “território físico”. 192

DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. Volume IV. 4ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1975, p. 1547. 193

NUNES, Pedro. Dicionário de Tecnologia Jurídica. Volume II, 8ª edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1974, p. 1179.

194

Consultor de tecnologia da Autoridade Europeia para a Proteção de Dados, em Bruxelas, com pós-doutorado em Gestão Global de Riscos Tecnológicos e Crise pela Universidade de Paris, Sorbone. 195

Diretor de computação da Elektrobit Ltd, tendo já desenvolvido atividades junto ao “Centro de Pesquisa Técnica da Finlândia” na área de ferramentas de sistema móvel, soluções integradas e telemática para automóveis. 196

BESLAY, Laurent; HAKALA, Hannu. Digital Territory: Bubbles. 2009. Disponível em: <Http://cybersecurity.jrc.ec.europa.eu/docs/DigitalTerritoryBubbles.pdf>. Acesso em: 10. Jul.2011.

78

subjetividade), a casa é o segundo nível de isolamento e controle de fronteiras e o

espaço público o terceiro nível territorial, onde as pessoas negociam proximidade e

distanciamento. O design do território digital isolaria os três tipos de espaço,

protegendo o indivíduo, disponibilizando uma ferramenta que permite aos usuários

gerenciarem proximidades e distâncias entre si nesse espaço de inteligência ambiente,

no sentido social e legal, assim como no mundo físico197

. A imagem da bolha tem por

objetivo constituir uma camada de isolamento, de controle informacional, dando aos

usuários o poder sobre o que sai ou entra198

.

Como afirma André Lemos, conceito similar ao de “bolha digital” é de

“paredes digitais”, pensadas como sistemas que permitem que os usuários controlem

as suas pegadas digitais. Essas paredes virtuais atestam, como as bolhas digitais, a

nova territorialidade dos lugares como zona de controle informacional, de forma que o

controle entre as “bordas eletrônicas” que compõem os espaços de lugar devem

garantir a privacidade, o anonimato e a liberdade199

. Tanto as “bolhas” quanto as

“paredes” digitais surgem como instrumento de contenção do “território digital”,

evitando que o mesmo se torne espaço sem controle, local de liberdade ilimitada.

1.1 O regime de visibilidade como “valor” e fonte de “mutação normativa”

Tem-se como “regime de visibilidade” a forma pela qual “se vê ou se é

visto” na sociedade, que se caracteriza como a forma como certa sociedade considera

verdadeiro discurso baseado numa determinada imagem, numa determinada exposição

produzida a partir dos recursos tecnológicos disponíveis na respectiva época.

197

BESLAY, Laurent; HAKALA, Hannu. Digital Territory: Bubbles. 2009. Disponível em: <Http://cybersecurity.jrc.ec.europa.eu/docs/DigitalTerritoryBubbles.pdf>. Acesso em: 10. Jul.2011.

198

LEMOS, André. Mídias locativas e vigilância. Sujeito inseguro, bolhas digitais, paredes virtuais e territórios informacionais. In BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo (org.). Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010, p.84.

199

LEMOS, André. Mídias locativas e vigilância. Sujeito inseguro, bolhas digitais, paredes virtuais e territórios informacionais. In BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo (org.). Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre: Sulina, 2010, p.87.

79

Como já apontado anteriormente, se antes das tecnologias de

monitoramento, de transmissão de dados através de redes sem fio, o regime de

visibilidade baseava-se exclusiva ou preponderantemente no alcance do campo ocular

(isto é, no alcance visual do olho humano), hoje tal regime se baseia também em

“espaços ampliados”, que não se fundam no espaço físico ou nos limites do alcance do

olho humano, mas sim em espaço informacional (que é o resultado de serviços e

tecnologias baseados em localização e transmissão de dados).

Inequívoco, pois, que o “regime de visibilidade” é próprio de determinada

sociedade e de certo “momento histórico”, é um valor cultuado pela sociedade em

realidades fatuais que se apresentem e que, portanto, faz parte da experiência jurídica,

devendo, frente à “Eticidade”, incidir sobre os fatos normados, gerando a escolha de

uma das possibilidades semânticas do texto normativo interpretado (tal escolha terá

como vertente a incidência do “valor” ao fato concreto em análise) levando-se em

consideração a sua “elasticidade semântica” (a sua polissemia, capacidade de um

mesmo suporte físico referir-se a mais de um significado).

A mudança, numa sociedade, do regime de visibilidade é capaz de gerar

mutação normativa - entendida como modificação do conteúdo da norma jurídica, a

despeito da manutenção do enunciado prescritivo (texto legislativo) -, especialmente

naquelas normas cujos elementos baseiam-se na visibilidade200

(capacidade de ser ver

ou ser visto). A mutação normativa tem como principal instrumento a interpretação

jurídica.

Nesse sentido, importa grave equívoco a interpretação de texto legislativo

considerando “valor desatualizado” da sociedade e, mais especificamente, regime de

visibilidade já ultrapassado. Citado equívoco desnatura o direito, afasta as “soluções

jurídicas” impostas da experiência jurídica vivenciada.

200

A expressão “normas cujos elementos baseiam-se na visibilidade” é aqui utilizada para se referir a normas jurídicas cujo antecedente é formado pela descrição de um comportamento abstrato (proibido, obrigatório ou proibido) que deve ser objeto de fiscalização ou observação por terceira pessoa. Isto é, para a ocorrência do antecedente de tais normas jurídicas é necessária a ocorrência do evento “realização ou possibilidade de realização de fiscalização ou observação por terceiro”.

80

2 A mutação normativa do artigo 62, I, da CLT em função da mudança do regime

de visibilidade

Neste tópico dedicar-nos-emos à análise da mutação normativa sofrida

pelo inciso I do artigo 62 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em razão da

mudança de regime de visibilidade cultuado na sociedade atual e que é por demais

diverso do regime de visibilidade cultuado em 01 de maio de 1943 quando da

introdução da CLT (Decreto-Lei 5.452, de 1º de maio de 1943) no Direito Positivo

Brasileiro.

Para uma efetiva apreciação da mutação normativa do artigo 62, I, da CLT,

apresentaremos, como anteparo preparatório, a descrição do tratamento jurídico dado

pela Constituição Federal de 1988 e pela CLT à duração da jornada de trabalho, o que

nos permitirá uma efetiva análise sistemática da mutação normativa noticiada.

2.1 O contrato de trabalho e a jornada laboral

Importante destacar que o conteúdo a seguir é de caráter eminentemente

descritivo, objetivando apontar as principais características da normatização da

duração do trabalho no direito positivo brasileiro, daí a inexistência de preocupação

crítica, nesse momento, em relação ao conteúdo apontado.

No que se refere à duração da atividade dedicada pelo empregado ao

empregador, a doutrina destaca a existência de três institutos que, a despeito de serem

características de um mesmo objeto sob prismas diversos, merecem, todos, ser

apontados, quais sejam:

- jornada de trabalho: que é o lapso temporal diário em que o empregado se coloca à

disposição do empregador em virtude do respectivo contrato de trabalho, sendo a

medida principal do tempo diário de disponibilidade do obreiro em face de seu

empregador como resultado do cumprimento do contrato de trabalho que os vincula201.

Aliás, como destacado por Sergio Pinto Martins, a expressão “jornada” tem a sua raiz

201

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 2004, p. 831.

81

etimológica no vocábulo italiano giornatta, que significa dia, acrescentando-se que em

francês utiliza-se a expressão jour para significar “dia” e journeé para se referir à

“jornada”202. Em suma, originalmente a expressão “jornada de trabalho” refere-se ao

lapso de prestação de atividade laboral durante um determinado dia, o número de horas

diários de trabalho que o empregado presta ao empregador.

- duração do trabalho: que é o lapso temporal de trabalho ou disponibilidade do

empregado perante seu empregador em virtude do contrato de trabalho, considerados

distintos parâmetros de mensuração: dia (duração diária ou jornada), mês (duração

mensal) ou ano (duração anual)203.

- horário de trabalho: que se refere ao lapso temporal entre o início e o fim de certa

jornada laborativa, à delimitação do início e fim da duração diária de trabalho com os

respectivos dias semanais de trabalho e correspondentes intervalos intrajornadas.

Utilizaremos na presente tese os termos “jornada de trabalho” e “duração de

trabalho” como sinônimos, indicando período de tempo em que o empregado encontra-

se exercendo as suas atividades laborais junto ao empregador e/ou tempo à disposição

do empregador aguardando ordens. Já o termo “horário de trabalho” será por nós

utilizado como fixação de horários de início e término da prestação laboral.

No que se refere aos critérios para fixação da jornada de trabalho, aponta-se

a existência de 3(três) critérios básicos, quais sejam: “tempo efetivamente trabalhado”

(que considera como componente da jornada de trabalho apenas o tempo efetivamente

trabalhado pelo empregado, excluindo-se do cômputo da duração da jornada eventual

tempo à disposição do empregador aguardando ordens mas sem labor efetivo, qualquer

tipo de intervalo intrajornada, e paralisações da atividade empresarial que inviabilizem

a prestação laboral204), “tempo à disposição (critério que determina que na jornada de

trabalho inclui-se o tempo em que o empregado encontra-se à disposição do

202

MARTINS, Sergio Pinto. Direito do trabalho. 23ª edição. São Paulo: Atlas, 2007, p. 488. 203

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 2004., p.835. 204

Ibidem, p.838.

82

empregador a partir do momento em que o empregado chega à sede do empregador até

o momento em que dela se retira205. Como afirma Amauri Mascaro Nascimento, o

critério sob análise fundamenta-se na natureza do trabalho do empregado, isto é, na

subordinação contratual, de modo que o empregado é remunerado por estar sob a

dependência jurídica do empregador e não somente por que e quando está

trabalhando206). Finalmente, o critério do “tempo in itinere” (que computa a jornada de

trabalho desde o momento em que o empregado sai de sua residência para realização

da atividade laboral até quando a ela regressa ao fim da prestação laboral207).

Frente à exposição introdutória pode-se afirmar que o Direito Positivo

brasileiro adota, como constata Sergio Pinto Martins, um sistema híbrido das teorias

do tempo à disposição do empregador e do tempo in itinere (neste último somente para

a hipótese em que o local de trabalho seja de difícil acesso ou não servido por

transporte público e o empregador forneça a condução) para identificar a jornada de

trabalho do empregado208, como se verifica, por exemplo, da leitura do caput do artigo

4º e do parágrafo 2º do artigo 58, todos da CLT, abaixo transcritos:

CLT. Art. 4º. Considera-se como de serviço efetivo o período em que

o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou

executando ordens, salvo disposição especial expressamente

consignada.

CLT. Art. 58... §2º. O tempo despendido pelo empregado até o local

de trabalho e para o seu retorno, por qualquer meio de transporte, não

será computado na jornada de trabalho, salvo quando, tratando-se de

local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o

empregador fornecer a condução.

No que se refere à composição da jornada de trabalho, seguimos, nessa

descrição, o raciocínio de Maurício Godinho Delgado, para quem tal composição se

205

MARTINS, Sergio Pinto. Direito do trabalho. 23ª edição. São Paulo: Atlas, 2007, p. 489. 206

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho: história e teoria geral do direito do trabalho: relações individuais e coletivas do trabalho. 13ª edição. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 627.

207

MARTINS, Sergio Pinto. op.cit.. 23ª edição. São Paulo: Atlas, 2007, p.489. 208

Ibidem, p. 489.

83

faz por um “tronco básico” (cujo conteúdo é o lapso temporal situado nos limites da

duração do trabalho pactuada entre as partes, isto é, aquilo que a prática designa como

jornada normal de trabalho209) e por “componentes suplementares” (nesses incluindo-

se todos os demais períodos trabalhados – designados pela prática como jornada

suplementar ou extraordinária - ou apenas à disposição plena ou parcial do

empregador reconhecidos pelos critérios de composição da jornada impostos pelo

direito positivo pátrio, assim como os intervalos remunerados210).

Em relação à jornada normal de trabalho, a Constituição Federal Brasileira

vigente impõe como regra geral a duração de trabalho diária de 8(oito) horas e semanal

de 44 (quarenta e quatro) horas, conforme inciso XIII do artigo 7º constitucional, o que

é acompanhado, no que se refere à fixação diária, pelo artigo 58, caput, da CLT.

Seguem transcrições dos dispositivos comentados:

CF/88. Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além

de outros que visem à melhoria de sua condição social:

(...) XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas

diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de

horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção

coletiva de trabalho;

CLT. Art. 58. A duração normal do trabalho, para os empregados em

qualquer atividade privada, não excederá de 8(oito) horas diárias,

desde que não seja fixado expressamente outro limite.

É verdadeiro também que a própria Constituição Federal aponta exceção à

regra geral, como o faz em relação à duração normal da jornada de trabalho realizado

em turno ininterrupto de revezamento, conforme inciso XIV do artigo 7º

constitucional. Outras exceções também são feitas pela legislação infraconstitucional

como se verifica, por exemplo, em relação aos jornalistas profissionais e radialistas

(em que a jornada normal é de 5 horas diárias, conforme artigo 303 da CLT), aos

telefonistas sujeitos a horários variáveis (a quem é fixada jornada normal de 7 horas,

conforme artigo 229, caput, da CLT) e aos professores (para quem é fixada duração 209

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 2004, p. 846. 210

Idem.

84

normal de trabalho de 6 horas, como determina o artigo 318 da CLT). Vale transcrever

os enunciados prescritivos acima indicados:

CF/88. Art. 7º (...) XIV- jornada de seis horas para o trabalho

realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação

coletiva;

CLT. Art. 303. A duração normal do trabalho dos empregados

compreendidos nesta Seção211

não deverá exceder de 5(cinco) horas,

tanto de dia como à noite.

CLT. Art. 229. Para os empregados212

sujeitos a horário variáveis, fica

estabelecida a duração máxima de 7(sete) horas diárias de trabalho e

17(dezessete) horas de folga, deduzindo-se desse tempo 20(vinte)

minutos para descanso, de cada um dos empregados, sempre que se

verificar um esforço contínuo de mais de 3(três) horas.

CLT. Art. 318. Num mesmo estabelecimento de ensino, não poderá o

professor dar, por dia, mais de 4(quatro) aulas consecutivas, nem mais

de 6(seis) intercaladas.

No que se refere aos “componentes suplementares” da jornada de

trabalho, destaca-se o labor em lapso de tempo superior à jornada-padrão tida como

“normal” pelo direito positivo vigente, lapso esse intitulado pela legislação, pela

doutrina e pela jurisprudência como “serviço extraordinário” ou “jornada

extraordinária” e a que a Constituição Federal fixa remuneração diferenciada de, no

mínimo, 50% superior ao valor da hora normal, conforme texto do inciso XVI do

artigo 7º constitucional abaixo transcrito:

CF/88. Art. 7º (...) XVI- remuneração do serviço extraordinário

superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal;

E mais, a legislação infraconstitucional afasta a incidência de normas

referentes à duração do trabalho e à imposição de pagamento por serviço

extraordinário a atividades cuja realização não seja controlável pelo empregador. Daí

surgindo classificação das jornadas de trabalho em Controláveis e Não-

211

Trata-se da Seção XI do Capítulo I do Título III da CLT, que trata dos “jornalistas profissionais”. 212

O referido dispositivo refere-se àqueles que trabalham em atividade de Telefonia, de Telegrafia Submarina e Subfluvial, de Radiotelegrafia e Radiotelefonia.

85

Controláveis213, pedindo-se vênia para transcrição, nesse ponto, do magistério de

Mauricio Godinho Delgado:

A presença ou não de controle e fiscalização pelo empregador é...

um marco distintivo fundamental entre as jornadas laborativas

obreiras. Em consequência, o Direito do Trabalho diferencia entre

jornadas controladas e não controladas. As primeiras (jornadas

controladas), em que a prestação do trabalho é submetida a efetivo

controle e fiscalização do empregador, podem ensejar a prestação de

horas extraordinárias, caso evidenciada a extrapolação da fronteira

temporal regular da jornada padrão incidente sobre o caso concreto.

As segundas (jornadas não controladas), em que a prestação do

trabalho não é submetida a real controle e fiscalização pelo

empregador, não ensejam o cálculo de horas extraordinárias, dado que

não se pode aferir sequer a efetiva duração do trabalho no caso

concreto.214

A regra geral, no Direito brasileiro, é que são controladas as

jornadas laborativas do empregado. E isso é lógico, à medida que

incide em benefício do empregador um amplo conjunto de

prerrogativas autorizadoras de sua direção, fiscalização e controle

sobre a prestação de serviços contratada (art. 2º, caput, CLT). Nesse

quadro, presume-se que tal poder de direção, fiscalização e controle

manifestar-se-á cotidianamente, ao longo da prestação laboral, quer no

tocante à sua qualidade, quer no tocante à sua intensidade, quer no

tocante à sua frequência.215

A ordem jurídica reconhece que a aferição de uma efetiva jornada de

trabalho cumprida pelo empregado supõe um mínimo de fiscalização e

controle por parte do empregador sobre a prestação concreta dos

serviços ou sobre o período de disponibilidade perante a empresa. O

critério é estritamente prático: trabalho não fiscalizado nem

minimamente controlado é insuscetível de proporcionar a aferição da

prestação (ou não) de horas extraordinárias pelo trabalhador. Nesse

quadro, as jornadas não controladas não ensejam cálculo de horas

extraordinárias, dado que não se pode aferir sequer a efetiva prestação

da jornada padrão incidente sobre o caso concreto.216

213

Vale esclarecer que, apesar de muitos Autores utilizarem as expressões jornadas “controladas” e “não controladas”, como o faz, por exemplo, Mauricio Godinho Delgado na sua obra “Curso de Direito do Trabalho”, optamos pela utilização dos termos “controláveis” e “não controláveis”, vez entendermos que o regime jurídico especial conferido pelo artigo 62, inciso I, da CLT leva em consideração à impossibilidade de controle da jornada de trabalho (isto é, a características da jornada não ser controlável) e não simples faculdade do empregador em controlar ou não controlar a jornada desenvolvida pelo obreiro. 214

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 2004, p. 872. 215

Ibidem, p. 873. 216

Ibidem, p. 874.

86

Quanto à previsão normativa, em caráter de exceção, de jornada não

controlável, a CLT prevê duas hipóteses específicas no seu artigo 62 da CLT, quais

sejam: a hipótese de “empregados que exercem atividade externa incompatíveis com a

fixação de horário de trabalho” e a situação dos daqueles exercentes de cargo de

confiança e, mais especificamente, “os gerentes, assim considerados os exercentes de

cargos de gestão, aos quais se equiparam ... os diretores e chefes de departamento ou

filial”, afastando tais empregados do regime de “Duração do Trabalho” fixado no

Capítulo II do Título II da CLT (compreendendo os artigos 57 a 75). Vale transcrição

do artigo 62 da CLT:

CLT. Art. 62. Não são abrangidos pelo regime previsto neste

Capítulo:

I- os empregados que exercem atividade externa incompatível com a

fixação de horário de trabalho, devendo tal condição ser anotada na

Carteira de Trabalho e Previdência Social e no registro de

empregados;

II- os gerentes, assim considerados os exercentes de cargos de gestão,

aos quais se equiparam, para efeito do disposto neste artigo, os

diretores e chefes de departamento ou filial.

Parágrafo único. O regime previsto neste Capítulo será aplicável aos

empregados mencionados no inciso II deste artigo, quando o salário

do cargo de confiança, compreendendo a gratificação de função, se

houve, for inferir ao valor do respectivo salário efetivo acrescido de

40%(quarenta por cento).

2.2 Análise histórica do enunciado prescritivo constante do inciso I do artigo 62

da CLT

Quando do início de vigência da Consolidação das Leis do Trabalho

(Decreto-Lei no. 5.452, de 1º de maio de 1943) tinha originalmente o artigo 62 a

seguinte redação:

CLT. Art. 62. Não se compreendem no regime deste Capítulo:

a) os vendedores pracistas, os viajantes e os que exercerem, em geral,

funções de serviço externo não subordinado a horário, devendo tal

condição ser, explicitamente, referida na carteira profissional e no

87

livro de registo de empregados, ficando-lhes de qualquer modo

assegurado o repouso semanal;

b) os vigias, cujo horário, entretanto, não deverá exceder de dez horas,

e que não estarão obrigados à prestação de outros serviços, ficando-

lhes, ainda, assegurado o descanso semanal;

c) os gerentes, assim considerados os que investidos de mandato, em

forma legal, exerçam encargos de gestão, e, pelo padrão mais elevado

de vencimentos, só diferenciem aos demais empregados, ficando-lhes,

entretanto, assegurado o descanso semanal;

d) os que trabalham nos serviços de estiva e nos de capatazia nos

portos sujeitos a regime especial.

Em 17 de maio de 1985 foi publicada a Lei Federal Ordinária 7.313/85, que

suprimiu a original alínea “b” da redação original, determinando a renumeração das

demais alíneas do dispositivo que, então, passou a ter a seguinte redação:

CLT. Art. 62. Não se compreendem no regime deste Capítulo:

a) os vendedores pracistas, os viajantes e os que exercerem, em geral,

funções de serviço externo não subordinado a horário, devendo tal

condição ser, explicitamente, referida na carteira profissional e no

livro de registo de empregados, ficando-lhes de qualquer modo

assegurado o repouso semanal;

b) os gerentes, assim considerados os que investidos de mandato, em

forma legal, exerçam encargos de gestão, e, pelo padrão mais elevado

de vencimentos, só diferenciem aos demais empregados, ficando-lhes,

entretanto, assegurado o descanso semanal;

c) os que trabalham nos serviços de estiva e nos de capatazia nos

portos sujeitos a regime especial.

Em 27 de dezembro de 1994 foi publicada a Lei Federal Ordinária 8.966/94

que, revogando a redação anterior do artigo 62 da CLT, inaugurou nova redação, com

o seguinte conteúdo:

88

CLT. Art. 62. Não são abrangidos pelo regime previsto neste

Capítulo:

I- os empregados que exercem atividade externa incompatível com a

fixação de horário de trabalho, devendo tal condição ser anotada na

Carteira de Trabalho e Previdência Social e no registro de

empregados;

II- os gerentes, assim considerados os exercentes de cargos de gestão,

aos quais se equiparam, para efeito do disposto neste artigo, os

diretores e chefes de departamento ou filial.

Parágrafo único. O regime previsto neste Capítulo será aplicável aos

empregados mencionados no inciso II deste artigo, quando o salário

do cargo de confiança, compreendendo a gratificação de função, se

houver, for inferir ao valor do respectivo salário efetivo acrescido de

40%(quarenta por cento).

Do quanto acima exposto, importante é a constatação de que o não

enquadramento dos “trabalhadores externos” no regime jurídico de controle de jornada

de trabalho e pagamento de horas extraordinárias sempre fez parte do conteúdo do

artigo 62 da CLT, desde o seu nascedouro, a despeito das modificações legislativas

realizadas em 1985 e 1994, havendo, no entanto, com a redação lavrada pela Lei

8.966/94, a qualificação da atividade externa como “incompatível com a fixação de

horário” em substituição à anterior expressão “não subordinado a horário”.

A modificação do qualificativo do trabalho externo para efeito de não

enquadramento no regime jurídico de horas extras (de “não subordinado a horário”

para “incompatível com a fixação de horário”) gerou uma maior vinculação ao

“regime de visibilidade”. Mais especificamente, por “não subordinado a horário”

podemos compreender situação em que, independentemente do motivo, a jornada de

trabalho do empregado não é controlada pelo empregador, ainda que fosse esta

controlável, fiscalizável, considerando-se como “direito potestativo”217

do empregador

a decisão de controlar ou não a jornada de trabalho. Nessa qualificação histórica do

“trabalhador externo”, a possibilidade ou impossibilidade de fiscalização e controle da

217

A expressão “direito potestativo” é aqui tratada sob o conceito de direito subjetivo sobre o qual não cabe contestação, caracterizando-se como prerrogativa jurídica de impor a outrem, unilateralmente, a sujeição ao seu exercício.

89

jornada de trabalho não é uma referência para o enquadramento do caso concreto ao

dispositivo legal de exceção. Já sob o manto do adjetivo “incompatível com o controle

de jornada”, o foco do enquadramento normativo afasta-se do exercício de mero

direito potestativo do empregador e passa a ser a possibilidade ou impossibilidade

fática do empregador fiscalizar e controlar a jornada realizada externamente pelo

empregado, daí a absoluta necessidade de compatibilidade do conteúdo normativo com

o regime de visibilidade (valor incidente) cultuado pela sociedade no momento da

subsunção normativa.

2.3 A elasticidade semântica do enunciado contido no artigo 62, I, da CLT e as

hipóteses interpretativas

Como afirma Gregorio Robles, o texto jurídico é um texto prescritivo, o que

significa, sobretudo, que o texto jurídico está dotado, como uma totalidade, de uma

função pragmática determinada que o converte num conjunto de mensagens, cujo

sentido intrínseco é dirigir, é orientar, é regular as ações humanas218

. Assim, não se

poderia iniciar o procedimento de interpretação do artigo 62, I, da CLT, senão através

de sua análise gramatical que tem a característica de ser ponto de início da atividade

interpretativa, valendo transcrição do pensamento de Tercio Sampaio Ferraz Junior

sobre tal técnica interpretativa:

Quando se enfrenta uma questão léxica, a doutrina costuma falar em

interpretação gramatical. Parte-se do pressuposto de que a ordem das

palavras e o modo como elas estão conectadas são importantes para

obter-se o correto significado da norma. Assim, dúvidas podem existir

quando a norma conecta substantivos e adjetivos ou usa pronomes

relativos. Ao valer-se da língua natural, o legislador está sujeito a

equivocidades que, por não existirem nessas línguas regras de rigor

(como na ciência), produzem perplexidades... É óbvio que as

exigências gramaticais da língua, por si, não resolvem essas dúvidas.

A análise das conexões léxicas, por uma interpretação dita gramatical,

não se reduz, pois, a meras regras da concordância, mas exige regras

de decidibilidade... No fundo, pois, a chamada interpretação

218

ROBLES, Gegorio. O direito como texto: quatro estudos de teoria comunicacional do direito. Tradução de Roberto Barbosa Alves. Barueri: Manole, 2005, p. 29.

90

gramatical tem na análise léxica apenas um instrumento para mostrar e

demonstrar o problema, não para resolvê-lo219

.

Procedendo-se à técnica gramatical de interpretação do enunciado

prescritivo constante do inciso I do artigo 62 da CLT (CLT. Art. 62. Não são abrangidos

pelo regime previsto neste Capítulo: os empregados que exercem atividade externa

incompatível com a fixação de horário de trabalho, devendo tal condição ser anotada na

Carteira de Trabalho e Previdência Social e no registro de empregados;), explorando-se, em

especial, a pluralidade semântica dos termos “incompatível” e “fixação de horário de

trabalho” extraem-se as seguintes hipóteses interpretativas:

a) Estão afastados do direito à percepção de eventuais horas extraordinárias e adicional

noturno todos os empregados que exercem atividade externamente (fora do território

físico do estabelecimento do empregador) e não se encontram submetidos a controle

de horário, independentemente da possibilidade ou não de efetivo controle de jornada,

vez que, em relação à atividade externa, a realização de fiscalização da jornada de

trabalho é faculdade do Empregador;

b) Estão afastados do direito de percepção de eventuais horas extraordinárias e

adicional noturno todos os empregados que exercem atividade externamente (fora do

território físico do estabelecimento do empregador), sem que haja a possibilidade

concreta do empregador realizar, in loco (isto é, fisicamente, através da interação

direta entre a imagem real do ambiente de trabalho e o órgão da visão do Empregador

ou de preposto seu) e a qualquer momento, a fiscalização da atividade laboral

desempenhada pelo Empregado;

c) Estão afastados do direito de percepção de eventuais horas extraordinárias e

adicional noturno todos os empregados que exercem atividade externamente (fora do 219

FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 5ª edição. São Paulo: Atlas, 2007, p. 289-290.

91

território físico do estabelecimento do empregador), sem que haja a possibilidade

concreta do Empregador realizar, a qualquer momento, in loco (isto é, fisicamente,

através da interação direta entre a imagem real do ambiente de trabalho e o órgão da

visão do Empregador ou de preposto seu) ou através de sistemas que ofereçam “espaço

ampliado” que permitam não só a identificação do empregado no exercício de sua

atividade laboral, como também a verificação da qualidade e da quantidade do serviço,

a transmissão de ordens e a verificação do cumprimento de ordens.

Apresentadas as hipóteses interpretativas do dispositivo em análise, é de se

apreciar cada uma dessas hipóteses frente às demais técnicas e princípios

interpretativos.

2.4 Da relação entre a norma jurídica oriunda do artigo 62, I, da CLT e os

Direitos Fundamentais contidos no artigo 7º, IX e XVI, da Constituição Federal

Como já exposto no capítulo I desta pesquisa, são Direitos Fundamentais de

Segunda Geração não só os direitos trabalhistas mínimos contidos nos incisos do

artigo 7º da Constituição Federal, como também as demais normas jurídicas que

regulam os direitos mínimos dos trabalhadores na relação de emprego constantes da

legislação infraconstitucional. Tem-se, pois, que a norma jurídica contida no artigo 7º,

XVI, da Constituição Federal220

, que assegura como direito de todos os trabalhadores a

percepção de horas extras (com um adicional de, no mínimo, cinquenta por cento) na

hipótese de prestação laboral em excesso ao módulo diário/semanal normal, é um

Direito Fundamental, possuindo, por corolário, as características de universalidade,

indivisibilidade e interdependência, historicidade e unidade, bem como se submete às

técnicas de interpretação típicas de tal gênero de normas jurídicas.

Dentre as limitações no procedimento de interpretação de enunciados

prescritivos introdutores de Direitos Fundamentais, já concluímos que se deve “excluir

220

Constituição Federal. Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: ... XVI- remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal;”

92

hipóteses interpretativas que criem limitação subjetiva à aplicabilidade da norma

jurídica, destinando a aplicação da norma jurídica somente a determinados sujeitos,

excluindo a aplicação sobre outros sujeitos que se encontrem na mesma situação

objetiva”, garantindo-se, dessa forma, a “universalidade” do direito fundamental.

Ora, o fato objetivo gerador do direito de percepção de horas extras ( que,

na verdade, é o antecedente221

da norma jurídica contida no artigo 7º, XVI, da

Constituição Federal) é a prestação de atividade laboral em excesso (em quantidade

superior aos limites legais tidos como “normais”), sendo, a priori, equivocado o

afastamento de tal Direito Fundamental a determinados sujeitos que, objetivamente,

praticaram o antecedente da norma jurídica sob análise. Merece igual raciocínio a

norma jurídica contida no artigo 7º, IX, da Constituição Federal222

, que assegura o

direito a adicional noturno.

O artigo 62, I, da CLT, ao prever o afastamento dos Empregados que

“exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalhos” do

regime jurídico do Capítulo II (“Da duração do trabalho”) do Título I (“Das normas

gerais de tutela do trabalho”) da Consolidação das Leis do Trabalho, que contém os

artigos 57 a 75, cria exceção à universalidade dos Direitos Fundamentais à percepção

de horas extraordinárias(art. 7º, XVI, da Constituição Federal) e de adicional noturno

(art. 7º, IX, da Constituição Federal), vez que os artigos 58 a 61 e 73, de aplicabilidade

afastada na hipótese do artigo 62, I, da CLT, referem-se, respectivamente, ao regime

de jornadas normal e extraordinária e ao trabalho noturno, respectivamente.

O enunciado prescritivo contido no artigo 62, I, da CLT enquadra-se na

classe dos “textos legais infraconstitucionais introdutores de normas jurídicas

limitadoras da aplicação objetiva de Direitos Fundamentais”, razão pela qual, frente à

universalidade e à busca da máxima efetividade dos Direitos Fundamentais, deve ser

interpretado restritivamente, limitando a idoneidade das hipóteses interpretativas

(surgidas frente à elasticidade semântica do texto normativo) àquelas que indiquem a

221

Sobre o conceito de “antecedente da norma jurídica”, remete-se o Leitor ao Capítulo I desta pesquisa. 222

Constituição Federal. Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: ...IX- remuneração do trabalho noturno superior à do noturno;”

93

não aplicação, num caso concreto específico, de determinado Direito Fundamental em

razão exclusiva de efetiva impossibilidade concreta de verificação quantitativa

(constatação da quantidade) e/ou verificação quantitativa (constatação da qualidade)

de fatos do mundo fenomênico capazes de se enquadrarem no antecedente de uma

norma jurídica introdutora de Direito Fundamental.

Especificamente em relação ao artigo 62, I, da CLT, somente há de se

considerar, para efeito da construção da norma jurídica, hipóteses interpretativas que

evidenciem, no mundo fenomênico, a efetiva impossibilidade de controle da jornada

de trabalho (isto é, a impossibilidade efetiva, em concreto, de verificação quantitativa

do fato do fato do mundo fenomênico no caso, tempo de prestação de atividade laboral

no exercício das obrigações inerentes à relação de emprego – que preenche o

antecedente da norma jurídica introdutora do Direito Fundamental de percepção de

horas extras). Fixamos, assim, entendimento de que qualquer norma jurídica

construída a partir do enunciado prescritivo do artigo 62, I, da CLT que se baseie em

hipótese interpretativa que não se enquadre como idônea (na forma acima apontada)

será materialmente inconstitucional.

2.5 Aplicação do princípio da unidade do Direito Positivo Brasileiro. Necessidade

de interpretação do inciso I do artigo 62 da CLT frente ao conteúdo das demais

normas jurídicas vigentes

Já tivemos a oportunidade de, em estudo anterior já publicado223, afirmar

que o direito positivo é um sistema, um conjunto de elementos que se inter-relacionam

e se harmonizam em razão de uma determinada referência, de um determinado valor.

Analisado como um sistema, o Direito Positivo abrange, como elementos

constitutivos, as normas jurídicas que se inter-relacionam não só pelo aspecto formal,

ante a obediência às regras de construção normativa, como também pelo aspecto

material, ante o respeito à regra da hierarquia das fontes do direito, onde aparece,

223

HERMIDA, Denis Domingues. As normas de proteção mínima da integridade física do trabalhador – e a sua proteção nos direitos individual e coletivo do trabalho. São Paulo: LTr, 2007.

94

como suprema, a Constituição Federal224, conforme princípio da supremacia da

Constituição225.

E são exatamente essas necessárias inter-relação e harmonização que nos

impedem de realizar uma interpretação levando em consideração tão somente o

aspecto gramatical do texto normativo, tão somente a letra crua e isolada do texto

normativo226. Frente a tais fundamentos, e na forma do princípio interpretativo da

unidade da Constituição227, passamos a fazer uma análise sistemática dos termos do

inciso I do artigo 62 da Constituição Federal, levando em consideração não só as

normas constitucionais como também as normas infraconstitucionais de potencial

influência na atividade interpretativa do citado dispositivo ante o tema do mesmo.

2.5.1 Os “Valores Sociais do Trabalho” e a “Dignidade da Pessoa Humana” como

fundamentos da República Federativa do Brasil e, consequentemente, das normas

jurídicas vigentes

Determina o artigo 1º da Constituição Federal Brasileira que “A República

Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do

Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como

fundamentos: (...) III – a dignidade da pessoa humana; IV- os valores sociais do

trabalho e da livre iniciativa;...”.

Não se pode deixar de destacar a importância da “dignidade da pessoa

humana” e dos “valores sociais do trabalho” na estrutura constitucional do Estado

224

HERMIDA, Denis Domingues. As normas de proteção mínima da integridade física do trabalhador – e a sua proteção nos direitos individual e coletivo do trabalho. São Paulo: LTr, 2007, p. 176.

225

Determina o princípio da supremacia da Constituição que, pelo fato da Constituição ser a norma superior do ordenamento jurídico, não se dá conteúdo à Constituição a partir das leis, mas destas a partir da Constituição. A forma a ser adotada para a descrição de conceitos deve operar sempre “de cima para baixo”, o que serve para dar efetiva segurança às conceituações jurídicas. 226

HERMIDA, Denis Domingues. Op. Cit., p. 176. 227

Por princípio da Unidade da Constituição entende-se a obrigação do intérprete de considerar a Constituição na sua globalidade e de procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar. Trata-se de uma consequência de uma visão sistêmica das normas constitucionais, em que todas elas são elementos de um mesmo sistema, harmonizando-se e se inter-relacionando.

95

brasileiro, definido como Estado Democrático de Direito pelo artigo 1º acima

transcrito parcialmente, que aponta tais institutos como uns dos fundamentos da

República Federativa do Brasil. A qualidade de “fundamento” do Estado brasileiro

somente pode, verdadeiramente, ser valorizada quando buscamos o real significado do

termo “fundamento” que, segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, é “base,

alicerce, razões em que se funda, razão, motivo”228. Assim, não há como se admitir,

seja política, seja juridicamente, qualquer ato jurídico229 praticado no Brasil que não

cumpra o requisito de reconhecer e proteger a dignidade da pessoa humana e os

valores sociais do trabalho e, partindo-se do princípio de que o funcionamento estatal

não depende exclusivamente dos atos da administração pública, todos os atos dos

cidadãos, em especial os caracterizados pela intersubjetividade (onde age o Direito),

devem, da mesma forma, zelar pela dignidade da pessoa humana e pelos valores

sociais do trabalho230. É de se acrescentar que a Constituição Federal, no caput de seu

artigo 170, abaixo transcrito, insere a “valorização do trabalho humano”, juntamente

com a “livre iniciativa” como fundamentos da ordem econômica nacional.

CF/88. Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do

trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos

existência digna, conforme os ditames da justiça social...

228

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 3ª edição, 1993, p. 413.

229

Sobre o conceito de ato jurídico, Marcos Bernardes de Mello afirma existirem os conceitos lato sensu e stricto sensu de ato jurídico, aquele como sendo “o fato jurídico cujo suporte fático tenha como cerne uma exteriorização consciente da vontade, dirigida a obter um resultado juridicamente protegido ou não-proibido e possível” e este (stricto sensu) como “fato jurídico que tem por elemento nuclear do suporte fático manifestação ou declaração unilateral de vontade cujos efeitos jurídicos são prefixados pelas normas jurídicas e invariáveis, não cabendo às pessoas qualquer poder de escolha da categoria jurídica ou de estruturação do conteúdo das relações jurídicas respectivas (Cf. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 115 e 135). Custódio da Piedade Ubaldino Miranda esclarece que quando se falar em ato jurídico sem qualquer outra designação complementar, tanto se pode querer significar uma simples atuação da vontade, um comportamento de que resultam certos efeitos jurídicos por exclusiva obra da lei, ainda que o seu autor os não tenha querido ou previsto, como se pode querer significar o negócio jurídico, que consiste numa declaração que exterioriza um certo conteúdo de vontade e mediante a qual o seu autor se propõe obter determinados efeitos que a lei dota de juridicidade (Cf. MIRANDA, Custódio da Piedade Ubaldino. São Paulo: Atlas, 1991, p. 21-22). Esclarece-se também que nesse trabalho utilizados o termo ato jurídico tanto como ato jurídico lato sensu quanto como ato jurídico stricto sensu ou negócio jurídico, envolvendo não só os atos de particulares, como também os estatais, inclusive aqueles referentes à produção normativa. 230

HERMIDA, Denis Domingues. As normas de proteção mínima da integridade física do trabalhador – e a sua proteção nos direitos individual e coletivo do trabalho. São Paulo: LTr, 2007, p. 41 e 42.

96

E, assim, claro que tais fundamentos são valores que devem ser

considerados na interpretação dos enunciados prescritivos vigentes no direito positivo

brasileiro. Passamos a seguir, de forma específica, a apreciar a dignidade da pessoa

humana e os valores sociais do trabalho, encontrando, de forma objetiva, o

significado de cada um deles para posterior aplicação na interpretação do atual

enunciado do artigo 62, I, da CLT.

2.5.1.1 A Dignidade da Pessoa Humana

Em nossa pesquisa intitulada “O direito à vida como limitação material à

negociação coletiva de trabalho” desenvolvida em sede de mestrado e publicada sob o

título “As normas de proteção mínima da integridade física do trabalhador – e a sua

proteção nos direitos individual e coletivo do trabalho”231, já desenvolvemos estudo

buscando o significado de tal princípio e a sua aplicabilidade interpretativa, apontando

a seguir os dados por nós coletados e as conclusões resultantes.

A inclusão do princípio da dignidade da pessoa humana nas Constituições é

tendência que tomou força no período pós-Segunda Guerra Mundial como forma de

responder às atrocidades nazistas que até hoje marcam a consciência humana,

reconhecendo o ser humano como o centro e o fim do direito. Essa informação

histórica é bastante relevante para constatarmos que a proteção da dignidade da pessoa

humana surge como uma resposta ao estigma da destruição humana patrocinada pelo

nazismo, que influenciará a conceituação do princípio em discussão. Ganha vulto no

mundo a importância da pessoa humana – expressão que melhor evoca os valores

éticos de que os temos indivíduo, cidadão, homem – como categoria filosófica porque

muitas vezes é o próprio valor do ser humano que está sendo posto em causa. Assim, a

pessoa humana é hoje considerada como o mais notável, senão raiz, de todos os

valores, devendo por isso mesmo e dentro de uma visão antropocêntrica, ser o objetivo

231

HERMIDA, Denis Domingues. As normas de proteção mínima da integridade física do trabalhador – e a sua proteção nos direitos individual e coletivo do trabalho. São Paulo: LTr, 2007.

97

final da norma jurídica, ser a base do Direito, revelando, assim, critério essencial para

conferir legitimidade a toda ordem jurídica232.

Se de um lado é incontestável a importância da dignidade da pessoa

humana, de outro há que se destacar a abstração que circunda o conceito desse

instituto, principalmente porque o artigo 1º da CF/88, a despeito de introduzi-lo como

fundamento do Estado brasileiro, não apresenta o seu conceito, deixando ao intérprete

essa função. Aliás, esse modelo de omissão é adotado pelos Constituintes de vários

Estados. Para tal constatação, basta leitura do artigo 3º da Constituição da República

Italiana (“Tutti cittadini hanno pari dignitá sociale e sono eguali davante allá

lege...”233), do artigo 1º da Constituição da República Portuguesa (“Portugal é uma

República soberana, baseada, entre outros valores, na dignidade da pessoa humana e

na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e

solidária”), do artigo 1º, item 1, da Constituição Alemã (“Die würde des Menschen ist

unantastbar. Si zu achten und zu scützen is verpflichtung aller staalichen Gewalt”234) e

do artigo 1ª, item 1, da Constituição Espanhola (“La dignidad de la persona, los

derechos inviolables que le son inherentes, el libre desarrolo de la personalidad, el

respeto a la ley y a los derechos de los demás son fundamento del orden político y de

la paz sociale”235).

Nesse sentido, cabe ao intérprete da Constituição a busca do real conteúdo

do princípio da dignidade da pessoa humana, não sendo fácil tal missão ante a

polissemia da expressão. Fernando Ferreira dos Santos apresenta a existência de

232

FAGUNDES JÚNIOR, José Cabral Pereira. Limites da ciência e o respeito à dignidade humana. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 271 .

233

Tradução nossa: “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são protegidos perante a lei...”. 234

Tradução nossa: “A dignidade do ser humano é intangível. Todos os poderes públicos têm a obrigação de a respeitar e a proteger.” 235

Tradução nossa: “a dignidade da pessoa humana, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito pela lei e pelos direitos dos outros são fundamentos da ordem política e da paz social.”

98

3(três) concepções da dignidade da pessoa humana: o individualismo, o

transpersonalismo e o personalismo, com as seguintes características236:

- o individualismo, que se caracteriza pelo entendimento de que cada homem,

cuidando dos seus interesses, protege e realiza, indiretamente, os interesses coletivos.

Seu ponto de partida é, portanto, o indivíduo. Trata-se de uma concepção liberalista

(individualismo burguês), onde os direitos fundamentais seriam inatos e anteriores ao

próprio Estado e impostos como limites à atividade estatal. Por essa concepção,

interpretar-se-á a lei com o fim de salvaguardar a autonomia do indivíduo,

preservando-o da autonomia do Poder Público. Num conflito entre o Indivíduo e o

Estado, privilegia-se o indivíduo.

- o transpersonalismo, que é uma concepção oposta ao individualismo, defendendo que

é realizando o bem de todos que se salvaguardam os interesses individuais. Inexistindo

harmonia espontânea entre o bem do indivíduo e o bem do todo, devem prosperar,

sempre, os valores coletivos. Nega-se, por essa concepção, a pessoa humana como

valor supremo e tem como consequência a tendência de, na interpretação do direito,

limitar-se a liberdade em favor da igualdade237.

- o personalismo, que rejeita as concepções individualista e coletivista, negando a

espontaneidade da harmonia entre indivíduo e sociedade. Busca a compatibilização

entre valores individuais e valores coletivos, partindo da distinção entre indivíduo e

pessoa. Se no individualismo exalta-se o homem abstrato, típico do liberalismo-

burguês, no personalismo, o indivíduo “não é apenas uma parte. Como uma pedra-de-

edifício no todo, ele é, não obstante, uma forma do mais alto gênero, uma pessoa, em

sentido amplo – o que uma unidade coletiva jamais pode ser”238.

236

SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. 2001. Disponível em: <http://jusnavegandi.com.br>. Acesso em: 22.jun. 2002.

237

Idem. 238

SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. 2001. Disponível em: <http://jusnavegandi.com.br>. Acesso em: 22.jun. 2002.

99

Importante, nesse momento, apontarmos uma modificação na nossa forma

de conceber o princípio da dignidade da pessoa humana. Mais especificamente,

quando da apresentação de nossa dissertação239 de mestrado junto ao Programa de Pós-

Graduação Stricto Sensu da PUC/SP, em fevereiro de 2006, entendíamos por uma

concepção de dignidade da pessoa humana concentrada no “individualismo”, como se

verifica do trecho abaixo transcrito, extraído da citada dissertação:

A despeito de opiniões diversas, entendemos que a concepção

individualista é a que melhor se compatibiliza com a dignidade da

pessoa humana prevista na CF/88. Manoel Gonçalves Ferreira Filho

relaciona a dignidade da pessoa humana como o reconhecimento de

que, para o direito constitucional brasileiro, a pessoa humana tem uma

dignidade própria e constitui um valor em si mesmo, que não pode ser

sacrificado a qualquer interesse coletivo240

.

Nesse sentido, o conceito de dignidade da pessoa humana aproxima-

se do direito que cada indivíduo tem de alcançar a própria

“felicidade”, não de simplesmente existir, mas de lhe ser garantida a

busca por uma existência feliz, como explica Luiz Alberto David

Araujo:

A vida em sociedade objetiva deve permitir que os indivíduos

encontrem sua felicidade, seu bem-estar. E, no caso do transexual, a

felicidade só poderá ser conquistada com a cirurgia para a mudança de

sexo, caso seja de seu interesse. Ao analisar os pedidos, portanto, o

Poder Judiciário deve interpretar a Constituição, conforme os

princípios constitucionais, especialmente o fundamento do Estado

Democrático de direito, que tem como objetivo assegurar a dignidade

da pessoa humana.241

Neste momento, em especial frente ao aprofundamento no estudo da Teoria

Tridimensional do Direito, entendemos a concepção “personalista” como a mais

adequada à caracterização da dignidade da pessoa humana. Expliquemos: a dignidade

da pessoa humana enquadra-se, na forma da Teoria Tridimensional, como um “valor”,

sendo que este não tem a sua raiz única e exclusivamente na individualidade exclusiva

239

HERMIDA, Denis Domingues. O direito à vida como limitação material à negociação coletiva de trabalho. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Dissertação de mestrado apresentada à banca examinadora em 16 de fevereiro de 2006, sob orientação da Dra. Carla Tereza Martins Romar.

240

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição do Brasil. Volume I. São Paulo: Saraiva, 1990, p.19.

241

ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional do transexual. São Paulo: Saraiva, 2003, p.105.

100

de cada ser humano, mas na coletividade. É a interação entre os interesses individuais

e os coletivos que, em última instância, fixa os “valores” que, juntamente com o fato e

a norma, constituirão a experiência jurídica em sua completude. Nesse sentido,

vincular-se um “valor” única e exclusivamente a um interesse individual exclusivo

seria efetivo equívoco, devendo-se construir o conceito de “dignidade da pessoa

humana” a partir da composição entre o individual e o coletivo. Nesse

desenvolvimento do raciocínio, vale transcrição de trecho de estudo realizado por

Viviane Machado de Paiva que, apreciando o princípio da dignidade da pessoa

humana frente ao personalismo destacado por Miguel Reale, conclui que:

É a dignidade que faz do homem um ser acima das coisas, dotado

de consciência racional e moral. Sendo assim, o Estado não pode se

colocar no mesmo plano que o indivíduo, nem limitá-lo aos mesmos

direitos e obrigações. Pois, “o dever resulta da necessidade de dar-se

significação prática ao exercício de um outro direito”242

. Nesse

sentido, o Estado existe em função das pessoas e não as pessoas em

função do Estado. (...)Pelas inúmeras dúvidas que surgem ao tentar-se

individualizar ou coletivizar a essência da dignidade humana é que

Miguel Reale constata a existência de três concepções, quais sejam, o

individualismo, transpersonalismo e personalismo.(...) Na última

concepção, o personalismo, a que melhor se encaixa em nosso

ordenamento jurídico, não existe uma preponderância entre o

indivíduo e o coletivo, e sim o reconhecimento do valor da pessoa

humana. “O indivíduo deve ceder ao todo, até e enquanto não seja

ferido o valor da pessoal, ou seja, a plenitude do homem enquanto

homem”243

. O que vale ressaltar, nesta concepção, é que não existe o

melhor para uma coletividade e nem para um indivíduo sozinho, mas

sim, o valor do indivíduo como pessoa fazendo tudo para uma vida

harmoniosa consigo mesma e com o próximo.

Com tudo isso, chega-se à conclusão que o importante é a

satisfação humana e que “todo ser dotado de vida é indivíduo, isto é:

algo que não se pode dividir, sob pena de deixar de ser”244

. Sendo

assim, o que prevalece é o livre arbítrio que cada indivíduo tem para

saber até onde os direitos do outro não excedem os seus próprios

limites. Pois, a própria dignidade humana é a limitação da vontade.245

242

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 15ª edição. São Paulo: Saraiva, 1994, p.276. 243

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 279. 244

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 32ª edição. São Paulo: Malheiros, 2009, p.194.

245

PAIVA, Viviane Machado de. A dignidade da pessoa humana. 2007. Disponível em:<www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=405>. Acesso em: 08.out. 2011.

101

2.5.1.2 Os “Valores Sociais do Trabalho” e a “Valorização do Trabalho Humano”

Como já apontado anteriormente, a valorização do trabalho é identificada

pela Constituição Federal precipuamente em 2(dois) panoramas:

- como fundamento do Estado brasileiro (art. 1º, IV, da CF/88) sob um enfoque social

caracterizado pela expressão “valores sociais do trabalho” e vinculado à necessidade

de composição com os valores da “livre iniciativa”;

- como fundamento da ordem econômica brasileira (art. 170, caput, da CF/88) sob

enfoque individual fundado na expressão “valorização do trabalho humano”.

Nosso foco é tornar, no máximo possível, objetivo o conteúdo desses

valores constitucionais, facilitando a sua aplicação no processo interpretativo-

normativo principalmente em relação ao dispositivo legal que discutimos na presente

pesquisa: o artigo 62, I, da CLT.

Partimos, a fim de alcançar o objetivo traçado, da relação entre “trabalho” e

“ser humano”, abeberando-nos nos ensinamentos de Orlando Teixeira da Costa no

sentido de que o Homem, defrontando-se com a natureza, conseguiu dominá-la para,

aproveitando-se da mesma, alcançar a sua subsistência e a satisfação de suas

necessidades, sendo que essa atividade de domínio do homem sobre a natureza é que

se constitui o “trabalho”. O trabalho, portanto, não passa de uma forma de dominação:

a dominação do homem sobre a natureza. Essa atividade humana importa no dispêndio

de energias e, consequentemente, em cansaço. Para amenizá-lo, o homem associou o

seu esforço ao de outros animais e constatou que de todos os seres vivos aquele que

mais lhe oferecia vantagens no trabalho era o seu semelhante, porque dispunha de

raciocínio, daí ter concebido uma estrutura social de dominação para poder satisfazer

às suas necessidades sem o dispêndio de energias próprias, que seriam supridas pela

subjugação de outros homens, e foi nessa manifestação mais primitiva do trabalho

subordinado que se encontra entranhada a etimologia da palavra “trabalho”, oriunda da

raiz latina trabs, trabis, que designava a trave ou carga que se impunha aos escravos

para obrigá-los ao serviço. Os povos mais ligados ao regime da escravidão buscaram

na raiz trabs, trabis, a denominação para o trabalho. Outros povos que associaram

102

mais frequentemente a atividade humana à força de animais irracionais, como o

cavalo, o jumento ou o boi, optaram por outra raiz latina – labor, laboris – associada

às atividades nobres, daí labour, em inglês, e lavoro, em italiano246.

Com o advento do cristianismo, portador de mensagem doutrinária de

respeito à dignidade da pessoa humana e de fraternidade universal, começou um lento

processo de aniquilamento da escravidão, apesar dela ter persistido e até se

incrementado com os descobrimentos marítimos. Evoluída a civilização, a

Organização Internacional do Trabalho, através das Convenções 29/1930 e 105/1957 e

das Recomendações 36/1930 e 136/1970, reprimiu o trabalho forçado, principalmente

pela citada Convenção 136/1970, que obrigou os Estados ratificadores a não fazerem

uso de nenhuma forma de trabalho forçado. Assim, hoje a escravidão é

internacionalmente condenada247.

Nos países em que a escravidão foi sendo aniquilada em razão dos escravos

adquirirem aos poucos a qualidade de “pessoa” e, consequentemente, a capacidade de

serem sujeitos de relações jurídicas, surgiu um novo regime de trabalho: a servidão,

caracterizada pela vinculação do servo à terra, não podendo dela ser desapossado, nem

abandoná-la. A condição de servo é hereditária, isto é, determinada pelo nascimento e

se transmite de geração em geração, sujeitando-se os servos aos poderes econômico e

político do senhor feudal, sendo aqueles uma fonte de rendimento e uma reserva

militar deste248.

Nos meados da Idade Média Europeia ocorre a transição para o trabalho

livre no âmbito das corporações de ofício, quando, então, o Homem trabalhador, que

até então trabalhava com exclusividade para o senhor da terra, passa a exercer sua

atividade profissional de forma organizada através de grêmios ou corporações

medievais, que associavam trabalhadores por conta própria e empresários de

trabalhadores por conta alheia, livres. Nesse sistema, a relação de trabalho não se

246

COSTA, Orlando Teixeira da. O direito do trabalho na sociedade moderna. São Paulo:Ltr, 1998, p.15. 247

Idem, p. 16 e 17. 248

Ibidem, p.17.

103

estabelece entre o trabalhador e o grêmio, mas entre o empresário e o trabalhador,

ambos componentes do grêmio. Com o tempo, as relações de trabalho individual nas

corporações transcenderam para os tipos coletivos de regulamentação, o que ocorreu

por meio do estabelecimento de uma hierarquia profissional e da instituição da

aprendizagem. O contrato de aprendizagem gremial conferia fortes poderes

disciplinares ao mestre sobre o aprendiz. A duração da aprendizagem era longa e, uma

vez concluída, o aprendiz alcançava o grau imediatamente superior, que era o de

oficial, e assim ocorrendo sucessivamente até alcançar o último escalão, que era o de

mestre, somente adquirido depois de rigoroso exame de aptidão249.

A corporação caracterizava-se como um grupo social auto-regulamentado,

vez que estabelecia a própria regulamentação das condições de trabalho. A

regulamentação, entretanto, era baixada pelo mestre e dela não participavam os

oficiais e muito menos os aprendizes. Com o passar do tempo, o caráter autônomo da

regulamentação vai perdendo consistência, à medida que se passa a exigir a sua

aprovação por órgãos públicos. A luta entre as corporações pela garantia de privilégios

levou esses organismos à crise que acabou por extingui-los250. Descreve, ainda,

Orlando Teixeira da Costa, que a gênese mais próxima da atual forma de trabalho

regulada pelo Direito do Trabalho decorreu da invenção da máquina, a ferramenta que

era utilizada pelo trabalhador foi substituída pela máquina, daí decorrendo a

concentração dos meios de produção. Ao mesmo tempo em que se operava essa

mudança, a produção aumentava e barateava, desestimulando as atividades meramente

artesanais, o que resultou na privação dos instrumentos de trabalho dos antigos

artesões, pois o custo da maquinaria só se tornou acessível a quem podia dispor de

capital vultoso. Concomitantemente, os proprietários das máquinas só puderam operá-

las recrutando mão-de-obra indispensável. Como, entretanto, essa mão de obra era

abundante, a contratação passou a ser feita preço vil, vez que sujeita às leis da oferta e

da procura, em que o trabalho humano é visto como uma mercadoria. As condições e

os locais de trabalho eram os piores possíveis, o que implicava verdadeira afronta à

249

COSTA, Orlando Teixeira da. O direito do trabalho na sociedade moderna. São Paulo:Ltr, 1998, p. 17. 250

Idem.

104

dignidade da pessoa humana do trabalhador e, com isso, o nível de vida do obreiro

reduziu-se a níveis nunca antes atingidos. A tudo isso o Estado assistia impassível,

como mero espectador encarregado de manter a ordem quando necessário, pois o seu

papel resumia-se a garantir o livre exercício da economia segundo os padrões liberais

vigentes à época251.

Havia a necessidade de proporcionar uma acomodação, em face da ausência

do Estado para resolver a chamada questão social emergente. Tal processo de

acomodação foi operado pelos próprios interessados, mediante a adoção de

procedimentos negociais capazes de solucionar o conflito existente em termos

razoáveis, e foi dessas negociações que resultaram as primitivas formas de pactuação

laboral coletiva, que acabaram por criar as primeiras normas jurídicas genuinamente

trabalhista, vez que aplicáveis a quem prestasse trabalho subordinado ou a quem o

recrutasse, daí surgindo o Direito do Trabalho. Com isso, estabeleceu-se um modus

vivendi amparado por um preceito ético, que era a melhoria das condições de vida dos

trabalhadores; uma preocupação, caracterizada pela proteção jurídica daqueles que se

apresentavam numa posição extremamente desvantajosa no contexto de uma relação; e

por uma técnica, consubstanciada na superação relativa da inferioridade econômica do

trabalhador, ante a superioridade econômica do patrão, por meio de uma forma de

compensação jurídica, que acabou por esboçar a função essencial do Estado junto às

relações de trabalho252.

É de se afirmar, frente à observação da realidade fática que nos aparece no

mundo atual, que a obtenção dos recursos econômicos necessários para o indivíduo

garantir a sua subsistência, bem como alcançar os seus mais diversos objetivos

materiais, ordinariamente tem como origem: o exercício pelo indivíduo de atividade

econômica em caráter individual ou em sociedade (isto é, sendo detentor dos meios de

produção), a prática de atividade laboral em caráter autônomo, sem vínculo

empregatício (em que, apesar de não ser o indivíduo detentor dos meios de produção,

251

COSTA, Orlando Teixeira da. O direito do trabalho na sociedade moderna. São Paulo:Ltr, 1998, p.18. 252

Ibidem, p. 18 e 19.

105

não há o preenchimento dos requisitos para a caracterização de relação jurídica

empregatícia) ou a manutenção de vínculo empregatício253. O que levará determinado

indivíduo a percorrer uma dessas alternativas de obtenção de recursos materiais serão,

entre outros, as oportunidades que lhe forem oferecidas, a vocação que lhe é inata ou

até mesmo a condição financeira a que se expõe. Tem-se, portanto, que,

independentemente de qualquer caráter enobrecedor do trabalho, o que leva o

indivíduo à sua prática é a necessidade de subsistência, de angariar recursos materiais

que, na sociedade atual, são absolutamente necessários não só à manutenção de sua

existência, mas também ao alcance de uma vida digna.

É esse mesmo trabalho, em especial aquele realizado como objeto de uma

relação jurídica empregatícia (que é a espécie de relação em que se foca esta pesquisa),

que pode ser, em razão da própria subordinação que o caracteriza, instrumento de

afronta à dignidade da pessoa humana do trabalhador. Isso porque, frente ao princípio

da livre iniciativa254 (que também é um dos fundamentos do Estado e da ordem

econômica brasileiros, conforme artigos 1º, IV, e 170, caput, ambos da Constituição

Federal), cabe ao empregador a determinação do processo de trabalho, isto é, o

conjunto de atos praticados com o objetivo de se realizar determinada tarefa, processo

esse que se desenvolve num posto de trabalho(local onde o trabalhador executa a sua

tarefa, bem como os componentes que formam a estrutura física do local e com os

253

Vínculo de emprego ou relação jurídica empregatícia são aqui considerados, na forma dos artigos 2o e 3o da CLT, como espécie do gênero relação de trabalho e corresponde à prestação de serviço subordinado por uma determinada pessoa, sendo tal elemento (subordinação) indissociável da relação de emprego, não se podendo esquecer dos demais requisitos para a sua formação, isto é, a habitualidade na prestação da atividade laboral, a necessária pessoalidade no exercício das atividades inerentes à relação, além da remuneração. 254

Livre iniciativa é aqui conceituada como a faculdade, daquele que pretende desenvolver ou já desenvolve uma atividade econômica, de não só escolher a atividade a ser realizada, como também de organizar essa atividade da forma que melhor lhe aprouver, obedecendo, é claro, os limites normativos impostos pelo direito pátrio, com o fito de alcançar os melhores resultados possíveis. A livre iniciativa não é absoluta, mas relativa, no sentido de que demais normas jurídicas limitam a extensão dessa liberdade, como, por exemplo, as normas de natureza trabalhista que garantem condições mínimas ao empregado no contrato de trabalho (dentre elas as constantes do artigo 7º da Constituição Federal), a necessária “valorização do trabalho humano” (conforme caput do artigo 170 da Constituição Federal que, inclusive, eleva à mesma condição de fundamentos da ordem econômica a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano, demonstrando efetivo objetivo do Constituinte em impor, na seara empresarial e trabalhista, uma efetiva harmonização entre esses dois valores que, a priori, poderiam se mostrar diametralmente opostos) e a imposição de que sejam respeitados os “valores sociais do trabalho” (que, conforme artigo 1º, IV, da Constituição Federal é um dos fundamentos do Estado brasileiro, também num mesmo grau de importância da “livre iniciativa”).

106

quais os obreiros interagem diretamente) mediante uma determinada organização do

trabalho (forma pela qual o trabalho é distribuído no tempo e a maneira pela qual a

prestação laboral deve ser executada, definindo-se quem faz o quê, como, quando,

onde e em que condições físicas, organizacionais e gerenciais), oferece ao trabalhador

certa condição de trabalho (são as condições físicas, químicas, biológicas e sociais a

que estão expostos os trabalhadores durante o processo do trabalho, em razão de uma

determinada organização do trabalho) e uma condição econômica (que é a resultante

da contraprestação econômica do empregador frente à atividade laboral prestada pelo

empregado num determinado lapso de tempo).

Ora, apresentados os conhecimentos preliminares referentes à natureza do

“trabalho”, formas de sua realização e a livre iniciativa como instrumento de fixação

do processo de trabalho dirigido ao empregado, sentimo-nos preparados para buscar o

sentido das expressões constitucionais “valores sociais do trabalho” e “valorização do

trabalho humano”, iniciando-se pela análise semântica que, por óbvio, não pode deixar

de apreciar o conteúdo das palavras “valor” e “valorização”.

Constam, no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa255, como

significados possíveis do suporte físico “valor”, dentre outros: “recebimento ou paga

em bens, serviços ou dinheiro por algo trocado”, “quantidade monetária equivalente a

uma mercadoria, em função de sua capacidade de ser negociada no mercado”, “

qualidade que confere a um objeto material a natureza de bem econômico, em

decorrência de satisfazer necessidades humanas e ser trocável por outros bens”, “

medida variável de importância que se atribui a um objeto ou serviço necessário aos

desígnios humanos e que, embora condicione o seu preço monetário, frequentemente

não lhe é idêntico”, “ determinação quantitativa obtida através de cálculo ou

mensuração”, “qualidade humana de natureza física, intelectual ou moral, que desperta

admiração ou respeito”, “reconhecimento, de um ponto de vista afetivo, da

importância ou da necessidade (de algo ou alguém)”. E, o termo “valorização”,

segundo a mesma edição, tem como significado “ato de valorizar”.

255

DICIONÁRIO HOAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. Versão eletrônica. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm>. Acesso em: 09.out. 2011.

107

Frente ao próprio princípio da unidade da Constituição, não devemos, no

ato de interpretação de dispositivo constitucional, deixar de levar em consideração os

demais suportes físicos que formam a Constituição Federal e, inclusive, seu

preâmbulo, onde consta:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia

Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado

a assegurar o exercícios dos direitos sociais e individuais, a liberdade,

a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça

como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem

preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem

interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,

promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da

República Federativa do Brasil.

Mostra-se absolutamente pertinente também, em razão da temática, a

apreciação da valorização do trabalho sob a égide dos objetivos fundamentais do

Estado brasileiro fixados no artigo 3º, além dos direitos sociais mínimos descritos no

artigo 6º e as necessidades básicas de que trata o artigo 7º, IV, todos da Constituição

Federal:

CF/88. Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República

Federativa do Brasil:

I- construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II- garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades

sociais e regionais;

IV- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,

cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

CF/88. Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a

moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à

maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma

desta Constituição.”

CF/88. Art. 7º. (...) IV- salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente

unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de

sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer,

vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes

periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua

vinculação para qualquer efeito;

108

Conjugando-se os objetivos do Estado brasileiro com os direitos sociais

mínimos que são, na forma da Constituição, garantidos a todo cidadão, e o próprio

princípio da dignidade da pessoa humana (cujo conteúdo já foi objeto de análise),

podemos extrair algumas conclusões preliminares, quais sejam:

- valorizar o “trabalho humano” é proibição de tratamento de tal atividade como

“coisa”, “como objeto”, afastando-se a condição de “escravização”, bem como

qualquer tipo de tratamento desumano ou degradante à figura do trabalhador,

assegurando-se a integridade física e mental;

- valorizar o “trabalho humano” é reconhecer, de um ponto de vista afetivo, a

importância e a necessidade da atividade laboral exercida pelo indivíduo;

- valorizar o “trabalho humano” é determinar a sua extensão, de forma quantitativa e

qualitativa, através de cálculo ou mensuração, com o fito de contraprestação justa.

Não se duvida que os “valores sociais do trabalho”, a que se refere o

artigo 1º, IV, da Constituição Federal tratam do trabalho humano (agregando-se ao seu

conteúdo o quanto já exposto em relação à “valorização do trabalho humano”) que,

além de dever ser valorizado frente ao indivíduo que o exerce, também deve destinar-

se ao alcance daquilo que a sociedade é capaz de extrair da atividade laboral, dentre

outros:

- realização dos direitos sociais mínimos previstos nos artigos 6º e 7º, IV, da

Constituição Federal, a saber: educação, saúde, moradia, lazer, segurança, previdência

social, higiene, alimentação, vestuário e transporte;

- a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, compreendendo-se, nesse

ponto, justiça e solidariedade como proibição de exploração do ser humano, de sua

exposição e utilização como objeto, assim como a imposição de atividade ativa, não só

pelo Poder Publico, mas também por toda a coletividade, no sentido de colaboração

mútua entre todos os membros da sociedade, a fim de se construir a sociedade livre

que a Constituição Federal pretende;

109

- o desenvolvimento nacional, sendo o trabalho juntamente com o capital as válvulas

propulsoras do desenvolvimento, seja econômico, seja social, da nação brasileira, deles

dependendo a realização do objetivo contido no artigo 3º, II, da Constituição Federal;

- a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das

desigualdades sociais e regionais, o que só pode ser efetivamente realizado através de

uma situação de pleno emprego em todas as regiões do país, com contraprestações

remuneratórias justas e plenas condições de trabalho; e

- promover o bem de todos, que é o principal objetivo do Estado, permitindo que todos

tenham os recursos materiais e sociais necessários ao alcance da própria felicidade.

No que se refere à valorização do trabalho no atual grau de

desenvolvimento de nosso raciocínio, importante é a transcrição do magistério de

Amauri Mascaro Nascimento em sua obra “Direito Contemporâneo do Trabalho”,

onde, analisando os diversos conceitos de justiça, busca apontar aquela que é

objetivada pelo direito do trabalho:

O direito do trabalho tem como fim a realização da justiça. As leis

trabalhistas são justas? Os estudos sobre o conceito de justiça são

antigos (Platão, 427-346 a. C) e sua polêmica com os sofistas a

célebre A República, na qual vincula à maneira como deve ser

organizado o Estado e compreendendo-a em caráter essencialmente

moral como virtude.

Compara o Estado a um organismo animal no qual haverá uma

relação harmônica entre os seus diferentes órgãos, cada qual

exercendo a função que lhe compete, sem se intrometer em funções de

outros órgãos. Assim como no indivíduo existem três faculdades – a

inteligência, que esclarece; a vontade, que obra; e os sentimentos, que

obedecem -, no Estado há três classes: os filósofos, que com sua

inteligência são destinados a mandar; os guerreiros, que com a força o

defendem; e os artesões, que devem nutrir o organismo social.

A justiça é compreendida também de outros modos:

a) como virtude específica do social, no qual se destaca a nota da

alteridade, que tem como princípio reitor a igualdade (Aristóteles,

384 – 322 a.C., Ética a Nicômaco) em suas duas espécies: a justiça

distributiva, segundo a qual cada um deve receber na proporção de seu

mérito, com o que igualdade exige proporcionalidade, e a justiça

corretiva ou equiparadora, tanto nas relações entre particulares (justiça

comutativa), com a equivalência de trocas, como na justiça social,

quando o juiz procede a esse tipo de equiparação;

110

b) como alteridade e igualdade (Santo Tomás de Aquino, 1225-1275),

sendo distributiva a justiça devida pela comunidade aos seus membros

e comutativa aquela em que os particulares se devem entre si;

c) como ideia reguladora permanente de harmonia na conduta social

(Stammler), valor absoluto e universal e ideia transcendente do nível

empírico da experiência, sendo comutativa a justiça de uma

comunidade de homens livres.

(...) Não há uniformidade na ideia de justiça. O direito do trabalho

tenta promover a realização da justiça social. A expressão vem do

jusnaturalismo, para a qual a sua realização leva em conta três

aspectos: as necessidades do trabalhador, as possibilidades do

empregador e o bem comum. O qualificativo social está associado à

imagem da dívida que tem a sociedade para aqueles que são chamados

excluídos e que vivem em nível de pobreza. No direito do trabalho, o

social refere-se aos trabalhadores e aos direitos que devem ter. Se por

justiça individual o que se deve entender é dar a cada um é que é seu,

justiça social é dar aos trabalhadores aquilo que é seu.256

Entendemos que a característica de ter o Direito do Trabalho o objetivo de

realização de “justiça social” no sentido de dar ao trabalhador aquilo que é dele, como

apontado por Amauri Mascaro Nascimento, é extraída da própria necessidade do

Direito do Trabalho (visto como divisão didática da ciência do direito e/ou como parte

específica do Direito Positivo pátrio) ter que cumprir os objetivos fixados ao Estado

brasileiro no artigo 3º da Constituição Federal.

Temos na “valorização do trabalho” sob o enfoque de determinação da sua

extensão, de forma quantitativa e qualitativa, através de cálculo ou mensuração, com o

fito de contraprestação justa, um elemento absolutamente importante na interpretação

dos enunciados prescritivos típicos do direito do trabalho e, mais especificamente, do

conteúdo do inciso I do artigo 62 da CLT. A proporcionalidade entre a extensão da

atividade laboral desenvolvida (pelo empregado) e a contraprestação remuneratória

(prestada pelo empregador ao empregado) é um dos instrumentos essenciais para

realização, na relação de emprego, da justiça social pretendida constitucionalmente,

daí entendermos que o caráter sinalagmático da relação de emprego é absolutamente

necessário, sob pena de inconstitucionalidade. O caráter sinalagmático da relação de

256

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Direito Contemporâneo do Trabalho. 1ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 35 e 36.

111

emprego, no contexto ora apresentado, quer representar não somente a bilateralidade

do negócio jurídico257 que dá origem à relação, mas também à sua comutatividade, no

sentido de que para cada dever de uma parte há uma contraprestação recíproca da

outra. Somente uma efetiva comutatividade entre atividades laborais e

contraprestações dos empregados e dos empregadores é capaz de gerar o cumprimento

da “valorização do trabalho humano” e a consagração dos “valores sociais do

contrato”.

Portanto, frente a várias interpretações possíveis a um determinado

enunciado prescritivo de natureza trabalhista/empregatícia, há de se escolher, para

efetiva aplicação ao caso concreto, somente aquelas que sejam capazes de garantir

efetiva reciprocidade entre os interesses, inclusive e principalmente – frente ao

contexto da presente exposição – econômicos, do empregado e do empregador,

realizando-se efetiva interpretação conforme a Constituição e respeitando os princípios

interpretativos da unidade e da supremacia da Constituição. A respeito do instituto da

“interpretação conforme a Constituição”, vale transcrição dos ensinamentos de Lênio

Luiz Streck e Rui Medeiros:

A interpretação conforme a Constituição constitui-se em mecanismo

de fundamental importância para a constitucionalização dos textos

normativos infraconstitucionais. A verfassungskonforme Auslegung,

como é denominada na Alemanha, é um princípio constitucional,

justamente em face da força normativa da Constituição, no dizer de

Hesse, para quem, "segundo esse princípio, uma lei não deve ser

declarada nula quando pode ser interpretada em consonância com a

Constituição. Essa consonância existe não só então, quando a lei, sem

a consideração de pontos de vista jurídico-constitucionais, admite uma

interpretação que é compatível com a Constituição. No quadro da

interpretação conforme a Constituição, normas constitucionais são,

portanto, não só normas de exame, mas também normas materiais para

a determinação do conteúdo das leis ordinárias".

Entendo que, alçada à categoria de princípio, a interpretação

conforme a Constituição é mais do que princípio imanente da

Constituição, até porque não há nada mais imanente a um

257 De origem da palavra grega "synnalagmatikos", significa uma relação de obrigação contraída entre duas

partes de comum acordo de vontades, onde cada parte condiciona a sua prestação à contraprestação da outra. Além da bilateralidade, há destaque também para a comutatividade dessa relação, no sentido de efetiva proporcionalidade entre direitos e deveres das partes que caracterizam a relação sinalagmática.

112

Constituição do que a obrigação de que todos os textos normativos do

sistema sejam interpretados de acordo com ela. Desse modo, em sendo

um princípio (imanente), os juízes e tribunais não podem (continuar a)

(só)negar a sua aplicação, sob pena de violação da própria

Constituição.258

Veja-se o caso de uma decisão que estenda os direitos de uma

categoria profissional a outra ou que deixe de considerar como

incidente determinada alíquota de imposto; no primeiro caso houve

uma adição de sentido, que tanto pode receber chancela de

interpretação conforme como de uma sentença aditiva; no segundo

caso, houve nulidade, sem a redução do texto, de uma hipótese de

incidência, o que pode configurar uma sentença redutiva. Uma

questão, entretanto, parece indiscutível, qual seja, a de que processo

hermenêutico é sempre produtivo. Quando se adiciona sentido ou se

reduz o sentido (ou a própria incidência de uma norma), estar-se-á

fazendo algo que vai além ou aquém do texto da lei, o que não

significa afirmar que o Tribunal estará legislando. Pelo contrário. Ao

adaptar o texto legal à Constituição, a partir de diversos mecanismos

interpretativos existentes, o juiz ou tribunal estará tão-somente

cumprindo sua tarefa de guardião da constitucionalidade das leis. 259

A supremacia da Constituição, sua força normativa e seu papel de

topos conformador da atividade hermenêutica pode ser entendida,

segundo Medeiros, sob quatro diferentes funções: 1o) uma função de

apoio ou de confirmação de um sentido da norma já sugerido pelos

restantes elementos de interpretação; 2o) uma função de escolha entre

várias soluções que não se mostram incompatíveis com a letra da lei,

servindo para excluir um sentido possível e para optar por um outro

igualmente compatível com a letra da lei; 3a) uma função de correção

dos sentidos literais possíveis; 4o) uma função de revisão da lei

através da atribuição à Constituição de um peso decisivo e superior

aos demais elementos tradicionais de interpretação”260 261

258 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma nova crítica do direito. Porto Alegre:

Livraria do Advogado, 2002, p.443. 259

Ibidem, p. 444-445. 260

MEDEIROS, Rui. A decisão de inconstitucionalidade. Lisboa: Universidade Católica, 2000, p.301. Apud STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 445

. 261

STRECK, Lenio Luiz. Op. Cit., p. 445.

113

2.5.2 A inexistência de exceção constitucional expressa aos termos do artigo 7º,

XVI, da Constituição Federal além da hipótese do parágrafo único do mesmo

artigo 7o

Outro ponto que entendemos absolutamente necessário como condição

prévia para a interpretação do artigo 62, I, da CLT é a constatação de que o texto

constitucional especifica “padrões” para a duração normal de trabalho (conforme art.

7º, XIII e XIV, da CF/88, já transcritos e analisados no item”1” deste capítulo), bem

como “padrão mínimo” para a remuneração do “serviço extraordinário”(lapso de

tempo superior à jornada-padrão tida como “normal” para determinada categoria

profissional) no importe de 50%(cinqüenta por cento) superior ao valor da hora

trabalhada durante a “jornada normal”, como se verifica do inciso XVI do artigo 7º da

Constituição (também já transcrito e analisado no item “1” deste capítulo).

A exceção constitucional à aplicação da regra de que o labor realizado em

sobrejornada (serviço extraordinário) seja remunerado, inclusive, em valor superior ao

do “serviço normal” é taxativamente prevista no parágrafo único do artigo 7º da

Constituição Federal e dirigida exclusivamente à categoria dos trabalhadores

domésticos, como abaixo transcrito:

CF/88. Art. 7º. (...) Parágrafo único. São assegurados à categoria dos

trabalhadores domésticos os direitos previstos nos incisos IV, VI,

VIII, XV, XVII, XVIII, XIX, XXI e XXIV, bem como a sua

integração à previdência social.262

Muitos argumentariam que não caberia à Constituição Federal traçar

minúcias a respeito de exceções às regras gerais construídas pelo Constituinte,

cabendo tal tarefa ao legislador infraconstitucional na tarefa de regulamentar as

normas constitucionais. No entanto, frente ao quanto já exposto no item 2.5.1 deste

capítulo (incidência necessária do princípio da dignidade da pessoa humana e a

necessária “valorização do trabalho humano” e busca dos “valores sociais do

262

É de se observar que o parágrafo único do artigo 7º da Constituição Federal limita, do ponto de vista constitucional, os direitos trabalhistas dos empregados domésticos àqueles constantes dos incisos IV, VI, VIII, XV, XVII, XVIII, XIX, XXI e XXIV, excluindo de tal categoria a “jornada-padrão” do inciso XIII e o direito à percepção pelo serviço extraordinário previsto no inciso XVI.

114

trabalho”, gerando necessária comutatividade entre as atividades do empregado e a

contraprestação oferecida pelo empregador), entendemos que qualquer exceção

infraconstitucional à regra de direito à percepção de contraprestação pelo empregado

em razão de sobrejornada somente pode se justificar pela extraordinariedade do fato

excetuado. Nesse sentido, vale transcrição dos ensinamentos de Mauricio Godinho

Delgado sobre “jornada não controlada”:

A ordem jurídica reconhece que a aferição de uma efetiva jornada de

trabalho cumprida pelo empregado supõe um mínimo de fiscalização e

controle por parte do empregador sobre a prestação concreta dos

serviços ou sobre o período de disponibilidade perante a empresa. O

critério é estritamente prático: trabalho não fiscalizado nem

minimamente controlado é insuscetível de propiciar a aferição da real

jornada laborada pelo obreiro – por essa razão é insuscetível de

proporcionar a aferição da prestação (ou não) de horas extraordinárias

pelo trabalhador. Nesse quadro, as jornadas não controladas não

ensejam cálculo de horas extraordinárias, dado que não se pode aferir

sequer a efetiva prestação da jornada padrão incidente sobre o caso

concreto.

Critério prático – reconhecido pelo Direito, como síntese de lógica e

sensatez socialmente ajustadas. Não critério de eleição de

discriminação – que seria, de todo modo, inconstitucional (art. 5º,

caput, e 7º, XIII e XVI, CF/88).263

A contrario sensu, inexistindo “extraordinariedade” (caracterizada pela

efetiva impossibilidade de controle da jornada de trabalho, seja por absoluta

impossibilidade física, seja por inexistência de tecnologia de vigilância disponível no

mercado e acessível a todos os empregadores), resta absolutamente inconstitucional

qualquer exceção prevista em normas infraconstitucionais que afaste do trabalhador o

direito à percepção das horas extras efetivamente laboradas (a não ser na hipótese de

empregado doméstico, a que a própria Constituição Federal destina caráter de

exceção).

263

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 2004, p.874.

115

3 O atual regime de visibilidade e a sua influência na interpretação do inciso I do

artigo 62 da CLT

O avanço tecnológico impresso principalmente na última década, em

especial no que tange aos sistemas de localização de coisas e pessoas, e à transmissão

de dados à distância através de redes sem fio, criou uma nova forma dos seres

humanos verem e serem vistos, forma essa que conceitualmente denominou-se

“espaço ampliado”, que é caracterizado por representações sob a forma de imagens,

sons e até mesmo sensações táteis, de uma realidade que é fisicamente distante do

cidadão comum (isto é, realidade que lhe seria inatingível naturalmente pela visão),

permitindo ao cidadão não só ter efetivo acesso à essa realidade, como também com

ela interagir.

Houve, pois, na sociedade moderna, uma modificação no denominado

“regime de visibilidade”(entendido como forma pela qual “se vê e se é visto” na

sociedade) que, antes, baseava-se exclusivamente no alcance do campo ocular humano

frente a situações fáticas que se encontravam à sua volta, sendo que hoje tal regime se

baseia também em “espaços ampliados”, que não se fundam no espaço físico ou nos

limites do alcance do olho humano, mas, sim, em espaço informacional (que é o

resultado de serviços e tecnologias baseados em localização e transmissão de dados).

Integrando-se tal mudança do “regime de visibilidade” à experiência

jurídica, já fixamos que um “regime de visibilidade” é próprio de determinada

sociedade e de certo “momento histórico”, é um valor cultuado pela sociedade em

realidades factuais que se apresentem e que, portanto, fazem parte da experiência

jurídica, devendo, frente ao princípio da “Eticidade” (método de incidência, na

construção da norma jurídica – que envolve não somente a atividade legislativa de

produção de enunciados prescritivos, como também a atividade de interpretação com

vistas à aplicação da norma jurídica ao caso concreto – de valores incidentes na

realidade factual no momento da aplicação da norma jurídica), incidir sobre os fatos

normados gerando a escolha de uma das possibilidades semânticas do texto normativo

interpretado (sendo que tal escolha terá como vertente a incidência do “valor” ao fato

concreto em análise) levando em consideração a sua “elasticidade semântica”(a sua

116

polissemia, capacidade de um mesmo suporte físico referir-se a mais de um

significado).

A mudança, numa sociedade, do regime de visibilidade é capaz de gerar

“mutação normativa”264 (entendida como modificação do conteúdo de uma norma

jurídica, a despeito da manutenção do enunciado prescritivo – texto legislativo -, e que

tem como principal instrumento a interpretação jurídica) especialmente naquelas

normas cujos elementos baseiam-se na visibilidade. Assim, tendo em vista que a

norma extraível do inciso I do artigo 62 da CLT enquadra-se perfeitamente no

conjunto das “normas cujos elementos se baseiam na visibilidade” (e a expressão

“atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho”, que

entendemos ser o principal elemento do texto normativo em análise, não gera dúvida

quanto à essencialidade da “visibilidade” no ato de sua concretização), não há como se

deixar de concluir pela existência de mutação normativa do citado dispositivo.

Mais especificamente, a interpretação da expressão “atividade externa

incompatível com a fixação de horário de trabalho” não pode ser realizada sem levar-

se em consideração o novo “regime de visibilidade” baseado em “espaço ampliado”,

sob pena de incompatibilidade da norma construída com a experiência jurídica

vivenciada no momento de sua aplicação. Prosseguindo tal raciocínio, uma vez sendo

possível, através de “espaço ampliado”, o controle da atividade laboral realizada

externamente, não há como se cogitar o enquadramento do caso fático à norma de

exceção capsulada no inciso I do artigo 62 da CLT.

Com base no presente raciocínio, não há como prosperar a hipótese

interpretativa descrita sob a letra “b” do item “2.1” deste Capítulo (“Estão afastados do

264

O conceito de “mutação normativa” apresentado por nós nesse contexto é uma generalização (com o objetivo de aplicabilidade em qualquer espécie de norma jurídica e não exclusivamente às constitucionais) do instituto da “mutação constitucional” conceituado como nada mais que “as alterações semânticas dos preceitos da Constituição, em decorrência de modificações no prisma histórico-social ou fático-axiológico em que se concretiza a sua aplicação... são decorrentes... da conjugação da peculiaridade da linguagem constitucional, polissêmica e indeterminada, com os fatores externos, de ordem econômica, social e cultural, que a Constituição – pluralista por antonomásia -, intenta regular e que, dialeticamente, interagem com ela, produzindo leituras sempre renovadas das mensagens enviadas pelo constituinte.” (Cf. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 129-130).

117

direito de percepção de eventuais horas extraordinárias e adicional noturno todos os

empregados que exercem atividade externamente -fora do território físico do estabelecimento

do empregador-, sem que haja a possibilidade concreta do Empregador realizar, in loco - isto

é, fisicamente, através da interação direta entre a imagem real do ambiente de trabalho e o

órgão da visão do Empregador ou de preposto seu - e a qualquer momento, a fiscalização da

atividade laboral desempenhada pelo Empregado;”).

É de se acrescentar, ainda, que, sendo possível o “controle da jornada de

trabalho” através de “espaço ampliado”, restaria absolutamente inconstitucional

qualquer conclusão normativa no sentido de se afastar do empregado controlado o seu

direito à percepção de horas extras laboradas, sendo que tal conclusão resulta das

seguintes premissas já descritas neste Capítulo:

- frente ao princípio interpretativo da unidade da Constituição e, mais especificamente,

frente à necessária compatibilização do inciso I do artigo 62 da CLT com os “valores

sociais do trabalho”(art. 1º, IV, da CF/88) e com a “valorização do trabalho humano

(art. 170, caput, da CF/88), que, como já vimos, leva-nos à conclusão da absoluta

necessidade de, em regra, a relação jurídica empregatícia ser comutativa (no sentido de

que para cada atividade laboral do empregado deve haver a devida contraprestação

remuneratória do empregador);

- tendo em vista que a Constituição Federal especifica “padrões” para a duração

normal de trabalho (conforme art. 7º, XIII e XIV, da CF/88), bem como “padrão

mínimo” para a remuneração do “serviço extraordinário” (tido como lapso de tempo

superior à jornada padrão tida como “normal” para determinada categoria profissional)

no importe de 50%(cinquenta por cento) superior ao valor da hora trabalhada durante a

“jornada normal” (como se verifica do art. 7º, XVI, da CF/88), apontando como única

exceção de inaplicabilidade de tais dispositivos a categoria dos

“domésticos”(conforme art. 7º, parágrafo único, da CF/88) e que somente uma

“extraordinariedade” (no sentido de efetiva impossibilidade de controle da jornada de

trabalho, seja por absoluta impossibilidade física, seja por inexistência de tecnologia

de vigilância disponível no mercado e acessível aos empregadores) seria capaz de

118

permitir à legislação infraconstitucional criar exceções à percepção de horas extras

além daquela (exceção) prevista constitucionalmente.

No que se refere ao efetivo potencial de exercício de “Poder de Controle”

do empregador em relação à atividade externa do empregado, através de sistemas

informáticos de espaço ampliado, como, por exemplo, através de AVL [sigla que

representa a expressão ”Automatic Vehicle Location”, que se refere a um conjunto de

equipamentos e técnicas interrelacionadas que permite não só o rastreamento de um veículo

(isto é, o fornecimento e gerenciamento sistemático da posição e do estado do veículo, com

variados níveis de exatidão e intervalo de tempo265

), mas também o oferecimento de

informações em tempo real sobre todas as atividades realizadas pelo condutor no interior do

veículo e sobre as condições gerais do veículo)], softwares e equipamentos de

rastreamento de pessoas vinculados a aparelhos celulares, entre outros, que são

capazes de:

- de forma fidedigna e precisa, a localização, a qualquer momento, da pessoa

monitorada com o efetivo controle do cumprimento de rota pré-determinada;

- permitir a visualização do executante de atividade laboral em quaisquer dos

momentos da operação, vez que tal verificação pode ser realizada através de imagem

fotográfica obtida instantaneamente pelo sistema ou até mesmo através de vídeo

transmitido em tempo real;

- manter comunicação com o executante da atividade laboral;

Ora, o “Poder de Controle” típico da relação jurídica empregatícia

caracteriza-se como conjunto de prerrogativas do empregador dirigidas a propiciar o

acompanhamento contínuo da prestação do trabalho e a própria vigilância efetiva,

vinculando não só o caráter fiscalizatório (acompanhamento contínuo das atividades

do empregado), como também a efetiva capacidade do empregador interagir com o

265

RODRIGUES, Marcos et alli. Rastreamento de Veículos. São Paulo: Oficina de Textos, 2009, p. 15.

119

empregado e coagi-lo no sentido de cumprimento efetivo dos comandos externados266.

Em relação ao “rastreamento e monitoramento” permitidos através dos modernos

sistemas sem fio de comunicação, rastreamento e envio de dados, verificam-se:

- efetivo poder de fiscalização das atividades do empregado, permitindo a verificação

da sua identidade, da sua real localização e dos movimentos realizados;

- efetivo poder de comunicação entre o empregador e o empregado durante todo o

período de labor externo, seja através de contatos sonoros, seja através de mensagens

escritas, o que permite não só a transmissão de ordens a qualquer momento e em

tempo real, como também a reprimenda imediata pelo não cumprimento de eventual

ordem exteriorizada;

Tem-se, portanto, que através dos sistemas capacitadores de “espaço

ampliado” disponíveis atualmente no mercado brasileiro, e de acordo com o atual

estado da técnica de tais sistemas, é absolutamente possível ao empregador controlar a

frequência, o cumprimento de ordens e a qualidade do serviço do empregado com

atividade externa, não se justificando mais o afastamento do direito a horas extras a

essa categoria de empregados sob fundamento de enquadramento no inciso I do artigo

62 da CLT.

Eis a demonstração de como a “eticidade” é capaz de proceder à estabilização

normativa em Estados Democráticos de Direito.

266

Nesse ponto, afirma Amauri Mascaro Nascimento que “O poder de controle dá ao empregador o direito de fiscalizar o trabalho do empregado. A atividade deste, sendo subordinada e mediante direção do empregador, não é exercitada do modo que o empregado pretende, mas daquele que é imposto pelo empregador. A fiscalização é inerente ao poder diretivo e alcança, desde que razoável, o modo como o trabalho é prestado e o comportamento do trabalhador”. Cf. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Direito do Trabalho Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 344.

120

CONCLUSÃO

Frente ao problema apresentado e todos os pontos detalhadamente

apresentados nesta pesquisa, concluímos que se objetivando a manutenção da

democracia no sentido da compatibilidade das normas jurídicas com os valores

cultuados pela Sociedade, a normatividade concreta baseada na Teoria Tridimensional

do Direito de Miguel Reale instrumento eficaz de aplicabilidade dos enunciados

prescritivos existentes, vez ser capaz de promover o que denominamos “mutação

normativa”, tida como modificação do conteúdo de uma norma jurídica, sem a

alteração do enunciado prescritivo que lhe serve de fonte, o que ocorre graças à

“eticidade”(procedimento de incidência do “valor” ao fato gerando a escolha de uma

das possibilidades semânticas do texto normativo interpretado levando-se em

consideração a sua “elasticidade semântica”, realizando-se, assim, a experiência

jurídica nos moldes compatíveis com o pensamento tridimensional de Miguel Reale).

os quatro capítulos desta tese, concluímos que a “eticidade”, que é um método de

incidência, na construção da norma jurídica (que envolve não só a atividade legislativa

de produção de enunciados prescritivos, como também a atividade de interpretação

com vistas à aplicação da norma jurídica ao caso concreto), de valores incidentes na

realidade fatual(no momento da aplicação da norma jurídica) sob o prisma do fato a

ser normado e do sistema jurídico como um todo, permite a compatibilização de textos

normativos vigentes a novos valores cultuados pela sociedade em Estados

Democráticos de Direito

121

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