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A FAVOR DA ETNOGRAFIA

A Favor Da Etnografia

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A favor da Etnografia, 1995

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  • A FAVOR DA ETNOGRAFIA

  • Mariza Peirano A FAVOR DA ETNOGRAFIA Rio de Janeiro 1995

  • Copyright Mariza G.S. Peirano, 1995 Direitos cedidos para esta edio

    DUMAR DISTRIBUIDORA DE PUBLICAES LTDA.

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    Reviso

    TEMA PECHMAN

    Capa

    ALEX PEIRANO CHACN

    Apoio tcnico

    JULIO CEZAR MELATTI

    Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Braslia

    Peirano, Mariza

    P377A favor da etnografia / Mariza Peirano. Rio de Janeiro :

    Relume-Dumar, 1995.

    180 p.

    ISBN

    1. Antropologia. 2. Etnografia. 3. Teoria. I. Ttulo.

    CDD 390

    CDU 39

    Todos os direitos reservados. A reproduo no autorizada desta publicao,

  • por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violao da lei 5.988.

  • Le conformisme commence la dfinition Georges Braque

  • SUMRIO Introduo ................................................................................................. 9 Captulo 1: Os antroplogos e suas linhagens .......................................................... 13 Captulo 2: A favor da etnografia .............................................................................. 31 Captulo 3: As rvores Ndembu ................................................................................ 59 Captulo 4: Artimanhas do acaso ........................................................................... 119 Posfcio: Um ponto de vista ................................................................................ 135 Bibliografia ........................................................................................... 159 ndice onomstico ............................................................................... 175

  • Os ensaios que compem este livro foram antes publicados nas fontes indicadas:

    Captulo 1: `Os antroplogos e suas linhagens', Revista Brasileira de Cincias Sociais, ano 6, vol. 16: 43-50 (1991); Captulo 2: `A favor da etnografia', Anurio Antropolgico/92: 197-223 (1994); Captulo 3: `As rvores Ndembu: uma reanlise', Anurio Antropolgico/90: 9-64 (1993); Captulo 4: `Artimanhas do acaso', Anurio Antropolgico/89: 9-21 (1992).

  • INTRODUO Como fonte socialmente reconhecida do pensamento iluminista, at recentemente o ideal de se atingir um universalismo era associado Europa. `Para ns a Europa j o universal', nos disse Antonio Candido, seguindo a trilha de Mrio de Andrade e Srgio Buarque de Holanda, para ilustrar a referncia primeira da nossa vida intelectual que, natu-ralmente, duplicava a perspectiva dos europeus acerca de si prprios. Se existe, como muitos propagam, uma nova viso de mundo neste final de sculo, talvez um de seus aspectos mais interessantes e significa-tivos seja verificar que essa ordem mudou. Hoje a idia de uma universa-lidade desloca-se do antigo lugar e se complexifica; ela passa a incluir, no mnimo, o dilogo que surge do confronto de vrios pontos de vista. Este um dilogo novo, que inclui vozes anteriormente apagadas ou pouco audveis, muitas geradas em lugares considerados como no centrais na produo terica do mundo acadmico (por alguns concebidos at hoje como perifricos, como `terceiro mundo' etc.). Sentimentos de colonia-lismo parte, contudo, o dilogo atual inclui tambm, de forma necess-ria e talvez paradoxal, as teorias sociolgicas e antropolgicas clssicas, que tiveram sua legitimidade assegurada no processo que se desenvolveu do final do sculo passado s primeiras dcadas deste. Nesse contexto amplo, exercitar um projeto de universalidade, especialmente um projeto escrito no portugus local, significa adotar a perspectiva de que o debate mais prximo, a dvida mais minscula, a questo mais particular, todos eles necessitam, para sua resoluo, da autoridade e da intermediao do nvel mais inclusivo e mais abrangente das experincias acumuladas da disciplina, quer das linhagens locais, quer das internacionais. Este livro se desenvolve nesta direo, e a sua unidade reside na situao peculiar de que todos os captulos so concebidos como dilogos definidos. Procuro explicitar, no decurso da prpria construo do livro,

  • o pressuposto de que o desenvolvimento das disciplinas acadmicas entre elas, a antropologia ocorre de maneira mais eficaz via os confron-tos constantes com interlocutores quer contemporneos, quer com aqueles considerados clssicos. Se o livro rene, excepcionalmente, dilogos empreendidos por um s falante/autor, os quatro captulos principais amarram-se em vrias direes e procuram se complementar e se iluminar mutuamente. O primeiro captulo, `Os antroplogos e suas linhagens', abre o livro mediante o exame de uma suposta particularidade da antropologia no contexto das cincias sociais brasileiras. O interlocutor o cientista poltico Fbio Wanderley Reis, e o propsito do captulo esclarecer por que infundado seu temor de que a influncia da antropologia, com sua inclinao para a observao desarmada, possa diminuir o rigor terico das demais cincias sociais. Nesse dilogo, relembro a gnese das cincias sociais no Brasil poca em que, por algumas dcadas aps os anos 30, as reas de sociologia e de antropologia se interpenetravam e procuro evidenciar a natureza das linhagens acadmicas para os antroplogos. O segundo captulo, `A favor da etnografia', expande as colocaes iniciais, focalizando especificamente a prtica de pesquisa etnogrfica da antropologia. Aqui, o debate desenvolve-se com Nicholas Thomas, um jovem antroplogo australiano, que recentemente se posicionou, em artigo divulgado por uma revista norte-americana considerada de van-guarda, contra a etnografia. O debate ficcional porque em portugus e do Brasil, afastado portanto do grande circuito internacional forneceu o ttulo do livro, e se delineia em ensaio em que defendo a necessria incompletude das monografias etnogrficas para que novas perguntas surjam em um processo de questionamento permanente. A riqueza da etnografia testada no terceiro captulo, `As rvores Ndembu', por meio da reanlise de um dos mais conhecidos acervos da antropologia. O interlocutor, nesse caso, faz parte do panteo terico-cosmolgico da disciplina (Victor Turner, 1921-1984) e a reanlise serve como uma homenagem ao etnlogo dos estudos de rituais africanos. Um subproduto da anlise resulta na demonstrao de que no nvel da discusso etnogrfica (transformada, em um aparente paradoxo, em debate terico) que se resolvem as questes locais focalizadas nos captulos anteriores. No mais longo dos ensaios, fica a ilustrao de uma das tendncias analticas na antropologia.

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  • Por ltimo, `Artimanhas do acaso' explora as verses nativas dos prprios antroplogos quando estes se utilizam do acaso para explicar suas trajetrias individuais. O captulo procura desafiar barreiras disci-plinares e enfrentar questes pouco ortodoxas para, seno mais, reforar o terreno seguro da tradio antropolgica. Aqui, a cosmoviso de todos ns, cientistas sociais, constitui o foco deste exerccio livre. Como posfcio ao livro, `Um ponto de vista' procura reunir siste-maticamente vrios dos argumentos dispersos nos captulos anteriores. Nele focalizo de forma mais detalhada como a teoria antropolgica se vincula transmisso do conhecimento nos nveis de graduao e ps-graduao. Ao examinar essa relao entre teoria e ensino, detenho-me na explicitao das maneiras pelas quais se pode falar sobre a histria da antropologia, testando a possibilidade de se conceber uma histria terica distinta das vertentes mais tradicionais da historiografia. Em suma, os ensaios aqui reunidos focalizam a relao entre as diversas cincias sociais de um ponto de vista especfico, isto , da perspectiva da antropologia. Esta, por sua vez, concebida como um desdobramento do vasto processo que fez surgir a sociologia europia no sculo XIX, processo que se reproduziu no Brasil, com caractersticas histricas especficas, nas dcadas de 50 e 60. Nos dilogos que compem o livro est implcita uma proposta que procura ver a antropo-logia, institucionalmente diferenciada da sociologia e da cincia poltica atuais, como eterna construo e superao. Esta proposta reconhece na deferncia aos clssicos o ponto de partida disciplinar; nela se partilha a crena de que a cincia social muitas vezes toma o carter de duplicao ou repetio, mas nunca a mesma; e tambm adere perspectiva de que o novo se constri sobre os ombros dos antecessores. Assim, a presena de autores brasileiros, de estrangeiros contemporneos e de clssicos da disciplina tornou-se, no contexto do livro, condio indispen-svel para localizar o ponto de partida disciplinar como um todo e o contexto particular de fala. Ambiciosa e irreverente, a sugesto est lanada: a de que a antro-pologia talvez seja aquela que com mais empenho procura se aproximar, neste final de sculo, da proposta weberiana da eterna juventude das cincias sociais. ela a cincia social que pede para ser ultrapassada e superada; que mantm viva a conscincia de que o que se aprende e/ou descobre sempre provisrio e contextualizado; e, finalmente, que

  • reconhece suas maiores realizaes nas questes formuladas mais do que nas respostas sempre efmeras.

  • CAPTULO 1 OS ANTROPLOGOS E SUAS LINHAGENS H algo curioso na antropologia: ao mesmo tempo em que se vanglo-ria de ter uma das tradies mais slidas entre as cincias sociais na qual se reconhecem cronologicamente os mesmos autores clssicos quer se esteja no Brasil, nos Estados Unidos, na ndia ou na Inglaterra , a disciplina abriga estilos bastante diferenciados, uma vez que fatores como contexto de pesquisa, orientao terica, momento sociohistrico e at personalidade do pesquisador e ethos dos pesquisados influenciam o resultado obtido. Essa caracterstica, se por um lado pode ser apropriada positivamente como um dos aspectos mais ricos e complexos da discipli-na, por outro oferece o perigo de, no respeitado o equilbrio sutil entre teoria e pesquisa, resvalar para uma situao na qual existam tantas antropologias quanto antroplogos. Aqui talvez esteja a fonte da situao problemtica que a antropologia potencialmente oferece s demais cincias sociais no Brasil. Esta situao tem sido especial objeto de reflexo do cientista poltico Fbio Wanderley Reis, que apontou, em 1988, uma certa inspirao `antropo-lgica' nos trabalhos pouco sofisticados das cincias sociais brasileiras na atualidade. Privilegiando o `popular' e o `cotidiano' tal como estes se apresentam observao desarmada e acrtica do participante, o leitor teria, segundo Fbio Wanderley Reis, de suportar `longos depoimentos em estado bruto de mulheres da periferia urbana', uma descrio que serve como metfora para muitos dos problemas que ocorrem tambm dentro da disciplina. Mais recentemente, o mesmo autor denunciou um certo `conjunturalismo' e um `historicismo' como responsveis pela ausncia de uma maior e desejvel sofisticao terico-metodolgica, resultando em um estado de indigncia analtica que teria se alastrado nas cincias sociais no Brasil. As preocupaes de Fbio Wanderley Reis so srias e pertinentes e, para o antroplogo, preocupantes. medida que, nos ltimos tempos, tm crescido o prestgio e/ou visibilidade da antropologia no mbito das cincias sociais no Brasil prestgio e/ou visibilidade que ela estava longe

  • de ter h 20 anos atrs estabeleceu-se, no contexto da Associao Nacional de Ps-Graduao em Cincias Sociais (Anpocs), uma viso de que, enquanto a sociologia e a cincia poltica se sentem em crise, tudo vai bem com a antropologia e com os antroplogos o ensino adequado; os alunos so bem formados teoricamente; a pesquisa de campo continua sendo uma caracterstica da disciplina; cursos de ps-graduao aprimoram a formao, unindo pesquisa e ensino; em suma, a disciplina avana.1 Parece, ento, que tanto os perigos da vulgarizao quanto o otimismo dos antroplogos precisam ser explicados, e a minha tentativa ser dar uma resposta conjunta para os dois problemas, privilegiando mais questes de fundo que estratgias. Antecipo, contudo, que ao contrastar as disciplinas estarei conscientemente exagerando algumas diferenas por uma questo de nfase, no sem esquecer que a antropologia se concebe como um desdobramento da sociologia europia do sculo XIX e que, no Brasil, as cincias sociais foram institucionalizadas nos anos 30 sob o manto da filosofia, que abrigava na poca os estudos hoje diferenciados como sociologia, antropologia e cincia poltica.

    I

    Generalizao/universalizao Diferentemente da cincia poltica, a antropologia no se v como especificamente caracterizada pela disposio nomolgica, sistemtica e generalizante do estudo das leis sociais, nem como um tipo de sociologia que, pelas suas caractersticas gerais, se aplica a diferentes contextos, isto , cujos mtodos e interesses so comuns cincia social como um todo.

    1A Anpocs congrega programas de mestrado e doutorado em sociologia, antropologia e

    cincia poltica e realiza reunies anuais nas quais se debatem trabalhos em mesas-redondas e grupos de trabalho. Este captulo teve sua origem em trabalho apresentado na reunio da Anpocs de 1990, a partir do gentil convite de Fbio Wanderley Reis para integrar a mesa-redonda `Teoria e mtodo e as cincias sociais brasileiras'. Ver, tambm, Reis 1988, 1991.

  • Notoriamente preocupada com a peculiaridade do objeto de pesquisa, a antropologia talvez seja, entre as cincias sociais, paradoxalmente, a mais artesanal e a mais ambiciosa: ao submeter conceitos preestabelecidos experincia de contextos diferentes e particulares, ela procura dissecar e examinar, para ento analisar, a adequao de tais conceitos. Para alguns, a antropologia tem sido, por isso, teoricamente parasita, apenas testando as generalizaes freqentemente etnocntricas de outras disciplinas na base de casos investigados mediante a utilizao do mtodo etnogrfico. Para outros, ela j foi a cincia social do `primitivo' que, tendo visto seu objeto em extino, avanou nas reas de interesse das outras cincias. Seu objetivo mais geral, contudo, foi sempre a procura de uma viso alternativa, mais genuna talvez, da universalidade dos conceitos sociolgicos. Portanto, no so grandes teorias nem abrangentes arcabouos tericos que a informam (embora o estruturalismo tenha sido a teoria social deste sculo), mas, ao contrastar os nossos conceitos com outros conceitos nativos, ela se prope formular uma idia de huma-nidade construda pelas diferenas. Tudo comeou com o desafio que Malinowski lanou ao confrontar trobriandeses de carne e osso e as grandes teorias evolucionistas do incio do sculo. Mitificado por haver introduzido a pesquisa de campo intensi-va, conhecido pela obsesso pelo native's point of view, criticado pelo funcionalismo que um dia julgou ter inaugurado, Malinowski talvez tenha desempenhado um papel ainda mais fundamental que todas essas proezas. que coube a ele confrontar as teorias sociolgicas, antropolgicas, econmicas e lingsticas da poca com as idias que os trobriandeses tinham a respeito do que faziam. Mais: ao comparar tais idias com suas prprias observaes in loco pde perceber que havia `resduos' no explicados: o kula a troca cerimonial de conchas de spondylus vermelhas por braceletes de conchas brancas entre determinados parceiros no extenso crculo de ilhas no extremo oriental da Nova Guin , por exemplo, no era apenas um fenmeno meramen-te econmico de troca de bens preciosos, mas envolvia as esferas do religioso, da poltica, da mitologia, dos ritos, repercutia nas formas lingsticas e inclua tambm o comrcio puro e simples, criando um cir-cuito fechado de relaes entre as ilhas do arquiplago. Esta verdadeira descoberta, resultado do confronto entre a teoria (e, por que no, do senso comum europeu da poca) e a observao dos nativos melansios,

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  • talvez explique por que voltamos constantemente a essa experincia para desvendar a peculiaridade do fazer antropolgico. A leitura obrigatria de Malinowski (e de outros `heris fundadores') explica-se, assim, especialmente por seu carter exemplar de descoberta antropolgica. Nesse sentido, importa menos a validade de suas propostas (muitas consideradas ultrapassadas) e mais a permanncia das teorias sobre magia, mitologia, linguagem etc., que no so totalmente de Malinowski, mas resultado do encontro de Malinowski com os trobriandeses. Pode-se argumentar, contudo, que o feedback entre pesquisa e teoria constitui o procedimento bsico do conhecimento cientfico em geral, e que, para todas as cincias humanas, no existe fato social que independa da referncia totalidade da qual ele faz parte. No entanto, a pesquisa de campo antropolgica, concebida como a procura incessante do dilogo com o outro, amplia e deixa mais explcitos esses pressupostos. Assim, o estranhamento passa a ser no s a via pela qual se d o confronto entre diferentes teorias, mas tambm o meio de auto-reflexo. A considerao para com as idias nativas mostra, por exemplo, como o conceito de estratificao social inadequado no contexto de castas na ndia e, se pobre para explicar o mundo indiano, no tem implicaes universais e, conseqentemente, limitado tambm para o mundo ocidental , ou como a idia de tempo, vivida em uma linguagem espacial entre os Ilongot das Filipinas, pode nos fazer repensar nossos prprios conceitos nativos. Por outro lado, como o observador parte integrante do processo de conhecimento e descoberta, pode-se dizer, como j se fez anteriormente, que na antropologia no existe fato social, mas `fatos etnogrficos', salientando que houve seleo no que foi observado e interpretao no relato. (Florestan Fernandes pensava como um antrop-logo quando, nos idos de 1950, foi demitido de uma pesquisa dirigida por Donald Pierson por haver contestado a orientao de explicitar ante-cipadamente as hipteses tericas que orientariam a anlise de cada docu-mento etnogrfico. Isolar um fato antes de chegar ao significado da totalidade do contexto emprico era uma violncia para Florestan, viso pela qual ele pagou caro, ao ser alvo de outra violncia.) Em um abuso analgico, poderamos pensar ento que, embora a temtica da disciplina seja basicamente durkheimiana, a inspirao meto-dolgica tem origem em Weber. Ou ainda, ao focalizar o jogo de espe-lhos que a observao da diferena produz no quadro conceitual estabele-

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  • cido, reconhecer a a tenso entre o contexto iluminista no qual a disci-plina foi fundada e o romantismo alemo em que foi se inspirar. Met-foras parte, mesmo que a pesquisa etnogrfica se realize com o objetivo de desafiar os conceitos estabelecidos, e embora a pesquisa de campo caracterize a disciplina, ela no a meta final do antroplogo. J se disse que a antropologia estuda problemas e no povos (Evans-Pritchard) e, mais recentemente, que os antroplogos no estudam aldeias, mas em aldeias (Geertz). Mas o fato que, embora o conjunturalismo etnogrfico vise uma reflexo terica, as monografias so o que a disciplina guarda de mais precioso. A razo bvia: foi o kula de Malinowski que permitiu a Marcel Mauss conceber o `fato social total' e ajudou a Karl Polanyi a discernir a `grande transformao' no ocidente. As observaes de Evans-Pritchard sobre a descentralizao poltica dos Nuer, as de Geertz sobre o theater-state em Bali, as de Stanley Tambiah sobre a galactic polity asitica, ou as de Edmund Leach sobre a alternncia gumsa-gunlao na Alta Birmnia, naturalmente trazem conseqncias para o conceito sociolgico de siste-ma poltico. Da mesma maneira, Louis Dumont foi ndia descobrir a ideologia individualista no `renunciador' e, na volta, detectou a perverso da noo de hierarquia no racismo ocidental. Aqui, ns nos embrenha-mos em grupos tribais para descobrir cosmologias to ou mais sofisticadas que as produzidas pelos pensadores ocidentais, ou em populaes camponesas para perceber relaes sociais que so baseadas mais na tica da honra, hierarquia e reciprocidade do que nos princpios do lucro ou ganho (estes, sim, engendrados pela `grande transformao' pela qual o campesinato no necessariamente passa). s vezes, a observao de uma pequena frente de expanso que nos leva a teorizar sobre o capitalis-mo autoritrio no Brasil e, anos depois, a relacionar os mesmos dados empricos com as categorias locais do bem e do mal com a teologia crist, como o fez Otvio Velho. Em suma, o progresso da antropologia consiste em substituir pouco a pouco determinados conceitos (sociolgicos ou no) por outros, mais adequados porque mais abrangentes, mais universais ou, no dizer de Louis Dumont, `mais libertos de suas origens modernas'. O ocidente torna-se, ento, uma entre vrias possibilidades de realizao da humanidade. Assim, fica claro que a etnografia no algo que se faz espontanea-mente, nem que a inclinao ou o talento podem ser dispensados. Contu-

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  • do, meras descries de um fenmeno de uma cultura em termos de outra so um arremedo necessariamente pobre da prtica antropolgica e, por definio, esto condenadas a no passar de afirmaes de um tipo popularesco aquilo que Fbio Wanderley Reis chama de o estilo jorna-lstico que invade as cincias sociais. importante, ento, reter a idia de que as observaes so realizadas no s para descrever o curioso, o extico ou o diferente por si mesmos (pelo natural interesse que desper-tam), mas tambm e principalmente para universaliz-los. So essas duas direes a especificidade do caso concreto e o carter universalista da sua manifestao que levam a antropologia a um processo de refinamento de problemas e conceitos e no, como propalam os esteretipos a respeito do seu empirismo, a um acmulo de informaes sobre situaes bizarras ou, quando falta talento, a `longos depoimentos em estado bruto das mulheres da periferia'. Penosos para todos os cientistas sociais, eles talvez sejam equivalentes s necessrias, mas no menos enfadonhas, descries de tabelas estatsticas, por exemplo. A compilao das possibilidades humanas levaria, naturalmente, apenas a leis e a regras sociais objetivo que os antroplogos descartaram, depois de muita polmica, a partir dos anos 60 ou a uma contemplao esttica das diferenas, em oposio ao objetivo de longo alcance de atingir um universal modificado.2

    II

    Teoria-e-histria da antropologia

    2Para as fontes bibliogrficas desta seo, ver: Evans-Pritchard 1940, 1972, para

    referncias aos Nuer e ao mtier do antroplogo, respectivamente; Geertz 1973, 1980, para o aspecto microscpico da antropologia e para a anlise das instituies polticas em Bali; Tambiah 1976, para a galactic polity tailandesa; Leach 1954, 1961, para a anlise dos sistemas polticos da Alta Birmnia e para a crtica generalizao de origem comparativa; Dumont 1980, sobre a ambio universalista da antropologia. Para meno produo brasileira, consultar, respectivamente, Viveiros de Castro 1988; Woortmann 1990; Velho, O. 1976, 1987. Entre os clssicos mencionados, ver Malinowski 1984 [1922]; Mauss 1974 [1923-3]; Polanyi 1978 [1944].

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  • Esse, ento, parece ser o cerne do problema: se, na antropologia, a criatividade nasce da relao entre pesquisa emprica e fundamentos da disciplina, ento a pesquisa de campo surge como algo mais que um mero ritual de iniciao no qual o antroplogo prova que `sofreu, mas resistiu'. A solido, embora boa companheira nas descobertas da alteri-dade, no o caminho virtuoso e mgico que, por si s, produz boa an-tropologia. parte o fato de que a distncia necessria para produzir o estranhamento pode ser geogrfica, de classe, de etnia ou outra, mas ser sempre psquica, os conceitos nativos requerem, necessariamente, a outra ponta da corrente, aquela que liga o antroplogo aos prprios conceitos da disciplina e tradio terico-etnogrfica acumulada. por isso, talvez, que tendo chegado aos cursos de teoria antropol-gica pensando que iam encontrar autores capazes de oferecer a frmula do bom trabalho, os alunos descobrem, para sua surpresa e desalento, embora freqentemente como desafio, que teoria antropolgica teoria-e-histria da antropologia, da mesma forma que teoria-e-etnografia. baseada na tenso entre o presente terico e a histria da disciplina que a tradio da antropologia transmitida, resultando que, no processo de formao, cada iniciante estabelece sua prpria linhagem como inspira-o, de acordo com preferncias que so tericas, mas tambm existen-ciais, polticas, s vezes estticas e mesmo de personalidade. Assim, alm dos clssicos Durkheim, Marx e Weber, que ensinaro a postura sociolgica, o antroplogo em formao entra em contato com uma verdadeira rvore genealgica de autores consagrados (e outros malditos), sobre a qual construir uma linhagem especfica sem desconhecer a existncia de outras. Na antropologia, as linhagens disciplinares so to importantes que se pode imaginar que, sem elas, o antroplogo no tem lugar na comunidade de especialistas. Porm, como ocorre at nas mais rgidas linhagens africanas, as mudanas so aceitas e, neste caso, vistas como converso. Este foi o caso de Marshall Sahlins que, partindo de uma vertente economicista-ecolgica, se converteu ao estruturalismo, como atestam as mudanas de Stone age economics para Cultura e razo prtica ou Ilhas da histria. No processo de transmisso da disciplina, o conhecimento etnogr-fico a respeito de vrias sociedades e culturas se enriquece. Isto significa que um antroplogo bem formado teoricamente um antroplogo bem informado etnograficamente. Para alguns, esse treinamento por

  • intermdio da literatura permite que, hoje, o antroplogo prescinda da pesquisa de campo em sociedade desconhecida antes de confrontar a sua prpria; para outros, trata-se da surpresa de se descobrir subitamente com capacidades inesperadas, como a de reconhecer as diferenas estticas entre uma mscara Iatmul da Nova Guin, de outra dos Kwakiutl do noroeste da Amrica do Norte, ou dos Bororo do Brasil Central, via um aprendizado que passou pela leitura de Bateson, Boas e Lvi-Strauss. Mas o fato mais marcante talvez seja o seguinte: a transmisso de conhecimentos e a formao de novos especialistas mediante processos pelos quais se deu o refinamento de conceitos, mantendo-se todavia os problemas favorecem uma prtica em que os autores nunca so pro-priamente ultrapassados. Nomes conhecidos, que um dia foram critica-dos e combatidos, freqentemente so incorporados nas geraes seguin-tes porque, relidos, revelam riquezas antes desconhecidas. Esse meca-nismo de incorporao de autores, que marca a disciplina, talvez se explique como um culto a ancestrais: embora raramente se encontre hoje um especialista que se autodefina como um estruturalista stricto sensu, tambm dificilmente um antroplogo deixa de incluir vrios dos princ-pios do estruturalismo na sua prtica disciplinar. O mesmo talvez possa ser dito a respeito de todos os fundadores de linhagens, em um mecanis-mo que no respeita fronteiras: aqui no Brasil, Darcy Ribeiro incorporou Herbert Baldus, que foi incorporado, junto com Florestan Fernandes, por Roberto Cardoso de Oliveira, e assim sucessivamente. (O reconhecimento das filiaes , contudo, muito menos explicitado do que no caso das vinculaes estrangeiras). Visto sob essa tica, o `conjunturalismo' que Fbio Wanderley Reis reconhece na inspirao antropolgica prprio daqueles que se limitam apenas ao imediatismo da experincia, aqum do estranhamento e da relativizao, e que se esquecem da tradio da disciplina: se as diversas conjunturas com que o antroplogo se defronta o fazem repensar a teoria sociolgica clssica, aquilo que a fora da antropologia pode se tornar a sua fraqueza, se apenas o extico privilegiado. No Brasil, o efeito pernicioso aumenta quando, a partir de um pretenso engajamento polti-co, tentamos resgatar camadas oprimidas da populao e acabamos

  • muitas vezes fazendo-lhes o desfavor de revel-las, por exemplo, nos tais relatos entendiantes. Voltarei ao assunto.3

    III

    Conseqncias Das observaes acima decorrem pelo menos trs conseqncias imediatas. Primeira: no h como propriamente ensinar a fazer pesquisa de campo. Esta uma concluso antiga, no s de professores bem-intencionados como de estudantes interessados, mas atnitos. A expe-rincia de campo depende, entre outras coisas, da biografia do pesquisa-dor, das opes tericas dentro da disciplina, do contexto sociohistrico mais amplo e, no menos, das imprevisveis situaes que se configuram, no dia-a-dia, no prprio local de pesquisa entre pesquisador e pesquisa-dos. Eis a, talvez, a razo pela qual os projetos de pesquisa de estudantes de antropologia sempre esbarram no quesito metodologia, quando estes competem por recursos com colegas de outras reas de cincias sociais. Mas, se impossvel antecipar os acasos que faro ressoar, na experincia vivida ali-e-agora, as teorias aprendidas de outros povos e outros tempos, no invivel alertar o estudante para problemas corriqueiros com os quais ele provavelmente se defrontar, porque outros j os enfrentaram. Em suma, na antropologia o treinamento metodolgico se faz melhor quando acoplado s monografias clssicas ou, o que d no mesmo, quando derivado dos cursos tericos. Segunda: a despeito da confiana na excelncia de sua aparelhagem conceitual, no seu mtodo de pesquisa de campo e na sua tradio disci-plinar, a antropologia no se reproduz como uma cincia normal de paradigmas estabelecidos, mas por uma determinada maneira de vincular teoria-e-pesquisa, de modo a favorecer novas descobertas. Estas ficam sujeitas possibilidade de que a pesquisa de campo possa revelar, no ao pesquisador, mas no pesquisador, aquele resduo incompreensvel, mas potencialmente revelador, que existe entre as categorias nativas apresen-tadas pelos informantes e a observao do etngrafo, inexperiente na cultura estudada e apenas familiarizado com a literatura terico-etnogrfi- 3Para fontes bibliogrficas desta seo, ver Sahlins 1972, 1976, 1987; Bateson 1958;

    Boas 1966.

  • ca da disciplina. As impresses de campo no so apenas recebidas pelo intelecto, mas tm impacto sobre a personalidade do etngrafo. Essas consideraes talvez expliquem duas coisas: a necessidade que os antro-plogos sentem de se basear em uma instncia emprica especfica; e o fato de que, na pesquisa de campo, comum constatar que a vida imita a teoria. No primeiro caso, a procura do especfico e do diferente onde talvez se revele aquele `resduo' que permitir o avano na observao etnogrfica e, conseqentemente, a possibilidade de refinamento terico passa a ser prtica regular dos antroplogos, que j batizaram essas experincias de `incidentes reveladores'. No segundo caso, trata-se da situao em que o pesquisador, treinado nos aspectos dos mais bizarros aos mais corriqueiros da conduta humana, encontra um exemplo vivo da literatura terica a partir da qual se formou. Terceira: se a pesquisa-cum-teoria define o empreendimento antropo-lgico, ento no h lugar para crise enquanto houver pesquisa nova e reflexo terica correspondente (e vice-versa). A ltima crise vivida pela antropologia data dos anos 60, quando os antroplogos ainda no haviam percebido que, mais que a um determinado objeto concreto de estudo, a disciplina se dedicava anlise das diferenas culturais. S quando a iminncia da extino dos grupos indgenas e a rejeio da antropologia pelas ex-colnias africanas se tornaram reais ameaando a prpria continuidade da disciplina , os antroplogos se conscientizaram de que estavam equivocados ao supor que os chamados povos primitivos defi-niam a disciplina. Na verdade, eles nunca haviam estudado apenas os povos primitivos, mas, ao faz-lo, haviam aprendido a reconhecer as diferenas entre o mundo dos antroplogos e o mundo nativo ou, como descobriu Lvi-Strauss nos anos 60, haviam percebido os `desvios dife-renciais' entre as culturas estes, sim, impossveis de desaparecer mesmo com todos os ideais de globalizao. Da em diante, por etapas, os nativos deixaram de ser apenas os `primitivos' e se transformaram nos `outros', sucessivamente remotos no espao, remotos no tempo, menos remotos na mesma sociedade, at a concluso recente de Geertz, de que `agora somos todos nativos', que replica Durkheim um sculo depois. uma possibilidade, ento, que os prognsticos sempre otimistas dos an-troplogos que freqentam as reunies da Anpocs tenham origem, pelo menos em parte, na conscincia de que o processo complementar entre pesquisa de campo e teoria resguarda a antropologia de crises peridicas,

  • alm do fato de que as diferenas que interessam disciplina nunca desaparecero. Mas tambm possvel que o exemplo clssico dos Nuer do Sudo, estudados por Evans-Pritchard, seja aplicvel comunidade de antroplo-gos: sem um sistema poltico centralizado, os `anrquicos' Nuer se orga-nizam pela identificao das comunidades locais com linhagens de um nico cl, em um sistema fluido, no qual a separao ou a unio dos segmentos adjacentes de uma mesma ordem so expressas em um quadro de valores vinculados descendncia: sou membro do grupo A numa situao que ope o grupo A ao B; em outra situao, na qual dois segmentos de A esto opostos digamos A1 e A2 , eu no me defino como membro de A, mas de A1, e assim sucessivamente. O exemplo dos Nuer talvez possa explicar por que os antroplogos, que vivem oposies no seu cotidiano, unindo-se ou separando-se segundo as comunidades locais, as linhagens ou a descendncia, adotam a postura de um slido grupo unilinear no contexto tribal mais inclusivo da Anpocs.4

    IV

    O modismo atual Todo esse quadro se complexifica um pouco quando se constata que um grupo de antroplogos norte-americanos, autodenominados reflexi-vos ou ps-interpretativos, reconhece, hoje, a existncia de uma sria crise na disciplina. Pode-se dizer, contudo, que, na medida em que a nfase principal desse grupo reside no questionamento da pesquisa de campo como prtica, perde-se a tenso essencial entre teoria e pesquisa e a crise realmente se instala nesse grupo ps-moderno. Infelizmente, para ns, este o modismo atual. Como outras influncias externas que, em

    4Ver Evans-Pritchard 1972; e Dumont 1970 (especialmente p. 157), para reflexes

    sobre o impacto da pesquisa de campo. Os `incidentes reveladores' so tratados por Fernandez 1990, e a reflexo de Lvi-Strauss est em Lvi-Strauss 1962. Ver em Geertz 1983 as idias sobre the way we think now e o depoimento intelectual de Viveiros de Castro 1993a.

  • um primeiro momento, no nos damos ao trabalho de questionar, para depois incorporar s tradies locais, esta termina por se transformar em uma aceitao preguiosa. Nos Estados Unidos, esse grupo, pequeno mas atuante, questiona a tradio da pesquisa de campo nos seus aspectos morais e epistemolgi-cos. Os norte-americanos, que sempre procuraram o extico alm-mar, se confrontam hoje com os problemas das relaes de poder e de domi-nao que tradicionalmente caracterizaram o trabalho de campo entre pesquisador e pesquisados. Empenhados na autocrtica dessas relaes e na legitimidade da pesquisa tradicional em um mundo que se acredita ps-colonial, propem que o resultado da pesquisa no seja fruto de observao pura e simples, mas de um dilogo e de uma negociao de pontos de vista. Da para a crtica dos estilos etnogrficos, para o ques-tionamento da autoridade do texto, para a descrena em macroteorias, para a nfase na fragmentao da experincia, a distncia curta. Sus-pensa a questo terica, as preocupaes se voltam para a auto-reflexo (de inspirao democrtica) a respeito do antroplogo no campo e acerca do estilo retrico por meio do qual seus resultados sero comunicados. Essa postura, que freqentemente resvala para a auto-absoro, j produ-ziu a anedota na qual o pesquisador chega a um grupo indgena e, depois de muito conversar, ouve do nativo a pergunta: `Agora que j falamos duas horas sobre voc, podemos falar um pouco sobre mim?' Nos Estados Unidos, esses questionamentos, h alguns anos conside-rados experimentais, como tudo que fascina, se rotinizaram. Hoje, Clifford Geertz, inspirador maior dessa vertente, j veio a pblico e procurou eliminar os exageros de um lado e de outro. Em 1984, defen-deu o anti-anti-relativismo e, em 1988, com a mesma mo admoestou o novo estilo como uma doena endmica que, em lugar de produzir etno-grafias, produz dirios, reflexes metacientficas, as chamadas etnografias experimentais, jornalismo cultural, ativismo sociolgico todos informados por uma sinceridade redentora que no passa de uma esperana ftil e estril. Como ocorre com tudo que transplantado de forma acrtica no Brasil, essa tendncia tambm tem efeitos perniciosos aqui. Mas, no nosso caso, o problema maior no est na qualidade esttica do que se produz, mas reside, principalmente, na transmisso da disciplina. Pri-meiro, porque estimula a procura de novos estilos naqueles que ainda

  • nem se iniciaram propriamente na disciplina, fortalecendo a crena de que a retrica substitui a densidade terica (e, portanto, obscurecendo ou negando que a questo esttica , no fundo, terica); segundo, e mais grave, porque promove um descrdito prematuro e inconseqente da tradio da disciplina, fazendo com que estudantes mal-informados pas-sem a ver nos textos clssicos exemplos ultrapassados do realismo etno-grfico, de autores positivistas que nunca deram a devida ateno di-menso existencial do encontro etnogrfico. Alguns chegam a defender uma `postura ecltica', na qual exista maior tolerncia em relao incompletude dos sistemas tericos. Em face de tal situao, detectada especialmente entre estudantes em fase de tese, no causa espanto que muitos de ns passemos a defender uma atitude tradicional, no af de impedir que o beb seja atirado junto com a gua do banho. Depois de uma longa histria em que se procurou definir a antropologia como um tipo de conhecimento especfico e no faltaram aqueles que procura-ram defini-la como cincia (mediante abordagens como o funcionalismo, estrutural-funcionalismo, estruturalismo), arte, traduo cultural etc. , hoje a vertente da `interpretao' parece abrir mo daqueles propsitos para se transformar em instrumento de escassos ideais humanistas. Por outro lado, minimiza-se o fato de que, no caso brasileiro, as questes morais tm uma conotao eminentemente poltica, alm de uma origem diversa da que ocorre no caso norte-americano. At agora, nossos `outros' foram basicamente procurados dentro dos limites das fronteiras nacionais e, certamente, quando estas forem ultrapassadas, as questes de dominao que estiveram presentes nas relaes entre ingle-ses e africanos, norte-americanos e asiticos, franceses e rabes, no sero equivalentes s que iremos manter com a ndia, Guin Bissau, Argentina, Moambique ou Estados Unidos. Resta, ento, a esperana de que, assimilada no que tem de positivo, e desbastados os excessos, a antropologia interpretativa possa nos ajudar a voltar tradio, para avanar.5

    5Para referncias bibliogrficas desta seo, ver Marcus & Fischer 1986; Geertz 1984

    para a proposta anti-anti-relativista; e Geertz 1988 para algumas crticas ao novo estilo etnogrfico. Vista do Brasil, a nova antropologia interpretativa foi analisada em Sena 1987 e Trajano Filho 1987, entre outros.

  • V

    Diagnstico Se: (a) a pesquisa de campo e a tradio terica da antropologia se relacionam no dia-a-dia dos especialistas; (b) a pesquisa de campo conce-bida como o encontro com o `outro' constitutiva do conhecimento disciplinar; (c) a teoria antropolgica desenvolve-se vinculada ao conheci-mento etnogrfico; e (d) teoria e histria da antropologia so inseparveis, talvez se possa detectar alguns pontos de estrangulamento nos quais a m-feitura e a m-leitura afetem negativamente a prpria antropologia e as disciplinas afins. Vejamos. Primeiro, em relao formao terica. preciso salientar que os modismos seduzem tanto alunos quanto professores e que a indolncia didtica encontra respaldo na letargia dos alunos quando se trata de formar novas geraes. Embora se leia muita teoria (isto , filosofia, epistemologia), l-se pouca teoria antropolgica. Cursos de teoria antro-polgica so, por definio, rduos e longos e incluem, necessariamente, a leitura de monografias clssicas na sua totalidade. Se verdade que o estilo etnogrfico contm em si mesmo elementos terico-metodolgicos, so as monografias, construdas dentre inmeras possibilidades, que deixam transparecer o percurso intelectual do pesquisador e que permi-tem situ-lo em determinado contexto disciplinar e, mais importante, fazem justia ao autor porque, dando a ele a palavra, admitem eventual-mente nele `redescobrir' uma riqueza inesperada. Em outros termos, meros trechos de monografias no bastam. Segundo, em relao pesquisa. Aqui, o problema maior talvez esteja no fato de que, salvo raras e felizes excees, as novas geraes nem sempre transpem barreiras significativas. No obstante a distncia geogrfica tenha sido tradicionalmente a garantia da alteridade, e embora a opinio dos especialistas seja de que o estudo da prpria sociedade tarefa para pesquisadores experimentados, a questo mais complexa. Aqui, trata-se da opo de procurar o `outro' perto de casa, no s como resultado de uma limitao de recursos (o que no convence totalmente), mas como decorrncia, no Brasil, de uma tradio poltica oriunda da matriz da sociologia (da qual nascemos de uma costela), que privilegia o

  • estudo de grupos oprimidos da sociedade ou de minorias tnicas, sociais, regionais etc. Desnecessrio alertar para o fato de que relevncia terica no se confunde com relevncia poltica, assim como problemas episte-molgicos no equivalem a problemas de classe. Dessa inadequao entre teoria e objeto de estudo, os resultados negativos surgem nos dois extremos: s vezes nos excessos tericos, mais freqentemente, na pes-quisa frgil e sem densidade. Exemplos de m-feitura no devem obscurecer, contudo, os projetos mais consolidados, que se ramificam em vrios programas de ps-gra-duao no pas e que so freqentemente enriquecidos por perspectivas tericas diversas, sobre temas relacionados a grupos indgenas (de cos-mologia a contato intertnico), ao campesinato (de lutas sociais a tica e moralidade), a investigaes sobre o campo intelectual, a mapeamentos socioantropolgicos de grandes metrpoles, ideologias polticas, sem falar nos aparentados estudos sobre operariado, periferia urbana, classes mdias e elites, ou questes de identidade religiosa, cvica, regional ou outras (definidos tematicamente, os recortes tericos produziriam outros agrupamentos). Terceiro, em relao aos limites do nosso mundo acadmico. Vale notar que, no que diz respeito ao locus da pesquisa, algumas investigaes j transpem as fronteiras nacionais, com estudantes indo para a Guin Bissau, Costa Rica, Goa, Argentina, Estados Unidos, Moambique, frica do Sul. Eles seguramente traro uma dimenso contrastante enriquecedora. Em relao aos interlocutores intelectuais, talvez tenha-mos de conviver com o problema de consumirmos a ltima moda inter-nacional em francs e ingls, para debat-la no portugus local. Este fato cria uma situao sui generis: ilhados em um universo acadmico que se define como internacional, podemos nos dar ao luxo de incorporar idias novas sem o fardo de prestar contas dos resultados obtidos. Por outro lado, perdemos a visibilidade que poderamos alcanar, assim como, mais importante, a avaliao e o dilogo externos que nos dariam uma dimenso melhor do nosso fazer. Alm disso, fascinados pelos modis-mos, deixamos de lado trabalhos competentes, mas `tradicionais', tanto aqui quanto alhures. Finalmente, cabe voltar especificidade do caso brasileiro em relao vocao pluralista das cincias sociais que, como aponta Antonio Candido, dominava as primeiras geraes que se formaram nos anos 50

  • em So Paulo, e que depois deu lugar diviso de trabalho intelectual com que hoje convivemos.6 Esse pluralismo saudvel, que fazia com que se questionasse se um determinado trabalho era sociologia ou antro-pologia, cinema ou teatro, sociologia ou crtica (e que permitia que um antroplogo se tornasse socilogo; um socilogo, crtico literrio; e um filsofo, antroplogo), ressoa hoje na Anpocs, herdeira dessa tradio. Este talvez seja o frum mais legtimo para uma interdisciplinaridade intelectual que no necessariamente institucional, que no se apresenta como modismo, que no imposta mas, sendo congenial e histrica, deve ser conscientemente preservada com suas difceis implicaes. As diferenas institucionais so inevitveis mas, no contexto atual, saudveis, e no ameaam nossa histrica vocao pluralista. Ao contrrio, s servem para enriquec-la. Esta foi a motivao deste ensaio.

    6Essa diviso de trabalho no impede, contudo, que o pluralismo continue atuante.

    Ver, por exemplo, a presena da inspirao dos trabalhos de Oracy Nogueira nas anlises antropolgicas atuais sobre o preconceito racial (Nogueira 1985; DaMatta 1981; Fry 1991). Outro exemplo ocorre na afinidade entre trabalhos sobre um mesmo tema desenvolvidos por socilogos e antroplogos (Gnaccarini 1989; Woortmann & Woortmann 1993). Ver Peirano 1990 para discusso de alguns aspectos do desenvolvimento das cincias sociais no Brasil a partir da trajetria intelectual e institucional de Antonio Candido.

  • CAPTULO 2 A FAVOR DA ETNOGRAFIA An anthropologist's work tends, no matter what its ostensible subject, to be but an expression

    of his research experience, or more accurately, of what his

    research experience has done to him.

    Clifford Geertz 1968: vi

    O tema que pretendo abordar neste ensaio7 diz respeito relao entre pesquisa de campo e etnografia. Nesse sentido, procuro desenvol-ver, no mbito do debate atual sobre o estatuto terico das cincias sociais brasileiras, algumas questes tratadas no captulo anterior. A motivao para continuar a discutir esse problema surgiu da consta-tao de que no s no Brasil e nos Estados Unidos se questiona a etno-grafia, mas diversos cientistas sociais de pases europeus e de outros continentes tambm o fazem. As razes so diversas, mas o tema, cons-tante: Paul Rabinow fala de um estgio `beyond ethnography'; Martyn Hammersley faz a pergunta `what's wrong with ethnography?', a revista Contemporary Sociology dedica um volume ao assunto; e Nicholas Thomas posiciona-se `against ethnography'.8 Optei por discutir o texto de Thomas principalmente pela clara provocao do ttulo. Mas no s por isso. Escolhi um pretenso inter-

    7Em verses anteriores, este ensaio foi apresentado em seminrios no PPGAS do

    Museu Nacional (em 1993) e no Departamento de Antropologia da Unicamp (em 1991). Sou grata aos colegas dos dois programas de ps-graduao pelos comentrios e sugestes.

    8Ver, respectivamente, Rabinow 1988; Hammersley 1990; Thomas 1991d. O nmero de janeiro de 1993 de Contemporary Sociology, revista da American Sociological Association, aborda a questo da etnografia em resenhas de vrios livros ento recm-publicados: Understanding ethnographic texts, de Paul Atkinson; Reading ethnography, de David Jakobson; Reading ethnographic research: a critical guide, de Martyn Hammersley; alm de Romantic motives: essays on anthropological sensibility, de George Stocking Jr.

  • locutor ps-moderno porque, geograficamente remoto e socialmente distante, ele est ideolgica e intelectualmente prximo, uma vez que, no Brasil, funcionamos como `uma cmara de decantao na periferia'9 e na medida em que temos como diretriz ideolgica o fato de que a cincia universal. A opo, contudo, no ingnua: primeiro, estou ciente de que o debate que proponho uma fico isto , Nicholas Thomas no saber (pelo menos por ora) que est sendo contestado no Brasil; segundo, estou tambm ciente da existncia de mltiplas tradies etnogrficas: os india-nos, por exemplo, consideram que para eles fazer pesquisa de campo uma soft experience porque dominam a lngua nativa e porque ainda se guiam pelos padres ingleses (Saberwal 1982). Mas aproveito para aqui, de forma indireta, fazer algumas provocaes em relao ao caso brasi-leiro. Especificamente, penso que nossa tradio etnogrfica se baseia, de forma equivocada, no princpio de que a criatividade pode superar a falta de disciplina e a carncia de um ethos cientfico. Mas quem esse Nicholas Thomas que escreveu `Against ethno-graphy'? Nicholas Thomas um jovem australiano de 33 anos, com experincia como research fellow da Universidade de Cambridge, King's College, e hoje professor da Australian National University (onde se doutorou). Apesar de jovem, Nicholas Thomas autor bem-sucedido nos Estados Unidos e na Europa: nos ltimos cinco anos (de 1989 a 1993), publicou dois livros, editados por Cambridge e Harvard, e mais de uma dezena de artigos nas melhores revistas internacionais.10

    9A expresso de Paulo Arantes; cf. Arantes 1991. No relato da viagem que fez a

    vrios centros de pesquisa fora dos Estados Unidos, George Marcus salienta sua surpresa por no haver constatado maior interesse nos questionamentos ps-modernos americanos (Marcus 1991). O silncio em relao ao Brasil, pas que visitou no mesmo ano, parece confirmar a viso da `cmara de decantao na periferia' de Paulo Arantes.

    10Nicholas Thomas publicou seus artigos nas seguintes revistas: Cultural Anthropology, Current Anthropology, Comparative Studies in Society and History, American Ethnologist, Social Analysis. Os ttulos so sempre provocadores: `The force of ethnology' (1989b), `The curiosity of the gaze' (1991c); `Against ethnography' (1991d); `The inversion of tradition' (1992a). Os livros so: Out of time: history and evolution in anthropological discourse (1989c); Entangled objects (1991b). (Os dois livros foram comentados por James Carrier na revista Man; cf. Carrier 1992b.)

  • nesse contexto que, tendo feito pesquisa em Fiji, Nicholas Thomas est preocupado e descontente com a maneira como os antroplogos tm tradicionalmente estudado as sociedades coloniais. Da Austrlia, ele, assim, insere-se no grupo ps-moderno com projeto poltico especfico, isto , oriundo de um dos vrios campi avanados do mundo britnico, ele se torna um representante da rebeldia dentro do imprio.11 E, nessa disputa aparentemente localizada no mundo anglo-saxo colonial, levanta a bandeira `contra a etnografia'. E nos atinge. Atinge a ns, no Brasil, como decorrncia da ideologia da universali-dade da cincia, de um lado, e pelo nosso af de transformar em modis-mo a ltima produo reconhecida na Europa ou Estados Unidos, de outro. Modismos so freqentemente daninhos; neste caso, quando se levanta a bandeira poltica, o potencial de chegar a ns de forma inade-quada ainda maior. preciso cautela, portanto, especialmente porque, se os temas tratados por ele e por outros ps-modernos so indiscutivel-mente pertinentes para a disciplina, nem sempre as solues so sensa-tas.12 Antecipo: considero que as alternativas oferecidas por Nicholas Thomas (assim como as de outros autores da mesma vertente) se baseiam em um processo de reinveno da histria terica da antropologia que, alm de repetir antigas frmulas, revive dicotomias que j deveriam estar ultrapassadas.13 Velhos debates, como iluminismo vs. romantismo, cincia vs. arte etc., renascem e na verso atual assumem a forma/frmula positivismo vs. interpretativismo, cnone vs. ps-etnografia.14 Penso tam-

    Nicholas Thomas tambm o editor da revista History and Anthropology e de uma srie monogrfica sobre o mesmo assunto. Ver referncias na bibliografia.

    11Naturalmente que as crticas no se restringem aos britnicos. Por exemplo, em Out of time (Thomas 1989c), Marshall Sahlins o alvo das crticas, e o tema, a etnologia da Melansia e da Polinsia.

    12Ver Sena 1987; Trajano Filho 1987; DaMatta 1992; Peirano 1992a: cap. 5 e 6 para reflexes sobre esta vertente da antropologia norte-americana.

    13Estou fazendo a distino entre a historiografia da antropologia (como exemplarmente desenvolvida por George Stocking Jr.) e a legitimao social/intelectual que histrica dos trabalhos e autores que constituem o referencial terico da disciplina. Da a expresso histria terica. Para maior elaborao deste tema, ver o Posfcio.

    14Alguns antroplogos ps-modernos reconhecem que fazem uma `caricatura' da antropologia. Cf. a crtica ao essencialismo do clssico de Marcel Mauss, `A

  • bm que os textos sobre pesquisa de campo, curiosamente, reproduzem muitas das preocupaes da dcada de 30, quando, ento como agora, se considerava um perigo a saturao dos textos etnogrficos. A soluo proposta em 30 residia na adoo de uma abordagem comparativa como meio de atingir uma discusso terica mais relevante. justamente esta a proposta que Nicholas Thomas faz, mas com a natural ressalva de que no se trata `da velha comparao positivista' (Thomas 1991d: 317). Alguns anos atrs Michael Fischer (1985) notou que a cincia social muitas vezes assume o carter de duplicao ou repetio ao longo do tempo. H, com freqncia, um retorno a uma era anterior em busca de textos inspiradores, mas como a histria no circular, e sim espiralada, a duplicao ou repetio nunca a mesma, pois existe sempre uma nova faceta ou uma nova soluo (1985: 60). Fischer exemplifica com a trajet-ria intelectual de Clifford Geertz, que surge quase como uma cristalizao tpica ideal de certos processos nos quais os anos 60 aparecem como se fossem uma reprise dos anos 20. Esse foi o perodo de amadurecimento de uma gerao de ensastas que, em oposio aos grandiosos sistemas de explicao dominantes no sculo XIX, propunha que era possvel atingir apenas insights fragmentrios da realidade (entre eles estavam Robert Musil, Ludwig Wittgenstein, Walter Benjamin e os surrealistas). Dessa perspectiva, diz Michael Fischer, os trabalhos de Geertz sobre o fazer etnogrfico reproduzem preocupaes do incio do sculo, mas chamam a ateno, como novidade dentro da antropologia, para o modo como so construdos os textos etnogrficos. Eles imprimem, portanto, uma nova faceta substantiva aos velhos problemas da verstehen weberiana. Eis o problema. Divido minhas observaes em quatro partes: em primeiro lugar, apresento brevemente os argumentos de Nicholas Thomas; a seguir, teo alguns comentrios sobre dois clssicos da disci-plina com o objetivo de mostrar que a `histria terica' da antropologia apresentada por Nicholas Thomas est viciada por uma viso que ope um passado positivista (representado pelas idias de Radcliffe-Brown) a uma contemporaneidade interpretativa; em terceiro lugar, discuto o im-pacto da pesquisa de campo na trajetria intelectual de alguns antroplo-gos renomados, para ento, finalmente, procurar acatar o desafio de

    Ddiva', em Carrier 1992a: 195-212.

  • Michael Fischer, de que, mesmo nas repeties histricas h algo novo que, com sorte, pode ser vislumbrado.

    I

    O argumento de Nicholas Thomas Em `Against ethnography', o autor adere a um estilo deliberadamente provocativo. Aqui esto alguns pontos de Thomas: 1) o problema atual da interpretao na antropologia no advm da expectativa de que todos os povos so iguais, mas de um pressuposto de que os `outros' devem ser diferentes; isto , o problema da antropologia contempornea tem a ver com uma fixao no exotismo (1991d: 306); 2) considerando-se que a pesquisa de campo e o escrever etnogrfico so prticas discursivas polticas, hoje os seguintes procedimentos so inaceitveis: a fabricao da alteridade, a homogeneizao do `outro' e a negao implcita do significado das culturas migrantes dentro do ocidente; 3) nesse contexto, preciso separar a pesquisa de campo da etnogra-fia, de forma a: i) focalizarem-se os problemas permanentes da viso antropolgica na constituio do gnero etnogrfico; e ii) abrir-se a pos-sibilidade para o desenvolvimento de outro tipo de escrita `energizada pela experincia do campo' (:307); 4) a associao entre o exotismo e a tendncia marcante da etnografia para tratar questes tericas a partir de anlises locais no puramente contingente. Estes traos da antropologia contempornea esto associados dominncia da escrita antropolgica, que apresenta as culturas como totalidades unitrias. Em outras palavras, a persistncia do exotismo deriva do fato de que o extico intencional na etnografia (:315); 5) duas tarefas desafiam os antroplogos atuais: i) o revigoramento da antropologia comparativa e ii) um novo tipo de `escrita antropolgica ps-etnogrfica'. Em relao primeira proposta, `no se trata do velho tipo de comparao positivista que procura estabelecer teorias gerais, mas uma forma de anlise que use um quadro regional para argir sobre processos de mudana social e diversidade' (:317); e, em relao nova

  • escrita etnogrfica, `ela deve se mover no espao entre o terico e o universal e o local e o etnogrfico, um lugar que seja energizado por formas de diferena que no estejam contidas na fico ns/eles' (:315).

    II

    Que modelo cannico? Nicholas Thomas no modesto. Em `Against ethnography' ele diz que o objetivo do artigo `no de forma alguma o de condenar toda a disciplina' (1991d: 315), naturalmente, mas apenas o de apontar proble-mas cruciais associados ao que considera o modelo cannico. Mas que modelo cannico? O de Franz Boas e os `four fields'? A comparao de Radcliffe-Brown? A arte e a traduo de Evans-Pritchard? Na verdade, a crtica desenvolvida por Thomas recai sobre a tendncia de tratar questes tericas totalizadoras a partir de anlises locais de eventos exticos, e sua soluo contempla um revigoramento da antropologia comparativa e uma reformulao da escrita ps-etnogrfica. Isso nos leva a pensar que o modelo criticado como `cannico' se fixa na experincia totalizadora de uma pesquisa de campo traduzida como exo-tismo e transformada em experimento terico. Mas em quem cabe a carapua? Penso em dois clssicos/ancestrais para, mediante seus trabalhos, refletir sobre as questes levantadas por Nicholas Thomas: Malinowski, para focalizar a questo da co-autoria etnogrfica; e Evans-Pritchard, para discutir a viso da disciplina como traduo e da metodologia concebida como impacto. (a) Malinowski (1884-1942) Na mitologia da disciplina, Malinowski inventou a pesquisa de campo; na histria da antropologia significativa a legitimao que ele trouxe pesquisa. Chamo a ateno para a questo da legitimao porque hoje sabemos que a proposta malinowskiana j havia sido formulada pelo menos desde Rivers. Em sua contribuio s Notes and Queries de 1912, Rivers alertava para os perigos da utilizao de `categorias civilizadas' na

  • pesquisa de campo; propunha que as noes abstratas deveriam sempre ser atingidas por intermdio do concreto; falava da necessidade do dom-nio da lngua nativa; defendia a importncia da empatia e do tato na pesquisa e afirmava que relatos mais observao (isto , relatos nativos mais observao etnogrfica) poderiam resultar em mais insights que `um ms de perguntas'. Ainda segundo Rivers, o investigador de campo deveria reconhecer que o nativo tambm tem um ponto de vista, prova-velmente bem mais interessante que o do pesquisador. Como costumamos ler Rivers apenas para nos informar sobre o mtodo genealgico, perdemos esse verdadeiro projeto etnogrfico, que felizmente George Stocking resgatou.15 verdade que, na poca do prprio Rivers e, especialmente na famosa expedio ao Estreito de Torres, esses procedimentos no foram adotados. A `etnografia de varanda' era considerada adequada e suficiente, isto , antes de 20, os antroplogos de ento (na verdade, fisiologistas, psiclogos experimentais, lingistas) deslocavam-se at as sociedades primitivas para coletar dados, mas, em um contexto evolucionista no qual dominava o que hoje chamamos de `antropologia de gabinete', seus procedimentos j eram bastante revolucionrios. Isto , sentavam-se a uma mesa, geralmente na varanda da casa de um oficial da colnia ou missionrio, ou em um convs de navio em trnsito local, e convocavam os nativos, que, enfi-leirados, esperavam sua vez para fornecer os dados requisitados. Aquela foi a poca em que no s se chamou privadamente os nativos de niggers como Malinowski fez em seus dirios , mas em que se referia atividade de pesquisa como niggering.16 guas passadas? No tanto: no faz muitos anos uma `pesquisa de campo' no Brasil adotou a estratgia de reunir os nativos em uma sala de universidade para que eles dessem entrevistas e depoimentos. Uma nova verso de etnografia de varanda? Por outro lado, quantas vezes a ex-presso `ir a campo' no utilizada, de modo no mnimo exagerado, para informar o ouvinte que o pesquisador tem freqentado reunies de condomnio do grupo que vem estudando?

    15Consultar Stocking Jr. 1983 para a elaborao de vrios pontos levantados nesta seo. 16Stocking menciona que essa referncia era costume de Frank Gillen (o companheiro

    de Baldwin Spencer nos estudos de parentesco australiano); cf. Stocking Jr. 1983.

  • Mas volto a Malinowski para sugerir que a co-autoria defendida atualmente esconde a ingenuidade de pressupor que os nativos querem sempre ser co-autores ou antroplogos de si mesmos. De novo, foi Stocking Jr. quem alertou, h algum tempo, que a pesquisa de campo pressupe uma hierarquia: ou ela aceita pelos nativos, ou no h pes-quisa etnogrfica (1974). Stocking acrescentava que a pesquisa, como idealmente concebida hoje, um fenmeno histrico dentro da discipli-na. Assim, da mesma forma que a pesquisa de campo teve um incio, ela pode vir a ter um fim este temor foi especialmente registrado na dcada de 60 por Lvi-Strauss (1962) e Jack Goody (1966). Proponho, portanto, que a co-autoria que os ps-modernos advogam na relao pesquisador-nativo no novidade na disciplina; apenas ela no ocorre entre indivduos empricos concretos, mas teoricamente na produo etnogrfica. Na vertente ps-moderna chegou-se a acreditar nas transcries dos dilogos etnogrficos (por exemplo, Dwyer 1982), pro-cedimento que o prprio Geertz ironicamente denunciou como `words, the whole words, and nothing but the words' (Geertz 1988: 96). Malinowski sabia mais: ele no chegou a traduzir para o ingls o ter-mo nativo `kula' que encontrou entre os trobriandeses apenas para tornar os melansios exticos (como sugere Nicholas Thomas), mas para ser fiel a uma categoria trobriandesa diferente das categorias ocidentais. Foi essa fidelidade (ou tentativa de fidelidade, no importa) s evidncias etnogrficas que permitiu, posteriormente, a Marcel Mauss utilizar os dados trobriandeses em sua teoria geral da ddiva. E foi tambm graas a ela que Karl Polanyi pde explicar a experincia histrica ocidental por meio das descobertas de Malinowski, `exotizando' o ocidente. Outro exemplo desse projeto de fidelidade diz respeito s descobertas de Malinowski sobre o poder mgico das palavras entre os trobriandeses. Foram as inmeras evidncias etnogrficas que Malinowski coletou que justificam sua teoria sobre os aspectos pragmticos da linguagem que, se at recentemente no haviam recebido maior ateno (a antropologia, assim como as demais cincias do homem, estava mais preocupada com os aspectos cognitivos e semntico-referenciais dos sistemas simblicos), hoje esto na ordem do dia no estudo dos aspectos `performativos' das palavras e dos rituais (ver, por exemplo, Tambiah 1968, 1985). Se assim , talvez tenhamos de deixar de falar sobre `a teoria da magia de Malinowski', ou sobre `a teoria da linguagem de Malinowski',

  • para focalizar as teorias da magia ou da linguagem dos trobriandeses, que Malinowski teve a sensibilidade de captar porque as estranhou e depois a ousadia e/ou vaidade de divulg-las. E, se verdade que, ao longo do sculo, antroplogos ingleses se tornaram africanistas; franceses, americanistas; norte-americanos, ocea-nistas, o que pode fornecer um indcio claro do poder poltico colonial do qual Nicholas Thomas tanto se ressente (acredito que com razo), por outro lado esses rtulos tambm indicam como, na antropologia, as orientaes tericas esto relacionadas a especificidades geogrficas de uma maneira que talvez no acontea em outras cincias sociais.17 Isto , se orientaes tericas se vinculam a especificidades aparentemente `geogrficas', talvez estes fenmenos resultem do fato de que a teoria antropolgica sempre se fez melhor quando atrelou a observao etnogr-fica ao universal/terico. Exatamente como Nicholas Thomas prope hoje e como Malinowski j realizava. Ao prprio Malinowski, por outro lado, os dados trobriandeses servi-ram muito bem: difcil acreditar que, arguto observador do poder da linguagem para os trobriandeses, as estratgias retricas que adotou em suas monografias tenham sido fruto apenas da intuio ou do acaso. Para Malinowski, a frmula mgica tinha como abertura a expresso `Imagine yourself...', que fazia do leitor um cmplice do autor. Alguns exemplos so suficientes para relembrar a estratgia: `Imagine yourself suddenly transported on to a coral atoll in the Pacific, sitting in a circle of natives and listening to their conversation' (1930: 300). Ou, `Imagine yourself suddenly set down surrounded by all your gear, alone on a tropical beach close to a native village, while the launch or dinghy which has brought you sails away out of sight' (1961: 4). Adjetivos tambm eram cuidadosamente deixados ao longo do texto: `... which I heard on that memorable morning in the lagoon village' (:304; nfase minha). Se, freqentemente, essas expresses `conativas' (para usar a linguagem de Roman Jakobson) eram utilizadas para fazer o leitor partilhar o isolamento e a perplexidade do etngrafo, outras vezes eram empregadas para convid-lo a seguir viagem: `Let us imagine that we are sailing along the South coast of New Guinea towards its Eastern end' (:33; nfase minha). Uma viagem imagi-

    17Ver Sahlins 1989: 37, respondendo a Nicholas Thomas; ver, tambm, Viveiros de

    Castro 1993a.

  • nria, como sabemos, mas que s o leitor treinado reconhece j que em 1922 Malinowski confessava suas limitaes apenas nas entrelinhas. O texto exibia um estilo em que o autor exortava o leitor participao no paraso ednico onde se ouvia `the sound of conch shells blowing melodiously', e cumplicidade dos tipos sociais como o chefe de uma aldeia, `an old rogue [um patife] named Moliasi' (:66). Esse era o perodo em que a pesquisa de campo aparecia como misteriosa: `It is difficult to convey the feelings of intense interest and suspense with which an Ethnographer enters for the first time the district that is to be the future scene of his field-work' (:51). Em 1935, contudo, seu estilo havia mudado radicalmente. Nessa poca, a legitimidade de Malinowski j estava estabelecida, de forma que em Coral gardens o etngrafo no mais precisava seduzir o leitor me-diante um estilo predominantemente `ilocucionrio' (conforme a concep-o de J.L. Austin). Foi quando Malinowski pde se permitir publicar uma monografia composta de vrios fragmentos: relatos em lngua nativa com traduo intercalada em ingls (os prometidos `corpus inscriptio-num agriculturae quirininiensis'); observaes sobre magia agrcola; uma teoria etnogrfica da linguagem; especulaes tericas sobre regime fundirio e, agora sim, `Confessions of failure' e `An autobiography of mistakes'. A obra de um antroplogo no se desenvolve, portanto, linearmente; ela revela nuanas etnogrfico-tericas que resultam no apenas do tipo de escrita que sempre foi `energizada pela experincia do campo' (para no perder a referncia a Nicholas Thomas), mas tambm do momento especfico da carreira de um pesquisador, em determinado contexto histrico e a partir de peculiaridades biogrficas. A obra de Malinowski demonstra tais pontos; a de Evans-Pritchard os refora e os esclarece. (b) Evans-Pritchard (1904-1970) Para Evans-Pritchard o antroplogo era um tradutor e, portanto, a antropologia seria sempre comparativa, mesmo que no o fosse explicita-mente (Evans-Pritchard 1972). Se esta viso derivou dos ensinamentos de Malinowski (de quem E-P foi aluno) uma questo em aberto, mas o fato que a traduo tinha um leitor especfico em mira. Ou seja, no era pretenso de Evans-Pritchard um trabalho de mo dupla: ele sabia que

  • estava traduzindo a bruxaria Azande, as linhagens Nuer, a histria dos bedunos de Cirenaica para os ocidentais. Mas, em vez de usar os termos nativos, E-P usou exatamente as categorias ocidentais, isto , bruxaria, orculos, magia. Ele assim o fez no s porque o seu problema era ocidental (a velha questo da distino entre os pensamentos mstico e emprico, como freqentemente relembrado), mas porque seus leitores tambm deveriam sofrer o impacto das categorias. Malinowski havia optado por manter o termo nativo; a estratgia de E-P foi a de contrastar as categorias europias/familiares com a etnografia Azande/diferente. O objetivo maior, contudo, era semelhante. (Uma questo que se coloca aqui, e que naturalmente fica sem resposta, se refere a qual das duas estratgias a melhor: a de Malinowski ou a de Evans-Pritchard).18 Evans-Pritchard confiava bastante no poder do confronto de experi-ncias e suas conseqncias emocionais e intelectuais.19 Para ele as impresses de campo no eram apenas recebidas pelo intelecto, mas exerciam `um verdadeiro impacto na personalidade total do etngrafo', fazendo com que diferentes culturas se comunicassem via a experincia singular de uma nica pessoa. O texto etnogrfico resultava, assim, da adequao da ambio universalista da disciplina com os dados (novos) detectados pelo pesquisador em determinado contexto etnogrfico. Estes dados, por sua vez, resultavam da combinao da sensibilidade do etngrafo e do aprendizado adquirido quando da formao do pesquisador.20 de Evans-Pritchard um dos mais singelos e exemplares depoi-mentos nesse sentido, isto , o conhecido `Eu no tinha interesse por bruxaria quando fui para a terra Zande, mas os Azande tinham; de forma que tive de me deixar guiar por eles' (1978: 300). Este depoimento revela

    18O que se pode notar que, alm do crculo restrito de antroplogos, o trabalho de

    Malinowski serviu mais aos socilogos; o de Evans-Pritchard rendeu numerosas discusses na filosofia. Para a influncia de Malinowski, as principais referncias so os trabalhos clssicos de Mauss e Polanyi; para Evans-Pritchard, ver Winch 1970, 1977; Hollis & Lukes 1982; Roth 1987 cap.9.

    19Ver, especialmente, Evans-Pritchard 1972 e, posteriormente, Dumont 1970: 157. 20Se a simples erudio fosse condio suficiente para formar um antroplogo, George

    Stocking Jr. seria hoje um dos maiores. Mas o prprio Stocking quem reconhece sua limitao para a pesquisa de campo e, portanto, sua incapacidade para o ofcio.

  • o estreito vnculo entre teoria e pesquisa na antropologia, demonstrando a tese de que a pesquisa etnogrfica o meio pelo qual a teoria antropolgica se desenvolve e se sofistica quando desafia os conceitos estabelecidos pelo senso comum no confronto entre a teoria que o pesquisador leva para o campo e a observao entre os nativos que estuda. Assim como para Malinowski, mais uma vez fica claro que no h uma teoria antropolgica de Evans-Pritchard, mas a teoria sobre bruxaria que ele props como resultado do confronto/impacto entre sua bagagem intelectual europia (incluindo a seus conhecimentos antropolgicos e o conceito folk-europeu de bruxaria) e o interesse dos Azande em explicar seus infortnios. Pensar em impacto e/ou confronto pensar comparativamente. Para E-P este procedimento deveria ser levado s ltimas conseqncias: ao antroplogo caberia pesquisar vrias socieda-des. Ele reconhecia as dificuldades a serem enfrentadas, especialmente tendo em vista o tempo de pesquisa e de elaborao dos resultados (que ele estimava aproximadamente em dez anos), mas uma segunda sociedade auxiliaria o etngrafo a abord-la luz da experincia da primeira, sugerindo-lhe linhas de pesquisa novas. Evans-Pritchard foi dos poucos antroplogos a fazer etnografia em vrias sociedades: Azande do sul do Sudo, Nuer do Sudo anglo-egpcio e Cirenaica (hoje Lbia). Atualmente so raros os antroplogos de reco-nhecimento internacional com essa experincia (Geertz talvez seja o exemplo contemporneo de maior expresso). Nos dias atuais, procura-mos resolver o problema colocado por E-P de vrias maneiras: ou con-tando o `tempo de servio' da leitura de monografias21 ou, na verso indiana, considerando que a antropologia um empreendimento de natureza coletiva e o antroplogo no precisa pesquisar pessoalmente diferentes culturas: ele , ao mesmo tempo, um insider e outsider em virtude do seu treino acadmico (Madan 1982, 1994). Esta, inclusive, era a posio de Malinowski no final dos anos 30, quando prefaciou o trabalho de dois ex-alunos (Jomo Kenyatta, do Qunia, e Fei Hsiao-Tung, da China) que haviam pesquisado suas sociedades de origem.22

    21A expresso de Viveiros de Castro 1993a. 22 interessante notar que o tema do estudo `of one's own society' vem sendo debatido

    pelos antroplogos indianos desde a dcada de 50. Ver Bteille & Madan 1975; Srinivas 1979; Madan 1994.

  • Volto a Evans-Pritchard. Destas breves referncias decorrem algumas implicaes: 1) o processo de descoberta antropolgica resulta de um dilogo comparativo, no entre pesquisador e nativo como indivduos, mas entre a teoria acumulada da disciplina e a observao etnogrfica que traz novos desafios para ser entendida e interpretada. nesse sentido que Evans-Pritchard (1972) dizia no haver `fatos sociais' na antropologia, mas `fatos etnogrficos'. Esse um exerccio de estranhamento existencial e terico que passa por vivncias mltiplas e pelo pressuposto da universalidade da experincia humana, que o antroplogo aprendeu a reconhecer, de incio, longe de casa; 2) no h cnones possveis na pesquisa de campo, embora haja, certamente, algumas rotinas comuns, alm do modelo ideal. E se no h cnones no sentido tradicional, talvez no se possa ensinar a fazer pes-quisa de campo como se ensinam, em outras cincias sociais, mtodos estatsticos, tcnicas de surveys, aplicao de questionrios. Na antropo-logia a pesquisa depende, entre outras coisas, da biografia do pesquisa-dor, das opes tericas da disciplina em determinado momento, do contexto histrico mais amplo e, no menos, das imprevisveis situaes que se configuram no dia-a-dia local da pesquisa;23 3) na medida em que se renova por intermdio da pesquisa de cam-po a antropologia repele e resiste aos modelos rgidos. Seu perfil, portan-to, dificilmente se adequa a um modelo `positivista', como se tenta carac-teriz-la atualmente em certos setores. Tal fato no a impede, contudo, de se constituir em um conhecimento disciplinar, coletivo portanto, so-cialmente reconhecido e teoricamente em transformao;24 4) consciente ou no, cada monografia/etnografia um experimento. certamente bvia a diferena entre a construo monogrfica de Witchtcraft (de 1936) e aquela dos The Nuer (de 1940), ou de cada livro da trilogia Nuer uma trilogia que resultou de uma s experincia etnogrfica, mas produziu livros construdos de modo bastante diferente;25 23Ver, por exemplo, o hoje conhecido mas, na poca da publicao, inovador relato

    reflexivo de Maybury-Lewis (1965) sobre sua experincia de campo. Foi essa mesma experincia de campo que fundamentou, dois anos mais tarde, sua monografia clssica sobre os Xavante (1967).

    24DaMatta props, h mais de dez anos, que todo antroplogo realiza, durante sua carreira, o seu `repensar a antropologia'. Ver DaMatta 1981: 146-7.

    25Para uma anlise da construo monogrfica de Os Nuer e a postura terica de Evans-

  • 5) o impacto dos dados sobre o pesquisador acaba gerando totalida-des, sejam elas cosmolgicas, sociolgicas, ideolgicas etc. Estas totali-dades, que foram abordadas teoricamente por Mauss, tm correlao nas recomendaes de Rivers (acatadas tanto por Malinowski quanto por Evans-Pritchard), de que o pesquisador deveria trabalhar sozinho no campo porque o objeto etnogrfico indivisvel. Por esse caminho, nota-se uma aproximao curiosa dos dois autores: distintos na tradio, mas contemporneos, Rivers e Mauss enfatizavam a totalidade: um, via pes-quisa; o outro, via teoria.26 Ao apresentar Evans-Pritchard como essencialmente comparativo e no-positivista, reconheo que minha viso radicalmente diferente da de Geertz, por exemplo, para quem E-P retrata o paradigma do vilo colonial. Para comprovar que Evans-Pritchard aderia a uma estratgia textual imperialista, ele invoca a limpidez do seu estilo brilhante a paixo pelas frases simples, preferncia pelo declarativo, ausncia de jargo, `as few commas as possible, mechanically placed, and hardly any semicolons at all: readers are expected to know when to breathe' (Geertz 1988: 60). Ironias parte, o ponto de vista que estou defendendo que o bom texto etnogrfico foi sempre um experimento. verdade que, durante um breve interldio, se acreditou na eficcia do modelo tipo ecologia-parentesco-poltica-cosmologia. No entanto, a histria e a fora da antropologia no se fizeram por esses estudos `cannicos', mas muito mais por Argonauts, Naven, Witchtcraft, The Nuer, Political Systems, Islam Observed e outros, apesar das inevitveis ausncias e injustias cometidas. Mas tempo de se perguntar: ao reduzir e compactar a histria da antropologia aos estudos realizados pelos (politicamente incorretos) ama-ntes do extico, no se estar cometendo outra injustia? Ao construir uma histria terica tradicional que , por definio, positivista e cientifi-cista, os antroplogos ps-interpretativos no estaro dando razo histri-ca a um personagem especfico, isto , Radcliffe-Brown e a seu conhecido projeto de uma `histria natural da sociedade' para a antropologia?

    Pritchard, ver Dumont 1968. 26Nesse contexto, pode-se imaginar uma relao possvel entre o carter fragmentrio da

    antropologia ps-moderna e a cosmoviso do novo antroplogo, a construo do seu objeto de estudo, e, quem sabe, sua insensibilidade para perceber o `fato social total'.

  • Aqui parece que localizamos o `modelo cannico' e seu sentido nega-tivo. Ele representado pelas idias de Radcliffe-Brown que, efetiva-mente, constituram a vertente hegemnica da disciplina durante pelo menos duas dcadas, mas cuja dominao foi suplantada por Evans-Pritchard quando este afirmou que a antropologia era mais arte que cin-cia. Naquele momento faliu o projeto `cientificista' da antropologia e suas possveis ambies positivistas. O fato curioso, contudo, que para a vertente representada por Nicholas Thomas, Radcliffe-Brown o vilo que deve ser condenado mas que, ao mesmo tempo, inspira as novas propostas. Assim, a compa-rao resgatada (como se tivesse algum dia sido abandonada) para contrapor-se ao excesso etnogrfico, mas ela `no deve ser positivista'. A etnologia criticada, mas trata-se exatamente da etnologia de inspirao radcliffe-browniana, isto , aquela que se ope antropologia social (diferenciao que, no Brasil de hoje, pertence histria arcaica da antropologia). Por outro lado, no deixa de ser significativo que um jovem antroplogo australiano eleja como oponente exatamente um nome reconhecido da histria da disciplina cuja carreira se desenvolveu, em grande parte, l mesmo: Racliffe-Brown realizou pesquisa entre os aborgenes em 1910; de 1916 a 1919 foi professor em Sydney e nas ilhas Tonga; e de 1926 a 1931 ocupou a primeira cadeira de antropologia na Universidade de Sydney. Nesse ltimo perodo, fundou a revista Oceania conceituada at os dias de hoje , destinada ao estudo dos nativos da Austrlia, Nova Guin e ilhas do Pacfico. Em outras palavras, Radcliffe-Brown fez da Austrlia um campus avanado da antropologia britnica27 e, naturalmente, levou junto a cosmologia dominante do imprio. A rebeldia dos antroplogos australianos relativamente recente e Nicholas Thomas faz parte dessa rebeldia.

    27Muitos antroplogos indianos se beneficiaram dessa situao: T.N. Madan, por

    exemplo, doutorou-se na Austrlia. Ver Baines 1993 para uma excelente etnografia da antropologia australiana.

  • III

    Trajetrias etnogrficas Neste ponto, tendo sugerido, seno identificado, o interlocutor oculto de Nicholas Thomas, encerro esta parte da discusso. Permanece, contu-do, o problema da relao entre teoria e pesquisa, agora ampliado pelas observaes a respeito de um tema especfico: as trajetrias individuais. O objetivo o mesmo, isto , fazer aflorar as reas cinzentas que fazem a riqueza e a criatividade da pesquisa em antropologia; eliminar as dico-tomias do tipo antes-positivismo/hoje-interpretao. Vejamos. Nem todo bom antroplogo necessariamente um etngrafo. H aqueles mais inclinados e os menos atrados para a pesquisa de campo. Mas todo bom antroplogo aprende e reconhece que na sensibilidade para o confronto ou o dilogo entre teorias acadmicas e nativas que est o potencial de riqueza da antropologia. Tal confronto, que teve sua gne-se na pesquisa de campo entre povos primitivos, encontra-se hoje domes-ticado e incorporado como `viso' da antropologia, e atualizado no campo ou entre quatro paredes de uma biblioteca. Nesse contexto, h uma curiosidade a ser observada, que, pela sua recorrncia, talvez no seja fruto de mero acaso: fcil se perceber, no mbito da comunidade dos antroplogos, uma correspondncia entre a pesquisa de campo tradicional e a vocao para a teorizao. Esta corre-lao, contudo, negativa, isto , grandes etngrafos nem sempre foram bons tericos (Nimuendaju um bom exemplo) e grandes tericos fre-qentemente mostraram-se avessos pesquisa de campo (Lvi-Strauss talvez seja o caso clssico). Dessa perspectiva, parece haver um continuum no qual os dois extre-mos seriam ocupados, de um lado, pelo etngrafo emprico-proustiano; de outro, pelo quase-filsofo. No primeiro caso, a realidade emprica que parece dominar e ofuscar (e a teoria fraca ou pobre); no segundo, o fascnio pela universalidade que conduz procura de leis e princpios gerais, perdendo-se o aspecto sui generis da totalidade emprica (no) observada. Mas, como para reforar a idia de que a pesquisa de campo constitutiva da antropologia, porm no empiricamente necessria, temos os exemplos histricos da descoberta das leis de associao do pensamento humano (que a lingstica [com Jakobson] e a psicanlise

  • [com Freud] creditaram ao velho The Golden Bough, de Frazer) e a proposta das tipologias tradicionais dos sistemas de parentesco, de Radcliffe-Brown e Lvi-Strauss. Muitos antroplogos tenderam a ver tradies dicotmicas na discipli-na: Leach, no af estruturalista de ento, mencionou duas, a de Malinowski e a de Frazer,28 s dando espao para esses dois plos mu-tuamente excludentes. Para Dumont, o mesmo tema percebido como um caso no qual a singularidade etnogrfica representa o holismo, que seria englobado por um universalismo como ideologia dominante (Dumont 1980). A tradio terica da antropologia contempla, no entan-to, diversas formas de combinar a tenso sempre presente entre o parti-cular/etnogrfico e o universal/terico. Antroplogos que aceitam essa orientao so herdeiros de Evans-Pritchard neste aspecto e, entre a pesquisa e a teoria, procuram o universal no particular ou, seguindo Flaubert, acreditam poder encontrar `le bon Dieu dans le dtail'. A centralidade da tenso entre teoria e pesquisa pode ser apreciada, na disciplina, na trajetria de alguns antroplogos pesquisadores. Quando a tenso `tima' entre os dois plos se perde, a obra do autor conseqen-temente se empobrece. Em outras palavras, nem sempre os antroplogos envelhecem bem. Alguns exemplos so suficientes para ilustrar a questo. O caso de Malinowski singular: a distncia que vai das monografias trobriandesas, publicadas entre 1922 e 1935 (de Argonauts a Coral gardens), e, dez anos mais tarde, a pstuma e simplista A general theory of culture (de 1944), no pode ser explicada apenas por uma diferena de nfase etnogrfica ou terica, mesmo porque se trata de excelente etnografia e m teoria. Em seus primeiros trabalhos, Malinowski confrontava as teorias sociolgicas, antropolgicas, econmicas e lingsticas de sua poca com as idias que os trobriandeses tinham a respeito de temas correlatos, e mais, ao comparar tais idias com suas observaes in loco, Malinowski pde perceber que ali permaneciam `resduos' no explicados: nesse sentido que o kula se tornou uma verdadeira descoberta e as etnografias trobriandesas permanecem at hoje como fonte de inspirao para anli-ses de mitologia, lingstica e economia. Comparada a este corpus etno-grfico, a tentativa de uma abrangente `teoria geral da cultura' de cunho

    28E colocou Lvi-Strauss na segunda tradio; cf. Leach 1970.

  • determinista porque universalmente derivada das necessidades biolgi-cas bsicas s confirma e expande a suposio de que os esforos dos pesquisadores sobrevivem s suas elucubraes tericas. (Frazer dizia, de modo equivocado, que este era o seu caso.) Outro exemplo o de Victor Turner. Ao abandonar os ritos Ndembu, Turner perdeu o melhor da universalidade de sua abordagem. Os Ndembu conectavam Turner com a experincia ritual humana em geral: para eles a vida social girava em torno do seu simbolismo ritual, que Turner analisou com a centralidade que os nativos o concebiam (Turner 1967). Quando Turner decidiu extrapolar o que havia descoberto em sua pesquisa africana para outros eventos religiosos do mundo moderno incluindo experincias no Mxico, Irlanda e Inglaterra, tragdias gregas e eventos histricos (Turner 1974) , paradoxalmente o aspecto univer-salista foi eliminado, embora o objetivo explcito fosse o exame da ao simblica no plano da `sociedade humana'. Por este exemplo, tal meta talvez se alcance melhor e mais facilmente por intermdio da experincia limitada de alguns casos reveladores. Foi Geertz quem chamou a ateno para esse aspecto microscpico e artesanal da pesquisa antropolgica, afirmando que os etnlogos no estudam aldeias, mas em aldeias (Geertz 1973). l que o repertrio de conceitos gerais das cincias sociais como integrao, racionalizao, smbolo, ideologia, ethos, revoluo, viso de mundo, sagrado, cultura se entrelaam `no corpo da etnografia de descrio minuciosa na esperana de tornar cientificamente eloqentes as simples ocorrncias' (1973: 38). Mas, infelizmente, Geertz no ficou imune ao envelhecimen-to: quase impossvel reconhecer no autor ctico e irnico de hoje o arteso de Islam Observed (1968).29 Nesta pequena jia de pouco mais de cem pginas, Geertz prope uma teoria da religio vinculada anlise da experincia histrica do islamismo no Marrocos e na Indonsia, utili-zando-se de uma abordagem de inspirao weberiana. Este feito, que resultou de extensa pesquisa histrico-bibliogrfica, seria invivel, segundo o prprio autor, se antes ele no houvesse realizado pesquisa de campo nos dois pases. Em 1968, Geertz confessou que o que ele chegou a observar `neste olhar amplo sobre a histria social dos dois contextos limites do mundo islmico', ele viu primeiro `nos estreitos confins das

    29Sobre o recente livro do autor e sua crtica, ver Geertz 1988; Peirano 1992a cap. 6.

  • pequenas cidades e vilarejos' (1968: vi). Nesse empreendimento, Geertz coloca a pesquisa de campo no centro da investigao e enfatiza: Fieldwork has been, for me, intellectually (and not only intellectually) formative, the

    source not just of discrete hypotheses but of whole patterns of

    social and cultural interpretation (1968: vi). Dadas as trajetrias intelectuais desses antroplogos o que teriam eles perdido ao longo do tempo? Certamente no se trata do material etnogrfico propriamente dito, pois enquanto muitos continuaram a fazer uso dele anos aps o trmino da pesquisa de campo, outros deixaram extensa documentao por analisar. Nesse contexto, o importante a ressaltar que o que talvez tenha empobrecido a obra desses antroplogos no decorrer do tempo tenha sido a ausncia da interlocuo terica que se inspira nos dados etnogrficos. Sem o impacto existencial e psquico da pesquisa de campo, parece que o material etnogrfico, embora presente, se tornou frio, distante e mudo. Os dados transformaram-se, com o passar do tempo, em meras ilustraes, algo muito diferente e distante da experincia totalizadora que, embora possa ocorrer em outras circunstncias, a pesquisa de campo simboliza. Em suma, os dados foram relegados memria fria e perderam a presena terica, e conseqentemente a presena na cosmologia do antroplogo. Isto significa, em outras palavras, que o dilogo entre as teorias dos antroplogos (no caso, ocidentais) e as teorias nativas (sejam elas Ndembu, trobriandesas, islmicas ou outras), dilogo este que se d no antroplogo, desapareceu. O pesquisador, agora sozinho, sem interlocutores interiorizados, voltou a ser apenas ocidental. Para evitar o diagnstico apressado de que estamos todos fadados `esclerose antropolgica',30 lembro a palestra de Edmund Leach na qual o autor elabora uma anlise antropolgica do acervo fotogrfico de sua famlia ao longo do sculo XIX.31 Nela, Leach refuta a diferena entre sociedades `frias' e `quentes', rev a distino entre histria e mito e, com elegncia e

    30Algumas excees: Jack Goody, na Inglaterra; Louis Dumont, na Frana; M.N.

    Sriniva