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Na novareligiãoda contfnua melhoria das condições de vida, o bem-estartornou-se uma paixÊlo de massa,o objetivosupremo das sociedadesdemocráticas. Entramosem uma novafase do capitalismo,que deu origem ao que Lipovetskychama de sociedade de hiperconsumo. O turboconsumidor individualista, flexível,hedonista,liberto das antigas culturas de classe está muito mais em buscade satisfaçõesemocionais imediatasque de demonstrações de condição social.O espíritode consumo infiltra-senas relações do consumidorcom a família, com o trabalho, com a religião,com a política,com o lazer.Vivemos numa espéciede impériodo consumo em tempo integral,servidopor um mercadodiversificadoque, a uma só vez, satisfaze incentivaa ilimitada aspiraçãoa novos prazeres. Mas a felicidade que daí resulta é uma felicidadeferida:jamais,mostra Lipovetsky, o indivíduocontemporâneo atingiu tal grau de desamparo,pois tornou-seo único responsávelpor seu êxito ou seu fracasso,estando assimconstantementesujeito a medos,ansiedadese frustrações. ISBN 978-85.359-1093.3 911~11]lIll!III~ll~~IJ~11

A Felicidade Paradoxal

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Na novareligiãoda contfnuamelhoriadas condiçõesde vida,o bem-estartornou-seuma paixÊlode massa,o objetivosupremodas sociedadesdemocráticas.Entramosem uma novafasedo capitalismo,que deu origemaoque Lipovetskychama de sociedadede hiperconsumo.

O turboconsumidor individualista,flexível,hedonista, libertodas antigasculturas de classeestámuito maisem buscade satisfaçõesemocionaisimediatasque de demonstraçõesde condiçãosocial.O espíritodeconsumo infiltra-senas relaçõesdo consumidorcom a família, como trabalho, com a religião,coma política,com o lazer.Vivemosnumaespéciede impériodo consumoem tempo integral,servidopor ummercadodiversificadoque, a umasó vez,satisfaze incentivaa ilimitadaaspiraçãoa novosprazeres.

Masa felicidadeque daí resultaé umafelicidadeferida:jamais,mostraLipovetsky,o indivíduocontemporâneoatingiu tal grau de desamparo,poistornou-seo único responsávelporseu êxitoou seufracasso,estandoassimconstantementesujeitoamedos,ansiedadese frustrações.

ISBN 978-85.359-1093.3

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GILLES LIPOVETSKY

A felicidade paradoxalEnsaio sobre a sociedade de hiperconsumo

TraduçãoMaria Lucia Machado

2~ reimpressão

~COMPANHIA DAS LETRAS

Page 3: A Felicidade Paradoxal

Copyright @ 2006 by Editions Gallimard SumárioEste livro, publicado no ãmbito do programa de participação à publicação Carlos Drummond de Andrade daEmbaixada da França no Brasil, contou com o apoio do Ministério francês das Relações Exteriores[Cet ouvrage, publié dans le cadre du Programme d'Aide à Ia Publication Carlos Drummond de Andrade del'Ambassade de France au Brésil, bénéficie du soutien du Ministere français desAffaires Etrangeres}.

Obra publicada como apoiodo Ministério francês encarregado da cultura - Centro Nacional do Livro[Ouvrage publié avec le concours du Ministere français chargé de Ia culture - Centre National du Livre].

Titulo originalLe bonheur paradoxal- Essai sur Ia société d'hyperconsommation

CapaRaul Loureiro

Imagem de capaIan MckinneJl/ Getty Images

PreparaçãoLeny Cordeiro

tndice remissivoLuciano Marchiori

RevisãoOtacílio NunesCecília Ramos Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 11

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (eIP)(CâmaraBrasileirado Livro)SP,Brasil) ,Lipovetsky, Gilles, 1944-

A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hipercon-sumo I GiIles Lipovetsky ; tradução Maria Lucia Machado. - SãoPaulo: Companhia das Letras, 2007.

PRIMEIRA PARTE

A SOCIEDADE DE HIPERCONSUMO . . . . . . . . . . . . . . . . 21

Titulooriginal: Lebonheurparadoxal: essai sue Ia sociétéd'hyperconsommation

Bibliografia.ISBN978-85-359-1093-3

eDD-306.3

1.As três eras do capitalismo de consumoO nascimento dos mercados de massaProdução e marketing de massa . .Uma tripla invenção: marca, acondicionamento

e publicidade . . . .Os grandes magazines

A sociedade de consumo de massaA economia fordistaUma nova salvação

2626261.Bem-estar - Aspectos sociais 2.Consumo (Economia) - As-

pectos sociais 3. Desejo - Aspectos sociais 4. História social - 19705. Riqueza - Aspectos morais e éticos I. Título 11.Título: Ensaiosobre a sociedade de hiperconsumo.

07-6567

Indice para catálogo sistemático:1.Consumo: História social: Sociologia 306.3

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34[2010]Todos os direitos desta edição reservados àEDITORA SCHWARCZ LTDA.

Rua Bandeira Paulista 702 cj. 3204532-002 - São Paulo - spTelefone: (11)3707-3500Fax: (11)3707-3501www.companhiadasletras.com.br

2.Além da posição social: o consumo emocional . .Do consumo ostentatório ao consumo experiencialO consumointimizado . . . . . . . . . . . . . . .

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Page 4: A Felicidade Paradoxal

Paixão pelasmarcas e consumo democrático . . .Fetichismo das marcas, luxo e individualismoHiperconsumo e ansiedade ......

Poder e impotência do hiperconsumidorMedicalizaçãodo consumo ..Controle do corpo e espoliaçãoUm hipermaterialismo médico

46474951535557

o turboconsumismo . . . . . . . .O consumo hiperindividualistaO consumidor-viajante . . . . .O consumo contínuo . . . . . . . .Um turboconsumismo policrônico . .O efeito Diva . . . . . . . . . .O consumo balcanizado ...A criança hiperconsumidoraPowerAge . . . . . . . . . . . .

Entremedidaecaos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Consumidor "profissional" e consumidor anárquico .

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3.Consumo, tempo e jogo . . . . . . . . . . . . . 60O consumo como viageme como divertimento 61Hedonismo, lazer e economia da experiência 61A compra-prazer 66A febre da mudança perpétua . .. '" .. 67

O consumo, a infância e o tempo . .. ... .. 69Rejuvenescera experiência vivida. . . 69Nostalgia e desejo de insignificância 73

6. O fabuloso destino do Homo consumericus . . . . . . . . . 128Oconsumo-mundo. . . . . . . . . . . . . . . . 129Oconsumosemfreio . . . . . . . . . . . . . . . . . 129A espiritualidade consumista 131O hiperconsumidor cativado pela ética .. 133O consumismo sem fronteira 135

O consumo reflexivo .. . 136Da vitrine à consciência . . . .. .. 138O hiperconsumo como destino . . . . . . . . .. .. 139

Limites da mercantilização . . 142Relações mercantis e sociabilidade .. . . 144Aniquilação dos valores? . . . . . . . . . . . . 146A sentimentalização do mundo .. ... . . . . . 147Frivolidade e fragilidade 148

,4.A organizaçãopós-fordista da economia . . . . . . . . . . 76A economia da variedade .. 78Extensão das séries e produção personalizada . . . . .. 79

Asreorientaçõesdemarketingdagrandedistribuição. . . . 82A corrida à inovação 85A inflação das novidades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86A economia da velocidade . . . . . . .. 89Cronoconcorrência . . . . . . . . . . .. 91

Imagem, preço e qualidade 92Hiperpublicidade e hipermarcas 95

SEGUNDA PARTE

5.Rumo a um turboconsumidor .. 98O consumo discricionário de massa 99A revolução do auto-serviço . . . . 100O hedonismo consumidor . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102

PRAZERES PRIVADOS, FELICIDADE FERIDA . . . . . . . .151

7. Penía: gozos materiais, insatisfação existencialDa decepção .....................

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Page 5: A Felicidade Paradoxal

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Consumo e decepção 161Os novos vetores da decepção . . . . . . . . . . . . . . . . 165Vida profissional, vida sentimental, vida malograda . . .168

Desejos, frustrações e publicidade 171A publicidade prometéica . . . . 173Extensão do domínio publicitário . . . . . . . . . . . . . . 175A ilusão da onipotência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177A publicidade-reflexo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 180

Tragédia do superconsumo? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 184A falta, o agir e os outros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187

Pobreza e delinqüência: a violência da felicidade . . . .. . 189Exclusão,consumo e individualização .. . . 191Precariedade e individualismo selvagem . 195Misériamaterial, miséria interior .. . 198

Afliçõese renascimento . . . . . . .. ... .200A vida recomeçada 204

O triunfo de Knock . . . . . . . . . . . . . . . . . 238Orgia pesada, sexo ajuizado . . . . . . . . ... . 241Eros frenético . . . . 242Um hedonismo bem temperado .., . 244Sexo, amor e narcisismo .. . . . . . . . . . . . . . . . . . 246

Noites de embriaguez e dias de festa . . . .,. . . . 248Drogas, desestruturação e criminalização . . . 248A ressurreição da festa . . . 251A festamaneira 256

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9. Super-Homem: obsessãopelo desempenho,prazeresdos sentidos . . . .. ., .., . . . 260

Vida profissional, vida privada .. . . ., .., . . . 262Trabalho e tempo livre . . . . . . . . . . . 265Feliz no trabalho? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 267

Corpos competitivos e corpos preguiçosos .. . . . . ., . 272A euforia esportiva . . . . . . . . . . . . . . .. . 273Sociedade dopante, esporte-Iazer e corpos preguiçosos . . 275

Superar-se ou sentir-se bem? 279"Maior bem-estar" e corpo das sensações .. . . . . . . . 282Medicalização, prudência e sofrimento . 287O consumo paliativo . . . . . . . . . . . . . . . . . ., . 290

Sexo-máquina? .. . . 291O amor, sempre . . . . . . .. .. . . 294Sexo-proeza, sexo emocional . . 297Miséria sexual e gozo sensual . 300Limites da revolução sexual . . . . . . . . . . . . . . . . . 302

l.-:J-II

8.Dionísio:sociedadehedonista, sociedadeantidionisíaca ...206Asagraçãodaspequenasfelicidades .209O cotidiano ludicizado . . .209Lazerese tempo para si . 211Era das comunidades, era dos indivíduos . 214

Conforto e bem-estar sensitivo . 216Do conforto tecnicista ao bem-estar emocional. .219O amor pela casa: o conforto no conforto . . . . . . . . . 221Conforto, tecnologias de conexão e segurança 225O design polissensorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229

Beber e comer ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 232Gargântua envergonhado . . . . . . . . . . . . . . . . 233Prazeres gastronômicos e cozinha hipermoderna . . 235

Odesvanecimentodo carpediem . . . . . . . . . . . . . 237

10. Nêmesis: superexposição da felicidade,regressão da inveja . . . 306

O mau-olhado . . . . . . . . . . . . . . . 309Quando a felicidade se mostra 312Ainvejaneutralizada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 313

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Dizer a felicidade .........Medo da inveja e modernidade

Confiança, felicidadee inveja .Confiança, suspeita e inveja ..

Asmetamorfoses da inveja . . . . .Luxoe comparação provocanteInveja existenciale invejageralO recuo da inveja ........

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Apresentação

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11.Homofelix:grandeza e miséria de uma utopia. . . . 333Felicidadee esperança " . . . 336Sabedoria da ilusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 338

Consumo destrutivo e consumo responsável . . . . . . . 340Uma sociedade de hiperconsumo durável? 341Hiperconsumo e anticonsumo 343Frugalidade e felicidade .. . . . . . . 345

A sabedoria ou a última ilusão . . . . . . . . . . . . . . . 348,A sabedoria light . . . . . . . . . . . . . . 349Ilusão da sabedoria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 351

Ética e estética: uma nova barbárie? 354Barbárie estética? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 356Barbárie moral? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 357

O espírito de consumo: até onde? .. 359Arcaísmos? . . . . . . . . . . .. .. '" . . . . . . 365

O pós-hiperconsumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 367O ecletismo da felicidade 369

Notas . . . . . . .índice remissivo .

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Uma nova modernidade nasceu: ela coincide com a "civili-zação do desejo"que foi construída ao longo da segunda metadedo século xx.

Essa revolução é inseparável das novas orientações do capi-talismo posto no caminho da estimulação perpétua da deman-da, da mercantilização e da multiplicação indefinida das necessi-dades: o capitalismo de consumo tomou o lugar das economiasde produção. Em algumas décadas, a affluent societyalterou osgêneros de vida e os costumes, ocasionou uma nova hierarquiados fins bem como uma nova relação com as coisase com o tem-po, consigo e com os outros. Avida no presente tomou o lugardas expectativas do futuro histórico e o hedonismo, o das mili-tâncias políticas; a febre do conforto substituiu as paixões nacio-nalistas e os lazeres, a revolução. Sustentado pela nova religiãodo melhoramento contínuo das condições de vida, o maior bem-estar tornou-se uma paixão de massa, o objetivo supremo das so-ciedades democráticas, um ideal exaltado em todas as esquinas.Raros são os fenômenos que conseguiram modificar tão profun-

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damente os modos de vida e os gostos, as aspirações e os com-portamentos da maioria em um intervalo de tempo tão curto. Ja-mais se reconhecerá tudo que o homem novo das sociedades li-berais "deve"à invenção da sociedade de consumo de massa.

Aparentemente, nada ou quase nada mudou: continuamosa nos mover na sociedade do supermercado e da publicidade, doautomóvel e da televisão. No entanto, a contar das duas últimasdécadas, surgiu um novo "ismo" que pôs fim à boa e velha socie-dade de consumo, transformando tanto a organização da ofertaquanto as práticas cotidianas e o universo mental do consumis-mo moderno: a própria revolução do consumo foi revoluciona-da. Estabeleceu-seuma nova fasedo capitalismo de consumo: elanão é mais que a sociedade de hiperconsumo. Seu funcionamen-to e seu impacto sobre as existênciassão o objeto deste livro.

O sistema fordista, ao difundir produtos padronizados, ce-deu o passo a uma economia da variedade e da reatividade naqual não apenas a qualidade, mas também o tempo, a inovação ea renovação dos produtos tornaram-se critérios de'competitivi-dade das empresas. Em paralelo, a distribuição, o marketing e acomunicação inventaram novos instrumentos com vista à con-quista dos mercados. Enquanto se desenvolve uma abordagemmais qualitativa do mercado levando em conta as necessidades ea satisfação do cliente, passamos de uma economia centrada naoferta a uma economia centrada na procura. Política de marca,"criação de valor para o cliente",sistemas de fidelização, cresci-mento da segmentação e da comunicação: está em atividade umarevolução copernicana que substitui a empresa "orientada para oproduto" pela empresa orientada para o mercado e o consumidor.

Anova predominância dos mercados de consumo não se ex-prime apenas nas estratégias das empresas,mas também no fun-cionamento global de nossas economias. Não são mais os pro-dutores que estão na origem da recente subida dos preços do

petróleo, mas o extremo vigor da procura, em particular ameri-cana e chinesa. No momento em que se intensificam as ameaçasde catástrofes ecológicas, a temática do "consumo durável" en-contra amplo eco,aparecendo o hiperconsumidor como um atora ser responsabilizado com toda a urgência, uma vez que suaspráticas excessivasdesequilibram a ecoesfera. Sabe-se, além dis-so, que as despesas de consumo das famílias se tornaram o pri-meiro motor do crescimento; daí o imperativo de instaurar umclima geral de confiança dos compradores a fim de que, poupan-do menos e tomando mais empréstimos, eles contribuam parauma expansão econômica forte, considerada primordial. O cres-cimento da economia mundial depende em grande parte do con-sumo americano, que representa um pouco menos de 70% do PIB

dos Estados Unidos e quase 20% da atividade mundial. A socie-dade de hiperconsumo coincide com um estado da economiamarcado pela centralidade do consumidor.

É assim que, em uma escalamais ampla, a nova era do capi-talismo se constrói estruturalmente em torno de dois atores pre-ponderantes: o acionista de um lado, o consumidor do outro. Orei bolsista e o cliente rei: essa nova configuração de poderes estáno princípio da mutação da economia globalizada. Em relaçãoao primeiro pólo, a hora é a da busca sistemática de uma criaçãode valor muito elevada para os detentores do capital. No que serefere ao segundo, o imperativo é mercantilizar todas as expe-riências em todo lugar, a toda hora e em qualquer idade, diversi-ficar a oferta adaptando-se às expectativas dos compradores, re-duzir os ciclos de vida dos produtos pela rapidez das inovações,segmentar os mercados, favorecer o crédito ao consumo, fideli-zar o cliente por práticas comerciais diferenciadas. Enquantotriunfa o capitalismo globalizado, o assalariado,os sindicatos e oEstado passaram para segundo plano, suplantados que são, daíem diante, pelo poder dos mercados financeiros e dos mercados

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de consumo. A nova economia-mundo não se define apenas pe-la soberania da lógica financeira: é também inseparável da ex-pansão de uma "economia do comprador".

A essa ordem econômica, em que o consumidor se impõecomo o senhor do tempo, corresponde uma profunda revoluçãodos comportamentos e do imaginário de consumo. Um Homoconsumericusde terceiro tipo vem à luz, uma espécie de turbo-consumidor desajustado, instável e flexível,amplamente libertodas antigas culturas de classe, imprevisível em seus gostos e emsuas compras. De um consumidor sujeito às coerções sociais daposição,passou-se a um hiperconsumidor à espreita de experiên-cias emocionais e de maior bem-estar, de qualidade de vida e desaúde, de marcas e de autenticidade, de imediatismo e de comu-nicação.O consumo intimizado tomou olugar do consumo hono-rífico,em um sistemaem que o comprador é cada vezmais infor-mado e infiel,reflexivoe"estético".Poucoa pouco, desvanecem-seos antigos limites de tempo e de espaço que emolduravam o uni-

d . , ,verso o consumo: eis-nos em um cosmo consumlsta contmuo,dessincronizado e hiperindividualista, no qual mais nenhuma ca-tegoria de idade escapa às estratégias de segmentação do marke-ting, mas no qual cada um pode construir à Iacarteseu empregodo tempo, remodelar sua aparência, moldar suas maneiras de vi-ver.A hora é do consumo-mundo em que não apenas as cultu-ras antagonistas foram eliminadas, mas em que o ethos consu-mista tende a reorganizar o conjunto das condutas, inclusiveaquelas que não dependem da troca mercantil. Pouco a pouco, oespírito de consumo conseguiu infiltrar-se até na relação com afamília e a religião,com a política e o sindicalismo, com a cultu-ra e o tempo disponível. Tudo sepassa como se, daí em diante, oconsumo funcionassecomo um império sem tempo morto cujoscontornos são infinitos.

Daí a condição profundamente paradoxal do hiperconsu-

midor. De um lado, este se afirma como um "consumator", infor-mado e "livre': que vê seu leque de escolhas ampliar-se, que con-sulta portais e comparadores de custo, aproveita as pechinchasdo low-cost,age procurando otimizar a relação qualidade/preço.Do outro, os modos de vida, os prazeres e os gostos mostram-secada vezmais sob a dependência do sistema mercantil. Quantomais o hiperconsumidor detém um poder que lhe era desconhe-cido até então,maiso mercado estende sua força tentacular; quan-to mais o comprador está em situação de auto-administração,mais existe extrodeterminação ligada à ordem comercial.

O hiperconsumidor não está mais apenas ávido de bem-es-tar material, eleaparece como um solicitante exponencial de con-forto psíquico, de harmonia interior e de desabrochamento sub-jetivo, demonstrados pelo florescimento das técnicas derivadasdo desenvolvimento pessoal bem como pelo sucesso das sabe-dorias orientais, das novas espiritualidades, dos guias da felici-dade e da sabedoria. O materialismo da primeira sociedade deconsumo passou de moda: assistimos à expansão do mercado daalma e de sua transformação, do equilíbrio e da auto-estima, en-quanto proliferam as farmácias da felicidade. Numa época emque o sofrimento é desprovido de todo sentido, em que os gran-des referenciais tradicionais e históricos estão esgotados, a ques-tão da felicidade interior "volta à tona': tornando-se um segmen-to comercial, um objeto de marketing que o hiperconsumidorquer poder ter em mãos, sem esforço, imediatamente e por to-dos os meios. A crença moderna segundo a qual a abundância éa condição necessária e suficiente da felicidade do homem dei-xou de ser evidente: resta saber se a reabilitaçãoda sabedoria nãorecompõe por sua vez uma ilusão de outro gênero. Reinvestindona dimensão do "ser" ou da espiritualidade, o neoconsumidorestá mais bem inserido no caminho da felicidade que seus pre-decessores?

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A civilizaçãoconsumista distingue-se pelo lugar central ocu-pado pelas aspirações de bem-estar e pela busca de uma vida me-lhor para simesmo e os seus.Não faltam indícios que façam pen-sar que, nesse domínio, a sociedade de hiperconsumo detém umcerto número de cartas mestras. Prolongando um movimentosecular, a esperança de vida não cessa de aumentar: agora é de76,7 anos para os francesese de 83,8 anos para as francesas;umamenina nascida em 2001 tem 50%de possibilidades de viverpe-lo menos até cem anos.Vive-semais, em melhor forma e benefi-ciando-se com melhores condições materiais. Cada um é reco-nhecido como senhor da condução de sua vida; os nascimentossão decididos; os comportamentos sexuais são deixados às livresinclinações dos homens e das mulheres. A parte do tempo nãotrabalhado representa, nos paísesmais desenvolvidos,entre 82%e 89% da duração total do tempo desperto de um indivíduo. Otempo e o dinheiro consagrados aos lazeres estão em alta cons-tante. As festas,os jogos, os lazeres, as incitações ao prazer inva-,dem o espaço da vida cotidiana. O tempo não é mais aquele noqual Freud escrevia que "a felicidade não é um valor cultural":agora ela triunfa, no reino dos ideais superiores. A progressãodos salários é deficiente?O poder de compra está ameaçado? Is-so não impede que nove entre dez franceses se declarem felizes.Coisa que fornece alguns desmentidos a todas as aves agouren-tas. Vistasdo alto, ao menos as regiões ricas são felizes.

A noiva é tão bela quanto esse primeiro plano fotográficosugere?A imensa maioria se diz feliz, contudo a tristeza e o es-tresse, as depressões e as ansiedades formam um rio que engros-sa de maneira inquietante. Majoritariamente, declaramo-nos fe-lizes pensando que os outros não o são. Jamais os pais seesforçaram tanto em satisfazer os desejos dos filhos, jamais os"distúrbios de comportamento" (entre 5% e 9% dos jovens dequinze anos) e as doenças mentais destes estiveram tão dissemi-

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nados: segundo o Inserm (Instituto Nacional da Saúde e da Pes-quisa Médica), uma criança em oito sofre de distúrbio mental.Se o PIBdobrou desde 1975, o número de desempregados qua-druplicou. Nossassociedadessão cadavezmais ricas:apesar disso,um número crescente de pessoas vive na precariedade e precisafazer economias em todos os itens de seu orçamento, tornan-do-se a falta de dinheiro uma preocupação cada vezmais obses-siva. Somos cada vezmais bem cuidados, o que não impede queos indivíduos se tornem uma espéciede hipocondríacos crôni-cos. Os corpos são livres, a miséria sexual é persistente. As solici-tações hedonísticas são onipresentes: as inquietudes, as decep-ções, as inseguranças sociais e pessoais aumentam. Aspectos quefazem da sociedade de hiperconsumo a civilização da felicidadeparadoxal.

"Quem fala da felicidade com freqüência tem os olhos tris-tes",escreviaAragon. Então é preciso dar razão ao poeta e, hoje,às leituras paranóicas do consumo, que detectam o abismo atrásdo espetáculo radiante da abundância e da comunicação? Esfor-cei-me em evitar semelhante propensão à demonização. Eviden-temente, o balanço humano e social da sociedade hipermercantilnão émuito lisonjeiro,mas é negativo em todos os pontos? Seelanão é o paraíso, tampouco se parece com o inferno de derreliçãoe de frustração pintado por seus detratores habituais. Progredi-mos no caminho da felicidade?Afirmá-lo seria confundir inde-vidamente bem-estar material e vida feliz. Em.todo caso, o hi-perconsumidor pode ter acessoa prazeressempremaisnumerosose freqüentes, provar os gozos incontáveis dos lazeres,das evasõese da mudança. Se essesconsumos não são sinônimos de felicida-de, não deixam de ser, muitas vezes, fontes de reais satisfações.Contra a postura hipócrita de grande parte da crítica do consu-mo, é preciso reconhecer os elementos de positividade implica-dos na superficialidade consumista. O que é que permite pensar

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o consumo como um domínio incapaz de proporcionar verda-deiras satisfações? Enganamo-nos ao considerar os gostos pelafacilidadee a frivolidade,pela evasãoe o jogo como necessidades"inferiores": eles são consubstanciais ao desejo humano. É neles,entre outros, que se enxerta a espiral do hiperconsumo. Os ex-cessos prejudiciais da atividade consumidora não bastam paradepreciar em seu conjunto um fenômeno que tem laços íntimoscom a busca do agradável e do divertimento. Com bom senso,Aristótelesjá o assinalava:o homem feliztem necessidade de go-zar, sem dificuldade,de diferentes bens exteriores.

Acrescentemosque, seasmanifestaçõesda "má vida"semul-tiplicam, os indivíduos têm igualmente mais oportunidades depoder "recomeçar"mais depressa.A sociedade de hiperconsumofunciona como uma sociedadede desorganizaçãopsicológicaqueé acompanhada por numerosos processos de "recuperação" oude redinamização subjetiva. Mais do que nunca, acelera-se a su-cessãodos altos e baixosda vida: movimentos de vaivémque jus-"ti ficam tanto o pessimismo quanto um certo otimismo. Sem dú-vida, há mais esperança a ser depositada nessa aceleração dosdados da existência que nas promessas dos novos gurus da sabe-doria.

Nada vem confirmar os pontos de vista dos mais pessimis-tas, que analisam a sociedade da satisfação total e imediata comoo caminho que prepara a eclosão de um "fascismo voluntário". Averdade é que a sociedade de hiperconsumo é menos aquela quese empenha em impulsionar um tiro pela culatra autoritarista doque aquela que nos protege dele. E, quaisquer que sejam as amea-ças que pesem sobre a educação e a cultura, as capacidades trans-cendentes, reflexivas e críticas dos sujeitos não foram de modoalgum decapitadas. As razões para ter esperança não estão cadu-cas: apesar da inflação das necessidades mercantilizadas, o indi-víduo continua a viver para outra coisa que não os bens mate-

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riais passageiros. Os ideais de amor, de verdade, de justiça, de al-truísmo não faliram: nenhum niilismo completo, nenhum "últi-mo homem" se desenha no horizonte dos tempos hipermodernos.

Se o novo regime mercantil não deve ser posto no pelouri-nho, tampouco deve ser incensado. Contemporâneo de um com-prador conscientizado e "profissionalizado", ele é igualmente pro-dutor de um "mal infinito", de comportamentos desenfreados eexcessivos, de uma infinidade de desordens subjetivas e de fra-cassos educativos. De um lado, a sociedade de hiperconsumo exal-ta os referenciais do maior bem-estar, da harmonia e do equilí-brio; do outro, ela se apresenta como um sistema hipertrófico eincontrolado, uma ordem bulímica que !eva ao extremo e ao caose que vê coabitar a opulência com a amplificação das desigual-dades e do subconsumo. As mazelas são duplas: dizem respeitotanto à ordem subjetiva das existências quanto ao ideal de justi-ça social.

É assim que a era da felicidade paradoxal exige soluções, elaspróprias paradoxais. Precisamos claramente de menos consumo,entendido como imaginário proliferativo da satisfação, como des-perdício da energia e como excrescência sem regra das condutasindividuais. A hora é da regulação e da moderação, do reforçodas motivações menos dependentes dos bens mercantis. Impõem-se mudanças, a fim de assegurar não apenas um desenvolvimen-to econômico durável, mas também existências menos desesta-bilizadas, menos magnetizadas pelas satisfações consumistas. Masprecisamos também, sob certos aspectos, de mais consumo: isso,para fazer recuar a pobreza, mas também para ajudar os idosos ecuidar sempre melhor das populações, utilizar melhor o tempo eos serviços, abrir-se para o mundo, provar experiências novas.Não há salvação sem progresso do consumo, ainda que ele fosseredefinido por novos critérios; não há esperança de uma vida me-lhor se não rediscutirmos o imaginário da satisfação completa e

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imediata, se nos ativermos apenas ao fetichismo do crescimentodas necessidades comercializadas. O tempo das revoluções polí-ticas está terminado, o do reequilíbrio da cultura consumista eda reinvenção permanente do consumo e dos modos de vida es-tá diante de nós.

A sociedade de hiperconsumo começa sua carreira por vol-ta do fim dos anos 1970e seu decurso não se dá sem incontáveiscríticas. Sem dúvida, estas modificarão sua fisionomia atual. Após-sociedade de hiperconsumo está, então, na ordem do dia?Ameu ver,não é nada disso,sendo o roteiro mais provávelseu alar-gamento na escalado planeta, em uma época que não dispõe desubstituto digno de crédito: em breve, serão centenas de milhõesde chineses e de indianos que entrarão na espiral da abundânciados bens e serviços pagos, indefinidamente renovados. Não nosenganemos: nem os protestos ecologistas nem os novos modosde consumo mais sóbrio bastarão para destronar a hegemoniacrescente da esfera mercantil, para fazer descarrilar o trem-bala

~consumista, para opor-se à avalanche dos novos produtos comciclo de vida cada vezmais curto. Estamos apenas no começo dasociedade de hiperconsumo, nada, por ora, está em condições dedeter, nem mesmo de frear, o avanço da mercantilização da ex-periência e dos modos de vida.

No entanto, cedo ou tarde, chegará o momento de sua su-peração, que inventará novas maneiras de produzir, de trocar,mas também de avaliar o consumo e de pensar a felicidade. Emum futuro distante, uma nova hierarquia de bens e de valoresvi-rá à luz.A sociedade de hiperconsumo terá morrido, cedendo opasso a outras prioridades, a um novo imaginário da vida em so-ciedade e do bem viver. Para um melhor equilíbrio? Para maiorfelicidadeda humanidade?

PRIMEIRA PARTE

A SOCIEDADE DE HIPERCONSUMO

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"Sociedade de consumo": a expressão aparece pela primeiravez nos anos 1920,populariza-se nos anos 1950-60, e seu êxitopermanece absoluto em nossos dias, como demonstra seu amplouso na linguagem corrente, assim como nos discursos mais es-pecializados. A idéia de sociedade de consumo soa agora comouma evidência, aparece como uma das figuras mais emblemáti-cas da ordem econômica e da vida cotidiana das sociedades con-temporâneas.

Mas não é menos verdade que interrogações e dúvidas a seurespeito vieram à luz, alguns não hesitaram mesmo em lavrar suacertidão de óbito. Assimé que, no começo dos anos 1990,obser-vadores assinalam mudanças significativasnas regiões democrá-ticas da abundância em crise: perda do apetite de consumir, de-sinteresse pelas marcas, maior atenção aos preços, recuo dascompras por impulso. E, sim, nosso fim de século sublinhava "ofim da sociedade de consumo", manchete então do semanárioL'Express.

Outros tipos de considerações alimentaram ainda o ques-

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tionamento do ideal-modelo da mass consumption society.Re-lembrarei dois deles muito brevemente. O primeiro, insistindona revolução das tecnologias da informação e da comunicação,anunciou o advento de uma sociedade de novo gênero: a das re-des e do capitalismo informacional tomando o lugar do capita-lismo de consumo. O segundo apoiou-se nas mudanças de atitu-des ede valoresde que nossas sociedadessão testemunhas. Depoisde ter posto a ênfase no bem-estar material, no dinheiro e na se-gurança física,nossa época daria prioridade à qualidade de vida,à expressão de si, à espiritual idade, às preocupações relativas aosentido da vida. De um sistema cultural essencialmente materia-lista, teríamos passado a uma Weltanschauung[visãode mundo]tendencialmente "pós-materialista': Sociedade informacional, so-ciedade pós-materialista: assim, veríamos desaparecer pouco apouco a sagraçãodas"coisas"pintada em outros tempos por Geor-ges Perec.

Sepor "fim da sociedade de consumo" entende-se perda de.fôlegodas paixões consumistas e colocação em xeque da mercan-tilização das necessidades,a idéia, com toda a certeza, não resisteum instante ao exame. É preciso, por isso,eliminar de uma vez atemática de uma "superação" desse tipo de sociedade e de cultu-ra? Não creio.Tenho,ao contrário, a convicção de que essahipó-tese é correta. Há mais de vinte anos, as democracias envereda-ram por uma nova era de mercantilização dos modos de vida, aspráticas de consumo exprimem uma nova relação com as coisas,com os outros e consigo.A dinâmica de expansão das necessida-des se prolonga, mas carregada de novos significados coletivos eindividuais. É um consumidor de "terceiro grau" que deambulanos centros comerciais gigantes, compra marcas mundiais, pro-cura produtos light ou biodinâmicos, exige selos de qualidade,naveganas redes, baixa música no telefone celular.Semque se dêpor isso e além da familiaridade de uma expressão tornada con-

sensual, a era do consumo de massa mudou de fisionomia, eisque chega a uma nova fase de sua história secular.

Advento de uma nova economia e de uma nova cultura de

consumo não quer dizer mutação histórica absoluta. A pós-so-ciedade de consumo de massa deve ser entendida como uma rup-tura na continuidade, uma mudança de rumo sobre fundo depermanência. O sistema pós-fordista que se impõe é acompanha-do por profundas alterações nos modos de estimulação da deman-da, nas fórmulas de venda, nos comportamentos e nos imagináriosde consumo. Mas não é menos verdade que essas transformaçõesprolongam uma dinâmica econômica começada desde as últimasdécadas do século XIXe inscrevem-se na longa corrente da civili-zação individualista da felicidade. As indústrias e os serviços ago-ra empregam lógicas de opção, estratégias de personalização dosprodutos e dos preços, a grande distribuição empenha-se em po-líticas de diferenciação e de segmentação, mas todas essas mu-danças não fazem mais que ampliar a mercantilização dos mo-dos de vida, alimentar um pouco mais o frenesi das necessidades,avançar um grau na lógica do "sempre mais, sempre novo" que oúltimo meio século já concretizou com o sucesso que se conhe-ce. É nesses termos que deve ser pensada a "saída" da sociedadede consumo, uma saída por cima, não por baixo, por hipermate-rialismo mais que por pós-materialismo.

A nova sociedade que nasce funciona por hiperconsumo, nãopor "des-consumo".

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1. As três eras do capitalismode consumo

infra-estruturas modernas de transporte e de comunicação: es-tradas de ferro, telégrafo, telefone. Aumentando a regularidade,o volume e a velocidade dos transportes para as fábricas e paraas cidades, as redes ferroviárias, em particular, permitiram o de-senvolvimento do comércio em grande escala, o escoamento re-gular de quantidades maciças de produtos, a gestão dos fluxos deprodutos de um estágio de produção a outro.l

Essa fase é contemporânea, igualmente, da elaboração demáquinas de fabricação contínua que, elevando a velocidade e aquantidade dos fluxos, ocasionaram o aumento da produtivida-de comcustosmaisbaixos:elasabriram caminho para a produçãode massa. No fim dos anos 1880,nos Estados Unidos, uma má-quina já podia fabricar 120 mil cigarros por dia: trinta dessasmáquinas bastavam para saturar o mercado nacional. Máquinasautomáticas permitiam que 75 operários produzissem todos osdias 2 milhões de caixas de fósforos. A Procter &Gamble fabri-cava 200 mil sabonetes Yvorypor dia. Máquinas desse tipo apa-reciam igualmente na produção do material de limpeza, dos ce-reais matinais, dos rolos fotográficos, das sopas, do leite e outrosprodutos embalados. Assim, as técnicas de fabricação com pro-cesso contínuo permitiram produzir em enormes séries merca-dorias padronizadas que, embaladas em pequenas quantidades ecom nome de marca, puderam ser distribuídas em escala nacio-nal, a preço unitário muito baixo.2

A expansão da produção em grande escala é também esti-mulada pela reestruturação das fábricas em função dos princí-pios da "organização científica do trabalho". Foi no setor do au-tomóvel que estes receberam sua aplicação mais ampla. Graças àlinha demontagem móvel,o tempo de trabalho necessárioàmon-tagem de um chassi do modelo "T" da Ford passou de doze ho-ras e 28minutos, em 1910,para uma hora e 33minutos, em 1914.A fábrica de Highland Park punha à venda mil carros por dia.

Se a hipótese de uma nova etapa histórica da civilização con-sumidora é justa, é possível propor um esquema de sua evoluçãofundado na distinção de três grandes momentos. Não é necessá-,rio esclarecer que a "descrição" que dou deles é das mais sumá-rias, sendo o objetivo procurado apenas o de abarcar num únicoolhar um fenômeno complexo e secular, pôr em perspectiva osentido das mudanças em curso, inscrevendo o presente na his-tória longa da civilizaçãode massa.

o NASCIMENTO DOS MERCADOS DE MASSA

Produção e marketing de massa

o ciclo I da era do consumo de massa começa por volta dosanos 1880 e termina com a Segunda Guerra Mundial.

Fase I que vê constituir-se, no lugar dos pequenos mercadoslocais, os grandes mercados nacionais tornados possíveis pelas

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Tendo o aumento da velocidade da produção permitido baixar opreço de venda a ponto de representar apenas a metade do de seuconcorrente mais próximo/ as vendas de veículos com preçosmoderados tiveram um crescimento considerável.

O capitalismo de consumo não nasceu mecanicamente detécnicas industriais capazes de produzir em grandes séries mer-cadorias padronizadas. Ele é também uma construção cultural esocial que requereu a "educação" dos consumidores ao mesmotempo que o espírito visionário de empreendedores criativos, a"mão visíveldos gestores".No fundamento da economia de con-sumo encontra-se uma nova filosofia comercial, uma estratégiaem ruptura com as atitudes do passado: vender a maior quanti-dade de produtos com uma fracamargem de ganho de preferên-cia a uma pequena quantidade com uma margem importante. Olucro, não pelo aumento mas pela baixa do preço de venda. Aeconomia de consumo é inseparável desta invenção de marke-ting:a busca do lucro pelo volume e pela prática dos preços bai-,xos.4Pôr os produtos ao alcance das massas: a era moderna doconsumo é condutora de um projeto de democratização do aces-so aos bens mercantis.

A fase I ilustra já essadinâmica, tendo um conjunto de pro-dutos duráveis e não duráveis se tornado acessível a um maiornúmero de pessoas. Esseprocesso, contudo, permaneceu limita-do, uma vezque a maioria dos lares populares tem recursos mui-to escassospara poder adquirir os equipamentos modernos. Al-gumas cifras ilustram os limites dessa democratização. NosEstados Unidos, em 1929,contam-se dezenove automóveis paracem habitantes, e na França e na Grã-Bretanha dois para cem ha-bitantes. Em 1932,há nos Estados Unidos 740 aspiradores, 1580ferros de passar e 180fornos elétricos para 10mil pessoas contrarespectivamente, na França, 120,850, oito. Na França, o uso dosaparelhos eletrodomésticos permaneceu muito tempo associado

ao luxo: ainda em 1954,apenas 7% dos lares estão equipados comum refrigerador. A fase I criou um consumo de massa inacaba-do, com predominância burguesa.;

Uma tripla invenção: marca,acondicionamento e publicidade

Aodesenvolvera produção de massa,a faseI inventou o mar-keting de massa bem como o consumidor moderno. Até os anos1880,os produtos eram anônimos, vendidos a granel, e as mar-casnacionais, muito pouco numerosas. A fim de controlar os flu-xos de produção e de rentabilizar seus equipamentos, as novasindústrias acondicionaram elas mesmas seus produtos, fazendopublicidade em escalanacional em torno de sua marca. Pela pri-meira vez, empresas consagram enormes orçamentos à publici-dade; as somas investidas estão em aumento muito rápido: de 11mil dólares em 1892,as despesas publicitárias da Coca-Cola ele-vam-se a 100mil em 1901, 1,2milhão em 1912,3,8 milhões em1929.6

Padronizados, empacotados em pequenas embalagens, dis-tribuídos nos mercados nacionais, desde então os produtos vãoter um nome, o que lhes foi atribuído pelo fabricante: a marca.A fase Icriou uma economia baseada em uma infinidade de mar-cascélebres,algumas das quais conservaram uma posição de des-taque até nossos dias. É ao longo dos anos 1880que são funda-das ou que se tornam célebresa Coca-Cola, a AmericanTobacco,a Procter &Gamble, a Kodak, a Heinz, a Quaker Oats, a Camp-bell Soup. De 1886 a 1920, o número de marcas registra das naFrança passa de 5520para 25mil.

O aparecimento das grandes marcas e dos produtos acondi-cionados transformou profundamente a relação do consumidorcom o varejista, este perdendo as funções que até então lhe esta-

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vam reservadas:daí em diante, não émais no vendedor que se fiao consumidor, mas na marca, sendo a garantia e a qualidade dosprodutos transferidas para o fabricante. Rompendo a antiga re-laçãomercantil dominada pelo comerciante, a faseI transformouo cliente tradicional em consumidor moderno, em consumidorde marcas a ser educado e seduzido especialmente pela publici-dade. Com a tripla invenção da marca, do acondicionamento eda publicidade, apareceu o consumidor dos tempos modernos,comprando o produto sem a intermediação obrigatória do co-merciante, julgando os produtos a partir de seu nome mais quea partir de sua composição, comprando uma assinatura no lugarde uma coisa.7

produtos oferecidos aos clientes. Permitindo a entrada livre e as"devoluções", vendendo a preços baixos e fixos, etiquetando ospreços, o grande magazine rompe com as tradições comerciaisdo passado, especialmente com o ritual costumeiro do regateiosobre os artigos.8 Graças a uma política de vender barato, o gran-de magazine transformou os bens antigamente reservados à eliteem artigos de consumo de massa destinados à burguesia.

Paralelamente, por intermédio de suas publicidades, de suasanimações e ricas decorações, os grandes magazines puseram emmarcha um processo de "democratização do desejo".9 Ao trans-formar os locais de venda em palácios de sonho, os grandes ma-gazines revolucionaram a relação com o consumo.

Estilo monumental dos magazines, decorações luxuosas, do-mos resplandecentes, vitrines de cor e de luz, tudo é montado pa-ra ofuscar a vista, metamorfosear o magazine em festa perma-nente, maravilhar o freguês, criar um clima compulsivo e sensualpropício à compra. O grande magazine não vende apenas mer-cadorias, consagra-se a estimular a necessidade de consumir, aexcitar o gosto pelas novidades e pela moda por meio de estraté-gias de sedução que prefiguram as técnicas modernas do marke-ting. Impressionar a imaginação, despertar o desejo, apresentar acompra como um prazer, os grandes magazines foram, com a pu-blicidade, os principais instrumentos da elevação do consumo aarte de viver e emblema da felicidade moderna. Enquanto os gran-des magazines trabalhavam em desculpabilizar o ato de compra,o shopping, o "olhar vitrines" tornaram-se uma maneira de ocu-par o tempo, um estilo de vida das classes médias. 10 A fase I in-ventou o consumo-sedução, o consumo-distração de que somosherdeiros fiéis.

Os grandes magazines

A produção de massa foi acompanhada pela invenção de umcomércio de massa impulsionado pelo grande magazine. Na Fran-ça, o Printemps é fundado em 1865 eLe Bon Ma~ché, em 1869;nos Estados Unidos, o Macy's e o Bloomingdale's tornam-se gran-des magazines antes e depois dos anos 1870. Baseado em novaspolíticas de venda agressivas e sedutoras, o grande magazine cons-titui a primeira revolução comercial moderna, inaugurando a erada distribuição de massa.

Em primeiro lugar, os grandes magazines deram ênfase à ro-tação rápida dos estoques e a uma prática de preços baixos comvista a um volume de negócios elevado fundado na venda emgrande escala: em 1890, mais de 15 mil pessoas se dirigiam pordia ao Bon Marché; 70 mil clientes o visitavam nos dias de ven-das especiais. O importante, daí para a frente, é a rapidez de es-coamento de uma quantidade máxima de produtos, mas comuma margem de ganho menor. Em segundo lugar, esses novosempreendedores aumentaram consideravelmente a variedade dos

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A SOCIEDADE DE CONSUMO DE MASSA da urgência da necessidade estrita. Pela primeira vez, as massastêm acesso a uma demanda material mais psicologizada e maisindividualizada, a um modo de vida (bens duráveis, lazeres, fé-rias, moda) antigamente associado às elites sociais.

A sociedade de consumo de massanão pôde desabrochar se-não com base em uma ampla difusão do modelo tayloriano-for-dista de organização da produção, que permitiu uma excepcio-nal alta da produtividade bem como a progressão dos salários:de 1950a 1973,o crescimento anual da produtividade do traba-lho foi de 4,7% nos doze paísesda Europa ocidental.Aspalavras-chave nas organizações industriais passam a ser: especialização,padronização, repetitividade, elevaçãodos volumes de produção.Trata-se, graças à automatização e às linhas de montagem, de fa-bricar produtos padronizados em enorme quantidade. A "lógicada quantidade"dominaa faselI.

Não é apenas a esferaindustrial que semoderniza com gran-de rapidez: a grande distribuição reestrutura-se igualmente, in-tegrando em seu funcionamento os mecanismos de racionaliza-ção empregados no sistema produtivo fordista: exploração daseconomias de escala,métodos científicos de gestão e de organi-zação do trabalho, divisão intensiva das tarefas, volume de ven-das elevado, preços os mais baixos possíveis, margem de ganhofraca, rotação rápida das mercadorias. A expressão "fábrica devender" data dos anos 1960:ela revela o impulso da lógica pro-dutivista presente na distribuição em grande escala.Com a for-midável difusão do auto-serviço, dos supermercados e, depois,dos hipermercados, não se trata mais apenas de vender a preçobaixo,mas de "derrubar os preços': sendo "menos caro que o me-nos caro":11uma formidável "revolução comercial" acompanha afase lI.

A produção e o consumo de massa reclamavam uma distri-buição de massa: o desenvolvimento das grandes áreas com au-

É por volta de 1950 que se estabelece o novo ciclo históricodas economias de consumo: ele se constrói ao longo das três dé-cadas do pós-guerra. Se essa fase prolongou os processos inven-tados no estágio precedente, nem por isso ela deixa de constituir

uma imensa mutação cuja radicalidade, instituidora de uma rup-tura cultural, jamais será sublinhada o bastante.

A economia fordista

I Marcada por um excepcional crescimento econômico, pelaelevação do nível de produtividade do trabalho e pela extensão daregulação fordista da economia, a fase II identifica-se com o quese chamou de "sociedade da abundância': Multiplicando por trêsou quatro o poder de compra dos salários, democratizando os so-nhos do Eldorado consumista, a fase II apresenta-se como o mo-delo puro da "sociedade do consumo de massa': '

Se a fase I começou a democratizar a compra dos bens du-ráveis, a fase II aperfeiçoou esseprocesso, pondo à disposição detodos, ou de quase todos, os produtos emblemáticos da sociedadede afluência: automóvel, televisão, aparelhos eletrodomésticos. Aépoca vê o nível de consumo elevar-se, a estrutura de consumomodificar-se, a compra de bens duráveis espalhar-se em todos osmeios: na França, a participação das despesas da alimentação emdomicílio passa, no orçamento das famílias, de 49,9%, em 1950,a 20,5% em 1980; entre 1959 e 1973, o consumo dos bens durá-

veis progride 10,3% ao ano em volume. Consumando o "milagredo consumo': a fase II fez aparecer um poder de compra discri-cionário em camadas sociais cada vez mais vastas, que podem en-carar com confiança a melhoria permanente de seu meio de exis-tência; ela difundiu o crédito epermitiu que a maioria se libertasse

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to-serviço e a prática sistemática do desconto vieram respondera essa exigência. O grande comércio passa por um crescimentofulgurante: o primeiro supermercado é aberto na Françaem 1957,quando os Estados Unidos já contavam 20mil deles:enumeram-se 2587em 1973e 3962em 1980.O primeiro hipermercado abresuas portas em 1963 sob a bandeira Carrefour: contam-se 124em 1972 e 426 em 1980. Expansão considerável do parque dasgrandes áreas (supermercado, hipermercado), que se traduziu naprogressão de sua participação no montante de negócios do co-mércio, o de alimentos em particular: 20% em 1974, 30% em1980.

Ao longo de toda a fase li, as próteses mercantis invadem avida cotidiana, ao mesmo tempo que começam a vir à luz políti-cas de diversificaçãodos produtos bem como processos visandoreduzir o tempo de vida das mercadorias, tirá-Ias de moda pelarenovação rápida dos modelos e dos estilos. O "complô da mo-da",que cerca daí em diante o universo industrial, constitui ob-,jeto de muitas denúncias. Embora de natureza essencialmente

fordista, a ordem econômica ordena-se já parcialmente segundoos princípios da sedução, do efêmero, da diferenciação dos mer-cados: ao marketing de massa típico da faseI sucedem estratégiasde segmentação centradas na idade e nos fatores socioculturais.

É um ciclo intermediário e híbrido, combinando lógica fordistae lógica-moda, que se instala.

Uma nova salvação

cia do progresso. Incrementar o PNBe aumentar o nível de vidade todos figura como "ardorosa obrigação": toda uma sociedadese mobiliza em torno do projeto de arranjar um cotidiano con-fortável e fácil,sinônimo de felicidade.Celebrando com ênfase oconforto material e o equipamento moderno dos lares, a fase11édominada por uma lógica econômica e técnica mais quantitativaque qualitativa. De um lado, a sociedade de consumo de massaapresenta-se, através da mitologia da profusão, como utopia rea-lizada. Do outro, ela se pensa como marcha rumo à utopia, exi-gindo sempre mais conforto, sempre mais objetos e lazeres.

Há algo mais na sociedade de consumo além da rápida ele-vação do nível de vida médio: a ambiência de estimulação dosdesejos, a euforia publicitária, a imagem luxuriante das férias, asexualização dos signos e dos corpos. Eis um tipo de sociedadeque substitui a coerção pela sedução, o dever pelo hedonismo, apoupança pelo dispêndio, a solenidade pelo humor, o recalquepela liberação, as promessas do futuro pelo presente. A fase 11semostra como "sociedade do desejo",achando-se toda a cotidia-nidade impregnada de imaginário de felicidadeconsumidora, desonhos de praia, de ludismo erótico, de modas ostensivamentejovens. Música rock, quadrinhos, pin-up, liberação sexual, funmorality, design modernista: o período heróico do consumo re-juvenesceu,exaltou, suavizouossignos da cultura cotidiana.Atra-vésde mitologias adolescentes,liberatórias edespreocupadas como futuro, produziu-se uma profunda mutação cultural.

A fase 11é aquela em que se esboroam com grande rapidezas antigas resistências culturais às frivolidades da vida materialmercantil. Toda a máquina econômica se consagra a isso atravésda renovação dos produtos, da mudança dos modelos e dos esti-los, da moda, do crédito, da sedução publicitária. O crédito é en-corajado a fim de comprar asmaravilhas da terra de abundância,de realizar desejossem demora. Entre 1952e 1972,o investimen-

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Ao longo dessa fase edifica-se, propriamente falando, a "so-ciedade de consumo de massa" como projeto de sociedade e ob-jetivo supremo das sociedades ocidentais. Nasce uma nova socie-dade, na qual o crescimento, a melhoria das condições de vida,os objetos-guias do consumo se tornam os critérios por excelên-

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to publicitário francês é multiplicado pelo menos por cinco (emfrancos constantes); de 1952a 1973,asdespesaspublicitárias ame-ricanas são multiplicadas por três. No começo dos anos 1960,en-quanto a publicidade ganha novos espaços, uma família ameri-cana já está sujeita a cerca de 1500mensagens por dia. É comouma época hipertrófica de "criação de necessidades artificiais",de "esbanjamento" organizado,12de tentações onipresentes e deestimulações desenfreadas dos desejos que aparece a affluent 50-ciety.Poderosa dinâmica de comercialização que erigiu o consu-mo mercantil em estilo de vida, em sonho de massa, em nova ra-zão de viver.A sociedade de consumo criou em grande escala avontade crônica dos bens mercantis, o vírus da compra, a paixãopelo novo, um modo de vida centrado nos valores materialistas.Shoppingcompulsivo, febre dos objetos, escalada das necessida-des, profusão e esbanjamento espetacular: a fase 11menos orde-nou a "programação burocrática do cotidiano"13do que destra-dicionalizou a esfera do consumo; ela menos criou um ambiente,"climatizado"do que privatizou os modos de vida.

Enquanto se acelera "a obsolescência dirigida" dos produ-tos, a publicidade e as mídias exaltam os gozos instantâneos, exi-bindo um pouco por toda parte os sonhos do eros, do conforto edos lazeres. Sob um dilúvio de signos leves,frívolos, hedonistas,a fase IIse empenhou em deslegitimar as normas vitorianas, osideais sacrificiais,os imperativos rigoristas em benefício dos go-zos privados. Assim, ela provocou uma oscilação do tempo, fa-zendo passar da orientação futurista para a "vida no presente" esuas satisfações imediatas. Revolução do conforto, revolução docotidiano, revolução sexual:a fase 11está no princípio da "segun-da revolução individualista': 14 marcada pelo culto hedonista e psi-cológico, pela privatização da vida e a autonomização dos sujei-tos em relação às instituições coletivas.Ela pode ser consideradacomo o primeiro momento do desvanecimento da antiga mo-

dernidade disciplinar e autoritária, dominada pelas confronta-ções e ideologias de classe.

Esse ciclo, por sua vez, está terminado. Desde o fim dos anos1970, é o terceiro ato das economias de consumo que se repre-senta no palco das sociedades desenvolvidas. Escreve-se uma pá-gina que inventa um novo futuro para a aventura individualistae consumista das sociedades liberais. Os capítulos que se seguem

procuram fixar-lhe os contornos e as apostas.

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2. Além da posição social:o consumo emocional

procurando os atores não tanto gozar de um valor de uso quan-to exibir uma condição, classificar-se e ser superiores em umahierarquia de signos concorrentes.\ Nessa perspectiva, a corridaaos bens mercantis é inesgotável apenas na medida em que seapóia em lutas simbólicas com vista à apropriação dos signos di-ferenciais. As estratégias distintivas e as lutas de concorrênciaopondo as classessociais é que estão no princípio da excrescên-cia gigantesca do consumo e da impossibilidade de chegar a umlimiar de saturação das necessidades.2

DO CONSUMO OSTENTATÓRIO

AO CONSUMO EXPERIENCIAL

~,

A constatação é banal: à medida que nossas sociedades en-riquecem, surgem incessantemente novas vontades de consumir.Quanto mais se consome, mais se quer consumir: a época da,abundância é inseparável de um alargamento indefinido da esfe-ra das satisfações desejadas e de uma incapacidade de eliminaros apetites de consumo, sendo toda saturação de uma necessida-de acompanhada imediatamente por novas procuras. Daí a tra-dicional pergunta: a que se deveessa escaladasem fim das neces-sidades?O que é que faz correr incansavelmente o consumidor?

No rastro de Veblen, os sociólogos críticos dos anos 1960-70 esforçaram-se em responder a essas interrogações descons-truindo a ideologia das necessidades,sendo o consumo interpre-tado como uma lógica de diferenciação social. Nada de objetodesejável em si, nada de atrativo das coisas por si mesmas, massempre exigências de prestígio e de reconhecimento, de status ede integração social.Estrutura de intercâmbio social sustentadapela lógica da posição e das competições por status, o consumona fase IIé definido como um campo de símbolos distintivos,

Digamo-Io sem dissimulação: a sociologia que se pretendiacrítica mostrou não estar a par de seu tempo ao considerar "oefeitoVeblen"o epicentro da dinâmica consumidora, no momen-to mesmo em que o valor de uso dos objetos tomava uma con-sistência inédita, em que os referenciais do conforto, do prazer edos lazeres começavam a impor-se como objetivos capazes deorientar os comportamentos da maioria. Já em 1964,E. Dichterobservava que o status se tornara uma motivação secundária naaquisição de um carro.) De fato, o mesmo acontecia com a tele-visão, os aparelhos eletrodomésticos, as férias, a praia, cuja sedu-ção não pode ser explicada a partir apenas do modelo da distin-ção.Averdade é que, a partir dos anos 1950-60, ter acesso a ummodo de vida mais fácile mais confortável, mais livre e mais he-donista constituía já uma motivação muito importante dos con-sumidores. Exaltando os ideais da felicidade privada, os lazeres,as publicidades e as mídias favoreceram condutas de consumomenos sujeitas ao primado do julgamento do outro. Viver me-lhor, gozar os prazeres da vida, não se privar, dispor do "supér-

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fluo" apareceram cada vez mais como comportamentos legíti-mos, finalidades em si. O culto do bem-estar de massa celebradopela fase 11começou a minar a lógica dos dispêndios com vista àconsideração social,a promover um modelo de consumo de tipoindividualista.

Mas não é menos verdade que, durante todo esse ciclo, oconsumo conservou um forte potencial de prestígio, não deixan-do os objetos de ser valorizados como signos tangíveis de suces-so, provas de ascensão e de integração social,vetores de conside-ração honorífica. Os carros americanos são sobrecarregados decromados e de aletas aerodinâmicas para impressionar o olhar,criar uma imagem de superioridade social. Da mesma maneiraque se ficaorgulhoso de exibir os objetos como emblemas de po-sição, a publicidade esforça-seem louvar os produtos como sím-bolos de condição social: são mulheres maquiadas, "finas" e ele-gantes que encenam os visuais publicitários para o carro, abatedeira ou o aspirador. Auscultando os comp~rtamentos dosfifties,V.Packard fala dos "obcecadospor posição social".4

Essa combinação de duas lógicas heterogêneas (corrida àconsideração/ corrida aos prazeres) revela a especificidade com-pósita da fase11em relação ao ciclo precedente que, conhecendoapenas uma difusão limitada dos bens duráveis industriais, cons-truiu-se sob a égide hegemônica do consumo de status. Prolon-gando o regime dos dispêndios para dar na vista, a fase II é, aomesmo tempo, a que erigiu o hedonismo em finalidade legítimade massa, a que transformou a ambiência ou o estilo do consu-mo, envolvendo-onum halo de levezae de ludismo, dejuvenilida-de e de erotismo.Juke-box,fliperama,pin-up, patinete, rock'n'roll,toca-discos, transistor, televisão, Club Méditerranée, cadeira"Djinn" de aspecto zoomórfico, designpop, jeans e minissaia, unstantos produtos certamente muito diversos,mas que, associadosà juventude ou a Eros, à mobilidade e à liberdade, à provocação

e ao divertimento, suavizaram, dinamizaram o imaginário con-sumidor. O momento "pesado", enfático e competitivo da mer-cadoria recuou um grau em favor de uma mitologia eufórica elúdica, frívola e juvenil. Daí a natureza híbrida desse ciclo,que seapresenta, na escala histórica, como uma formação de compro-misso entre a mitologia da posição social e a do fun, entre o con-sumo demonstrativo "tradicional" e o consumo hedonista indi-vidualista.

O consumo intimizado

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Essecicloestá terminado. Oprocessode redução das despesaspara atrair consideração tomou tal amplitude que somos levadosa afirmar a emergência de uma nova fasehistórica do consumo.No rastro da extrema diversificação da oferta, da democratiza-ção do conforto e dos lazeres, o acesso às novidades mercantisbanalizou-se, as regulações de classe se desagregaram, novas as-pirações e novos comportamentos vieram à luz.Enquanto se des-prezam os habitus e particularismos de classe, os consumidoresmostram-se mais imprevisíveise voláteis,mais à espera de quali-dade de vida, de comunicação e de saúde, têm melhores condi-ções de fazer uma escolha entre as diferentes propostas da ofer-ta. O consumo ordena-se cada dia um pouco mais em função defins, de gostos e de critérios individuais. Eis chegada a época dohiperconsumo,faseIII damercantilizaçãomodernadasnecessi-dades e orquestrada por uma lógica desinstitucionalizada, subje-tiva, emocional.

Uma das dinâmicas postas em marcha há meio século tor-nou-se dominante: em período de hiperconsumo, asmotivaçõesprivadas superam muito as finalidades distintivas. Queremos ob-jetos "para viver",mais que objetos para exibir, compramos me-nos isto ou aquilo para nos pavonear, alardear uma posição so-

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cial, que com vista a satisfações emocionais e corporais, senso-riais e estéticas, relacionais e sanitárias, lúdicas e distrativas. Osbens mercantis funcionavam tendencialmente como símbolos destatus, agora eles aparecem cada vezmais como serviços à pes-soa. Das coisas, esperamos menos que nos classifiquemem rela-ção aos outros e mais que nos permitam ser mais independentesemais móveis,sentir sensações,viver experiências,melhorar nos-sa qualidade de vida, conservar juventude e saúde. Naturalmen-te, as satisfações sociais diferenciais permanecem, mas quase jánão são mais que uma motivação entre muitas outras, em umconjuhto dominado pela busca das felicidades privadas. O con-sumo "para si" suplantou o consumo "para o outro': em sintoniacom o irresistívelmovimento de individualização das expectati-vas,dos gostos e dos comportamentos.

As despesas suntuárias, a corrida à posição social, os com-portamentos de moda sempre se apoiaram em lutas de concor-rência entre grupos com a ambição de classificat1-see de fazer-sereconhecer.A época do hiperconsumo apresenta isto de específi-co: ela conseguiu fazer passar ao segundo plano e por vezes ex-pulsar a luta das consciências, antigamente central no campo doconsumo. Daí em diante, esteofereceum espetáculo amplamenteliberto da dramaturgia que ainda havia nos anos 1950,desenvol-vendo-se a aquisição das coisas e as práticas de lazer, em grandeparte, fora das lógicas de rivalidade de status. O que se apoderade porções cada dia mais amplas do consumo é uma atividadeconsumidora sem negativonem aposta inter-humana, sem dialé-tica nem competição maior. Não vejo termo mais adequado quehiperconsumo para dar conta de uma época na qual as despesasjá não têm como motor o desafio,a diferença, os enfrentamentossimbólicosentre os homens. Quando as lutas de concorrência nãosão mais a pedra angular das aquisiçõesmercantis, começaa civi-

lizaçãodo hiperconsumo, esse império em que o sol da mercado-ria e do individualismo extremo não sepõe jamais.

A aposta primeira era ser filiado a um grupo e criar distân-cia social. O que resta disso à hora dos novos o~jetos de comu-nicação acelerando as trocas interindividuais e tornando possí-veis as estimulações do eu, à hora ainda em que explodem asdemandas de saúde, de divertimento e de maior bem-estar? Nãoé mais a oposição entre a elite dos dominantes e a massa dos do-minados, nem aquela entre as diferentes fraçõesde classeque or-ganiza a ordem do consumo, mas o "sempre mais" e o zappinggeneralizado, as bulimias exponenciais de cuidados, de comuni-caçõese de evasões renovadas.Agora, a busca das felicidadespri-vadas, a otimização de nossos recursos corporais e relacionais, asaúde ilimitada, a conquista de espaços-tempos personalizados éque servemde base à dinâmica consumista: a era ostentatória dosobjetos foi suplantada pelo reino da hipermercadoria desconfli-tadaSe pós-conformista. O apogeu da mercadoria não é o valorsigno diferencial,mas o valor experiencial,o consumo "puro" va-lendo não como significante social, mas como conjunto de ser-viços para o indivíduo. A fase III é o momento em que o valor dis-trativo prevalece sobre o valor honorífico, a conservação de si,sobre a comparação provocante, o conforto sensitivo, sobre a exi-bição dos signos ostensivos.

Arrastado por esse maremoto, o gosto pelas novidades mu-dou de sentido. O culto do novo não tem nada de recente, umavez que se impôs desde o fim da Idade Média, especialmente atra-vés da emergência da moda. Mas, durante séculos, a norma do"tudo que é novo agrada" quase não ultrapassou os círculos res-tritos dos privilegiados, seu valor baseava-se, em grande parte, emseu poder distintivo. Essa não é mais a situação presente. Em pri-meiro lugar, o gosto pela mudança incessante no consumo já nãotem limite social, difundiu-se em todas as camadas e em todas as

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categorias de idade; em seguida, desejamos as novidades mercan-tis por si mesmas, em razão dos benefícios subjetivos, funcionaise emocionais que proporcionam. Hoje, a demanda de renovaçãose sobrepôs ao desejo do "mínimo conforto técnico" que estavaem vigor na fase II, a curiosidade tornou-se uma paixão de massae mudar por mudar, uma experiência destinada a ser experimen-tada pessoalmente. O amor pelo novo não é mais tão sustentadopelas paixões conformistas quanto pelos apetites experienciais dossujeitos. Passa-se para o universo do hiperconsumo quando o gos-to pela mudança se difunde universalmente, quando o desejo de"moda" se espalha além da esfera indumentária, quando a paixãopela renovação ganha uma espécie de autonomia, relegando aosegundo plano as lutas de concorrência pelo status, as rivalidadesmiméticas e outras febres conformistas.

Daí as novas funções subjetivas do consumo. Diferentemen-te do consumo à moda antiga, que tornava visível a identidadeeconômica e social das pessoas, os atos de compra em nossas so-,ciedades traduzem antes de tudo diferençasde idade, gostos par-ticulares, a identidade cultural e singular dos atores, ainda queatravés dos produtos mais banalizados. O arranjo dos aparta-mentos exemplificatal evolução.6Já não se trata tanto, nesse do-mínio, de exibirum signo exterior de riqueza ou de sucessoquan-to de criar um ambiente agradável e estético "que se pareçaconosco': um casulo convivial e personalizado. Sem dúvida, issoé resultado de compras de produtos padronizados, mas todas asvezesestes são reinterpretados, dispostos em novas composiçõesque exprimem uma identidade individual, o importante sendomenos o valor de posição social que o valor privado e único de"sua casa",tornado possível por um "consumo criativo".Revelo,ao menos parcialmente, quem eu sou, como indivíduo singular,pelo que compro, pelos objetos que povoam meu universo pes-soal e familiar,pelos signos que combino "à minha maneira': Nu-

ma época em que as tradições, a religião, a política são menosprodutoras de identidade central, o consumo encarrega-se cadavezmelhor de uma nova função identitária. Na corrida às coisase aos lazeres, o Homo consumericus esforça-se mais ou menosconscientemente em dar uma resposta tangível,ainda que super-ficial,à eterna pergunta: quem sou eu?

Consumo emocional: a idéia vai de vento em popa entre osteóricos e atores do marketing que louvam os méritos dos pro-cessos que permitem fazer com que os consumidores vivam ex-periências afetivas,imaginárias e sensoriais. Esseposicionamen-to tem hoje o nome de marketing sensorial ou experiencial. Nãoé mais a hora da fria funcionalidade, mas da atratividade sensí-vel e emocional. Diferentemente do marketing tradicional, quevalorizavaargumentos racionais e a dimensão funcional dos pro-dutos, muitas marcas agora jogam a carta da sensorialidade e doafetivo, das "raízes" e da nostalgia (o "retromarketing"). Outrasdão ênfase aos mitos ou ao ludismo. Outras, ainda, fazem vibrara corda sensívelcidadã, ecológicaou animalista. Lojas estimulamos sentidos a partir de ambiência sonora, difusão de odor e decenografias espetaculares. Por toda parte, o marketing sensorialprocura melhorar as qualidades sensíveis, táteis e visuais, sono-ras e olfativasdos produtos e dos locais de venda. O sensitivo e oemocional tornaram-se objetos de pesquisa de marketing desti-nados, de um lado, a diferenciar asmarcas no interior de um uni-verso hiperconcorrente, do outro lado, a prometer uma "aventu-ra sensitiva e emocional" ao hiperconsumidor em busca desensaçõesvariadas e de maior bem-estar sensível.

O que chamo de "consumo emocional" corresponde apenasem parte a essesprodutos e ambiências que mobilizam explicita-mente os cinco sentidos. Ele designa, muito além dos efeitos deuma tendência de marketing, a forma geral que toma o consu-mo quando o essencial se dá de si para si. Em profundidade, o

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consumo emocional aparece como forma dominante quando oato de compra, deixando de ser comandado pela preocupaçãoconformista com o outro, passa para uma lógica desinstitucio-nalizada e intimizada, centrada na busca das sensaçõese do maiorbem-estar subjetivo.A fase IIIsignifica a nova relação emocionaldos indivíduos com as mercadorias, instituindo o primado doque se sente, a mudança da significação social e individual douniverso consumidor que acompanha o impulso de individuali-zação de nossas sociedades.

de seu produto (Benetton). Nome, logotipo, design, slogan, pa-trocínio, loja, tudo deve ser mobilizado, redefinido, receber novovisual a fim de rejuvenescer o perfil de imagem, dar uma alma ouum estilo à marca. Não sevende mais um produto, mas uma vi-são, um "conceito", um estilo de vida associado à marca: daí emdiante, a construção da identidade de marca encontra-se no cen-tro do trabalho da comunicação das empresas. Na fase III,o im-perativo de imagem deslocou-se do campo social para a ofertade marketing. Não são mais tanto a imagem social e sua visibili-dade que importam, é o imaginário da marca; quanto menos hávalor de status no consumo, mais cresce o poder de orientaçãodo valor imaterial das marcas.PAIXÃO PELAS MARCAS E CONSUMO DEMOCRÁTICO

o consumo emocional indica, então, a vitória do "ser" so-bre o "parecer': do autêntico sobre o "look" incansavelmente ce-lebrado pelos observadores de tendências e pelas revistas? Issoestá longe de ser tão simples.Como falar de enfraquecimento das,aparências quando a época vê o triunfo das marcas e de sua ima-gem?Na verdade, à medida que o consumidor semostra menosobcecado pela imagem que oferece ao outro, suas decisões decompra são mais dependentes da dimensão imaginária das mar-cas.A evolução da publicidade fornece uma esclarecedora ilus-tração desseprocesso.

De fato, a publicidade passou de uma comunicação COllS-truída em torno do produto e de seus benefícios funcionais acampanhas que difundem valores e uma visão que enfatiza o es-petacular, a emoção, o sentido não literal, de todo modo signifi-cantes que ultrapassam a realidade objetiva dos produtos. Nosmercados de grande consumo, em que os produtos são fracamen-te diferenciados, é o "parecer", a imagem criativa da marca quefaz a diferença, seduz e faz vender. Assim, certas marcas conse-guiram ganhar notoriedade mundial "falando" de tudo, exceto

Petichismo das marcas, luxo e individualismo

Nesse ponto, uma questão não pode deixar de ser levanta-da. Como conciliar a expansão do consumo emocional com ogosto pelas marcas que se observa tanto nos jovens quanto nosadultos das novas classes abastadas?7A questão merece que nosdetenhamos nela não apenas porque, cada vezmais, compramosuma marca e não um produto, mas também porque o fenômenopode parecer estar em contradição com um consumo desprendi-do do código das prestações simbólicas.Ao levar em conta o atualfetichismo das marcas, somos obrigados a trazer de volta o mo-delo do consumo demonstrativo caro aVeblen?

Evidentemente, o esnobismo, o gosto de brilhar, de classifi-car-se e diferenciar-se não desapareceram de modo algum, po-rém não é mais tanto o desejo de reconhecimento socialque ser-ve de base ao tropismo em direção às marcas superiores quantoo prazer narcísico de sentir uma distância em relação à maioria,beneficiando-se de uma imagem positiva de si para si. Os praze-res elitistas não se evaporaram, foram reestruturados pela lógica

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subjetiva do neo-individualismo, criando satisfaçõesmais parasi que com vista à admiração e à estima de outrem. O que impor-ta não é mais "impressionar" os outros, mas confirmar seu valoraos seus próprios olhos, estar, como dizVeblen,"satisfeitoconsi-go":8"L'Oréal,porque eu mereço".Em nossos dias, amania pelasmarcas alimenta-se do desejo narcísico de gozar do sentimentoíntimo de ser uma "pessoa de qualidade",de se comparar vanta-josamente com os outros, de ser diferente da massa, sem que se-jam mobilizados, por isso,a corrida à consideração e o desejo deprovocar a invejade seus semelhantes.

É uma nova relação com o luxo e com a qualidade de vidaque se traduz no culto contemporâneo das marcas. Nas épocasanteriores, as classespopulares e médias viam nas marcas de lu-xo bens inacessíveisque, destinados apenas à elite social, não fa-ziam parte de seu mundo real, nem sequer de seus sonhos. Emrelação a essa forma de cultura, produziu-se uma ruptura: a acei-tação do destino social deu lugar ao "direito" ao luxo, ao supér-,fluo, às marcas de qualidade. A democratização do conforto, aconsagração social dos referenciais do prazer e dos lazeresmina-ram a tradicional oposição entre "gostos de necessidade»,pró-prios às classespopulares, e "gostos de luxo»,característicos dasclassesricas,9ao mesmo tempo que abalaram os valores da resig-nação e da austeridade. Na sociedade democrática de hipercon-sumo, cada um está inclinado a pretender o que há de melhor ede mais belo, a voltar os olhos para os produtos emarcas de qua-lidade. Enquanto os modos de socialização já não encerram osindivíduos em universos estanques, todo mundo considera terdireito à excelência e aspira a viver melhor nas melhores condi-ções. É assim que, cada vezmais, os produtos de qualidade (ali-mentação, bebida, marcas topo de linha de todo tipo) são privi-legiadosem relaçãoà quantidade e aos"produtos de necessidade».A atração exercidapelasmarcas mais dispendiosas traduz menos

a continuidade histórica das estratégias distintivas do que a rup-tura constituída pela formidável difusão socialdas aspirações de-mocrático-individualistas às felicidadesmateriais e ao bem viver.

Valorização da qualidade que, de resto, não dá lugar a ne-nhuma atitude sistemática,mesmo no seio das camadas superio-res.Na sociedade de hiperconsumo, já não é indigno gastar à lar-ga aqui e economizar ali, comprar ora em loja seletiva, ora emhipermercado, tendo-se tornado legítimos os comportamentosdescoordenados ou ecléticos.Aobrigação de despender com finsde representação social perdeu seu antigo vigor: compram-semarcas onerosas não mais em razão de uma pressão social, masem função dos momentos e das vontades, do prazer que delas seespera, muito menos para fazer exibição de riqueza ou de posi-ção que para gozar de uma relação qualitativa com as coisas oucom os serviços. Mesmo a relação com as marcas psicologizou-se, desinstitucionalizou-se, subjetivou-se.

Hiperconsumo e ansiedade

E não é só isso.Nesse contexto, a compra de um produto demarca não é apenas uma manifestação de hedonismo individua-lista, visa também responder às novas incertezas provocadas pelamultiplicação dos referenciais, bem como às novas expectativasde segurança estética ou sanitária. Nas épocas anteriores, exis-tiam modos de socialização, normas e referências coletivas quedistinguiam inequivocamente o alto e o baixo, o bom gosto e omau gosto, a elegância e a vulgaridade, o chique e o popular; asculturas de classeinstituíam um universo claro e sólido de prin-cípios e de regras fortemente hierarquizados e assimilados pelossujeitos. Essaordem hierárquica se desmantelou ou se desagre-gou em favor de sistemas desregulados e plurais, de classificaçõesimprecisas e confusas que fazem depender do indivíduo o que,

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até então, dependia de regras e de estilos de vida comunitários.Daí resultam dúvidas e temores individuais relativos aos aspec-tos do consumo que, antigamente, eram evidentes porque orga-nizados pelas tradições de classe.O culto das marcas é o eco domovimento de destradicionalização, do impulso do princípio deindividualidade, da incertezahipermoderna posta em marcha pe-la dissolução das coordenadas e atributos das culturas de classe.Quanto menos os estilosde vida são comandados pela ordem so-cial e pelos sentimentos de inclusão de classe,mais se impõem opoder do mercado e a lógicadas marcas.Quando a moda é balca-nizada e descentrada, aumenta a necessidade de indicadores e dereferências"reconhecidos"pelasmídias ou asseguradospelospre-ços; quando as normas do "bom gosto" se confundem, a marcapermite tranqüilizar o comprador; quando semultiplicam osme-dos alimentares, são privilegiadosos produtos com o selo "biodi-nâmico': as marcas cuja imagem é associada ao natural e ao "au-têntico". É sobre um fundo de desorientação e de ansiedadecrescentedohiperconsumidor quesedestacao su'cessodasmarcas.

A ansiedade está igualmente na origem do novo gosto dosjovens adolescentes pelas marcas. Se é verdade que a marca per-mite diferenciar ou classificar os grupos, a motivação que servede base à sua aquisição não está menos ligada à cultura demo-crática. Pois ostentar um logotipo, para um jovem, não é tantoquerer alçar-se acima dos outros quanto não parecer menos queosoutros.Mesmo entre os jovens, o imaginário da igualdade de-mocrática fez seu trabalho, levando à recusa de apresentar umaimagem de si maculada de inferioridade desvalorizadora. Semdúvida, é por isso que a sensibilidade àsmarcas é exibida tão os-tensivamente nos meios desfavorecidos.Por uma marca aprecia-da, o jovem sai da impessoalidade,pretende mostrar não uma su-perioridade social,mas sua participação inteira e igual nos jogosda moda, da juventude e do consumo. Bilhetede entrada no mo-

Enquanto o universo do consumo tende a libertar-se dos en-frentamentos simbólicos, eleva-seum novo imaginário associa-do ao poder sobre si, ao controle individual das condições de vi-da. Daí em diante, os gozos ligados à aquisição das coisas se

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delo de vida "moda", é o medo do desprezo e da rejeição ofensivados outros que ativa a nova obsessão pelas marcas. À hora do hi-perconsumo, é preciso apreender esse fenômeno como uma dasmanifestações do individualismo igualitário que conseguiu es-tender suas exigências até o universo imaginário dos jovens.

Como falar de individualismo quando os conformismos de

grupo têm um relevo muito mais acentuado que as exigências dequalidade de vida ou de singularização pessoal? A verdade é que,ao comprar esta ou aquela marca, o adolescente faz uma escolhaque o distingue do mundo de seus pais, ele afirma preferências egostos que o definem, apropria-se de um código. Se o logo tipose reveste de tal importância, é porque permite uma inclusão rei-vindicada pelo eu e não mais uma inclusão aceita como um des-tino social, familiar ou outro. É nesse sentido que a compra deuma marca é vivida como a expressão de uma identidade a um

só tempo clânica e singular. Exibida essa marca em público, oadolescente nela reconhece uma das bandeiras de sua personali-dade. Por aí se vê que a oposição posta em evidência entre indi-vidualismo e "tribalismo" pós-moderno é perfeitamente artifi-cial e enganosa: a despeito de sua dimensão comunitária, a marcaexibida é subjetivante, ela traduz, ainda que na ambigüidade, umaapropriação pessoal, uma busca de individualidade assim comoum desejo de.integração no grupo dos pares, um eu reivindican-do, aos olhos de todos, os signos de sua aparência.

PODER E IMPOTÊNCIA DO HIPERCONSUMIDOR

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relacionam menos à vaidade social que a um "mais-poder" sobrea organização de nossas vidas, a um domínio maior sobre o tem-po, o espaço e o corpo. Poder construir de maneira individuali-zada seumodo de vida eseu emprego do tempo, acelerarasopera-ções da vida corrente, aumentar nossascapacidadesde estabelecerrelação, alongar a duração da vida, corrigir as imperfeições docorpo, alguma coisacomo uma "vontade de poder" e seu gozodeexerceruma dominação sobre o mundo e sobre si aloja-seno co-ração do hiperconsumidor.

O que é que seduz nos novos objetos de consumo-comuni_cação (computador, videogravador, fax, internet, telefone celu-lar, forno de microondas) a não ser Suacapacidade de abrir no-vos espaços de independência pessoal,lOde aliviar os pesos doespaço-tempo? Por intermédio das coisas, buscamos menos aaprovação dos outros que uma maior soberania individual, ummaior controle dos elementos de nosso universo costumeiro. Nafase III,o consumo funciona como alavanca de "potência máxi-~

ma': vetor de apropriação pessoal do cotidiano: não mais teatrode signos distintivos, mas tecnologia de autonomização dos in-divíduos em relação àsobrigaçõesde grupo e aos múltiplos cons-trangimentos naturais. Não são mais tanto os desejos de repre-sentação social que impulsionam a espiral consumidora quantoos desejos de governo de si próprio, de extensão dos poderes or-ganizadores do indivíduo.

É no momento em que a vontade de poder sobre a direçãode nossas vidas triunfa que os objetos técnicos que simbolizam apotência viril tendem a perder seu aspecto agressivo e conquis-tador. Demonstram isso as novas formas arredondadas e suavi-zadas do automóvel, que revalorizam as dimensões de habitabi-lidade e de conforto, de descontração e de segurança. E são cadavezmais numerosos os objetos e ambientes que ilustram agoraessa"feminização" estilística.Regressãoda lógica da posição so-

cial, redução da imagem viril dos produtos: duas manifestaçõesde uma mesma cultura hiperconsumidora, mais emocional quedemonstrativa, mais sensitiva que ostensiva. Os desejos de poderindividualista não progridem senão em acordo com a eufemiza-ção dos signos emblemáticos da dominação.

Medicalização do consumo

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Nada concretiza melhor o declínio do ethos do consumo pe-lo prestígio que a evolução das demandas e dos comportamen-tos relacionados à saúde. A sociedade de hiperconsumo é aquelana qual as despesas de saúde se desenvolvem por todos os meios,progredindo mais que o conjunto do consumo. 11 O Homo consu-mericus está cada vez mais voltado para o Homo sanitas: consul-tas, medicamentos, análises, tratamentos, todos esses consumosdão lugar a um processo de aceleração que não parece ter fim.Paralelamente, os espíritos são invadidos todos os dias um pou-co mais pelos cuidados com a saúde, os conselhos de prevenção,as informações médicas: não se consomem mais apenas medica-mentos, mas também transmissões, artigos de imprensa para ogrande público, páginas da Web,I2 obras de divulgação, guias eenciclopédias médicas. Eis a saúde erigida em valor primeiro eaparecendo como uma preocupação onipresente quase em qual-quer idade: curar as doenças já não basta, agora se trata de inter-vir a montante para desviar-lhes o curso, prever o futuro, mudaros comportamentos em relação às condutas de risco, dar provasde boa "observância".

Ao mesmo tempo, a competência médica estende-se a todosos domínios da vida para melhorar-lhes a qualidade. Enquantoum número crescente de atividades e de esferas da existência to-

ma uma coloração sanitária, os bens de consumo integram cadavez mais a dimensão da saúde: alimentos, turismo, hábitat, cos-

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méticos, a temática da saúde tornou-se um argumento decisivodevenda.AfaseIII anuncia-secomoo tempodamedicalizaçãoda vida e do consumo.

Espiral dos comportamentos preventivos, inflação das de-mandas de cuidados, avanço das despesas de saúde: fenômenosque mostram, sem nenhuma ambigüidade, a que ponto o para-digma da distinção tornou-se pouco operante, incapaz que é deexplicar um consumo excrescentecentrado apenas no indivíduo,em sua saúde e sua conservação. Nada de lutas simbólicas e devantagens de distinção: apenas avigilânciahigienistade si,os me-dos hipocondríacos, o combate médico contra a doença e os fa-tores de risco. O hiperconsumo médico constitui a ponta extre-ma da tendência à dessimbolização em vigor na fase11I:aqui nãoresta mais que a busca da otimização da saúde pela autovigilân-cia e pelaspráticas tecnocientíficas.

Assim, esse reino do Romo medicus tem como conseqüên-cia uma redramatizaçãoda relaçãocom o consumo. Não, eviden-temente, sob a forma antiga das rivalidades por status, mas co-mo angústia crescente relacionada ao corpo e à saúde. Em nomeda religião da saúde, é preciso informar-se sempre mais, consul-tar os profissionais,vigiar a qualidade dos produtos, sopesar e li-mitar os riscos, corrigir nossos hábitos de vida, retardar os efei-tos da idade, passar por exames, fazer revisões gerais. Foi-se aépoca felize despreocupada da mercadoria: o tempo que chega éo da hipermercadoria medicalizada, reflexivae preventiva, carre-gada de preocupações e de dúvidas, exigindo sempre mais a ati-vidade responsáveldos atores.

Não há muita dúvida de que o imaginário contemporâneodo consumo se afirma sob o signo de um "modelo de aliança"que concilia divisões outrora plenamente sublinhadas.13No en-tanto, é preciso não omitir ou subestimar o reforço simultâneode oposições importantes (juventude/velhice, são/malsão, ma-

greza/gordura, segurança/risco, poluído/não poluído) que acom-panham o culto à saúde. Nesseplano, o que domina são menos aflexibilidade e a conciliação que novas disjunções condutoras deum estado de guerra e de mobilização total contra a doença, a ve-lhice, a poluição, a obesidade, os fatores de risco.Na realidade, oconsumo não deixou de ser um campo de batalha: se o conflitointer-humano recua, é em favor de uma luta médica interminá-vel e causadora de ansiedade. A pacificação do consumo é umaaparência enganosa: daqui em diante o sentimento do perigo edo risco é onipresente, tudo, no limite, podendo ser percebidocomoameaçadore exigindovigilância.Nociclo11I,a inseguran-ça, a desconfiança, a ansiedade cotidiana crescem na proporçãomesma de nosso poder de combater a fatalidade e alongar a du-ração da vida.

Controle do corpo e espoliação

.Depois do frenesi da posição social, eleva-sea obsessão com

a saúde. De modo que nossa maior independência em relação aoparecer social tem como contrapartida a intensificação do poderdas normas e da perícia médicas. O neoconsumidor já não pro-cura tanto a visibilidade social quanto um redobrado controlesobre seu corpo por meio das tecnologias médicas: maneira delutar contra a fatalidade natural, o consumo tende a funcionarcomo um antidestino. É assim que as aspirações narcísicas do hi-perconsumidor não se separam mais daquelas, mais técnicas, dePrometeu. Um Prometeu acorrentado, é preciso acrescentar, da-

do que suas iniciativas são extremamente limitadas em razão dopoder das normas e do dispositivo médico. O paciente decideconsultar-se e cuidar-se. E isso é mais ou menos tudo, quaisquer

que sejam a extensão dos hábitos preventivos, as retóricas do"consentimento esclarecido" e as novas vontades de promover o

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paciente a ator e participante de sua saúde. Depois disso, é a má-quina tecnocientífica que tem as cartas na mão e conduz as ope-rações, "excluindo" muito amplamente o sujeito. De um lado, aeficáciamédica estende os poderes do homem sobre sua vida, dooutro, cria um "consumidor sem poder".14

Muitos comportamentos mostram que, no presente, o cor-po é considerado como uma matéria a ser corrigida ou transfor-mada soberanamente, como um objeto entregue à livre disposi-ção do sujeito. A cirurgia estética, as procriações in vitro, mastambém o consumo de psicotrópicos com vista à "gestão" dosproblemas existenciais, ilustram essa relação individualista como corpo. Daí em diante, os sujeitos querem escolher seu humor,controlar sua experiênciavivida cotidiana, tornar-se senhores dasvicissitudes emocionais fazendo uso de medicamentos psicotró-picos cujo consumo, como se sabe, não cessade crescer.Amedi-da que se afirma o princípio de soberania pessoal sobre o corpo,o indivíduo confia sua sorte à ação de substâncias químicas quemodificam seus estados psicológicos "de fora",sem análise nemtrabalho subjetivo,apenas importando a eliminação imediata dosdissabores (fadiga,insônia, ansiedade), a eficáciamais rápida pos-sível, o desejo de produzir estados afetivos "sob encomenda". Épor um consumo passivode moléculas químicas que semanifes-ta aqui a exigência de soberania individual. Se essesrecursos ba-nalizados à psicofarmacologia mostram um desejo individualis-ta de controle do corpo e do humor, eles ilustram, ao mesmotempo, uma certa impotência subjetiva, renunciando o sujeito atodo esforço pessoal ao entregar-se à onipotência dos produtosquímicos que agemsobre ele,sem ele.1sAssoluçõesde nossosma-les não são mais procuradas em nossos recursos interiores, masna ação das tecnologias moleculares que, ainda por cima, nãodeixam de causar tolerância. O indivíduo desejoso de dirigir oude retificar a seu gosto sua interioridade transforma-se em indi-

víduo "dependente": quanto mais é reivindicado o pleno podersobre sua vida, mais se espalham novas formas de sujeição dosindivíduos.

Um hipermaterialismo médico

A questão da medicalização da existência apresenta o inte-resse de poder avaliar melhor o papel e o lugar dos valores ditos"pós-materialistas". Uma das tendências fortes de nossas socie-dades coincide com a formidável expansão das técnicas destina-das não apenas a conservar e alongar a vida, mas também a me-lhorar a "qualidade de vida",a resolver cada vezmais problemasda existência cotidiana tanto dos mais jovens quanto dos maisidosos. Sono, ansiedade, depressão,bulimia, anorexia, sexualida-de, beleza, desempenhos de todo tipo, em todos os domínios asações medicamentosas e cirúrgicas são mobilizadas de maneiracrescente. Em sociedade de hiperconsumo, a solução de nossosmales, a busca da felicidade se abriga sob a égide da intervençãotécnica, do medicamento, das próteses químicas. Isso não elimi-na de modo algum as abordagens psicoterapêuticas, mas é for-çoso constatar que a "farmácia da felicidade"16tende a reduzir-lhes a antiga centralidade.

Como não ver, nessas condições, que é muito mais o hiper-materialismo científico e médico do que os valores pós-materia-listas que comanda nossa época?Sem dúvida, esta é testemunhade novas buscas espirituais, mas a verdade é que se consomemcada vezmais cuidados médicos e outras "pílulas da felicidade".Como falar de pós-materialismo quando a ordem médico-far-macêutica amplia incessantemente suas fronteiras, quando pro-gride a passo de gigante a medicalização do existencial, quandocada vezmais capitais e inteligências são mobilizados com vistaà conservação e ao controle da vida pela tecnociência?Asdeman-

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das espirituais podem manifestar-se: são uma corrente bem fra-ca comparada às da saúde e do prolongamento da vida. É o cor-po naquilo que tem de mais objetivol7que é maciçamente aus-cultado e tratado, e não há nenhuma dúvida de que amanhã essadinâmica materialista será ainda mais afirmada com as possibili-dades oferecidaspela genética.A fase III não é hiperconsumidorasenão na medida em que é hipermaterialista.

Considerações que permitem dar da espiral das necessida-des uma interpretação muito distante daquela proposta pelas so-ciologias da distinção. Bulimia de cuidados médicos, demandasem fim de autonomia pessoal e de divertimentos: torna-se evi-dente que a engrenagem das necessidades não encontra sua ver-dade última na dialética das imitações e das pretensões de classe.O fenômeno tem causas muito mais profundas: resulta, no es-sencial, do cruzamento de duas dinâmicas indefinidas inerentesàs sociedades modernas. A primeira é a da oferta técnica e mer-cantil que, não estando mais engastada em sistemas sociais e re-ligiosos, pode inovar e renovar perpetuamente seus produtos eseus serviços. A segunda remete à ordem social democrática ba-seada no indivíduo igual e em seu direito à felicidade. Na raiz so-cial da demanda ilimitada de consumo, há menos as lutas de con-corrência pela classificação social que o Homo democraticusvoltado apenas para si, livre para formar e conduzir a si próprio.Tocqueville mostrou como a paixão crescente e universal pelosgozos materiais devia ser relacionada à era da igualdade, que pro-duz a recusa da fatalidade das inclusões sociais, dos desejos insa-ciáveis, das cobiças e das insatisfações permanentes. Essa lógicaigualitária, condutora de exigências sem fim, intensifica-se emnossos dias por intermédio dessas finalidades que são a autono-mia subjetiva, a saúde, o bem-estar, o divertimento, a comunica-ção, e que têm como característica ser axiomáticas sem ter rito ria-lidade fixa, empurrando sempre para mais longe suas fronteiras,

ignorando toda saturação. Se existe uma homologia funcional eestrutural entre oferta e procura, ela não depende tanto de "doissistemas de diferenças"18quanto de duas ordens indefinidas (omercado, o indivíduo) constitutivas das sociedades livres da in-fluência do religioso e que, por essa razão, podem provocar a es-calada das mudanças, a otimização ilimitada de nossos recursos,a extensão infinita de nossas necessidades.

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Frenesi consumidor, mutilação da vida: no rastro traçadopela crítica marxista da religião,filósofose sociólogosnão deixa-ram de interpretar a propensão a comprar como um novo ópiodo povo, destinado a compensar o tédio do trabalho fragmenta-do, as falhasda mobilidade social,a infelicidadeda solidão."Sofro,logo compro": quanto mais o indivíduo está isolado ou frustra-do, mais busca consolos nas felicidades imediatas da mercado-ria. Ersatzda verdadeira vida, o consumo exerce sua influênciaapenas na medida em que tem a capacidade de aturdir e de ador-mecer, de oferecer-se como paliativo aos desejos frustrados dohomem moderno.

Não há dúvida de que essa interpretação muitas vezesacer-ta em cheio.Aobservação o mostra todos os dias: compra-se tan-to mais quanto se está carente de amor, o shoppingpermitindopreencher um vazio, reduzir o mal-estar de que se é vítima. Mastoda a questão está em saber se essa função consoladora dá con-ta, em toda a sua extensão, das paixões consumistas. Comprarnão é mais que procurar esquecer?Ameu ver, a resposta é não:

na escalada dos atos mercantis, há mais coisas, e coisas diferen-

tes, do que uma diversão da "vida má". Na fase III,o consumo nãopode ser considerado exclusivamente como uma manifestaçãoindireta do desejo ou como um derivativo: se ele é uma forma deconsolo, funciona também como um agente de experiências emo-cionais que valem por si mesmas.

Digamo-Io sem rodeios: as críticas desmistificadoras da ideo-logia das necessidades se equivocaram ao pretender excluir a di-mensão hedonística do consumo. Problemática que levava Bau-drillard, por exemplo, a afirmar: "O consumo se define comoincompatível com o gozo. Como lógica social, o sistema do con-sumo se institui com base em uma denegação do gozO".1Em mi-nha opinião, não se poderia estar mais enganado sobre a ques-tão, sendo o consumo, em nossas sociedades, inseparável tantodo ideal social hedonista quanto das aspirações subjetivas de pra-zer. Mas de que tipo de prazer se trata? O que é que está em jogopara o sujeito na corrida às satisfações mercantilizadas? É preci-so reabrir o dossiê do Homo consumans, mais complexo, mais

"metafísico" do que uma primeira abordagem sociologista deu aentender.

3. Consumo, tempo e jogo

I

o CONSUMO COMO VIAGEM E COMO DIVERTIMENTO

Hedonismo, lazer e economia da experiência

Nada ilustra melhor a dimensão hedonística do consumoque o papel crescente dos lazeres em nossas sociedades. Sabe-seque as despesas ligadas aos setores do lazer, da cultura e da co-municação ocupam um lugar progressivo no orçamento das fa-mílias: aumentam mais depressa que a média dos consumos. Suaprogressão desde os anos 1950é regular: as famílias lhes consa-

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gravam 6% de seu rendimento disponível em 1960, 7,3% em 1980,9,5% em 1999. No entanto, essas cifras traduzem apenas muitoimperfeitamente a realidade, visto que numerosas despesas (re-feições de lazer, restaurantes, custos de residência secundária ede automóvel, despesas de telecomunicação), por vezes muitosubstanciais, não são registradas nesse item de orçamento.2 Alémdisso, o tempo ocupado pela música e pela televisão aumenta semcessar, dedicando os franceses mais tempo aos consumos audio-visuais em casa do que ao trabalho: 43 horas por semana, em mé-dia, para as pessoas que exercem uma atividade profissional. Nopresente, o tempo reservado aos lazeres e à sociabilidade repre-senta 30% do tempo desperto dos maiores de quinze anos e ul-trapassa o tempo destinado aos trabalhos domésticos.3

O que se consome em profusão são ficções e jogos,4 músicae viagens. Em 2001, cada telespectador francês viu 74 horas defilmes de cinema e 262 horas de ficção televisiva. O turismo tor-nou-se a primeira indústria mundial: em 1998, o número de tu-ristas elevava-se a 625 milhões e previsões fazem menção de 1,6bilhão de pessoas que fariam ao menos uma viagem ao estran-geiro em 2020. Essa preponderância dos lazeres levou certos ana-listas a falar de um novo capitalismo centrado não mais na pro-dução material, mas no divertimento e nas mercadorias culturais.5O setor do turismo já representa mais de 11% do PIBmundial, eessa porcentagem poderia duplicar em 2008. Em 2000, as empre-sas culturais no mundo representavam um montante de negó-cios total de 515 bilhões de euros (fonte: Unesco) que progridequase duas vezes mais depressa que a média dos outros setoreseconômicos. Nos Estados Unidos, as indústrias culturais torna-ram-se o primeiro item de exportação, na frente da aeronáuticae da agricultura.

Paralelamente ao aumento dos orçamentos e do tempo con-sagrados aos lazeres, o marketing fornece cada vez mais uma apre-

scntação experiencial à oferta hedônica. A fase IIIé contemporâ-nea de uma explosão do número de parques de lazer: na França,~50 parques de diversão atraem 70 milhões de apreciadores porilno; a Disneyland Paris tornou-se o primeiro destino turísticoeuropeu, com mais de 12 milhões de entradas anuais. Quase 2mil festivais especializados são organizados todo ano, atraindopara a França um público avaliado em mais de 5 milhões de pes-soas. As ofertas de fins de semana e de evasões insólitas se desen-

volvem, propondo noites em iglu, exercícios arriscados com car-ro, condução de tanque, viagem de balão, novo lookpara o rosto.Além dos equipamentos e dos produtos acabados, as indústriasde lazer trabalham hoje com a dimensão participativa e afetivado consumo, multiplicando as oportunidades de viver experiên-cias diretas. Já não se trata mais apenas de vender serviços, é pre-ciso oferecer experiência vivida, o inesperado e o extraordináriocapazes de causar emoção, ligação, afetos, sensações. Graças à fa-se IlI, a civilização do objeto foi substituída por uma "economiada experiência",6 a dos lazeres e do espetáculo, do jogo, do turis-mo e da distração. É nesse contexto que o hiperconsumidor bus-ca menos a posse das coisas por si mesmas que a multiplicaçãodas experiências, o prazer da experiência pela experiência, a em-briaguez das sensações e das emoções novas: a felicidade das "pe-quenas aventuras" previamente estipuladas, sem risco nem in-conveniente.

O turismo organizado, os percursos de escalada planejados,os "percursos de descoberta" nas árvores, os labirintos vegetais,os parques de diversões são uns tantos dispositivos constitutivosda indústria da experiência. As cidades históricas tornam-se ci-dades temáticas a fim de responder às necessidades de "autenti-cidade" dos turistas ávidos por quebras de rotina, ambiência ecxotismos folclóricos. Em certos parques temáticos são reconsti-tuídos, virtual ou materialmente, cidades da Antiguidade, reser-

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vas indígenas, animais extintos, momentos de nossa história. Ou-tros recriam indoor climas, florestas tropicais, tempestades de ne-ve, ambientes marítimos; outros ainda simulam erupções vulcâ-nicas ou terremotos. Passamos para uma indústria da experiênciaque se concretiza numa orgia de simulações, de artifícios hiper-espetaculares, de estimulações sensoriais destinadas a fazer os in-divíduos sentir sensações mais ou menos extraordinárias, a fazê-los viver momentos emocionais sob controle em ambientes

hiper-realistas, estereotipados e climatizados. Sucesso dos par-ques temáticos que traduz o impulso da mercantilização dos la-zeres e ao mesmo tempo os apetites crescentes de evasão e de sen-sações, de regressão e de renovação permanente dos prazeres. Ohiperconsumidor é aquele que espera o inesperado nos ambien-tes mercantis programados, que busca universos "loucos" ou feé-ricos, experiências e espetáculos sempre mais alucinantes. Elequer afogar-se em um fluxo de sensações excepcionais, moven-do-se num espaço-tempo fun, teatralizado, desprovido de todorisco e de todo desconforto. Trata-se de ter acesso a uma espéciede estado mágico ou extático inteiramente desconectado do real,um estado de euforia lúdica cujos começo e fim, como no cine-ma, são perfeitamente cronometrados.

Nenhuma perda das referências e confusão do real e da ilu-são: simplesmente o encantamento que resulta do excesso espe-tacular e da excrescência dos efeitos, o deslumbramento dianteda hipertrofia dos artifícios, o prazer ligado a um universo con-creto que, integralmente "estruturado" pelo imaginário, eliminaas coerções do real tão-somente no tempo do consumo. Uma re-creação inebriante em que nos divertimos em crer que o falso setornou real, que lá é aqui e o outrora substitui o agora.

A simulação não é, evidentemente, o único caminho toma-do pelo hedonismo experiencial. Uma outra lógica atua, atestadapelas estadas nas casas dos amigos, a perambulação, a ociosida-

de, abricolagem, a cozinha, a decoração, as excursões,o gosto pe-la natureza, as práticas musicais e esportivas. Atividades que ex-primem uma lógica de auto-organização individual do tempo li-vre, o desejo do hiperconsumidor de se reapropriar de seuspróprios prazeres, de passar por experiências segundo um modomais pessoal, não guiado, não orquestrado pelo mercado/ De umlado, o hiperconsumidor deseja sempre mais espetáculos desme-didos, artefatos inauditos, estimulações hiper-reais; do outro,quer um mundo íntimo ou "verdadeiro" que se pareça com ele.Se às vezes ele prefere a simulação dirigida ao acaso do real, en-trega-se mais ainda a redescobrir a "autenticidade" da natureza,a organizar seus lazeresde maneira individualizada.

Não é preciso dizer que, em semelhante "capitalismo cultu-ral", as expectativas e os comportamentos hedonistas ligados aoconsumo são primordiais. Paul Yonnet contesta a definição dolazer que enfatiza o critério hedonístico,8mas devo dizer que suaargumentação não me convenceu realmente. Sem dúvida, este ouaquele espetáculo pode não me dar nenhum prazer,mas isso nãobasta para eliminar a idéia de que amotivação principal dos com-portamentos de lazer seja a expectativa de uma experiência desatisfação. É igualmente verdade que algumas pessoas se ente-diam mais durante o tempo de lazer que em sua atividade de tra-balho. De todo modo, isso está longe de ser o casomais freqüente,a maioria associando o lazer ao prazer-relaxamento, e o trabalhoa uma obrigação claramente mais fastidiosa.Qualquer que seja aexperiência vivida das práticas de lazer,não se pode negar que écom vista a uma satisfação de tipo hedônico que os indivíduos aelas se entregam, o que não é geralmente o caso do trabalho. Fa-la-se de "sofrimento do trabalho": onde está o equivalente na es-fera dos lazeres?Acrescentarei que, se uma importante propor-ção de assalariados deseja poder trabalhar menos, a maioria das

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pessoas se sente frustrada por não poder consumir mais duranteseus lazeres e suas férias.

Ii l'xpansão do consumo hedonista não é separável das múltiplasI''\tratégias comerciais. Com freqüência, sublinhou-se como a pu-hlicidade erotizava a mercadoria, criava um ambiente festivo, umllima de sonho acordado e de estimulação permanente dos de-M'jOS.Isso prossegue. A hora é da teatralização dos pontos de ven-d,I, das animações diversas, do "marketing experiencial" tendol'omo objetivo criar uma ambiência de convívio e de desejos, in-lroduzir prazer na freqüentação dos locais de venda. EnquantocISespecialistas anglo-saxões falam de fun shopping, os centrosmmerciais e lojas da nova tendência se propõem a "reencantar"os gestos e locais de compra, 11 a "transformar as zonas de tempolorçado em zonas de tempo-prazer". Porém, por mais importan-I('s que sejam, essas estratégias de venda não explicam tudo. Averdade é que existe um laço íntimo, estrutural, entre hipercon-"lIno e hedonismo: esse laço não é senão a mudança e a novida-dl' erigidas em princípio generalizado tanto da economia mate-I ial quanto da economia psíquica.

A compra-prazer

Mas não basta sublinhar a nova preponderância do mercadodo divertimento. Pois, em nossos dias, mesmo o consumo dosbens materiais tende a enveredar por uma lógica experiencial, oshopping, em geral, está mergulhado em uma atmosfera hedonís-tica e recreativa. É verdade que um francês em dois considera queos comportamentos de compra se assemelham mais ou menos auma corvéia, mas a mesma porcentagem os assimila a um pra-zer.9Assim, no momento em que os centros comerciais atraemmultidões, o motivo mais freqüentemente alegado pelos visitantesé a necessidade de distração. Na metade dos anos 1980, os centroscomerciais eram um dos lugares em que os adolescentes ameri-canos passavam mais tempo. 10 A atividade de consumo concebi-da como modo de vida e fonte de prazeres nasceu no século XIXcom os grandes magazines. Na fase III,esse ethos universalizou-se, estendeu-se das mulheres burguesas às camadas populares eaos mais jovens, figurando o shopping como ocupação lúdica, dedivertimento para todos. Foram porções inteiras do consumoque se tornaram experienciais, assimiláveis a uma shopping party.A sociedade de hiperconsumo é aquela na qual o consumo se cli-va radicalmente, ordenando-se em torno de dois eixos antago-nistas: de um lado, a compra-corvéia ou compra prática; do ou-tro, a compra hedônica ou compra-festa, que diz respeito tantoaos produtos culturais quanto a muitos bens materiais (carro,moda, mobiliário, decoração etc.).

Compra-prazer, consumo experiencial: como a compra po-de ser uma atividade recreativa? Como pode funcionar como de-rivativo? O que faz do consumo um divertimento? Sem dúvida,

1febreda mudançaperpétua

Uma das características importantes dos bens de consumoc111nossas sociedades é que eles mudam e que nós os trocamosIIIdcfinidamente, não cessando a oferta de inovar, de propor no-vos produtos e serviços. Se é verdade que o laço do consumo com,. novidade é agora estrutural, suas relações com o prazer não o,.10menos, uma vez que, como escrevia Freud, "a novidade cons-Illui sempre a condição do gozO".12Não é precisamente esse po-tler de novidade que constitui uma das grandes molas atrativastlc)consumo? O que é que seduz, na compra de produtos não cor-n'ntes, a não ser, ao menos em parte, a emoção nova, por míni-IlIiIque seja, que acompanha a aquisição de uma coisa? Acontece10m os objetos o mesmo que com as férias: da mesma maneira

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que o mais importante para o turista é partir, "mudar de ares", irpara outro lugar, no limite, qualquer lugar, o que é visado atra-vés do ato de compra é, antes de tudo, o prazer da novidade, oarrebatamento de uma aparência de aventura. Na fase IIl, em queas necessidades básicas estão satisfeitas, o comprador por certodá importância ao valor funcional dos produtos, mas, ao mesmotempo, mostra-se cada vez mais em busca de prazeres renovados,de experiências sensitivas ou estéticas, comunicacionais ou lúdi-casoExcitação e sensações é que são vendidas, e é experiência vi-vida que se compra, assemelhando-se todo consumidor, mais oumenos, a um "colecionador de experiências",13desejoso de que sepasse alguma coisa aqui e agora. É como um processo de intensi-ficação hedonista do presente pela renovação perpétua das "coi-sas" que é preciso pensar o consumo na fase IIl.Uma estética domovimento incessante e das sensações fugazes comanda as prá-ticas do hiperconsumidor.

Consumir era distinguir-se; é cada vez mais "jogar", espaire-cer, conhecer a pequena alegria de mudar uma peça na configu-ração do cenário cotidiano. Assim, o consumo já não é tanto umsistema de comunicação, uma linguagem de significantes sociais,quanto uma viagem, um processo de quebra de rotina cotidianopor meio das coisas e dos serviços. Menos mal menor ou "nega-ção da vida" que estimulante mental e pitada de aventura, o con-sumo nos atrai por si mesmo como poder de novidade e de ani-mação de si. Um pouco como no jogo, o consumo tende atornar-se por si mesmo sua própria recompensa. Os economis-tas notam o desenvolvimento do consumo de lazeres, mas, de fa-

to, são porções inteiras do consumo que funcionam como os la-zeres. Hoje, no Romo consumans há mais do que nunca o Romoludens, sendo o prazer do consumo análogo ao proporcionadopelas atividades de jogo. 14 Não há nenhuma dúvida de que essacapacidade de criar distração lúdica e movimento "interior" seja

um dos grandes fatores que alimentam a interminável escaladadas necessidades.

o CONSUMO, A INFÂNCIA E O TEMPO

Rejuvenescer a experiência vivida

Daí a necessidade de reconsiderar a famosa questão da alie-nação do Romo consomator.Sublinhou-se com razão que o con-sumo moderno devia ser analisado não como um signo de alie-nação, mas como a expressão da liberdade humana, sendo ainstabilidade que manifestamos para com as mercadorias umadas maneiras que tem o sujeito de não se perder no objeto, deafirmar sua superioridade em relação à exterioridade das coisas. 15No entanto, a subjetividade do neoconsumidor afirma-se menosna relação com o objeto que na relação de si para si. "O espetá-culo", escrevia Debord, "é o sonho mau da sociedade modernaacorrentada que, afinal, não exprime mais que seu desejo de dor-mir."16Então há apenas "passividade" e hipnotismo no consumomoderno? Averdade é que aí se descobre mais mobilidade e ne-gatividade que sonambulismo, a mudança permanente das coi-sas tendo como objetivo principal nos "descoisificar", sacudir arepetição do já sentido e do já conhecido. É preciso interpretar oapetite consumista como uma maneira, decerto banal, mas maisou menos bem-sucedida, de conjurar a fossilizaçãodo cotidiano,de escapar à perpetuação do mesmo pela busca de pequenas no-vidades vividas. Através do ato de consumo, é a rejeição de umacerta rotina e da coisificação do eu que se exprime. O hipercon-sumo é a mobilização da banalidade mercantil, com vista à in-tensidade vivida e àvibração emocional.Ainda existesubjetivida-de transcendente no consumidor de última geração,seu tropismo

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traduzindo o desejo de não ser inteiramente "fisgado" pelo co-mum dos dias e pelo repetitivo da vida. O modelo do neoconsu-midor não é o indivíduo manipulado e hipnotizado, mas o indi-víduo móvel, o indivíduo-órbita zapeando as coisas na esperança,muitas vezes frustrada, de zapear sua própria vida.

Por aí se vê que o consumo mantém relações íntimas com aquestão do tempo existencial. Em uma época de consumo emo-cional, o importante já não é tanto acumular coisas quanto in-tensificar o presente vivido. Ávido de maior bem-estar e de sen-sações renovadas, o consumidor 11Ié antes de tudo aterrorizadopelo "envelhecimento" do já sentido, procura menos ocultar amorte que lutar contra os tempos mortos da vida. As viagens, se-gundo o ditado, formam a juventude: o hiperconsumo, este tema seu cargo "rejuvenescer" incessantemente o vivido pela anima-ção de si e por experiências novas; é um hedonismo dos começosperpétuos que alimenta o frenesi das compras. Vaneigem afirma-va que o consumo nos condena a um "envelhecimento precoce":17é mais justo dizer que ele é habitado pelo sonho de uma juven-tude eterna, de um presente sempre recomeçado, sempre revivi-ficado; aí está o mais profundo desejo do Homo consumericus.Uma nova leitura se impõe: o movimento que nos leva na dire-ção das satisfações mercantilizadas é menos signo de despoja-mento de si que desejo de "renascimento" de si pela intensifica-ção do presente vivido.

Por isso, o consumo no ciclo 11Ipode aparentar-se a uma mi-nifesta. Não há nenhuma dúvida de que um abismo separa a fes-ta tradicional do consumo atual, sendo este privado e mercantilquando aquela é coletiva e ritual. Isso não impede que similitu-des existam. Assim como a festa tem a seu cargo, simbolicamen-te, voltar a dar vida, depois do caos e da morte, ao corpo coleti-vo, o ato de consumo visa, na busca do novo, redinamizar o aquie agora, exorcizar a erosão do tempo individual, reintensificar a

duração. Seo universo do consumo é inseparável da relação comas coisas,é paradoxalmente a preocupação com o tempo que lheconstitui agora a motivação subterrânea. Na trepidação das ne-cessidades, é preciso escutar o eco da busca de uma juventudel'mocional indefinidamente ressuscitada.

Em um texto já antigo, Lévi-Strauss notava que o consumomoderno fazia dos americanos uma espécie de crianças sempreà espreita de novidades. 18 A se observar os parques de lazer, os jo-gos de vídeo e televisuais, os produtos que parecem brinquedos,é forçoso reconhecer que a hipótese se confirma cada vez mais acada dia. De um lado, a Arcádia da mercadoria impele os indiví-duos a responsabilizar-se por si, informar-se, tornar-se gestoresadultos de sua vida. Do outro, ela funciona como um agente de"infantilização" dos adultos. Uma das propensões do hipercon-sumidor é menos para impor-se como "gente grande" diante dooutro que para voltar a ser "pequeno". É assim que agora se vêemadultos comprar para si ursinhos, usar camisetas Barbie, circularde patins ou patinetes, participar de reuniões sociais em que secantam as canções dos programas de televisão de sua infância.Surge um novo mercado em que os perfumes integram os aro-mas de cola branca escolar, em que géis de banho são perfumadoscom chocolate, em que se promove a "jurássica torta de Nutella".Em uma escala mais ampla, nos parques de diversões os adultostêm prazer em brincar de ser a criança que foram. Se os velhosquerem parecer jovens, os jovens adultos "recusam-se" a crescer:enquanto o mercado do "consumo regressivo" se desenvolve, arecusa de crescer começa cada vez mais cedo, os jovens adultosparecem querer viver no eterno prolongamento de sua infânciaou de sua adolescência.

Como interpretar semelhante fenômeno? Philippe Muray,que cultiva a hipérbole catastrofista em nome da fidelidade aoreal, não hesitou em reconhecer aí, categoricamente, uma das for-

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mas de nossa "creche universalizada", o signo de morte dos sereshumanos históricos, um "momento capital da mutação da hu-manidade" subitamente reinfantilizada, puerifílica, indiferencia-da, misturadeira, transfronteirista, monstruosa.19 Nada mais na-

da menos... Finda a diferença entre as idades da vida, nossa épocaestá engajada na guerra já vitoriosa contra todas as antigas divi-sões, todas as velhas diferenciações do mundo adulto, histórico ehumano.

Mas onde se viu que havia erradicação dos critérios e das di-ferenças? Pois o indivíduo do regime infantófilo sabe, mesmo as-sim, que uma pequena diferença existe entre princípio lúdico eprincípio de realidade! Há muita injustiça caricatural em tomara parte pelo todo, o jogo pela vida, o consumo pela existência. Oneo-adulto que se libera na Euro Disney não recai na infância,ele se diverte em infantilizar-se, em suspender o real num espa-ço-tempo limitado, brinca "de crer, de se fazer crer ou de fazer osoutros crerem que é diferente de si próprio. Ele esquece, disfar-ça, põe de lado passageiramente sua personalidade para fingiruma outra".20Por meio do consumo, jogamos com as diferencia-ções: não as abolimos. O que é apresentado como uma figura dapós-história não é mais que o prolongamento da mais velha pro-pensão do homem para "disfarçar-se, fantasiar-se, usar uma más-cara, representar um personagem':21 Conduta de Mimicryque nãofaz desaparecer nem as divisões sociais da idade22nem as capaci-dades de julgar, criticar e trabalhar dos atores. Passemos rapida-mente pela pequena brincadeira da "mutação antropológica" queseria anunciada pela carnavalização pós-moderna, pelas farsas epalhaçadas insignificantes de nosso mundo liso e derrisório. Co-mo se os homens não houvessem sempre tido prazer em brincar,simular, mudar de aparência, distrair-se, opor-se à seriedade davida: nada é mais imemorial. Imitando a criança, o neoconsumi-dor não faz mais que dar uma nova feição ao Homo ludens eter-

I\I I. E se, como observa Caillois, Mimicry tem por fim, através das1I1.\SCaras,"meter medo nos outros", não se pode deixar de sorrir.10constatar que ela continua a produzir os mesmos efeitos, apa-vorando o talentoso detrator da festivização globalizada!

Nostalgia e desejo de insignificância

Evidentemente, o indivíduo não é mais pueril do que anti-gamente e nenhuma "transformação ontológica completa" ocor-reu. O que triunfa não é tanto a regressão psicológica quanto aconsagração social da juventude como ideal da existência paratodos. Nesse cenário cultural radicalmente inédito, o ideal de vi-da adulta, séria e compassada, seeclipsa em favorde modelos quelegitimam as emoções lúdicas ou mesmo infantis. Quando a ju-ventude e o hedonismo funcionam como referenciais essenciais,não há mais vergonha em exibir gostos de uma outra idade, ver-gonha de que se prolonguem. Findas as estritas compartimenta-ções e fixaçõesde comportamentos ligados às idades da vida, fin-da aomesmo tempo a impaciência dos jovensem afirmar-se comoadultos: tornou-se legítimo não mais querer envelhecer,perma-necendo, em certos planos, uma "criança grande".

Não há mutação da espécie humana: postos de lado os ca-sos extremos da síndrome de Peter Pan, trata-se apenas de redes-cobrir, em tempoparcial,sensações felizesexperimentadas na in-fância, de recriar um universo de satisfação e de prazer, de nãorenunciar a nada, justapondo consumos tanto adultos quanto in-fantis. O hiperconsumidor não adquire apenas produtos high-techpara comunicar-se em tempo real, compra também produ-tos afetivos,fazendo emoções da infância viajar no tempo. Estesúltimos são hoje sistematicamente desenvolvidospelo "retromar-keting",cujo objetivo é promover marcas afetivasjogando com anostalgia dos consumidores. É assim que, bem além dos "adules-

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centes", o consumo experiencial nostálgico tornou-se um vastomercado. Daí em diante, os indivíduos procuram redescobrir asimpressões de sua infância através da oferta do mercado; eles jo-gam sem inibição com o passado, surfam nas marcas do passadoe de todas as idades da vida. Por aí se vê que o "consumo regres-sivo" é antes de tudo o signo de uma cultura hedonista, lúdica ejuvenil, de uma época em que as compras são realizadas com vis-ta a experiências subjetivas. Nova febre que não é nada mais queuma das figuras da ordem desregulada, emocional, hiperindivi-dualista da fase m.

Como quer que seja, é quando os homens se tornam de pon-ta a ponta responsáveis por seu mundo que eles têm cada vez maisprazer, paradoxalmente, em "bancar a criança". O recuo dos deu-ses afinal levou menos à afirmação triunfante do sujeito que aodireito ao infantilismo para todos, aos lazeres "passivos" e fúteis;ele é acompanhado menos pelo abismo trágico do absurdo quepor desejos de banhos de juventude, de irrealidade lúdica, dealheamento emocional do sentido. Se o cosmo da racionalidade

instrumental é testemunha de um impulso de "busca de sentido",ele o é mais ainda da necessidade crescente de esquecer o senti-do, de evadir-se da vida corrente em atividades insignificantes egratuitas que "nos liberam da obra da liberdade, nos devolvemuma irresponsabilidade que vivemos com prazer".23

Não é a leveza do ser que é insustentável, é, de maneira cres-cente, a insegurança do mundo liberal, o excesso dos possíveis, opeso do livre governo de si mesmo. Quanto mais há preocupaçãoe responsabilidade consigo, mais se afirma a necessidade de leve-za vazia, de relaxamento próximo do "esforço zero", de despreo-cupação fútil. Não alienação do sujeito, mas uso da liberdade pa-ra não mais pensar, saltar fora de si e "repelir o fardo de suahistória".24O hiperconsumo não funciona sistematicamente co-mo um mal menor, é o que oferece ao indivíduo o gozo da irres-

ponsabilidade e da superficialidade do jogo. Parques de lazer, jo-gos de vídeo, disfarces eletrônicos do Eu, telerrealidade, trash-TV:qual é o peso real da "preocupação com o sentido" comparada àescalada do consumismo do sentido, aos crescendos do espetáculo-lazer, à excrescência das paixões distrativas e de animação de si?

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4. A organização pós- fordistada economia

qualidade, aceleraçãodo ritmo de lançamento dos produtos no-vos, preeminência do marketing, umas tantas novas estratégiasque, chocando-se de frente com o modo fordista de organizaçãoda produção, favoreceram a emergência de novos modelos deconsumo. Sobre o fundo de uma oferta pletórica e variada, des-padronizada e acelerada, a economia da sociedade de hipercon-sumo distingue-se pela "redescoberta do cliente".Aviragem queseproduziu é considerável:de um mercado comandado pela ofer-ta, passou-se a um mercado dominado pela procura.

Diversificaçãogalopante da oferta, que vai de par com a glo-balização das empresas, com o papel crescente das firmas multi-nacionais:asvendas mundiais das quinhentas primeiras delas tri-plicaram entre 1990e 2001, enquanto o PIBmundial aumentava50%.A fase IIItem por base a abertura dos espaços econômicosconcretizada, especialmente, na mudança de escala das opera-ções de fusão-aquisição, na corrida ao crescimento externo, naconcentração crescente dos mercados, na febre da internaciona-lização.Daí o desenvolvimento de empresas gigantescas,possui-doras de marcas mundiais que por vezesmobilizam orçamentosde comunicação da mesma ordem de grandeza que as despesasligadas à produção industrial. Avalia-seem 3mil o número des-sas grandes marcas mundiais: é sobre as ruínas do capitalismoregulamentado que se elevamnovos gigantes, as hipermarcas deambição mundial com comunicação global.De um lado, a socie-dade de hiperconsumo coincide com o triunfo da variedade e do"cliente rei"; do outro, é contemporânea da unificação mundialdos mercados e das gamas de produtos através dos desenvolvi-mento das megamarcas ou hipermarcas que, presentes nos cincocontinentes, se baseiam em um marketing global, em produtos eslogans, logotipos e imaginários geridos de maneira internacio-nal e mais ou menos adaptada às especificidadeslocais.

Além disso, a economia centrada nos bens materiais trans-

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A sociedade de hiperconsumo designa a terceira etapa his-tórica do capitalismo de consumo. Esta não se caracteriza ape-nas por novas maneiras de consumir, mas também por novosmodos de organização das atividades econômicas, novas manei-ras de produzir e de vender, de comunicar-se e de distribuir. Foi

todo o sistema da oferta que mudou de caráJer.Éamplamente aceitoque somos testel1}Únhas,desdeo último

quarto do século xx, de uma reestruturação do sistema capitalis-ta, marcada, de um lado, pela revolução das técnicas da informa-ção, do outro, pela globalizaçãodos mercados e a desregulamen-tação financeira.No entanto, essastransformações macroscópicasnão explicamtudo, longe disso.Ocorreram ao mesmo tempo, noplano das empresas,mudanças estruturais na abordagem do mer-cado, nos posicionamentos estratégicos, nos modos de concor-rência e nas políticas da oferta. Estáem funcionamento um outromodelo de organização cujos princípios se situam nos antípodasdo sistema em vigor nas fases r e lI.Segmentação dos mercados,diferenciação extrema dos produtos e dos serviços, política de

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formou-se em economia de serviço: a era da hipermercadoria éaquela que é dominada pelas prestações imateriais e pelo forne-cimento de serviços.I Nos paísesda OCDE(Organização para aCooperação e o Desenvolvimento Econômico), os serviços re-presentam agora dois terços da atividade econômica em valor deprodução. Essa dinâmica é reencontrada, naturalmente, na es-trutura e na evolução do consumo, tendo a participação dos ser-viços no consumo das famílias passado de 25% em 1960 para48,8% em 2000.A fase IIIaparece como o momento em que osdispositivos pós-fordistas se combinam com a terceirização e aindividualização galopante do consumo.

lhor às necessidades individualistas de diferenças, os industriaisempregaram novos modos de estimulação da procura baseadosna segmentação dos mercados, na multiplicação das referências,na oferta de variantes dos produtos a partir de componentes idên-ticos. O sistema da produção de massa cedeu o passo a uma ló-gicade proliferação da variedade.

Extensão das séries e produção personalizada

A ECONOMIA DA VARIEDADE

Em 1970,um carro era produzido em quatro versões,contramais de vinte, duas décadas mais tarde.2Em 1984,Bernard Ha-non, diretor-geral da Renault, já declarava que a firma fabricava,reunidas todas as opções, 200mil veículos diferentes.3Durante afase 11,o mercado dos tênis era pouco diferenciado: hoje a Ree-bok pode oferecer cerca de quinhentas a seiscentas referências.Aindústria da relojoaria ilustra igualmente o advento da econo-mia da variedade: estima-se em mais de 50mil o número de mo-delos registrados pela Swatch.O Japão levou a um ponto culmi-nante a espiral da diversificação dos produtos industriais: nosanos 1990,mais de trezentas novas bebidas não alcoólicase maisde duzentos modelos de walkman eram lançados todo ano nomercado; todo mês, a Seiko oferecia, em média, sessenta novosmodelos de relógio.4O marketing de massa foi substituído porestratégias de segmentação, ampliando sem parar a gama das es-colhase das opções,promovendo sériesmais curtas, visando maisespecificamentea subconjuntos do mercado.

A dinâmica de individualização dos produtos só pôde efe-tuar-se graças à alta tecnologia baseada na microeletrônica e nainformática. As novas tecnologias industriais permitiram o de-senvolvimento de uma "produção personalizada de massa" queconsiste em montar, de maneira individualizada, módulos pré-fabricados. Por muito tempo o segmento personalizado foi con-

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As fasesI e 11edificaram-se a partir da fabricação em grandesérie de produtos padronizados. Foi do modelo fordista-tayloris-ta de organização da produção que saiu a sociedade de consumode massa. Sem dúvida, desde os anos 1920surgiram estratégiasde segmentaçãodo mercado e de diversificaç,o dos produtos. As-sim, a GeneralMotors inaugurou, sob o impulso deAlfredSloan,uma política industrial de diferenciação,oferecendo diversasva-riantes de carros, de acordo com o princípio "um carro para ca-da um, segundo seus meios e segundo suas necessidades':Apesardisso, no conjunto, as políticas de diversificação permaneceramlimitadas, amplamente dominadas pelas grandes sériespadroni-zadas.

A fase IIIaparece no momento em que os princípios fordis-tas que organizam a produção das séries repetitivas apresentamsinais de perda de fôlegoe vêem-se questionados.A fim de opor-se à desaceleração do consumo ligada à saturação dos mercadosdomésticos dos bens de consumo duráveis e de responder me-

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siderado topo de linha, ao qual apenas os abastados podiam teracesso: hoje, é possível fabricar produtos personalizados ao mes-mo custo dos produtos padronizados. A Renault e a Peugeot ofe-recem a seus clientes, na internet, a definição e personalização deseu carro pela escolha, segundo seus gostos, da motorização, dacor, das opções, e isso em segmentos para grande público. Certosserviços oferecem 20 mil toques e logotipos destinados a perso-nalizar os telefones celulares. A Nike e a Kickers lançaram um ser-viço de personalização de seus calçados; Barbie propõe que asmeninas "componham" elas próprias a boneca de sua escolha. Aeconomia da fase III inverteu a lógica que, organizando a produ-ção padronizada de massa, instituía a preponderância da oferta:não se trata mais de produzir primeiro para vender em seguida,mas de vender para produzir, tornando-se o consumidor finaluma espécie de "comandante" do produtor. Oferecendo uma va-riedade crescente, multiplicando as opções que garantem a masscustomization, a fase III,na qual se estende a hipertrofia da ofer-ta, aparece como uma economia dominada pela demanda.

O que age no universo dos bens materiais age igualmente na

esfera dos serviços, como o demonstra o deseiolvimento daspolíticas de segmentação tarifária nos transportes e nas teleco-municações, a multiplicação dos canais de televisão, as ofertas deviagens personalizadas. Desde os anos 1990, as companhias fer-roviárias e aéreas abriram-se às estratégias tarifárias diferencia-das. Diferentemente das fórmulas clássicas em que o preço é fi-xo, qualquer que seja o cliente, daí em diante os níveis de tarifaçãovariam em função da situação do mercado, do momento da re-serva, do período do ano, do dia da semana ou da hora do trans-porte. Política de diversificação tarifária explorada em profusãotanto pelas agências de turismo quanto pelas operadoras de tele-fonia fixa e móvel.As fórmulas à Ia carte,a diferenciação das ga-

mas de preço e dos produtos tornaram-se os princípios organi-zadores da oferta industrial e dos serviços.

Em sua obra consagrada à história do marketing, Richard S.Tedlow propõe uma periodização análoga à apresentada aqui,mas interpretada sob um ponto de vista muito diferente. A seusolhos, é desde os anos 1950que o capitalismo se insere numa erade segmentação, que uma nova abordagem do mercado vem àluz, levando em conta especialmente os critérios de idade e os fa-tores socioculturais. A partir dessa época, as grandes marcas nãose preocupam mais em seduzir todos os segmentos da socieda-de, mas categorias particulares de consumidores: ao marketingde massa, em vigor desde os anos 1880,segue-se um marketingde segmentação.5

Seas transformações detectadas por Tedlowsão pouco du-vidosas, não é menos verdade que na fase11- a fase IIIno esque-ma de Tedlow- a dinâmica de segmentação permaneceu muitomais "imaterial" que material, manifestou-se claramente na pu-blicidade, mas muito menos na fabricação dos produtos6 e nasestratégias da grande distribuição. Por assim dizer, a comunica-ção estava "adiantada" em relação à produção, ainda dominadapelas grandes séries de itens padronizados, e em relação à grandedistribuição (supermercado, hipermercado), empenhada em me-canismos de racionalização extraídos do mundo da indústria demassa. Nesse plano, é mais como um prolongamento por exten-são que como uma ruptura que se apresenta a passagem da fase Ià fase lI,ambas empregando os princípios da organização indus-trial fordista. Muito diversaé a fase III,pelo fato de que fez a pro-dução, a distribuição e os serviços entrarem na era das opções ediferenciaçõesaceleradas.

Ao processo de segmentação parcial típica da fasepreceden-te, segue-se uma segmentação extrema, quase ilimitada, visandoa faixas etárias e grupos cada vezmais subdivididos, promoven-

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do necessidades e comportamentos cada vez mais diferenciados,oferecendo produtos e serviços cada vez mais dirigidos a um cer-to público, explorando nichos específicos e micromercados comduração de vida curta: preparação instantânea para bolos desti-nados ao segmento das mulheres casadas de 35 a cinqüenta anos,com filhos (Procter & Gamble); cosméticos para mulheres afro-americanas ativas de 25 a 35 anos (Esthée Lauder); jornada se-manal de redução dos preços para os clientes de 62 anos ou mais(magazines Duckwall-Alco). A época do hiperconsumo é inse-parável da hipersegmentação dos mercados.

O desenvolvimento das estratégias de diversificação é fre-qüentemente apresentado como signo do triunfo do "cliente rei",da preeminência do marketing sobre a produção, esforçando-seas empresas cada vez mais por responder o mais precisamentepossível às necessidades da demanda, por produzir o "personali-zado de massa". Mutação fundamental que pode ser analisada co-mo a radicalização da lógica-moda, que, apenas esboçada na faselI, chegaagora ao seu apogeu.Nãomais apenasa seduçãodosbens de conforto, mas, por acréscimo, a lógica da variedade, darenovação perpétua, das diferenciações marginais}onstitutivas,há séculos, da moda indumentária. É realmenté o "sistema damoda consumado" que ordena o funcionamento mercantil da fa-se ne uma organização moda, daí em diante hipermoderna oude marketing.

xima que se construiu a grande distribuição ao longo da fase n.Essa lógica "quantitativa" se perpetua, evidentemente, mas, aomesmo tempo, desenvolvem-se novas políticas comerciais que,baseadasem uma abordagem mais qualitativa do mercado, põema ênfase nas necessidades, nas expectativas, nas satisfações plu-rais dos clientes. Daí em diante, com a exceçãonotável do gran-de desconto, o objetivo não émais apenas oferecer os preços maisbaixos, mas fidelizar os clientes empregando estratégias em de-sacordo total com o modelo fordista.

Daí uma diversificaçãomais acentuada da grande distribui-ção, preocupada em desenvolver a qualidade de acolhida, a in-formação sobre os produtos, a remodelação das prateleiras em"universos", a assistência comercial, a entrega em domicílio, otransporte dos clientes, as políticas de fidelização.Ora são privi-legiados os meios que permitem tornar menos desagradável a"compra-corvéia": ajustamento dos horários de abertura, fórmu-las de crédito, facilidade de acesso, redução da espera nas caixas.Ora é reforçado o que pode maximizar a "compra-prazer": rota-ção rápida das coleções,mise-en-scenedos produtos, animaçõesdiversas,qualidade do ambiente, bar e restaurante, qualidade dosortimento. Antigamente concentrada no preço por suas estraté-gias, a grande distribuição começa a pôr no primeiro plano desuas prioridades a satisfação da pessoa do cliente.8Tanto na pro-dução quanto na distribuição, a hora é da diferenciação da ofer-ta, do suplemento de alma injetado nos produtos, da satisfaçãode clientelas-alvo, da diversificação crescente dos conceitos co-merciais e dos serviços.

Se a fase n foi a da revolução do supermercado e do hiper-mercado, a fase IIIé a da progressão rápida das "grandes áreas es-pecializadas"(Conforama, FNAC,Darty,Décathlon, Sephora, Ikea)que oferecem,com auto-serviço, um sortimento de produtos me-nos amplo, porém mais profundo que o dos não especializados.

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AS REORIENTAÇÕES DE MARKETINGDA GRANDE DISTRIBUIÇÃO

As estratégias de diferenciação e de segmentação alcança-ram igualmente o universo da distribuição. Foi em torno do ar-gumento "racional" do preço baixo (o desconto) e da eficácia má-

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Nascida nos anos 1970,a fórmula desenvolve-se num ritmo in-tenso a partir dos anos 1980;desde os anos 1990,o crescimentode seu montante de negócios é superior ao dos hipermercados.Asgrandes áreasespecializadasperfaziam, em 2004,41%do mer-cado da jardinagem, 66% do esporte, 41% dos grandes eletrodo-mésticos, 56% da telefonia.

Essas firmas têm a característica de oferecer uma especiali-zação do sortimento responsável por um princípio de coerência:universo da bricolagem, do esporte, da cultura, da beleza.Assim,é um universo de carência, por vezes um "estilo de vida", que évendido ao mesmo tempo que produtos. Uma fórmula sem dú-vida destinada a desenvolver-se, uma vez que se acha em resso-nância com o hiperconsumidor "profissional" e reflexivo, maissensível aos critérios de tecnicidade e à temática da "qualidade",mais capaz também de interpretar a informação e de compararas ofertas.

Igualmente em sintonia com o hiperconsumidor emocionalestão os novos tipos de lojas que procuram reforçar o compo-nente prazer do ato de compra, fazer os consumidpres viveremexperiênciasafetivase sensoriais.Certas redes de liv'rarias(Chap-ters,Virgin) agora instalam bares, poltronas, pequenas salas queconferem aos locais de venda uma dimensão de convívio.Outraslojas se esforçam em dar novo encanto a seus espaços, criandouma atmosfera de sonho, de poesia ou de jogo, pondo em cena ouniverso das crianças (Apache) e da natureza (Animalis, Nature&Découvertes), do esporte (Andaska,Citadium) e dos produtosantigos (Résonances), espetacularizando os locais de venda se-gundo os princípios do fun shopping.Assim restabelecem o anti-go aspecto "feérico" dos grandes magazines. Sob o impulso domarketing experiencial, a lógica-moda (sedução, animação, fan-tasia, decoração, ludismo) apoderou-se dos espaços de venda,

Iransformando-os em locais de atração, em "ambiências" emo-rionais e estéticas.

No ciclo de consumo IlI, a estratégiadospreços"reduzidos"não corresponde mais às expectativas de diferentes segmentos dedientes: trata-se de fazer das lojas "locais de vida", capazes de es-limular a compra festiva. Depois do ambiente minimalista e hi-perfuncional das "fábricas de vender", a hora é do retailtainment,do "hiperambiente" da mercadoria, feito de mise-en-scene de con-ceitos e de produtos, de telas de vídeo, de montagem musical, dequalidades sensoriais e decorativas. Eis o espaço comercial rees-Iruturado, por sua vez, pela forma-moda e pelas estratégias comI1nalidade emocionalista.IA CORRIDA À INOVAÇÃO

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A tendência à personalização dos produtos e dos serviçosdesenvolve-seem uma economia em que se impõe a preeminên-ria da inovação sobre a produção. Durante os dois ciclos ante-riores, a competitividade das empresas baseava-seno crescimen-10 da produtividade do trabalho, na redução dos custos, naexploração das economias de escala.Nos novos mercados globa-lizados, a realização de ganhos de produtividade já não basta, écada vezmais pela reatividade, pelo lançamento de produtos no-vos- sejaverdadeiro salto de desempenho,9seja simples reposi-donamento de produtos - que se constrói a vantagem compe-litiva e se realizao aumento das vendas.

Marx e Schumpeter puseram em evidência o fato de que ocapitalismo era um sistema baseado na mudança dos métodosde produção, na descoberta de novos objetos de consumo e denovosmercados. Mais sistemático que nunca, o processo de "des-Iruição criativa" inerente ao capitalismo passou para uma velo-

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cidade superior: no cosmo da hipermercadoria, a criação real oufictícia de novos produtos impõe-se como o novo imperativo ca-tegórico do desenvolvimento, um de seus instrumentos de mar-keting mais poderosos. Daí a importância das atividades e orça-mentos de pesquisa e desenvolvimento investidos, em particular,pelas empresas multinacionais. Em 2002, o orçamento de P&Ddestas representava a metade dos 677 bilhões de dólares investi-dos mundialmente nesse setor. Daí em diante, algumas socieda-des transnacionais (Ford, Daimler-Chrysler, Siemens, Toyota, Pfi-zer) têm orçamentos de P&Dcomparáveis aos de certos paísesimportantes, ou seja, de mais de 5 bilhões de dólares.

Mesmo em período de desaceleração do crescimento, as em-presas hesitam em reduzir drasticamente as despesas consagra-das à pesquisa e ao desenvolvimento. Quando a conjuntura é des-favorável, estas certamente se reduzem, mas muitas empresas jánão sacrificam seus orçamentos porque, quanto mais uma em-presa inova e põe no mercado produtos novos, mais o crescimen-to de seu montante de negócios, de sua produtividade e de seuvalor bolsista é importante. Em nossos dias, os setores em cresci-

mento são aqueles em que o ritmo das renovaçõel e de inovaçãodos produtos é mais elevado. Os novos produtos tornaram-seuma das chaves do crescimento das empresas: na fase III, o ino-vacionismo suplantou o produtivismo repetitivo do fordismo.

/Ou cerca de 5 mil novos produtos. O instituto de pesquisas Niel-,en calculou que, em torno dos anos 1990, nasciam, em média,lem novas referências alimentares por dia no mundo. Entre 2000(.2004, a PSAlançou 25 novos modelos, divididos entre Peugeot("Citroen. No mercado mundial, passou-se de 34 lançamentos deIIOVOSperfumes em 1987 a trezentos em 2001. Na fase lI, umaI-\randemarca lançava tradicionalmente, no mercado francês, umIIOVOperfume a cada sete anos; hoje, é a cada ano que cada gran-de marca introduz no mercado um ou mesmo vários perfumesIIOVOS.lIEssa febre de renovação aumentou muito a demanda dedenominações, a ponto de ocasionar uma verdadeira inflação delIomes de marcas: 50 mil marcas são registradas na França todo.1110.No total, estão registrados hoje 900 mil nomes de marcas.

No setor do vestuário, dominado daí em diante pela grandedistribuição, as coleções bianuais tradicionais deram lugar a dezou doze coleções nas empresas americanas mais na vanguarda. 12

Uma marca como a Zara renova seus modelos a cada duas sema-

lias, produzindo cerca de 12 mil designs por ano, diferenciados~egundo os países. Mesmo a Lacoste realiza dois desfiles por anopara apresentar suas novas coleções. As roupas íntimas já não es-l.tpam ao ritmo de lançamento da moda: Calvin Klein renova~lIaslinhas de lingerie todos os meses. A Reebok lança uma cole-,ão de calçados a cada três meses. A economia da hipermercado-ria coincide com a corrida desenfreada à renovação acelerada dosprodutos e modelos.

As indústrias culturais obedecem à mesma lei "frenética" do

IIOVOe do perecível. São sublinhadas com freqüência a domina-,."0 de um oligopólio de algumas das maiores empresas, as mega-fusões, a aceleração da concentração dos grupos que acompanham.\ liberalização das trocas econômicas e a maior financeirizaçãodesse setor. Oitenta e cinco por cento das gravações musicais ven-didas no mundo são produzidos por quatro grandes grupos; os

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IA inflação das novidades

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A evolução dos ritmos e imperativos de inovação é impres-sionante. Em 1966, 7 mil produtos novos faziam sua aparição nasprateleiras dos supermercados americanos: em nossos dias, elessão 16 mil, com uma taxa de insucesso de 95%. Todo ano, 20 milprodutos novos de grande consumo são oferecidos aos europeus,sendo a taxa de insucesso de 90%.10Em 1995, a Sony comerciali-

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quinze primeiros grupos audiovisuais representam quase 60%do mercado mundial dos programas; as sete maiores empresasamericanas do cinema monopolizam 80% do mercado mundial.Mas essealto grau de concentração das indústrias culturais nãodeve ocultar o outro grande fenômeno, constituído pela crescen-te variedade dos produtos e pela redução da duração de seu ciclode vida. A era da globalização é menos moldada pelos processosde padronização e de homogeneização que pela explosão da di-versidade, pelos imperativos da rapidez, pela dinâmica dos flu-xos permanentes.

A fim de minimizar os riscos em faceda incerteza do suces-so e de responder a uma demanda imprevisível,as indústrias cul-turais não cessamde multiplicar sua oferta de produtos. Nos Es-tados Unidos, o número de livros publicados aumentou mais de50% ao longo dos dez últimos anos; mais de 100mil livros sãopublicados todo ano: 135mil em 2001. Desde 1980,os EstadosUnidos publicaram 2 milhões de títulos contra 1,3milhão du-rante os cem anos anteriores. O movimento não poupa a Fran-

ça, onde foram publicados, em 2004,cerca de 60mil ~ítulosde li-vros contra 25 mil em 1980.Cada nova temporad1literária vêum dilúvio de títulos invadir as livrarias: 667 romances apenasno outono de 2004, ou seja,mais que o dobro do que oferecia atemporada de 1997.A dinâmica de proliferação incorpora igual-mente a indústria do cinema. Enquanto em 1976Hollywood rea-lizava 138filmes, no período 1988-99o número médio anual delongas-metragens produzidos elevou-se a 385; em 2001, os Esta-dos Unidoscomercializaram445filmes,excluídosospornôs. Gra-ças a essa dinâmica de superprodução, o número de filmes lan-çados na salas da França pôde aumentar 40% em dez anos,passando de 395, em 1995,a 560, em 2004.

A oferta pletórica, as exigências de rentabilidade rápida, aspoderosas máquinas promocionais provocaram uma redução da

duração de vida dos produtos culturais. O tempo curto apode-rou-se, por sua vez,do ritmo das obras do espírito. Cada vezmais,o livro torna-se um produto de circulação ultra-rápida nas pra-teleiras das livrarias. No presente, um terço das 550 salas pari-sienses oferecem um novo filme todas as semanas. Em 1956,osfilmesobtinham quase 50% de suas receitas em três mesesde ex-ploração; hoje, o essencialdos resultados é realizado em duas se-manas, para um fracasso, e em seis ou dez semanas, em caso desucesso.I) Por toda parte,a financeirizaçãodas indústriascultu-rais, a oferta superabundante, a demanda instável dos hipercon-sumidores ocasionaram a redução do tempo de vida das obras, arotação acelerada dos estoques, uma espécie de cultura em "flu-xo forçado".Indústrias do divertimento, marketing generalizado,obsessão com as sinergias: a cultura na fase III funciona cada vezmais como um investimento financeiro que deve obedecer à obri-gação de remuneração do capital empregado, como um produtomercantil "como os outros" ou quase como os outros. A despeitodos combates travados em nome da proteção da "diversidade cul-tural", a economia da hipermercadoria vê difundir-se irresistivel-mente a lógica do mercado em todos os ramos de atividade, umcapitalismo midiático dominado pelo aumento da velocidade edo descartável acelerado.

A economia da velocidade

Aaceleraçãoda obsolescênciados produtos está presente emtodos os setores. Um enorme número de produtos tem uma du-ração de vida que não excede a dois anos; estima-se que a dosprodutos high-tech foi diminuída pela metade desde 1990;70%dos produtos vendidos em grande escalanão vivemmais de doisou três anos; mais da metade dos novos perfumes desaparece aofim do primeiro ano. A renovação extremamente rápida da ofer-

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ta, mas também as demandas de consumos mais emocionais einstáveisestão na origem dessa escalada.Para estimular o consu-mo, os atores da oferta não procuram mais produzir artigos demá qualidade: renovam mais depressaos modelos, fazem-nos sairde moda oferecendo versões mais eficientes ou ligeiramente di-ferentes. Trata-se de seduzir pela novidade, de reagir antes dosconcorrentes, de acelerar o lançamento dos produtos, reduzir osprazos de concepção e de colocação de novos itens no mercado.Desde os anos 1990,a maior parte dos que decidem no mundoindustrial declara que o estado da concorrência os obrigou a di-minuir o tempo de concepção e de desenvolvimento dos novosprodutos. No fim dos anos 1970,a Chrysler precisava de quatroanos e meio para elaborar um novo modelo de automóvel: esseintervalo de tempo foi reduzido a menos de dois anos. A Xeroxconseguiu dividir por dois o tempo necessário para desenvolverseus novos produtos. À hora da internacionalização da econo-mia, a concorrência pelos custos já não é suficiente; a competi ti-vidade requer a intensificaçãodas velocidadesde reação e de cria-tividade. Passa-se da concorrência à hiperconcorrência, quando

o tempo curto dos ciclos de elaboração, a aceleraç10 da inova-ção, a velocidade de renovação dos produtos se tornam parâme-tros do desempenho econômico.

Naturalmente, os processos de redução do tempo na vidaeconômica não são de modo algum novos. Estão no centro daorganização taylorista da empresa.Mas, nesse dispositivo,ganhode tempo significavarapidez dos escoamentos, redução do tem-po de cada operação do processo de produção. Essesistema, pro-motor de uma temporalidade linear, homogênea, padronizada,está cada vezmais comprometido: foi substituído pela valoriza-ção de uma temporalidade descontínua, ilustrada pela rapidezde implantação nos mercados, a busca de velocidade nos ciclos,a corrida à inovação}4O desafio já não é tanto o de produzir em

massa e continuamente quanto o de garantir a entrada mais rápi-da dos produtos no mercado, responder à procura antes dos con-mrrentes. Nas economias pós-fordistas da fase 11I,o lugar essencialcabe à reatividade, à concepção, à inovação rápida dos produtos.

Cronoconcorrência

Nesse momento dos ganhos de conceptividade e de capaci-dade de inovação, o fator tempo tornou-se tão crucial que se im-põe o conceito de "cronoconcorrência», Nesse contexto de redu-ção do tempo para chegar ao mercado, as empresas, cada vez mais,anunciam antecipadamente a comercialização dos novos produ-tos. O Smart foi anunciado mais de quatro anos antes de seu lan-çamento, o Xsara Picasso, um ano antes de sua "saída»; a Sonyanunciou o Play Station 2 com um ano de antecedência. Nos Es-tados Unidos e na Grã-Bretanha, de 40% a 50% dos produtos sãoanunciados antecipadamente. Na França, 60% dos carros e dosjogos de vídeo são objeto de anúncio prévio.

Essa estratégia visa construir a notoriedade do produto e damarca, afetar as vendas dos produtos concorrentes, criar o dese-jo, favorecer o nível das vendas desde o lançamento: 1 milhão deexemplares do Play Station 2 foram vendidos no Japão no pri-meiro fim de semana de sua comercialização.'s Ao mesmo tem-po, esse tipo de prática reduz a duração de comercialização dosprodutos da série, visto que os consumidores esperam a saída donovo produto de preferência a comprar o que existe no merca-do. Não são mais apenas as vitrines reluzentes que desencadeiamas fúrias consumidoras, são os novos produtos anunciados me-ses e anos antes de sua comercialização. No ciclo III,o hipercon-sumidor já não consome apenas coisas e símbolos, consome oque ainda não tem concretização material.

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IMAGEM, PREÇO E QUALIDADE ciente que resultou na convocação para conserto de 1,3 milhãode veículos em 2005. É enganadora a tese que assimila a fase IIIao eclipse do produto, como se o valor imaterial houvesse conse-guido reduzir a nada ou a quase nada o valor funcional. Daí emdiante a qualidade se impõe como uma condição necessária parasobreviver nos mercados. Não é verdade que "tudo está na ima-

gem": porque é inseparável da busca da excelência técnica, doscontroles de qualidade, do desempenho dos produtos, o univer-so da hipermercadoria não pode, evidentemente, ser reduzidoaos jogos da imagem de marca.

Ao mesmo tempo, a fase III registra o sucesso dos medica-mentos genéricos, das marcas de distribuidores, das lojas de ma-xidesconto, dos produtos com os mais baixos preços da linha, dascompanhias low cost.No presente, as lojas de grandes descontossão freqüentadas por dois consumidores em três e um quinto doconsumo é feito fora das marcas. Por mais que a fabricação do

imaginário de marca absorva todos os esforços, vemos os setoresdos bens de consumo corrente empenhados em um trabalho sis-temático de supressão dos custos de marketing e de merchandi-sing. Se o topo de linha aumenta suas participações de mercado,o mesmo se passa com a base de linha. É preciso deixar de vei-cular a idéia segundo a qual só são relevantes as políticas de co-municação e de imagem. A fase da hipermercadoria é aquela emque o desconto não cessa de crescer, em que as grandes marcasfazem face, em certos mercados de grande consumo, a uma con-corrência desconhecida até então: aquela por preços sempre mais

baixos. Prodt!zir marcas e imagens de marca em vez de mercado-rias? Essa leitura da sociedade de hiperconsumo omite, surpreen-

dentemente, a pressão sobre os preços, a formidável expansão dasmarcas de distribuidores, dos produtos sem marca desprovidosde valores imateriais.ls Até onde vai o marketing da imagem quan-

.

Paralelamente aos princípios de diferenciação e de renova-ção dos produtos, a exigência da qualidade modificou de modofundamental a organização da produção e dos serviços. A fase 11foi identificada muitas vezes a uma economia baseada no "com-plô da moda", na degradação da qualidade, nos vícios de cons-trução intencionais. 16 Seo universo III da mercadoria modernaacelera ainda mais a lógica-moda da produção, não deixou porisso de transformar sua economia, conseguindo combinar im-permanência perpétua e princípio de qualidade. Sob o estímuloda concorrência, os industriais propuseram-se como objetivo o"defeito zero" e a "qualidade total",por toda parte se exprimiramexigências crescentes em matéria de durabilidade, de segurança,de confiabilidade dos produtos. Longe de ser considerada comoum custo, a qualidade aparece como um investimento, um vetordecisivo da competição econômica. Passa-se ao ciclo da hiper-mercadoria quando os objetos industriais baratos conseguem al-

cançar níveis de qualidade próximos aos dos produ\os topo delinha. O descarte dos artigos já não é provocado pel~\mediocri-dade da fabricação, mas pela economia da velocidade, por pro-dutos novos,mais eficientes ou que respondam a outras necessi-dades.

Aí sevêem os limites do princípio apresentado por vezesco-mo a verdade essencial da economia globalizada: "marcas, nãoprodutos': 17 Sem dúvida, semelhante posicionamento estratégicoé pertinente nos setores do vestuário, dos perfumes e dos cosmé-ticos. Mas, e em outras partes? O que vale para os tênis ou os jeansnão vale para os produtos fabricados pelas indústrias automobi-lísticas, farmacêuticas ou eletrônicas. Não foi uma má política decomunicação que manchou recentemente a imagem da Merce-des entre os consumidores, mas uma política de qualidade defi-

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do se desencadeia a concorrência pelos preços, quando as publi-cidadesmartelam em todos os folhetos:"por que pagar tão caro"?

Progressão rápida das marcas de distribuição e do low costque não contradiz, mas, ao contrário, exprime o momento do hi-perconsumo experiencial. Pois o neocomprador não quer con-sumir menos, quer obter o mesmo menos caro.Elenão dá as cos-tas à qualidade, uma vezque o mercado torna possíveluma ofertade produtos econômicos de qualidade igual à dos produtos demarca, vendidos às vezes duas ou três vezesmais caro. Não hávergonha em pagar menos caro, a compra "esperta" torna-se va-lorizadora, marca de inteligência.Para muitos consumidores, nãoé a imagem do produto que importa: é antes de tudo o preço, e ofato de poder ter acesso,graças a essacompra, a uma experiênciasensorial, emocional, relacional.

Se o fenômeno desconto não cessa de ampliar-se, isso nãodepende apenas do aumento da precariedade e da pobreza, mastambém, paradoxalmente, da escalada das necessidades, dos de-sejos de lazer,de evasão e de comunicação, que levam à obriga-ção de fazer arbitragens nos orçamentos: economiza-se no ali-mentício para poder gastar em telefonia, viagens ou vtdeo. Se olow costprogride, é em razão da democratização do ~osto porviagem.A sensibilidade do hiperconsumidor aos preços traduzmenos o espírito de economia e o recuo para os bens de primei-ra necessidade que a extraordinária progressão da procura debens "supérfluos': Aquele que visita uma loja de descontos não éum subconsumidor, mas um hiperconsumidor que controla cer-tas despesas aqui a fim de poder ter acesso,ali, a prazeres diver-sificados, a consumos lúdicos, comunicacionais e emocionais.Não é a onipotência do logotipo que triunfa, mas a força dos va-lores hedonistas, o gosto pela mudança, o desejo generalizado departicipar da sociedade-moda.

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Hiperpublicidade e hipermarcas

I

i

Não é menos verdade que a corrida à inovação e aos lança-mentos não pode dispensar as estratégias de comunicação desti-nadas a fazer vender, aumentar a notoriedade, construir a ima-gem de marca. Mesmo que, hoje, a publicidade não resuma porsi só a comunicação, ela continua a ser insubstituível como ala-vanca de notoriedade, e não cessade mobilizar, em mercados sa-turados, orçamentos cada vezmais importantes. Nos anos 1980,as despesas de publicidade triplicaram, no plano mundial. NaFrança, aumentaram 80%, ou seja, três vezesmais que o PIB.Emtrinta anos, as despesas publicitárias americanas foram multipli-cadas por dez. Entre 1985e 1998,as despesas das grandes socie-dades com patrocínio foram multiplicadas por sete. No caso decertas superproduções hollywoodianas, as despesas comerciaispodem ser superiores aos orçamentos de produção. Outras in-dústrias assinalam a inflação dos orçamentos de promoção. Seem 1985a Dior despendia 40 milhões de dólares para lançar umperfume, hoje os lançamentos desse tipo são avaliados em 100milhões de dólares. Da metade dos anos 1980ao fim dos anos1990, as despesas publicitárias da Reebok foram multiplicadaspor quinze.Asdespesasde promoção investidaspelaNike são tãoelevadasquanto as ligadas à fabricação dos tênis. Por toda parte,a fase IIIassinala-se pela explosão dos orçamentos de comunica-ção exigidos pela intensificação da concorrência, a semelhançados produtos, os imperativos de rentabilidade rápida e elevada.

A quantidade dos investimentos em comunicação não é oúnico fenômeno significativo.Assistimos,desde os anos 1980-90,a um aggiornamentoda publicidade,quesereestruturasegundoos mesmos princípios que fizeram estilhaçar-se as organizaçõesfordistas. Eis a publicidade anexada, por sua vez,pelas lógicasde

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diversificação e de renovação perpétua, características da socie-dade de hiperconsumo.

Em primeiro lugar,muitas campanhas se afastam da valori-zação repetitiva do produto, privilegiando o espetacular, o lúdi-co, o humor, a surpresa e a sedução dos consumidores. Apubli-cidade denominada "criativa" é a expressão dessa mudança. Jánão se trata tanto de vender um produto quanto de um modo devida, um imaginário, valores que desencadeiem uma emoção: oque a comunicação se esforça por criar cada vezmais é uma re-laçãoafetiva com a marca. Os intuitos da persuasão comercialmudaram; já não basta inspirar confiança, fazer conhecer e me-morizar um produto: é preciso conseguir mitificar e fazer amar amarca.Àsestratégiasmecanicistasseguiram-se asestratégiasemo-cionais, em concordância com o individualismo experiencial.

De outro lado, da mesma maneira que os mercados estãocada vez mais segmentados, a publicidade divide suas campa-nhas, fragmenta-se em múltiplas aplicações e estilos diversifica-dos. Àpublicidade repetitiva sucede uma publicidade baseada nacriatividade e na renovação freqüente das campanhas, a fim de

captar a atenção do hiperconsumidor "blasê', supersrturado demensagens. Hoje, os filmes publicitários devem ser renovados acada seisou oito meses.A Coca-Cola rodou dezessetefilmes em1997contra um único em 1986.Desde 1995,a Levi'slançou doisa três filmes por ano. Existem quinhentos anúncios da AbsolutVodkacombinando unidade ediferenças.19Acontececom acomu-nicação o mesmo que com os produtos e serviços: rapidez e va-riedade impõem-se como os novos imperativos das hipermarcas.

Não é um totalitarismo publicitário que avança, mas umahiperpublicidadeespetacular e deslocada, onírica e cúmplice; hi-perpublicidade irônica que olha para si própria, joga consigomesma e com o consumidor. Impõe-se uma nova era de publici-dade que, alinhando-se pelos princípios da moda (mudança, fan-

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,...

tasia, sedução), está em sintonia com o comprador emocional ereflexivo da fase m.A força das imagens que contribui para edi-ficar as grandes marcas não institui uma ordem tirânica, mas ouniverso das marcas-estrelasplanetárias: a época do hiperconsu-mo coincide com o triunfo da marca como moda e como mundo.

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5. Rumo a um turboconsumidor famíliaspossuidoras de dois carros passou de 11,4%,em 1973,aquase 30% no fim dos anos 1990.Em 1981,10%dos lares tinhampelo menos dois aparelhos de televisão; eles eram mais de 40%em 1999.Cada vezmais, o multiequipamento em aparelhos desom, máquinas fotográficas, telefones torna-se a regra. Logo seráo caso dos computadores domésticos. Pluriequipamento que,inegavelmente, permite um afrouxamento dos controles fami-liais, uma maior independência dos jovens, mais governança desi no cotidiano. Em uma palavra, práticas de consumo mais in-dividualizadas.O que levaRobert Rochefort a sustentar a tese se-gundo a qual o "consumo individualista" de fato decolou apenasa partir da metade dos anos 1970e, sobretudo, 1980.2Podemossegui-Io nesse ponto? Como pensar historicamente o laço entreconsumo moderno e autonomia individual?Agora que uma no-va fasede regulação das sociedades mercantis tomou corpo, ru-mo a que destino se acha impelido o neoconsumidor?

I

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A fase III da economia de massa nasce no momento em queos lares alcançam uma forte taxa de equipamento. Se desde os anos1960, nos Estados Unidos, os mercados começam a ficar satura-dos, na França é apenas por volta do fim dos anos 1970 que a tec-nologização da vida cotidiana se generaliza em todos os grupossociais. Em 1954,8% das famílias operárias posstíam um auto-móvel, 0,8%, uma televisão, 3%, um refrigerado, 8%, uma má-quina de lavar. Em 1975, essas porcentagens elevavam-se, respec-tivamente, a 73%, 86%, 91%, 77%. No fim da década, mais de doisterços dos lares estão bem ou muito bem equipados de linha bran-ca. Nesses mercados, o consumo atinge seu ponto de saturação.

Para estimular a procura, as empresas encorajaram o plu-riequipamento das famílias. Até então, como bem sublinhou Ro-

bert Rochefort, prevalecia uma lógica de consumo de tipo "se-micoletivo",I baseado no equipamento do lar: um telefone, umatelevisão, um carro por família. A fase IIIlibertou-se dessa lógica,estando o consumo cada vez mais centrado no equipamento dosindivíduos que compõem uma mesma família. A proporção das

o CONSUMO DISCRICIONÁRIO DE MASSA

A escalada individualista das práticas de consumo que acom-panha a multiplicação dos objetos à disposição dos sujeitos é ho-je evidente. Mas não é menos verdade que o consumo individua-lista começou sua carreira histórica bem antes dos anos 1980:desde os anos 1950 e, sobretudo, 1960, o processo está em mar-cha. Não foi o pluriequipamento dos lares que fez nascer de mo-do súbito, mecânico, o "consumidor individualista"; foi todo um

conjunto de fatores, no topo do qual figuram a difusão dos obje-tos (automóvel, televisão, eletrodoméstico), o desenvolvimentodas indústrias culturais, as transformações da grande distribui-ção, a nova classe adolescente, o culto prestado aos prazeres pri-

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11

vados, às novidades e aos lazeres: fenômenos constitutivos da fa-se 11em seu conjunto.

Com a economia de consumo maciço e a elevação do nívelde vida que marcam os "Trinta Gloriosos", * já não são minoriasburguesas, mas a maioria que dispõe de um "poder de compradiscricionário': de um rendimento que ultrapassa o mínimo re-querido para satisfazer as estritas necessidades. Comprar o quedá prazer e não mais apenas aquilo de que se precisa já não é apa-nágio das camadas privilegiadas, mas, pouco a pouco, das pró-prias massas. A dimensão da escolha, as motivações individuais,os fatores psicológicos vão exercer uma influência cada vez maisdeterminante, estando as famílias em condição de consumir alémda simples cobertura de suas necessidades fisiológicas.) Foi coma "sociedade afluente" que o consumo entrou na era da indivi-dualização e da psicologização de massa. Como sublinha R. Cas-tel, produziu-se uma "quase mutação antropológica do ganho sa-larial': o operário tendo acesso a um "novo registro da existência':o do consumo, do "desejo': de uma certa forma de liberdade "cujacondição social de realização é o descolamento em relação à ur-gência da necessidade':4 O supérfluo, a moda, os lazeres, as férias

tornaram-se desejos e aspirações legítim~ em todos os grupossociais.5 Os gostos pelos bens duráveis, favorecendo a privatiza-ção da vida (televisão, automóvel), vão fazer furor. Não foi nosanos 1980, mas cerca de vinte ou 25 antes que o universo do con-sumo começou a ser remodelado, em enorme escala, sob o signodo indivíduo, de suas aspirações e de suas felicidades privadas.

sumo. Trata-se das transformações ocorridas no setor da grandedistribuição. Esta não apenas transpôs para sua esfera os meca-nismos produtivistas empregados no aparelho produtivo fordis-ta6e favoreceu a difusão dos bens de consumo no conjunto dapopulação, como também alterou, por meio do supermercado edo hipermercado,7 as práticas e o imaginário do ato de compra.Consagrando-se a oferecer,concentrado sob um mesmo teto, umamplo leque de produtos de grande consumo a preço baixo, agrande distribuição inventou uma técnica de venda revolucioná-ria: o auto-serviço,8talvez um dos dispositivos mais emblemáti-cos da segunda metade do século xx, e que se tornará, pouco apouco, o modelo dominante dos comportamentos individuaisem setores cada vezmais amplos da vida, seja a familiar,política,sindical ou religiosa.9

Auto-serviço: por essemeio, o processo de despersonaliza-ção da relação comercial iniciado pelos grandes magazines compreço fixoe afixado transpõe uma nova etapa, uma vezque o con-tato entre a oferta e a procura é direto, livre da mediação do ven-dedor. Lógicade despersonalização que funciona igualmente co-mo meio de autonomização do consumidor. De fato, eis o clienteentregue apenas a si, independente, livre para escolher,sem pres-sa, para examinar os produtos, comprar sem sofrer as pressõesdo comerciante. Não lhe vendem mais, ele compra.

Sem dúvida, os supermercados e os hipermercados quebra-ram o encantamento com a mercadoria que constituía o atrativodos grandes magazines.Mas não é menos verdade que, com o au-to-serviço, uma nova estratégia de sedução foi ativada pela gran-de distribuição, uma sedução baseada não mais na mise-en-scenefeérica dos produtos e do local de venda, mas na autonomia doconsumidor. A sedução da fase 11não se limita ao mito eufórico .

do consumo, ao espetáculo da profusão, à ambiência de prodi-galidade festivae de solicitude cercando asmercadorias,1Odepen-

I'II

A revolução do auto-serviço

Outros fatores, além do rendimento discricionário, contri-buíram, na fase 11,para instituir um cosmo individualista de con-

* Período de 1945-75, marcado por forte crescimento econômico. (N. T.)

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de também de dispositivos que, ao eliminar diversos constrangi-mentos comerciais,abriram o espaço da independência e da mo-bilidade individuais. Pelo auto-serviço, a grande distribuição tor-nou possíveispráticas e um imaginário de liberdade individual,um universo de compra marcado pelo princípio de livre disposi-ção de si; ela não apenas funcionou como um agente de demo-cratização do consumo, mas também contribuiu, em seu nível,para a individualização das práticas de compra, dos gostos e dasexigências.

o hedonismo consumidor

corresponde ao lançamento em órbita de um individualismo demassa, hedonista e consumista.

Hedonismo individualista que se concretizou em novas prá-ticas de consumo, passando este a ser uma das principais preo-cupações dos indivíduos. Forte aumento das despesas de lazer(elas são multiplicadas por 3,5 entre 1949e 1974),paixão pelasférias,'2recuo da moral da poupança e desenvolvimento do en-dividamento das famílias,13expansão das compras impulsivas,14gosto pela mudança e flutuações rápidas das preferências, dasmodas e das "paradas de sucesso":o indivíduo-consumidor já es-tá estabelecido.Não é possível reconduzir o consumo dos "Trin-ta Gloriosos" a um consumo familiar ou "semicoletivo" apoiadonas despesas de equipamento básico dos lares (moradia, cozinha,carro, aparelho de televisão).Isso é omitir o que lhe constitui umdos traços essenciais, ou seja, a generalização das práticas de la-zer livremente escolhidas em função dos gostos e das aspiraçõesde cada um. Com a expansão do tempo livre, dos lazeres,das fé-rias, difundiu-se o gosto pelas atividades lúdicas, a reivindicaçãode um tempo para si, de momentos de vida centrados nos dese-jos individuais. A fase 11impulsionou uma fun moralitybaseadana prioridade dos prazeres do instante e do indivíduo, nos so-nhos de evasões distrativas, na paixão pelas viagens, pelo mar,pelo sol. O tempo para si, as seqüências de vida próprias do in-divíduo ganharam direito de cidadania.

A ascensão de um consumo emancipado da lógica familialé particularmente visível através do que Edgar Morin chama de"a classe de idade adolescente",'5inseparável de publicações, defilmes, de estrelas, de modas indumentárias e musicais especifi-camente jovens. Enquanto o dinheiro para pequenas despesas setorna uma prática mais corrente,'6 uma proporção importantede jovens está equipada com um toca-discosl7e pode ouvir, nosrádios portáteis que se generalizam,'8a música de sua escolha,na

I A fase 11não se reduz à difusão de massa dos bens de con-forto. Ela criou, ao mesmo tempo, uma cultura cotidiana domi-nada pela mitologia da felicidade privada e pelos ideais hedonis-tas.11A sociedade do objeto apresenta-se como civilização dodesejo, prestando um culto ao bem-estar material e aos prazeresimediatos. Por toda parte exibem-se as alegrias do consumo, portoda parte ressoam os hinos aos lazeres e às férias, tudo se vendecom promessas de felicidade individual. Viver melhor, "aprovei-

tar a vida", gozar do conforto e das novidafs mercantis apare-cem como direitos do indivíduo, fins em si, preocupações coti-dianas de massa. Espalha-se toda uma cultura que convida aapreciar os prazeres do instante, a gozar a felicidade aqui e ago-ra, a viver para si mesmo; ela não prescreve mais a renúncia, fazcintilar em letras de neon o novo Evangelho: "Comprem, gozem,essa é a verdade sem tirar nem pôr". Essa é a sociedade de consu-mo, cuja alardeada ambição é liberar o princípio de gozo, des-prender o homem de todo um passado de carência, de inibição ede ascetismo. Não mais injunções disciplinares e rigoristas, masa tentação dos desejos materiais, a celebração dos lazeres e doconsumo, o sortilégio perpétuo das felicidades privadas. A fase 11

I

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qual se reconhecem. Ao contrário de um consumo semicoletivo,é bem mais "o indivíduo-ouvinte"19 que aparece nos anos 1950ese generaliza nos anos 1960.O elepê, o mercado de massa do dis-C% o rádio portátil e o toca-discos, os programas de rádio dirigi-dos ao público jovem (Salut lescopains,Popclubeoutros) anuncia-ram o fim da escuta coletiva em favorde processosde apropriaçãoindividual da música. O consumo individualista correlato à cul-tura de massa é filho da fase 11.

o TURBOCONSUMISMO

I

Mas não é menos verdade que, durante todo esse período,os modos de consumo permaneceram amplamente estruturadospelos habitus de classe e pelo equipamento semicoletivo dos la-res. Foi isso que fez eclodir a fase III,que aparece como a que, am-pliando incessantemente a gama das escolhas pessoais, liberta ascondutas individuais dos enquadramentos coletivos e desenvol-ve a individualização dos bens de equipamento. Para conceitua-lizá-la em uma fórmula, a fase IIIrepresenta, passagem da erada escolha à era da hiperescolha,do monoequ1pamento ao mul-tiequipamento, do consumismo descontínuo ao consumismocontínuo, do consumo individualista ao consumo hiperindivi-dualista.

o consumo hiperindividualista

Desde o fim dos anos 1970,enquanto a tecnologização mo-derna dos lares é quase generalizada, desenvolve-se seu plurie-quipamento, que significa a passagem de um consumo ordenadopela família a um consumo centrado no indivíduo. Os efeitosdes-sa multiplicação dos objetos pessoais são importantes, podendo

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cada um, dessa maneira, organizar sua vida privada em seu pró-prio ritmo, a despeito dos outros. Telefonescelulares,microcom-putadores, multiplicação das telas de televisão, dos aparelhos desom e máquinas fotográficas digitais: o multiequipamento e osnovos objetos eletrônicos da fase III provocaram uma escalada naindividualização dos ritmos de vida, um hiperindividualismoconsumidor concretizado em atividades dessincronizadas, práti-cas domésticas diferenciadas, usos personalizados do espaço, dotempo e dos objetos,e issoem todas as idades e em todos osmeios.

Objetos como o telefone celular, a secretária eletrônica, ocongelador, o microondas, o videogravador têm em comum per-mitir que os indivíduos construam de maneira autônoma seupróprio espaço-tempo. Ahora é da hiperindividualização da uti-lizaçãodos bens de consumo, das defasagensdos ritmos no inte-rior da família, da dessincronização das atividades cotidianas edos empregos do tempo. Em suas bandeiras, a sociedade de hi-perconsumo pode escrever em letras triunfantes: "Cada um comseus objetos, cada um com seu uso, cada um com seu ritmo devida".

Todas as esferas do consumo registram frontalmente esseformidável impulso de individualização. Sob esseaspecto, a evo-lução dos comportamentos alimentares é particularmente exem-plar. Enquanto a oferta é mais variada e mais exótica, os cardá-pios, os horários, os lugares da refeição dependem de escolhasmuito mais pessoaisque de regras coletivas:eis-nos à hora da de-sestabilização do sistema das refeições e da alimentação deses-truturada.21Mesmo a relação com a moda se subjetiviza,os adul-tos compram aquilo de que gostam, o que "lhes cai bem", e nãomais a moda pela moda - isso, é verdade, à diferença notáveldos jovensadolescentes.O que definea faseIIIé o menor poderdiretivo das regras coletivas, a personalização crescente das prá-ticas cotidianas, a maior liberdade de ação dos atores relativa-

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mente à sua classe de inclusão. As aspirações crescentes à auto-nomia e ao maior bem-estar, a escolha da primeira qualidade e adiferenciação da oferta mercantil, todos esses fatores tornarampossível um uso cada vez mais personalizado dos bens de consu-mo e, ao mesmo tempo, uma imensa desregulamentação do con-sumo, articulada em torno do referencial do indivíduo.

o consumidor-viajante

sito. Os "não-Iugares"23estão em via de tornar-se zonas comer-ciais repletas de produtos básicos, mas também de marcas, deprodutos culturais, de artigos de luxo.

Nas fasesI e lI, os consumidores deslocavam-se para se diri-gir às lojas;na fase III,é o comércio que vai a eles,instalando seuslocais de venda em função dos horários de freqüentação e dosfluxos de passagem.Assistimos à transformação progressiva dosespaços monofuncionais, outrora em sub-regime de consumo,em áreas hipermercantis polifuncionais: o montante de negóciospor metro quadrado nos aeroportos é agora superior ao das gran-des áreas e as lojas em estação têm um rendimento superior aodos comércios de centro de cidade.24Um espaço-tempo descon-tínuo é substituído por uma espécie de contínuo espaço-tempo-ral comercial. Por toda parte, a hora é da otimização mercantildos locais de passagem, da conquista de um espaço-tempo con-tínuo do consumo de produtos e serviços.

Produziu-se uma mutação: enquanto a fase 11estava centra-da quase exclusivamentenas prestações técnicas (facilitar o trans-porte, por exemplo),a faseIIInão cessa de diversificar e multi-plicar a oferta de serviços aos viajantes. O passageiro não é maisapenas aquele que toma o trem, o avião ou o carro, é um hiper-consumidor a ser atraído, ocupado e distraído. Já em 2000, a fir-ma Coop lançou na linha ferroviária Zurique-Berna uma lojaque ofereceum sortimento de cercade novecentos artigos de pri-meira necessidade. Em breve, sobre trilho ou no céu, a telecom-pra estará à disposição dos viajantes. A companhia Virgin intro-duziu jogos a dinheiro em suas linhas asiáticas. O Airbus A380poderia adotar caça-níqueis. A fase IIIvê a multiplicação dos ser-viços sem relação com a viagem, sendo o objetivo visado comer-cializar o tempo, estruturar o tempo por um sobreconsumo, umconsumo no consumo.

O trem e o avião eram antes de tudo meios de transporte rá-

I

O estágio IIInão institui apenas o reino dos ritmos de vidaà Ia carte, é acompanhado por novas ofertas e demandas relati-vas aos espaços-tempos do consumo.

Enquanto a mobilidade se intensifica e os indivíduos têmcada vez menos tempo a ser consagrado às suas compras, vemosos locais de trânsito começar a parecer pequenos ou grandes cen-tros comerciais. É assim que os aeroportos se tornam locais dehiperconsumo, com seu lote de lojas, duty-free, fitness-center, pis-cina, hotéis, restaurantes. No Japão, as estações assemelham-semais a centros comerciais que a locais onde se toma o trem. NaFrança, dirigentes da SNCF (Sociedade Nacional das Estradas deFerro Francesas) falam em "fazer a cidade ~etrar na estação":nessa perspectiva, a área comercial da estação Saint-Lazare deve-ria atingir 10 mil metros quadrados em 2008. A estação de Leip-zig criou uma zona comercial de 30 mil metros quadrados emtrês andares, incluindo 140 lojas. Na cidade e nas auto-estradas,os postos de abastecimento generalizaram os minimercados on-de se encontram bebidas, produtos frescos ou semifrescos, jor-nais e brinquedos: daí em diante, as receitas ligadas ao combus-tível não representam mais que 50% do montante de negóciosdos pontos de venda em auto-estrada.22 Lojas de alimentação, devestuário, de flores são igualmente implantadas nos corredoresdo metrô. Até os hospitais estão interessados no comércio de trân-

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pidos: são cada vezmais concebidos como "navios de cruzeiro" e"trens-bala comunicantes" cuja aposta é"viajar melhor", graças auma infinidade de serviços multimídia centrados em torno dodivertimento, dos jogos e da informação. Nas linhas de trens-ba-la, os passageiros terão acesso de alta velocidade à internet; umservidor permitirá ver filmes, ouvir música, relaxar com jogos devídeo, ler livros eletrônicos.As companhias aéreas oferecem cadavezmais prestações a seus clientes: música e filmes a pedido, jo-gosvirtuais,conexãocoma internet, TV aovivoe, embreve,li-gaçãoGSM(sistemamundial de telecomunicaçãomóvel).25Os res-ponsáveis pelo marketing das companhias aéreas já pensam emnovos serviços: cabeleireiros, sala de esporte, sauna, espaço in-fantil, miniloja. Para fidelizar os clientes e superar os concorren-tes num mercado desregulado, daí em diante é preciso cada vezmais conforto, mais serviços, mais distrações. De empresa detransporte, passa-se ao multisserviço aos viajantes. Já não se tra-ta tanto de ir mais depressa quanto de fazer passar mais rapida-mente o tempo da viagem e permitir um melhor controle subje-tivo do tempo. As conquistas técnicas centradas na diminuição

do tempo objetivo já não bastam: a época, hiperconsumo ex-periencial é a que privilegia uma abordagem mais qualitativa dotempo de transporte, a que visa, pelo consumo, a fazer esquecerque as viagensno espaço levam tempo.

o consumo contínuo

rias se dividem e se escalonam no tempo, as agências de viagemexibem suas ofertas o ano inteiro. As entregas em domicílio e aqualquer hora de pratos prontos desenvolvem-se com sucesso.As salasde cinema oferecem sessõestanto às dez horas da manhãquanto à meia-noite. O código do trabalho, na França, prevê queo domingo é o dia do repouso obrigatório, mas as infrações sãonumerosas e alguns grandes distribuidores abrem as portas ape-sar de tudo, jogando a política do fato consumado. Um poucoem toda parte, na Europa, as legislaçõessobre os horários de aber-tura dos comércios flexibilizam-se. É ao desmantelamento dasantigas regras limitadoras dos tempos de consumo mercantil queassistimos, este não devendo mais ter, "idealmente", momentosde interrupção ou de pausa.

Não se ignora que muitas instituições (sindicatos, associa-ções familiares, grupos de bairro, Igrejas) tentam opor-se à cida-de integralmente destinada ao consumo. Mas não é menos ver-dade que, no presente, mais de um francês em dois é favorávelàabertura das lojas aos domingos. Enquanto se afrouxam as legis-lações coercivas dos horários e dos dias, vemos delinear-se umaespéciede contínuo temporal consumidor liberto dos ritmos co-dificados do passado. O que está em ação é um processo de or-ganização de um universo hiperconsumista em fluxo estendido,funcionando ininterruptamente dia e noite, 365 dias por ano. Damesma maneira que o capitalismo desregulamentado e globali-zado se tornou "turbo capitalismo", 27 somos testemunhas da emer-gência de um "turboconsumismo" estruturalmente liberto dosenquadramentos espaço-temporais tradicionais.

Após a difusão dos bens mercantis em todo o corpo social(fase lI), a fase IIItrabalha em dilatar a organização temporal doconsumo, alongando os horários e os dias de abertura das lojas,eliminando progressivamente os tempos "vagos"ou "protegidos",entregando os dias de feriado e a vida noturna à ordem do mer-

Umamesma evoluçãomarca aorganização temporal do con-sumo. No presente, o rádio e a televisão funcionam sem inter-rupção; muitas sociedades de serviço adotam o esquema 24 ho-ras por dia, sete dias por semana; as lojas abertas à noite semultiplicam; o número dos distribuidores automáticos não ces-sa de crescer,permitindo as compras contínuas.26Enquanto asfé-

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cado. Enquanto se fala de "turismo noturno': a noite torna-se umsetor econômico de pleno direito, tendo seu montante de negó-cios duplicado desde a metade dos anos 1990.Em certas mega-lópoles dos EstadosUnidos ou do Japão, supermercados e livra-rias, restaurantes e salasde esporte freqüentemente estão abertosa toda hora do dia e da noite.Algumas firmas agora lançam as li-quidações no dia D à meia-noite. Depois das videolocadoras au-tomatizadas, as lojas de conveniência automáticas e refrigeradas(YaTooPartout,Casino 24), abertas a toda hora do dia e da noite,estão em plena expansão.28Em 2005,5 mil livrarias organizaram,nos Estados Unidos, uma Midnight MagicPartypor ocasião dolançamento do sexto volume das aventuras de Harry Potter; naGrã-Bretanha, mais de mil livrarias abriram à noite para o lan-çamento do livro.Um imenso território se abre às estratégias domarketing: não é senão o tempo da noite. Investindo no espaçonoturno, a economia hipermercantil abole todos os tempos depausa, constrói uma cidade aberta continuamente ao consumo,institui a comercialização ilimitada das trocas, 24 horas por dia,sete dias por semana.A sociedade de hiperconsumo, longe de ar-ruinar o sistema do desejo e do consumo,29empenha-se, não semsucesso, em mantê-l o cada vezmais desperfu,ampliando seu re-gime temporal.

A lógica do turboconsumismo encontra sua realizaçãoper-feita nas redes eletrônicas, graças às compras pela internet. Se,aolongo das fases I e lI, o cliente emancipou-se da influência do ven-dedor, na fase III o ciberconsumidor liberta-se de todos os entra-ves espaço-temporais, não estando mais obrigado a dirigir-se fi-sicamente a um local de venda e podendo fazer encomendas, emqualquer lugar e a qualquer hora, a uma máquina, e não mais auma pessoa. Supressão das barreiras ligadas não apenas ao espa-ço, mas também ao acesso à informação: graças aos sites de com-paração de preços, o internauta pode informar-se em tempo real

sobre os produtos e serviços, compará-Ios a qualquer hora do diae da noite antes de fazer a escolha adaptada às suas necessidades.É um sistema de informação sem limite, sem coerção de tempo ede lugar que especifica a época do turboconsumismo.

Um turboconsumismo policrônico

Nesse contexto de estilhaçamento dos enquadramentos es-paço-temporais do consumo, afirmam-se novos comportamen-tos, marcados pela exigência de eficácia e de rapidez, pela preo-cupação obsessivade ganhar tempo. Enquanto a grande maioriados consumidores desejapassar menos tempo fazendo suas com-pras, as caixas rápidas e os distribuidores automáticos multipli-cam-se. Para não perder tempo, cada vez mais franceses fazemsuas compras na hora do almoço e desejam poder ter acessoa co-mércios nos espaços de transporte (estação, metrô, aeroporto,posto de combustível).A comida rápida atinge uma clientela cadavezmaior.Asindústrias agroalimentícias oferecemum leque cres-cente de produtos de utilização rápida, pratos prontos, alimen-tos já preparados. A Décathlon acaba de lançar uma nova barra-ca de camping que, uma vez tirada de sua capa, desdobra-sesozinha em "dois segundos': O hiperconsumidor é esseindivíduoapressado, para o qual o fator tempo se tornou um referencialimportante, ordenando a organização do cotidiano. À obsessãocom a honorabilidade socialpelos símbolos mercantis segue-seacompulsão de ganhar tempo. Estamos no momento em que aeconomia de tempo parece mais importante que a economia tea-tral dos signos, no momento em que a corrida contra o tempoprevalece sobre a corrida à estima.

Em um ambiente reestruturado pelas novas tecnologias dainformação e da comunicação, a hipervelocidade, a acessibilida-de direta, o imediatismo impõem-se como novas exigênciastem-

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porais. Instalam-se caixas de retirada ultra-rápida dos bilhetesde transporte e telas informando em tempo real os prazos de es-pera nos locais de transporte. Mensagem de texto no celular, fo-to digital, TVsob demanda, DVD,e-mail: difunde-se o hábito dainstantaneidade das trocas e dos resultados, cada um querendopoder comunicar-se e ser contatado, ver e comprar depressa, portoda parte e a todo momento. A época do "saber esperar': em quea experiência da espera era um elemento de felicidade, recua emfavor de uma cultura da impaciência e da satisfaçãoimediata dosdesejos. "Faço uma foto: eu a vejo, a transmito, a apago": aqui oprazer se casa com a experiência da instantaneidade. Na civiliza-ção do hiperinstante, os serviços expressos e 24 horas multi-plicam-se, a porção das viagens decididas no último minuto edas reservas tardias aumenta: é o tempo da demora zero, do "oque quero, quando quero, onde quero': querendo o turboconsu-midor obter tudo, imediatamente, em qualquer dia, em qualquermomento. Enquanto proliferam as ofertas e demandas em tem-po real, o Homo consumans torna-se alérgico à menor espera, de-vorado que está pelo tempo comprimido do imediatismo e daurgência.30

A obstinação em comprimir o tempo foi interpretada comoum dos signosdo advento de uma nova condiçao temporal do ho-mem, marcada pela sacralização do presente, por um "presenteabsoluto", auto-suficiente, cada vezmais desligado do passado edo futuro. Invadindo o cotidiano, atingindo o conjunto das ativi-dades humanas, a ordem do tempo precipitado faz desaparecer,ao que nos dizem, a distância e o recuo necessáriosao pensamen-to, destrói os universos simbólicos, encerra o homem no imedia-tismo ativista.31Novo modelo de nossa relaçãocom o tempo, a ur-gência é apresentada como o "metatempo social"da fase1II.32

O turbo consumidor tornou-se, portanto, um doente da ur-gência, prisioneiro da ditadura do "tempo real"?Tanto quanto a

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irrupção de uma cultura da instantaneidade é uma idéia poucocontestável, convém mostrar-lhe os limites, não tendo o tempocomprimido conseguido de modo algum absorver a totalidadede nossas energias. Éverdade que o hiperconsumidor expõe umaevidente preocupação em fazer mais e mais depressa, não supor-ta perder tempo, quer a acessibilidadedos produtos, das imagense da comunicação a toda hora do dia e da noite. Mas, ao mesmotempo, assiste-se à proliferação de desejos e de comportamentoscujaorientação para osprazeressensoriaiseestéticos,para omaiorbem-estar, para as sensações corporais exprimem a valorizaçãode uma temporalidade lenta, qualitativa e sensualista."Slowfootl',escutas musicais, passeios a pé, excursões, spas e banhos turcos,meditações e relaxamentos: contra a fast live,os lazeres lentos en-contram amplo eco.Assim,somos testemunhas do gosto pelo fla-nar, pelas idas ao restaurante à noite, pela ociosidade na praia ounos terraços dos cafés. Nada de temporalidade uniformementeurgencial, mas um sistema composto de temporalidades profun-damente heterogêneas: ao tempo operacional opõe-se o tempohedonista, ao tempo corvéia, o tempo recreativo, ao tempo pre-cipitado, o tempo descontraído dos jogos e espetáculos, da dis-tensão, de todos os momentos centrados nos gozossensuais e es-téticos. O regime do tempo na sociedade de hiperconsumo nãotem nada de unidimensional; é, ao contrário, paradoxal, dessin-cronizado, heteróclito, polirrítmico. É sob o signo de uma ativi-dade consumidora policrônica que se organiza a fase III.

Se as imposições de velocidade intensificam-se, não perca-mos de vista, no entanto, o papel primordial desempenhado pe-lo ator individual, o "consumator" que, sem cessar,adota estraté-gias individuais, faz escolhas e arbitragens pessoais, acelerandoaqui para deixar tempo livre ali.Ganhar tempo não é apenas umaobrigação determinada de fora; talvez seja também uma estraté-gia destinada a aproveitar melhor outros momentos da vida. O

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tempo da instantaneidade se dissemina, mas seu "despotismo"está longe de ser total, estando o hiperconsumidor em condiçãode organizar à Iacarteseu emprego do tempo, de adotar ritmosdiferenciados segundo as situações e os momentos. De um lado,generaliza-se o sentimento de sujeição ao tempo acelerado; dooutro, desenvolvem-se o tempo livre, os tempos para si e consi-go, a individualização das maneiras de gerir o tempo pessoal, adissociação dos ritmos de vida, as práticas em que se aceita per-der tempo, em que se aproveita o tempo para se dedicar a si.

Apanhado na fuga acelerada da temporalidade, o turbocon-sumido r acha-se encerrado tão-só no tempo do imediatismo eestá por isso privado de distância simbólica e utópica? Será quevivenum estado de imponderabilidade temporal esvaziadade to-do laço com o passado? A idéia é frágil, no momento em quetriunfam o culto do património, a paixão pelo "autêntico': pelosobjetos carregados de sentido e de legendas.O turboconsumidorperdeu todo o interessepelo futuro? Como conciliar essatesecoma progressão dos consumidores "engajados", que se preocupamcom o futuro do planeta e procuram dar sentido às suas comprasao privilegiar os produtos solidários e ecologicamente corretos?

A verdade é que, quanto mais se afirma o imp~rativo de celeri-dade, mais se exprimem as considerações éticas, as posturas crí-ticas em relaçãoàsmarcas e ao consumo "irresponsável': Por maisque se eclipsem os ideais normativos, vemo-Ios ativos em novosterritórios, os do consumo, em particular. Sob esseaspecto,o tur-boconsumismo deve ser apresentado menos como uma ordemque fazdesaparecer o recuo dos sujeitos do que como uma dinâ-mica favorecedora do distanciamento do presente, da responsa-bilização ética do consumidor.

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I:

() efeito Diva

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Se o ideal-modelo do turboconsumidor se impõe, é tambémporque a fase IIIdesestabilizou em profundidade os antigos mo-delos de classe,os códigos simbólicos diferenciais que estrutura-vam, desde as eras mais remotas, as práticas e os gostos indivi-duais. Eis-nos, pela primeira vez, em um sistema marcado nãopelo desaparecimento das diferenças de condição, mas pelo des-vanecimento das coerções e dos habitus de classe.Ao turbocapi-talismo desregulamentado corresponde um sistema de consumodesregulado, um turboconsumismo emancipado das culturas declasse.

Ainda no começo da fase lI,nas classespopulares, domina osentimento de inclusão em um mesmo mundo social estrutura-do por referências e um estilo de vida homogêneos. Está em vi-gor todo um conjunto de atitudes e de chamamentos à ordem,de piadas e de brincadeiras que se encarrega de opor-se às tenta-tivasde transpor as fronteiras de classe,à ambição de distinguir-se pela identificação com outros grupos. "Quem ela pensa queé?","não é natural que...","de onde ela saiu?":33o grupo exerce,não sem sucesso,pressões e coerções simbólicas, construindo umforte conformismo de classe.Nesse universo compartimentadopelo antagonismo entre "eles"e"nós",vestir-se,morar, comer, be-ber, divertir-se são atividades reguladas pelas maneiras de classe,modos de vida específicos,diferenças de habitus.Todos os agen-tes de uma mesma classee todas as práticas de um mesmo agen-te, escreve Bourdieu, apresentam uma "afinidade de estilo",um"ar de família",uma "sistematicidade" resultante do habitus so-cia}.34Foi a essa organização coletiva do consumo que a fase IIIpós fim.

Produziu-se uma mutação: no cenário da sociedade de hi-perconsumo, já não é inevitável que se compre o que compram

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os que nos são próximos socialmente, tendo o estilhaçamentodos sentimentos e das imposições de classe aberto a possibilida-de de escolhasparticulares e da livre expressãodos prazeres e gos-tos pessoais. O "cada um no seu lugar", exprimindo a primaziado grupo social, é substituído por um princípio de legitimidadeoposto: "cada um faz o que lhe agrada".Aquestão central não émais "ser como os outros': mas "o que escolher?"na oferta pletó-rica do mercado: o princípio de autonomia tornou-se a regra deorientação legítima das condutas individuais. O turboconsumis-mo define-se pelo descontrole social do comprador, por suaemancipação em relação às obrigações simbólicas de classe.As-sim, o direito de construir nosso modo de existência como "bemnos parece"já não encontra outro obstáculo além do nível do po-der de compra. No presente, é o dinheiro de que se dispõe, maisdo que a classe de origem, que faz a diferença nos gêneros de vi-da. Enquanto as decisõessedeslocamdo grupo para o sujeito sin-gular, o estilo de existência não compete mais que ao indivíduo.Livre da obrigação de moldar-se por um estilo de vida pré-for-mado e específico, o turboconsumidor se apresenta como esse

comprador móve~que não tem mais nenhuma ~onta a prestar aquem quer que seja. \

Naturalmente, em muitos domínios as escolhas e as práti-cas de consumo ainda podem ser relacionadas à classe social deinclusão. E nenhuma homogeneização dos gêneros de vida surgeno horizonte, as diferenças dos rendimentos recompõem, comtoda a evidência, fortes disparidades nas maneiras de consumir ede divertir-se.Mas, se os estilos de vida não convergem de modoalgum, não é menos verdade que não cessade recuar o poder or-ganizador dos habitus.Cada vezmais, a especificidade dos esti-los de vida das classesse reduz: daí em diante, os ideais de bem-estar, de viagens, de novidades, de magreza são partilhados portodos. O gosto pelasmarcas e pela moda espalha-se entre os ado-

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lescentes de todos os grupos sociais; a paixão pelos jogos, pelos('spetáculos, pela música alcança todas as camadas. As desigual-d,\des econômicas se aprofundam, as aspirações consumistas seaproximam; as práticas sociais divergem, o sistema referencial éIdêntico. Se a ordem social é clivada, o universo simbólico dasnormas é homogêneo. É assim que declinam as antigas estagna-,~õesde classe e o encerramento dos indivíduos em seu grupo deorigem.Aheterogeneidade social salta aos olhos, porém mais na-da lhe fundamenta culturalmente a reprodução, tendo cada umganhado o direito ao supérfluo, ao consumo, ao maior bem-es-lar. O que define a fase III não é a homogeneização social, é o me-nor poder diretivo dos modelos de classe,a liberdade de ação dosatores em relação às normas coletivas e aos habitus,a individua-lizaçãodas escolhas consumidoras.

A conseqüência dessa destradicionalização das classesé quese torna difícil prever as despesas de consumo a partir do lugarocupado na ordem social.Daí em diante, para rendimento igual,asmaneiras de consumir divergem notavelmente, as decisões decompra dependem menos de critérios socioprofissionais "rígi-dos" que de gostos pessoais,de critérios de idade ou de sexo.Cadavezmais, as arbitragens de cada um já não coincidem exatamen-te com a classede inclusão. Enquanto se atrofiam as identidadese os sentimentos de inclusão de classe, as escolhas de consumo,cada vezmenos determinadas unilateralmente pelo habitus e ca-da vezmais pela oferta mercantil e midiática, têm como caracte-rísticas.ser muito imprevisíveis, descoordenadas, desunificadas.Errância imprevisível que podemos chamar de "efeito Diva",emreferência ao filme de Jean-Jacques Beineix, no qual um jovemempregado dos correios, de condição modesta, vive em um 10ftbarroco, mostra-se apaixonado por ópera e dispõe de um equi-pamento de gravação musical profissional. De um sistema me-canicista, passou-se a um sistema probabilista ou indetermina-

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do, assemelhando-se o hiperconsumidor a uma "partícula ele-mentar" com percursos "caóticos": é um consumo desinstitucio-

nalizado, de geometria variável, que marca a fase III. Daí esse per-fil do turboconsumidor, tão freqüentemente descrito comoflexível e nômade, volátil e "transfronteiriço': eclético e fragmen-tado, zapeador e infiel.

o consumo balcanizado

Seo ciclo do turboconsumismo é contemporâneo do enfra-quecimento dos enquadramentos de classe,não o é menos de umfenômeno que, mesmo sendo de menor amplitude, é igualmentesignificativo da época: a comunitarização do consumo, da qualasmodas de jovens oferecemo exemplomais notório. Eis-nos naera do consumo em redes, descoordenado e balcanizado,descen-trado e disperso em neoclãs reunidos em torno de gostos e de in-teresses específicos, de gêneros de vida, de modas musicais, in-dumentárias ou esportivas. Nos ciclos anteriores, a divisão emclassese a oposição do superior e do inferior constituíam os prin-

cípios organizadores da ordem do consumo, ~sta ordenando-sede cima para baixo a partir de referências cons~nsuais.Essa épo-ca agora ficou para trás. O momento IIIvai de par com o estilha-çamento dessa lógica piramidal em favor de um modelo hori-zontal ou em redes, fragmentado e policentrado, no qual osmicrogrupos identitários se justapõem em um espaço heterogê-neo de gostos, de estéticas e de práticas. Após a era centralizada,a era multipolar e dispersa do hiperconsumo em que as diferen-ciações se efetuam a partir de uma multiplicidade de critérios,sejam eles de idade, de música, de esportes, de projetos de vida,de etnicidade, de orientação sexual.

A despeito das fortes correntes miméticas e conformistasque estruturam essesmicrogrupos, estes não são por isso menos

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representativos do turboconsumismo, em razão, especialmente,do caráter fluido, instável, individualista que lhes é próprio. Maisnada se assemelha às configurações rígidas e escalonadas de an-tigamente;nessascomunidades, é possível"entrar" e"sair" à von-I,.de,por busca identitária, adesões e escolhas pessoais efêmeras,nos antípodas da imposição "mecanicista" dos tempos anterio-res:a comunitarização hipermoderna não se inscreve na contra-corrente da cultura do indivíduo autônomo; ela é uma de suasfiguras paradoxais. Fragmentada, desregulada, volátil, a era quese anuncia institui um comunitarismo baseado na preocupaçãode afirmação de si, um consumo em patchworksclânicos trazidopela onda de individualização dos atores.

II.

A criança hiperconsumidora

A sociedade de hiperconsumo não vê apenas a desagregaçãodas culturas de classe;écontemporânea da promoção de um mes-mo modelo consumista-emocional-individualista em todas asclassesde idade. De um lado, as maneiras de consumir são cadavezmais marcadas pelas diferenças de idade; do outro, não hámais nenhuma categoria de idade - ainda que seja a primeirainfância - que não participe plenamente da ordem do consu-mo.A contar dos anos 1920,a publicidade enveredou pelo cami-nho da exaltação da juventude, enquanto as escolhas e decisõesde compra permaneciam reservadas essencialmente aos pais, deacordo com a cultura tradicional baseada na autoridade sobera-na dos pais e na obediência incondicional dos filhos. Foi apenascom os anos 1950-60 que os jovens adolescentes, por meio daprática do dinheiro para pequenas despesas, das publicidades eprodutos culturais que lhes eram destinados, começaram a emer-gir como consumidores "autônomos" e alvo comercial específi-co.A fase IIIainda aumentou um grau nessa lógica, exercendo a

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criança ou o pré-adolescente uma influência cada vezmais im-portante nas compras efetuadas pelos próprios pais: ele se tor-nou um comprador-decididor por seu dinheiro para pequenasdespesas, ao mesmo tempo que um prescritor de compras pelonovo papel que desempenha em relação aos pais,35Porque o mo-delo autoritarista está desqualificado,o filho hoje comunica suaspreferências, exprime pedidos, dá sua opi~'1iãoa respeito das es-colhas parentais. O filho "mudo" faz parte de uma época finda:na situação atual, ele escolhe, emite solicitações, dá sua opiniãopor ocasião das compras, os pais levando em conta seus desejose lhe transmitindo um estilo de consumo finalizado pelo prazer.Eis-nos na era da criança hiperconsumidora, escutada, tendo odireito de fazer as próprias escolhas,dispondo de uma parcela depoder econômico, controlando direta ou indiretamente uma par-te das despesasdas famílias.

Não se trata mais, como na fase I,de livrar-se dos costumesancestrais,mas de permitir a expressão dos desejossubjetivos, fa-vorecendo os comportamentos autônomos dos mais jovens porintermédio das compras e do dinheiro para pequenas despesas:emnossos dias, o consumo é pensado como instrumento de prazer,

de despertar e de desenvolvimento da autonota da criança. Aomesmo tempo, no que concerneaos pais, eleé do domínio de umalógicaexperiencial,sendo essencialmenteum momento de alegriaproporcionado pelo espetáculodo prazer dos filhos.A faseIIIé es-se cosmo em que prevalece o "consumo-amor", o consumo-festatanto dos menores como dos mais velhos.No momento em quedesabrocha o "filho-rei" informado, decididor e prescritor, o con-sumo se apresenta como um meio para "comprar a paz" na famí-lia, uma maneira de fazer-seperdoar por ausênciasmuito longas,ao mesmo tempo que como um direito do filho baseado no direi-to à felicidade,aos prazeres,à individualidade.

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PowerAge

As mudanças não são menos notáveis caso se considere a clas-se de idade denominada, desde os anos 1990, sênior, isto é, a daque-les com mais de cinqüenta anos. Representando cerca de 30% dapopulação total, dispondo de um poder de compra que aumentounotavelmente, tendo menos bocas a alimentar, os vovô-boomersefetuam quase a metade dos gastos ligados ao consumo; um carroem dois é comprado por eles; o mercado dos seniornautas progrideduas vezes mais depressa que a média; eles pesam 31% no montan-te de negócios da indústria do turismo americano. Acrescentemosque, com o alongamento da duração de vida e seu peso demográ-fico crescente, sua importância econômica vai inevitavelmente pro-gredir nas próximas décadas. A fase IIIé contemporânea da PowerAge, a era dominada pelos seniores metamorfoseados em hiper-consumidores emocionais de produtos e serviços.

Foi-se a época em que os aposentados estavam esgotados,com poucos anos por viver, em que os avós se contentavam emcuidar dos netos. Criados na sociedade de consumo, os senioresviajam, partem para o outro extremo do mundo, visitam cidadese museus, fazem cursos de informática, praticam esporte, que-rem parecer "mais jovens". A buli mia consumista já não é inter-rompida pela idade: a geração do vovô-boom mostra-se ávida deevasões distrativas, de maior bem-estar, de qualidade de vida as-sociada ao consumo de produtos dietéticos, aos prazeres do tu-rismo, aos cuidados cosméticos. Dizia-se que eles eram refratá-rios às mudanças: hoje, pessoas entre cinqüenta e 64 anos estãotão bem equipadas quanto as mais novas em DVD,máquina foto-gráfica e câmara de vídeo digital; recuperam seu atraso em equipa-mento de computador e estão cada vez mais dispostos a experi-mentar novas marcas e novos produtos, em particular no domínioda alimentação, visando melhorar o estado de saúde. O avanço

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da idade rimava com lentidão e inatividade, fidelidade às marcase subconsumo: tornou-se um período de vida marcado pelo he-donismo e a superatividade consumidora. No presente, o apo-sentado representa uma figura perfeita do indivíduo hipercon-sumidor, livredo imperativo de trabalho, absorvido apenas pelaspreocupações com o corpo e a saúde, viagens e saídas, prazeresprivados e familiares.Mesmo enrugado, Narciso continua Narci-so, tentando seduzir, viver plenamente o presente, embora ator-mentado pelas angústias do fim da vida. Daí em diante, o Narci-so sênior procura, no consumo, conservar-se em boa forma e boasaúde, mas também participar do movimento da vida social,"fi-car por dentro", aproveitar a vida e esquecer a marcha do tempo.Nas fasesI e 11,o consumo contribuiu para erradicar as tradiçõessociais "arcaicas"; de agora em diante, ele é mobilizado para re-duzir o sentimento íntimo do envelhecimento. Mais ainda quenas outras fases da vida, o hiperconsumo sênior funciona comouma espécie de terapia cotidiana, como uma maneira de conju-rar o sentimento de inutilidade, a angústia da solidão e do tem-po que passa. /

A fase11inaugurou as estratégias de seg~ntação do merca-do, mas essemarketing de geração era, em essência,voltado paraa juventude. As pessoas idosas eram sistematicamente negligen-ciadas, postas fora do circuito por políticas comerciais temerosasde envelhecer a imagem de marca de seus produtos. Isso está emvia de mudar, a fase III vê emergir, com mais ou menos destaque,um marketing destinado aos seniores. O movimento está longede assemelhar-se a um maremoto: 95% dos investimentos publi-citários, na França, visam aos jovens e à dona de casa com me-nos de cinqüenta anos. Mas não é menos verdade que uma mu-tação está em curso: faz-se publicidade para o "público-alvo"sênior, a faixa de idade que era objeto de exclusão por parte do

marketing começa a ganhar direito de cidadania, aparecendo co-mo uma nova "mina de ouro", o grande mercado do futuro.

Há alguns anos, os seniores representavam o papel de po-pulação uniforme, comercialmente assegurada. Daí em diante,trata-se de seduzi-Ios e fidelizá-Ios, criando uma comunicaçãoespecífica, oferecendo produtos adequados às suas situações e ne-cessidades próprias. O mercado das próteses, dos serviços perso-nalizados, das entregas em domicílio vai desenvolver-se. Nos Es-tados Unidos, contam-se cerca de 50 mil sites na Web dirigidosaos seniores; cadeias de hotel e agências de viagem oferecem re-duções ou serviços particulares aos maiores de sessenta anos. Asmarcas cosméticas (Roc) lançam campanhas publicitárias cen-tradas no rejuvenescimento do rosto, prometendo "dez anos amenos" às mulheres qüinquagenárias. Imagens publicitárias reú-nem o avô e o neto, homens e mulheres de sessenta anos apare-cem nos spots comerciais.Firmas recrutam empregados seniores,considerando que os clientes com mais de cinqüenta anos prefe-rem estar em contato com vendedores da mesma idade. Assim(Orno se desenvolve uma forte subdivisão do mercado dos "jo-vens" (bebê, criança, pré-adolescente, adolescente, jovem adul-to), o marketing sênior divide seusalvosem" masters","liberados':"pacatos': "grandes ancestrais": é um marketing hipersegmenta-do que cria os novos mercados das terceira e quarta idades, com-pletando, assim, a ordem turboconsumista. Na fase III,mais ne-nhuma idade deve escapar às redes do marketing, mais nenhumlimite deve deter o expansionismo comercial: da mesma manei-ra que o tempo do hiperconsumo é contínuo, 24 horas por dia,~65dias por ano, os indivíduos serão chamados, em breve, a tor-nar-se turbo consumidores ao longo de toda a vida, de um aosccm anos.

O reino do vovô-boom anuncia, portanto, o fim da cultura"antivelho': o desaparecimento da ditadura do juvenilismo?A fa-

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se IIIinstitui o regime tolerante e pluralista de todas as idades?Tenhamos cuidado para não confundir uma lógicacomercialcoma cultura vivida cotidiana: se é verdade que a época do ostracis-mo dos "velhos" está terminada, isso não significa de modo al-gum que o juvenilismo se desvanece.O inverso é que é verdade,pois, se os seniores tornam-se mais visíveis na publicidade, elesdesejam cada vez mais permanecer jovens e sedutores, sexual-mente ativos,"ser como todo mundo", por vezes"refazer a vida".O sucessodos produtos de cuidados pessoais e da cirurgia estéti-ca ilustra eloqüentemente esseprocesso: é quando o juvenilismomidiático-publicitário se torna menos extremista que ele triunfanos comportamentos e aspirações de cada um. Enquanto a so-ciedade e o mercado tendem a reconhecer os seniores, são elespróprios que querem cada vezmais se sentir jovens, experimen-tar novas emoções de todo tipo, reduzir os estigmas da idade. Ojuvenilismo não morre de modo algum: interioriza-se no maisíntimo dos seres.A fase IIInão desregula os espaços-tempos doconsumo senão sob os auspícios de um juvenilismo subjetiviza-do, ampliado, variado ao infinito, que se estende até o extremo

limite em que a capacidade de autonomia indi~ual desaparece.

ENTRE MEDIDA E CAOS

Seo modelo que se impõe é realmente o do turboconsumi-dor, é difícil subscrever as afirmações segundo as quais seríamostestemunhas de uma mudança radical de lógica em comparaçãoaos anos 1980.Segundo essas teses, surge uma época nova, mar-cada pelo advento do "consumidor empreeendedor", que substi-tui o individual pelo familial, o egoísmo pela solidariedade, oinútil pelo essencial,o efêmero pelo durável.36Findo o consumi-dor individualista, eis chegado o tempo do consumidor" experf'

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e responsável. Digamos com clareza:para sermos exatos e preci-sos, as descrições desse neoconsumidor não conseguem justifi-car a idéia de uma superação do "individualismo triunfante". Émuito redutora a interpretação que assfmilaeste último à osten-tação do Eu e ao desejo de não ser confundido com os outros. Alógica do indivíduo vai bem além das paixões egotistas, uma vezque se caracteriza pela emancipação das condutas pessoais emrelação aos enquadramentos coletivos assim como pela rápidaprogressão dos cultos do divertimento, do maior bem-estar e dasaúde. É inegávelque os imaginários do consumo se transforma-ram, mas essasmudanças não significamde modo algum que elessejam detentores de uma inversão de lógica consumidora. A des-continuidade é apenas de superfície, não sendo aquilo a que as-sistimos mais que a acentuação, sem dúvida irreversível, da di-nâmica do princípio de individualidade.

Quer-se provas disso?Elassemultiplicam. O que há de maisexpressamente individualista, ou mesmo de narcísico, que as no-vas preocupações relativas à saúde, ao corpo e à aparência? Hátanta, se não mais, motivação individualista no crescimento dosconsumos de saúde quanto nas despesas destinadas a atrair oolhar do outro. Como, nesse plano, justificar a idéia de "uma vi-rada de 180 graus" do consumidor37quando se banalizam a ci-rurgia estética, a recusa dos sinais da idade, as práticas de manu-tenção e de forma, os desejos de soberania pessoal sobre o corpo?O efêmero recua? O ciclo de vida dos produtos não cessa de di-minuir. O fato de se desenvolverem os setores da educação, dasviagens, da comunicação, do bem-estar corporal e mental signi-fica que o fútil ficou para trás? Não é realmente o que sugeremos jogos de vídeo, os chats,os disfarces eletrônicos do Eu, a ne-cessidadede comunicar-se por comunicar-se, a telerrealidade, osparques temáticos de lazer.É forçoso constatar que o turbocon-sumidor se aproxima tanto do que é essencial à vida quanto do

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que é mais frívolo.Medicalização da existência, espiral dos laze-res, jogos, zappingdos produtos: ao deixar os anos 1980,o trem-bala individualista não reduziu sua corrida - acelerou-a.

Os consumidores atentos às causas humanitárias, preocu-pados com selos verdes e produtos éticos mostram-se mais soli-dários?Mas, se a tendência ao consumo "cidadão" é inegável,emquê ela faz sair da constelação do indivíduo, em outras palavras,dos engajamentos de tipo opcional, mínimo e indolor? Elasigni-fica sobretudo que o individualismo não é sinônimo de egoísmoabsoluto: este pode ser compatível com o espírito de responsabi-lidade, com a preocupação com certos valores, ainda que fossesegundo um regime de geometria variável, "sem obrigação nemsanção".38

Consumidor ''profissional'' e consumidor anárquico

A idéia de Homo consumans gerindo suas atividades de ma-neira "profissional", comprometendo-se no rumo de uma "vidacontrolada", veicula demais a imagem sem complicações de um

consumidor racional e equilibrado.A consideraçãjAo quadro deconjunto revela traços muito mais contrastados. De um lado, nos-sa época celebra a responsabilidade individual e os comportamen-tos de prevenção, presta um culto à saúde, ao equilíbrio íntimo, àqualidade de vida. A multiplicação das informações e a elevaçãodo nível de instrução da população favoreceram, sem nenhumadúvida, a "profissionalização" das atividades consumidoras. Mas,do outro lado, observa-se uma infinidade de fenômenos sinôni-

mos, ao contrário, de excesso e de descontrole de si: fashion vic-tims, compras compulsivas, superendividamento das famílias, "fa-náticos" por jogos de vídeo, ciberdependentes, toxicomanias,práticas viciosas de todo tipo, anarquia dos comportamentos ali-mentares, bulimias e obesidades. O que se anuncia é tanto um in-

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dividualismo desenfreado e caótico quanto um consumidor" ex-ped' que se encarrega de si de maneira responsável.

O relaxamento dos controles coletivos, as normas hedonis-tas, a escolha da primeira qualidade, a educação liberal, tudo is-so contribuiu para compor um indivíduo desligado dos fins co-muns eque, reduzido tão-só às suasforças,semostra muitas vezesincapaz de resistir tanto às solicitações externas quanto aos im-pulsos internos. Assim,somos testemunhas de todo um conjun-to de comportamentos desestruturados, de consumos patológi-cos e compulsivos. Por toda parte, a tendência ao desregramentode si acompanha a cultura de livre disposição dos indivíduos en-tregues à vertigem de si próprios no supermercado contemporâ-neo dos modos de vida. Àmedida que se amplia o princípio depleno poder sobre a direção da própria vida, as manifestações dedependência e de impotência subjetivasse desenvolvemnum rit-mo crescente. O que se representa na cena contemporânea doconsumo é tanto Narciso libertado quanto Narciso acorrentado.

O estágio IIIpôs em órbita um consumidor amplamenteemancipado das imposições e ritos coletivos. Mas essa autono-mia pessoal traz consigo novas formas de servidão. Se ele estámenos submetido aos valores conformistas, está mais subordi-nado ao reino monetizado do consumo. Seo indivíduo é social-mente autônomo, ei-Io mais do que nunca dependente da formamercantil para a satisfação de suas necessidades. Consideradosum a um, os atos de consumo são menos dirigidos socialmente,mas, juntos, o poder de enquadramento da existência pelo mer-cado aumenta. A influência geral do consumo sobre os modos devida e os prazeres amplia-se tanto mais quanto impõe menos re-gras sociais coercitivas.

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ti.

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6. O fabuloso destino doHomo consumericus

o consumo de massa não se ergueu sobre um solo virgem.Foi contra todo um conjunto de usos, de costumes e de mentali-dades pré-modernas que se impôs e depois sedifundiu. Essaépo-ca de modernização-racionalização agindo sobre o fundo de seucontrário está terminada, tendo agora desaparecido o antagonis-mo que existia entre as normas modernas do consumo e as "tra-dições". A fase III pode ser apresentada como o momento em quea comercialização dos modos de vida já não encontra resistên-cias culturais e ideológicas estruturais, em que tudo o que sub-sistia de oposição cedeu diante das sereias da mercadoria. Chegaa hora em que todas as esferas da vida social e individual são, deuma maneira ou de outra, reorganizadas de acordo com os prin-cípios da ordem consumista.

A constatação da generalizaçãodo modo mercantil de satis-fação das necessidades não é nova, teóricos importantes. subli-nharam, desde a fase lI,essa reorganização de fundo da socieda-de capitalista. Tudo indica, no entanto, que uma nova etapa foitransposta. A sociedade de hiperconsumo significa muito mais

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I""

que a extensão sem fim da esfera da economia política, ela desig-lia o estágio em que o próprio não-econômico sevê revestido daforma consumista doravante globalizada. O momento primeiroda economia política generalizada está ultrapassado: eis-nos àhora do consumismo sem fronteiras, do consumo-mundo, essacena histórica em que não apenas as trocas são reguladas pelomercado, mas em que mesmo o que não é comercializado é co-lhido pelo ethosconsumista. Na sociedade de mercado que orga-niza a fase IlI,a figura do consumidor é observada em todos osníveis da vida social, imiscui-se em toda parte, em todos os do-mínios, sejam econômicos ou não: ela se apresenta como o espe-lho perfeito no qual se decifra a nova sociedade dos indivíduos.

Daí algumas temíveis questões. Quais são, afinal, os efeitossobre o homem do consumo-mundo tentacular? Existem,apesarde tudo, esferas"protegidas" dessa nova forma de "colonização"?Como se sabe, não faltam avisos relativos à violência da mercan-tilização da vida. Alguns vêem aí um terrorismo assustador, umtotalitarismo de novo estilo, despersonalizando e embrutecendoos seres. Outros apontam o fim próximo dos valores transcen-dentes e das formas da sociabilidade. Outros ainda se alarmam àidéia de que a mercadoria possa chegar a sufocar os sentimentoshumanos mais elevados.Deve-se lhes dar razão?O futuro da so-ciedade de hiperconsumo pode ser apreendido diferentementede um enredo-catástrofe?

o CONSUMO-MUNDO

O consumo sem freio

A propensão a ser comprador das novidades mercantis nãotem nada de espontâneo. Para que surgisse o consumidor mo-

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demo foi preciso, nas fases I e 11,afastar os indivíduos das nor-mas particularistas e locais, desculpabilizar a vontade de despen-der, desvalorizar a moral da poupança, depreciar as produçõesdomésticas, foi preciso inculcar novosmodos de vida, liquidandoos hábitos sociaisque resistiamao consumo mercantil. Foi livran-do-se dos comportamentos tradicionais, arruinando as normaspuritanas, fazendo cair no esquecimento as culturas camponesase operárias que se construiu o planeta do consumo de massa.Noséculo XIX,os grandes magazines inventaram o "shopping' comonova ocupação distrativa e criaram a necessidade irresistível deconsumir nas classes burguesas. Mais tarde, o célebre "five dol-larsday"de Ford é pensado como a possibilidade, para o operá-rio, de ter acesso ao status de consumidor moderno. Nos anos1920,à publicidade, nos Estados Unidos, atribuiu-se a tarefa deformar um consumidor adaptado às novas condições da produ-ção em grandes séries.O sistemado crédito, ao longo dessesmes-mos anos, e, depois, no pós-guerra, permitiu o desenvolvimentode uma nova moral e de uma nova psicologia em que não eramais necessário economizar primeiro para comprar em seguida.Ninguém discordará disto: o sucessoé total, o "adestramento" noconsumo moderno teve êxito além de todas as expectativas.

Não há mais, de fato, normas e mentalidades opondo-sefrontalmente ao desencadeamento das necessidades monetiza-das. Todasas inibições, todas as barreiras "arcaicas"foram liqui-dadas; permanecem em ação apenas a legitimidade consumista,as incitações aos gozos do instante, os hinos à felicidade e à con-servação de si. O primeiro grande ciclo de racionalização e demodernização do consumo está terminado: mais nada está porabolir, todo mundo já está formado, educado, adaptado ao con-sumo ilimitado. Começa a era do hiperconsumo quando as anti-gas resistênciasculturais caíram, quando as culturas locais já nãoconstituem freios aos gostos pelas novidades. A fase IIIé essa ci-

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vilizaçãoem que o referencialhedonista se impõe como uma evi-dência, em que a publicidade, os lazeres, as mudanças perpétuasdo cenário de vida "fazem parte dos costumes": o neoconsumi-dor já não semostra sobre um fundo de cultura antinômica.2

A espiritualidade consumista

Mesmo a religião não constitui mais um contrapoder noavançodo consumo-mundo. Àdiferença do passado,a Igrejanãoalega mais as noções de pecado mortal, não exalta mais nem osacrifício nem a renúncia. O rigorismo e a culpabilização forammuito atenuados, ao mesmo tempo que as antigas temáticas dosofrimento e da mortificação. Enquanto as idéias de prazer e dedesejo são cada vezmenos associadas à "tentação", a necessidadede carregar sua cruz na terra desapareceu. Já não se trata tantode inculcar a aceitaçãodas provações quanto de responder às de-cepções relativas às mitologias seculares que não conseguiramcumprir sua promessa e de proporcionar a dimensão espiritualnecessária ao desabrochamento completo da pessoa, De uma re-ligião centrada na salvação no além, o cristianismo se transfor-mou em uma religião a serviço da felicidade intramundana, en-fatizando os valores de solidariedade e de amor, a harmonia, apaz interior, a realização total da pessoa.3Por aí se vê que somosmenos testemunhas de um "retorno" do religioso que de umareinterpretação global do cristianismo, que se ajustou aos ideaisde felicidade,de hedonismo, de desabrochamento dos indivíduosdifundidos pelo capitalismo de consumo: o universo hiperbólicodo consumo não foi o túmulo da religião,mas o instrumento desua adaptação à civilizaçãomoderna da felicidade terrestre.

Quando uma concepção intramundana e subjetiva da sal-vação domina, cresceparalelamente a mercantilização das ativi-dades religiosas e pararreligiosas,4 tendo os indivíduos necessi-

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dade de encontrar "no exterior" meios para consolidar seu uni-verso de sentido, que a religiãoinstitucional já não conseguecons-truir.5 Em parte alguma o fenômeno é tão evidente quanto no"amontoado místico-esotérico" e nos circuitos que assumem aNew Age.Nessa esfera de influência, multiplicam-se as livrariasespecializadas e os salões de exposição, toda uma oferta comer-cial feita de grupos de trabalho com gurus, centros de desenvol-vimento pessoal e espiritual, estágios de zen e de ioga,grupos detrabalho sobre os "chacras", consultas de "medicina espiritual",cursos de astrologia e de numerologia etc. Enquanto as obras dereligião e os romances espirituais são grandes sucessosde livra-ria, muitos editores investem nesse novo "segmento" promissor.Na sociedade de hiperconsumo, mesmo a espiritualidade é com-prada e vendida. Se é verdade que a reativação pós-moderna doreligioso exprime certo desencanto com o materialismo da vidacotidiana, o certo é que o fenômeno é cada vezmenos exterior àlógicamercantil. Eisque a espiritualidade se tornou mercado demassa, produto a ser comercializado, setor a ser gerido e promo-vido. O que constituía uma barreira à explosão da mercadoriametamorfoseou-se em alavancade seu alargamento. A fase IIIé aque vê esfumar-se o abismo entre o Homo reIigiosuse o Homoconsumencus.

Aomesmo tempo, sobre um fundo de enfraquecimento dascapacidades organizadoras das instituições religiosas, a tendên-cia forte é para a individualização do crer e do agir, para a afeti-vização e a relativização das crenças. Hoje, mesmo a espirituali-dade funciona em auto-serviço, na expressão das emoções e dossentimentos, nas buscas animadas pela preocupação com omaiorbem-estar pessoal, de acordo com a lógica experiencial da faseIII. Cadavezmais,é a buscada realizaçãopsicológicado sujeitoque se encontra no centro tanto das experiências dos crentes pro-priamente ditos quanto das novas "religiões sem Deus".6 O que

constitui o valor da religião não é mais sua posição de verdadeabsoluta, mas a virtude que lhe é atribuída de poder favorecer oacesso a um estado superior de ser,a uma vida subjetiva melhoremais autêntica.' Naturalmente - é útil sublinhá-Io -, crer nãoé consumir: inscrevendo-se na continuidade de uma tradição,buscando o "essenéial",o divino e o sentido da vida, o espírito defé não pode ser confundido com o espírito pragmático do con-sumismo. Mas não é menos verdade que a reafirmação contem-porânea do religioso se acha marcada pelos próprios traços quedefinem o turboconsumidor experiencial: participação tempo-rária, incorporação comunitária livre, comportamentos à Iacar-te,primado do maior bem-estar subjetivo e da experiência emo-cional. Nesse plano, o Homo religiosus aparece mais como acontinuação do Homo consumericuspor outros meios que comosua negação.Não se trata, é evidente, de reabsorção do religiosono consumo: simplesmente, assistimos à extensão da fórmula dosupermercado até os territórios do sentido, à penetração dosprin-cípios do hiperconsumo no próprio interior da alma religiosa.

o hiperconsumidor cativado pela ética

A ética constitui um outro "setor" de ponta do consumo-mundo. É certo que o mercado dos produtos socialmente corre-tos e verdes ainda está balbuciante: 1% a 5% do consumo total,segundo os países.No entanto, desde2001,o comércio socialmen-te correto registra uma importante progressão em volume, em di-versidade de produtos, bem como em notoriedade. Cadavezmaisconsumidores declaram ser sensíveis aos produtos oriundos docomércio socialmentecorreto;uma importante proporção de con-sumidores europeus afirma estar disposta a pagar mais caro se oproduto respeita normas ecológicasou éticas;segundo o Institu-to Mori, apenas um quarto dos consumidores se diz indiferente a

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esses critérios. Dezoito por cento dos britânicos e 14% dos holan-deses já boicotaram produtos em função de critérios "cidadãos".Em nossas sociedades, não se consomem mais apenas "coisas", fil-mes e viagens, compram-se "produtos éticos" e ecológicos. Outrotempo, outras motivações: aos militantes políticos seguem-se osnovos consumidores "engajados': ávidos por selos éticos e produ-tos com sentidos associados à defesa das crianças, dos famintos,dos animais, do meio ambiente, das vítimas de todo tipo. ~ sobos auspícios do consumo "correto': da despesa cidadã, ecológica esocialmente responsável que se constrói a fase m.

Simultaneamente, a mercadoria "responsável" tem comocomplemento um consumo de ações humanitárias, a expansãodas grandes festas midiatizadas da beneficência de massa comsuas estrelas e seus jogos, seus risos e seus choros, seus dilúviosde apelos e de doações. O hiperconsumidor experiencial aprovaos megaespetáculos da bondade, os testemunhos pungentes, orock caritativo, as estrelas a serviço da solidariedade, tudo banha-do numa ambiência festiva e interativa. A fase terminal do con-

sumo se completa na sagração do valor ético, instrumento de afir-mação identitária dos neoconsumidores e gerador de emoçõesinstantâneas para os espectadores das maratonas filantrópicas.

Ao festival do objeto acrescentam-se agora o consumo cida-dão e a festa dos bons sentimentos. Saem as "águas geladas docálculo egoísta", entra a beneficência da felicidade dada e recebi-da ao vivo e em primeiro plano. Findas as rivalidades simbólicasda troca-dom selvagem, nosso potlacht é feérico, consensual ecompassivo, é o da bondade total, do dom consumido e mass-mi-diatizado, prometido, expedido e zapeado. Depois do consumodemonstrativo das classes ricas, os crescendos do Bem televisual.Não há mais antagonismo entre hedonismo e desinteresse, indi-vidualismo e altruísmo, idealismo e espetaculosidade, consumis-mo e generosidade, nossa época confundiu essas antigas frontei-

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ras, para maior felicidade do hiperconsumidor sentimental-mi-diático,mobilizado episodicamente e à distância.

o consumismo sem fronteira

A dinâmica do consumo-mundo não se detém aí. São todasas grandes instituições sociais que se vêem reformatadas, "revis-tas e corrigidas" pelo turboconsumismo. O casal?Elese desinsti-tucionaliza e se privatiza, tornando-se mais contratual, mais ins-tável,cada um se pretendendo autônomo e procurando preservarsua disponibilidade num compromisso pensado como rescindí-vel.Baixa do número de casamentos, aumento das uniões livres,progressão do divórcio, precariedade dos laços: a família já nãoescapa inteiramente às estratégias temporárias, individualizadas,contratualizadas do indivíduo-consumidor. A relação com a po-lítica? Enquanto aumenta a volatilidade eleitoral, muitos cida-dãosmostram uma adesãomaisvagaaospartidos políticos,orien-tam-se mais individualmente, mudam devoto segundo anaturezae as apostas das eleições:o voto-estratégia do consumidor políti-co tende a substituir o voto de classeà moda antiga. O sindicalis-mo?Também aqui, ganha o laço temporário e distanciado, tendoo filiado progressivamente se tornado um simples contribuinte,um "cliente" tratando a organização sindical como uma simplesinstituição: ao engajamento identitário que prevalecia ainda hápouco se seguiu uma relação de tipo utilitarista.8

Onde devem ser estabelecidas as fronteiras do consumo-mundo no momento em que o consumismo alcança domíniostão diversos quanto a sexualidade e a procriação, o espermato-zóide e os óvulos, a espiritualidade e a cultura, o esporte e a es-cola? Enquanto se exige que os serviços públicos se comportemcomo empresas do setor da concorrência, até as aposentadoriassão confiadas, ou estão em via de sê-Io, às companhias de segu-

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ros e aos fundos de pensão em nome do interesse dos consumi-

dores, dos usuários e aposentados. O fato está aí: com a expan-são da sociedade de mercado, o universo do cliente ou do usuá-rio torna-se o paradigma dominante, uma espéciede "fenômenosocial total': Estamos na época em que, em todas as esferas,se im-põem, mais ou menos, o princípio do auto-serviço e a efemeri-dade dos laços, a instrumentalização utilitarista das instituições,o cálculoindividualistadoscustose dosbenefícios.

O que dizer, se não que o mercado se tornou, muito alémdas transações econômicas, o modelo e o imaginário que regemo conjunto das relações sociais, se não ainda que o consumidorse apresenta como a figura predominante do sujeito social? Aemancipação dos atores em face das imposições coletivas, o re-cuo do Estado,aextensãoda esferamercantila esferasque anti-gamente dela estavam excluídas generalizaram, em todos os do-mínios, a lógica das opções pessoais,as relaçõescontratualizadase temporárias, a perspectiva do cliente, a busca da melhor rela-çãoqualidade-preçoe damaximizaçãodasvantagens.A fase IIIpodeserdefinida comoasociedadeem que a forma-consumoaparece como o esquema organizador das atividades individuais,em que o ethosdo consumismo reestrutura todas as esferas, in-clusiveas que são externas à troca paga. Uma nova figura emble-mática do indivíduo tomou corpo: ela não é mais que a do hi-perconsumidor globalizado.

o CONSUMO REFLEXIVO

A fase 11do consumo de massa foi acompanhada por viru-lentas denúncias da mercantilização das necessidades e da pro-gramação dos modos de vida. As correntes esquerdistas, a juven-tude rebelde, a ecologia radical lançaram-se à guerra contra as

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pseudonecessidades, o consumo ilusório dos objetos, o esbanja-mento das riquezas. Toda uma geração reprovou o reino da pas-sividadeedo condicionamentogeneralizadoemnome da liber-dade total, da criatividade, do gozo passional.

Essa fase,manifestamente, deu o que tinha a dar, não tendoo espírito revolucionário resistido aos encantos do Éden consu-mista. Edificou-se uma nova cultura que substitui os sonhos dadescontinuidade histórica pelo culto do desabrochamento subje-tivo, da qualidade de vida, da saúde infinita. Isso significa o desa-parecimento de toda oposição ao mundo da mercadoria, o triun-fo de uma humanidade totalmente integrada, sem discordâncianem antagonismo? De modo nenhum. Por mais que se imponhaum universo marcado pela aprovação generalizadadas condiçõesde vida, somos testemunhas de uma espécie de democratizaçãodo dissentimento, tendo a crítica do mundo consumista se tor-nado a coisa do mundo mais bem partilhada. Qual domínio ain-da estáa salvodos lamentose dosprotestosdo consumidor?Er-guemo-nos contra a colonização publicitária do espaço público;preocupamo-nos com as ondas nefastas propagadas pelos telefo-nes celulares e pelos fornos de microondas; deploramos o desa-parecimento do sabor dos alimentos; revoltamo-nos contra osalimentos transgênicos e os produtos poluentes; queixamo-nosdas praias superlotadas e da desfiguraçãodas paisagens;vocifera-mos contra as novas incivilidades telefônicas, as hordas de turis-tas, a feiúra dos hipermercados; acusamos a televisão de nos tor-nar imbecis e a publicidade, de nos transformar em carneiros dePanurgo. Àmedida que a ordem mercantil invade os hábitos devida, as desaprovações e insatisfaçõesmultiplicam-se, todo mun-do se tornou mais ou menos crítico de um mundo que ninguém,no fundo, quer substancialmente diferente. É de fato a "socieda-de unidimensional" (Marcuse) que triunfa, só que ela não signi-fica de maneira alguma desaparecimento das forças oposicionis-

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tas e identificação completa dos indivíduos com a existência queé a deles.Émesmo o contrário: há tanto mais postura críticaquan-to mais a adesão ao statu quoé profunda.

Da vitrine à consciência

o que caracteriza a sociedade de consumo, escreviaem 1970Baudrillard, "é a ausência de 'reflexão', de perspectiva sobre simesma... não existemais que a vitrine na qual o indivíduo já nãoreflete a si próprio, mas se absorve na contemplação dos obje-tos/signos multiplicados':9Como não ver a diferença em relaçãoao momento III, que provoca - embora não de modo exclusivo

ou regularmente - distanciamento e desconfiança dos sujeitos?Da mesma maneira que se intensifica a autonomização dos indi-víduos em facedas grandes instituições coletivas,há uma maiordistância em relação àsmarcas e aos produtos de consumo. O quenão quer dizer desinteresse, mas aumento da reflexividade doconsumidor que, daí em diante, dispõe de uma massa de infor-mações e de conhecimentos midiático-científicos para efetuarsuas compras. Tudo o que era vivido imediatamente e sem dis-tância tornou-se mais problemático, é acompanhado de avalia-ção e de vigilância, de necessidade de informação, de saber e deexame, por vezes de desconfiança. Na era dos novos riscos ali-mentares e da obsessão sanitária, o Homo consumericusnão ces-sa de convocar o Homo scientificus para orientar-se e escolhercom "conhecimento de causa': minimizar a ação dãs substânciasnocivas, empregar estratégias de prevenção dos riscos.Na fase IIl,comprar não funciona mais semsaber,sem recuo informado, semreflexão"científica':Fim da época da mercadoria despreocupadae inocente: eis-nos no estágio reflexivolOdo consumo erigido emproblema, objeto de dúvida e de interrogação. O ciclo III designa

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o advento do consumo como mundo e como problema, comocomplicação e como consciência refletida.

Assim, o "estágio do espelho" foi substituído pelo "estágiodo especulativo" do consumo, aquele em que os comportamen-tos de compra se efetuam à luz dos conhecimentos "científicos"veiculados pelas mídias. Transformação que participa sem difi-culdade do novo planeta dos indivíduos. Numa época em que oshomens têm cada vezmais a impressão de que o controle de suaexistênciacoletivaIhesescapa,é em torno dos modos de vida quese intensificam as interrogações e atitudes críticas.Mudando seushábitos, fazendo escolhas"esclarecidas': o neoconsumidor erige-se em ator livre que avalia os riscos e discrimina os produtos. O"tomar a palavra"" não é apenas uma reação causada por expe-riências de consumo decepcionantes ou apresentadas como pe-rigosas, é um dos caminhos seguidos pelo indivíduo para afir-mar sua subjetividade autônoma e sua identidade pessoal.Atravésda rejeição e das escolhas conscientes, o consumidor experimen-ta uma maneira de ser sujeito, cuja autonomia se concretiza naprudência, no discernimento, na capacidade de mudar e de ques-tionar o existente. Não se trata de uma simples defesa contra omundo exterior, mas de um instrumento de apropriação indivi-dual de uma parte do mundo dominado pelo mercado. O que sepoderia chamar de "cogitohiperconsumidor" aparece como umadas expressões da escalada individualista, uma maneira de cons-truir um poder pessoal sobre um território extremamente pró-ximo no momento em que os grandes projetos coletivos perde..ram sua antiga força de mobilização.

O hiperconsumo como destino

Enquanto a reflexividadeconsumidora tende a generalizar-se, as flechas lançadas contra o desencadeamento das necessida-

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des mudaram de direção. A ecologia radical e política que, nosanos 1960-70,preconizava a austeridade voluntária e a "autoli-mitação das necessidades"deu lugar às demandas de proteção domeio ambiente, à agroecologia, à gestão duradoura dos recursosda Terra. Às utopias da ruptura seguiram-se os apelos à salva-guarda do "patrimônio comum da humanidade", às palavras deordem "comam melhor, consumam saudavelmente" sucederamos elogios ao slowfood.O que conta antes de tudo é a defesa dosgrandes equilíbrios planetários, a produção de mercadorias re-cicláveis,a reconciliação da economia ~da ecologia. O protestoglobalizante e maniqueísta transformou-se em ferramenta deretlexividade pragmática feita de contestações pontuais, de sen-sibilização às urgências da hora, de apelos a uma modificação"realista" e necessária das práticas produtivas, das políticas pú-blicas e dos modos de consumo. Depois das paixões revolucio-nárias, o princípio de precaução e a sabedoria avaliadora dos ris-cos maiores: a época não é mais da redefinição completa dasnecessidades e menos ainda do culto da vida frugal, mas do eco-consumismo, dos selos verdes, da ecologia industrial.12Biopro-dutos, desenvolvimento duradouro, ecossistemaindustrial: a eco-logia não constitui mais um contrapoder à economia mercantil,funciona como instrumento de sua reciclagem,vetor de uma ofer-ta mais respeitadora dos grandes equilíbrios da natureza. Seé ine-gável que a sensibilidade ecológica continua a ser um amontoa-do constituído de correntes divergentes, não é menos verdadeque elaseesforçapara criar um "suplemento de alma': para "cons-cientizar" a produção e o consumo. Quanto menos existe utopiarevolucionária, mais aumenta a retlexividadedo consumo-mun-do repintado na cor verde.

Apesar disso, a radicalidade crítica não baixou as armas: osativistasantiglobalizaçãoandam naspáginasdosjornais eamcdo-naldização do planeta figura mais do que nunca como o grande

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Satã.13Volta ao ponto de partida? Não é nada disso.Os novos ati-vistasproclamam que "o mundo não é uma mercadoria", os aná-temas fazem sucesso, mas o que é visado é menos o consumo-mundo do que as desregulamentações do "horror econômico".Oultraliberalismo, as imposições do FMIsão postos no pelourinho,mas o objetivo perseguido é fazer que os países em desenvolvi-mento entrem na era do bem-estar material. A destruição dosplantios de milho transgênicos, os apelos em favor da taxa Tobin*ou da anulação da dívida dos países pobres, tudo isso não cons-titui desconstruções do mundo consumista, mas demandas deregulação e de "humanização" da globalização. Semuitos aspec-tos do hiperconsumo são postos no banco dos réus e se os anti-consumo militam contra o carro, a televisão ou a publicidade, éforçoso constatar que mais nenhum modelo fiávelde sociedadealternativa está à nossa disposição: temos a postura da denúnciaradical, menos a esperança e a organização prática de um outromundo. A solução milagrosa e o lúdico substituíram as perspec-tivas de revolucionar realmente a organização mercantil dos mo-dos de vida.'4O que o consumo-mundo propõe é como um des-tino irresistível.

Esse"rearmamento da crítica" foi analisado com pertinên-cia como um protesto "essencialmente moral" que, produzidopela nova preeminência ideológica do direito dos indivíduos,"participa em profundidade daquilo que recusa na superfície".15Acrescentareique essa forma paradoxal de participação na socie-dade contemporânea não se nutre apenas da sagração dos direi-tos humanos, mas também das aspirações e finalidades nascidasdos desenvolvimentos do consumo de massa. Recusa da unifor-

* Inspirada em uma proposta de James Tobin, Prêmio Nobel de Economia, es-sa taxa é a aplicação de um imposto às transações financeiras, com o objetivode evitar a especulação.(N. T.)

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mização planetária, ofensiva contra os OGMS(organismos gene-ticamente modificados), cruzada contra as marcas e a publicida-de, tudo isso se alimenta dos ideais de felicidade e de qualidadede vida, de hedonismo e de maior bem-estar que só o capitalis-mo de consumo conseguiu difundir em grande escala.16Se a no-va radicalidade é filha de seu tempo, é por ter se adaptado às nor-mas do hiperconsumo que ela não cessa de vilipendiar.

LIMITES DA MERCANTILIZAÇÃO

o estágio IIIsignificao momento em que a esfera comercialse torna hegemônica, em que as forças do mercado invadem aquase totalidade dos aspectosda existênciahumana. Pode-secom-preender, nessas condições, a urgência que há em interrogar-sesobre o tipo de ser humano e de vida social modelados pelo quealguns chamam de novo "totalitarismo mercantil". Seo processode mercantilização não for contido, não é imenso o risco de quese degradem a sociabilidade, a confiança social, a empatia, todosos valores e sentimentos que definem nossa humanidade? O queserá dos laços comunitários, das relaçõesbaseadas na afeição,noamor e na dedicação em sociedades que não conhecem mais queas trocas venais?A natureza humana não está ameaçada quandoa maior parte de nossas relações se torna monetária e contra-tual?I7Assim,é possívelque, à sombra do consumismo eufórico,esteja sendo preparada uma nova humanidade ou "pós-humani-dade" de pesadelo.

Alguns já o afirmam alto e bom som: o mundo no qual vi-vemos não tem mais nada a ver com o passado, a era do consu-mo-mundo conseguiu criar um estado de imanência total em quenão existem mais que as paixões pela segurança, a saúde e o go-zo festivo,em que o indivíduo não tem mais substância existen-

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cial,vive sem íntimo nem interioridade num tempo inteiramen-te positivado, expurgado de toda imprevisibilidade, de todo ris-co, dos conflitos e antagonismos que constituíam a história.18Afase IIIconseguiu, portanto, fazer triunfar definitivamente o "ho-mem-massa", esse"homem medíocre" denunciado por Ortega yGasset, incapaz de esforço,de exigência,de superação de si e que,mimado pela história, se contenta em ser o que é em uma perpé-tua imanência?19Não acredito nisso.

Mesmo o "último homem': que poderia ser representado pe-lo hiperconsumidor, esforça-seem fazermelhor, em "crescer",emviver por algo além da segurança e dos divertimentos. A luta pe-lo reconhecimento, os desejos de transcendência de si não foramde modo algum varridos: paixão pelo risco e pela façanha, von-tade do trabalho bem-feito, gosto pela criação intelectual, artísti-ca ou empresarial, desejo do poder são fenômenos que revelamque nem tudo, na fase 1Il,se resume à lógica do consumível. Sobo reino da positividade do bem-estar, continua a trabalhar a ne-gatividade humana, o desejo de vencer e de ganhar, a aspiração asuperar-se. Ainda que a experiência mercantil ocupe uma partecada vez mais importante de nosso tempo, a relação consigo ecom os outros não se reduz a atividades consumistas. Superar-se, ser bem-sucedido no que se empreende, vencer asprovações,inventar, criar, todas essaspaixões que Nietzsche associavaà idéiade vontade de poder estão, afinal, inalteradas. "Aluta pelo poder,a ambição de ter 'mais' e 'melhor' e 'mais depressa' e 'com maisfreqüência'... a força imensa que quer despender-se e criar"20pa-ra crescer, para dominar, pela "sensação de um máximo de po-der",nada de tudo isso desapareceu.Àmedida que o ato de con-sumir estende sua influência, as exigências de superação de si, asde ser estimado e de ter auto-estima pelo que se realiza não ces-sam de se reafirmar.A existênciahumana não ficou integralmen-

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Relações mercantis e sociabilidade

e pelas trocas inter-humanas tenha sido aniquilado? A realidadeobservável não confirma esse esquema. O tempo consagrado à te-levisão e ao vídeo aumenta, mas, paralelamente, constata-se umatendência ao acréscimo - ainda que leve - da freqüência aosmuseus, teatros, circos, locais de exposição ou de patrimônio. Onúmero de idas ao cinema declina, mas a freqüência aos parques

de lazer e a participação nos espetáculos de rua e nos festivais cres-ce.24Os bistrôs de bairro desaparecem, mas uma nova geração decafés "especializados" (bares de cerveja, de vinho, de caraoquê, ci-bercafé) nasce. Os jovens se comunicam por SMS,mas gostam dese encontrar entre si para discutir, ir ao cinema, fazer compras,comer um hambúrguer. O lar tende a tornar-se um espaço propí-cio para passar o tempo livre, mas as saídas à noite para a casa dosamigos são mais freqüentes que antigamente. De maneira maisampla, um número crescente de franceses declara preferir aos la-zeres domésticos os lazeres que os levem a sair de casa.25

Contrariamente a uma idéia muito repisada, a sociedade de

hiperconsumo não é sinônimo de encasulamento e de "confina-mento interativo generalizado". O equipamento audiovisual doslares não suprimiu de modo algum a necessidade de estar emcontato com o "mundo" e de encontrar os amigos. Estamos mui-to longe da sociedade dita "fortemente com uni cante, mas fraca-mente defrontante":26 ao contrário, o gosto pelo ao vivo, o desejode sair, de "ver gente", de participar de grandes reuniões festivasé que parecem representar as tendências mais significativas. Ob-servando-se o florescimento dos clubes e associações, nada per-mite afirmar que no futuro se encontrará cada vez menos o ou-tro, num estado crescente de "solidão interativa". A difusão socialdos novos objetos de comunicação inverterá essa orientação? Averdade é que são os indivíduos mais bem equipados de novastecnologias que "saem" mais e encontram mais gente.27Estudosrecentes mostraram que as relações virtuais não ameaçam as re-

te a cargo da ordem mercantil e hedonista: não nos tornamos osconsumidores de nossa própria vida.

Se a vontade de superar-se não está em perigo, o que é feitoda relação com os outros, das paixões e das formas da sociabili-dade? Desde a fase lI, os pensadores críticos desenvolveram a idéiade que o consumo espetacular devia ser compreendido como "aorganização sistemática da falência da capacidade de encontro",como uma "comunicação sem resposta"causadora de um "autis-mo generalizado".21A ordem despótica do consumo não é senãoa que institui a unilateralidade da comunicação, uma relação so-cial abstrata que impede toda forma de reciprocidade entre osseres: a televisão é, assim, "a certeza de que as pessoas não se fa-lam mais, de que estão definitivamente isoladas em face de umapalavra sem resposta".22A problemática da dessocializaçãosiste-mática foi ainda mais reforçada com o desenvolvimento das re-des e das novas tecnologiasda informação, que substituiriam pro-gressivamenteaantigavida emsociedadepelasinteraçõesvirtuais.Estudos afirmam que a utilização da internet "diminui o círculodas relações sociais próximas e distantes, aumenta a solidão, di-minui ligeiramente a quantidade do suporte social":23em 2001,dentre 13milhões de adolescentes americanos, 2 milhões prefe-{iamcomunicar-se com os amigospor meio da rede a fazê-lopes-soalmente. O mundo que virá seria o das comunidades virtuaiscujo efeito é de destruir a comunidade real, o encontro direto, olaço coletivo.

É inegável que a televisão, o carro, os lazeres contribuírampara provocar o abandono de todo um conjunto de lugaresde en-contro tão diversos quanto os bistrôs de bairro, a missa, os lava-douros públicos.Mas isso significaque o gosto pela sociabilidade

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lações pessoais: elas as completam, os indivíduos que costumamutilizar os serviços da internet continuam a manter relações forada rede ou procuram ampliar seu horizonte de encontros reais.Evitemos o clichê do declínio da vida social: por ora, não há pe-rigo real referente às inclinações à sociabilidade, tendo o desen-volvimento do virtual e das mídias mais probabilidades de refor-çar a importância vivida dos contatos diretos que de depreciá-Ios.Se as relações de vizinhança se enfraquecem, não é em favor dareclusão doméstica, mas de uma "sociabilidade ampliada" maisseletiva,mais efêmera, mais emocional, em outras palavras, pos-ta no diapasão do ethoshiperconsumidor.

Aniquilação dos valores?

o consumo-mundo abole a confiança social, o altruísmo ea empatia? Não há nenhuma dúvida de que vemos exprimir-se,em nossas sociedades, uma ampla desconfiança em relação aosdirigentes políticos e às elites econômicas. Alguns observadoresassinalam a inquietante difusão do cinismo no corpo social, umaproporção importante da população, especialmenteentre osmaisjovens e mais desfavorecidos,tem a convicçãode que "as pessoassão fundamentalmente más':28Se,além disso, levarmos em contao aumento das incivilidades, das delinqüências e outras ativida-des criminosas/9 o quadro de conjunto é inegavelmente poucoanimador.

No entanto, outras razões permitem mostrar-se menos pes-simista. Pois a "decomposição dos valores" tem limites: os direi-tos humanos, as liberdades públicas e individuais, o ideal de to-lerância, a rejeição da violência, da crueldade, da exploração dosmais fracos são princípios que não naufragaram. Mesmo que oespírito de sacrifício e o ideal de "viver para outrem" já não se-jam muito professados, não se pode assimilar a cultura de hiper-

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consumo ao grau zero dos valorese dos comportamentos altruís-tas. Os sentimentos de empatia e os gestos de solidariedade sãoespécies em via de extinção? Como compreender, nesse caso, amultiplicação das associações e dos voluntários?30A despeito detodas as formas de indiferença ao outro existentes, nossas socie-dades favorecemmais a identificação com outrem que sua ruína.As capacidades compassivas, o senso da indignação, os atos deajuda mútua e de solidariedade, tudo isso não foi erradicado: as-siste-seapenas ao desenvolvimento de uma generosidadecircuns-tancial, emocional, indolor.31Sempre receptivo à infelicidade deoutrem, sempre desejoso de sentir-se útil aos outros, o "coração"do indivíduo hiperconsumidor não deixou de bater: é ritmadode uma outra maneira.

A sentimentalização do mundo

Falência de todo ideal? Absorção de todos os aspectos daexistência pela troca paga? Basta considerar a questão do amorpara perceber bem depressa o ponto em que o processo mercan-til encontra seus limites.Aocontrário do que podiam pensar cer-tos materialistas do século XIX,o amor como valor, longe de de-clinar,continua a ser posto num pedestal.Nos filmes,nas canções,nos romances, na imprensa, por toda parte o amor se apresentacomo um ideal superior, a quintessência da vida, a imagem maisemblemática da felicidade. "Dessentimentalização" do mundo?Jamais o casal foi tão baseado no sentimento, jamais a idéia de"bom casamento" excluiu tanto o casamento de interesse.E o quehá de mais prioritário, de mais imperativo para nós que a afei-ção parenta!? Ainda que as questões de dinheiro sejam onipre-sentes no cotidiano, uma outra lógica, antinômica porque afeti-va, "desinteressada",exterior ao valor mercantil, não cessade serfavorecida por uma imensa legitimidade, de modelar nossas ex-

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pectativas, de regular nossas vidas. Não fazemos mais que con-sumir amor nas mídias de massa, cremosnele, reconhecemos-lheum valor excepcional, organizamos-desorganizamos partes in-teiras de nossa existência em função dos movimentos do cora-ção.Um eixo importante da vida permanece fundamentalmenteheterogêneo às forças do mercado: nem tudo, é evidente, foi co-lonizado pelo valor de troca. É essa própria dimensão que cons-titui o que para nós é a maior riqueza, o relevo mais intenso davida privada. Essaparte fora do mercado não é nem residual nemarcaica. É bem o contrário: quanto mais se amplia a comerciali-zação dos modos de vida, mais se afirma o valor do pólo afetivona esfera privada. O universo do consumo-mundo não põe fimao princípio da afetividade sentimental, consagra-o como valorsuperior, correlativo à cultura do indivíduo que, aspirando à au-tonomia pessoal, recusa as regulações institucionais do tempoprivado. Éassim que a cultura do amor se generaliza na propor-ção mesma em que se intensifica, ao mesmo tempo, a dinâmicado indivíduo e a da mercantilização das necessidades.32

Frivolidade efragilidade

Essas análises não têm por objetivo inocentar a fase III doconsumo. Tranqüilizem-se, não ignoro totalmente as ameaçasque ela faz planar sobre nós. Apenas me esforço em pensá-Ias evi-tando as facilidades da denúncia apocalíptica. Quais são os efei-tos do consumo-mundo? Para onde vamos? A que infortúniosestamos expostos? À "revolução das esperanças", trazida pela faseli, sucederam a consciência dos "danos do progresso", a suspeitaem relação às novas tecnologias, o temor da degradação do nívelde vida. Se a sociedade de hiperconsumo conseguiu neutralizaras lutas simbólicas que orquestravam os atos de consumo, ela nãocessa de reproduzir novas conflituosidades entre o homem e as

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coisas, o homem e si próprio, o homem e o social. Atrás das lu-zes da frivolidade consumista continuam a contorcer-se as an-gústias do mal-estar, do "duro desejo de durar", da luta pela vidae pela sobrevivência. No momento mesmo em que nossas socie-dades são mais ricas e mais poderosas do que nunca, tomam no-vo impulso os temores da exclusão e das restrições, as obsessõescom a idade, a saúde e a segurança: a humanidade, afinal, conti-nua a mostrar-se igualmente vulnerável e frágil.

No horizonte, desenha-se não a aniquilação dos valores edos sentimentos, mas, mais prosaicamente, a desregulamentaçãodas existências,a vida sem proteção, a fragilizaçãodos indivíduos.A sociedade de hiperconsumo é contemporânea da espiral da an-siedade, das depressões, das carências de auto-estima, da dificul-dade de viver.Lembramo-nos das palavras deWoodyAllen:"Deusestá morto, Freud está morto e eu mesmo não me sinto lá muitobem"; cada um acha cada vezmais penoso assumir as dificulda-des da vida, cada um tem a impressão de que a vida é mais pesa-da, mais caótica, mais "impossível"no momento mesmo em queas condições materiais progridem. Enquanto brilha a euforia dobem-estar, cada um tem, mais ou menos, a impressão de não tervivido o que teria desejado viver, de ser mal compreendido, deestar à margem da "verdadeira vida".Se a maioria, nas pesquisas,declara-se feliz,todo mundo, a intervalos mais ou menos regula-res, se mostra inquieto, taciturno, insatisfeito com sua vida pri-vada ou profissional.A civilizaçãoque se anuncia não abole a so-ciabilidade humana, ela destrói a tranqüilidade consigo e a pazcom o mundo, tudo se passando como se as auto-insatisfaçõesprogredissem proporcionalmente às satisfações fornecidas pelomercado. Um passo para a frente, um passo para trás: a alegria, afrivolidade de viver não têm encontro marcado com o progres-so. Sempre mais satisfações materiais, sempre mais viagens, jo-gos, esperança de vida: contudo, isso não nos escancarou as por-tas da alegria de viver.

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I

SEGUNDA PARTE

PRAZERES PRIVADOS,FELICIDADE FERIDA

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wl

Toda a vida das sociedades superdesenvolvidas se apresentacomo uma imensa acumulação dos signos do prazer e da felici-dade. Vitrines rutilantes de mercadorias nas publicidades res-plandecentes de sorriso, do sol das praias nos corpos de sonho,de férias com divertimentos midiáticos, é sob os traços de um he-donismo radiante que se mostram as sociedades opulentas. Portoda parte se erguem as catedrais dedicadas aos objetos e aos la-zeres,por toda parte ressoam os hinos ao maior bem-estar, tudose vende em promessas de volúpia, tudo se oferece como de pri-meira qualidade e com música ambiente difundindo um imagi-nário de terra da abundância. Nessejardim das delícias, o bem-estar tornou-se Deus, o consumo, seu templo, o corpo, seu livrosagrado.

Se essa constatação não levanta imensos problemas, o mes-mo não acontece com sua interpretação. De meio séculopara cá,a "revolução das necessidades" suscitou as mais contraditóriasleituras possíveis. Senos concentramos no essencial, destacam-se cinco grandes modelos paradigmáticos que comandam a inte-

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ligibilidade do prazer e da felicidade em nossas sociedades. Re-duzo-os aqui a seu mais extremo esboço, sendo cada um delesapadrinhado por uma figura mitológica emblemática.

Segundo uma primeira tese, as sociedades de consumo as-semelham-se a um sistema de estimulações sem fim das necessi-dades que tanto mais aprofunda a decepção e a frustação quantomais ressoam os convites à felicidade ao alcance da mão. Febrecompulsiva, descontentamento, desgosto: a nova Arcádia causauma insatisfação insuperável, sendo sua originalidade produzir amiséria subjetiva na opulência material. A sociedade que maisexibe a festa da felicidade é aquela na qual mais há carência: seuprincípio é realmente Penía (pobreza).

Um segundo modelo interpreta o cosmo das necessidadesmultiplicadas ao máximo como explosão do princípio hedonís-tico, exacerbação da vida dos sentidos, prevalência dos desejosde gozo aqui e agora. Em ruptura com as antigas normas do pro-dutivismo burguês, a época é marcada pela promoção do instan-te vivido, por uma cultura centrada no ludismo da carne, nasefervescências festivas, na busca das sensações e dos êxtases detodo tipo. O laborioso Prometeu está sem fôlego:a era que che-ga impulsiona Dionísio,movido por seus desejos de paroxismos,de arrebatamentos e de delírios.

Nos antípodas desse modelo, uma outra escola de pensa-mento reconhece na cultura contemporânea o prolongamento ea acentuação dos antigos valorespuritanos hostis aos gozos sen-síveis.O hedonismo dos costumes é uma aparência enganosa, omundo que nos regeé, na realidade, ativista e performativo, suaspalavras-chave são competição, excelênciae urgência. Adeus vo-lúpias errantes, tudo não é mais que demonstração de poder, ex-ploração máxima dos potenciais, superação de si.No frontão dasociedade de desempenho inscreve-se, em letras digitalizadas, onome heróico do Super-Homem.

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Se acompanharmos um quarto modelo, a era da abundân-cia cria menos um clima de frivolidade e de benevolência que aexasperação dos conflitos inter-humanos, os tormentos da inve-ja, o desprazer de contemplar o sucessoe a felicidade dos outros.Longede domar as paixões humanas, a civilizaçãodo bem-estarexacerbaos sentimentos de ódio ede ciúme, a rivalidade e ascom-petições invejosas entre iguais. A solicitude mercantil é a ilusãoque esconde a guerra venenosa de cada um contra todos, a ale-gria perversa de ver destruída a alegria dos outros. Podemos cha-mar esse modelo de Nêmesis, do nome da deusa grega que per-sonifica a vingança e encarrega-se de castigar a prosperidadeclamorosa, o excessode felicidadedos mortais.

Enfim, construiu-se um último modelo que insistia na pri-vatização das existências posta em marcha pela civilização con-sumista. Destruindo a influência organizadora das grandes insti-tuições, provocando a derrocada das utopias da história e dasmorais sacrificiais, as sociedades de consumo impulsionaramuma individualização extrema dos modos de vida e das aspira-ções.Durante mais de dois séculos,o moderno processode eman-cipação do indivíduo realizou-se pelo direito e pela política, pelaprodução e pela ciência; a segunda metade do século xx prolon-gou essa dinâmica pelo consumo e os meios de comunicação demassa.Destruição das práticas tradicionais, alienaçãoe descrença,vida à Iacarte,investimento excessivonos gozosprivados:organi-za-seuma nova cultura, na qual o consumismo, os cultos do corpoe do psicologismo, as paixões por autonomia e realização indivi-duais fizeram da relação consigo mesmo uma dimensão dotadade um relevoexcepcional.Narcisoé sua figura emblemática.

Esse é o inventário. Agora resta interrogar-se sobre a ade-quação dos modelos aos fatos observáveis,avaliar a fecundidadedesses fios de Ariadne, confrontando-os com asmudanças ocor-ridas na fase III. Aonde nos leva a corrida desenfreada à felicida-

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de privada? Condena-nos a sofrer permanentemente o suplíciode Tântalo?A cultura que se organiza se desenha sob a forma dosensualismo transbordante ou da descorporificação dos gozos?Civilização da eficácia generalizada ou liberação do prazer dossentidos? Novo carpediem ou escalada da dificuldade de viver?Ou melhor: essespares de oposições são realmente pertinentes?E o que se dá com todos esses obstáculos à felicidade que são afrustração, a decepção, a inveja?Repete-se, depois de Saint-Just,que a felicidadeé uma idéia nova na Europa, mas como pensá-Iaquando a utopia política se torna evangelho ou condicionamen-to sanitário, culto prestado ao maior bem-estar, aos lazeres e aosdivertimentos? Como seexplica,ao mesmo tempo, que a melho-ria contínua das condições de vida material não ocasione de mo-do algum a redução do "mal-estar na civilização"? O paradoxomaior, ei-Io: as satisfações vividas são mais numerosas do quenunca, aalegria de viver fica estagnada ou até recua; a felicidade

parece continuar inacessívelenquanto temos, ao menos aparen-temente, mais oportunidades de lhe colher os frutos. Esse estadonão nos aproxima nem do inferno nem do paraíso: define sim-plesmente o momento da felicidade paradoxal, da qual se dese-jaria tentar aqui descreveras sombras, mas também as luzes.

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7.Penía:gozos materiais,insatisfação existencial

A civilização materialista jamais deixou de ser objeto de in-contáveis críticas emanadas das mais diversas famílias de pensa-mento. As correntes cristãs tradicionais acusaram-na de arruinara fé e as obrigações religiosas. Os "republicanos", a começar porRousseau, reprovaram o luxo e as comodidades da vida, culpa-dos de corromper os costumes e as virtudes cívicas. Os raciona-listas criticaram a futilidade da moda, o supérfluo e o desperdí-cio das sociedades de abundância. Os pensadores aristocráticosou elitistas exprimiram todo o desprezo que lhes inspira uma cul-tura "vulgar" que faz triunfar as mais medíocres paixões. Os teó-ricos marxistas, esses lançaram suas flechas contra o capitalismo

da opulência, assimilado a um novo ópio das massas, a uma má-quina econômica produtora de falsas necessidades, de passivida-de alienante e de solidão impotente.

A essas críticas "externas" acrescentaram-se críticas "inter-nas", denunciando a impostura da felicidade mercantil, a incapa-cidade das sociedades ricas de contentar realmente os homens.

Pois, prometendo o paraíso dos gozos do ter, o mundo da mer-

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cadoria não cessa, na realidade, de orquestrar as frustrações, ca-rências e decepções da maioria. A euforia está em cartaz, a deso-lação dos seres progride todo dia um pouco mais. Opulência ma-terial, déficit da felicidade; proliferação dos bens consumíveis,espiral da penúria: a sociedade de hiperconsumo é aquela em queas insatisfações crescem mais depressa que as ofertas de felicida-de. Consome-se mais, mas vive-se menos; quanto mais explodemos apetites de aquisição, mais se aprofundam os descontentamen-tos individuais. Desorientação, desapontamento, desilusão, de-sencanto, tédio, nova pobreza: o universo mercantilizado agravametodicamente o mal do homem, deixando-o em estado de in-satisfação irredutível. Assim, Penía erige-se em figura emblemá-tica do hiperconsumidor, em símbolo do "trágico" da opulência.

Mas de que tragédia se trata, exatamente? Em que medida oindivíduo contemporâneo é esmagado pela excrescência dos ob-jetos e dos divertimentos? Enquanto novas salvas são disparadascontra a cultura comercial e são heroicizados os detratores da pu-blicidade, não é inútil revisitar Penía, tentando identificar maisde perto os contornos da "maldição da abundância':

DA DECEPÇÃO

Ao longo da fase II, os melhores observadores já notavamque a elevação do nível de vida, em vez de ser acompanhada dealegria e de entusiasmo, antes causava tristeza e insatisfação damaioria. Essa constatação continua atual. Como justificá-Ia? Porque o consumidor das regiões opulentas experimenta sentimen-tos de frustração e de descontentamento crescentes? Por que aalegria de viver do Homo consumericus não segue a mesma ten-dência do bem-estar material?

Sobre essas questões, a famosa tese de Scitovsky não é des-

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provida de interesse. Quais são as forças que impelem o consu-midor a desinteressar-se por um bem ou um serviço para adqui-rir outros?, interroga -se o economista americano. Em grande parte,isso se deve, afirma ele, ao desejo de tentar experiências variadas,à necessidade de mudança e de novidade, constituindo esta umade nossas principais fontes de satisfação. 1 O fato é bem conheci-do: a banalidade entedia, para gozar ao máximo as coisas preci-samos do inabitual, da surpresa, de certo grau de inesperado. Sci-tovskyé um dos raros teóricos do consumo a ter levado a sérioas questões do prazer e do tédio: ao dar toda a importância à ne-cessidade de novidade como força motriz fundamental do Ho-mo consumans,ele conseguiu, com talento, tirar a reflexãodas tri-lhas batidas das problemáticas da distinção social.

Scitovskydistingue o prazer, como "bem positivo",do con-forto, como "bem negativo" resultante da eliminação do descon-forto. Nessa perspectiva, a falta de conforto é apresentada comoo que deve preceder o prazer: é preciso ter frio para apreciar ocalor da lareira, é preciso sentir fome para saborear uma boa me-sa. O homem é feito de tal maneira que lhe é impossível vivernum conforto completo gozando, ao mesmo tempo, um máxi-mo de prazer. Portanto, é inevitávelo conflito entre prazer e con-forto, exigindo o primeiro, para ser sentido, que o segundo nãoseja total. Daí o dilema em que se encontra o consumidor: ou oprazer em detrimento do conforto, ou um conforto perfeito, masem detrimento do prazer. Naturalmente, as comodidades mate-riais da vida no princípio proporcionam deleite,masbem depres-sa caem no domínio da rotina, aquilo de que desfrutamos regu-larmente torna-se cada vez um pouco menos atraente. Confortoe prazer, longe de confundir-se, excluemum ao outro.

Nas sociedades desenvolvidas,o antagonismo do conforto edo prazer adquire um relevoparticular, uma vezque elas privile-giam sistematicamente o conforto material, a funcionalidade, o

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ganho de tempo, a eliminação dos esforços físicos.Assim, insta-lam-se novos hábitos que levam os indivíduos a passar da buscado prazer à evitação do sofrimento. Nessas condições, o consu-midor médio vive não tanto com vista à satisfação proporciona-da pelos bens de conforto quanto para evitar os inconvenientesresultantes de seu abandono. A exemplo de um toxicômano, oconsumidor moderno acha-se em estado de dependência em re-lação ao conforto: é o desejo de evitar o incômodo e a frustraçãoprovocados pela interrupção de um hábito que o motiva muitomais que uma procura de satisfação suplementar.2 Certamente,somos beneficiados pelas facilidades técnicas, mas é à custa deuma redução da intensidade dos prazeres, sendo nossa vida con-fortável pobre em satisfaçõespositivas.Aosolhos de Scitovsky,aíse encontra uma das razões que explicam o fato de a elevaçãodobem-estar ser acompanhada por uma fraca modificação da feli-cidade dos consumidores.

Essacontradição entre conforto e prazer encontra uma ilus-tração exemplar nos Estados Unidos, onde o espírito puritanodas origens se perpetua. De fato, o trabalho e a obtenção do di-nheiro são mais valorizados que os gozos da vida; a frivolidade,os valores estéticos, a decoração de interior, os sabores condi-mentados, a vida cultural são objeto de uma desconfiança per-sistente.Nos EstadosUnidos, é a busca do conforto que comandaa atitude do consumidor: ali, os deleites da vida e a maximizaçãodas satisfaçõesnão são os fins primordiais da existência.3

Ao mesmo tempo, a fabricação em série cria produtos pa-dronizados e monótonos que oferecem poucas estimulações va-riadas.A arquitetura funcional desenha cidades pouco atraentes;o mobiliário é desprovido de charme; os pratos preparados sãoinsípidos; os programas de televisão são entediantes por seremmuito similares. Fenômenos que assinalam a incapacidade daeconomia americana de fornecer uma proporção suficiente de

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novidades e de estimulações; daí uma "estrutura de consumo em-pobrecida",um aumento da redundância causadora de tédio e demonotonia.4 Assim é essa"economia sem alegria" que não con-segue dar o prazer máximo, nem elevar a felicidade dos cousu-midores.

Consumo e decepção

A.Hirschman levou adiante essa análise, enfatizando a de-

cepção apresentada como elemento constitutivo da experiênciahumana. Porque está na natureza do homem ser insatisfeito e im-possível de contentar e porque todo um conjunto de bens mer-cantis se mostra incapaz de trazer o gênero de satisfações que seespera deles,as experiências de consumo estão na origem demui-tas decepções. Nessa perspectiva, o importante é determinar ospotenciais, maiores ou menores, de decepções e de satisfaçõesque caracterizam as diferentes categorias de aquisições mercan-tis. A esse respeito, Hirschman observa que os "bens de fato nãoduráveis" (o beber e o comer) são notáveis por proporcionar pra-zeres intensos, indefinidamente renováveis, sendo sobretudo re-sistentes à decepção. Em compensação, muitos bens duráveis(aquecimento automático, equipamentos de banheiro, refrigera-dor) são eminentemente propícios à decepção por ocasionaremprazeres apenas no momento da aquisição ou do primeiro fun-cionamento: depois disso, não asseguram mais que um confortosem alegria. Elessão evidentes, não se pensa mais neles. Da mes-ma maneira, os serviços (saúde, educação, lazeres) expõem à de-cepção, em particular por causa da degradação de sua qualidademédia ou de uma qualidade inferior às expectativas.5

Expostos a essas insatisfações, como os consumidores rea-gem?Uma primeira atitude consiste, naturalmente, em procurarnovos objetos de consumo. Uma segunda, em culpar mais a si

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próprios que aos serviços, a exemplo dos pacientes em situaçãode tratamento psicoterápico ineficaz: a decepção em relação a simesmo substitui, então, a causada pelos produtos. Existeum ter-ceiro caminho que leva a questionar os dados sociais e políticosexistentes, por meio do combate e da ação pública: é o "tomar apalavra",segundo a expressão empregada por Hirschman.6

A vocação do conceito de decepção não é apenas de forne-cer um ponto de vista sobre as experiências privadas de consu-mo, é também de tornar mais inteligíveisas oscilaçõesde tendên-cia que se manifestam nos comportamentos coletivos. Comoexplicar o fato de que nossas sociedades sejam testemunhas debruscas mudanças de preferência em relaçãoao eixoprivado/pú-blico? Por que, depois de um ciclo dominado pela busca da feli-cidade privada, vemos desenvolver-se um período marcado pe-las paixões públicas?Hirschman desenvolvea hipótese de que aspassagens da esfera privada para a arena pública podem ser ex-plicadas, ao menos parcialmente, a partir da decepção que expe-rimentam os consumidores. Frustrados de prazeres, desconten-tes, contrariados, os consumidores desviam-se da procura dafelicidade privada e voltam-se para a ação pública.7Aderindo aum movimento de protesto, mobilizando-se por uma causa co-letiva,os indivíduos buscam um outro caminho da felicidadequesupostamente lhes evite as frustrações de uma existência pura-mente egoístae privada.

Por mais estimulantes que sejam, essas análises levantammuitas questões. Que lugar ocupa de fato a decepção na expe-riência do consumidor hipermoderno? É verdade que ela se es-palha na proporção em que se difundem os bens duráveis?Nin-guém discordará disto: muitos dessesbens já não proporcionamprazeres depois dos primeiros tempos de utilização.Mas trata-sede fontes de decepção?Tomarei a liberdade de duvidar disso. Defato, raros são os indivíduos que estão contra essesbens pelo mo-

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tivo de que não trariam mais que conforto e quase nenhum pra-zer.Averdade é antes que não se presta mais atenção neles, o queé bem diferente. Pouco mau humor e amargura: simplesmente ahabituação vagamente indiferente do consumidor.

Afinal,a aquisição de bens duráveis deixa atrás de si um ras-tro surpreendentemente levede decepçõese de frustrações. O fe-nômeno é notável por contrastar tanto com o espírito geral daépoca: de fato, em nossos dias, o que não é objeto de suspeita ede protesto? Daí em diante, os cidadãos declaram-se maciçamen-'te desapontados com os partidos políticos, o Estado, os sindica-tos, a empresa, o trabalho, as mídias. Em compensação, os bensduráveis escapam, no essencial, a esses ressentimentos. Quandoo descontentamento existe, e ele existe, não depende tanto dacontradição entre conforto e prazer quanto da situação financei-ra do consumidor, da insuficiênciado poder de compra, da obri-gação de limitar despesas.A insatisfaçãomaior resulta não de umexcessode conforto que sufoca o prazer, mas do hiperconsumo edas privações decorrentes.

Adecepção em relaçãoàs"coisas"émais superficial que pro-funda; é, sobretudo, um fenômeno mais retórico que emocional.8Mesmo nos mais belos momentos da contracultura, só uma pe-quena minoria se afastou dos gozos materiais. No final das con-tas, nunca houve realmomento de desafetoou de hostilidade ma-ciça em relação às atividades de consumo mercantil. Enquanto aideologia dominante maldizia em altos brados o fetichismo damercadoria, as aspirações consumistas seguiam alegremente seucurso.

Seo consumidor de produtos duráveis experimenta, no to-tal, poucos sentimentos de decepção é porque a relação com oobjeto utilitário é acompanhada por uma expectativa limitada,pontual, não abarcando o todo da existência. Ninguém jamaisimaginou de fato que um objeto pode mudar a vida e ser a chave

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da felicidade. Da aquisição das coisas espera-se um conforto su-plementar e instantes de prazer: nada mais. Assim, a defasagementre a expectativa e a realidade, mesmo que exista, raramente éprodutora de decepção abissal.

Um segundo fator explica por que os indivíduos renunciamtão pouco ao universo das mercadorias. É que, em nossas socie-dades, o sistema dos objetos é completamente estruturado pelalógica-moda, em outras palavras, pelos princípios de diversifica-ção marginal e de renovação perpétua. Mesmo que as mudançasnem sempre sejam das mais espetaculares, não é menos verdadeque o universo dos bens de consumo funciona como um sistema

de novidades permanentes. É porque "sempre acontece algo" denovo que a oferta mercantil é capaz de proporcionar mais expe-riências de prazer que de enfastiamento. É preciso relativizar aantinomia do conforto e do prazer: considerada globalmente, aera do conforto consumista não cessa de oferecer estimulaçãopor meio da mudança, das possibilidades de experiências de pra-zer e de "viagens" ligadas à novidade incessante dos produtos. Oscríticos da sociedade do bem-estar de massa freqüentemente ale-garam as questões do "pseudogozo" (Debord), da frustração e daansiedade: fizeram demasiado pouco-caso de seu poder de novi-dade como fonte de satisfações bem reais. A estrutura de modado hiperconsumo impede que nele se reconheça o inimigo da es-timulação e do prazer detectado pelos teóricos da decepção e daeconomia sem alegria. O que é sentido é menos o choque da de-cepção que a excitação e a satisfação de experimentar mudançassempre renovadas em nossos modos de vida. Scitovsky pôs bemem evidência a necessidade de novidade que anima o neoconsu-midor: talvez tenha subestimado a capacidade das economias hi-perdesenvolvidas de corresponder a essa expectativa.

E amanhã? De um lado, os objetos têm tendência a ofereceruma maior confiabilidade e melhores qualidades técnicas, o que

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seca uma das fontes da decepção. De outro lado, a informática ea eletrônica permitem cada vezmais pôr em funcionamento ob-jetos que proporcionam emoções e prazeres renovados, uma vezque o consumidor se encontra em situação de atividade e de in-teratividade, de busca e de troca: conseqüentemente, a parte da.estimulação prevalece sobre a do conforto dito passivo. É assimque, com o desenvolvimento dos "objetos de comunicação",o po-tencial de decepção dos objetos duráveis tem mais probabilidadede decrescer que de progredir.

Os novos vetares da decepção

Estas reflexões não têm por objetivo defender a tese, eviden-temente falsa, segundo a qual o consumidor estaria como por mi-lagre protegido da experiência da decepção. Esta decerto existe, emesmo em enorme escala: simplesmente, ela já não se deixa pen-sar no quadro fixado por Hirschman. É notável, de fato, que asdecepções, em nossos dias, são menos provocadas pelos bens du-ráveis que pelos bens fungíveis, em particular pela alimentação.Para prová-Io, as queixas que se multiplicam contra os alimentosindustrializados, contra as frutas e os legumes sem sabor. E as re-feições feitas no restaurante estão longe de sempre despertar en-tusiasmo. Além disso, sabe-se quanto os regimes de emagreci-mento são com freqüência seguidos de decepção por causa dasrecuperações de peso. Nas sociedades em que o excesso de peso évivido como um drama insuportável, em que as práticas de regi-me se propagam, a relação com a alimentação torna-se uma fon-te permanente de ansiedade, de desencorajamento, de sentimen-to de fracasso pessoal. O lugar privilegiado que ocupavam, aindahá pouco, os produtos alimentares em matéria de resistência àdecepção desapareceu: ei-Ios, agora, mais causadores de amargu-ra e desapontamento que os objetos técnicos.

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Acrescentemos que os bens coletivos e as experiências deconsumo no espaçopúblico ocasionam mais freqüentemente de-I

cepções que a utilização dos bens privados. Dão testemunho dis-so os engarrafamentos de trânsito, os incômodos sonoros, a po-luição atmosférica. Mas também as paisagens desfiguradas pelourbanismo, os litorais concretados, as praias superlotadas e po-luídas, os locais turísticos invadidos pelos visitantes, as conversastelefônicas indelicadas nos lugares públicos. Deve-se concluir daíque os custos do bem-estar prevalecem sobre as vantagens, osdissabores sobre as satisfações? Se essa apreciação é discutível, éporque não distingue o bastante a relação com os bens privadose a relação com os bens públicos. Na verdade, só o consumo dosoutros e seus efeitos nos incomodam; o conforto privado de quegozamos, esse é acompanhado por um grande sentimento de sa-tisfação. Gozo privado, desconforto público, eis o que experimen-ta cada vez mais o consumidor da fase m.

Mas é sobretudo do setor terciário que nascem os mais fre-qüentes desapontamentos do hiperconsumidor. Nada de sur-preendente nisso, já que a sociedade pós-industrial se caracterizapela evolução de um sistema dominado pela produção de bensmateriais para uma economia de serviços. Quanto menos a com-pra de bens materiais é decepcionante, mais o acesso aos serviçoso é. Isso porque o que é comprado implica a relação com pessoas,a qualidade mais que a quantidade, a experiência emocional maisque a estrita funcionalidade. Em nossas sociedades, o conflito nãose situa entre conforto e prazer, mas entre a expectativa de umasatisfação e um serviço considerado medíocre. O hiperconsumi-dor sofre menos de ausência de estimulações que de prestaçõesnão correspondentes às suas exigências de qualidade, aos seus de-sejos de sensações e de evasões, de formação e de distração.

É significativo que, hoje, as queixas recaiam muito mais so-bre o sistema escolar ou os serviços médicos que sobre os obje-

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tos. São muitos os pais de alunos que se queixam da falta de au-toridade dos professores, da heterogeneidade das classes,do ab-senteísmodos docentes,do nível"decadente".Paralelamente,mui-tos pacientes se declaram insatisfeitos com os médicos, osmedicamentos e os cuidados que recebem. Protestam contra osprazos de admissão nos hospitais, deploram a má qualidade doscuidados oferecidos nos serviços de urgência, a ausência de diá-logo com seu médico, a falta de "eficácia"dos medicamentos psi-cotrópicos; consideram-se mal informados em matéria de pre-venção e reúnem-se às vezes em movimento de consumidorespara defender seus direitos. Éo que sechama "o paradoxo da saú-de": nunca o nível de saúde foi tão elevado, nunca as dúvidas eas insatisfaçõesforam tão expressas.

No domínio da cultura, o potencial de decepção é tambémparticularmente elevado.Ao longo da fase li, os observadores re-provavam a degradação da qualidade dos objetos, o déficit de es-tilo, a mediocridade funcional das mercadorias seriais. Em nos-sos dias, a crítica dos programas de televisão suplanta em muitoa da engenhoca e do supermercado; critica-semais a torrente pu-blicitária que a própria moda. Um vasto público faz um julga-mento negativo sobre a capacidade das mídias de tratar os pro-blemas importantes e dar conta objetivamente dos fatos.Lastima-se a futilidade da imprensa de celebridades,a multipli-cação dos livros insignificantes, a situação do debate intelectualtornado inexpressivo.Asmúsicas jovens (rap, techno)despertamrejeição e tédio nos adultos. Assiste-se,ao mesmo tempo, a vio-lentas polêmicas ligadas à arte contemporânea, apresentada co-mo triunfo da impostura, do vazio, do "qualquer coisa".9Na fase1Il,os produtos de sentido alimentam infinitamente mais o desa-pontamento dos consumidores que os produtos utilitários.

Voltemos à televisão.Sabe-se que, desde o aparecimento docontrole remoto, o zapping tornou-se uma prática tão regular

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quanto geral. Sem dúvida, os telespectadores zapeiam para evi-tar a publicidade, mas o fazem também para procurar "outra coi-sa': encontrar um programa que os cative mais. Como não reco-nhecer nesse fenômeno a expressão da insatisfação, da decepção,da irritabilidade de que o público é vítima? Se a mudança de ca-nal é tão freqüente, é porque um sentimento de tédio dominamais ou menos o espectador, é porque uma decepção, por certosem grande profundidade e no entanto real, se aloja quase estru-turalmente na relação com a telinha.

Essa situação é inédita. Nas sociedades tradicionais, a vidamaterial era difícil, muitas vezes fonte de apreensões e de iras (ob-sessão com a penúria, medo de morrer de fome, revoltas contraa sobrecarga fiscal), mas a ordem cultural, fortemente interiori-zada, não despertava nenhuma rejeição, nenhum enfastiamento.Sob muitos aspectos, essa configuração inverteu-se: daí em dian-te, quanto mais se multiplicam as satisfações materiais, mais pro-gridem as decepções culturais.

Vida profissional, vida sentimental, vida malograda

Mas o consumo é o melhor ângulo de observação paraapreender a decepção hipermoderna? Certamente não. É em ou-tras esferas que ela se manifesta com mais intensidade: a vida pro-fissional e a vida afetiva constituem seus principais vetores.

Dadas a desregulamentação do mercado de trabalho e a pre-carização dos empregos, a esfera profissional está na origem deuma maré crescente de sentimentos de insegurança, de desorien-tação, de dúvidas sobre si. Mas a nova ordem liberal não explicapor si só esses fenômenos de desencorajamento: a cultura con-sumista tem participação nisso. Pelo fato de ela ter rompido asidentidades e as culturas de classe, tudo se transfere para a res-ponsabilidade individual: por isso, ser excluído do mundo do tra-

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balho é cada vezmais sentido como deficiência e fracasso pes-soal. Entregue apenas a si, o indivíduo desarticulado vive comoum casopessoal o que é uma realidade econômica e social.A épo-ca vê confirmar-se a individualização do fracasso social, todas aspesquisas mostram como o desemprego obseda as consciênciasindividuais, põe em questão a identidade pessoal e social. O queantigamente era vivido como um destino de classeé experimen-tado como uma humilhação, uma vergonha individual. É assimque, no coração do planeta bem-estar, aumenta o sentimento deser inútil no mundo, de ter sido "usado" e depois "jogado fora",de ter falhado em tudo.

Paralelamente, as temáticas da frustração profissional e dosofrimento no trabalho ganham um novo destaque. Daí em dian-te, mesmo os executivos,em grande número, exprimem seu mal-estar e declaram-se descontentes, "desligados" da empresa, traí-dos na confiançaque depositavam nela,frustrados no que se refereà sua aspiração de realizar-se.Outros se queixam de um clima deurgência, de um nível de estresse elevado, de uma pressão consi-derável por resultados que prejudica o trabalho bem-feito, a "am-biência", a qualidade das relações interpessoais. E não é só isso:enquanto os níveis de formação se elevam, assiste-se a um forterecrudescimento dos empregos não qualificados, dos "biscates"- hoje, estes representam quase 25% do emprego assalariado naFrança - sem grande interesse,mal remunerados, sujeitos ao re-gime da precariedade e da flexibilidade, e preenchidos às vezespor diplomados. Trabalhos ingratos, que oferecempoucas possi-bilidades de promoção, que freqüentemente alimentam senti-mentos de frustração e novas formas de sofrimento. Temor dademissão, assédio moral, pobreza das tarefas, ceticismo em rela-ção à empresa, falta de reconhecimento: aprofunda-se o abismoentre as expectativas individualistas de realização subjetiva e aexperiência vivida profissional. Sob as promessas de felicidade

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da empresa de "nível superior" oculta-se o continente sombrioda ansiedade, da decepção, das ofensas ao eu. Como não ver queos desapontamentos ocasionados pelo consumo são bem peque-nos comparados aos que atormentam o homem no trabalho? Aárvore não deve esconder a floresta: "a economia sem alegria", éo universo profissional que a encarna essencialmente.

Decepção profissional a que se acrescenta uma onda de de-cepções de natureza comunicacional, sentimental e familiar. Poisa precarização atinge tanto a vida conjugal quanto a profissional.Aumento das separações, espiral dos divórcios, conflitos ligadosà guarda dos filhos, dificuldades de comunicação: o processo deindividualização é acompanhado por expectativas mais vivas navida conjugal, ao mesmo tempo que por uma proliferação de con-

o flitos e de decepções íntimas; quando tão-só o sentimento é a ba-se do casal, as rupturas, as crises relacionais, as desilusões se tor-nam o quinhão de todos. 10Assimcaminha a felicidadeparadoxal:quanto mais se exprimem as exigênciasde proximidade emocio-nal ede comunicação intensa,mais asdecepçõespontuam asexis-tências individuais.

Ao difundir em todo o corpo social o ideal de auto-realiza-ção, a sociedade de hiperconsumo exacerbou as discordânciasentre o desejávele o efetivo,o imaginário e o real, as aspirações ea experiência vivida cotidiana. Porque os modos de existência sedestradicionalizam, porque as vidas pessoais e profissionais setornam incertas e precárias, os motivos para sentir-se amargo,duvidar de si, fazer um julgamento negativo da própria vida semultiplicam: daí em diante, o indivíduo está destinado a passarde maneira mélisou menos regular pela experiência do sentimen-to de fracasso pessoal. Esta, naturalmente, não é específica daépoca: tudo levaa pensar, no entanto, que a civilizaçãohipermo-derna, remetendo cada vezmais o indivíduo apenas a si, fornecemais motivo para que ele sinta seus tormentos. A explosão das

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depressões e das ansiedades, os sintomas de degradação da auto-estima assinalam a nova vulnerabilidade do indivíduo, insepará-vel da civilização da felicidade. Os olhares negativos sobre si, osquestionamentos do valor de sua existênciapresente, o sentimen-to de ter estragado sua vida constituem cada vezmais uma dastendências do individualismo reflexivo: aí reside o malogro dafelicidadeparadoxal.

Os teóricos da sociedade de consumo estigmatizaram semdescanso o inferno dos desejosmaterialistas, a impostura da feli-cidade mercantil, a não-realização no consumível.Chegou o mo-mento de voltar a essas teses. Pois, se "trágico" existe, ele se achamenos, para a maioria, na escravidão às coisasque na relação ca-da vezmais difícil consigo e com os outros. De fato, somos me-nos esmagados pelo consumo que remetidos a nós mesmos; osgozos materiais são reais e diversos, mas se multiplicam apenasparalelamente às frustrações existenciais, às dúvidas e insatisfa-ções relativas a si. O malogro não é o do consumidor, ele diz res-peito ao indivíduo-sujeito e à sua existência íntima. Ironia daépoca: a civilizaçãoda hipermercadoria criou menos a alienaçãonas coisasdo que acentuou os desejos de ser um eu, a divisão desi consigo e de si com o outro, a dificuldade de existir como ser-sujeito.

DESEJOS, FRUSTRAÇÕES E PUBLICIDADE

Decepção,frustração: nos processosintentados contra o cos-mo consumista, a publicidade, como se sabe, ocupa um lugar n~primeira fila."Bombardeando" os consumidores, criando neces-sidades supérfluas, impulsionando continuamente novos desejosde aquisição, identificando a felicidade aos bens mercantis, a pu-blicidade é acusada não apenas de manipular-padronizar-creti-

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nizar as pessoas, mas também de ser uma armadilha diabólica,aprofundando indefinidamente a insatisfaçãodos indivíduos. Es-petáculo eufórico, ela contribui para propagar uma crônica mi-séria psicológica dos seres; sob seu reinado, Peníaé arremessadaa seu ponto culminante.

Esse potencial de frustração sistemática apóia-se em umanova configuração do poder da oferta econômica. A tese da "ca-deia invertida",caraaGalbraith, fornece-lheomodelo paradigmá-tico. Relembro brevemente seus termos. Nas economias opulen-tas, já não se trata apenas de produzir mercadorias, é imperativoprogramar as necessidades, descolar as compras do capricho dosgostos individuais e dos acasos,apoderando-se em grande escalada própria demanda. Controlar a esfera das necessidades,condi-cionar o consumidor, tirar-lhe o poder de decisãopara transferi-10à empresa, essaé a função da publicidade. Sufocando o consu-midor sob um dilúvio de imagens da felicidade,prometendo-lhesaúde e beleza, a publicidade é o que cria e recria as necessidadesque o aparelho produtivo procura satisfazer.Dirigido pelas téc-nicas de persuasão, o consumidor é despojado de toda verdadei-ra autonomia: a oferta e a comunicação mercantil é que detêm,daí em diante, o poder soberano. 11

Esse modelo teórico teve seu momento de glória na fase 11.Debord denunciava a essência totalitária das figuras da "socieda-de do espetáculo"; Henri Lefebvre falava de "sociedade terroris-ta" e de "cotidianidade programada";I2 Marcuse estigmatizava as"necessidades impostas" e a "satisfação repressiva". Com o desen-volvimento da sociedade de hiperconsumo, esses requisitóriosperderam sua virulência? Vemo-los antes revigorar-se no prolon-gamento das críticas à globalização e ao McWorld. Hoje, Fran-çois Brune assimila a publicidade a um "polvo" totalitário. Se-gundo Benjamin R. Barber, o desenvolvimento explosivo dapublicidade reflete e reforça o novo totalitarismo dos mercados.I3

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Outros não hesitam em mencionar um "fascismo sofr'a apode-rar-se de todas as dimensões da vida. Um pouco em toda parte,vozes elevam-se contra a "tirania das marcas", cuja mola princi-pal é o "condicionamento" publicitário. A publicidade continuaa aparecer não apenas como a chave de leitura dos mecanismosde frustração característicosdas novas sociedadesmercantis, mastambém como o símbolo das instituições que conseguem apo-derar-se dos homens, remodelar seu estilo de existência.

Esses ataques são justificados? Gostaríamos de nos dedicaraqui a reexaminá-Ios.Como pensar o lugar da publicidade à ho-ra do consumo-mundo? Qual poder conferir à máquina publici-tária, tanto sobre a organização dos modos de vida quanto sobreas satisfaçõese insatisfaçõesdo neoconsumidor?

A publicidade prometéica

A história da publicidade liga-se estruturalmente ao desen-volvimento da sociedade industrial e do consumo de massa. Aidade de ouro do anúncio comercial começa na metade do sécu-lo XIXe é por volta de 1880que são contratadas asprimeiras gran-des campanhas nacionais de marcas, orquestradas por agênciasespecializadas e destinadas a escoar os produtos fabricados emenorme série.

Uma nova etapa é transposta a partir dos anos 1920. En-quanto os suportes se multiplicam, os anúncios exploram temá-ticas e registros inéditos, que continuam em vigor em nossos dias:elogio da mulher moderna, maquiada e sedutora, culto da auto-realização, do conforto e dos lazeres, sacralização da juventude.Se a publicidade aparece como a ferramenta que permite aumen-tar o montante de negócios das empresas, é igualmente atribuí-da a ela a função de aculturar as massas à nascente sociedade deconsumo, difundindo um novo modo de vida centrado na aqui-

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siçãodos produtos mercantis.Derrubar os antigos costumes, apa-gar os estilos de vida rurais e particularistas, expulsar os velhospreconceitos, a aposta é educar as massas no dispêndio consu-midor, homogeneizar as mentalidades e as práticas, racionalizaros gostos e as atitudes. Instigando os desejos de consumo, des-culpabilizando o gosto pelo gasto, a publicidade teve a ambiçãode reorganizar completamente os modos de vida tradicionais:criou uma nova cultura cotidiana baseada numa visão mercanti-lizada da vida.14

Por isso,a publicidade apresenta-se como um dispositivo deessência modernista, isomorfo aos intuitos revolucionários dapolítica que afirma o pleno poder da sociedade sobre si própriae seu direito de definir-se,de organizar-se semrecorrer a um prin-cípio externo a elamesma. Assimcomo o Estado se deu o direitode reexaminar a sociedade,de reconstruí-Ia de ponta a ponta, ra-cionalmente e a despeito de todo fundamento transcendente, apublicidade empenhou-se em descolar os modos de vida da he-rança tradicional. Soberania do povo,poder publicitário: nos doiscasos, concretizou-se o mesmo processo de autonomização emface das forças normativas recebidas do passado ancestral. E, damesma maneira que houve, em nome do poder da vontade ge-ral, crescimento da autoridade política, houve também grandeprogressão da "mão visíveldos gestores",do poder econômico so-bre a sociedade. Por toda parte, paradoxalmente, a sociedade, aodispor de si própria, foi testemunha da dilatação dos poderes vi-sando construir uma ordem coletivaradicalmente nova, ou mes-mo um homem novo. Esseprocesso de destradicionalização e deracionalização da vida social define o empreendimento publici-tário, nas fasesI e lI, como um poder de tipo prometéico COllS-trutivista, paralelo aos projetos políticos e revolucionários mo-dernos.

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II

IExtensão do domínio publicitário

o que ocorre com a publicidade no estágio da hipermerca-doria? Sobmuitos aspectos, essa influência da publicidade sobrea sociedade não fezmais que ampliar-se. Não, aliás, sem que seobservem notáveis alterações na ordem das estratégias de comu-nicação. Sabe-se, em particular, que a publicidade propriamentedita não representa mais que um terço das despesas de comuni-caçãodas empresas;estas agora privilegiam o que se chama o "fo-ra das mídias": operações promocionais, relaçõespúblicas, mece-nato, patrocínio, marketing direto e relacional.Essedeslocamentode centro de gravidade levou por vezes a se alardear a emergên-cia de uma "sociedade pós-publicitária".No entanto, é nesse exa-to momento que a onda publicitária está em seu apogeu, tornan-do-se cada vezmais ostensiva e ambiciosa em seus objetivos.Queespaço escapa ainda à presença das marcas quando elas são visí-veis nas roupas e nas telas de computador, quando se infiltramnas conversastelefônicas,quando colonizam tanto os lugares pú-blicos quanto os lugares privados? As campanhas de promoçãoeram nacionais, daí em diante visam a um mercado planetárioabsorvido pelas grandes marcas e pelas normas da mercadoria-espetáculo. Recuo da publicidade "clássica"?Sem dúvida, desdeque se esclareça que o crescimento das despesas publicitáriasmundiais é superior em um terço ao da economia mundial; nosEstados Unidos, elas foram multiplicadas por quatro entre 1979e 1998.O resultado é que um indivíduo vê agora, ao que nos ga-rantem, mais de 2500 anúncios publicitários por dia. A era doturboconsumismo é inseparável da inflação ou da excrescênciapublicitária, do mundo como marca e como representação: elacoincide com o desaparecimento dos espaçosdesprovidos de sig-nos comerciais.15

Paralelamente, os objetivosda publicidade mostram-se mais

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ambiciosos; esta já não se contenta em ser o realce dos produtos,ei-Ia que exalta visões do mundo, passa mensagens, valores e"idéias" com vista à fidelização dos clientes: "Just do it" (Nike),"Be yourself" (Calvin Klein), "Think different" (Apple). Em ou-tros tempos, ela exibia a face radiante da mercadoria; vemo-Ia

pôr em cena a guerra, a aids, a pena de morte, o respeito pelomeio ambiente, o racismo, os direitos humanos. Não se trata maisapenas de estimular necessidades e reflexos condicionados, masde criar laços emocionais com a marca, tornando-se a promoçãoda imagem mais importante que a do produto. Expansão da pu-blicidade social e das visões de marca, o que leva seus inimigos adenunciar uma nova forma de maquinação comercial aparenta-da ao totalitarismo por sua vontade de tomar posse do próprioespaço mental.

Como duvidar do crescente poder da publicidade, dada aevolução dos comportamentos relativos ao corpo ou à moda? Asfeministas acertam no alvo quando assinalam a escalada da "ti-rania da beleza" (magreza, juventude) veiculada pelas publicida-des cosméticas, as revistas femininas, as imagens das top models.Daí, a ansiedade ou a insatisfação crescente das mulheres em re-lação ao corpo, a obsessão com a "linha", a expansão dos produ-tos de cuidados pessoais. A questão da alimentação é igualmenteafetada: hoje os nutricionistas culpam a publicidade, acusando-ade desequilibrar os comportamentos alimentares das crianças ede favorecer os excessos de peso. "Despotismo" publicitário ilus-trado ainda pelas fashion victims, pelos comportamentos dos ado-lescentes e mesmo das crianças em relação às marcas de roupasou de esporte: os jovens já não querem produtos, mas marcascujo sucesso está associado à força de intervenção publicitária.As tradições estão esgotadas; temos a publicidade e seu poder depromover normas de consumo, de influenciar um número cres-cente de comportamentos individuais e coletivos.

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No estágio III,a publicidade se imiscui em todos os interstí-cios da vida, inunda todos os continentes, apodera-se de todosos referenciais, tira partido de todos os registros. Mesmo que o"fora das mídias" reestruture as políticas de comunicação, o cer-to é que a publicidade parecemais onipresente e intrusiva do quenunca, não apenas pelo expansionismo das marcas, mas tambémem razão das políticas de sinergia comercial e do alongamentodo tempo médio passado diante da tela de televisão.Quanto a is-so, o importante não é tanto que a publicidade clássica seja su-plantada por outras estratégias de comunicação, mas que se de-senvolva um processo de promoção das marcas por todos osmeios, fazendo a forma ou a lógica publicitária - muito além,de fato, da publicidade canônica - entrar numa dinâmica diver-sificada, ininterrupta, hipertrófica.

A ilusão da onipotência

A formidável expansão das marcas provocou ressalvasseve-ras contra o que é apresentado como um "fascismocultural" aná-logo ao controle orwelliano do espaço mental e cultural. Diga-mos claramente: tanto quanto a idéia de um poder crescente domarketing é justa, a de um poder de tipo "totalitário" deveser re-cusada. Se a iniciativa pertence, pela força das circunstâncias, àoferta - só se pode escolher o que já existe -, não se deve con-cluir daí que o consumidor é um fantoche inteiramente fabrica-do pelos especialistas em comunicação. Assimilar o hiperconsu-midor a um indivíduo "hipnotizado", passivo,maleávelà vontadeé um profundo erro. Qualquer que sejao poder dos meios de per-suasão, o Homo consumericuscontinua a ser um ator, um sujeitocujos gostos e interesses,valores e predisposições filtram asmen-sagens a que está exposto. Se é preciso recusar a idéia de um po-der demiúrgico da publicidade, é porque o consumidor tria e se-

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leciona as solicitações que o assaltam, prestando atenção apenasao que está em ressonância com seus interesses, suas expectati-vas, suas preferências.16 O apreciador de praias bretãs é pouco re-ceptivo aos visuais que celebram as estâncias alpinas; se você nãogosta de uísque, nenhum anúncio jamais o convencerá a com-prá-Io. A publicidade propõe, o consumidor dispõe: ela tem po-deres, mas não tem todos os poderes. 17 E, se ela provoca frustra-ções, é apenas nos limites do que corresponde aos gostos doconsumidor.

De acordo, se dirá, mas a força decuplicada da publicidadenão é por isso menos evidente através de uma infinidade de fe-nômenos. Aprová-Io,a amplitude socialdas compulsões de com-pra, bem como a espiral das famílias excessivamente endivida-das: em 2003, estimava-se em 500 mil o número das famíliasmuito endividadas que eram objeto de um processo e 1,5milhãode famílias estava em situação de endividamento excessivo.Aomesmo tempo, um consumidor em dois reconhecia ceder regu-larmente ao prazer da compra por "entusiasmo repentino"; 30%a 60% dos artigos comprados nos supermercados e nos centroscomerciais são compras impulsivas.18Escaladadas falências pes-soais,"febrecompradora",shopping"bulímico':compras impulsi-vas,"patologias"que não deixamde ter ligaçãocomassolicitaçõesda publicidade e os sentimentos de urgência que ela prodigaliza.Essaseria a "tirania" da ordem publicitária que, propagando umacultura da satisfação imediata dos desejos, conseguiria desestru-turar a organização psíquica dos consumidores, desarmar o ho-mem em faceda expectativa e da frustração, privá-Io de distân-cia entre seu ser e as seduções mercantis.

Essa leitura "paranóica" da publicidade deve ser posta emdiscussão.A publicidade institui o reino frenético do imediatis-mo e da atividade consumidora irreprimível? Nesse caso, comocompreender que, na Europa, a taxa de poupança das famílias se

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mantenha em um nível relativamente elevado:da ordem de 16%do rendimento disponível?19O que, de resto, levou certos econo-mistas e dirigentes políticos a deplorar não um consumo desen-freado, mas sua insuficiência!Maré das despesas por vício?Ava-liam-se os compradores compulsivos em 4% dapopulação geral.20A França recenseia mais de 23 milhões de lares, mas o númerode famílias excessivamente endividadas, que são objeto de umprocesso, é da ordem de 500 mil. Não seria aos milhões que de-veriam ser contadas se a publicidade tivesseo superpoder que lheé creditado? Esclareçamos,aliás, que as novas falências civisnãopodem ser explicadas apenas pelas incitações mercantis: consi-dera-se que mais de 60% dos muito endividados, na França, o es-tão não por causa de um superconsumo de créditos,mas por aci-dentes ocorridos na vida (desemprego, doença, divórcio, viuvez,separação).Aosuperendividamento "ativo",que sanciona um usoimoderado do crédito, sucede cada vezmais um superendivida-mento "passivo"desencadeado por acontecimentos externos fu-nestos. "Orgias" de consumo, febres de compra, sentimento de"não viver sem comprar", desejos incontroláveis que provocamcatástrofes financeiras, todos esses fenômenos são bem reais: éforçoso observar, contudo, que estão longe de se apresentar co-mo um sismo geral que submerge as terras do hiperconsumo.

O notável, afinal, não é tanto a escaladadas pulsões de com-pra incontroladas quanto os limites nos quais elas se estendem.A preocupação com o futuro, a fragilidade do mercado de em-prego, a poupança de precaução, a questão do financiamento dasaposentadorias têm manifestamente mais peso sobre os compor-tamentos que as incitações publicitárias a consumir sem demo-ra. Seos distúrbios do controle dos impulsos de compra inega-velmente sedesenvolvem,elespermanecem, apesar de tudo, comofenômenos de dimensões sociais reduzidas. Evidentemente, oprincípio de realidade resistiu às sereias da mercadoria: o "irra-

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cional" publicitário não constitui o túmulo da "racionalidade"de geometria variável do hiperconsumidor. Ao contrário de umaidéia estabelecida, o poder da publicidade e da oferta em geralpara provocar apetites incontroláveis de consumo não é de mo-do algum hiperbólico. Não se trata de negar a influência exerci-da pela publicidade: evitemos, simplesmente, assimilá-Ia à oni-potência de um BigBrother.

A despeito de todo o seu arsenal sedutor, a ascendência dapublicidade sobre as almas permanece, no final das contas, redu-zida. Não é necessário relembrar que as religiões e as grandesideologias políticas conseguiram com muito mais sucesso "en-louquecer" o desejo,dirigir ao extremo os comportamentos pri-vados e coletivos.Por semostrar impotente para moldar de pontaa ponta os gostos e as aspirações,para desequilibrar maciçamen-te o "realismo"dos consumidores, a publicidade aparenta-se maisa um poder moderado que a uma dominação totalitária.21

consumistas, espontaneamente sedentas de compras e de eva-sões, de novidades e de maior bem-estar. Assim, a publicidadedeixou de ser um agente de invenção de um estilo de existênciaradicalmente novo.

A um trabalho de erradicação dos costumes ancestrais se-guiu-se um processo de reprodução ampliada de atitudes já emação: a "publicidade-causa" cedeu o passo à "publicidade-expres-são-intensificação" das demandas sociais consumistas. Não setrata maisde inculcarum novoethos,demodernizaremmarchaforçada os comportamentos, mas apenas de promover marcas eganhar participações de mercado em um cosmo ultracompetiti-vo inteiramente impregnado de consumismo. A sociedade de hi-perconsumo ou o fim do tempo da publicidade vanguardista comambição hercúlea. Daí esta constatação paradoxal: de um lado, opoder de influência da publicidade é cada vezmaior; do outro, écada vezmais fraco.

As tendências em atividade na publicidade contemporâneaassinalam igualmente o refluxo de sua antiga dimensão pedagó-gica e construtivista. O modelo clássico da publicidade - a fa-mosa copystrategy- consistia em martelar uma mensagem quegabava os benefícios funcionais ou psicológicos de um produto.Nesse dispositivo,o consumidor era assimilado a um sujeito pas-sivoa ser "condicionado" pela repetição de slogans simples e bre-ves. Embora ainda atual, essa lógica agora se encontra em con-corrência com novas publicidades que levam em conta oaparecimento do hiperconsumidor educado no consumo, satu-rado de produtos semelhantes, freqüentemente alérgico ao bom-bardeio publicitário. Daí, novas orientações: de realce do produ-to que era, a publicidade se torna, aqui e ali, espetáculo criativoatuante em uma infinidade de novos registros: o sentido não li-teral, o pastiche, o desvio,a impertinência, asmodas do momen-to, o emocional, a derrisão, a provocação. Assim, a publicidade

A publicidade-reflexo

Na fasem, a publicidade não só não é onipotente, como tam-bém, sob muitos aspectos, seu papel histórico e social está embaixa. Instalou-se uma nova era da publicidade, que se afasta ca-da dia um pouco mais de seu momento heróico. O novo resideno fato de que a publicidade funciona em território conquista-do, não encontrando mais à sua frente reaismodelos de vida an-tagonistas: ei-Ia livre do imperativo de adestrar as massas na sa-tisfação mercantil das necessidades. Já não é preciso arrancar aspopulações às normas de socialização heterogêneas ao sistemada mercadoria, inculcar-Ihes o desejo dos lazeres, do conforto edas novidades. Tudo isso se impõe agora como uma evidência:"alfabetizadas" na linguagem dos bens mercantis, alimentadascom o leite da mercadoria-espetáculo, asmassas são de imediato

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hipermoderna procura menos celebrar o produto que inovar, co-mover, distrair, rejuvenescer a imagem, interpelar o consumi-dor.22O objetivonão émais dirigir mecânica ou psicologicamenteum consumidor rebaixado à condição de objeto, mas estabeleceruma relação de conivência,jogar com o público, fazê-Iocompar-tilhar um sistema de valores, criar uma proximidade emocionalou um laço de cumplicidade. Damesma maneira que na arte mo-derna o observador se impõe como co-autor da obra, a publici-dade criativa apela a um público mais ativo,mais cúmplice, edu-cado na cultura midiática. Toda uma porção da publicidade jogaconsigo mesma como joga com o produto e o consumidor-ator.O estágio "primitivo" ou behaviorista da publicidade perdeu ofôlego: assistimos ao desenvolvimento de seu momento irônico,reflexivo,emocional.

Os adversários da publicidade se enfurecem porque ela pro-cura, em suas últimas tendências, difundir valores e mensagensde sentido, tal como um sistema totalitário. A acusação é forte, aargumentação, frágil.Onde existe dominação despótica quandoo marketing dos valoresnão fazmais que seguir a ideologia triun-fante dos direitos humanos, da moralidade mínima ou da ecolo-gia?Controle da cultura pelo poder da marca?Estamoslonge dis-so, a publicidade exalta apenas o que é consenso.23Quanto maisa comunicação se pretende criativa e social, mais põe em cenasistemasreferenciaisque ela não constituiu propriamente, já con-sagrados pelo corpo social.Apublicidade hipermoderna aparecemais como uma caixa de ressonância que como um agente detransformação social e cultural. Ela educava o consumidor, ago-ra o reflete. O Leviatã publicitário é uma ilusão que oculta umpoder que deixou de inventar novas maneiras de viver.

Apublicidade, naturalmente, procura estimular os desejosde consumo, mas só o consegue surfando nas tendências da épo-ca.Asmarcas, é verdade, estão cada vezmais no coração da vida

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cotidiana, tanto que as próprias crianças pensam e se orientamem termos de marcas. Mas dizer que a cultura comercial é oni-presente não significa que seja onipotente e criadora de cultura.ANike conseguiu elevarMichael Jordan àposição de estrelamun-dial, mas esse sucesso foi construído sobre um fundo de paixõescoletivaspela competição esportiva. Amarca não inventou nadaem matéria de estilo de vida: contentou-se em transformar emestrela uma figura correspondente aos gostos pelo esporte-espe-táculo. Nos anos 1920,a publicidade enalteceu a juventude con-tra a autoridade tradicional da família.Hoje, asmarcas é que sãoobrigadas a rejuvenescer sua imagem para ficar em sintonia comos consumidores. Contrariamente às aparências, a publicidadeadapta-se mais à sensibilidade social do que impõe novos cami-nhos. Quanto mais aumenta seu poder de incitação, mais está àescuta da sociedade e menos tem poder demiúrgico.

De resto, os comportamentos do hiperconsumidor deitama perder a temática dos plenos poderes do marketing e da publi-cidade. Pois jamais os consumidores se mostraram tão descon-fiados, voláteis, infiéis àsmarcas. O gosto generalizado pelas no-vidades, a hiperescolha, a fragmentação das modas, a saturaçãodas necessidades primárias, tudo isso desenvolveu o zapping, amobilidade, os amores e desamores em matéria de marcas. Mes-mo asmarcas cultuadas são vítimas de desinteresse, de rejeiçõespor vezes rápidas, a despeito de orçamentos consideráveis desti-nados à comunicação.A época das megamarcas mundiais é tam-bém a de sua vulnerabilidade ligada à instabilidade crescente doturboconsumidor. Assimcomo as grandes organizações políticase religiosas registram o choque da fluidez das filiações,das cren-ças e das práticas, asmarcas estão cada vezmais expostas aos de-sejos erráticos do neoconsumidor. A fase III baseia-se menos emum consumidor hipnotizado pela magia das marcas que em umconsumidor distanciado e nômade. Seessamudança não signifi-

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ca soberania do consumidor, ao menos permite esvaziar de suasubstância o paradigma da onipotência publicitária.

TRAGÉDIA DO SUPERCONSUMO?

A partir dos anos 1960, uma temática encontra amplo ecoentre os intelectuais: trata-se da famosa "maldição da abundân-cia".Os anátemas lançados contra a sociedade afluente florescem,alimentando-se da idéia segundo a qual a "mecânica infernal"das necessidades condena o consumidor a viver num estado decarência perpétua, a ver recuar a quietude e o gozo verdadeiroem favor de uma insatisfação crônica. Encerrado no universo dascoisas, experimentando uma sede inextinguível de gozos e de no-vidades, desejando sempre mais do que pode oferecer a si, o neo-consumidor é escravo de um jogo com balanço negativo, no qualas insatisfações não fazem mais que aprofundar-se. Tão logo umanecessidade é satisfeita, surge uma nova, reativando o sentimen-to de privação e de pauperização psicológica. É assim que a so-ciedade do desejo nos afasta tanto mais do estado de plenitudequanto multiplica as oportunidades do prazer. Miséria da abun-dância, obsessão com Penía: sob o Éden da profusão oculta-seum novo tonel das Danaides, orquestrando a frustração ilimita-da de todos. Um neotrágico apoderou-se de nossas vidas: o trá-gico da "satisfação perpetuamente insatisfeita".24

O contexto econômico e social mudou, a idéia de "horror"

consumista prossegue. Esta se acha expressa com regularidade,com mais ou menos violência, na imprensa, nas correntes anti-publicitárias, nos movimentos New Age, entre os intelectuais con-sumofóbicos: tornou-se sobretudo um reflexo intelectual que sedesencadeia quase automaticamente ao contato com o estímulo

"sociedade de consumo". Será por isso justa? E até que ponto? É

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verdade que o hiperconsumidor está condenado, como Tântalo,a sofrer eternamente o suplício dos gozos que se esquivam, a vi-ver num estado de frustração invencível?

Desconfiemos da embriaguez dos conceitos e da fácil ten-dência ao catastrofismo. Basta reportar-se às experiências da vi-da cotidiana para deitar a perder seriamente a problemática do"trágico" do consumo. Em período de superconsumo, sonha-sesempre, ao que nos dizem, com o que não se possui, com o que émais belo e mais caro: em vez do contentamento, cada um sofrepor não poder ter acesso aos bens de que os outros desfrutam.Isso é tão certo assim?Não possuir uma suntuosa villa leva a nãogostar do apartamento em que sevive?A quem faremos crer queas marcas de luxo tornam o consumidor mais modesto insatis-feito com o que possui? O fato de não se rodar num BMW não im-pede de modo algum o prazer de trocar de carro. As agências deturismo podem anunciar viagens feéricas: não ter os meios de fa-zê-Ias não torna as férias insuportáveis. Com um orçamento maisreduzido, os turistas vão a outros lugares, menos distantes, a lo-cais menos míticos, sem que isso estrague minimamente a felici-dade das férias. É preciso recusar a idéia de maldição ligada aosuperconsumo: uma satisfação real é evidentemente possível, in-clusive num estado de superexcitação das necessidades. E, se exis-te sentimento de privação, é forçoso constatar que ele está longede se apresentar sistematicamente sob o signo do invencível.

A observação comum demonstra: o prazer não exige, paraser experimentado, coisas ou seres com qualidades excepcionais.Onde se viu que um homem ou uma mulher se sentia frustra-doCa) em sua vida amorosa porque seu namorado(a) não pare-cia um(a) top model ou um gênio? Basta que o outro tenha, aosnossos olhos, algum encanto para que a sedução se exerça: o pra-zer, então, é inteiro. O mesmo acontece na experiência do consu-mo: a satisfação é evidentemente possível fora do quadro do que

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fé mais belo e mais caro. Pois a satisfação do consumidor é pro-porcionada muito mais pela novidade e pelasmudanças que pe-lo valormercantil ou a qualidade intrínseca dos produtos. Aaqui-sição de um produto novo, ainda que de valor limitado, dá maissatisfaçãodo que a experiência de um meio superior, mas repeti-do e inalterado. Éassimque aaprovaçãopode ser completa,apesarda consciênciada relatividade do que possuímos ou adquirimos.Não é verdade que a vida na affluent society tome sistematica-mente ares de suplício de Tântalo: a idéia de que a privação ca-tastrófica é o quinhão do hiperconsumidor não é mais que umailustração, entre outras, das visõescatastróficas da modernidade.

Sabe-se que o apetite de consumir não conhece limites, asnecessidades estendem-se sistematicamente com o aumento dosrecursos. O fato é inegável, mas o interessante, é preciso acres-centar, é que, ao mesmo tempo, os desejos dos consumidores nãocostumam ir muito além do que eles podem plausivelmente tera esperança de poder adquirir. Há mais de trinta anos, as pesqui-sas confirmam: seja qual for o nível de seus recursos, os indiví-duos consideram aceitável um gasto que ultrapasse em cerca deum terço seus rendimentos efetivos.25De um lado, essa diferençaentre o real e o desejávelpode ser considerada importante; de ou-tro, ela é manifestamente pequena. Pois por que os indivíduosnão desejam cemou mil vezesmais do que seus rendimentos lhespermitem? Essaé a prova de que, se a oferta abundante cria umacarência ampliada, esta não se identifica com um poço sem fun-do. Por mais que as mercadorias acenem com paraísos ilimita-dos, os desejos dos consumidores, no total, não são hiperbólicos;as insatisfaçõespodem ser recorrentes, mas nem por isso tornamo presente insuportável ou catastrófico, permanecendo as aspi-rações,grossomodo,nos limites do "possível".O ajustamento dosníveis de aspirações às circunstâncias define melhor o hipercon-sumidor do que a excrescênciade Penía.

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A falta, o agir e os outros

Uma escola sociológica viu nesse ajustamento das necessi-dades aos recursos disponíveis a força do que é inculcado social-mente, a incorporação, pelos indivíduos, de gostos e apreciaçõesde classe que se inclinam a fazer da necessidade virtude, a amarfinalmente o que se tem, a manter uma relação realista com opossível.26 Essemodelo explicativo tem sua parcela de verdade.Mas não esgota a questão, em particular numa época marcadapela dissolução dos hábitos de classe, a redução da submissão ànecessidade, a difusão social das aspirações aos lazeres, ao bem-estar, ao luxo. Assim, é preciso relançar a pergunta: por que, emuma civilização de provocação permanente do desejo, o senti-mento de falta não apresenta uma amplitude desmesurada? Porque a escalada das necessidades não se associa a um avanço ver-tiginoso de Penía?

Para a maioria de nós, a despeito da ambição por dinheirocada vez mais expressa, é menos a aquisição das coisas que a re-lação consigo e com os outros que condiciona nossas maiores fe-licidades e nossos maiores infortúnios. São os outros, muito mais

que as coisas, que despertam as paixões mais imoderadas, as ale-grias, mas também as dores, mais vivas. Lembremos que, nas pes-quisas, os europeus situam os filhos, o casal, a família, o amor emprimeiro lugar entre os elementos componentes da felicidade. Éverdade que a falta de dinheiro é cada vez mais citada como umentrave importante à felicidade; mas o certo é que seu impactosobre nossas existências tem com freqüência menos força que as

relações que mantemos com os "próximos" (casal, filhos, cuida-dos com pais id0sos). Evidentemente, o Homo felix não se con-funde com o Homo consumans: o desejo das coisas está longe deter colonizado inteiramente os ideais e os objetivos da existên-cia. Se a falta material- uma vez cobertas as necessidades "pri-

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márias" - não criaum sentimentode frustraçãoinsuportáveléporque o reconhecimento do valor dos laços interpessoais, da vi-da relacional e afetiva continua a exercer uma influência consi-derável. Assim, a relação com o outro é, a um só tempo, o quepode erguer os maiores obstáculos à felicidadee o que impede ascoisasde aprofundar o abismo da insatisfação.

Todas as grandes filosofias modernas insistiram na trans-cendência do desejo.Pascalobservavaque amamos menos as coi-sas do que o caminho que leva até elas; na filosofia hegeliana, odesejo humano é definido como negatividade e desejo de ser re-conhecido pelo outro; Nietzsche recusava o utilitarismo em no-me da "vontade de poder". Aí está a outra chave do problema.Não nos enganemos, o ideal dos homens não se reduz a adqui-rir-possuir-usufruir coisas;o que eles desejam também é agir, lu-tar, transformar o dado, realizar algo que lhes proporcione umaimagempositivade sipróprios. Issoseconcretiza tanto em"obras"cotidianas "modestas" (trabalho, organização do espaço domés-tico, educação dos filhos, atividade esportiva ou militante) quan-to em projetos mais ambiciosos. Por que os políticos, os grandescapitães de empresa, os artistas célebresnão se contentam em sa-borear tranqüilamente seu sucessoe continuam, até o último sus-piro, a lutar, investir,criar? É que o indivíduo não se satisfazcomuma vida confortável: tem necessidade de fazer,construir, supe-rar-se, ser o mais bem-sucedido possívelnaquilo que empreende.A obsessão consumista não arruinou de modo algum a exigên-cia antropológica da Atividade ou do Fazer,fontes de reconheci-mento social e de auto-estima. A espécie de adaptação que ma-nifestamos em relaçãoao "ter" não deixa de estar ligada à essênciaativista do desejo. É porque agir-Iutar-fazer-transformar-conse-guir-superar-se constitui uma necessidade humana intransponí-vel,fontede satisfaçõesede mobilizaçãode si,que as insuficiênciasdo nível de vida não se transformam, geralmente, em pesadelo:

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as prioridades do Fazer vêm relativizar ou compensar as frustra-ções do Ter.

A "infelicidade da abundância" foi superestimada. Contra-riamente ao que foi martelado sem descanso, as satisfações ma-teriais prevalecem sobre as insatisfações. É em algum outro lugarque as nuvens negras se acumulam. Pois sofremos menos os tor-mentos do consumo obsessivo que os da vida afetiva, íntima, pro-fissional. As frustrações ligadas ao consumo são limitadas, as re-lativas à existência subjetiva e intersubjetiva se agravam, ossentimentos de falta mais expressos referem-se à comunicação,ao amor, à realização profissional, ao reconhecimento, ao respei-to, à auto-estima. Nos tempos hipermodernos, Penía se concreti-za menos na sede inalterável dos objetos que na dificuldade deser, menos na relação com as coisas que nos infortúnios da rela-ção com os outros e consigo.

POBREZA E DELINQÜÍ-NCIA:A VIOLÊNCIA DA FELICIDADE

As análises precedentes aplicam-se, no essencial, às classesmédias integradas no mercado de trabalho. Mas o que se passanas outras camadas sociais, em particular naquelas que, atingi-

das pela precariedade, são vítimas das novas formas de pobreza?Evidentemente, é necessário um outro ponto de vista. Quandomilhões de pessoas vivem abaixo do limiar de pobreza ou em con-dições econômicas muito frágeis,z7o modelo da "abastança per-petuamente insatisfeita", caro aos discursos críticos da fase lI,mos-tra cruelmente seus limites. Se a sociedade de hiperconsumo se

distingue por uma escalada das buscas de experiências mercantisemocionais e distrativas, é também contemporânea da provação

do "quase nada" e do medo do "cada vez menos". A fase III não é

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assimilável ao desaparecimento do real na simulação de todas asCOIsas,mas à justaposição muito real da proliferação das merca-dorias e da exclusão do consumo; é contemporânea da conjuga-ção das necessidades crescentes com o aumento da falta de recur-

sos quase elementares de toda uma parte da população. Nessascondições, Penía não poderia ser a metáfora de uma penúria lu-xuosa e da progressão das necessidades: ela designa o apareci-mento de um pauperismo que, mesmo sendo de um outro gêne-ro, nem por isso instala menos o trágico do consumo sobre basesmuito mais realistas.

Ao longo da fase II, a prosperidade econômica, o pleno em-prego e o Estado-providência pareciam poder garantir a liberta-ção em relação à miséria, graças à elevação geral do nível de vi-da. Ainda que a grande pobreza subsistisse, ela aparecia como umfenômeno residual, a imagem dominante era que "a maré cres-cente fazia flutuar todos os barcos': Essa tese da medianização oudo aburguesamento da sociedade foi posta a perder pelo aumen-to das desigualdades dos rendimentos e da nova pauperização demassa, resultantes das transformações socioeconômicas das duasúltimas décadas do século xx. Nesse contexto, Penía cai doloro-samente na realidade, sendo seu novo regime marcado por umavida precária, pela extrema dificuldade em "esticar o dinheiro",pelo recurso à assistência social. A partir daí, estamos muito lon-ge do clima do "inferno climatizado" e da quietude miraculosada terra da abundância. Enquanto uns mergulham numa atmos-fera de atividade consumidora desenfreada, outros experimen-tam a degradação de seu nível de vida, as privações incessantesnos itens mais essenciais do orçamento, a aversão pelo martíriocotidiano, a humilhação sentida por ser socorrido pela assistên-cia social. Caso exista, o pesadelo do hiperconsumo não se des-cobre na "escalada da insignificância" nem na sede inextinguívelde aquisições mercantis: é detectado na degradação das condi-

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ções materiais, no desencorajamento pelas restrições, no consu-mo a minima enquanto o cotidiano continua a ser bombardea-do com solicitações reluzentes. O inferno não é a espiral intermi-nável da atividade consumidora, é o subconsumo das populações

frágeis no seio de uma sociedade de hiperconsumo.

Exclusão, consumo e individualização

A pobreza e a vulnerabilidade de massa em vigor em nossassociedades manifestam-se sob traços inéditos. Até então, o pau-perismo afetava grupos sociais tradicionalmente estáveis e iden-tificáveis, que conseguiam subsistir graças às solidariedades devizinhança. Essaépoca passou, as populações invalidadas da so-ciedade pós-industrial já não constituem, propriamente falando,uma classe social determinada. Desempregados de longa dura-ção, mães abandonadas que trabalham em tempo parcial, jovenssem qualificaçãoem busca de biscates,beneficiários da renda mí-nima de inserção, é como um amálgama incoeso de situações ede caminhos particulares que se apresenta a paisagem da exclu-são hipermoderna. Nessa constelação de dimensões plurais, nãose encontram nem consciência de classe, nem solidariedade degrupo, nem destino comum, mas trajetórias e histórias pessoais,muito diversificadas.Resultando de processos de desqualificaçãoou de invalidação social, de percursos e de dificuldades indivi-duais, os novos "desfiliados"2ssurgem em uma sociedade que,mesmo sendo extremamente desigual, não é por isso,ao mesmotempo, menos hiperindividualista; em outras palavras, liberta doquadro cultural e social das classestradicionais.

Não existemais subcultura análoga à dos guetos e da pobre-za tradicional. Mesmo excluída do universo do trabalho, a popu-lação dos centros de cidade e dos subúrbios desqualificados par-tilha os valores individualistas e consumistas das classesmédias,

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a preocupação com personalidade individual e auto-realização.Os jovens, em particular, valorizam a dimensão pessoal de seuconsumo (roupas, música, lazeres), os signos capazes de distin-gui-Iosde seus grupos de pares. Daí em diante, mesmo os menosprivilegiados pretendem ter acesso aos signos emblemáticos dasociedade de hiperconsumo e manifestam aspirações e compor-tamentos individualistas, mesmo que seja na obediência à mo-da.29Amedida que se desagrega a integração pelo trabalho ou pe-la escola, que se esgotam as identidades de classe e os grandesmovimentos coletivos,é pelo looke pelos signos do consumo queprocuram afirmar-se os jovens dos bairros deserdados. O consu-mo é, nas condições presentes, o que constrói uma grande partede sua identidade: quando faltam as outras vias do reconheci-mento social, "torrar a grana" e consumir impõem-se como fi-nalidades preeminentes.

Mediador da "verdadeira vida",o consumo é igualmente re-vestido do que permite escapar ao desprezo sociale à imagem ne-gativa de si.A obsessão do consumo, observável,em nossos dias,até nas populações marginalizadas, não indica apenas o podersem precedentesda mercantilizaçãodosmodos de vida,mas tam-bém a nova intensidade das frustrações em relação aos padrõesde vida dominantes, bem como uma exigênciaampliada de con-sideração e de respeito, típica do individualismo demonstrativosustentado pela fase III:importa cada vezmais, para o indivíduo,não ser inferiorizado, atingido em sua dignidade. É assim que asociedade de hiperconsumo é marcada tanto pela progressão dossentimentos de exclusãosocial quanto pela acentuação dos dese-jos de identidade, de dignidade e de reconhecimento individual.

De um lado, as normas e os valores consumistas são maci-çamente interiorizados pelos jovens dos grandes conjuntos habi-tacionais de subúrbio. Do outro, a vida precária e a pobreza im-pedem que separticipe plenamente das atividades de consumo e

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de lazeresmercantis. Dessa contradição resulta um surto de sen-timentos de exclusão e de frustração, e ao mesmo tempo com-portamentos de tipo delinqüente. Não conhecendo mais que ofracasso escolar e a precariedade, os jovens dos bairros "difíceis"se afastam do trabalho, tendem a justificar a pequena delinqüên-cia, o roubo e os "truques" como meios fáceisde obter dinheiroe participar dos modos de vida dominantes martelados pelasmí-dias. Por que alienar sua vida e sua liberdade em um trabalho querende tão pouco? Desprezando a condição operária e a culturado trabalho, rejeitando a política e o sindicalismo,os jovens"mar-ginalizados" constroem sua identidade em torno do consumo eda "grana", da fanfarronada e da vigarice.30Sem dúvida, o que échamado de "biscate" se estende sobre um fundo de desempregode massa e de estilhaçamento das antigas culturas populares epolíticas, mas esses fenômenos não são separáveis da expansãoda cultura consumista, que contribuiu muito fortemente, de umlado, para dissolver as consciências de classee a autoridade fami-lial e, de outro, para impulsionar uma nova intolerância às frus-trações. Éa conjunção dessassériesde fenômenos que seencontrano princípio da desculpabilizaçãoe da banalização da delinqüên-cia nas zonas sociais da exclusão. Seos desvios juvenis são umadas conseqüências da falência dos movimentos sociais, são tam-bém resultado de um mundo social desestruturado e privatizadopelo império do consumo mercantil, por novos modos de vidacentrados no dinheiro, pela vida no presente, pela satisfaçãoime-diata dos desejos. Privados de referências e de horizontes, frus-trados por seu modo de existência,desestabilizadospeladeficiên-cia da educação parental que afeta todos os meios,mas sobretudoas camadas sociaisatingidas pelo desemprego e o choque das cul-turas, os jovens dos conjuntos habitacionais reivindicam a delin-qüência como uma maneira de viver normal num universo per-

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cebido como uma selva, na qual não podem viver "como todomundo".

Uma das ironias da época é que os excluídos do consumosão eles próprios uma espécie de hiperconsumidores. Privadosde verdadeira participação no mundo do trabalho, atormenta-dos pela ociosidade e pelo tédio, os indivíduos menos favoreci-dos buscam compensações no consumo, na aquisição de servi-ços ou de bens de equipamento, mesmo que seja, às vezes, emdetrimento do que é mais útil.31É assim que certas famílias po-dem assinar a televisão a cabo enquanto não podem pagar suaconta de luz. Na Grã-Bretanha, duas crianças em três, nos meiosdesfavorecidos, têm televisão no quarto. As pressões e as atitudesconsumistas não se detêm nas fronteiras da pobreza, dissemi-nam-se agora em todas as camadas sociais, inclusive nas que vi-vem da assistência social. De um lado, a fase 11Ié uma formidável

máquina de socialização pelo consumo; do outro, desorganiza oscomportamentos de categorias inteiras da população, que nãoconseguem adaptar-se à pobreza e resistir às solicitações da ofer-ta mercantil.

Confinadas em casa por falta de recursos financeiros, essaspopulações freqüentemente passam longas horas diante da tele-visão: mais de 10% das pessoas da camada social mais destituídapassam mais d~ cinco horas por dia diante da telinha. Hipercon-sumidores de séries, de filmes, de jogos a dinheiro, os grupos eco-nômicos muito frágeis são também, ao mesmo tempo, hipercon-sumidores de publicidades comerciais. Nessas condições, osmenos favorecidos são tanto mais excluídos do consumo quantoestão superexpostos às imagens e às mensagens mercantis. Na fa-se 11I,os "have nots" não se sentem pobres apenas porque subcon-somem bens e lazeres, mas também porque superconsomem asimagens da felicidade mercantil.

Nesse ponto da análise, pode-se levantar a hipótese de que é

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por esse caminho "feliz",incitador, publicitário, que a televisãotem mais impacto sobre a violência dos jovens e não, como porvezesse afirma, pela inflaçãomidiática das cenas sangrentas. Re-lembremos que as crianças americanas vêem em média 40 milanúncios publicitários por ano. Nas horas de grande audiência,as cadeias de televisão americanas difundem mais de quinze mi-nutos de publicidade por hora. Por toda parte, os jogos a dinhei-ro fazemsonhar com uma vida afortunada, por toda parte fIlmese séries põem em cena os modos de vida das classesmédias. Co-mo semelhante superexposição às imagens do dinheiro e do con-sumo felizpoderia não aumentar o mal-estar dos excluídos, nãoexacerbar os desejos e as frustrações dos jovens mais carentes? Émenos o excessodas imagens violentas que incita à violência realdo que a distância entre o real e o que é espetacularizado comomodelo ideal, o abismo entre a exortação ao consumo e as ver-dadeiras faltas dele.32Se é verdade, como o afirma George Gerb-ner, que a televisão fabrica uma "violência feliz",isto é, uma vio-lência rápida, indolor, concebida para não perturbar, que terminaem final feliz, é igualmente verdade que a televisão da fase IIIétambém o meio que expõe os mais vulneráveis à violência dasimagens da felicidadeconsumista.

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Precariedade e individualismo selvagem

É nesse contexto que se observa um recrudescimento dasviolências ou, mais exatamente, de certas violências. Enquanto afase IIfoi um período de expansão dos roubos, a fase III,tanto naEuropa como nos EstadosUnidos, é marcada por um forte cres-cimento dos delitos e crimes violentos: na França, a taxa das vio-lências mais que dobrou entre 1985e 2001. Sea taxa dos homi-cídios quase não se modificou desde o começo dos anos 1970,em compensação os roubos com violência, os golpes e ferimen-

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tos intencionais, os estupros registrados, a extorsão e a violênciaem ambiente escolar, as depredações e destruições de bens tive-ram um impressionante aumento a partir dos anos 1980. Explo-são de violências que diz respeito, no essencial, a uma criminali-dade de exclusão, coincidente com o crescimento do desempregoe da precariedade de massa. Nos Estados Unidos, a escalada cri-minal foi provocada em grande parte pelos jovens negros dosmeios deserdados, entregues a uma guerra sangrenta com vistaao mercado da droga. Na Europa e na França, onde a taxa de ho-micídios é três vezes inferior à dos Estados Unidos, as violênciasnão estão menos correlacionadas à degradação do mercado deemprego e ao aumento da pobreza, que atinge em cheio toda umafração da juventude.33 Sem trabalho, excluída, frustrada por nãopoder obter os bens a que aspira, Penía é arrastada para o cami-nho da delinqüência violenta.

Ao longo da fase lI, Perec evocava a "tragédia tranqüila" dasociedade de consumo. Essa página está encerrada. No ciclo III,Penía vive um drama de natureza muito diferente: áspero, hiper-realista, o trágico de que somos testemunhas coincide com a es-piral das violências físicas, o alongamento das penas de prisão, oaumento da população carcerária.

A nova precariedade e o agravamento das desigualdades so-ciais não explicam tudo, longe disso. Sabe-se que, no essencial, odesenvolvimento da violência contemporânea é causado pelosmenores e pelos jovens adultos dos meios deserdados: desde ofim dos anos 1970, o número de menores envolvidos em atos deviolência foi multiplicado por quatro. É difícil não relacionar es-se fato diretamente à desagregação das famílias, à perda da auto-ridade parental, às deficiências da educação, das quais resultamuma erosão do senso dos limites, das regras e das proibições, umajuventude mais entregue a si própria e que, despojada de referên-cias, mostra uma menor capacidade de suportar as frustrações e

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as coerções.A congruência dos fenômenos é incontestável: para-lelamente à desestruturação dos enquadramentos coletivos e àdesinstitucionalização da família, assiste-seà desregulamentaçãodas condutas dos menores. A espiral da violência juvenil traduzo estilhaçamento do controle familial e das regulações comuni-tárias, bem como uma nova economia psíquica caracterizada pe-la falta de limites simbólicos, a supressão das inibições, a redu-ção do limiar de tolerância à frustração: disfunções que estãointimamente ligadas à sociedade liberal de hiperconsumo. O en-fraquecimento das regulações sociais e familiares e a individuali-zação dos jovens levam, assim, a esta situação: menores delin-qüentes mais jovens emais violentos, em uma sociedademarcadapelo sentimento de insegurança e pelas demandas de repressãomaISsevera.

Asviolênciasque sedisseminam já não são apenas uma con-seqüência mecânica das desestruturações liberais; são tambémum dos meios que os jovens dos bairros relegadosmobilizam pa-ra afirmar-se, impor-se aos outros, compensar seus fracassos es-colares, gerir sua inferioridade social. À medida que as regula-ções familiares e comunitárias se dissolvem, os indivíduos têmde se auto definir, construir sua identidade escolhendo seus mo-delos de referência,mesmo que a ordem econômica lhes imponhadesemprego e existência precária. Em alguns, o individualismose concretiza na auto-interrogação, nas reivindicações identitá-rias e na reapropriação subjetiva da tradição. Em outros, ele seencarna na violência como maneira de conferir a si um status,"ser alguém",existir a qualquer preço aos olhos dos outros e aosseus próprios. Na sociedade de hiperconsumo, a violência não seconstrói mais de um modo tradicionalista: funciona ora comouma estratégia instrumental de aquisição de bens mercantis, oracomo um vetor de singularização pessoal, revertendo um fracas-so em valorização de si. Quando as perspectivas de futuro estão

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fechadas,quando falta participação no modo de vida dominantee quando baixa o nível de tolerância às frustrações, a violênciapermite transformar o "desespero" em afirmação subjetiva, em"carteira de identidade", fonte de consideração e de gratificaçãoem certos meios.

Graças a isso,há que distinguir não dois perfis de indivíduoshipermodernos, mas ao menos três. Paralelamente ao "individua-lismo por excesso"e ao "individualismo por falta",J4a fase IIIvêaumentar o que sepode chamar de um individualismo selvagem,isto é, aberrante e transgressor, que combina lógica da privação(pobreza, situação de fracasso, insatisfação consigo) e lógica deexcesso,lógica de frustração e lógica de "heroicização",pulsão deódio e estratégia utilitária. O individualismo selvagemnão coin-cide, evidentemente, com o individualismo dos vencedores, quedispõem dos recursos da independência, mas tampouco se reduzao individualismo negativo ou passivo.Este último se fazpassarpor vítima, enquanto o individualismo selvagembuscamodos deação ilegítima e de auto-afirmação para conjurar a imagem ou acondição de vítima. Um apela à compaixão ou à solidariedade; ooutro leva a demandas de ordem e de repressão. Mesmo nas zo-nas de invalidaçãosocial,existeuma certa escaladaindividualistafeita de ativismobrutal, de desafio,de ameaça,que excedea posi-ção do "indivíduo por falta':

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Miséria material, miséria interior

Não tendo sido socializados, geralmente, em condições deexistência miserável, e incorporando as normas e os princípiosdo bem-estar mercantilizado, os mais desfavorecidos vivem demaneira particularmente penosa o fato de serem lançados na pre-cariedade econômica, de ter de privar-se de tudo, de estar à mer-cê da menor vicissitude. Sem esperança de sair disso, pergun-

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tando-se constantemente como reduzir as despesas, relegados abiscatear para garantir o mais elementar, milhões de pessoas vi-vem não na miséria extrema da insuficiência alimentar e do "na-da",mas na extrema incerteza do amanhã, com a ansiedade denão poder pagar o aluguel ou os encargos correspondentes, denão conseguir quitar os empréstimos, de decair cada vez mais.Menos do que nunca, a pobreza não se reduz à insuficiência dosrecursos financeiros, é também o que degrada a relação consigoe com a vida em geral, favorecendo a ansiedade, a depressivida-de, a falta de auto-estima. Ao impedir toda expectativa, a pobre-za material é vivida como falta de autonomia e de projeto, obses-são com a sobrevivência,sentimento de fracassoe de queda social.Na sociedade de hiperconsumo, a precariedade aprofunda a de-sorientação psicológica, o sentimento de ter estragado a própriavida. Para as classesmóveis e socializadas pelo trabalho, as frus-trações propriamente materiais estão em baixa, para os "de bai-xo" elas se agravam, provocando o sentimento de viver uma vida"que não é vida". É essa a violência da civilização da felicidade,seu novo calvário.

Ao mesmo tempo, a nova precariedade é vivida como umacrise identitária, uma experiência humilhante e deprimente. Nassociedades liberais, dominadas pela dinâmica de individualiza-ção e livres das promessas da luta de classes,o desemprego mu-dou de sentido: não sendomais assimiladoa um destino de classe,ele remete a um fracassoou a uma insuficiênciapessoal,freqüen-temente acompanhada de auto-estigmatização. Ao perder suamoradia ou sendo obrigadas a residir em um conjunto habita-cional degradado, de má reputação, as pessoas experimentamsentimentos de vergonha, de autodesvalorização.Da mesma ma-neira, a dependência em relação aos serviçosde ação social se tra-duz muitas vezesem um sentimento de decadência e de humilha-ção.J5Àangústia da faltade fundos bancários ede já não conseguir

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esticar o dinheiro, soma-se, enfim, em muitos pais, a culpabili-dade de não poder oferecer uma vida decente e normal aos fi-lhos. Quanto mais as condições materiais geraismelhoram, maisse intensifica a subjetivização-psicologizaçãoda pobreza. Na so-ciedade de hiperconsumo, a situação de precariedade econômicanão causa apenas, em grande escala, experiências novas de pri-vaçõesmateriais, mas também dissemina um sofrimento moral,a vergonha de ser diferente, a autodepreciação dos indivíduos,uma reflexividade negativa. A ressurgência da miséria exteriorprogride em paralelo com a miséria interior ou existencial. É demaneira convergente que a individualização, o hiperconsumo ea precarização do emprego engendram Penía,não apenas indi-gente, mas ferida, desqualificada, inferiorizada a seus própriosolhos. Se,para uns, a faseIIIsignificater sempre mais e vivermais,para os desfavorecidosela cria, ao contrário, o sentimento de vi-ver menos e de ser menos.

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AFLIÇÕES E RENAS CIMENTO

Ao fazer o balanço humano da fase 11,Fourastié já observa-va, em um livro famoso, que a insatisfação, o "estar farto", o ma-rasmo haviam se tornado os traços maiores do homem médiodas sociedades prósperas. Cheio de bens de consumo, mas só einstável, este sabe, daí em diante, "que é mais difícil ser feliz sen-do rico que sendo pobre':36

Manifestamente, a fase III acentuou ainda mais essas som-bras da felicidade. Como prova, a amplitude das inquietações re-lativas ao emprego e ao futuro, a profusão das frustrações do co-ração, a irrupção dos desesperos e outros sofrimentos internos.O preço a pagar pelo bem-estar de massa é pesado, tudo se pas-

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sando como se os descontentamentos e a má vida progredissemno mesmo ritmo do enriquecimento das nações.

Nada revelamelhor os danos subjetivosda civilizaçãoda fe-licidade que a impressionante expansão dos distúrbios psíqui-cos. O paradoxo merece ser sublinhado: eis uma sociedade emque mais de 90% dos indivíduos se declaram felizesou muito fe-lizes e na qual, ao mesmo tempo, as depressões e as tentativas desuicídio, as ansiedades e consumos de medicamentos psicotrópi-cos se propagam à maneira de uma torrente inquietante. Segun-do uma pesquisa epidemiológica cujos resultados foram publi-cados em 2004, 11% dos franceses passaram recentemente porum episódio depressivo, 12%declararam ter sofrido de ansieda-de generalizada ao longo dos seis últimos meses, 7,8% dizem játer feito uma tentativa de suicídio em sua vida.37A taxa de de-pressivos foi multiplicada por quatro entre 1970e 1980e por se-te entre 1970e 1996.38Emais de 11%da população adulta fazemuso regular deum medicamento psicotrópico. O fatoestá aí:quan-to mais triunfa o consumo-mundo, mais se multiplicam as de-sorganizações da vida mental, o sofrimento psicológico, a difi-culdade de viver.

A infelicidade íntima e profissional, na fase III,foi relacio-nada ao cosmo hipercompetitivo, cuja característica é tornar oindivíduo cada vezmais responsávelpor si próprio. Em um tem-po marcado pelo enfraquecimento dos enquadramentos coleti-vos e pela exigência, martelada em toda parte, de tornar-se umeu, ator de sua vida, responsável por suas competências, a tarefade ser sujeito torna-se extenuante, depressiva,cada vezmais difí-cil de assumir.39Daí decorreriam a emergência dos desequilíbriospsíquicos, a cascata dos sentimentos de insuficiência pessoal e deinsegurança interior. Então, se a socialização "rígida" e os gran-des flagelos do passado desapareceram, a vida nem por isso se

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tornou mais fácil,tendo deixado de oferecer a segurança identi-tária e os apoios comunitários outrora prevalentes.

No entanto, não é apenas a dificuldade de estar à altura doimperativo de ser sujeito que deprime os seres. De meio séculopara cá, a sociedade consumista preparou amplamente o terre-no, encerrando o indivíduo em simesmo e na busca das felicida-des privadas. Ao romper os últimos costumes e tradições estru-turantes, a revolução do consumo abandona os indivíduos a sipróprios, e estes devem enfrentar as dificuldades da existênciasem se beneficiar de regulações e de apoios coletivos.Atomiza-do, reduzido apenas às suas forças, levado a estender indefinida-mente o círculo de seus desejos, o indivíduo não está mais pre-parado para suportar as misérias da existência. Sob um dilúviode convites para gozar a vida, aprofunda-se irresistivelmente adistância entre as promessas de Éden e o real, entre as aspiraçõesà felicidade e a existência cotidiana. Na civilização da felicidadede massa, cada um tende a voltar-se mais para si mesmo e vê tu-do que o separa da plenitude, cada um tende a avaliarque a vidanão se parece com aquilo a que pode pretender. Levando os par-ticulares a julgar e a comparar sua experiência vivida a partir daimagem de uma felicidade eufórica, sempre nova e intensa, a ci-vilizaçãodo bem-estar alimenta, na escaladas massas,as frustra-ções e os incômodos existenciais. Instrumento de reflexividadenegativa, a socialização individualista e consumista cria o senti-mento de sempre se perder a parte essencialda vida.

Outro fator sustenta a epidemia hipermoderna do mal-es-tar: trata-se das alterações rela~ivasà educação familiar. Elassãoconsideráveis.Para dizê-Iobrevemente, a educação de tipo tradi-cionalista e autoritário foi substituída por uma educação psicolo-gizada,"semobrigação nem punição': voltada para o desabrocha-mento do fIlho,sua satisfação completa, sua felicidade imediata.Não mais "disciplinar" e punir, mas fazer tudo para que o fIlho

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não fique insatisfeito e infeliz, fazer tudo também, é verdade, emcertos casos, para evitar os desgastantes conflitos com ele e ver-se na situação constrangedora de dizer "não".Na fase III,a coer-ção parental é assimilada a um mau tratamento, a uma "ofensa",a uma forma de violência condenávelporque pode provocar frus-trações, complexos e outros incômodos. Assim, muitos pais jánão impõem regras e quadros estáveis,pela razão de violentarema personalidade do filho e ocasionarem sofrimento interior; jánão procuram tanto inculcar o senso de limite, o respeito e a obe-diência quanto escutar e satisfazeros desejosdo fIlho.Seessapsi-cologizaçãoda educação concretiza, por excesso,certos caminhosabertos pela psicanálise e pelas novas pedagogias do começo doséculo xx, ela só pôde se impor socialmente com o desenvolvi-mento da civilizaçãodo consumo e seus ideais hedonistas, apre-sentando-se a recusa de frustrar o fIlho como o estilo educativoconcordante com os valores do conforto e do bem-estar indivi-dualista: sociedade consumista e educação sem coerção formamum sistema.Semelhantes transformações da esfera educativa nãodeixaram de ter profundas conseqüências sobre a vida psíquicados indivíduos.

Um dos efeitos dessa educação é que ela tende a privar ascrianças de regras, de quadros ordenados e regulares necessáriosà estruturação psíquica. Daí resulta uma forte insegurança psi-cológica, personalidades vulneráveis que não dispõem mais dedisciplinas interiorizadas, de esquemas estruturantes que permi-tiam, em outros tempos, fazer face às provas difíceis da vida. Énesse contexto que se multiplicam individualidades desorienta-das, frágeis, marcadas pela "fraqueza das identificações" e pelafalta de defesas internas. Enquanto a criança tende a perder a ca-pacidade de superar as frustrações, o adulto está cada vezmenospreparado para enfrentar os conflitos, suportar os revesesda exis-tência e o choque das circunstâncias. Na base da fragilidade sub-

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jetiva hipermoderna acha-se a ausência de "bússola" e de forçasinteriores que ajudem os seres a resistir à adversidade: foi con-juntamente que os processos de desinstitucionalização e de psi-cologização desestabilizaram, desequilibraram as identidadessubjetivas. É possível que uma sociedade que exigeque cada umseja um sujeito peça demais aos indivíduos, mas, sobretudo, ei-los, por meio da cultura do bem-estar total, despojados de recur-sos psíquicos, desarmados interiormente para fazer faceàs vicis-situdes e à nova complexidade da existência, pouco ou malpreparados para submeter-se aos golpes da sorte. Nesseponto, épreciso voltar a Durkheim, que concluía seu estudo sobre o sui-cídio nestes termos: "O mal-estar de que sofremos não vem, por-tanto, do aumento das causas de sofrimentos em número ou emintensidade: ele atesta não uma grande indigência econômica,mas uma alarmante indigência moral".40

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A vida recomeçada

Então é preciso entoar, com as carpideiras, o refrão da mal-dição dos tempos individualistas? A situação é sem saída? O qua-dro exige ser contrastado. Se os efeitos destrutivos e depressivosda sociedade de hiperconsumo são pouco duvidosos, existem ou-tros que abrem perspectivas menos sombrias. Nossa época pro-voca em grande escala a "má vida" e o sofrimento psíquico, mas,ao mesmo tempo, é aquela em que a maioria tem mais oportu-nidade de poder redistribuir as cartas da existência e de recome-çar sobre novas bases. Ela multiplica as razões de deprimir, masoferece mais instrumentos de diversões, de estimulações para queos dados das circunstâncias se transformem mais depressa. A ace-leração da hipermodernidade nos perde e nos salva ao mesmotempo: porque a vida é mais móvel e mais aberta, os incômodosindividuais aumentam, mas, em muitos casos, eles são também

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menos impeditivos. Seas oscilaçõesde humor são característicasda alma humana, pode-se pensar que nossas sociedades dão a es-se fenômeno um ritmo mais acentuado do que nunca. Semaisnada é estável,por que a infelicidade escaparia a essa lei?O con-sumo-mundo tanto produz insuficiênciase desequilíbrios subje-tivos quanto é acompanhado por uma infinidade de objetivos ede instrumentos de redinamização pessoal capazes de dissiparmais depressa certos impasses da existência.

É verdade que o leque de possibilidades hipermoderno cau-sa mal-estar, mas num contexto em que "sempre acontece algu-ma coisa",a vida passa por mais retomadas, alternâncias, mudan-ças freqüentes. Oscilando permanentemente entre pessimismo eotimismo, depressão e excitação,abatimento e euforia, sentimen-to de vazio e projeto mobilizador, o moral do indivíduo hiper-moderno é um ioiô.Nem tudo é catastrófico na sociedade do de-sejo, pois Peníadoravante se casa com Hermes, com uma maiormobilidade subjetiva, com incontáveis "convites às viagens".Aoabrir o futuro e as opções, nossas sociedades reoxigenam o pre-sente vivido, aumentam as possibilidades de ser posto em movi-mento, de recomeçar, de "refazer a vida".Enquanto as insatisfa-ções se multiplicam, as oportunidades de livrar-se delas estãomais freqüentemente à nossa disposição. A fase III não garanteum futuro risonho, mas os indivíduos podem, com mais freqüên-cia que antigamente, ser mobilizados por objetivos e projetos ca-pazes de recriar otimismo, de reativar a crença na possibilidadeda felicidade. Isso é ilusão?É também, e sobretudo, uma condi-ção para escapar à desesperança. Nem terra prometida nem valede lágrimas definitivo, a sociedade de hiperconsumo é uma so-ciedade de desorientações e de estimulações, de aflições e de re-nascimento subjetivo.

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8. Dionísio: sociedade hedonista,sociedade antidionisíaca

happenings, espetáculos e outros concertos de rock gigantescos.Fazer recuar os limites do Eu, "curtir", vibrar e sentir, o espíritodo tempo é dos prazeres sem restrição, da subversão das institui-ções burguesas em nome de uma vida intensa e espontânea.

O próprio cristianismo não escapa à onda "mística e dioni-síaca", como o demonstram as novas liturgias que revalorizam oexcesso sensorial e o abandono de si, a espontaneidade e a sensua-lidade. Após séculos de desprezo da carne, surgem missas acom-panhadas de cores e de alegria, de danças convulsivas, de músi-cas de jazz, de ritmos rock e folks. Por meio da contracultura,"uma espécie de exaltação e mesmo de ímpeto dionisíaco se re-vigora" no Ocidente desvitalizado pela repressão da festa, da fan-tasia e da sensualidade. I

Daí a revivescência da metáfora dionisíaca. Evocando a ju-ventude rebelde, Roszak propõe a imagem dos Centauros, essesadoradores de Dionísio que, em seu frenesi de embriaguez, sub-mergem a ordem civilizadade Apolo.2No mesmo momento, Da-niel Bell caracteriza a sensibilidade dos anos 1960como comba-te contra a razão, "desforra dos sentidos sobre o espírito","buscadesesperada de Dionísio".3

Em um brilhante ensaio datado dessa época, JeanBrun pro-curou teorizar a ressurgência de Dionísio no coração das socie-dades de abundância tomadas pelo êxtase do sexo,do psicodelis-mo, bem como pelas "fúrias do consumo".4A obra constitui omodelo dessa problemática, um livro essencial para os sociólo-gos que mais tarde ambicionarão, de maneira menos feliz, pôrem evidência o "dionisismo pós-moderno".

Orgias de consumo, bulimias de imagens e de ritmos, ero-tismo desenfreado, frenesisde modas e de sensações:Brun inter-preta as paixões que surgem nas sociedades superdesenvolvidascomo umas tantas buscas de vertigem e de embriaguez, que per-mitem dar gosto a uma existência cada vezmais insípida. Pois o

Por volta do fim dos anos 1960, a figura de Dionísio irrom-pe na cena intelectual com o objetivo de conceitualizar a paisa-gem cultural das democracias, redesenhadas pela escalada dos va-lores hedonísticos, dissidentes e utópicos. Impõe-se a idéia de queaspirações e modos de vida inéditos vêm à luz, preparando umfuturo em ruptura com a sociedade tecnocrática e autoritária. Emvez da disciplina, da família ou do trabalho, uma nova cultura ce-lebra os prazeres do consumo e a vida no presente. Sobre esse fun-do, uma geração contestadora, que recusa a autoridade e a guer-ra, o puritanismo e os valores competitivos, invoca a liberaçãosexual, a expressão direta das emoções, as experiências psicodéli-cas, as maneiras diferentes de viver junto. O princípio de recalqueem vigor na civilização tecno-racional é substituído pela exalta-ção do corpo, os êxtases sensoriais e musicais, o culto da maco-nha e do LSD.Num clima impregnado de radicalismo utopista, oespírito de festa volta com força, concretizando-se em love in,*

* Fenômeno da contracultura dos anos 1960,os lavein eram encontros de jo-vens que visavam disseminar o amor. (N.T.)

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homem de tipo novo é obcecado pelas "coisas" apenas aparente-mente: o que espera delas, na verdade, é uma "superabundânciade ser': convulsões eróticas e extáticas que o libertem do peso desua condição. Embriagado pelo consumo, imerso numa torrentede solicitações, à espreita de "viagens" e de insólito, de transgres-sões e de músicas inebriantes, o homem dionisíaco não tem outrointuito senão romper os limites de seu Eu, livrando-se de todocentro e de toda subjetividade num paroxismo de sensações e depulsações do desejo. O grande desejo de Dionísio é evadir-se de si,repudiar o Ego mergulhando no informe e no caos, afundandono oceano das sensações ilimitadas. Libertar-se da prisão do Eu,livrar-se das dores da individuação, fazer explodir o principiumindividuationis: esse é o sentido profundo do homem dionisíaco,de ontem ou de hoje.

Essa leitura não é carente de inspiração. Mostra como a lógi-ca utilitária ou instrumental não poderia esgotar nossa relaçãocom o universo tecnológico, o qual mergulha suas raízes em umaatitude existencial e "erótica" destinada a superar a trágica condi-ção do homem. Ao mesmo tempo, contra certo sociologismo quereduz a corrida ao consumo a lutas de rivalidades honoríficas, elasoube reconhecer nisso uma espécie de experiência metafísica,uma "exploração da existência" envolvendo a questão do tempo,do espaço e do eu. Essas análises, que insistem nas dimensões pas-sionais, lúdicas, existenciais do mundo técnico, merecem ser sau-dadas. Resta perguntar se a metáfora dionisíaca é realmente a quecorresponde à época que se anuncia. A repercussão alcançada poressa problemática, assim como as análises sociológicas que ali-mentou, exigem que nos detenhamos nela, reexaminando-a a par-tir das transformações da fase III.

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A SAGRAÇÃO DAS PEQUENAS FELICIDADES

O espírito de transgressão passou de moda, a revolução se-xual nada mais é que uma velha lembrança, as temáticas da se-gurança e da saúde invadem a vida de todos os dias: novo espíri-to do tempo, que não impede de modo algum uma sociologia docotidiano de convocar o paradigma dionisíaco, sublinhando aforça do hedonismo e do sensualismo dos costumes. Em umacultura entregue aos prazeressensoriais e aos desejosde gozoaquie agora, é toda a vida social e individual que, ao que nos dizem,está envolta num halo "orgiástico".Hedonismo dionisíaco mani-festo não apenas na incandescência das festas e das errâncias se-xuais, mas também, de maneira mais ampla, na vida cotidiana(consumo, moda, lazeres)através de emoções e de sensibilidadescomuns dominadas pela "saída extática de si" em microgrupos.Da vida comum aos grandes momentos de efervescência coleti-va, as sociedades contemporâneas se caracterizariam, assim, pelaforma dionisíaca interpretada como esgotamento do princípiode individuação e escalada correlativa da tribalização afetiva, dasemoções vividas em comum, das sensibilidadescoletivas.5

o cotidiano ludicizado

É inegável que toda uma parte do universo hiperconsumi-dor oferece o espetáculo de uma espécie de bacanalluxuriante.Desde a fase lI,Baudrillard já descrevia a atmosfera festivadesti-lada pelos templos do consumo através da profusão dos objetose das estimulações repetidas ao infinito. O amontoado dos pro-dutos, os carrinhos cheios até a borda, as solicitações sem fim,tudo isso contribui para criar uma impressão de vertigem, umaespécie de sensação de orgias do consumo. Centros comerciais,liquidações, lojas de preços reduzidos, tudo incita os desejos, tu-

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do parece oferecido aos prazeres e dado por acréscimo numa ne-gação frenética da raridade, relembrando a cornucópia de Dio-nísio. Algo como uma ambiência de desregramento festivo im-pregna os locaise os tempos do consumo superexcitado.

Os centros de cidade evocamigualmente uma espéciede Ida-de de Ouro generosa e festiva, transformados que são em espa-ços de distração, organizando-se em torno dos valores de "am-biência", de animação e de espetáculo. A cidade industrial eraconcebida para a produção; a cidade pós-industrial o é para oconsumo e os lazeres.Os centros históricos são estetizadose con-vertidos em palco de espetáculos por meio de ruas para pedes-tres, fontes, esculturas, praças à moda antiga, festasde animação.A construção antiga é reabilitada, reconvertida em museu, hotelou centro cultural. As instalações portuárias são requalificadascom vista ao passeio, ao consumismo e outros prazeres urbanos.Asmargens dos rios são devolvidas aos pedestres e metamorfo-seadasem "praia urbana".Por toda parte, cafése restaurantes, bu-tiques de moda, lojas de artesanato, galerias de exposição, cine-masmultiplex transformam o espaçourbano em cidade recreativapronta para o consumo mercantil e cultural. Eis o tempo da ci-dade dedicada ao convívio ocioso, ao divertimento, ao shoppinglazer. Depois da cidade-produção, a cidade hedonista6 que irra-dia a facilidade,a abundância, a negação propriamente dionisía-ca do trabalho.

Nos muros da cidade, exibem-se a felicidade ao alcance damão e as imagens do sex-appeal.Amoda sensualiza os corpos eos rostos. As imagens publicitárias da praia e das férias destilamsonhos e desejos. É toda a vida cotidiana que vibra de hinos aosdivertimentos, aos prazeres do corpo e dos sentidos. Seduçãopu-blicitária, cidade ludicizada, febre dos lazeres, mania das férias,traços que, evidentemente, acenam à felicidade dionisíaca, a seu

universo marcado pela abundância e os prazeres, a despreocupa-

ção e a ausência de trabalho.

Lazeres e tempo para si

Sociedade de hiperconsumo: isso significa, então, "desforrade Dionísio"?O modelo de socialidadeque seanuncia é de essên-cia "orgiástica"?Nossa cultura se caracteriza por um hedonismointenso comandado pela desindividualização,pelas incandescên-cias extáticase as fusõescomunitárias?Minha convicçãoé de queessaleitura é um completo erro de perspectiva, cegaque está paraa força social da privatização dos costumes. Sem dúvida, os co-munitarismos florescem, mas ao mesmo tempo as atitudes e asaspiraçõesindividualistastomam um ar de vagairresistível.Quan-to maisos referenciaislúdico-festivossealastramà superfície,maisa sociedade se apresenta, na realidade, sob uma luz radicalmenteantidionisíaca.Não é às novas epifanias do Mestre dos prazeresque nos é dado assistir,mas à encenação lúdico-hedonista de seusfunerais. Nada de reencarnação dos valoresorgiásticos,mas a in-venção do cosmo paradoxal da hipermodernidade individualista.

Nas culturas antigas, os homens esperavam dos cultos dio-nisíacos que eles os libertassem de sua pesada individualidade.Através da experiência do êxtase e dos frenesis transgressivos,Dionísio oferecia aos mortais a alegria de escapar aos limites daidentidade individual e, como diziaEurípides,a felicidadede"pôrsuas almas em comunhão"/ de provar o sentimento exasperadode sua inclusão coletiva. Ora, o que a sociedade de hiperconsu-mo constrói é um modelo de felicidade diametralmente oposto.Às alegrias coletivas da comunidade reunida e desenfreada suce-deram os prazeres privados do consumo de lazeres.Viagens, tu-rismo, esportes, televisão, cinema, saídas com amigos: o que do-mina é a disseminação e a pluralização dos prazeres escolhidos

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em função dos gostos e aspirações de cada um. Mesmo pratica-dos e vividosem grupo, os lazeresilustram exemplarmente a cres-cente individualização dos modos de vida. Nenhuma "saída desi': mas, ao contrário, a expansão de um tempo para si, entregueàs livresdisposiçõespessoais;nenhuma dissolução do principiumindividuationis, mas antes um tempo recreativo em que se afir-mam os gostos subjetivos.O otium dos antigos era um tempo deconstrução de si, manifestando-se no lazer cultivado e na con-templação, na meditação e na conversação.As bacanais deitavamabaixo os costumes sociais e levavam,na festa coletiva e extática,ao despojamento de si. O universo do lazer contemporâneo nãoé nem um nem outro: é o da privatização dos prazeres, da indi-vidualização e da comercialização do tempo livre. Tudo menosorgiástico-extática, a lógica que triunfa é a do tempo individua-lista do lazer-consumo.

Individualização não é isolamento ou mesmo retraimentoem relação à comunidade; o hiperconsumidor continua a procu-rar os "banhos de multidão': a ambiência festivados grandes es-petáculos, os prazeres do ao vivo e das discotecas, das ruas co-merciais, dos restaurantes e dos lugares na moda. Ora o "muitagente" causa horror, ora funciona como um estimulante e um in-grediente dos prazeres consumistas. O hiperindivíduo não é dio-nisíaco;consome ambiência dionisíaca instrumentalizando o co-letivo com vista a satisfaçõesprivadas.

Naturalmente, em certos casos o lazer-espetáculo despertaemoções coletivas,criando um laço de sociedade.Mas nos enga-namos ao atribuir-lhe uma função de substituto da religião.Pois,se o lazer pode reafirmar coesãocomunitária, é importante subli-nhar-lhe o caráter lábil, efêmero,muitas vezesepidérmico.De umlado, o lazer pode produzir unidade e coesão social.Mas, de ou-tro, cria sobretudo desligamento, dispersão, heterogeneidade so-cial, não sendo os gostos de uns de modo algum compartilhados

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pelos outros. Pelo lazer,é o cosmo relativista e pluralista do "cadadoido com sua mania" que se constitui. Com algumas exceções,oque o lazer refabrica é menos a preeminência do coletivo sobre oprincípio individual que uma divisãopacificado social, feita dedispersão individualista dos gostos e dos comportamentos.

Semuitos lazeres são vividos em microgrupos ou implicamuma ambiência coletiva, não percamos de vista que o domicílioprivado é que é o lugar privilegiado dos lazeres e da descontra-ção. Falar de uma espiral de comunhões tribais, de socialidadesorgiásticas, de situações de fusão transcendendo os comporta-mentos individualistas faz sorrir, quando se sabe que a televisãoocupa, e de longe, a maior parte do tempo de lazer.Em 2003, oseuropeus viram televisão três horas emeia por dia, em média. Osfrancesesconsagram 43 horas por semana, em média, à televisão,à escuta do rádio, de discos e cassetes.8No presente, mesmo du-rante o verão, os programas de TVconseguem conquistar o pú-blico: a duração de audiência nesse período é, em média, supe-rior à de outros meses do ano. Ao que se acrescenta a duração denavegação na internet, que logo será consideravelmente aumen-tada com a difusão das fórmulas de acesso ilimitado. Segundoum estudo publicado em 2005pela Universidade de Indiana, umamericano passa, em média, nove horas por dia diante da televi-são, na internet ou em seu telefone celular.Seexcessoexiste,ele émenos orgíaco que audiovisual, telefônico e virtual. É um Dio-nísio de pacotilha que nos é servido pela sociologia do cotidia-no, um Dionísio menos absorvido pela procura dos gozosdesen-freados que pelos consumos midiáticos, menos ávido de bacanaisconvulsivasque de tranqüilas felicidadesdomésticas. Quando osdoutos da Sorbonne celebram o retorno dos valores orgiásticos,o público, esse aprova O fabuloso destino deAmélie Poulain, os"prazeres minúsculos" e outras bagatelas!

Uma infinidade de lazeresvai nesse sentido. Excursões,clu-

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bes de férias, turismo cultural, fim de semana em casas de vera-neio, passeios pela cidade, jogos de azar, bricolagem e jardina-gem, atividades de forma e de manutenção, fenômenos com cer-tezamuito diferentesuns dos outros, mas sobre osquais omínimoque se pode dizer é que dificilmente oferecem o espetáculo deum dionisismo transbordante. De resto, este deixou de constituirum pólo de referênciade nossa época.Enquanto os desregramen-tos de todos os sentidos provocam cada vezmais medo, o espíri-to do tempo passou do culto deWilhelm Reichao do dalai-lama,do teatro de Artaud ao zen, das "máquinas desejantes" à "sabe-doria". O ideal não é mais dissolver o Eu em iconoclastias ine-briantes, mas encontrar a felicidade no equilíbrio, chegar à har-monia interior, viver em paz, de maneira sã e em forma.Evidentemente,nós nos situamos mais no prolongamento da sen-sualidade "moderada e tranqüila" do homem democrático des-crito por Tocqueville do que numa era de efervescências senso-riais e de hedonismo maximalista.Algo como um ideal apolíneose descobre no frenesi do consumo-mundo.

Era das comunidades, era dos indivíduos

A idéia central alegada pelos aduladores de Dionísio é quesomos arrastados por uma nova onda de modernidade, cuja par-ticularidade é não ser mais marcada pelo indivíduo, mas por seuenfraquecimento em aglomeraçõespontuais, conjuntos coletivos,microgrupos em que prevalecemos valoresde gozo e as emoçõesvividas em comum. Onde predominava a atomização individua-lista, agora se imporia um amálgama de pequenas comunidadesanimadas por intensas comunhões de afetos e de sentimentospartilhados. Os pequenos grupos, os clãse redes, eis o fenômenoapresentado como o próprio signo do caráter ultrapassado do in-

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dividualismo, da vitória do "nós" sobre as trajetórias singulares,da nova preeminência do coletivo sobre o indivíduo.

O fato de haver comunidades, atitudes de grupo, sensibili-dades comuns - eis uma observação sociológicabem pouco su-jeita adiscussão.Fazerdelauma máquina de guerra contra a inter-pretação individualista do social contemporâneo é uma questãobem diferente, cujo caráter mais do que frágil não émuito difícilde mostrar. Pois como não sublinhar o fato novo de que, daí emdiante, a inclusão comunitária é escolhida, reivindicada, exibidaostensivamente como uma maneira de ser um eu, como um ve-tor de identidade pessoal?Não mais a sujeição tradicional a umenglobamento aceito e vivido como uma evidência,mas, ao con-trário, um processo de auto-identificação, a afirmação de uma li-berdade subjetiva que se apropria de uma realidade coletiva.As-sim, a referência comunitária tornou-se uma "tecnologia" do eu.O que semanifesta émenos uma realidade supra-singular do queuma estratégia pessoal, uma instrumentalização do grupo comfins de valorização e de afirmação de si. De resto, do que depen-dem os fenômenos de poliinclusão e o caráter instável,móvel, doneotribalismo a não ser, precisamente, da lógica do indivíduodissociado,desligado,legisladorde sua própria vida?Não é a eva-são de si nas emoções e fusões coletivas que predomina, mas oHomo individualisdispondo de si próprio até em sua autodefini-ção social.

Ninguém contestará o fato de que, em torno dos esportesou dos estilosmusicais, das marcas ou dos looks,do consumo oudos sites da internet, se constituem comunidades emocionais deum novo gênero. Rappers,lookssurfe ou skate, comunidades vir-tuais, reuniões esportivas e associações,não se terminaria de fazera lista de todas as tribos que se formam e se desfazemem funçãodas modas e dos momentos. Mas como interpretar o fenômeno?Se,em certos grupos de jovens, o clanismo é inegavelmente rígi-

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do e conformista, o mesmo não acontecenos grupos mais velhos,em que os lazerese os modos de consumo são cada vezmais des-regulados e ecléticos.Fora de certos grupos de idade e de religião,as práticas de consumo e de lazer dão motivo apenas para iden-tificações"tribais" leves,distanciadas, para mimetismos à Iacar-te que são tudo, menos signos de desindividualização, visto quenelas se exprime o primado dos gostos e das escolhas pessoais.Mais nada é imposto de fora, as adesões e as separações são li-vres, de geometria variável,sem coerções institucionais. Daí o ca-ráter pontual, efêmero,frívolo dessas identidades de grupo. Atrásdo "nós" comunitário, é mais do que nunca o indivíduo no co-mando de si próprio que está em ação.Contra a leitura dionisia-na, é preciso ver no neotribalismo uma etapa suplementar doprocesso de individualização.

Embora reais, os comportamentos e emoções de grupo nãodevem ocultar a forte tendência à privatização do consumo e doslazeres, às compras calculadas e distanciadas do indivíduo quesuporta mal a promiscuidade da multidão, que se irrita com a es-pera nas caixas,que por toda parte se informa, compara, procu-ra a melhor relação qualidade/preço. Até nos momentos de exu-berância (liquidações, festas, férias), exprimem-se a lógica dasescolhas individuais, a porção utilitarista e reflexivado neocon-sumidor, o prazer de fazer "bons negócios".Os lazeres e os tem-plos do consumo são fatores de comunhão? Averdade é que elesrelacionam mais o indivíduo consigo mesmo do que provocama união dos membros de uma mesma comunidade.

da vida",ao Progresso, à melhoria perpétua da existência mate-rial. No século XVII, o cartesianismo já lança as bases intelectuaisda civilizaçãoprometéica da felicidade, anunciando o progressoao infinito para e pelo gênero humano. Recusando o dogma dacriação decaída e a sujeição do mundo visívelaos decretos do in-visível, os modernos inventaram a religião do progresso, a idéiade uma marcha indefinida rumo à felicidade a efetuar-se atravésdo domínio técnico do mundo. O paraíso não está mais no ou-tro mundo, é prometido nesta terra à inteligência e à ação inven-tiva dos próprios homens.

Com os modernos, a felicidade da humanidade identifica-se com o progresso das leis, da justiça e das condições materiaisda existência.Vencer as epidemias e alongar a duração média devida, eliminar a miséria e a pobreza, garantir a prosperidade damaioria, permitir que cada um esteja bem alimentado, bem alo-jado, bem-vestido: o bem-estar se impõe como um novo hori-zonte de sentido, a condição sine qua non da felicidade, um dosgrandes fins da humanidade que já não aceita sofrer passivamen-te sua evolução.Não é mais a mudança de si que aparece como ocaminho certo da felicidade, mas a transformação do mundo, aatividade fabricadora capaz de aliviar as penas, embelezar a vida,proporcionar cada vezmais satisfaçõesmateriais.Da mesma ma-neira como a modernidade democrática não pode ser separadados valores de liberdade e de igualdade, ela compõe um sistemacom a cultura do bem-estar que concretiza o ideal da felicidadeterrestre assim como a fé na razão e na ação transformador a doshomens.

O que se chama conforto constitui inegavelmente uma dasgrandes figuras do bem-estar moderno. Não sendo minha inten-ção fazer-lhe uma análise detalhada, me limitarei a destacar al-gumas das metamorfoses significativasdessa cultura material naera do hiperconsumo.

CONFORTO E BEM-ESTAR SENSITIVO

A felicidade não é, evidentemente, uma "idéia nova". Nova éa idéia de ter associado a conquista da felicidade às "facilidades

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Seasprimeiras manifestaçõesdo conforto moderno surgemno século XVIII,é preciso esperar a fase IIpara que ele chegue àcondição de valor de massa e de modo de vida generalizado. Es-se ciclo marca uma guinada: coincide com a democratização e atecnicizaçãocrescentedo conforto em uma sociedade que seem-penha em regulamentar e normalizar as instalações técnicas dohábitat com vista à definição de um "mínimo confortável" pro-metido a todos: área habitável, aquecimento central, sala de ba-nho, banheiros internos.9 Até então reservados à elite social, oselementos básicos do conforto generalizam-se no fim dos anos1970, no rastro do aumento do parque residencial, da reduçãodo hábitat insalubre, da melhoria das condições de habitação damaioria ligada ao desenvolvimento das infra-estruturas técnicas,que permitem o envio de água, gáse eletricidade.A época é tam-bém a que difundiu nos lares os produtos eletroeletrônicos, todoum conjunto de objetos de consumo constitutivos do modernoconforto doméstico: fogão a gás, refrigerador, máquina de lavar,aspirador, eletroportáteis, televisão, toca-discos. Ao longo dosTrinta Gloriosos, o conforto se impôs como uma preocupaçãocada vezmais importante, presente em todo o corpo social, umobjeto de consumo demassadestinado a ser renovado euma ima-gem paradigmática da felicidade individualista de massa.

Centrado na acumulação dos bens, na eletrificaçãoe na me-canização do lar, esse modelo de conforto é de tipo tecnicista-quantitativo e é sonhado como o que apaga as sujeições, comoprótesemiraculosa que traz higiene e intimidade, ganho de tem-po e facilidade de vida, distração e entretenimento passivos.Nocoração dessa mitologia encontram-se a simplificação das tare-fas comuns, a automaticidade funcional, a ausência de dificulda-de e de habilidade especializadado utilizador. Depois do confor-to-luxo típico da fase I burguesa, a fase IIpromoveu o imagináriodo conforto-liberdade("a técnica liberta a mulher"), ao mesmo

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tempo que o conforto-evasãodominado pelos gozos passivos do"pronto-para-consumir", de que a televisãooferecea melhor ilus-tração. Vitrine do progresso técnico e da racionalização do coti-diano, instrumento de uma vida melhor, o conforto tornou-se afigura central da felicidade-repouso, dos gozos fáceispossibilita-dos pelo universo técnico-mercantil.

Do conforto tecnicista ao bem-estar emocional

Essa página foi virada. Está em curso um outro ciclo cujodesenvolvimento não pode ser separado de vários processos, en-tre os quais se incluem a generalização social do equipamentobásico dos lares, a expansão das novas tecnologias da informa-ção e da comunicação, a individualização dosmodos de vida, mastambém a nova sensibilidade para os "danos do progresso" quese indigna com os grandes conjuntos habitacionais "inumanos",que protesta contra os engarrafamentos, as poluições atmosféri-cas e sonoras. Sobre esse fundo, nasceram novas exigências quedesenham uma nova cultura do conforto, sendo a terceira era doconforto democrático acompanhada por um deslocamento devalores, de imaginários, por redefinição das normas de uso.

Os sinais desseaggiornamentosão multiformes e dizem res-peito tanto ao espaço público quanto ao doméstico. No que serefere ao primeiro, a fase IIIvê afirmar-se a requalificação doscentros de cidade, a estetização da paisagem urbana, a demoli-ção dos grandes conjuntos habitacionais, a melhoria dos trans-portes públicos, a preocupação com o meio ambiente, a proteçãodas paisagens e do patrimônio. Todos essesfenômenos assinalamnão apenas o aparecimento de novos territórios do conforto, masde novas prioridades menos tecnocráticas que, levando em con-ta a qualidade da experiênciavivida dos usuários, permitem umaabordagem mais sensitivado bem-estar, do hábitat e dos objetos.

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Uma expressão resume essa evolução: ela faz sucesso a par-tir dos anos 1970.Trata-se da qualidade de vida assumida comonova fronteira do conforto, novo objetivo central da fase11I.Des-de então o "conforto mínimo" já não basta, os equipamentos e asinovações técnicas precisam responder melhor aos desejos e rit-mos de cada um, contribuir para o desenvolvimento da ameni-dade do ambiente em suas múltiplas dimensões, estéticas e cul-turais, conviviaise ecológicas,sensoriais e imaginárias. Omodelodominante do conforto moderno era tecnofuncionalista; o quechegaprescreveum conforto de prazer e de ornamento, um con-forto mais individualizado, sentido, interiorizado, capaz de pro-porcionar sensações agradáveis.1OJá não se trata apenas de sermais rápido, de libertar o corpo das sujeições, de dotar as mora-dias de um equipamento sanitário, mas de promover dispositi-vos que proporcionem prazeres sensitivose emocionais.

Daí a perfeita inadequação do paradigma dionisíaco aplica-do ao cosmo hipermoderno. A fase11Inão se assinalapela ressur-reição de Dionísio, mas pela invenção de uma nova cultura doconforto que, voltada para o maior bem-estar qualitativo e assubjetividades emocionais, não cessa, por isso mesmo, de fazerregredir a figura emblemática dos transbordamentos pulsionais.A "lei" é incontornável: quanto mais se afirma o conforto-mun-do, mais se apaga Dionísio. Não a superação do sujeito nos gru-pos ou no caos pulsional, mas o ideal de um ambiente confortá-vel do qual o indivíduo deve poder apropriar-se pessoalmentepara nele se sentir bem ou melhor. A sociedade de hiperconsu-mo caminha junto com a personalização e a emocionalização doconforto.

o amor pela casa: o conforto no conforto

Certo número de transformações observáveisna ordem ur-bana ilustra a nova orientação do conforto. Enquanto são demo-lidos os edifícios muito altos e os muito compridos em nome deum espaço urbano em "escala humana", são lançados trabalhosde recuperação do hábitat, bem como projetos de revitalizaçãodos centros de cidade.Aspraças públicas são"libertadas" dos veí-culos e devolvidas aos transeuntes, os grandes conjuntos habita-cionais e as margens dos rios são requalificados. Linhas de bon-de e ciclovias são instaladas a fim de desobstruir e despoluir oscentros. As cidades históricas são retocadas, ganham cenografiacom vista ao consumo cultural. As ruas de pedestres multipli-cam-se.Mesmo asestaçõesde metrô recebem novo look,são rear-rumadas, decoradas com uma preocupação de personalização ede amenidade da vida cotidiana. Aorientação quantitativa da fa-se II passou; agora o ideal se identifica com a proteção do patri-mônio e a busca do bem-estar urbano, com arranjos diversifica-dos que permitem a reapropriação sensível,lúdica e convivial doespaço. Ao racionalismo funcionalista e objetivista segue-se umracionalismo ampliado ou pluridimensional, que integra as as-pirações humanas à amenitas, inseparável dos valores de sensibi-lidade e de beleza, da memória e do imaginário. li

A expansão do subúrbio indica igualmente a nova preemi-nência da temática da qualidade de vida. Senossa época é teste-munha de um processo de gentrification [enobrecimento], é so-bretudo a que vê irromper uma verdadeira "maré de casas desubúrbio": mais da metade dos franceses habitam uma casa in-dividual com jardim nas periferias residenciais.Atravésdo gostopela casa individual não se exprime mais tanto um clássicodese-jo de exibição de sucesso social quanto a importância conferidaà qualidade de vida, que seconfunde com a"tranqüilidade", a au-

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tonomia de cada um, a segurança residencial. Doravante banali-zada, a casa de subúrbio tornou-se um símbolo das novas exi-gências individualistas de liberdade, de espaço habitável, de Na-tureza (o jardim). A intolerância com os incômodos ocasionadospor outrem, o gosto pela intimidade, a maior necessidade de se-gurança, todos essesfatores provocaram o superinvestimento nacasa individual, a escolha de viver longe da cidade, ainda que àcusta das contrariedades do aumento do tempo de transporte.Vivida como bolha protetora em relação ao exterior, a casa é umsigno, entre mil outros, da progressão de um neo-individualis-mo que não significaretraimento autárquico, mas aspiração à in-timidade, busca de prazeres protegidos, recusa de um ambientehumano apenas suportado e asfixiante.

Ao mesmo tempo, o "salário mínimo do conforto" já nãobasta. Na faseIII,as expectativaselevaram-se,prestando-se maioratenção à exposição ao sol, à posição da casa, à natureza, ao iso-lamento acústico e olfativo.Enquanto o tamanho das moradiasconstruídas tende a aumentar, a exigência de espaço constituiuma das principais demandas dos habitantes. Daí em diante, ca-da um deseja viver como entende e em seu ritmo, graças à mul-tiplicação dos equipamentos de conforto e de lazer.Às crianças éreconhecido o direito de decorar seu quarto segundo seus gos-tos, e até o tradicional quarto de casal começa a ser abalado emnome da liberdade do homem e da mulher. Por isso mesmo aidéia de saturação do princípio de individuação mostra-se tal co-mo é: um simples efeito retórico, passando ao lado do que cons-titui um dos grandes traços essenciaisda fase III,ou seja,a priva-tização dos modos de vida, a formidável expansão social dosdesejos de independência e de bem-estar das pessoas. Apaixãodominante do hiperconsumidor não é se perder nas fusões or-giásticas,mas vivermelhor "em casa': em um ambiente que cor-

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responda às novas exigências de segurança, de intimidade, de de-sabrochamento pessoal.

Na fase li, o conforto confundia-se com a mecanização dolar. O neoconsumidor não se contenta mais com isso. A época dafórmica na cozinha-laboratório, branca e fria, perde o brilho emfavor de cozinhas mais acolhedoras, mais calorosas, onde são afi-xados ímãs alegres e coloridos. Equipada agora com um exaus-tor, pintada com cores mais vivas e variadas, integrando elemen-tos decorativos, combinando a madeira e o high-tech, a cozinhatorna-se sala de estar, lugar de vida, por vezes o "coração" da ca-sa. O banheiro, antes austero, unicamente lugar de higiene, co-

meça a tornar-se lugar de descontração e de prazer, recebendoequipamentos sensualistas (duchas multijato, banheira de hidro-massagem), acessórios estéticos e uma variedade de produtos cos-méticos.

Na sala de estar, que se quer "prática" e convivial, presta-semaior atenção às qualidades de decoração e à luz, esta se impon-do como decoração em si, elemento de conforto visual. A violên-cia das iluminações diretas é substituída por luzes veladas e sua-ves, as velas e lamparinas que aquecem a atmosfera, as lâmpadashalógenas e os reguladores que criam ambiências sob medida,moldando a intensidade da luz. O ciclo anterior desenvolveu-seem torno dos valores da funcionalidade e da racionalidade pura.Já não é mais assim: o conforto hipermoderno tem valor apenasna medida em que veicula valores sensíveis e táteis, um bem-es-tar holístico, sensitivo e estético. Após a fria tecnicização do con-forto, sua hedonização, sua subjetivação, sua polissensualização.

O sucesso alcançado pelo hábitat com vegetação, pelas plan-tas de vaso, os jardins, as varandas e janelas floridas ilustra igual-mente essa evolução. Em trinta anos, o número de jardins, naFrança, dobrou. O jardim individual não tem mais a função dealimentar as famílias modestas; tornou-se jardim hedonista, jar-

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dim-descanso, espaço convivial arrumado com uma preocupa-ção estética comparável à que é praticada na casa. Espaço estéti-co, ele é também lugar que proporciona os prazeres sensoriais dover, sentir, tocar. Não mais o "corpo-ferramenta" a que se dirigiao conforto moderno, mas o corpo das emoções, dos prazeres es-téticos e sensitivos. O que se manifesta confunde-se com o dese-

jo de um conforto ao quadrado, de um conforto no conforto quejá não se define exclusivamente por critérios objetivos de econo-mia de tempo e de esforço, mas por qualidades percebidas, he-donistas, estéticas e sensitivas.

Nossos contemporâneos passam cada vez mais tempo emcasa - quinze horas e meia em média, por dia, para os ativos,vinte horas e dez minutos para os inativos -, ali fazem mais coi-sas e investem mais tempo, amor e dinheiro em seu equipamen-to e seu embelezamento. O interesse dirigido à auto-arrumaçãodo hábitat é percebido através do desenvolvimento das ativida-des e do mercado da bricolagem, da multiplicação dos comérciosde bibelôs, do sucesso das lojas consagradas à decoração de inte-riores. A nova relação com o mobiliário traduz a mesma tendên-cia. Até os anos 1980, as famílias compravam móveis destinadosa ser conservados por toda a vida. Inversão de tendência: hoje, osmóveis contemporâneos roubam o primeiro lugar do mobiliáriode estilo ou rústico, em resposta aos gostos pelo novo e pelo prazerde mudar de decoração. A fim de que a casa não dê uma impres-são impessoal, o hiperconsumidor "fuça" as feiras de velharias, 12

mistura os objetos, casa os estilos para compor uma decoraçãosingular, uma ambiência criativa "que tenha a cara dele". A deco-ração da casa libertou-se do imperativo ostentatório em favor dovalor de ambiência: à lógica de exibição estatutária sucede umalógica de sedução afetiva, intimizada, intrafamiliar.

Daí uma dinâmica de pluralização das decorações de inte-rior. Se os conjuntos construídos se assemelham, a decoração dos

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interiores despadroniza-se, personaliza-se, tende a tornar-se maisoriginal, trazendo a marca dos gostos particulares. Depois da de-coração-posição social, a casa hedonista e convivial baseada emum individualismo decorativo de massa. Na fase m, o conforto nãoé tão associado à passividade do consumidor quanto à atividadedecorativa e à apropriação pessoal da casa.

Naturalmente, as maneiras de arrumar o lar não deixam deter ligação com as inclusões de classe ou com os microgrupos. Masa verdade é que as normas de grupo já não constituem obstáculoao desenvolvimento das práticas e gostos particulares, ao que Mar-tine Segalen e Béatrix LeWita chamam de "criações familiais".'3Às regras estritas do "bom gosto" sucedem, tendencialmente, for-mas "livres" de decoração e de mobiliação que se organizam se-gundo fórmulas de geometria variável, descompartimentadas edescoordenadas, exprimindo o desejo de afirmar-se como o "cria-dor" de seu local de vida: a arrumação personalizada e os estilosespecíficos de decoração sobrepuseram-se ao "totallook" padro-nizado. Individualização da casa não significa nem independên-cia absoluta em relação às diferentes normas sociais nem origina-lidade radical, masuma relação com o interior definida em termosde amor, de identidade pessoal, de encenação de si e da família.Desvalorização das decorações impessoais, busca de uma quali-dade de ambiência, preponderância da personalidade singular so-bre a regra de grupo: a fase IIIvê triunfar a psicologização, a afeti-vização da relação estética com a casa.

Conforto, tecnologias de conexão e segurança

Se é verdade que o conforto, na fase m, comporta uma im-portante dimensão de satisfação sensorial, esta não constitui porsi só a totalidade do fenômeno. Como o poderia, em uma épocaatormentada pelossentimentos de insegurança? Nos Estados Uni-

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:1".:1 dos, asgated communities são um verdadeiro sucessono seio das

classesabastadas. Na Europa, na França, multiplicam-se as resi-dências munidas de dispositivos de segurança e as técnicas de vi-deovigilância dos espaços privativos. Cada vezmais imóveis sãodotados de portas com comando digital, e já são incontáveis osapartamentos com porta blindada e sistema de alarme. Aomes-mo tempo, as famíliasque se instalam no subúrbio invocam comfreqüência, entre os primeiros motivos de sua decisão, o desejode viver em um ambiente social sem riscos.Enquanto prosperamas sociedades de segurança e de televigilância, enquanto semul-tiplicam as cercas de jardim e os cães de guarda, intensifica-se osentimento de ser ameaçado pelo outro. Nesse contexto, o bem-estar já não é concebido sem sistemade segurança. Sãomenos osafetos tribais que redesenham a vida social e individual do queos cuidados com segurança, os desejos de evitação,a busca de vi-zinhança tranqüilizadora e de espaçosprivados protegidos.Ahe-donização do conforto só progride em paralelo com a inflaçãodas preocupações com segurança.

A idade de ouro do conforto moderno anunciava-se comopromessa de felicidade,de vida fácile mais livre. Esseclima mu-dou, o conforto hipermoderno não se separa mais de uma infi-nidade de dispositivos encarregados de prover segurança, prote-ger, prevenir, minimizar os riscos. O imaginário de libertaçãoindefinida foi substituído por uma cultura do conforto rodeadode ameaças e de inquietações causadas pelo próprio progresso.Ahora é dos "diagnósticos de saúde da casa"; é preciso prevenir apoluição do ar interno, sensibilizar para os produtos químicosemitidos pelos materiais de construção, reduzir a exposição àspartículas nocivas,eliminar os contaminantes biológicos e os po-luentes químicos, escolher materiais biodinâmicos, suprimir ostapetes e carpetes, equipar-se com filtros de água e de ar."Nossascasasnos envenenam": o conforto doméstico desenvolve-seago-

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ra sobre um fundo de sensibilização aos riscos e ameaças sanitá-rias que pairam sobre nós. O conforto era sinônimo devida acon-chegadae tranqüila; elepede cadavezmedidas de prevenção,bemcomo a vigilânciaativa dos hiperconsumidores ansiosos.

Os sistemas de segurança não são os únicos a reconfiguraro conforto-mundo segundo um registro extra-sensorial. As no-vas multimídias, o ciberespaço, todas as tecnologias da informa-ção e da comunicação criam, com efeito, um modelo de confor-to radicalmente estranho aos valores sensualistas, visto queassociado ao virtual, à operacionalidade das trocas, à interativi-dade comunicacional. Com a nova era eletrônica, o conforto jánão está tão centrado na eliminação dos esforços penosos quan-to no que favorece a comunicação, a instantaneidade das trocas,a agilidade na emissão e na recepção das mensagens.

Alastra-se uma nova espécie de conforto que se identificacom a abundância informacional, as interações virtuais, a acessi-bilidade permanente e ilimitada. Não é nem ao corpo-máquinanem ao corpo das sensaçõesque se dirigem as novas tecnologias,mas ao Romo communicans ligado às redes, interconectado, po-dendo ser contatado em todo lugar, a todo momento. Enquantocada vezmais produtos circulam sob a forma de bits e não maisde produtos manufaturados, o gozo das coisas agora é tambémembriaguez das telecomunicações e da abundância digital.O mo-. delo do conforto-repouso recua, ei-Io sofrendo a concorrênciado bem-estar-conexão ou das tecnologiasde conexãoque propor-cionam a satisfação de não se sentir isolado do mundo, de estarpermanentemente conectado com o exterior, de ter acesso ime-diato e ilimitado à informação, às imagens, à música.

O conforto burguês estava associado à indolência, ao calordo home, aos dispositivos que permitem que o corpo disponhade sua plenitude. A essemodelo sejustapõe, daí em diante, o con-forto desmaterializado ou digitalizado das redes, um conforto

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abstrato de comunicação, de encontros e de informações livresdo corpo sensível.I4 No espaço-tempo da internet, não apenas ocorpo é posto entre parênteses, mas também o tradicional espa-ço privado. Permitindo jogar com a identidade pessoal, tudo di-zer impunemente, ser visto e entrar em contato instantâneo com

incontáveis desconhecidos, o ciberespaço cria um novo gênerode conforto, um conforto de terceiro grau, assinalado por traçoshiperprivados ao mesmo tempo que hiperpúblicos.ls

Na faselI, os bens de conforto eram mais utilizados para eco-nomizar os esforços físicosque para poupar o tempo. 16 Se, natu-ralmente, os desejos de economizar esforço se prolongam, é for-çoso observar que nossa época está cada vez mais obcecada pelavelocidade e pela compressão extrema do espaço-tempo. Fax, e-mail, programas de busca, GPS:no hiperespaço-tempo das redesvirtuais impõe-se um tempo acelerado, instantâneo, sem dura-ção. Essa corrida contra o tempo, esse tempo cada vez mais curto,condensado ao máximo, apodera-se de um número crescente desetores da vida social. Trens-bala, comida rápida, pratos prontos,forno de microondas, controle remoto, distribuidores automáti-cos, cibercomércio: o que chamamos de bem-estar material asse-

melha-se cada vez mais a um conforto-tempo que desconhece pra-zos e lentidões. O conforto que se anuncia relaciona-se não tantoao corpo de Dionísio quanto à imaterialidade de Cronos sob tensão.

Nesse contexto, analisar o novo modelo de conforto pelapromoção do referencial "qualidade" em substituição ao antigoprincípio quantitativol7 não é suficiente. Se é verdade que a pro-blemática da qualidade está realmente no centro da fase III,é for-çoso observar que a escalada do "sempre mais" não está de mo-do algum enterrada. Bem ao contrário. Excrescência vertiginosado número de páginas e de sites virtuais, informação pletóricasobre o ciberespaço, auto-estradas eletrônicas, multiplicação dosserviços, abundância das fotos digitais, comunicação em tempo

real, é mais do que nunca uma dinâmica hiperbólica que servede base ao conforto da época hiperconsumidora. O ideal do "me-lhor" não eliminou de uma vez a cultura do "mais" trazida pelouniverso tecnomercantil: daí em diante, essasduas lógicas se de-senvolvemsimultaneamente.

É preciso recusar tanto as leituras pós-modernistas quantoas de ficção científica ou apocalípticas do conforto contemporâ-neo. Pois este é a uma só vez high-teche cultural, virtual e sensí-vel, abstrato e tátil, funcional e emocional, dromocrático (Viri-lio) e estético.A ruptura com a primeira modernidade está longede ser total, porções inteiras de nosso mundo não fazemmais quelevar ao extremo a dinâmica prometéica. O que testemunhamosnão é tanto a emergência de uma cultura "pós-moderna" quantouma hipermodernização do conforto, dominado pelas escaladasdo tempo eda velocidade,pela excrescênciadomercado eda ofer-ta. Ironia da época: quanto mais são celebrados os valores sensí-veis,mais somos testemunhas de um excessode técnicas digitais,de velocidadee de instantaneidade.O bem-estar da fase III seconstrói sob o signo da síntese hipermoderna das lógicas quali-tativas e das lógicas conquistadoras hiperbólicas.

O design polissensorial

O universo dos objetos e das formas ilustra igualmente a no-va era do bem-estar. Foi-se o tempo em que os futuristas viam namáquina e no automóvel o que nos devia fazer "assistir ao nasci-mento do Centauro". Hoje, as marcas de carro não se comunicammais pela velocidade: exaltam a segurança, o conforto, a sereni-dade, novas maneiras de viver o espaço e o tempo da viagem: "Nir-vana em 5,9 segundos" (Nissan). Na relação com a casa, assiste-se ao sucesso do Feng Shui. Os spas apostam na harmonia docorpo e do espírito. Os produtos de cuidados pessoais revisitam

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o espírito zen com formas minimalistas, tudo em linhas depura-das, sobriedade e coressimples.Os arquitetos de lojasprivilegiama pureza e a transparência dos espaços.OHomo consumericusnãosemetamorfoseou miraculosamente emmestre de sabedoria:sim-plesmente, o caos dionisíaco é deslegitimado, destronado pela"atitude zen':

Aomesmo tempo, o design contemporâneo exibe uma no-va predileção pelos objetos gordinhos, de linhas ovóides, crian-do um universo suave,maternal, acolhedor.Automóvel, telefone,vagão de trem-bala, bonde, computador iMac,máquina fotográ-fica, barbeador elétrico: um pouco em toda parte, o design re-concilia-se com os arredondados, as formas torneadas e orgâni-cas, ao contrário do funcionalismo geométrico caro à Bauhaus.Seo design da primeira modernidade era anguloso e ãscético, oda segunda pretende ser amigável, feminino, não agressivo, emresposta à necessidade de maior bem-estar e de meio ambientetranqüilizante. Suavizando-se, as formas tecnológicas valorizamas sensaçõestáteis, a descontração, um conforto fluido e calman-te: um imaginário de sensualismo apolíneo ou eurrítmico é queé difundido por toda uma tendência do design contemporâneo.

O mobiliário concretiza igualmente a nova cultura do con-forto mais centrado nas ressonâncias sensitivas que na exibiçãode signos ricos. Desde o fim dos anos 1960,faz sucessoo confor-to anticonformista que preconiza um estilo coo1,descontraído ou"desleixado".O conforto burguês, opulento, empertigado, gran-diloqüente, é desqualificado em favor dos móveis baixos, rentesao solo, do carpete e das almofadas que permitem sentar-se nochão: o famoso "sacco"que toma a forma do corpo quando sesenta nele data, significativamente, de 1968.A postura anticon-vencionalista já se tornou inoportuna, mas a mobiliação corres-pondente a um ideal de vida menos rígido e sofisticado triunfa,como o mostram as cadeiras dobráveis e as poltronas de relaxa-

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mento, os móveis equipados com rodinhas, as camas multifun-ção, que integram dormida, plano de trabalho e lugar para guar-dar coisas,os sofáscom várias profundidades, prestando-se a di-ferentes posturas. Se uma tendência do design contemporâneoprivilegia o humor e a fantasia, outra, com público mais vasto,valoriza um estilo simples e caloroso, à maneira dos móveis es-candinavos de madeira clara e com cores pálidas. Nesse contex-to, têm aprovação os materiais levese naturais, os móveis dobrá-veis,empilháveis e moduláveis, fáceisde acomodar e de deslocar,tudo o que permite ganhar espaço.O estiloburguês feitode amon-toamentos e de excessosdecorativos está ultrapassado, da mes-ma maneira que o funcionalismo esterilizado. O design hiper-moderno privilegia o leve, a mobilidade e a adaptabilidade, aassociação do funcional e do sentido, do depurado e do convi-vial, do nomadismo e do ludismo. É a um conforto psicológico esensitivo que visa o neo-design, que reflete o sistema de referên-cias do hiperindivíduo descompartimentado.

Mais amplamente, desde os anos 1990vemos desenvolver-seum design de tipo polissensorial que tem por objetivo otimizar adimensão sensorial dos produtos, proporcionando impressões deconforto e sensaçõesde prazer. É assim que o design de produtostende a tornar-se um design de experiências sensíveiscujo valoragregado não residemais apenas na forma visual,mas na dimen-são sensitiva dos produtos industriais. São incontáveis os produ-tos que, atravésdos materiais utilizados,dos modos de fechoe dasembalagens, pretendem criar sensaçõestáteis, sonoras e olfativas.Os produtos já não se contentam em funcionar com eficiência,devem despertar o prazer dos sentidos, oferecer uma qualidadesonora ou olfativa,fornecer um suplemento de realidade tátil, fa-vorecer uma experiênciasensitivae emocional.Trata-sede sugerira função pelo aumento das qualidades percebidas ou do contatosensívelcom o produto. Depois de um design frio, unidimensio-

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nal, compartimentado, desenvolve-seum design global e expres-sivoque investenas sensaçõescorporais e na felicidadedos senti-dos. O primeiro, tecnocentrado, impunha de fora suas criaçõesaopúblico; o segundo, antropocentrado, vem em resposta às expec-tativas de qualidade de vida, de maior bem-estar sensorial numaépoca que vê proliferar o virtual e o digital.Novamente, manifes-ta-se a dualidade do conforto hipermoderno: quanto mais se alas-tra a cultura digital com seu alheamento do real,mais se intensi-ficaa necessidadeda densidade sensorial das coisas,o "50fttouch'~o gosto pela sensualidadedosmateriais.

O design intransigente da Bauhaus construiu-se em tornoda fé no progresso e na racionalidade técnica do engenheiro. Eleexprimia uma cultura que glorificava a eficácia pura, o despoja-mento das formas, a razão conquistadora, a vitória sobre as for-ças arcaicas do passado. Não estamos mais aí. No momento dasegunda modernidade marcada pelo esgotamento da idolatria dahistória, o design pretende-se menos revolucionário que prote-tor e tranqüilizante. Quando a modernização já não tem de com-bater os elementos oriundos da cultura tradicional, a ambiçãodo design não é mais tanto de erigir símbolos de modernidadetriunfal quanto um meio ambiente acolhedor e reconfortante,um conforto hipermoderno que concilia o funcional e a expe-riêpcia vivida emocional, a eficácia e as necessidades psíquicasdo homem. O objeto não é mais um hino à racionalidade cons-trutivista e mecanicista, mas à felicidade sensitiva, implicandoum conforto com "cara humana'~apropriável e habitável.

BEBER E COMER

Ao dar aos seres humanos "a felicidade suprema da bacanal)~Dionísio abria-Ihes seu paraíso selvagem nos ritos de abundân-

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da e na alegria dos festins acompanhados de ímpetos de gluto-naria e de bebedeira. Esse modelo teve uma longuíssima vida his-tórica: ainda nos anos 1950, uma "boa mesa" significava, nas clas-

ses populares, refeição substancial, copiosa, antes rica queequilibrada. Enquanto sábado e domingo era preciso comer à far-ta, nas grandes ocasiões de festa a bebida devia correr aos borbo-tões, a "boa vida" implicando, no sentido popular, alegres liba-ções, excesso dos prazeres do paladar. 18

Gargântua envergonhado

Evidentemente, esse epicurismo gargantuesco já não é usual,perdeu seu lustro, condenado que é pelas normas sanitárias e esté-ticas de nosso tempo. Já não se fazem comilanças, fazem-se regi-mes. Asprateleiras dos supermercados estão carregadas de alimen-tos biodinâmicos, de produtos com pouca gordura, "pró-bióticos"e outros alimentos saudáveis. Quanto às tradicionais refeições in-termináveis do domingo, elas nos causam horror. Comer com far-tura, fazer uma comezaina, deixou de ser uma paixão popular, aépoca aprova as refeições equilibradas, a alimentação leve benéfi-ca à saúde e à magreza. Daí em diante, espera-se dos alimentosque melhorem a saúde, reforcem a vitalidade, retardem o apare-cimento das rugas (cosmeto-food), impeçam o ganho de peso.Cada vez mais, a alimentação é considerada como um meio deprevenção ou mesmo de tratamento de certas doenças: a saúde, alongevidade, a beleza tornaram-se os novos referenciais que en-quadram a relação com a mesa.

Uma tendência análoga transformou os comportamentosdo bebedor. As campanhas de luta contra o alcoolismo, o reforçoda repressão a dirigir em estado de embriaguez, os novos modosde vida individualistas mudaram os hábitos ancestrais: entre 1960e 2001, o consumo de álcool por adulto passou de 24,6 litros por

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ano para 15,1litros; o do vinho, de cem litros para 58 litros. En-quanto os consumidores regulares de vinho recuam, os consu-mos de águasminerais, sucos de frutas, refrigerantes e outras be-bidas sem álcool sobem rapidamente. O dionisismo estavaassociado ao calor do vinho e da embriaguez: daí em diante, be-be-se frio e açucarado. Por toda parte as libações abundantes sãocombatidas em nome da higiene de vida e da segurança das es-tradas. A sociedade de hiperconsumo é acompanhada não poruma nova modulação do dionisíaco, mas por sua desqualifica-ção radical por meio da sensibilização quanto aos riscos. À em-briaguez báquica, que pretende deixar fora de si quem a ela seentrega, sucede a responsabilização do bebedor ou mesmo suacriminalização. O excessoera assimilado à sociabilidade e a umtempo de felicidade exuberante: tornou-se uma ameaça para si epara os outros.

Beber com moderação, comer biodinamicamente, aumen-tar o consumo dos alimentos ricos em fibras, reduzir os açúcarese as gorduras, equilibrar as refeições:o que resta dos paroxismosdionisíacos?Na fase III,trata-se de informar-se, vigiar a qualida-de dos alimentos, autovigiar o conteúdo dos pratos. Tomar cons-ciência dos riscos, corrigir os hábitos alimentares: eis o comedorremetido à sua responsabilidade de sujeito. Em vezdas ingestõeshiperbólicas celebrando o triunfo da abundância material e pres-critas pelos ritos coletivos,desenvolve-seum trabalho de subjeti-vização em relação ao que se come e se bebe, uma preocupaçãodietética baseada na contribuição dos saberes científicos. A cul-tura dionisíaca esgotou-se em seu próprio princípio: o beber e ocomer entraram na era da reflexividadee da responsabilidade in-dividual.19

No entanto, é nesse exato momento que se propagam comoum maremoto asbulimias e outras anarquias alimentares.De umlado, os valores de magreza, de saúde e de equilíbrio alimentar

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impõm-se soberanamente; do outro, multiplicam-se as compul-sões e frenesis do neocomedor. Mas nada disso acena à alegriadionisíaca. Bem ao contrário. Os excessos à mesa eram de origemcoletiva, os nossos são individuais; eram festivos, são neuróticos;constituíam uma figura da felicidade coletiva, agora culpabili-zam os indivíduos, tomando um caráter vergonhoso e patológi-co em uma cultura que reconhece apenas o controle de si.

Prazeres gastronõmicos e cozinha hipermoderna

Evitemos, contudo, assimilar o modelo da alimentação-saú-de ao naufrágio do Homo gastronomicus. Os guias de cozinha e oslivros de receitas que detalham os prazeres gastronômicos inva-dem as prateleiras das livrarias. Jamais a gastronomia, os "chefs",os grandes restaurantes, os bons vinhos foram tão comentados,auscultados, postos em cena pelas mídias. Ao mesmo tempo, omercado (vinho, café, chá, queijos, pão, água...) evolui para níveisde qualidade superior: se os vinhos rotineiros declinam, os de qua-lidade progridem. Em toda parte, a oferta diversifica-se em sinto-nia com uma demanda maior de sabores variados, de frescor, de"naturalidade". Os selos de qualidade (denominação de origemcontrolada, biodinâmico, caseiro, serrano, selo vermelho) atraemcada vez mais os consumidores. Contrariamente à cantilena da

degradação do gosto, assiste-se, na França, a uma forte valoriza-ção do sabor dos alimentos, assim como a uma forte recuperaçãodo referencial prazer.2UA felicidade alimentar não encontra maissua plena expressão nos banquetes desmedidos, mas na sensuali-dade da degustação e na busca das qualidades gustativas.

O hedonismo do comedor hipermoderno exprime-se aindana valorização da novidade e da diversidade alimentares. Dos 30mil restaurantes recenseados em Paris, mais da metade é consa-

grada às cozinhas do mundo, aos pratos estrangeiros e exóticos. O

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prazer do hiperconsumidor é buscado cada vez mais na varieda-

de, na mudança, na descoberta de lugares e de pratos novos, nafantasia e na originalidade das refeições. Depois da nouvelle cuisi-ne dos anos 1970, baseada na recusa dos molhos ricos e na valori-zação dos produtos, a fase IIIprestigia o fooding, a cozinha worldfusion que conjuga os sabores, mistura os gostos e os produtos pa-ra além das tradições. Ao lado da gastronomia clássica, desenvol-vem-se agora cozinhas patchwork, que dão tanta importância aoconteúdo dos pratos quanto à criatividade, à surpresa das descon-textualizações, ao humor. Por vezes, à extravagância, como o ates-tam as receitas "antenadas" do frango com Coca-Cola, sushis comfoie gras ou costeletas de vitela regadas com limonada. Assim, ve-mos a alimentação conquistada, por sua vez, pela forma-moda, quetransforma a refeição em entertainment, em divertimento total,com comidas inéditas, mise-en-scene criativa do prato, decoraçãodesign, música ao gosto do dia. Os anglo-saxões chamam essa ten-dência de eatertainment, como se a animação e o divertimento im-portassem tanto quanto o prazer na degustação dos pratos.

Cozinha-moda, criativa e alquímica, desestruturada e mesti-çada: a nova estrela da gastronomia, Ferran Adrià, concebeu um"laboratório" no qual são sistematicamente experimentadas com-binações gustativas inéditas. Os cardápios são compostos de pra-tos destradicionalizados que cruzam os aromas, descolando osprodutos de sua aparência e de seu contexto habituais. Tanto a or-gia dionisíaca como o bom gosto burguês estão agora destrona-dos por uma cozinha meio-prometéica, meio-Iúdica, dominadapelos valores da invenção e da imaginação, da desconstrução e doscontrastes de texturas. Na sociedade de hiperconsumo, já não bas-ta saborear pratos, a mesa deve ser a ocasião de uma "viagem': deuma espécie de experiência sinestésica que satisfaz os seis senti-dos, "sendo o sexto sentido a emoção, a sensibilidade" (F.Adrià).

Eclipse de Dionísio não quer dizer regressão dos prazeres

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t.

sensoriais, mas desenvolvimento de uma cultura hedonista sob alei da variedade, da mudança acelerada, da fantasia-espetáculo.Baudelaire já assinalava que "a curiosidade tornou-se uma pai-xão fatal, irresistível".21Quanto a isso,a cozinha não fazmais queprolongar o que já está maciçamente em ação nos jogos, nos es-portes, no consumo em geral.Morre um tipo de prazer, nascemoutros que não são nem melhores nem piores que os da era dosexcessos à mesa. Uma nova civilização da felicidade sensível seinventa: não há que lamentar o desaparecimento de Dionísio.

o DESVANECIMENTO DO CARPE DIEM

Distribuidor de alegrias em abundância, Dionísio era o deusque incitava os homens a gozar à larga, a deixar-se levar, provan-do tanto os prazeres simples quanto os gozos da bacanal extáti-ca. E é precisamente esse ethos de alegria que nós redescobrimos,declaram seus novos apóstolos, insistindo na nova cultura coti-diana que presta um culto às sensações imediatas, aos prazeresdo corpo e dos sentidos, às volúpias do presente. Hedonismo pre-mente, sagração dos sentidos, existência presenteísta: a ética quepredomina convida, ao que nos dizem, a aproveitar o instante, atomar a vida pelo lado bom, a gozar ao máximo os prazeres daexistência sem se projetar no futuro, sem pensar no amanhã. Aco-modar-se ao mundo tal como é, gozar aqui e agora, a época seriatestemunha de uma formidável acentuação do carpe diem.

Digamos com toda a clareza: a meu ver, não se poderia estarmais enganado no diagnóstico. Pois o que é que, em nossos dias,não está cercado de ameaças, de incertezas e de riscos? O empre-go, o planeta, as novas tecnologias, a globalização, a vida sexual, aescolha dos estudos, as aposentadorias, a imigração, os "subúr-bios", quase tudo é suscetível de alimentar os sentimentos de in-

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quietação. Enquanto não se crê mais em um futuro necessaria-

mente melhor que o presente, elevam-se novos medos ligados aopresente e ao futuro. Quanto mais a felicidade hedonista é exibi-

da, mais é acompanhada por "temores e tremores": o que se propa-ga é menos o carpe diem do que o sentimento de insegurança. Naverdade, o culto do instante não está à nossa frente: ele regride.22

o triunfo de Knock

II

Nada invalida tanto o modelo presenteísta quanto a amplia-ção das preocupações relativas à saúde e à doença. As revistas, osdebates, os programas de televisão consagrados à saúde apaixo-nam um público de massa; os problemas da saúde invadem asconversas rotineiras; um número crescente de domínios da vida

social e individual (fracasso escolar, dificuldades conjugais, so-no, estresse, alimentação, aparência) se acha cercado pela avalia-ção médica e psicológica. Enquanto as despesas de saúde obede-cem a uma curva exponencial, os modos de vida e o consumo semedicalizam. Tentacular, onipresente, o processo de medicaliza-ção da sociedade transformou as expectativas, as prioridades, osmodos de existência de todos.

Em semelhante contexto de sanitarização, alonga-se a listados elementos causadores de medos e de ansiedades. Ondas dotelefone móvel, OGM(organismo geneticamente modificado), se-xo, cânabis, acarídeos, cigarros, raios de sol, o ar que se respira, aágua que se bebe, a carne que se come, tudo é cada vez mais per-cebido em função dos riscos sanitários. As condições sanitáriaspodem ser mais seguras do que nunca, mas as ameaças são sen-tidas em toda parte, "tudo constitui perigo': De fato, a hedoniza-ção dos modos de vida desenvolve-se apenas sobre fundo de dra-matização sanitária e higiênica. O emocionalismo hipermodernonão é dionisíaco, é onifóbico.

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11.

IliIfIlr

O que se traduz por retornos crescentes aos médicos, assimcomo pela propensão a declarar sempre mais sintomas e distúr-bios de doenças. Não é o reencantamento do mundo que se es-boça, mas a intolerância à dor, a patologização crescente de si, osuperconsumo medicamentoso, a extrema sensibilização aos pro-blemas de saúde. Busca de êxtases sensoriais? Em vez disso, ve-mos proliferar o medo da doença e da velhice, os gestos de saúdecom vista ao maior bem-estar, à forma e à longevidade. Menos"curtir" que gerir seu capital corpo, conservar-se em boa saúde,envelhecer em "bom estado": a vigilância do Homo sanitas con-seguiu reduzir como nunca o desatino dionisíaco.

O desejo de saúde não é novo. Novo é o lugar ocupado pelaprevenção nas políticas e nas práticas da saúde. Não se trata maisapenas de curar, mas de prevenir os males, de intervir na origemdo aparecimento das situações críticas. Com o avanço da medi-cina preventiva, a doença cede lugar ao risco: quando "as pessoassaudáveis são doentes que se desconhecem", o papel da medicinaé de mudar os hábitos de comportamento em relação às condu-tas de risco, ensinar a vigiar-se, conscientizar os que não se quei-xam de nada. O objetivo perseguido é estender os cuidados desaúde a qualquer um, prever o futuro, inquietar as pessoas antesmesmo do aparecimento dos sintomas. Não a preocupação de li-bertar-se de si, mas ocupar-se incansavelmente com o corpo, asaúde, a forma; não fundir-se em comunidades, mas mudar seuscomportamentos a fim de retardar os efeitos da idade e preveniras doenças; não "esbanjar" a vida, mas despistar os fatores de ris-co, fazer exercícios de manutenção, vigiar a alimentação. Não é odeleite do carpe diem que se anuncia, é Knock:*23essa é a ironiada civilização hedonista, que leva menos a degustar o instante

* Knock ou o triunfo da medicina é uma peça de teatro de Jules Romains, de 19220(NoTo)

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puro que a se projetar indefinidamente no futuro, que convidamenos a buscar todos os prazeres que a vigiar o corpo e seus há-bitos, menos a viver de modo intenso que a se proteger para pro-longar o tempo da vida.

Ao longo dos anos da contracultura, conheceu-se um indi-

vidualismo de transgressão e de contestação. Mais amplamente, oúltimo meio século foi marcado por um individualismo de eman-cipação em relação aos enquadramentos coletivos, fossem eles fa-miliais e morais, religiosos ou políticos. Se essa dinâmica de au-tonomização dos atores prossegue, nem por isso deixou de serum ideal mobilizador, um objeto de conquista, um projeto de vi-da. Nesse quadro, um novo nível de individualização foi trans-posto: ele coincide com um individualismo de precaução e de pro-teção. À febre da liberação sucede a obsessão da prevenção; oêxtase do instante é seguido pelo culto da autoconservação. Oideal perseguido pelo hiperindivíduo é menos o gozo que a saúde.

Metáfora por metáfora, entre Dionísio e Narciso erigidosem modelos arquetípicos da cultura hipermoderna, a escolha nãoé muito difícil. No rastro da medicalização da sociedade, Narcisotriunfou sobre Dionísio, um Narciso menos despreocupado quevigilante, menos maravilhado com sua beleza que apreensivo comsua aparência e sua saúde, menos fechado em si mesmo que aten-to às informações e aos riscos sanitários. Narciso já não se perdena contemplação de sua imagem, consulta médicos e especialis-tas, adota estratégias de prevenção, muda sua alimentação, re-nuncia ao tabaco, protege-se do sol, pratica atividades de recu-peração da forma, corrige sua aparência física. Narciso não é maisapenas o Homo aestheticus, mas também o Homo medicus, me-nos passivo e hipnotizado que ator informado responsável por sipróprio, vigiando-se, transformando seu aspecto físico assim co-mo sua higiene de vida.

Por isso é preciso contestar as sociologias que interpretam a

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cultura contemporânea sob o signo de um presenteísmo todo decelebração dos prazeres vividos dia a dia. Averdade é que os in-divíduos, bombardeados por informações mais ou menos alar-mistas e divididos entre normas contlitantes, vivem cada vezme-nos na despreocupação do instante. De um lado, as solicitaçõeshedonísticas; do outro, torrentes de informações sobre os riscosque nos ameaçam. Aqui, a exaltação dos prazeres imediatos; ali,normas incitando a vigiar-se, perder peso, eliminar os excessos,proteger-se dos fatores de risco. A sociedade de hiperconsumoleva a tudo, menos à plena coincidência do presente consigo pró-prio. Em vezda conciliação com o instante, a faseIIIprovoca umarelação consigo e com o tempo imediato cada vez mais proble-mática e causadora de ansiedade.

O hedonismo epicurista confundia-se com a paz da alma eos prazeres simples degustados em um instante saturado de ale-gria. Em vezdisso temos, todo dia um pouco mais, a atenção in-finita à saúde e os "prazeres em movimento" de prever e organi-zar. É assim que a civilização hedonista é acompanhada menospor frivolidade de viver que por reflexividade e sentimento decomplexidade da vida. Cultura preventiva, ansiedade sanitária eestética, tensão entre as exigênciasdo presente e as do futuro: es-tamos longe de nos deleitar com o momento que passa e com osprazeres tal como vêm, a ociosa despreocupação hedonista recuaà medida que cada um se torna um ator autônomo e informado.À sombra da frivolidade consumista, um novo peso se apoderoudas existências.

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ORGIA PESADA, SEXO AJUIZADO

Não há nenhuma dúvida de que, entre os fatores que servi-ram de base à promoção intelectual do paradigma dionisíaco, fi-

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gura em bom lugar a "revolução sexual" dos anos 1960-70.Des-de esse momento, diversos observadores põem em evidência oestado de "selvasexual"em que se encontram mergulhadas as so-ciedades democráticas entregues ao culto dos prazeres carnais eda liberdade no amor. Dissociação da sexualidade e da moral,"anarquia das regrasmorais': queda dos tabus, multiplicação dosparceiros, diversificação das práticas da carne: o liberalismo se-xual que acompanha o desenvolvimento da sociedade de consu-mo de massa pariu o "sexoselvagem".24

adultos representam quase 10% das vendas e 25% das locaçõesde cassetes e de ovos. Em 1983, o montante de negócios mundialdo pornô era estimado em 6 bilhões de dólares: em nossos dias,é avaliado em 40 bilhões de euros, sendo as receitas levantadas

pela indústria do "para adultos" superiores às geradas pelo cine-ma ou pelos jogos de vídeo.

O pornô não está mais relegado às sex-shops e às revistas es-pecializadas; inunda a tela dos computadores, impondo-se mes-mo àqueles que não desejam ter acesso a ele. Depois do sexo ocul-to, o megassexo invasor, hiper-realista, exacerbado, espalhando-seem um registro cada vez mais extremo: gang bang, fisting, sado-masoquismo com um dos parceiros amarrado, dupla e tripla pe-netração, mélangisme, orgias gays e lésbicas. A sociedade de hiper-consumo é a que conhece a inflação orgíaca, o hipersexo virtual,pesado e banalizado, consumível por todos e em qualquer idade,a toda hora, em casa e à distância.

Ao mesmo tempo, multiplicam-se as reportagens sobre oboom dos clubes de troca de parceiros, o nomadismo sexual, a re-lação a três. Evoca-se o fenômeno crescente dos "fanáticos" porsexo (troca de parceiros, cibersexo, sadomasoquistas, mélangis-tes), dos performers do obsceno, dos "libertinos" e das práticasmultiparceiros extremas: 7% dos americanos têm mais de cin-qüenta parceiros por ano e 5% dos franceses, mais de cem par-ceiros todo ano.25Em 2000, os gays tiveram em média dezoitoparceiros ao longo do ano anterior, mas esse número escondeuma grande diversidade de casos, alguns reconhecem várias cen-tenas de parceiros. Escalada pornô, errância frenética dos corpos,backrooms, atividades sexuais on-line, salas de bate-papo, trocade parceiros, sex group, algo como um terremoto dionisíaco esta-ria em via de abalar o domínio libidinal, não sem imensas diver-

gências de apreciação: as almas poéticas deploram a comerciali-zação de Eros e o esgotamento do discurso amoroso; os outros

Eras frenético

Nós continuamos nisso, com a diferença de que essa dinâ-mica, daí em diante, está engajada num avanço vertiginoso: tor-nou-se hipertrófica, tentacular, através da explosão da produçãoe do consumo pornográficos, nos quais os anos 1980dão o pon-tapé de saída. Em 2004,mais de 11mil filmes pornográficos fo-ram distribuídos no mundo contra cerca de 3500 longas-metra-gens clássicos; os canais de televisão hertzianos, a cabo ou porsatélite, oferecemum fluxo crescente de filmes para adultos; nosEstados Unidos, uma estação de rádio é consagrada ao sexo 24horas por dia.AWeb está repleta de sites pornográficos, de fotose vídeos de sexoamador, de orgias on-line e de sexodescomedi-do. Hoje existiria, segundo a agênciaWebsense,mais de 1,6mi-lhão de sites eróticos, o que representa mais de 10% do tráfegoda internet no mundo. Segundo o instituto Forrester, quase uminternauta em cinco visita um desses sites pelo menos uma vezpor mês. Um americano em dois, com acesso à internet, exami-na sites pornôs durante uma a dez horas por semana. Todo ano,os americanos alugam mais de 700milhões de ovos e videocas-setes pornôs, o que significa um mercado de 5 bilhões de dóla-res.Nos EstadosUnidos e na Europa, os filmes classificadospara

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se felicitampelo desenvolvimento de um erotismo irresistível,deum orgiasmo libidinal em plena efervescência.

Um hedonismo bem temperado

Seé inegável que a sociedade de hiperconsumo é acompa-nhada por uma pornografia excrescente, práticas frenéticas, er-râncias libidinais, todo o problema está em saber até onde e emque proporções. Estamos realmente em presença de um impres-sionante sismo, como parece indicar a escalada paroxística dopornográfico? Refreemosos arautos de Dionísio: não é nada dis-so. O que se observa? Avida sexual começa mais cedo, os tabussão frágeis,quasemais nada é proibido e, no entanto, no final dascontas os costumes sexuais hipermodernos são tudo, salvo de-senfreados.Aí está a verdadeira questão: o fenômeno mais signi-ficativo reside menos na exacerbação orgiástica que em sua fra-quíssima difusão social efetiva.Nem tudo funciona em uníssono:o real social não é feito à imagem da cena midiática hipersexualque se desencadeia sob os nossos olhos.

Os fatos são eloqüentes. A freqüência das relações sexuaispouco mudou desde o começo dos anos 1970,os casais que es-tão juntos há mais de cinco anos declaram uma dezena de rela-ções mensais. E o tempo que lhes é consagrado - em torno de25 minutos em média; entre cinco e dez minutos para 25% doscasais - não faz realmente explodir os cronômetros! A imensamaioria da população (80%) teve apenas um único parceiro aolongo dos últimos doze meses;apenas 14%dos homens e 6% dasmulheres afirmam ter tido, durante o ano anterior, pelo menosdois parceiros. Entre 25 e 34 anos, os homens declaram, em mé-dia, doze parceiros e asmulheres, cinco.Apenas 22% dos homense 3,5% das mulheres declaram ter tido mais de quinze parceirosao longo da vida.26As práticas de troca de parceiros são margi-

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nais: concernentes a menos de 1% da população, seus adeptossão estimados entre 300 mil e 400 mil pessoas.27Não apenas oamor com vários é pouco difundido, mas também as relações se-xuais com um parceiro desconhecido ou encontrado no própriodia continuam a ser práticas de extensão social muito limitada.28Fenômenos sobre os quais é difícil dizer que compõem realmen-te um quadro agitado por orgiasmo dionisíaco.

De um lado, o sexoseexprime cada vezmais de maneira pa-roxística;do outro, os comportamentos cotidianos são pouco ex-tremistas, pouco transgressivos, pouco desenfreados. Excrescên-cia icônica do sexo,moderação libidinal das massas:com exceçãode algumas minorias, as lógicasde excessopermanecem restritasapenas ao consumo de imagens e de discursos. Hipertrofiado noimaginário e no simbólico, o libidinal é autolimitado, "ajuizado"no real. Orgia de representações, ordem regulada dos costumes:é assim que, para além das escaladaspornôs, prossegue o proces-so de civilização de Eros. Nem orgíaco nem puritano, o modelodominante é o de um hedonismo temperado, pouco excessivo.

A repercussão que despertou no público A vida sexual deCatherineM. fornece uma perfeita ilustração do Eros paradoxalhipermoderno. Nada seria mais falso que interpretar o sucessodo livro como indício de uma necessidade orgiástica de massa,tendo a maioria das leitoras assimilado a autora a uma exceçãolibidinal, um "bicho estranho", com quem exatamente não com-partilham nem os gostos nem as práticas, consideradas antieró-ticas, tristes, insípidas em razão de um tecnicismo quantitativo,vazias de toda dimensão afetivae cúmplice.Não procuremos umefeito de espelho: ao contrário, a distância entre as práticas ex-tremas descritase asda maioria, bem como a novidade de um dis-curso ostensivamente objetivista,pronunciado desta vezpor umamulher, é que explicam em grande parte o êxito da obra. Esta ex-prime o gosto pelo Novo e a forte tolerância de que se beneficia

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a sexualidade feminina hipermoderna, não qualquer apetite porconfusão de corpos. O imaginário sem limite faz sucesso; as prá-ticas se mantêm maciçamente à margem dele.

Sexo, amor e narcisismo

Neste ponto da análise, a pergunta se impõe muito natural-mente: a que se deve semelhante "moderação" libidinal?Como épossível que, em uma sociedade hipersexualista, a errância doscorpos não sejamais difundida? Por que a vida sexual da maioriapermanece tão pouco desenfreada?Declínio da ideologiada libe-ração dos corpos?Medo da aids?Essasexplicaçõestêm, evidente-mente, sua parcelade verdade.Mas não são suficientes.Outros fa-tores muito mais importantes estão no princípio do fenômeno.Entre estes,dois me parecem dever ser sublinhados. Trata-se, emprimeiro lugar,do peso do ideal relacional-afetivo e, em seguida,da exigênciaprimordial de reconhecimento subjetivo.

Por muito tempo, o código de honra e amoral religiosacons-tituíram as principais forças de contenção das pulsões sexuais.Essa época passou. O que agora desempenha esse papel é umaordem cultural que valoriza os laços emocionais e sentimentais,a troca íntima entre Mim eVocê,a proximidade comunicacionalcom o outro. A relativa tranqüilidade dos costumes sexuais hi-permodernos não é um resíduo de puritanismo: ela se alimentado ideal secular do sentimento e da felicidade que se assimila à"felicidadea dois".Numa sociedade que não cessade prestar cul-to ao ideal amoroso e na qual a "verdadeira vida" está associadaao que se saboreia a dois, a relação estável e exclusiva constituiainda um fim ideal. É assim que o valor reconhecido no amor eno sentimento, a busca de uma intimidade relacional, a necessi-dade de sentido intenso na vida e na relação com o outro traba-lham, fora de todo princípio moral, para privilegiar o laço está-

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vel antes que a dispersão e a promiscuidade sexuais. Estrutural-mente, os códigos do sentimento e da comunicação intimista sãoo que contém os movimentos centrífugos do desejo. De um la-do, o amor aparece como um ideal desestabilizador-intensifica-dor do desejo; do outro, funciona como um agente de autolimi-tação e de regulação das pulsões.Verdadeiro "caos organizado r",o código amoroso exacerba e ao mesmo tempo confina as errân-cias de Eros.

A relaçãosentimental não évalorizada apenas porque a iden-tificamos a uma vida rica em emoções e sentido, mas tambémporque permite realizar uma das aspirações mais profundas dosseres: ser reconhecido como uma subjetividade insubstituível.Não percamos de vista que ser amado implica ser escolhido, su-perestimado, preferido a qualquer outro, com todas as satisfaçõesíntimas que isso comporta. Felicidade de ser distinguido, deseja-do, adorado por si mesmo:se a experiência amorosa continua aser beneficiada por tal aura é porque é inseparável dos encantosdo espelho narcísico, lisonjeia o Ego de cada um, valorizado ou àespera de ser valorizado como pessoa singular. Em vigor tantoentre os homens quanto entre as mulheres, essa expectativa ga-nha um destaque mais acentuado entre elas, que fazem muitaquestão de não parecer objetos sexuais intercambiáveis.No prin-cípio do desagrado geralmente expresso pelasmulheres em rela-ção àsmiscelâneas sexuais, encontra-se o desejo preeminente deser importante para alguém, o prazer de ser objeto de uma aten-ção toda particular, de existir para o outro como pessoa "privile-giada".É forçoso observar que, nas sociedades hiperindividualis-tas, os desejos de gozo dos sentidos, por mais onipresentes quesejam, não fizeram de modo algum passar ao segundo plano oideal de ser sujeito para o outro, de ser uma pessoa insubstituível,única. Bem ao contrário. A civilização hedonista provocou me-

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nos o culto de um erotismo extremo que uma escalada de deman-das de respeito, de reconhecimento individual, de atenção a si.

Se esta análise é justa, é provável que as circulações impes-soais do sexo não ultrapassem muito, no futuro, o estágio de fe-nômenos marginais ou periféricos. Em tempo de individualismonarcísico, afirma-se com novo vigor a exigência de qualidade nasrelações íntimas, o que requer proximidade comunicacional aomesmo tempo que reconhecimento e valorização subjetiva. Nãoum processo de dissolução do Eu nas confusões libidinais anôni-mas, mas, ao contrário, sua afirmação cada vez mais exigente emrelação ao outro. A despeito das incitações perpétuas a "curtir",Narciso venceu Dionísio.

NOITES DE EMBRIAGUEZ E DIAS DE FESTA

Embora antidionisíaca, a sociedade de hiperconsumo eviden-temente não conseguiu erradicar todas as formas de embriaguez,todas as buscas de êxtases, de transes e de sensações exacerbadas.Álcool, drogas, festas o mostram: deslegitimação não é anulação,os estados paroxísticos e outros excessos sensoriais são fenôme-nos que continuam a agitar a cotidianidade hipermoderna.

Drogas, desestruturação e criminalização

Fazer a festa, afastar-se de si e do comum do dia-a-dia: essa

paixão é ilustrada de muitas maneiras. Pela embriaguez procura-da no álcool, com certeza. Ainda que os jovens consumam me-nos álcool que antigamente, isso não impede as euforias de sába-do à noite, em particular entre os rapazes: aos dezoito, dezenoveanos, dois rapazes em três já experimentaram pelo menos um es-tado de inebriação proporcionado cada vez mais pelo consumo

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de drogas ilícitas, de origem vegetal ou química. Em dez anos, onúmero de adolescentes que provaram maconha dobrou: com aidade de dezoito anos, a metade das moças e dois terços dos ra-pazes a experimentaram. Quase 5% dos jovens já consumiramLSD,cocaína ou ecstasy; 10% fizeram uso de produtos de inalar.Paralelamente, desenvolve-se uma politoxicomania, os usuáriosassociam vários produtos, ao mesmo tempo ou em sucessão, afim de eliminar suas inibições e facilitar os laços relacionais. Deum lado, produtos naturais ou sintéticos em crescimento cons-tante e a preço cada vezmais baixo; do outro, o estilhaçamentodos enquadramentos morais, as ansiedades que se disseminam, ahedonização dos costumes: tudo isso provocou uma forte expan-são social dos paraísos artificiais. O momento do hiperconsumoé o da banalização do recurso aos entorpecentes.

Gozo da embriaguez, consumo de massa das drogas, transesnasfestastechno:por inegáveisquesejam,essesfatosnão justifi-cam erigir Dionísio em mito emblemático de nossa época. Lon-ge de prestar culto aos êxtases frenéticos, esta se assinala, ao con-trário, pela demonização, por uma cruzada planetária, uma guerratotal, ideológica e policial, contra os entorpecentes. Dionísio erao doador de alegrias e de riquezas a acenar com a idade de ouro:hoje, as drogas são associadasao inferno da dependência e àmor-te, à prisão e ao crime.

Estudos estabelecem uma clara correlação entre a escaladadas violências juvenis e o desenvolvimento do mercado da dro-ga. Nos Estados Unidos, a difusão do crack provocou, entre asgangues, o uso das armas para conquistar participações de mer-cado. Em 1991,56% dos detentos nas prisões federais america-nas e 25% dos detentos nas prisões estaduais eram condenadospor causa da droga.29Dionísio doava demais: de agora em diantea droga é um mercado a ser monopolizado pela violência, umafonte de rendimentos para a máfia e os traficantes, em um esta-

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do social marcado pela precariedade e a acentuação da pobrezaem certos segmentos da população. A explosão social das drogassignifica menos ressurgência da felicidade dionisíaca que recuodos fatores de coesão da sociedade, fratura social ao mesmo tem-po que poder das redes criminosas internacionais. Nas exuberân-cias extáticas, as coletividades tradicionais consolidavam-se; do-ravante, a droga favorece o aumento da criminalidade violenta,o endurecimento dos sistemas repressivos, o crescimento da po-pulação carcerária.

Engana-se quem fala de uma irresistível difusão social dosvalores extáticos. A verdade é que nos deparamos com uma sub-cultura destituída de legitimidade coletiva, cada vez mais postano pelourinho tanto pela sociedade civil quanto pelo poder pú-blico, uma microcultura fechada em si mesma, muito fortemen-te estanque. Relembremos que, na população adulta, apenas 3,6%fazem um uso repetido (pelo menos dez vezes ao ano) e 1,4%,um uso regular (dez vezes por mês ou mais) da maconha. A cul-tura dionisíaca funcionava como um sistema de referência váli-

do para todos; ela já não passa, quando muito, de um rito de pas-sagem para a idade adulta, um estilo de vida marginalizado cujaspráticas pouco ultrapassam certas frações da classe de idade dosadolescentes e dos jovens adultos.

Prazer de "sair de si': experiência do transe, emoções coleti-vas na efervescência das festas rave em que muitos dos partici-pantes estão sob a influência de drogas? É inegável. Com a con-dição de não perder de vista o clima de "multidão solitária"marcado pela ausência de comunicação verbal, as" bad trips", aexperiência da angústia diante do vazio e da fusão social impos-sívepo A utilização contemporânea das drogas não se reduz ape-nas às motivações hedonísticas, é também uma espécie de "auto-medicação" para escapar da dificuldade de ser um sujeito, deinserir-se e de comunicar-se. No princípio do crescimento rápi-

do das drogas acham-se a escalada das forças de desestruturaçãosocial e psíquica, a maior vulnerabilidade emocional, a expansãodos sofrimentos íntimos causados pela individualização extremados modos de vida. Aí se exprime menos a transbordante alegriadionisíaca do que o sentimento de isolamento, as relações pro-blemáticas consigo mesmo e com os outros. Incapaz de suportara si próprio, Narciso droga-se em busca de auto-esquecimento,de laços, de bem-estar grupal.

A ressurreição da festa

A reativação contemporânea da festa constitui o outro gran-de fenômeno que alimenta o recurso à mitologia dionisíaca. Nãofaz tanto tempo assim, os melhores observadores não davam mui-to pelas possibilidades de sobrevivência da festa nas sociedadesmodernas secularizadas. O único destino que parecia desenhar-se no horizonte era o definhamento dos grandes júbilos coleti-vos, sua inelutável agonia em favor das pequenas festas privadas.

A marcha do mundo não deu razão a esses prognósticos: afesta voltou a ser atual. Desde o fim dos anos 1960, a festa recu-

pera prestígio através de happenings e de imensos festivais de rocke pop: em 1969, Woodstock reúne em três dias 500 mil pessoas.Na França, Maio de 68 devolve dignidade à idéia de festa livre eespontânea. De tradicionalista que era, o referencial festivo se im-põe como um ideal contestador ou "transpolítico" animado pelarecusa da ordem estabeleci da e pelo desejo de "mudar de vida".Mais tarde, no rastro das reivindicações regionalistas e da reabi-litação das "raízes", as festas religiosas, tradicionais e locais, des-pertam um novo interesse. Anunciava-se a morte da festa: ela res-suscita.

O novo surto de popularidade da festa é acompanhado poruma avalanche de novas manifestações. A fase III é testemunha

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de uma onda de comemorações de todo tipo, de uma profusãode festas tradicionais de regiões e de aldeias, de uma explosão defestas"temáticas"com seu inevitávelquinhão de espetáculosmu-sicais, animações de rua, fogos de artifício, trajes de época, bar-racas de objetos antigos, comércios e artesanatos. Festa da Músi-cae do Cinema, festadosEsportesNáuticos,dasNeves,das Frutas,festa do Orgulho Vegetariano, das Luzes,das Flores, do Bosque,por toda parte florescem as neofestas em que se cruzam o cultu-ral e o lúdico, o histórico e o turístico, o tradicional e o comer-cial.Em algumas décadas,passou-se da memória ao hipermemo-rial, do regime do finito ao infinito: Philippe Muray acerta emcheio quando sublinha o advento de um "sistema hiperfestivo",de uma festivização galopante da sociedade. Até então, as festaseram organizadas em função de princípios tradicionais, religio-sos ou políticos; cada vezmais, a ordem mercantil e o marketingda imagem urbana ou regional é que lhe comandam a inflaçãoproliferante. Através da valorização do local e do antigo, não énada mais que a ordem hipermoderna que se organiza, a da mer-cantilização da cultura, da promoção midiática, do turismo demassa.

Aomesmo tempo, todo um conjunto de festas registra umaespetacular inflação do número de seus participantes. Na noiteda vitória da França na Copa do Mundo, 1,5milhão de franceseseufóricos invadiram os Champs-Élysées. Em 1997, 1milhão dejovens se reuniram no hipódromo de Longchamp para orar, can-tar, vibrar juntos por ocasião da vinda do papa. A LoveParadede Berlimconseguiumobilizar cerca de 1,5milhão de fãsde tech-no.A terceira edição da Noite em Branco atraiu, em 2004, 1mi-lhão de parisienses.Os festivais techno,free-partiese ravesatraemmilhares de jovens. Quanto mais se intensifica o processo de in-dividualização, mais se assiste, paradoxalmente, ao desenvolvi-mento de megafestasno espaço público, mas também nos priva-

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I,dos. Assim, desde os anos 1980, surgiram discotecas gigantes, po-dendo receber vários milhares de pessoas que se libertam nas pis-

tas de dança inundadas de volumes sonoros e envoltas em efeitosespeciais, criando impressões psicodélicas. A tecnologia contem-porânea vê o triunfo da miniaturização, a festa hipermoderna, odo gigantismo.

Nesse contexto, tanto a lógica temporal dominante da festa

quanto seu sentido social não permaneceram inalterados. Sabe-se que, em sua definição mais corrente, a festa tem por objeto cele-brar uma divindade, um ser, um acontecimento a que a coletivida-de atribui uma importância toda particular. Maneira de perpetuara lembrança e de conservar vivas as tradições, a festa tinha comocentro de gravidade temporal o passado, seja de tipo religioso, se-ja histórico. Em relação a esse modelo, muitas das festividadescontemporâneas têm como característica estar menos encarrega-das de manter a vitalidade dos elementos essenciais da cultura co-

letiva que animar o presente dos indivíduos. Já não se trata tantode revivificar a memória quanto de transformar o presente emtempo lúdico e recreativo. O que é o Natal senão uma montanhade presentes com vista à felicidade das crianças? O que é o 14 deJulho senão um dia feriado consagrado aos lazeres? O que contaé menos o fenômeno que se comemora do que o divertimentopara o qual ele é o pretexto, menos a recordação do passado quea hedonização do presente. Por toda parte, as festas são domina-das pela lógica dos lazeres, dos espetáculos e do consumo: a festatradicional ou memorial foi substituída pela festa consumista oufrívola centrada no presente.

Pierre Nora observou com razão que as comemorações atuais

passaram do reino da "memória restrita" ao da "memória genera-lizada".31Isso não impede que floresçam novas festividades tendoem comum o desenvolvimento fora de toda referência memorial(reunião techno, Orgulho Gay, festa do Mundial ou da Música).

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Assinalemos, de passagem, que são as festasmenos apegadas aopassado, menos ricas de sentido religioso ou histórico que me-lhor conseguem desencadear o júbilo das massas populares. Nasociedade de hiperconsumo, triunfa a festa sem passado nem fu-turo,32a hiperfestaauto-suficiente, presenteísta, no grau zero dosentido, apenas alimentada pelas paixões de distração e de con-sumo.

A que se deve essa revivescênciadas grandes festascoletivasnum tempo dominado por uma individualização galopante?Asrazões disso são pouco complexas.O fenômeno enraíza-se essen-cialmente no desenvolvimento da sociedade consumista, assimcomo na nova cultura psicológica promotora da expressão dosafetos e da expansividade emocional. Celebrando à saciedade osprazeres e os lazeres,a era da abundância conseguiu, ajudada nis-so pelos valores psicológicos, substituir as normas rigoristas econvencionalistas por um sistema de referências centrado no lú-dico, no imediatismo recreativo, na fantasia, na expressividadeemocional, no descontraído e na espontaneidade. O que os tem-pos modernos tentaram reprimir (danças livres, ritmos trepidan-tes, travestismos,arrebatamento emocional) pôde voltar à super-fície como concretizações do "direito" ao prazer, ao não-sério, àexplosão da alegria. Revitalização do Homo festivus: contra osprincípios de austeridade e de respeitabilidade afetada, "soltar-se",disfarçar-se, gozar a música, divertir-se como crianças, tudoisso ganhou uma nova legitimidade social.

Enão é só isso.Pois a festaoferecea oportunidade de desfru-tar um tipo de prazer que o consumo mercantil e individualistafavorecepouco, ou seja,a experiênciada felicidadecomum, a ale-gria de reunir-se, de compartilhar emoções, de vibrar em unís-sono com a coletividade.Aneofesta é o que proporciona uma ga-ma de alegrias não encontráveis nas prateleiras das lojas e dossupermercados: o prazer de sentir o júbilo coletivo,de viver um

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estado de efervescênciacompartilhada, de sentir-se próximo dosoutros. Mas foi o cosmo da felicidade privada que levou, para-doxalmente, à necessidade de provar as alegrias sentidas em co-mum e, isso,como uma nova maneira de diversificaras tecnolo-gias da felicidade. Não há nenhuma contradição entre o gostopelas megarreuniões festivas e a hipertrofia individualista con-temporânea; tampouco há superação do principium individua-tionis,mas apenas uma outra família de consumo individualista,consumo de multidão feliz e "unificada", de calor social, de am-biência de alegria coletiva.A festa tradicional tinha o encargo deregenerar a ordem cósmica ou de reforçar a coesão da coletivi-dade: de agora em diante ela está a serviço da procura da felici-dade dos indivíduos, felicidadede ambiência e de afetividadepar-tilhada, além, por certo, da esfera das satisfações individualistasmercantis, e no entanto estimulada por estas.

Mesmo as festasmarcadas pelas dimensões identitárias e co-munitárias (Jornadas Mundiais da Juventude, festas religiosaslo-cais,Orgulho Gay) ilustram a nova preponderância da dinâmicade individualização,visto que funcionam segundo uma lógicadeparticipação opcional, de busca de "desenvolvimento pessoal" ede reconhecimento particularista. Doravante, a participação nasreuniões festivasdepende de uma vontade, de uma escolha indi-vidual, de um ato de livre adesão. Com a sociedade hipermoder-na, impõe-se a festa desinstitucionalizada e emocional sustenta-da pelo princípio do indivíduo legislador de sua vida. É sobre umfundo de desregulamentação institucional e de crise das identi-dades herdadas que as neofestas se desenham como vetores deidentificação comunitária dos indivíduos.33Elastendem menos aregenerar a ordem socialdo que a permitir que os indivíduos rei-vindiquem suas raízes,vivam uma experiência de comunhão co-letiva, afirmem um engajamento pessoal.A festapôs-se a serviçodo indivíduo apaixonado por calor comunicativo, por ancora-

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gem e reasseguração comunitária. Na alegria dos sentimentospartilhados exprime-se a busca de um "nós" afetivo,de uma in-corporação comunitária, permitindo pôr em perspectiva a pró-pria vida ao confrontá-Ia com a experiência dos outros. Prazerde encontrar-se "entre si",atar laços cúmplices e conviviais comsemelhantes, declarar um orgulho identitário, a festa funcionacomo instrumento de autodefinição e de afirmação de si numtempo em que as identidades coletivas já não estão dadas e ad-mitidas de uma vez por todas. O indivíduo se busca muito maisdo que se perde: eis o princípio da festa reativado por uma exi-gência de "orgulho" neo-individualista, de enraizamento e de rei-dentificação de si.

A festa maneira

A música techno é agora um dos fenômenos que ocasionamas festas mais em ruptura com a ordem da vida cotidiana. Forados lugares convencionais e longe das práticas do lazer de massa,toda uma juventude tem prazer em viver junto uma música mar-cada pela repetição, em imergir na dança, em deixar-se penetrarpelas pulsações cuspidas pelas colunas de som, em evadir-se desi na embriaguez proporcionada pelas substâncias psicotrópicas.Orgia musical, viagens psicodélicas, dança hipnótica, as ravespo-dem aparecer como um novo território dionisíaco entregue aostranses, às transgressões, aos deslocamentos da identidade.

Mas o que vale para as reuniões techno vale para as outrasfestividades? Certamente não. O excesso é "a própria lei da festa",afirmava Caillois/4 sublinhando que, em suas formas tradicio-nais, ela não se concebia sem libações abundantes e festins pan-tagruélicos, lubricidade e impudor, rixas e gesticulações violen-tas. Ainda no século XIX,em que os festejos do carnaval eramflorescentes, essas práticas continuavam em uso. Não estamos

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mais ai. Findas as refeições em que tudo era devorado em gran-de quantidade: no tempo das neofestas, o que prevalece são ossanduíches e as bebidas refrescantes engolidos enquanto se ca-minha nas ruas, sendo o consumo de álcool próprio apenas dealguns grupos de jovens. O que resta, nas megalópoles hipermo-dernas, dos antigos paroxismos? Digamos: quase nada. Uma no-va espécie de festa surge: a festa ajuizada e moderada, esvaziadados transbordamentos da bacanal.

Onde se vê o que quer que seja que se assemelhe aos tradi-cionais abusos de palavrões e de insultos, às grosseriasblasfema-tórias, às palavras obscenas e devassas,às "pancadarias" e outrasmanifestações de maldade e de impudor que acompanhavam asfestividades carnavalescas?35O Carnaval era o tempo alegre do"mundo às avessas",que se traduzia por divertimentos em rup-tura com os usos e a moral estabelecida.Mais nada de semelhan-te está em prática. Não nos divertimos mais em proferir insultosgratuitos, em trocar palavras obscenas, em zombar dos indigen-tes, em atirar ovos uns nos outros ou em despejar sacos de fari-nha sobre os passantes. Quem ainda teria prazer em cortar a ca-beça de um galo ou em bombardeá-Io com pedradas?36Nossassociedades deixaram de passar de um extremo ao outro; em par-te alguma são abolidos os usos e as regras em vigor na vida co-mum. A festa hipermoderna não inverte mais nada, já não abolenem regra nem tabu, daí em diante são os próprios princípios davida cotidiana (segurança, saúde, higiene de vida, respeito pelaspessoas, convívio,cortesia, pudor) que estruturam os festejosco-letivos. Estamos além da transgressão, das inversões e outras di-lapidações: eis o tempo da festa lisa e correta, da festa light ali-nhada pelos valores de fundo da ordem cotidiana. Do princípiode excessodas antigas manifestações festivas, não fazemos maisque consumir um pálido simulacro: mesmo o extracotidiano setornou uma variação da hegemonia do cotidiano.

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Na festa dionisíaca, tratava-se de excitar todos os sentidos,de fazer naufragar a razão eliminando todas as proibições. E ho-je? O Romo festivusmetamorfoseou-se em simples passante, embasbaque sedento de ambiência fun, de animações e de espetá-culos. A festa hipermoderna reduz-se a uma imensa deambula-ção turística de figurantes-atores felizesde mergulhar no mar hu-mano, de ocupar a rua livredos automóveis,de escutar orquestras,de ver espetáculos folclóricos. Apenas os decibéis e a maré hu-mana, o que Canetti chamava de "a massa aberta': e a alegria es-pecífica que ela proporciona37trazem de volta algo das antigasformas de excesso.À embriaguez do desregramento dos sentidose do dispêndio transgressivo sucedeu a felicidade bonachona detlanar, olhar, sentir a multidão. Ahora é das festas maneiras ouconviviais:o desatino festivocedeu o passo à razão distrativa.

O Carnaval era o momento do riso de festa, do riso geral esem entraves38manifestando-se por palhaçadas e insultos gratui-tos, zombarias e brincadeiras, paródias e distorções da vida cos-tumeira. Esseriso popular e coletivoesgotou-se:findo, como ten-dência dominante, o riso agressivo, o riso descarado, o risoescatológico.O riso, irremediavelmente,"civiliza-se"no rastro daindividualização reflexivados costumes. Rir às gargalhadas,o ri-so estrondoso, não contido, aquele que se exprime com todo ocorpo se torna cada vezmais raro, visto que é sinônimo de vul-garidade. O mundo festivo,em grande parte, esvaziou-se de seuantigo caráter transbordante de júbilo. Já não se procura muitofazer rir e brincar, pregar uma peça, zombar dos outros, cometeros maiores atrevimentos. As pessoas caminham, escutam as or-questras, telefonam, falam em pequenos grupos, dançam à par-te, patinam: riem pouco, observam-semais do que falam ou brin-cam juntas. Ao riso inextinguível de Dionísio sucedem osconcertos de buzina, os prazeres de tlanar na multidão móvel.

A festa não aparece mais como o momento privilegiado do

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riso universal, do riso desenfreado: é no espaço privado, em ca-sa, diante da televisão que o indivíduo hipermoderno se mostrarisonho. O homem que ri não é mais o Romo festivus, é antes detudo o consumidor de filmes, de variedades, de espetáculos mi-diáticos. O que não impediu Paul Yonnet de falar de uma época"particularmente retumbante de risoS".39Mas de que riso se tra-ta? Certamente, não do riso comunicativo, do riso louco, do risode festa e de suas gesticulações intempestivas. Para justificar suatese, Paul Yonnet alega dados estatísticos, as pontuações de au-diência obtidas pelos programas de televisão. Mas avaliar o risocontemporâneo por meio de alguns elementos quantificados numintervalo muito curto é pouco convincente. Outros dados, ou-tros períodos de observação chegam a conclusões bastante dife-rentes. De resto, o próprio Paul Yonnet assinala que essa opçãodo riso não é encontrada nem na Alemanha, nem na Grã-Breta-nha, nem na Itália, nem na Espanha.40Eisum planeta do riso sin-gularmente reduzido! E, já que o sociólogo convoca a mediçãoestatística, assinalemos de passagem esta aqui, a que, de resto,atribuiremos apenas um valor aproximativo e sugestivo: ao quese diz, os franceses não riem, em média, mais que cinco minutospor dia,41ou seja,quatro vezesmenos que há cinqüenta anos.

Falou-se de "planeta do riso"? Seeste é o caso,quem não vêque ele já não se parece muito com o riso desenfreado de Dio-nísio?

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9. Super-Homem: obsessão pelodesempenho, prazeresdos sentidos

Se determinada escola sociológica fala de uma onda dioni-síaca, outra diagnostica, no exato oposto, a irrupção de uma cul-tura escorada nos ideais de competição e de superação de si. Fin-da a mitologia dos gozos transgressivos e sensualistas, nossassociedades não reconheceriam mais que o imperativo de otimi-zação de si em todas as idades, em toda situação e por todos osmeios. Enquanto os atletas, os empresários e outros supervence-dores posam de novos heróis, todos são intimados a ser supera-tivos e operacionais em todas as coisas, a maximizar seus poten-ciais de forma e de saúde, de sexualidade e de beleza. Terminauma época: na que se anuncia, a sociedade é continuamente cha-mada a aceitar os desafios da concorrência globalizada, o consu-mo, a desenvolver nossas aptidões, e os indivíduos, a aperfeiçoarseu saber-fazer e saber-ser. Construir-se, destacar-se, aumentarsuas capacidades, a "sociedade de desempenho" tende a tornar-se a imagem prevalente da hipermodernidade.

O ideal de superar-se e de vencer não se limita mais a algu-mas esferas da vida social; agora invade a sociedade em seu con-

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junto, absorvendo o consumo e os modos de existência, a inti-midade e os estados de espírito. Todos dopados, todos sob a in-junção de serem competitivos, de assumir riscos, de estar no to-po: a cultura de desempenho explode em todas as direções. Dosestádios à empresa, dos lazeres à escola,da beleza à alimentação,do sexo à saúde, todos os domínios são apanhados por uma ló-gica de concorrência e de aperfeiçoamento pelo aperfeiçoamen-to, todo o espaço social e mesmo mental se acha remodelado pe-lo princípio de exploração a todo custo dos potenciais. Nessascondições,é uma nova figura metafórica que se impõe como por-ta-bandeira do espírito do tempo: não é nada mais que o Super-Homem, o super-herói dos desempenhos excepcionais, sempreem plena forma, sempre disposto a aceitar novos desafios.Outrotempo, outra mitologia: o Super-Homem destronou Dionísio.

Há mais de uma dezena de anos, o esquema do desempenhoé cada vezmais mobilizado como modelo de inteligibilidade davida econômica, da sociedade e do agir humano. Intercambiar,trabalhar, alimentar-se, cuidar-se, distrair-se, consumir, embele-zar-se, fazer esporte, fazer amor, por toda parte as práticas con-temporâneas são interpretadas como umas tantas manifestaçõesda norma performativa, que aparece, ao mesmo tempo, como aprincipal causa de nosso mal-estar social e existencial.Moderni-zação e individualização extrema, tirania da beleza,dopagem ge-neralizada, ditadura do orgasmo: à barbárie sangrenta poderiasuceder a "barbárie mansa" da superação de si e da corrida de-senfreada aos resultados. O conceito de desempenho é agora con-vocado de maneira tão sistemática, tão banalizada, que temos odireito de pensar que tomou o lugar ocupado antigamente pelastemáticas da alienação e da exploração. Ele não apenas forneceuma explicação clara, unificada, totalizante do "mal-estar da ci-vilização",mas também permite uma crítica geral tanto das pe-quenas quanto das grandes atividades da vida, no momento em

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que a interpretação marxista não está mais na moda. O que é quenos oprime? De que sofremos? Cada época propõe uma chave dedecifração dos infortúnios da existência: a dominação de classejá não faz sucesso, nós a substituímos pelo assédio desumaniza-do das normas técnicas, pela corrida generalizada à excelência.

Essa problemática levanta, a meu ver, toda uma série de ques-tões. Ao ler certas análises, por vezes se tem a impressão de quetoda a textura da sociedade e da vida se encontra devorada peloideal competitivo. Será que se trata de fato disso? Até onde ele in-

vadiu as motivações e as preocupações cotidianas? A exigênciaprofunda do indivíduo hipermoderno é realmente de ser melhore superior a ele próprio? A idéia de sociedade dopante permitedar conta das tensões paradoxais que atravessam a fase m? Nãocreio nisso. Muitos fatos inegavelmente ilustram o novo statusdo desempenho, mas esse conceito é por vezes empregado de ma-neira tão extensiva, tão "elástica", que faz dele uma idéia-ônibus,ao mesmo tempo que uma fórmula mágica explicativa da socie-dade contemporânea. Foi contra essa tendência que institui pou-co a pouco um novo prêt-à-penser que este capítulo foi escrito.O que levou a retomar mais uma vez a leitura das aventuras e des-venturas do Super-Homem.

cípios-chave:polivalência,equipes autônomas, tempo certo, qua-lidade, satisfação do cliente, uns tantos modelos que assinalamuma mudança de universo, condutora de novos referenciais dedesempenho.

Gestão pela excelência,organização em rede, sistema Toyo-ta,* empresa inteligente: não faltam as expressões que designama ruptura com o modelo fordista da antiga modernidade. Qual-quer que seja a fórmula utilizada, o importante é que a competi-tividade não se baseia mais exclusivamente no aumento da pro-dução e da redução dos custos. Cada vez mais, os mercados sãoganhos privilegiando-se a qualidade, a mass customization,o ní-vel de serviço, a reatividade máxima às evoluções da demanda, adiminuição dos prazos, o melhoramento contínuo. Para chegara isso,os discursos de gestão privilegiam esquemas centrados nospotenciais do indivíduo. A concepção mecanicista ou impessoaldo produtivismo à moda antiga é substituída pelos hinos à auto-nomia e à iniciativa, à flexibilidade e à criatividade. Cada um éinstado a avaliare aperfeiçoar suas competências, mas também aimplicar-se pessoalmente, empenhar-se em um progresso contí-nuo, ser participativo, envolver-se. A injunção de enriquecer asaptidões dirige-se a todos os níveis da empresa: os próprios ges-tores estão em causa, devendo o instrutor possibilitar o melho-ramento da capacidade de escuta e de reflexão, a resolução dosproblemas, a capacidade de julgar e de decidir. A época que sa-cralizava a organização "científica" do trabalho ou os recordesdos trabalhadores comunistas ficou para trás. Não apenas o sa-ber-fazer, mas também o "saber-ser", os sentimentos, todos oscomponentes da personalidade individual é que devem ser oti-mizados. Com a gestão hipermoderna, a eficiência saiu de seu

VIDA PROFISSIONAL, VIDA PRIVADA

A empresa é o lugar em que se experimenta com mais efei-tos humanos e sociais a cultura competitiva no tempo da globa-lização dos mercados e da financeirização da economia. Enquantoas transformações macroeconômicas da globalização ocasionamuma intensificação dos imperativos de competitividade e de ren-tabilidade a curto prazo das empresas, estas adotaram novos es-quemas de organização do trabalho. Conhecemos-Ihes os prin-

* O sistema Toyota, criado logo após a Segunda Guerra Mundial, visa à elimina-ção dos desperdícios com o fim de aumentar a eficiência da produção. (N. T.)

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momento tayloriano, tecnocrático, objetivista, os potenciais daindividualidade tornam-se fatores de desempenho. Não é tantouma sociedade de desempenho que toma corpo quanto uma no-va era de eficácia, acompanhada por critérios cada vez mais frag-mentados e qualitativos.'

E não é só isso. Aos olhos de certo número de observadores,é não apenas o espaço objetivo da empresa, mas também o pró-prio espaço mental que agora se constrói sob os auspícios da com-petição e do desafio lançado a si mesmo. Enquanto a figura doempresário ganha uma nova legitimidade social, os ideais de com-petição, de iniciativa e de auto-superação se imporiam a tal pon-to como normas gerais de comportamento que conseguiram pe-netrar e remodelar os costumes e os sonhos. As antigas utopiasestão mortas, o que "inflama" a época é um estilo de existênciadominado pela "vitória", o sucesso, a competição, o eu de altorendimento. Ser o melhor, destacar-se, superar-se: eis a socieda-de democrática "convertida" ao culto do desempenho, "vetor deum desenvolvimento pessoal de massa".2

É preciso relembrar essa evidência? As mitologias sociais sãouma coisa, as aspirações e as condutas individuais, outra. Ora, detanto apontar os holofotes para a retórica do desempenho, che-ga-se a omitir os comportamentos e as expectativas reais em re-lação ao trabalho. Aí residem o risco e o limite de uma abordagemdesse gênero. Assim como o aumento das pressões à competiti-vidade é inegável, também é certo que a idéia de uma época con-vertida à religião dos desafios e da competição é muito poucoconvincente. O "culto de vencer" é realmente abraçado pelo in-divíduo hipermoderno? Os riscos, os desafios, a superação de siimpõem-se como "disciplinas de salvação pessoal"? Ao menos noque se refere à relação com o trabalho, temos todas as razões pa-ra duvidar disso.

Trabalho e tempo livre

A partir dos anos 1980,a imprensa fez amplamente eco dosyuppies e outros apaixonados pela vitória: está instalado o ima-ginário social dos lutadores. Mas em que medida essemodelo épartilhado, interiorizado pelas massas?Obsessão pelo desempe-nho? Febre do agir pelo agir?Não é exatamente essa imagem querefletem a paixão pelas férias, a espera pelos fins de semana e fe-riados prolongados, o desejo de encontrar um melhor equilíbrioentre trabalho e vida privada, o gosto pela ociosidade, o apego àaposentadoria. Um dos epitáfios muito apreciados no século XIXera: "O trabalho foi sua vida".Hoje, o sentimento que domina éantes: "Há mais que o trabalho na vida".Segundo JoffreDuma-zedier, o trabalho deixou de ser a atividade mais importante pa-ra dois terços dos indivíduos.} Na sociedade de hiperconsumo,estes situam seus interesses e seus prazeres antes de tudo na vidafamiliar e sentimental, no repouso, nas férias e nas viagens, nasocupações de lazer e outras atividades associativas.4Na verdade,é o tempo fora do trabalho que se impõe como o tempo maisatrativo, o mais carregado de valores essenciais.A liturgia dos de-safios pode inflamar os fanáticos pelo trabalho, mas tudo indicaque não é assim para a maioria que encontra o caminho da rea-lização pessoal mais nos prazeres do tempo livre e da vida rela-cional que no ativismo profissional.

Essasobservações não devem em nenhum caso servir paradar crédito às teses que analisam o trabalho como um valor emvia de desaparecimento. Nas sociedadesmeritocráticas e mercan-tis, os indivíduos continuam a definir-se maciçamente por suafunção profissional, que constitui um pólo de referência impor-tante, um vetor central de estruturação da vida pessoal e social.Mesmo que as felicidades privadas polarizem cada vez mais asaspirações dos indivíduos, o trabalho continua a ser um incon-

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tornável mediador da auto-estima, o produtor do essencial daidentidade social. Fim da "religião do trabalho" significa tudo,menos desaparecimento da importância que lhe é conferida. Adesorientação ou a humilhação sentida pelos desempregados delonga data o atesta: a identidade e o status socialcontinuam a serdominados pelo trabalho assalariado. Simplesmente, este já nãoé o centro de gravidade da vida; ao seu lado, afirmam-se agoraos ideais da vida privada, as exigênciasdo lazer e do desenvolvi-mento íntimo.

Se em nossas sociedades o papel do trabalho é insubstituí-vel, isso se deve também, paradoxalmente, à própria sociedadede hiperconsumo como sistema estruturado pela mercantiliza-ção quase total dos modos de vida e das experiências individuais.Como, nessas condições, ter acesso ao bem-estar e aos prazeresdo lazer sem o trabalho remunerador? Porque um número cres-cente de atividades humanas se acha na dependência da relaçãomercantil e porque o hedonismo consumista se impõe como sis-tema de valor onipresente, tudo leva a pensar que a corrida aoaumento dos rendimentos prosseguirá irresistivelmente.

É verdade que o movimento dito de "simplicidade voluntá-ria",que preconiza a autolimitação dos desejos e das compras, o"descongestionamento", a redução aos "valores essenciais",en-contra hoje certo eco na América do Norte. Duvido muito, po-rém, que sua audiência possa ultrapassar o círculo reduzido dealguns adeptos, dado que a oferta mercantil não cessa de criarnovos desejos de aquisição e dado que o gozo das "coisas"é con-substancial à idéia moderna de bem-estar e de vida boa. Se,em2005, uma maioria de assalariados franceses desejava conservarseu tempo de trabalho atual, não é menos verdade que a temáti-ca «trabalhar mais para ganhar mais" reapareceu não apenas nodebate público, mas também nas aspirações de certas categoriasprofissionais. Quando os assalariados se declaram favoráveis à

idéia de poder trabalhar mais, eles não traduzem a progressão danorma de desempenho, mas a formidável expansão do consumo-mundo e as necessidades de dinheiro que ela provoca. Na socie-dade de hiperconsumo, o imperativo primeiro não é superar-se,é poder beneficiar-se de rendimentos confortáveis para partici-par em pé de igualdade do universo das satisfações mercantiliza-das. Se intelectuais e alguns grupos utopistas exaltam um modode existência menos sujeito ao dinheiro e às mercadorias, há pou-ca probabilidade de que essa sabedoria frugal possa triunfar dian-te do poder sedutor das felicidades «fáceis" marteladas pelo cos-mo consumista.

Feliz no trabalho?

A despeito da repercussão que encontra a temática do sofri-mento no trabalho, a esmagadora maioria dos franceses e dos eu-ropeus exprime um alto nível de satisfação com o trabalho. Pes-quisa após pesquisa, volta a mesma resposta, que não deixa desurpreender: nove franceses em dez se declaram felizes ou muitofelizes em seu trabalho. A que se deve semelhante aprovação, dig-na dos momentos heróicos da época soviética? Felicidade, real-mente? Não é razoável. Quando se pede aos assalariados que qua-

lifiquem seu trabalho, menos de um em três cita "o prazer". Mesmoa elite das grandes escolas se mostra pouco devorada pela paixãopelo trabalho, a maioria de seus membros considera «que maisvale não fazer nada que trabalhar, desde que se disponha do ca-pital necessário".5 Apenas um terço dos assalariados reconheceno trabalho um meio de desabrochar, de desenvolver sua perso-nalidade. Na realidade, é menos a própria atividade do trabalhoque proporciona satisfação do que os fatores ditos "extrínsecos":segurança, relações sociais, salários, vantagens sociais, melhoriado nível de vida.6 Sem dúvida, as pontuações maciças da satisfa-

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ção no trabalho não são a fotografia fiel do estado de felicidadedos assalariados; traduzem sobretudo a dificuldade em reconhe-cer as dificuldades profissionais ou um sentimento de fracassonuma sociedade em que o indivíduo é pensado como o único res-ponsável por sua situação.

Mesmo que certos executivos vivam a competição, o risco ouo tempo marcado pela urgência como meios de realização pes-soal, diagnosticar um movimento de conversão em massa dos as-salariados ao ethos do desempenho é seguir uma pista errada. Narealidade, os trabalhadores hipermodernos vêem nas novas téc-

nicas de gestão do pessoal não tanto promessas de felicidade quan-to normas causadoras de insegurança profissional, de dificulda-des e de pressões aumentadas. Muito mais tolerados que desejados,os preceitos da nova gestão são assimilados aos riscos de demis-

são e ao recuo das proteções coletivas, ao aumento dos esforçospenosos7 e à degradação das relações de trabalho.8 Ameaças de de-missão, burn out, elevação do estresse, intensificação das cargas eritmos de trabalho, medo permanente de não estar à altura dasnovas tarefas: antes que objeto de fervor, a nova era de eficácia éassociada à inquietação com o futuro, às coerções e ao aumentodas pressões que pesam sobre os assalariados. Se os hinos à com-petitividade e ao envolvimento subjetivo fazem sucesso, eles sãotudo, menos apreendidos como disciplinas de salvação pessoal,visto que acompanhados de insegurança profissional e identitá-ria, de debilidade da auto-estima, de "sofrimento no trabalho".9Quanto mais as empresas alegam um modelo de desempenho in-dividual, menos este desperta adesão e entusiasmo. Não culto, masmedo do desempenho. A ansiedade, o estresse, a crise subjetiva,assim como a desconfiança em relação à empresa, é que progri-dem mais do que a gana de vencer do Super-Homem.

Essa relação negativa com a norma de desempenho deveráprolongar-se, uma vez que a sociedade de hiperconsumo não ces-

sa de propagar em grande escala os ideais de qualidade de vida ede maior bem-estar. Seuma minoria, ocupante dos empregos su-periores e gratificantes, pode reconhecer-se no modelo do ven-cedor, esse não é o caso da maioria mais relacionada aos praze-res da vida privada e consumista. A despeito dos que pensam queo modelo do lutador se generalizou, não será amanhã que vere-mos o "trabalhador fanático por gosto" e "hipertenso por esco-lha" tornar-se um ideal social predominante. A sociedade hiper-moderna são se define pelo triunfo unilateral do desempenho,mas pela dualização das normas e dos pólos de referência que or-ganizam a vida social. Disjunção entre desempenho e qualidadede vida, discordância entre superação de si e hedonismo: é dopróprio fundo da fase III que se erguem as barreiras que contra-riam o heroísmo do Super-Homem.

Engana-se quem afirma que a obsessão pelos objetivos e aexcelência se apodera de todas as preocupações, incluídas as re-ferentes ao equilíbrio e ao bem-estar pessoal. Na sociedade atra-vessada pela dinâmica de individualização, outras preocupaçõesaparecem, entre as quais as exigências de respeito e de reconhe-cimento de si não são as menos significativas. No presente, sãocada vezmais numerosos os assalariados que se queixam de serignorados, mal avaliados pela hierarquia, muito pouco respeita-dos pelosusuários ou pelos clientes.Essemal-estar não émínimo:a falta de reconhecimento fica em segundo lugar, atrás da sobre-carga, como fator de risco prejudicial à saúde mental no traba-lho. Evidentemente, o infortúnio em meio profissional deve serrelacionado às coerções e pressões aumentadas, mas a intensifi-cação do trabalho não explica tudo. Os ideais de maior bem-es-tar e de auto-realização, difundidos à saciedade pela fase 11I, es-tão igualmente na origem das novas angústias na empresa. Asociedade de hiperconsumo ampliou de modo considerávela exi-gência de bem-estar, a qual, não se limitando mais ao conforto

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doméstico, engloba agora a relação consigo e com o outro, a va-lorização e o reconhecimento de si no trabalho.

Dilatação dos territórios do bem-estar que implica lesões àfelicidade: à medida que se estende o imaginário do conforto,cresce irresistivelmente o sentimento deprimente de ser maltra-tado ou mal considerado pelos outros. O sentimento da falta dereconhecimento de si aparece em ampla medida como o reversoda medalha da sociedade organizada em torno da busca extremade maior bem-estar. Daí, toda uma série de paradoxos. Quantomais se propaga a cultura de eficácia,mais se assiste à psicologi-zação das expectativas de bem-estar no trabalho; quanto mais oindivíduo se impõe como foco de referência,mais se aguça a ne-cessidadede ser valorizado pelo outro emais se difundem os so-frimentos ligados à falta de reconhecimento; quanto mais a em-presa em rede favorece os laços funcionais, mais aumenta aimportância da valorização simbólica de si.

Daí, igualmente, a nova importância conferida ao bom cli-ma na empresa, ao estilo das relações de trabalho. As pesquisasrevelam que um assalariado em dois, na França, considera pre-ponderante a ambiênciano trabalho. Daí em diante, a atmosferana empresa está no primeiro lugar das preocupações dos assala-riados, na frente de "um salário ligeiramente superior ou das pos-sibilidades de evolução na carreira". 10 A busca do maior bem-es-tar não está mais circunscrita à vida privada; estendeu-se, nãosem cruéis decepções, à própria vida profissional. O indivíduohipermoderno abraça apenas de longe a religião dos recordes,seu principal desejo é "sentir-se bem" em seu meio profissional,trabalhar num ambiente simpático, respeitoso das pessoas e dosméritos de cada um. Enquanto se intensifica a obrigação de "fa-zer mais com menos': é a qualidade de vida no trabalho que re-cebe aprovação, ilustrando o processo de psicologizaçãodo idealdo bem-estar.

Hoje, em matéria de relação dos homens com o trabalho,mais nada é homogêneo e regular, a implicação de si na ativida-de profissional traz a marca da imensa onda de individualização.Se alguns assimilam o trabalho a um ganha-pão obrigatório efastidioso, uma atividade em relação à qual mostram pouco ape-go, outros, ao contrário, aí encontram um estimulante, um sen-tido, um interesseconsiderável.Essafragmentação socialda iden-tificação com o trabalho não resulta apenas do desenvolvimentodo setor terciário da economia, mas enraíza-se também na socie-dade de hiperconsumo, que, celebrando os gozos da vida priva-da, favorecetrajetórias mais personalizadas, prioridades diversasentre os pólos privado e profissional da existência. Daí resulta adiversificaçãodos modos e dos graus de investimento de si na vi-da profissional. Distanciamento aqui, apego passional ali: a faseIIIé acompanhada de pluralização e de subjetivizaçãodas manei-ras de relacionar-secomo trabalho.11Domesmomodo que seaprofundam as desigualdades econômicas, acentuam-se as desi-gualdades subjetivas em matéria de envolvimento profissional.Na sociedade de hiperconsumo destradicionalizada, o que domi-na não é nem a obsessão do agir pelo agir, nem o puro desinves-timento profissional, mas a crescente heterogeneização das for-mas de engajamento em relação ao trabalho e a instabilidade dosinvestimentos pessoais.

Aparentemente, tudo separa os maratonistas do trabalho eos que privilegiam a qualidade de vida relacional na empresa ouos prazeres da vida privada. A clivagemé inegável:mas não é porisso absoluta. Pois os vencedores e outros combativos hoje já nãosemobilizam em nome de um fim externo a si próprios; sua mo-tivação essencial é experimentar sensações fortes, viver sob ten-são permanente, dominar o tempo.12A despeito de tudo que osopõe, o indivíduo atarefado e o indivíduo distanciado traduzem,cada um à sua maneira, o triunfo do indivíduo psicologizado,cen-

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trado na busca de gozos e de emocionalidades subjetivas. Uns, notrabalho, outros, fora da empresa. Mas, subterraneamente, o idealhedonista da civilização consumista faz sua obra em toda parte,inclusive naqueles que estão de todo absorvidos pelo agir compe-titivo e pela rentabilização a todo custo do tempo. Sob o estan-darte da corrida à velocidade, o que se delineia não é tanto um

neo-ascetismo produtivista quanto um narcisismo emocional quebusca, pelos mais diversos caminhos, "dopar-se': intensificar a re-lação com o tempo, experimentar as sensações do instante.

mais jovens e em todos os níveis de práticas. Nos Estados Uni-dos, onde o consumo de esteróides anabolizantes começa a par-tir dos oito anos, 11% dos garotos de onze a doze anos os utili-zam. Segundo um estudo internacional publicado em 1997, de5% a 15%dos amadores adultos se dopam; entre 650mil e 3 mi-lhões de esportistas amadores franceses recorreram a substânciasdopantes.\3Na União Européia, 6% dos freqüentadores dos cen-tros de fitness fazem uso regular de produtos dopantes.14Dadosque dão crédito à idéia de uma "sociedade dopante" perseguidapelos fantasmas de otimização dos desempenhos.

Eis, então, o Super-Homem transformado em verdadeira"farmácia ambulante", medicalizado ao extremo, mas tambémtão submetido aos excessos do supertreino que apresenta cadavezmais desordens biológicas, patologias, fraturas e outros trau-matismos. A realizaçãode desempenhos excepcionaisno esportenão expõe apenas aos riscos físicos- causa também uma fragi-lização mental que se concretiza na depressão, no esgotamentocerebral, nos distúrbios alimentares, nos vícios e toxicomanias.Glorioso no recinto dos estádios, reivindicando o equilíbrio e asaúde perfeita, o Super-Homem, como Narciso, não é por issomenos vulnerável, desequilibrado, candidato à dependência.15Porque a busca da excelênciacorporal implica riscos de excessose de desequilíbrios - mesmo o Super-Homem pode ser postoem xeque físico e psicológico.

CORPOS COMPETITIVOS E CORPOS PREGUIÇOSOS

o esporte constitui outra esfera particularmente significati-va do universo concorrente hipermoderno. No presente, os atle-tas, as competições esportivas, os recordes quantificados são oni-presentes nas mídias; cada vez mais, os esportes de risco, osesportes de aventura, as façanhas solitárias, o "extremo" estão naprimeira página da informação: atravésdo esporte, a fase IIIapa-rece como uma sociedade fascinada pelos desafios, a paixão devencer,a otimização das capacidadesdo corpo. Ganhar, destacar-se, buscar o êxito por todos os meios: com o esporte contempo-râneo, as práticas que exprimem a superação de si tornaram-seum fato primordial da sociedade.

Jamais a competição esportiva provocou tantas paixões co-letivas.Tampouco jamais deu lugar a tantas práticas abusivas,co-mo o ilustra exemplarmente o fenômeno do doping. Não há pra-ticamente um dia em que a imprensa não mencione práticas dedoping no mundo do atletismo, do futebol ou do ciclismo.Eago-ra se admite que um atleta a cada dois estava dopado nas Olim-píadas de Atlanta, em 1996.Amplitude sem precedentes do fenô-meno, que se deve igualmente ao fato de sua expansão entre os

A euforia esportiva,1[1

Nesse contexto de amor ao esporte, os encontros de alto ní-vel despertam um entusiasmo, um fervor coletivo sem equiva-lente em nenhuma outra esfera da vida social. Podendo lançar àrua centenas de milhares de pessoas, as grandes competições pro-vocam inacreditáveis explosões de alegria coletiva: "É o dia mais

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bonito da minha vida': declarava um sujeito depois da vitória daFrança na Copa do Mundo de futebol. É forçoso constatá-lo: aespiral do bem-estar consumista não erradicou em nada a admi-

ração que os homens dedicam ao "cada vez melhor" e à supera-ção de si. Bem ao contrário.

O que é que, no espetáculo esportivo, arrebata a esse pontoas massas hipermodernas? A que se deve semelhante paroxismoemocional? Segundo Paul Yonnet, o motor do esporte-espetácu-lo alimenta-se da dupla "carburação" da incerteza e da identifi-cação. O que torna o esporte-espetáculo altamente mobilizadorde afeto é, de um lado, sua capacidade de criar suspense entrequase iguais que se enfrentam; do outro, seu poder de criar oude intensificar sentimentos de inclusão grupal.16Essa análise cer-tamente esclarece o fenômeno, mas não esgota seu mistério. Ou-tras dimensões estão em jogo.

Se o público se empolga da maneira que se conhece, é tam-bém porque se encontra em presença de manifestações excepcio-nais de "vontade vitoriosa" concretizadas através de capacidadese de atividades corporais otimizadas. É difícil não pensar, aqui, noque Nietzsche chamava de "vontade de poder" como vontade de"dominar, de crescerem quantidade, em força':17Asmultidões nãovibram apenas porque recursos identifica dores são mobilizados,mas também porque se dá a ver o "rendimento máximo do corpohumano", desempenhos físicos fora do comum, um querer ven-cer levado ao ápice. Se há identificação (lógica de similitude), hátambém dessemelhança produzida pelos atletas, cujas aptidõesfora das normas os alçam a um nível diferente do nosso (lógicade alteridade). Impossível compreender a efervescência emocio-nal que cerca os grandes encontros esportivos sem levar em contaa relação com o que não se parece conosco, com a dessemelhançaentre os campeões do estádio e o comum dos mortais.

"O objetivo não é a felicidade, é a sensação de poder", dizia

Nietzsche.'8 O certo é que, para a maioria, há uma verdadeira feli-cidade em admirar o poder mais elevado, em ser testemunha do"grande estilo", isto é, a capacidade de "nos tornarmos senhoresdo caos que nós mesmos somos, de forçar o próprio caos a tor-nar-se forma".'9Aqui não se trata, propriamente falando, do puroprazer estético proporcionado pela elegância ou pela harmoniados corpos, mas, antes, de uma espécie de "estado de embriaguezestética" criada pelo espetáculo da superação de si, do apogeu damobilização das forças e do controle perfeito: toda perfeição "des-perta por contigüidade o contentamento afrodisíaco':2o

Sociedade dopante, esporte-lazer e corpos preguiçosos

Longe de limitar-se ao esporte de alto nível,o espírito de de-sempenho imiscui-se agora em certas atividades de lazer.Numaépoca em que as salas de manutenção da forma, a musculaçãoem domicílio, os suplementos nutricionais fazem um vasto su-cesso,o fisioculturismo e aspráticas que lhe são aparentadas (cor-rida, aeróbica, regimes, cirurgia estética) puderam ser analisadoscomo manifestações de um novo narcisismo obcecado por recor-des, músculos, rivalidades anatômicas.21A partir daí, o hiperin-dividualismo já não se definiria tanto pelo hedonismo quantopelos desejos de competitividade corporal, por um ativismo sta-khanovista* inscrito diretamente nos valores puritanos. "Sofrerdistraindo-se": com o leite desse ascetismo reciclado é que se ali-mentariam os Super-Homens e as Supermulheres dos tempos hi-permodernos.

Essasanálises comportam uma ampla parcela de verdade. É

*O termo deriva do nome do mineiro AlekseiStakhanov, tomado pelo regimestalinista como modelo do trabalhador soviéticoextremamente devotado epro-dutivo. (N.T.)

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inegável que o ideal do corpo magro, jovem, musculoso impeleos indivíduos a "trabalhar" e gerir seus corpos, a exercersobre elescoerções severas,nos antípodas da indisciplina sensualista.Anor-ma tirânica da magreza levaasmulheres, em particular, a contro-lar permanentemente o peso e a alimentação, a querer remodelara silhueta a ponto de fazê-Iasparecer "escravasda aparência".Di-to isso,assinalar essaspráticas neoprodutivistas não basta: aindaé preciso avaliar-lhesa superfíciesocial.Até que ponto o impera-tivo de desempenho se difundiu nos comportamentos da maio-ria?Asmotivações que estão na base das novas práticas de ativi-dades físicas e esportivas são realmente dominadas pela paixãoda vitória e das pontuações? Tudo indica que não é assim.

Seuma certa proporção de praticantes se mostra sedenta demusculação, de classificaçãoou de extremo, isso não deve ocul-tar o movimento de fundo da evolução do esporte contemporâ-neo, o qual émarcado, bem ao contrário, pelo recuo dos valorescompetitivos e pelo gosto acentuado por atividades mais livres,menos coercitivas,centradas no lazer e na evasão.O sucessocres-cente de esportes como esqui, surfe, windsurfe, bem como o de-senvolvimento das práticas de tipo multiesporte ilustram essamutação. Nascidos em reação aos desempenhos quantificados,os esportes de prancha baseiam-se em motivações centradas noprazer, na emoção, nas sensações imediatas. Triunfa uma novasensibilidade esportiva que, rejeitando a medição tradicional dosgestos esportivos, aprova os prazeres sensitivos e "icarianos", aaventura, a estética das sensações.Aomesmo tempo, a pluriati-vidade e o "zappingesportivo" não cessam de ganhar terreno, noobjetivo de evitar o tédio, variar os horizontes e os prazeres. As-sim, também a atividade esportiva sealinha pelos comportamen-tos nômades, ecléticos,experienciais do hiperconsumo. Esportesfun, multipráticas esportivas: a época é da supervalorização dosreferenciais sensitivos, lúdicos e conviviais, muito mais que dos

do vencedor. Principalmente a aventura dos sentidos, a busca dasnovidades e da evasão é que estão na base da era fun do esporte.

Afinal, a associação do esporte-lazer com o ideal performa-tivo aparece como um processo relativamente limitado, de mo-do nenhum destinado a crescer para sempre. O fenômeno cen-tral reside na anexaçãodo esporte pelasforçasda individualizaçãoe da mercantilização, em sua formidável transformação em esti-lo de vida-lazer, em sistema moda "frívolo",em produto de con-sumo pago. Segmentando constantemente o mercado, diversifi-cando a oferta, lançando novos produtos, cruzando as antigasdisciplinas - o que hoje se chama "hibridação esportiva" (bas-quete sobre patins, mountain bike,parapente, surfe na neve)-,o esporte tornou-se uma perfeita ilustração da era da hipermer-cadoria. Não a generalização do imperativo da superação de si,mas a generalizaçãodo imperativo da mudança recreativa e mer-cantil sob a égide do sistemamoda.

Sem dúvida, o esporte lazer nem sempre é estranho ao de-sejo de superar os próprios limites: corremos de cronômetro namão, vigiamos o mostrador da bicicleta de apartamento, esgota-mo-nos para ganhar uma partida de tênis amistosa.22Mas o pesodessas motivações é fraco comparado à prioridade conferida àsnovas expectativasdo esporte lazer e do esporte saúde: manuten-ção da forma, higiene de vida, prazeres da descoberta, descontra-ção, contato com a natureza e com os outros. O neo-esportistanão é obcecado por proeza: o que ele ambiciona em primeiro lu-gar é manter o corpo, sentir-se bem ou melhor. Não valores he-róicos, mas valores de distração, de auto conservação, de conci-liação consigo.O que o novo universo esportivo revelanão é maisque a expansão social do imaginário do maior bem-estar.

Sabe-se que, ao longo da fase IlI,a prática esportiva difun-diu-se amplamente no seio da população.Mais de dois terços dos

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franceses declaram praticar ao menos uma disciplina esportiva e5,5 milhões de pessoas entre quinze e 75 anos participam de com-petições como membros de um clube ou de uma associação. Issobasta para sustentar a tese de uma cultura bulímica de recordes e

de excelência? Não creio nisso. Não percamos de vista que osadeptos da prática intensiva com intuito competitivo permane-cem minoritários. A Grã-Bretanha e a França enumeram apenasum terço de praticantes regulares; em outros países mediterrâ-neos, menos de 15% da população esportiva declara-se pratican-te regular. Entre os jovens adultos franceses que praticam um es-porte, 25% o fazem regularmente e 60%, ocasionalmente.

O esforço e a disciplina de que dão mostra nossos contem-porâneos estão tão longe de corresponder às normas de higienede vida que campanhas de sensibilização tiveram de ser lançadasem favor da atividade física para prevenir a obesidade e as doen-ças coronarianas. Como qualificar nossa época de "sociedade dedesempenho" quando a obesidade é decretada nova "epidemia" aameaçar a saúde pública?23Um adulto americano em quatro nãofaz nenhum exercício; 60% dos adultos americanos não praticamnenhuma atividade física regular. É preciso relembrar que 10%dos franceses declaram ser totalmente sedentários e que quase ametade dos franceses tem um nível de atividade física inferior aoequivalente a trinta minutos diários de caminhada rápida. Che-gamos a este ponto: propagando os valores de conforto e os de-sejos imediatos, a sociedade de hiperconsumo ocasionou umainatividade física de massa, bem como um imenso processo dedesestruturação ou de relaxamento das disciplinas corporais. Seo indivíduo hipermoderno sonha com um corpo perfeito, no co-tidiano ele come demais, alimenta-se mal, é cada vez mais seden-tário.

Então, novamente são lógicas paradoxais que se acham emação na fase 11I.Enquanto cada vez mais indivíduos são atraídos

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pelos espetáculos televisivos dos esportes de competição, estesdeclinam em favor do esporte lazer. O público inflama-se porocasião dos grandes encontros esportivos, mas o faz confortavel-mente instalado diante da tela de televisão. Os regimes e a dietéti-ca fazem sucesso, mas sobre fundo de fraca resistência às tentaçõesalimentares, de tendências anárquicas e bulímicas. A sociedadede hiperconsumo não é apenas a dos excessos do desempenho, émais ainda a dos excessos da inatividade física e do lazer espeta-cular, da junk food e outras desordens alimentares. O que nos re-ge é menos uma sociedade de doping do que uma sociedade deconsumo de modelos e de imagens de excelência. Sob a onda dodesempenho, aparece o "triunfo da preguiça".24

SUPERAR-SE OU SENTIR-SE BEM?

Além dos ambientes empresarial e esportivo, todas as esfe-ras da vida cotidiana nos confrontam com o imperativo do de-sempenho, estando o conjunto da vida socialmergulhado daí emdiante na ideologia da superação de si. Os lazeres?Muitos delesfuncionam, a exemplo do trabalho produtivo, segundo uma ló-gica de pressão, de exploração intensiva do tempo, do espaço edo corpo. As mídias? Elas põem em cena, por meio dos progra-mas de telerrealidade, um universo feito de vencedores e de ven-cidos em que é preciso ser o melhor, realizar desempenhos parase tornar a estrela de amanhã. Os novos objetos de consumo? Oantigo modelo centrado na passividade do consumidor é substi-tuído por um modelo de comunicação, incitando o indivíduo aagir, a responsabilizar-se,a tornar-se o "demiurgo de si próprio':25

Abeleza?Cada vezmais, os discursos das marcas para o cor-po apoderam-se de termos científicos, de cifras e de estatísticascom o objetivo de provar a eficáciaótima dos produtos.26Aomes-

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mo tempo, o corpo feminino, celebrado pela publicidade, refor-ça a obsessão pela juventude e pelas medidas perfeitas. O que le-va a Supermulher a agir incessantemente sobre si mesma, a que-rer vencer as rugas e corrigir a silhueta. À beleza decorativasegue-se uma beleza ativista ou prometéica, exigindo reparações(cirurgia estética), esforços e restrições (atividades físicas, regi-mes), manutenção e prevenção (alimentação saudável, hidrata-ção e regeneração da pele). Regimes, consumos cosméticos, ci-rurgia estética: na fase III,a otimização da aparência (antiidade,anti-rugas, antipeso) aparece como uma obsessão de massa.

As esferas da saúde, da alimentação e dos medicamentos ilus-tram igualmente as paixões demiúrgicas do desempenho. No fimdos anos 1980, o guia 300 médicaments pour se surpasser physi-quement et intellectuellement27 dá um destaque "escandaloso" aoimperativo de superar-se, de "ter êxito ou apenas manter-se": do-par-se, recorrer a produtos tonificantes e estimulantes é apresen-tado como mais ou menos indispensável num tempo de compe-tição generalizada. Cada vez mais, a exigência de melhoramentode nossos potenciais e da excelência em todas as coisas tende abanalizar-se: enquanto a busca da saúde se assemelha a uma de-manda de corpo perfeito, o mercado registra o sucesso dos ali-mentos-medicamentos, das bebidas reconstituintes e outros pro-dutos enriquecidos com vitamninas e minerais com vista ao eu

de alto rendimento. Ao mesmo tempo, multiplicam-se as "pílu-las do desempenho", que prometem a conservação da juventude,o aumento da libido, a eliminação das dificuldades sociais e rela-cionais dos indivíduos, a vitória sobre a infelicidade. Juventude

eterna pelos hormônios esteróides, potência fálica pelo Viagra,tranqüilidade interior pelo Prozac ou o Deroxat, eis o consumofarmacológico mobilizado a serviço da excelência competitiva.Em 1926,Wendell Phillips declarava: "Não conheceremos super-

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homem sem supersaúde":28chegamos a isso, já não sendo a saú-de definida apenas como ausência de doença ou de enfermida-de, mas, segundo aOMS,"como um estado de completo bem-estarfísico,mental e social"."Saúde exuberante",que o Super-Homemprocura adquirir pelas novas "pílulas químicas da felicidade".

Semuitos atletas se tornam consumidores de anabolizantesou de hormônios esteróides, os consumidores "comuns", por seulado, querem superar-se tomando substâncias químicas que aju-dam a melhorar as competências, a permanecer competitivos, areforçar as capacidades individuais em uma sociedade de con-corrência generalizada. Enquanto se confundem as fronteiras dasaúde e da alimentação, da medicina e do doping, agora qualquerum procura estar "no topo",no máximo de seu potencial em qual-quer idade e em todas as circunstâncias. É assim que o doping es-portivo não representaria mais que a ponta extrema da "socieda-de dopante",aquela em que asvontades de auto-aperfeiçoamentose tornaram onipresentes.29

E isso não é tudo. Pois sociedade de desempenho no fundosignifica, para os filósofos da esfera de influência heideggeriana,a sociedade em que as novas tecnologias e a razão instrumentalconseguiram criar, de alguma maneira, uma nova espécie antro-pológica. Em análises famosas, Heidegger caracterizou a moder-nidade pelo desaparecimento do reino dos fins em favor tão-sóda intensificação dos meios técnicos, ou, ainda, pelo princípio deeficácia e de produtividade aplicado a todas as coisas.30Em su-ma, o império do desempenho generalizado. Radicalizando essaleitura, autores contemporâneos consideram que o controle pelocontrole não apenas fez definhar as antigas lógicas de sentido,mas também tende a arruinar a ancoragem carnal da existênciae o "sabor do mundo". Já a imagem televisual nos afasta do mun-do, substituindo a experiência dos sentidos por uma telepresen-

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ça desencarnada.3\ Mais radicalmente ainda, o ciberespaço favo-rece uma comunicação abstrata na qual o outro não é mais queinformação, identidade virtual sem corpo nem rosto. Aquilo aque conduz o universo das altas velocidades tecnológicas não se-ria, assim, nada além da perda da realidade do mundo, o definha-mento acelerado das sensações táteis e sensíveis, a digitalizaçãodas experiências humanas. "Perda do mundo e do corpo': desen-carnação do visual e, mais amplamente, dos prazeres, o que é cau-sado pelo universo do desempenho é um corpo descorporizado,"espectral".32

Sobre esse fundo, o Super-Homem é descrito como puravontade, pura tensão rumo à auto-superação, como se o ativis-mo desenfreado, o alarde do poder pelo poder, a corrida ao su-cesso e ao dinheiro houvessem conseguido absorver toda a ener-gia das subjetividades. Os gozos sensíveis, as volúpias carnais eestéticas, eis o que naufraga. Na explosão da técnica, o operató-rio substituiu as volúpias sensoriais,o virtual faz asvezesdo real,a exploração extremista dos potenciais tomou o lugar dos praze-res preguiçosos. Saem as vagueações e os diletantismos do pra-zer, o hedonismo deixou de ser atual, não pertence a nada maisque uma "antropologia daí em diante superada".33É assim que,na civilização da atividade febril e do virtual, o Super-Homemaparece como um herói descorporizado.

"Maior bem-estar" e corpo das sensações

Sabe-se que, ao longo da fase IlI,as técnicas designadas sobo nome de "maior bem-estar" tiveram um sucessocrescente.Sau-na e banho turco, talassoterapia, técnicas de relaxamento, ioga ezen, massagens de todo tipo, eutonia e reflexologia, a sociedadede hiperconsumo é contemporânea de uma avalanche de técni-cas que têm por objetivo proporcionar o prazer "de estar bemcom seu corpo e com sua cabeça".Nesse amálgama psicocorpo-ral com intuito hedonista, trata-se de "despertar a sensibilidadeadormecida", "centrar-se em sua respiração","redescobrir o cor-po", "ampliar e entrar em contato com as sensações": "a era deser" apresenta-se como uma nova maneira de associar o físico eo psicológico, de alargar a consciência para melhor sentir o cor-po. Mais do que à desencarnação dos prazeres, assiste-se ao ad-vento de uma nova cultura do corpo e do bem-estar: o bem-estarsensação.

O bem-estar moderno era funcional, objetivista, mecanicis-ta: o da fase 11Iaparece como um bem-estar qualitativo e reflexi-vo, centrado no corpo vivido, na atenção a si próprio, no aumen-to do registro das sensações íntimas (relaxamento, respiração,visualização, forma, calma e equilíbrio). O balanço é pouco du-vidoso: na sociedade de hiperconsumo, o "heroísmo" da supera-ção de si é suplantado de modo bastante amplo pelaspaixões nar-císicas de saborear os prazeres do maior bem-estar, de sentir-se,muito simplesmente, bem.

Os esportes de prancha ilustram igualmente, através da bus-ca da "vertigem" e dos prazeres cenestésicos, essa promoção docorpo das sensações. Comparar os esportes fun e o virtual é en-ganar-se, supondo que os dois fenômenos exprimem uma "mes-ma vontade de desmaterializar o mundo".34Como não ver quesurfar na internet não tem nada em comum com surfar na neveou nas ondas? Só a palavra é semelhante. Em um caso, o corposensitivo é posto entre parênteses; no outro, ele é, ao contrário, o

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É difícil negar que todo um conjunto de fenômenos con-temporâneos assinala uma estabilização do corpo no estado deausência de gravidade, um recuo da ancoragem corporal da exis-tência. Mas qual a extensão real dessa lógica? Está ela em via deenterrar os valores sensualistas? Tudo indica que esse não é o ca-minho em que se acha engajado o hiperconsumidor.

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ator central. Não é o retraimento do corpo que triunfa, mas umanova dinâmica de corporalização dos prazeres. A crescente abs-tração que se apodera de certas práticas não deve ocultar a pro-gressão das novas ofertas e demandas de práticas sensualistas docorpo.

As práticas de higiene e os cuidados cosméticos vão na mes-ma direção. Se a antiga modernidade celebrou a limpeza e a hi-giene como obrigações morais e sociais, o momento hipermo-demo exalta "o prazer de estar limpo", a volúpia das abluções, osgéis de banho aromáticos, os sais de banho com óleos essenciais,os banhos de espuma e efervescentes. Da mesma maneira, as mar-cas e as publicidades de cosméticos servem discursos sobre a vo-lúpia de cuidar de si próprio e o prazer de "reconciliar-se comsua sensibilidade". Os produtos de cuidados pessoais certamentegabam a otimização da eficácia dos agentes, mas também um em-belezamento "100% prazer", a qualidade das sensações, o prazercomo fator de sucesso dos tratamentos. Ao menos na ordem dodiscurso, o referencial técnico "rigoroso" recua diante de um mo-delo de consumo que conjuga eficácia e hedonismo, saúde e be-leza, higiene e estética, voluntarismo e cuidado-prazer.35 O exa-me do mundo progride apenas paralelamente à sagração dasensualização dos prazeres consumistas.

Quase todos os domínios do consumo são atingidos por es-sa dinâmica. Assim, os trajes de esporte combinam cada vez maisdesempenho e estética: quanto mais os artigos esportivos procu-ram dar uma imagem de campeão, mais se impõe o imperativodo lookmoda (cores variadas, fantasia, elegância e sedução dasroupas). O mesmo acontece com a lingerie feminina, que, em ou-tros tempos associada à norma higienista, tornou-se plenamenteum elemento de moda redesenhado pelos ideais hedonistas e sen-soriais, sexy e lúdicos, glamorosos e poéticos. A exemplo das rou-pas íntimas femininas, os óculos são vendidos freqüentemente

como produtos de moda ou de fantasia. Por toda parte, os mer-cados de consumo assinalam um recuo da estrita "eficácia" emfavor de um processo de hibridação em que o desempenho téc-nico vale apenas quando mesclado ao que proporciona o prazerdos sentidos e da aparência, mostrando-se o hiperconsumidorcada vezmais sensível à imagem pessoal, ao estilo, à estética dosprodutos.O posicionamento"funcional"já nãobasta:a faseIII émuito menos sinônimo de perda da realidade e da sensualizaçãodo mundo que de cosmetização generalizada dos signos, dos ob-jetos e dos corpos.

É verdade que, ao mesmo tempo, o boom da cirurgia estéti-ca fornece argumentos aos defensores do desempenho. Assim,vemos multiplicar-se as compulsões em relação à cirurgia estéti-ca, mulheres, mesmo jovens, sofrendo operação após operaçãona busca de uma impossível perfeição física.Mas essas práticasnão devem ocultar outras atitudes cujo intuito não depende daobsessão pelo desempenho. Como observa Jean-Claude Hagege,não faltam demandas que são "razoáveis" e precisas, sendo rarasas mulheres que, ao dirigir-se a um cirurgião, querem parecer-secom uma top model ou rejuvenescervinte anos. Os objetivos sãomais modestos: não se trata de alcançar uma perfeição estética,mas de corrigir um defeito muito ostensivo,apresentar um rostomais liso, ganhar mais confiança em si, estar mais de acordo comsua plena personalidade.36Motivações que traduzem menos aidolatria da perfeição que a dilatação do ideal de conforto, esten-dido ao domínio psicológico ou emocional. Alegaro ideal de de-sempenho não é convincente aqui, uma vez que, na verdade, oobjetivo perseguido é, para além da melhora da aparência física,o bem-estar interior.

Da mesma maneira que testemunhamos uma forte deman-da de embelezamento dos corpos, assistimos, mais amplamente,à estetização dos gostos e do meio ambiente. Os exemplos são

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uma legião: expansão social dos desejos de luxo, desenvolvimen-to dos mercados de qualidade, apego ao patrimônio, às paisagensnaturais e culturais, paixão pelas viagens e pelo turismo cultural,mas também requalificação do espaço urbano, decoração das lo-jas e dos espaços internos, multiplicação dos livros de arte e dosguias turísticos, ambiência musical onipresente, paixão peloslooks, pelos espetáculos e pelas imagens: fenômenos que são osigno da expansão social dos desejos de beleza, de uma estetiza-ção dos comportamentos e das aspirações da maioria. Com a fa-se III,afirma-se um tipo de individualidade com sensibilidade es-tética, uma "arteização" dos estilos de vida e do consumo marcada

pela distância em relação ao estritamente utilitário e pela aspira-ção a experiências feitas pelo prazer.37

Por toda parte, à medida que a abundância permite que ca-da um escolha entre os incontáveis elementos da oferta, os gos-tos se singularizam e se diversificam, ao mesmo tempo que o re-gistro estético molda um consumo carregado de expectativashedônicas, sensoriais e imaginárias. Para além da desmateriali-zação do mundo, progride o que se poderia chamar um erotismo

ampliado, polissensualista e estético, ávido de deleites qualitati-vos e de sensações renovadas em domínios cada vez mais vastos

da vida. Quanto mais se propaga um certo "ascetismo" higienis-ta, mais se intensifica uma dinâmica de psicologização e de este-tização dos prazeres. No tempo da "arteização" da vida cotidia-na, o Romo aestheticus apoderou-se do Romo consumericus.

Portanto, se a sociedade de hiperconsumo é testemunha dodesenvolvimento da ideologia e das práticas da superação de si,ela é, mais ainda, aquela que consagra o corpo das sensações, umnovo imaginário do bem-estar, que integra as dimensões estéti-cas e sensitivas, psicológicas e existenciais. Segue-se que o indivi-dualismo contemporâneo se apresenta sob um duplo aspecto,sensualista e performativo, narcísico e prometéico, estético e bu-

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límico. Seu modelo não é nem Dionísio nem Super-Homem, é oJano de duas faces, um Jano híbrido, hipermoderno, "exploran-do" por todos os meios as potencialidades abertas por essasduasfinalidades da modernidade que são a eficáciae a felicidade ter-restre.

Medicalização, prudência e sofrimento

É inegável que os modelos do sucesso e da superação de sise democratizaram na "França dopada"38 das duas últimas déca-das. Mas a idéia é exata apenas com a condição de não se confun-dir essa dinâmica com o todo da cultura hiperconsumidora. Pois,se a norma da competição extrema se propaga, outros referen-ciais, sob muitos aspectos contrários, se impõem com uma in-fluência muito mais considerável sobre as existências cotidianas:

trata-se da ideologia da saúde e da prevenção dos riscos.O indivíduo quer melhorar seus desempenhos, superar-se

tomando suplementos nutricionais e coquetéis psicoestimulan-tes? Ele se preocupa sobretudo em consultar cada vez mais mé-dicos, medicalizar seus hábitos de vida, comer de maneira sau-dável e biológica, reduzir os consumos excessivos de calorias e desal, mudar seus modos de vida de risco. A sociedade de hipercon-sumo é circunstancialmente dopante, mas estruturalmente ob-

cecada pelos cuidados de prevenção e de "manutenção sanitária".Detecção das doenças, análises e exames, regimes, eliminação dotabaco, exercícios de manutenção física, fenômenos que é injus-tificado relacionar ao ideal de superação de si. Na realidade, tra-ta-se de uma paixão diferente que invade os espíritos e insinua-se progressivamente em todos os setores da vida cotidiana: não ésenão a manutenção desi,apreservaçãoda saúde. Mais do que oSuper-Homem, Higéia, deusa da saúde, é que é venerada pelo in-

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divíduo dos tempos hipermodernos em via de se transformar emhipocondríaco saudável.

Saúde obsessiva demonstrada igualmente, desde o fim dosanos 1970,pela multiplicação das medicinas alternativas ou na-turais. Agora se contam às centenas as terapias alternativas; o en-tusiasmo pelas plantas está no auge, e mais de seis franceses emdez as consomem; a homeopatia é utilizada ocasionalmente por75% dos franceses e com regularidade por uma família em três;quatro americanos em dez recorrem às terapias não convencio-nais. Seuma das figuras da hipermodernidade é o desempenhotecnocientífico,outra é o medo e a decepção que eleprovoca. En-quanto as ciênciasmédicas e farmacêuticas"fazemmilagres': umgrande número de indivíduos vê suas expectativas insatisfeitasdiante dos riscos iatrogênicos, diante também do que percebemcomo uma desumanização técnica das práticas da saúde. É pararesponder a essascarências ou a essasexpectativasfrustradas queasmedicinas alternativas propõem abordagens que seproclamamparalelas, naturais e holísticas. Aspaixões desenfreadas da supe-ração de si estão longe de se ter tornado dominantes: a faseIIIan-tes vê afirmar-se os temores ligados à demiurgia tecnocientíficae, correlativamente, o culto dos cuidados naturais, "a regulaçãodo sistema nervoso simpático","a harmonização das funções or-gânicas':

Muitas vezesse relacionou, não sem razão, o sucesso das te-rapias complementares ao aumento das doenças crônicas, bemcomo à crescente necessidade dos indivíduos de serem ouvidos,considerados em sua globalidade, levados em conta como pes-soas singulares. Mas o fenômeno traduz igualmente um ceticis-mo cada vezmaior em face dos efeitos da cientização e uma re-cusa da "agressividade" dos medicamentos químicos. Nessascondições, não é o "homem mais",obcecado pela superação deseus limites, que é a figura dominante de amanhã, mas o "princí-

pio de precaução",a busca de terapêuticas não iatrogênicas, a di-versificação das necessidades e dos serviços médicos oferecidos.Não entramos na era triunfal do desempenho: dados os múlti-plos protestos e críticas que se levantam contra a ciência médicaocidental, assistimos antes à desilusão que ela provoca, à erosãode seu monopólio, à sua concorrência com outras terapêuticas.Quanto mais nossasvidas dependem das proezasda tecnociência,mais nosso pseudo-Super-Homem confia em Panacéia,a deusagrega das plantas medicinais. Com a fase III,passamos do estágiodo desempenho "simples" ao estágio do desempenho "reflexivo"expresso como um problema.39

Éverdade que o novo evangelho do natural não impede demodo algum a impressionante escalada do consumo de medica-mentos psicotrópicos. Mas qual é a razão disso?A crescente in-tensificação dos princípios de desempenho, que impõe aos indi-víduos o peso de uma responsabilidade impossível de assumir,basta para explicar essa forma de medicalização? A resposta émuito breve: ela negligenciao fenômeno maior, constituído pelanova relação dos indivíduos com o bem-estar e com o sofrimen-to subjetivo. Seo superconsumo de psicotrópicos traduz a fragi-lidade do indivíduo hipermoderno, também revelaa atitude con-sumista de ser aliviado semdemora dos sofrimentos do mal-estar.Na fase III,o hiperconsumidor tem cada vez menos meios sim-bólicos para dar um sentido às dificuldades que encontra na vi-da: num tempo em que o sofrimento não tem mais o sentido deuma provação a ser superada, generaliza-se a exigência de apa-gar o mais depressa possível, quimicamente, os transtornos quenos afligem e que aparecem como uma simples disfunção, umaanomalia tanto mais insuportável quanto se impõe o bem-estarcomo ideal de vida preeminente. Abanalização do recurso aosmedicamentos psicotrópicos pode ser interpretada como o sig-no da extensão do bem-estar físico à esfera moral, como a pro-

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gressão do ideal do conforto absorvendo agora o domínio psí-quico. É nesse contexto que os pacientes se comportam comoconsumidores que ditam sua prescrição ao médico com vista aum alívio rápido e sem esforço.A novidade na matéria reside nacrescente intolerância em relação ao mal-estar interior, bem co-mo na espiral das demandas consumistas referentes ao bem-es-tar psicológico.A "medicalização do existencial"40é menos a res-posta à ditadura do desempenho que o efeito do poder doimaginário do bem-estar e da qualidade de vida, englobando daíem diante o campo psíquico.

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o consumo paliativo

esse estado de solidão, de desespero, de infelicidade subjetiva queserve de base, em parte, às fúrias' consumidoras, uma vez que es-tas permitem "dar-se prazer", oferecer-se pequenas felicidades pa-ra compensar a falta de amor, de laços ou de reconhecimento.Quanto mais os laços sociais e interindividuais se tornam frágeisou frustrantes, mais aumenta a má vida e mais o consumismograssa como refúgio, evasão, pequena "fuga", paliando a solidão eos sentimentos de incompletude. Destinado a "levantar o moral",a "gostar de si mesmo", o consumo na fase III define-se, tambémnesse plano, de modo emocional. O Roma psychologicus tornou-se o grande multiplicador do Roma consumericus.

Os motores do hiperconsumo são múltiplos e suas funções"terapêuticas" ou derivativas não poderiam esgotar-lhe o senti-do. Mas elas não são por isso menos fundamentais. Ersatz da vi-da a que se aspira, o hiperconsumo se desenvolve à medida quese propagam as "consciências infelizes" e que o curso do mundoparece escapar ao controle dos homens. Quando os laços sociaisse afrouxam, quando as capacidades de influir nas tendências for-tes do mundo já não são dignas de crédito, o consumo represen-ta um domínio escolhido e "controlado" pelos sujeitos, um uni-verso seu em que se buscam incessantemente elementos defelicidade. Hiperconsumo: não técnica a serviço da superação desi, mas busca de um "tempo para si" no qual se "cuida de si",ma-neira de escolher e de encontrar satisfações compensatórias, meiode apropriação subjetiva de porções inteiras de nossa existênciaprivada.

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O que põe o hiperconsumidor em movimento perpétuo? E,nessa febre compradora, que lugar cabe aos intuitos performati-vos do eu? Estes são apresentados como preponderantes: na ver-dade, não constituem mais que uma gota d'água na maré crescen-te do hiperconsumo. São fatores de um gênero muito diferenteque alimentam a torrente consumista, no topo dos quais se inclui,como vimos, a consagração social dos valores hedonistas e sani-tários. Mas existem outros: sublinhemos, em particular, a desa-gregação dos laços sociais, o recuo dos sentimentos de inclusão

numa comunidade, o aumento da incerteza, a fragilização da vi-da profissional e afetiva, o afrouxamento dos laços familiares. To-dos esses fatores acentuaram fortemente, ao longo da fase III, osentimento de isolamento dos seres, a insegurança interior, as ex-periências de fracasso pessoal, as crises subjetivas e intersubjeti-vasoEm uma palavra, o mal-estar. Assinalam-no, especialmente, amultiplicação dos suicídios, o crescimento da toxicomania, dospsicotrópicos e das demandas psiquiátricas. Mas também o entu-siasmo dos franceses pelos animais domésticos,41 os clubes de sol-teiros, o desenvolvimento do mercado dos encontros virtuais. É

II

SEXO-MÁQUINA?

O sexo é freqüentemente apresentado como um outro con-tinente emblemático da supremacia do Super-Homem. Talleitu-

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ra, aliás, está longe de ser nova. Desde os anos 1950, os melhoresobservadores já notavam a anexação da ordem sexual pela dinâ-mica do consumo. Assimiladas a um divertimento fácil de obter,a um prazer frívolo valendo por si mesmo, as relações sexuais têmtendência a transformar-se em "bens de consumo" que se podeescolher à vontade, sem verdadeiro compromisso, um pouco co-mo em um auto-serviço.42 Mas esse alinhamento do Homo sexua-

lispelo Homo consomatoremancipado das antigas tradições repres-sivas efetuou-se apenas sob o jugo de novas imposições coletivas,causadoras de conformismo e de temores, de "competições ansio-sas" e de "sujeições angustiantes".43 Se o sujeito libidinal modernobeneficia-se do afrouxamento das coerções tradicionais, não é porisso menos dirigido por novos modelos padronizados, tais comoa obrigação de mostrar-se livre, chegar ao máximo do gozo, estarà altura dos padrões do desempenho erótico. Nos períodos ante-riores, predominava a norma da pudicícia; agora teríamos uma"liberdade imposta': uma "perseguição" inédita que nada mais éque a sexualidade e "o orgasmo obrigatório".44

Essa problemática fez sucesso: em escritos diversos, ela nãodeixou de falar alto, exibindo-se como uma vitória intelectualalcançada em luta renhida contra as ilusões da consciênciaideológica. Há cinqüenta anos, fervilham os textos que assimilama liberação sexual à "chantagem da ereção permanente", ao "sta-khanovismo do hedonismo':45 à "tirania do genital",46à ditadurado coito. Vocês pensavam ter conquistado a liberdade? Erro com-pleto, visto que nossa cultura nos impõe metodicamente experi-mentar tudo, livrar-nos de nossos bloqueios e inibições, gozar aomáximo, tornar-nos uma espécie de atletas da libido. Sob a apa-rência da permissividade, progrediria, de fato, a ferocidade dasnormas da excelência mensurável, um hedonismo quantitativo eobrigatório mais eficaz em produzir complexo do que em desini-bi-Ios.

Foi assim que o direito ao prazer, incensado pela geração re-belde, se tornou intimação, uma "corvéia",47uma espécie de pro-dutivismo do gozo, análogo em seu princípio àquele que ordenao mundo industrial. E, da mesma maneira que a economia libe-ral provoca o estresse dos resultados e a angústia do desempre-go, a nova economia libidinal cria em grande escala o pânico dosfracassos e dos maus funcionamentos, o pavor de ser um subdo-tado da carne, de não se parecer com o Super-Homem (Super-mulher) no amor.

Após o tempo da transgressão, o da mercantilização de Eros;após a era do pecado, a do sexo eficiente, hipertécnico e opera-ciona!. As livrarias estão repletas de obras do tipo "modo de usar"para transformar-nos em amantes experientes. O pornô reduz azero as palavras e os sentimentos, valorizando as façanhas dos re-cordistas das posições e das combinações, do número e da ere-ção. Desde os anos 1990, assiste-se ao desenvolvimento do con-sumo da "metanfetamina cristal': um estimulante de composiçãosintética utilizado sobretudo em certos meios gays para "mara-tonas sexuais". Técnicas prometem o alongamento e o alargamen-to do pênis, o Viagra, a potência erétil em qualquer idade, novospreservativos, relações sexuais de duração mais longa. Nos Esta-dos Unidos, faz furor o sex designque ofereceo "rejuvenescimen-to vulvar",o estreitamento do diâmetro da vagina, o aumento do"ponto G" por injeção de colágeno para decuplicar as sensaçõesde prazer. Na época do "sexo-proeza", cada um é incitado a tor-nar-se uma espécie de performer, de Super-Homem da libidoadepto da falha zero.O imperativo de desempenho não estámaislimitado à empresa e ao esporte, apoderou-se do planeta sexo.

Nessas condições, o que resta dos jogos delicados e poéticosdo amor?No tempo do pornô e da sexologia,não temos mais queum erotismo hiper-realista e obsessivo,desumanizado, esvaziadoda dimensão relacional com o outro, declaram os decepcionados

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com a permissividade. A logorréia emancipadora e o hedonismocultural conjugaram-se para minar o conteúdo afetivo da sexua-lidade, reduzindo-a a um savoir-faire técnico, a relações contra-tuais, pobres e despoetizadas, vazias de imaginação e de afeto.48Enquanto se difundem a "deserotização do mundo" e a impes-soalidade da relação com o outro, a fase III transforma os indiví-duos em "carentes do amor", em sujeitos calculistas, incapazes deestabelecer reais laços afetivos entre si.49No quadro das proezasdo Super-Homem, pode figurar agora a de ter decapitado o doceCupido.

o amor, sempre

sar disso, nem o ideal do casal, nem o desejo de viver um "gran-de amor", nem os sonhos secretos com o príncipe encantado de-sapareceram.50Bem ao contrário, são onipresentes. O "modelofusional" do amor está esgotado, não o ideal amoroso.51Quaseduas mulheres em três consideram que não se pode ter relaçõessexuais com alguém sem amá-lo;52três franceses em quatro de-claram-se muito apaixonados pelo parceiro com quem têm rela-ções há menos de dois anos.53Mesmo entre os adolescentes, asrelações íntimas não podem escapar a uma referência, ainda queleve, aos sentimentos e ao amor para velar a nudez da pulsão, asgarotas exprimem o desejo de que os rapazes reconheçam, ex-pressando-o por palavras, o que sentem.54

É preciso admitir, no rastro de Barthes, que a indecência dosexo foi substituída pela "obscenidade do sentimental"?55Não érealmente issoque apareceno Dia dos Namorados, em que aspá-ginas de jornais seenchem de declaraçõesinflamadas.Não é tam-pouco o que revelam as mensagens do coração veiculadas cadavezmais sob forma digital.Averdade é que não há nenhuma de-preciação dos "eu te amo": quando muito, eles são enunciadosdepois e não mais antes da troca sexual.A "morte das afetivida-des"nada mais é que um lugar-comum da época hiperindividua-lista: assiste-semenos a um processo de dessentimentalização doque à afetivizaçãocrescentedas relaçõesentre os seres.

Caricatura-se a cultura hipermoderna ao entoar o refrão doempobrecimento do trabalho do pensamento e das capacidadessubjetivas de simbolização, esmagados que estariam pelo cultodas sensações corporais imediatas. De fato, há hoje infinitamen-te mais palavras e reflexividade a respeito dos sentimentos quenas comunidades aldeãs tradicionais, em que os discursos amo-rosos eram pobres, estereotipados, pouco verbalizados.56E talveznão seja inútil relembrar que a disjunção entre sexo e sentimen-to era muito mais acentuada quando as belas retóricas românti-

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Semdúvida, as imagens e os discursos do sexo-máquina tor-naram-se avassaladores, mas isso significa que as mitologias docoração estejam esgotadas?De maneira nenhuma. Cada tempo-rada produz sua safra de romances de amor; os filmes de amorcontinuam a fazer um sucesso fenomenal- Titanicpulverizouos recordes das grandes bilheterias; Céline Dion canta incansa-velmente o amor. Nas revistas femininas, multiplicam-se os arti-gos sobre o amor conjugal, a fidelidade, o ciúme, a decepção. Osamores e desamores das celebridades alimentam a imprensa gen-te.Evidentemente, o sentimento continua a constituir uma te-mática importante da produção e do consumo cultural. Ontemcomo hoje, o público das democracias hipermercantis é ávido deimaginários passionais.Apromoção social do Homo eroticusnãoprovocou de modo algum o naufrágio das expectativas e do dis-curso amoroso.

Onde sevê o eclipsedo sentimento e o esgotamento do con-teúdo afetivo das relações quando as rupturas no casal ocasio-nam verdadeiros dramas íntimos? Por certo, a fase IIIémarcadapelo desenvolvimentodo número de laresde uma só pessoa.Ape-

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lê,

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cas faziam um bom casamento com a freqüência assídua dos bor-déis. A inflação das representações "objetivistas" do sexo é galo-pante, mas é simultânea a uma onda sem precedentes de psico-logização dos comportamentos e dos discursos. Na imprensa, sãoinúmeros os artigos que dissecam as molas da vida amorosa; natelevisão, homens e mulheres manifestam publicamente seus des-gostos; muitos são os homens e as mulheres que têm confidentescom os quais falam de sua vida afetiva. Sem dúvida, nenhumaépoca exprimiu tanto por palavras, analisou tanto, pôs tão emdebate os meandros dos sentimentos: uma pessoa em duas de-clara ter falado de "sentimentos e de amor" com o parceiro quan-do da última relação sexuap7 O que qualifica a fase IIInão é tan-to a dessimbolização e o colapso afetivo quanto a psicologizaçãode massa da sexualidade e da vida de casal.

Mas, se a idéia de cultura anti-sentimental resiste mal à pro-va dos fatos, não é menos verdade que transformações profun-das, que trazem a marca da sociedade de hiperconsumo, estão emação. Cada vez mais homens e mulheres reconhecem sua dificul-

dade em amar muito tempo e mostram-se céticos quanto à pos-sibilidade de amar a mesma pessoa "por toda a vida". A esse res-peito, o mais notável não é tanto o sexo pelo sexo e o aumentorelativo dos parceiros sexuais quanto a multiplicação das pró-prias histórias amorosas. Afinal, vai-se menos de aventura sexualem aventura sexual que de história amorosa em história amoro-sa. De um lado, o ideal amoroso constitui um fecho de seguran-ça contra o consumo-mundo; do outro, a vida sentimental tendea alinhar-se pela temporalidade efêmera e acelerada do hipercon-sumo. Nenhuma anulação da dimensão afetiva, mas uma vidaamorosa em via de ser estruturada como o turboconsumismo,pela desregulamentação do mito do amor eterno, a desqualifica-ção dos ideais sacrificiais, a progressão das relações temporárias,da instabilidade e do zappingdos corações. Consumismo senti-

mental que é tudo, salvoeufórico, uma vez que acompanhado desentimento de vazio, de decepção, de rancor, de feridas íntimas.Então, se há um consumo hedonista, existe também uma dimen-são sismográfica do hiperconsumo dominado pela alternânciarepetida da felicidadee da tristeza, da exaltação e do abatimento.

Sexo-proeza, sexo emocional

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Voltemos aos comportamentos sexuais propriamente ditos.É verdade que, em nossos dias, estes são redesenhados pelo mo-delo competitivo? É sob a égide do Super-Homem (Supermulher)e de seus recordes que se desenvolve a vida sexual hipermoderna?

Do lado feminino, nada é menos certo. Naturalmente, uma

grande maioria de mulheres contemporâneas considera que a sa-tisfação erótica é indispensável ou muito importante na procurada felicidade. Mas, da valorização do pólo sexual da vida à do de-sempenho, há um passo que nada permite transpor, não mos-trando as mulheres, geralmente, um entusiasmo transbordantepelo sexo quantitativo ou operativo. Elas antes lhe rejeitam o prin-cípio, sendo este assimilado a uma obsessão machista que impli-ca mais a reificação de sua pessoa que uma resposta satisfatória aseu desejo. O ponto deve ser sublinhado: suscitando a indiferen-ça,ss a ironia ou o tédio, o sexo de alto rendimento, esvaziado dadimensão subjetiva e emocional, não encontra muitos ecos nouniverso feminino. Ao menos entre as mulheres, é forçoso obser-

var que sua influência é das mais reduzidas, não tendo consegui-do destronar o primado da relação afetiva com o outro.

No que se refere aos homens, é verdade que os critérios con-tábeis se afirmam com uma evidência muito mais ostensiva. Masesse fenômeno é novo? Pode-se duvidar disso, dado que a dimen-são de desempenho parece consubstancial à sexualidade mascu-lina.59A partir daí, a novidade estaria menos na promoção do se-

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xo-proeza narcísico que na de um novo ideal de virilidade, for-çado a levar em conta a dimensão do desejo feminino. Por mui-to tempo, a virilidade definiu-se "em si",a despeito da capacidadede satisfazero desejo feminino. Essejá não é o casohoje, quandoa satisfação feminina é prescrita. Sem dúvida, trata-se de um no-vo imperativo sexual:no entanto, convém não assimilá-Iopura esimplesmente a um narcisismo operativo, fechado ao senso dooutro. De fato, o imaginário de excelênciatécnica e o imagináriorelacional progridem de comum acordo: não é uma sexualidademonádica que triunfa, mas um modelo baseado na dimensão in-tersubjetiva, integrando a alteridade desejante do outro.

No quadro da vida sexual, o individualismo contemporâ-neo não coincide com o "cada um por si",mas, bem ao contrá-rio, com um ideal de troca de prazeres, de escuta do desejo dooutro, de atenção a seus ritmos e a suas preferências. Tornou-se"normal", em situação íntima, falar da libido, exprimindo osamantes, daí em diante, suas expectativas e seus gostos, "corri-gindo" um ao outro. Mais que uma injunção ao desempenho, éum ideal de reciprocidade hedonista, acompanhado de um mo-delo de comunicação interpessoal, que qualificaa cultura eróticana hipermodernidade.

O formidável sucesso do Viagra é freqüentemente apresen-tado como signo da ideologia triunfante do Super-Homem adep-to do doping generalizado.Mas essaexplicaçãopermanece mui-to parcial, funcionando a pequena pílula azul, para a maioria,não como uma medicina do desempenho, mas como um instru-mento terapêutico destinado a atenuar uma fraqueza vivida co-mo entrave importante a uma vida amorosa completa, ao bem-estar psíquico e identitário.Aobsessãopelos recordesé secundáriaquando o que conta é corrigir insuficiências que afetam a vidarelacional e a afirmação do eu masculino. Pressão social para odesempenho? Isso não é o essencial.Antes revelando a amplitu-

de social das dificuldades sexuais, ao mesmo tempo que o desa-parecimento das atitudes de resignação em facedas desvantagensda idade, a corrida ao Viagra é um signo da dilatação hipermo-derna das necessidades e das demandas de bem-estar emocional."Pílula da felicidade", o Viagra deve ser relacionado menos aosdesejos de superação dos limites que aos de confiança em si, deconfortohedonista, de equilíbriopsicológico e identitário.

O aggiornamento do imaginário do bem-estar exprime-seigualmente nas mudanças masculinas em relaçãoaomodelo dom-juanesco. De fato, muitos são os signos que indicam, nas novasgerações, uma perda de fôlego da obsessão por conquistas femi-ninas em favor da valorização da vida a dois, dos sentimentos eda qualidade relacional.60O Don Juan sedento de desempenhosamorosos quantificados não é mais o modelo do indivíduo hi-permoderno: tudo se passa como se, privilegiando daí em dianteo relacional, a escuta de si próprio e a comunicação intimista, oshomens fizessemmenos questão de se fazer passar por recordis-tas da sedução. Nesse plano, ao contrário do que fazem pensaraparências enganosas, a fase IIIregistra menos o triunfo do ima-ginário do desempenho que sua regressão.

E se os desconstruidores da tirania do prazer fossem os pri-meiros mistificados? Pois o que significam as reivindicações fe-mininas ao prazer senão a recusa de uma vida sexual reduzida auma obrigação ou a um ritual fastidioso,recusa de um corpo sub-metido tão-só ao prazer do outro? As problemáticas que dão ên-faseao prazer obrigatório e à obsessãocomparativa tomam a par-te pelo todo, a espuma pelo maremoto, pois, em primeiro lugar,é de uma expressão das novas pretensões à felicidade individualque se trata. Por que falar de ditadura do orgasmo quando a apos-ta é viver uma sexualidade não atrofiada, plenamente ela mes-ma? O que há de despótico no fato de exaltar a finalidade hedo-nística da sexualidade?Não está aí o que constitui seu principal

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valor? O contra-senso é evidente: o que estrutura a nova culturalibidinal não é a imposição do quantitativo, mas a busca qualita-tiva dos instantes vividos. Se esta análise é justa, é preciso inter-pretar a revolução sexual como uma das forças que serviram nãopara pôr em órbita o stakhanovismo libidinal, mas para promo-ver o imaginário da qualidade de vida das pessoas.

dam a vida cotidiana. Quanto mais a norma do desabrochamen-to erótico triunfa, mais é causadora de frustração naqueles quedela são excluídos.Mas toda a questão é saber se issopermite afir-mar, comoAllanBloom, que a liberação dos corpos "nos fezmui-to mais mal que bem".62A ordem sexualista e hiperindividualistaleva portanto, muito simplesmente, ao inferno da solidão, da in-satisfação e da ansiedade? Sensacionalista, essediagnóstico é dis-cutível: centrado em dados reais,mas de modo algum gerais, suafraqueza se deve, além disso, ao fato de que é elaborado sem le-var em conta a longa duração histórica, única capaz de pôr emevidência as alterações de grande alcance registradas pela vidasexual feminina.

Como dar crédito a semelhante catastrofismo quando amaioria das pessoassedeclara satisfeitacom sua vida sexual?Mes-mo que seja preciso mostrar-se prudente a respeito dos resulta-dos revelados pelas pesquisas, estes não são por isso menos sig-nificativos. Já fazvinte anos, o grau de satisfaçãodos homens emrelação à sua vida sexual permanece estável,mas o das mulheresprogride fortemente em todas as idades: três mulheres em qua-tro declaram ter atingido o orgasmo em sua última relação amo-rosa.63Seem alguma época o sexoera uma "corvéia",é sobretudoatrás de nós que é preciso procurá-Ia, quando os casamentos seformavam sem atração, quando a sexualidade recreativa no casalestava freqüentemente ausente, quando muitas mulheres, aterro-rizadas com a idéia de ficar grávidas, não alcançavam o prazer.Em comparação com essasépocas, a mudança é notória: todas aspesquisas de que dispomos mostram que as mulheres, na relaçãoamorosa, se tornaram mais ativas e mais hedonistas; ao mesmotempo, a duração do coito e das preliminares aumentou.64Casose considere a questão sob o ângulo do feminino, tudo convida apensar que o sexoaparece,em todo casomais do que antigamen-te, como uma fonte de alegrias e de prazeres.

Miséria sexual e gozo sensual

O balanço feito por diversos observadores do Eros contem-porâneo não é muito animador. Alguns assinalam o "declínio deEras"; outros falam de uma sexualidade narcísica, indiferente aoutrem; outras ainda apresentam um quadro francamente apo-calíptico de uma época na qual os seres estão desesperados, de-primidos, frustrados, sós com seus desejos cada vezmais insatis-feitos. Miséria sexual e afetiva que se deve ao alinhamento daordem erótica pela ordem econômica. Da mesma maneira que oliberalismo econômico produz uma nova pobreza, o liberalismosexual provoca um neopauperismo tanto libidinal quanto afeti-vo. Nesse universo hiperconcorrente, apenas alguns tiram pro-veito da liberalização dos costumes, sendo a maioria condenadaao isolamento, à frustração, à vergonha de si. Como se o "horroreconômico" não bastasse, eis que agora ele é simultaneamentehorror libidina1.61No final das contas, o individualismo e o libe-ralismo cultural não fizeram senão isolar um pouco mais os se-res, torná-Ios egocêntricos, incapazesde fazer a felicidadedo ou-tro. Longede ter favorecidoa felicidadedos sentidos, a revoluçãosexual provocou um impressionante desenvolvimento das frus-trações e do mal-estar.Liberaçãodos corpos, derrelição dos seres.

Existeverdadenessasleituras sombrias. Emparticular, épou-co duvidoso que a miséria sexual dos indivíduos seja mais difícilde assumir a partir do momento em que os apelosao prazer inun-

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Preocupação de não "estar à altura" das normas da excelên-cia? Receio de sentir-se inferior aos outros em razão da torrentede pesquisas, de cifras e de medidas de que, daí em diante, cadaum toma conhecimento? Esses efeitos, inegavelmente, existem.Mas em quais proporções? Aí está a questão. Então não há maisque "estragos" e "inferno" no horizonte do sexo "emancipado"?

Encaremos a questão sob o ângulo das relações entre os doissexos. É verdade que, diante de mulheres mais livres, mais "expe-rimentadas': mas também mais exigentes. os homens podem mos-trar-se ansiosos quanto à virilidade. Esse fenômeno. contudo. temseus limites, os temores masculinos geralmente não ultrapassammuito os primeiros tempos da relação. Por outro lado, se as an-gústias e as "panes" se multiplicam, como duvidar de que as rela-ções sexuais têm mais possibilidades de ser satisfatórias com mu-lheres ativas, desinibidas, do que com mulheres que as consideramcomo um castigo? Se a sexualidade em tempo liberal cria ansie-dade comparativa, também favorece uma sexualidade mais sen-sualista, mais recreativa, mais lúdica. No final das contas, não é aobsessão pelos recordes, exagerada pelas mídias, que qualifica omomento hipermoderno, mas antes a hedonização e a diversifi-cação dos comportamentos sexuais da maioria. Não acusemos aera do sexo-prazer de todos os males. Sejamos honestos: quemdeseja realmente voltar atrás?

ereção e da ejaculação precoce afetam respectivamente 20% e25% dos franceses; 25% dos homens e 46% das mulheres estãosujeitos a perdas de desejo; 18% das pessoas de 20-24 anos e de60-64 anos não tiveram nenhum parceiro sexual ao longo dosdoze últimos meses; 13% dos homens na faixa de 20-24 anos e18% das mulheres da mesma idade não tiveram nenhuma rela-ção sexual nos cinco anos anteriores.66Ao fim de alguns anos devida de casal, apenas um indivíduo em dois se declara muito sa-tisfeito.67Um terço dos casaisnão tem ou quase não tem mais re-lações sexuais. Evidentemente. no reino do sexo triunfante, os"desfavorecidos" e os rejeitados do prazer continuam a consti-tuir importantes batalhões.

Apartir daí, é de bom-tom lançar o anátema sobre a "revo-lução sexual".acusada de ser incapaz de fazer nossa felicidade.Is-so é fazer-lhe justiça? Na realidade, a revolução sexual aparecetanto como um sucesso quanto como um fracasso. Seu balançoé paradoxal: mais indivíduos podem desfrutar de uma sexuali-dade feliz, descomplexada, diversa, mas, ao mesmo tempo, ummaior número se sente decepcionado e frustrado. A felicidadeerótica é mais acessívelàs mulheres e aos homossexuais, mas asmúltiplas manifestações de miséria sexual não cessam de des-mentir o triunfalismo das pesquisas e das promessas de desabro-chamento dos sentidos.

Afinal, não somos tão testemunhas do fracasso da revolu-ção sexual quanto dos limites estritamente intransponíveis comque se depara o projeto político de desabrochamento libidinaluniversal. A ilusão era acreditar que podia haver um progressoilimitado, uma evolução ininterrupta, irreversível, universal ru-mo à felicidade erótica. Nas sociedades individualistas, em que avida sexual está livre das imposições coletivas,as exclusões,frus-trações e insatisfações não são anomalias, são realidades não eli-mináveis porque resultantes da própria dinâmica da individuali-

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Limites da revolução sexual

Interrogado sobre si próprio, o indivíduo hipermoderno de-clara um alto grau de felicidade. Não é diferente a respeito da vi-da sexual: nove entre dez franceses se dizem satisfeitos ou muitosatisfeitos com sua vida sexual presente.65No entanto, existe umadefasagem entre essas respostas e fenômenos que assinalam umamaré crescente de dificuldades e de frustrações. Os distúrbios da

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zação. A partir do momento em que governam a si próprios, osindivíduos são sujeitos decisórios, mas também, fatalmente, víti-

mas sujeitas às leis do amor e do acaso, aos mecanismos das pre-ferências e das rejeições, às atrações e repulsas, às ligações e rom-pimentos. Leis da concorrência interindividual, livres inclinaçõese aversões dos indivíduos que criam inevitáveis "perdedores". Éisso que há de justo na idéia de "extensão do domínio da luta"

(Michel Houellebecq). Se a revolução sexual derrubou os princí-pios vitorianos que enquadravam os comportamentos indivi-duais, não conseguiu, naturalmente, impulsionar o desejo de to-dos por todos, a harmonia ou a concordância dos apetites, a igualdesejabilidade de cada um. As máscaras caíram: nem tudo, porcerto, é político. É impossível pensar a felicidade erótica como oproduto mecânico de uma liberação coletiva, uma vez que ela de-pende da sedução das pessoas, das preferências e dos gostos in-dividuais, da alquimia dos corpos e das almas singulares. Está cla-ro que a revolução que prometia acabar com a miséria sexual não

chegará às suas últimas conseqüências: esses limÜes não depen-dem do despotismo do desempenho, resultam da cultura dos in-divíduos autônomos, dispondo de si próprios em um "mercado"desregulamentado.

Não nos enganemos: o que impede a realização libidinal nãosão as normas atléticas do sexo, mas, muito mais cruamente, a

ausência de vida sexual, a solidão e também as perdas de desejodo outro, as incompreensões no casal, o desencanto amoroso. A

satisfação que se tira da vida sexual não é apenas função do nú-mero de orgasmos: está ligada ao desejo do outro, aos laços decumplicidade, ao charme da sedução, à intensidade dos senti-

mentos experimentados pelo outro. Fenômenos que o tempo ge-ralmente deita a perder. É assim que a satisfação erótica recuacom a duração do casal, com a banalidade dos dias, com a "roti-nização" das relações e as mágoas sofridas por cada um. Não bus-

quemos a explicação do enfastiamento do sexo ou do desvanes-cimento do desejo nas imposições do hedonismo obrigatórioquando a razão se encontra sobretudo na obra corrosiva do pró-prio tempo. Tirania do Super-Homem? Ela ainda está longe deter condições de rivalizar com o poder mais surdo, mas inegável,de Cronos.

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r10. Nêmesis: superexposição dafelicidade, regressão da inveja

daí em diante, os shows do eu, os zooms sobre a intimidade numtempo em que os hiperconsumidores querem menos admirar fi-guras ideais do que sentir emoções com o espetáculo de seres"próximos" cuja experiência vivida os afeta mais diretamente.

Nesse contexto, as fantasias, o banal, o erotismo, os senti-mentos subjetivos, tudo se torna objeto a ser expresso e consu-mido em profusão. "Mostrar tudo, dizer tudo, ver tudo", eis o quelevou a qualificar a sociedade de hiperconsumo de "sociedadetransparente", no momento em que os indivíduos parecem nãoter mais nada a esconder de um público para o qual um dos as-suntos preferidos passou a ser o desvendamento dos estados deespírito. Depois do sensacionalismo das notícias e dos furos davida política, nossa época é magnetizada pelo exibicionismo daintimidade do homem comum.

Até onde se propaga essa"pornografia da alma"?A questãose apresenta quando o sexo e as perversões, as fobias e as obses-sões não constituem mais obstáculos à divulgação de si. Mas oque vale para Eros vale para todos os recantos da psique? Todosos tabus referentes ao íntimo foram suprimidos? Demaneira ne-nhuma. No presente capítulo, gostaria de analisar uma dimen-são da vida subjetiva que, ao escapar muito amplamente ao pro-cessode divulgaçãodo eu, confirma uma lógicado inconfessável.Esseaspecto da vida psicológicanão é senão a inveja.

A inveja é o sentimento de desprazer por vezes experimen-tado quando sevêem as qualidades ou a felicidadede outrem; eladesigna a alegria doentia a partir da desventura deste, o desejode vê-Io privado de suas vantagens, não tanto para adquiri-Iasquanto para que ele deixe de gozar uma felicidade sem nuvens.Ora, ontem assim como hoje, "a invejaé uma paixão tímida e ver-gonhosa que jamais ousamos confessar":l o fato é esse, ela nãoaparece no concerto ruidoso do exibicionismo contemporâneo.Nada de zooms, nada de grande desabafo:a invejaé o que seman-

Aépoca que comprime o espaço-tempo é também a que ten-de a dissolveras antigas fronteiras que separam o espaço privadodo espaço público. Fora com os velhos pudores da subjetividade,de agora em diante a vida pessoal se exibe em plena luz do dia,inundando em grandes ondas a cena midiático-política. Éramosconsumidores de objetos, de viagens,de informações; eis que so-mos, ainda por cima, superconsumidores de intimidade.

As manifestações do fenômeno são numerosas: torrente dopornô profissional e amador, biografias escandalosas, conversastelefônicas em público, internautas filmados por câmeras insta-ladas em suas casas,mas também programas de televisãoem queos indivíduos revelam o mais secreto de si mesmos, jogos de te-lerrealidade em que os feitos e ditos cotidianos dos participantessão retransmitidos ininterruptamente ao público.A faseI viu nas-cer as estrelas sublimes do cinema; a fase IIIé contemporânea dapromoção das celebridades insignificantes que apenas têm de sero que são na banalidade dos dias e na mise-en-scene da autentici-dade do eu. Às superproduções hollywoodianas acrescentam-se,

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tém secreto. Não há mais embaraço em chorar em público, emfalar de seus amores e de suas inclinações sexuais: mas quem con-fessa alegrar-se em assistir à ruína da felicidade de outrem? Quemreconhece ter a alma repleta de fel? Quem aceita ser identificadocomo um ser cheio de inveja pela pessoa invejada? Pondo-nosem situação de inferioridade em relação aos outros, esse senti-mento é verdadeiramente inconfessável. Constitui um dos esco-

lhos sobre os quais se choca o processo de superexposição de si.Daniel Bell achava estranho que a idéia de inveja tivesse si-

do tão pouco "explorada" na literatura sociológica.2 Da mesmamaneira, na obra que dedicou a essa questão, Helmut Schoeckobservava que o conceito de inveja fora amplamente "expulso"do discurso das ciências sociais e políticas, tudo se passando co-mo se houvesse uma "repugnância em estudar a inveja".3Eviden-temente, nem sempre foi assim; só que, a respeito desse tema, osMestres não tiveram muitos seguidores. Da mesma maneira quePenía, Dionísio ou Narciso foram freqüentemente mobilizadoscomo chaves de leitura da modernidade consumista, Nêmesis, opoder divino encarregado de representar, entre os gregos, o prin-cípio da inveja, permaneceu como uma figura periférica.

Esse diagnóstico continua atual? Pode-se crer que não. Rawlse Nozick dedicaram importantes exposições a essa questão.4 Re-né Girard elaborou uma teoria geral da cobiça.5 Raymond Bou-don propôs um modelo neo-individualista da comparação inve-josa nas sociedades modernas.6 Jean-Pierre Dupuy sustenta quea inveja "obceca a literatura econômica atual".7 Há muitos indí-cios de que Nêmesis está de volta à cena da filosofia e das ciên-cias sociais.

As páginas que se seguem desejariam inscrever-se nesse mo-vimento de "reabilitação" do problema da inveja. A intenção queas anima é tentar analisar a maneira pela qual a sociedade de hi-perconsumo "trata" e orienta as tendências malévolas que habi-

tam o indivíduo. JulesRenard observava que "não basta ser feliz,ainda é preciso que os outros não o sejam".Esse sentimento estáem toda parte e em qualquer tempo. Mas, ao menos desde Toc-queville e Nietzsche, levanta-se a questão de saber se é verdadeque as democracias trabalham em aumentar-lhe ou, ao contrá-rio, em reduzir-lhe a importância. Que tipo de hostilidades re-primidas são favorecidas pelo capitalismo de consumo? Por trásdos estribilhos simpáticos do humanitarismo e da caridade demassa, é preciso dar razão aos que ouvem o clamor dos ódios einvejasdesenfreados de todos contra todos?

o MAU-OLHADO

Por mais que recuemos na história das sociedades humanas,o veneno da inveja é conhecido, nomeado e, simultaneamente,objeto de temor. Em todas as civilizações e em todas as línguasconhecidas, o homem atormentado pela inveja é condenado, to-mado como alvo nos contos, nas lendas e nos provérbios;8 portoda parte, das crenças primitivas ao Antigo Testamento (Caim eAbel), a inveja e a cobiça são designadas como paixões devasta-doras, ameaças, terríveis tlagelos.Mas, se esse sentimento é umaconstante da natureza humana e da vida em sociedade, temos odireito de pensar que nem todas as civilizações lhe conferem amesma importância, nem todas favorecem da mesma maneira odesenvolvimento do indivíduo invejoso.

Considerada sob esse ângulo, é nas sociedades primitivas enas comunidades rurais tradicionais que a inveja encontra suaforma mais coerente, mais acentuada, mais socialmente estrutu-rada. É que aí ela aparece como o princípio geral e sistematizadoque explica os acontecimentos malfadados que se abatem sobreos homens. Nessas culturas, as desventuras de que padecem os

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homens jamais são pensadas como fruto do acaso ou de um pu-ro determinismo natural: supostamente provêm da maldade e dainveja dos outros. A inveja está em ação em todo infortúnio quesobrevenha a quem quer que seja.É por isso que são numerososos ritos e crenças destinados a proteger contra os que são habita-dos por disposições malévolas.Em razão do poder dessas repre-sentações e desses sistemas sociais simbólicos, Éric Wolf fala, aesse respeito,de uma "inveja institucionalizada".9

Entre os índios hopis e os navajos, os sukumas e os lovedusda África, as calamidades são atribuídas às práticas de feitiçariaempregadas pelos seres corroídos pela inveja.1OEntre os azandésda África, se sobrevém uma desgraça, isso só pode ser atribuídoà maldade de um vizinho que, dominado pelo ódio e pelo ran-cor, enfeitiçou sua vítima.Atrás de todo acontecimento infelizseesconde a feitiçaria motivada pela perversidade e a hostilidadedos homens. Para explicar a doença, a morte, um acidente, umacolheita ruim, alega-se o "mau-olhado", a magia maléfica inspi-rada por maus sentimentos e pela alegria maligna de prejudicar,de causar danos; tudo que acontece de mau é imputável às dis-posições malévolas de alguém, aos vizinhos que têm rancor pornós e nos enfeitiçam.11Assim,as sociedadesde tradiçãopodemser consideradas como sociedades verdadeiramente "obcecadas"pela inveja.

Nas comunidades aldeãs tradicionais, o medo da inveja quese inspira em outrem é onipresente. Sendo o vizinho considera-do com mais freqüência inimigo do que amigo, cada um vive notemor da maledicência e da calúnia, do mau-olhado de outrem,das práticas da magia agressiva.Os acontecimentos felizesfazemtemer o ressentimento e a invejados outros; daí uma infinidadede atitudes socialmente prescritas com o objetivo de manter ossentimentos destrutivos à distância: dar presentes, não exibir suafortuna, não se gabar do que se possui, ou mesmo, como na Chi-

na antiga, depreciar a própria situação, rebaixando-se. Ninguémdeve explodir de alegria por ocasião de um acontecimento feliz,orgulhar-se de seus bens ou de qualquer vantagem, fazer sentirque sua situação é melhor que a dos outros. Nas comunidadescamponesas tradicionais, convém manter em segredo os aconte-cimentos felizes, simular penúria, vestir pobremente os filhos,ocultar o estado de gravidez ou falar dele como de uma doença.Da mesma maneira, convém não elogiar os outros, não se exta-siar diante de seus bens, não fazer cumprimentos, sendo tais ati-tudes percebidas como manifestações de tendências invejosas. 12

Semelhante pregnância do medo da inveja não é separável,segundo Foster, de um sistema de pensamento ou de uma visãodo mundo em que todo aumento individual de bens (riqueza,honra, poder, saúde, afeição) só é possível à custa dos outros: omais de uns se paga inevitavelmente por um menos dos outros.!3Quando a soma dos bens é considerada fixa, ninguém vê combons olhos o que o outro obtém, todos têm de temer o ressenti-mento dos outros. Entre os azandés, admite-se que os jovens te-mam e invejemos velhos,que os velhosinvejem os jovens,os me-nos bem aquinhoados, os mais favorecidos. Na família, sãofreqüentes as ocasiões de rancor entre irmãos e irmãs, entre es-posos e esposas,e temem-se acima de tudo asmaldições do pai eda mãe, dos tios e das tias.14A imagem de uma quantidade de ri-quezas limitada e não extensível seria uma das principais fontesdo peso sociale individual da inveja.

Foi assim que as culturas tradicionais do "face a face"favo-receram a suspeita de todos contra todos, a psicose dos sortilé-gios motivados pelo rancor de outrem. Asvisões românticas dacalorosa e receptiva comunidade, caras ao século XIX,devem serrebatidas: longe de ser dominantes os sentimentos de solidarie-dade e de bela fraternidade, são os sentimentos malévolos eas

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QUANDO A FELICIDADE SE MOSTRA

se em tornar mais belos os mais belos, mais desejáveis os maisdesejáveis, mais felizesos mais felizes.A uma lógica tradicionalde dissimulação segue-seuma lógica de superexposição das ima-gens da felicidade fora do comum. Os gregos consideravam queos deuses achavam desagradáveis as manifestações de triunfo eos sucessos grandes demais, que erguiam os homens acima desua condição de mortais. Asmídias hipermodernas, estas dão umdestaque sem precedentes aos deuses do Olimpo (estrelas, topmodels, playboys,esportistas, multimilionários) que parecem vi-ver em um nível superior de existência. Daí em diante, não seconsomem apenas coisas, superconsome-se o espetáculo hiper-bólico da felicidadede personagens celebróides.

suspeitas que ocupam o primeiro lugar, podendo a menor van-tagem pessoal instigar a animosidade de parentes e vizinhos.

Essamodelação sumária da questão da inveja no universosocial tradicional permite tornar sensível o abismo que nos se-para disso. De fato, é no exato oposto desse tipo de mentalidadee de regulação coletiva que funcionam nossas sociedades. No"mundo que perdemos': existiamnormas sociais imperativas queestavam encarregadas de conter a explosão das cobiças de ou-trem. Não é mais assim: diferentemente dessas épocas, as socie-dades contemporâneas suprimiram todos os diques de "prote-ção",tudo se passando como se os costumes hiperindividualistashouvessem conseguido nos libertar do medo imemorial das pai-xões invejosas.

O universo das mídias de massa oferece uma ilustração elo-qüente dessa inversão quando não pára de exibir insolentementee em imensa escala tudo que existe de invejável neste mundo. Acomeçar pela publicidade, que se apresenta como uma cenogra-fialuxuriante da felicidadeedasvolúpias domundo. Certos anún-ciosaté mesmo enaltecemseusprodutos prometendo que os com-pradores conseguirão despertar a inveja dos outros. John Bergerreconhece nisso o motor da publicidade, a qual seria essemeioque garante aos consumidores ser glamourous, isto é, invejadospor sua felicidade.1sO que provocavamedo tornou-se argumen-to de venda, sentimento tratado com ironia e desenvoltura.

Cotidianamente, a televisão, as revistas, a imprensa de cele-bridades exibem o espetáculo dos que encarnam a plenitude davida. Por meio de fotos e de reportagens superlativas, as mídiasnão fazem apenas brilhar os modelos da vida feliz,empenham-

A inveja neutralizada

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Considerando o universo do consumo, assim como seus me-canismos nas sociedades pós-industriais, Daniel Bell evoca uma"institucionalização da inveja".16 A expressão é adequada? Na ver-dade, a publicidade não se empenha de modo algum em estimu-lar a cobiça: exalta a positividadedas novidades, dos desejos e dosgozos. Tudo que é agressivoé eliminado em favor do "frescor deviver" e das volúpias a serem colhidas sem a preocupação comoutrem. Aqui, "todo mundo é bonito, todo mundo é amável": apublicidade não funciona como uma alavanca dos sentimentosmalévolos,mas como instrumento de legitimação e de exacerba-ção dos gozos individualistas. Não nos focalizano outro, mas emnós mesmos. Ninguém é ameaçado, ninguém é magoado, todomundo tem o direito de aspirar à felicidade por intermédio dosbens mercantis. Nas culturas tradicionais, as crenças se caracte-rizavam por um imaginário de jogo com resultado empatado; oimaginário veiculado pela publicidade pertence, ao contrário, aum jogo de tipo "vencer ou vencer".O que a publicidade provo-

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ca não é a fúria invejosa, mas a febre consumista para si. Ela nãoinstitucionaliza a alegria maldosa, mas remete ao eu, acelera osmovimentos do desejo, desculpabiliza o ato de consumir. Não ador do que os outros possuem, mas a euforia das novidades e a

impaciência de adquirir aquilo de que se carece. A publicidadenão é tanto um multiplicado r quanto um redutor de inveja.

Do mesmo modo, pode-se ver nas revistas o que põe entreparênteses os sentimentos invejosos. Isso é tão verdadeiro que asuperexposição dos deuses olímpicos não desencadeia em partealguma as paixões rancorosas do público. Muito ao contrário.Amamos as estrelas, alegramo-nos com suas alegrias, sofremoscom sua infelicidade: ninguém deseja secretamente sua desgra-ça. Quanto mais as vemos infelizes, mais nos compadecemos;quanto mais resplandecem, mais nos alegramos; quanto maisacompanhamos seus amores, mais as amamos. Ao fabricar seres

cuja presença, à força de repetição, se tornou familiar e quase ín-tima, as mídias de massa transformaram as estrelas em persona-gens que compõem uma espécie de família ampliada: elas fazemparte de nossa vida e de nossos sonhos. Porque nos são próxi-mas, nós as amamos; porque estão, apesar de tudo, longe de nós,não sentimos em relação a elas nem inveja, nem rancor, nem de-sejo secreto de assistir ao seu naufrágio.

A espetacularização da felicidade vai muito além das gran-des celebridades. Na fase III,multiplicam-se as transmissões detelevisão centradas nos indivíduos comuns cujos mais belos so-nhos são atendidos sob os olhos do público. "Estrelas em domicí-lio': "Sonho de um dia": a televisão apresenta-se como uma instân-

cia mágica e generosa, uma espécie de Papai Noel que prodigalizapresentes e viagens, faz desaparecer as dívidas, ajuda os deserda-dos, organiza encontros excepcionais: nada mais que felicidade.Os jogos a dinheiro e os shows caritativos vão na mesma direção:os felizes ganhadores explodem de alegria, os donatários como-

vem-se às lágrimas, os doadores exultam por fazer o bem. Na so-ciedade de hiperconsumo, a felicidade de outrem tornou-se umformidável objeto de consumo de massa aliviado dos tormentosda inveja.

Nunca tantos indivíduos manifestaram tanto gosto em se-rem espectadores da felicidade de seus semelhantes. Longe de sereduzir a um indivíduo calculistavoltado apenas para seus gozosegoístas, o hiperconsumidor encontra prazer em ser testemunhada felicidade dos outros. Esses sentimentos de empatia podemser epidérmicos e fugidios, mas não são por isso menos reais.Agrade ou não aos detratores das mídias, estas favorecem maisos sentimentos de afinidade que os ímpetos da maldade invejosa.

É verdade que ao mesmo tempo o público se mostra ávidodas desventuras que afetam o beautifulpeople.Por vezesessegos-to é explicadopela alegria insidiosa de ver as personalidades maisem evidência atingidas pelos mesmos males que nós. No entan-to, outras explicações podem ser alegadas. Como observaramAdam Smith e Nietzsche, nada é mais insuportável que tomarconsciência de que se é o único a sofrer.Na condição de especta-dores dos infortúnios das celebridades,nos é dada uma prova su-plementar, em "primeiro plano",de que a infelicidadeé coisauni-versalmente partilhada. Essaverdade banal aparece, então, comuma evidência maior. O que está em ação não é tanto a alegriamaligna de ver desaparecer a felicidade do outro quanto a satis-fação tranqüilizadora de saber que não somos os únicos a estarferidos. Ao que se acrescenta uma outra dimensão que não esca-para a Lucrécio.Em um texto célebre,Lucrécio sublinhava comoé doce assistir ao espetáculo do infortúnio de que nós mesmosestamos isentos. Não é que os sofrimentos dos outros nos dêemprazer, mas "nos comprazemos em ver que males nos poupam".17Apreciamos melhor nossa condição presente ao sentir que esca-pamos do pior.

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Dizer a felicidade idéia de que "nenhuma força misteriosa e imprevisivel interfereno curso do mundo"18e de que a natureza não obedece a vonta-des humanas, mas a leis impessoais, a feitiçaria e a magia maléfi-ca deixaram de ser sistemas reguladores das crenças e das con-dutas humanas. Esseponto é essencial para nossa questão. O fimdo mundo da feitiçaria contribuiu, de fato, para a emergência deum novo modo de apreensão da realidade de outrem, uma vezque os infortúnios não puderam mais ser explicados a partir dasmaldições provocadas pelo ódio e a invejados homens. O desen-cantamento do mundo não mudou nada, por certo, na naturezados sentimentos malévolos dos homens, mas conseguiu reduziro temor que inspiram desde asmais remotas eras.

O segundo grande fator histórico que merece ser sublinha-do não é senão a invenção e a irradiação da ideologia econômicacaracterística dos tempos modernos individualistas. Esta, comefeito, substituiu a condenação moral dos "vicios privados" (in-veja, cobiça,vaidade) por sua apologia como instrumento do de-senvolvimento das riquezas materiais e da ordem pública.19Ascompetições invejosas eram tradicionalmente consideradas umperigo e uma ameaça mortal; agora são pensadas como fatoresde progresso, permitindo escapar à pobreza e à violência. Apar-tir disso, as culturas modernas preocuparam-se menos em con-jurar a inveja que em favorecer o que é suscetível de aguçá-Ia.Nasceu uma nova civilizaçãona qual se tornou pensável e louvá-vel viver como se a inveja não existisse ou não comportasse ne-nhum perigo destruidor.20

Foi sobre o fundo dessas transformações secularesque o ca-pitalismo de consumo completou o processo de erosão do temorda inveja. Propagando uma cultura que encoraja a viver para si ea se auto-estimar, as sociedades consumistas substituiram a ob-sessão pela inveja pelo exibicionismo da felicidade, o medo dasmaledicências pela indiferença a outrem. A partir do momento

As conversasda vida comum mostram igualmente essa sus-pensão do temor da inveja dos outros. Assim, não somos maisobrigados a guardar segredo do que nos torna felizese a nos fa-zer de rogados com nosso prazer, envolvendo-o em restrições.Exibir as alegrias ganhou direito de cidadania: as férias podemser "geniais", nossos filhos, "os mais bonitos", nossa profissão,"apaixonante",o que seviveu,"fantástico, fabuloso, incrivel".Afi-nal, temos menos medo de desencadear os sentimentos de cobi-ça e de inveja que de fazer supor que não somos felizes.Se qui-séssemos despertar deliberadamente a inveja de outrem, nãoagiríamos de maneira diferente.

Reconhece-sesem constrangimento ter sorte, ser privilegia-do, estar satisfeitocom a vida íntima ou profissional. Se é de maugosto exibir um luxo espalhafatoso, não o é mostrar uma felici-dade ostensiva.Tornou-se normal exprimir alegria em fórmulassuperlativas, dizer-se sortudo sem ter de imediatamente "baterna madeira" para conjurar a má sorte. É claro, já não tememosprovocar reaçõesde invejada parte de outrem. As antigas barrei-ras protetoras caíram: ganhamos o direito de viver ignorando ainveja de outrem.

Medo da inveja e modernidade

A emancipação em relação ao medo da inveja que se inspiraem outrem evidentemente não se realizou em um dia, apenas soba ação do universo consumista. O movimento vem de longe, ten-do as tendências fortes da modernidade contribuído com gran-de intensidade para isso. Entre estas, o processo de racionaliza-ção científica, a dessacralização ou desmagificação do mundoocupam um lugar de primeiro plano. À medida que se impôs a

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em que a busca da felicidade se impôs como norma legítima des-tila~a por uma mitologia onipresente, o medo de despertar a in-veja de outrem deixou de constituir uma estrutura mental e ideo-

lógica importante. Daí em diante, zombamos ou rimos da cobiçaalheia: a era triunfal do consumo pode ser considerada como ocoveiro desse terror imemorial.

tresse, mas só 45% dizem sofrer dele pessoalmente.22 Interroga-dos pelo Instituto Francês de Opinião Pública em 2005, 81% dosassalariados franceses declaram-se satisfeitos com sua situação

pessoal, mas 70% afirmam que "os assalariados franceses não es-tão satisfeitos com sua situação profissional". Da mesma maneira,69% são otimistas quanto ao futuro de sua empresa, mas apenas27% o são quanto à situação do país. Com a extrema individua-lização dos costumes, prevalece o sentimento de que "eu sou pas-savelmente feliz, os outros não o são".

Como explicar o fato de que os indivíduos se considerem,em geral, mais felizes que os outros? Mais do que uma respostaditada pelo "terrorismo" da ideologia da felicidade, trata-se aquide uma avaliação, de alguma maneira, estudada. No que se refereao olhar dirigido a outrem, nossa apreciação baseia-se numa con-sideração de fatos brutos (perda de emprego, doença grave, po-breza, solidão) que, sinônimos de infelicidade, são tomados "ob-jetivamente", a despeito da experiência vivida dos atores. Comojulgar os outros felizes quando o mundo oferece o espetáculo de-solado r de tantas misérias? E, diante destas, não é evidente queminha condição é melhor? Mesmo que eu seja vítima de um des-ses males, não há sempre dramas mais terríveis? Comparando-seaos mais desfavorecidos, como não se declarar mais feliz que eles?Como não ver que nossa vida não é a pior de todas? Invertendoa máxima de La Bruyere, tudo se passa como se os franceses pen-sassem: "há uma espécie de vergonha em não se declarar feliz àvista de certas misérias". Assim, vê-se que a resposta dos indiví-duos é menos a expressão de uma íntima experiência vivida queuma espécie de dedução ponderada a partir de seus conhecimen-tos dos indicadores sombrios do mundo. É preciso reconhecer aímenos um determinismo ideológico mecanicista que uma ma-

nifestação do individualismo informado e reflexivo.Se os indivíduos declaram-se felizes, isso se deve igualmen-

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CONFIANÇA, FELICIDADE E INVEJA

Com o desenvolvimento da sociedade de hiperconsumo, asmaneiras de imaginar a felicidade e a infelicidade alheia passa-ram por notáveis mudanças. Nas comunidades tradicionais, por-que o medo da inveja impelia os indivíduos a ocultar suas vanta-gens, havia a propensão a superestimar o bem dos outros. Eraassim que os indivíduos estavam freqüentemente convencidos deque os outros se beneficiavam de uma condição melhor que a de-les próprios.21 Também nesse plano, a tendência inverteu-se.

Como se sabe, em numerosas pesquisas realizadas com eu-ropeus, estes se dizem maciçamente felizes (90%). Os francesesnão escapam a essa tendência: em 2004, três franceses em dez sedeclaravam muito felizes na vida, seis em dez, razoavelmente fe-

lizes, oito em dez, felizes em sua vida amorosa. Cinqüenta porcento dos franceses afirmam que são mais felizes do que eram hácinco anos. Enquanto se eclipsa o medo da inveja de outrem, au-mentam as declarações de massa da felicidade pessoal.

Mas, ao mesmo tempo, apenas uma minoria pensa que seuscompatriotas são realmente felizes. Apergunta: "Você tem a im-pressão de que a maioria das pessoas, neste país, está satisfeitacom a vida que leva?': 70% dos franceses respondem que os ou-tros não estão satisfeitos, enquanto 64% declaram que eles pró-prios estão satisfeitos; 79% pensam que os outros sofrem dees-

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te ao fato de que os momentos felizes são postos em evidência,superestimados em relação às seqüências menos satisfatórias daexistência. Mesmo que presentemente eu não esteja cheio de âni-mo, não é verdade que em outros dias, em outras horas, a vida semostrou mais risonha? Esses momentos melhores é que são re-cordados e que levam os europeus, apesar de tudo, a dizer-se, emgeral, felizes. Por ser de tipo reflexivo, essa resposta não é "verda-deira': quando, nesse domínio, só é pertinente a expressão da ex-periência vivida mais subjetiva. Ela tampouco é inteiramente fal-sa, uma vez que esses momentos de satisfação são de fato vividos.

E não é só isso. Responder "eu não sou feliz" é desesperante,toda a minha vida aparece como um completo fracasso. Em com-pensação, dizer "eu sou feliz ou feliz o suficiente" é uma maneira

de convencer-se de que, tudo bem pesado, minha vida, a despei-to de tudo, tem coisas boas. Assim, deparamo-nos com uma es-pécie de método de auto-sugestão espontânea destinado a fazerfrente aos efeitos deprimentes de um julgamento-balanço nega-tivo sobre si próprio. Os indivíduos se dizem felizes porque re-conhecer o contrário não é "bom para o moral". Na sociedade dehiperconsumo, os indivíduos não se protegem mais contra o mau-olhado alheio, mas contra seus próprios julgamentos negativosque, muito desvantajosos, lhes devolvem uma imagem penosa desi próprios. Trata-se, no essencial, de uma atitude que visa a con-jurar o desencorajamento, a manter a confiança em si mesmo.

Confiança, suspeita e inveja

Como vimos acima, nas comunidades tradicionais os ho-mens viviamem um ambiente socialmarcado pelo temor da ma-gia malévola e da inveja perniciosa que se inspira em outrem. Asuspeita em relação ao vizinho era a regra. É diferente em nossosdias?Àprimeira vista, não, dado que a maioria dos europeus con-

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sidera que o senso moral declina, que a ajuda mútua não é maiso que era, que nunca se é bastante prudente quando se lida comos outros: apenas dois francesesem dezpensam que"sepode con-fiar na maior parte das pessoas".23E não se ignora o quanto di-versas minorias (imigrantes, ~rogados, pessoas atingidas pelaaids, jovens dos conjuntos habitacionais perigosos, pessoas deoutras raças) são objeto de uma desconfiança particularmenteviva de grande parte da população. Essa crise de confiança "ho-rizontal" é acompanhada, além do mais, por uma crise no planoda confiança "vertical".Um número crescente de pessoas consi-dera que os políticos não têm palavra e estão interessados ape-nas em sua reeleição; cada vezmais a classe política é posta emdúvida, considerada desonesta, incapaz de resolver os problemasfundamentais da sociedade.Enfim, as mídias, as empresas, as eli-tes econômicas cristalizam uma forte desconfiança dos indiví-duos. Todos aspectos que levaram a falar de uma "sociedade dedesconfiança generalizada".

Mas essequadro está incompleto. A.Giddens sublinhou co-mo é importante, em nossas sociedades, a confiança em relaçãoàs pessoas desconhecidas, da mesma maneira que a referente àscompetências profissionais e técnicas.24Além disso, se é verdadeque as sociedades hipermodernas registram um constante enfra-quecimento da confiança vertical, assiste-se,ao mesmo tempo, àexpansão de atividades sociais (vida associativa, voluntariado)que supõem níveis elevados de confiança.25Enfim, se a circuns-pecção em relação aos outros em geral está muito difundida, omesmo não acontece com a maneira pela qual percebemos os"próximos": em relação aos membros da família, aos amigos, aosvizinhos, aos colegas de trabalho, é a confiança que domina.26Omedo da inveja dos próximos que pesava sobre as antigas cultu-ras foi substituído por uma tendência ao aumento do sentimen-to de confiança mútua.27Um fato, entre outros, que indica que o

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hiperindividualismo não se reduz à rivalidade desconfiada de ca-da um contra todos.

Mas, se a confiança em relação aos próximos progride, a con-fiança em nós mesmos se degrada. Quanto menos o vizinho é as-similado a um inimigo, mais os indivíduos têm dúvidas sobre si.

Em certas sociedades antigas, buscava-se rebaixar a si mesmo pa-ra não provocar a inveja alheia. De agora em diante, é a ordemliberal e consumista da sociedade que se esforça por acentuar aimagem negativa de nós mesmos. O que alimenta o temor não émais a cobiça de outrem, mas, de um lado, as leis anônimas do

mercado e a precariedade do emprego; do outro, nossas capaci-dades de estar à altura dos objetivos exigidos. Nossas desconfian-ças mais agudas não remetem mais a pessoas mal-intencionadas,mas a mecanismos anônimos que, longe de nós, procuram nãotanto nos prejudicar quanto ser sempre mais eficazes e competi-tivos. Cada vez menos relacionados à inveja, os temores que so-brevêm não são por isso menos obsedantes.

te com a democracia. Ao se tornar igual aos outros, cada indiví-duo pode comparar-se com eles e tende a achar insuportável omenor privilégio de que gozeseu vizinho. .

IEles destruíram os privilégios constrangedores de alguns de seussemelhantes; encontram a concorrência de todos [u.] Quando adesigualdade é a lei comum de uma sociedade, as mais fortes de-sigualdades não dão na vista; quando tudo é mais ou menos demesmo nível,as menores as ferem.29

AS METAMORFOSES DA INVEJA

Ao instituir a igualdade e permitir que mais pessoas provas-sem um maior número de gozos materiais, a sociedade democrá-tica não fez mais que propagar as comparações invejosas e inten-sificar os ressentimentos de todos.

A interpretação segundo a qual a modernidade democráti-ca favorece a inveja e o nível geral das frustrações prolonga-se,em nossos dias, com o reforço da grade de leitura do "desejo mi-mético". Princípio inicial: o desejo não tem objeto privilegiado, ésempre imitação de um outro desejo; as coisas não são desejadaspor si mesmas, mas porque um outro as deseja. Princípio dois:fazendo convergir os desejos para um mesmo objeto, o Outrotorna -se a uma só vez modelo, rival e obstáculo. Princípio três:quando aquele que copia e aquele que é imitado se aproximam,os desejos miméticos se aguçam e as rivalidades se ampliam, tan-to mais que se referem a diferenças derrisórias. Portanto, quantomenos profundas são as distâncias entre os homens, mais eles seimitam e mais se desencadeiam os ciúmes, as cobiças e os olha-res invejosos. Cruel lição: longe de preparar uma paz harmonio-sa, a igualdade e o bem-estar democráticos esforçam-se para am-pliar os desejos rivais e os sentimentos de amargura.3O

A tese da propagação da inveja nas sociedades afluentes nãocarece de defensores. Nos anos 1950, David Potter desenvolveu o

Ao longo do século XIX,Chateaubriand, Stendhal, Tocque-ville,Nietzsche interrogaram-se sobre a invejae sua inscrição nassociedades modernas democráticas. Relembrarei aqui apenas ainterpretação de Tocqueville, provavelmente a mais célebre. A"lei" enunciada por Tocquevilleé a seguinte: "Quando as condi-ções se tornam iguais [u.] a inveja,o ódio e o desprezo pelo vizi-nho, o orgulho e a confiança exagerada em si mesmo invadem,por assim dizer, o coração humano, e por algum tempo dele seapropriam".28Enquanto os homens viviam em sistemas aristo-cráticos, ninguém pensava em pôr em discussão a ordem das coi-sas, revoltando-se contra sua sorte. Tudo se altera completamen-

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conceito de "invidious proximity".31V.Packard assinalava que aobsessão com o nível social desenvolvia a rivalidade e os "senti-mentos baixos"entre os desclassificadosamericanos.32D.Bell fa-la de uma "institucionalização da inveja".Na trilha de René Gi-rard, P.Dumouchel e J.-P.Dupuy sublinham "o inferno mimético"e a exacerbaçãodos tormentos da invejaque acompanham a dis-solução moderna das diferenças.33Esse diagnóstico é exato nassociedades de hiperconsumo? Pode-se duvidar disso.

Consideremos a relação dos indivíduos com os bens mer-cantis, os quais, de longuíssima data, foram motivos de invejadeprimeiro plano. Ninguém discordará disto: diversos fenômenoscontemporâneos demonstram a pregnância das rivalidades inve-josas relativas aos bens de consumo. Os adolescentes vivemmalo fato de não ter acesso às marcas exibidas por seus camaradas.Nos bairros mais desfavorecidos,multiplicam-se os atos de van-dalismo, o "ódio",a "raiva"dos jovens por serem pobres, diferen-tes dos outros, excluídosdo consumo-mundo. Além do mais, na-da impede de pensar que essessentimentos têm um belo futuropela frente no momento em que as relações mercantis são oni-presentes, no momento também em que as desigualdades eco-nômicas se reforçam.

No entanto, outros fenômenos revelamuma não menos evi-dente atenuação dessas reações de hostilidade. Já não são muitonumerosos os que, nas classesmédias, sufocam de raiva diantedo carro, da casa, do mobiliário ou do aparelho de som do vizi-nho. Que mulher ficamortificada de inveja à vista do traje usa-do por outra mulher? Na fase 11I,os objetos de consumo perde-ram uma grande parte de seu tradicional poder de despertarreações de hostilidade. Os desejos consumistas proliferam, a ale-gria malévolade ver o outro privado de suas vantagens materiaisregride. A tese clássica, segundo a qual a inveja se desencadeiatanto mais quanto se difunde o bem-estar material e progride o

estado social democrático, requer uma correção.34A verdade éque a sociedade de hiperconsumo precipita menos "o inferno dascoisas"do que nos afasta dele.

É claro que os indivíduos não se tornaram "melhores". Sim-plesmente, à medida que têm acesso,em grande número, ao "mí-nimo confortável", contemplam com menos amargura as dife-renças materiais que existem entre eles próprios e os vizinhos.Quando o consumo emocional prevalece sobre o regulamentar,os indivíduos são mais autocentrados, mais movidos pela buscade experiências existenciaispositivas que pelo desejo negativo dever o outro despojado de suas vantagens materiais. Hoje, o que ooutro possui como bens materiais tem menos condições de nostirar a confiança e de envenenar nossa existência: o que importaé "ser mais': sair mais, viver experiências renovadas e euforizan-tesoO regime de hiperconsumo conseguiu esmorecer as frustra-ções materiais, se não de todos, ao menos de um número cres-cente de indivíduos.

Adifusão de massa dos produtos de consumo e a individua-lização dos modos de vida servem de base a essaevolução.Volte-mos à moda indumentária. Amudança é muito significativa. Ademocratização do prêt-à-porter,bem como a multiplicação doslooks e dos estilos legítimos permitiram que a imensa maioriaparticipe de uma maneira ou de outra da moda, reduzindo a de-sigualdade hierárquica das aparências. Semmais criar uma ima-gem inferiorizante de si, o vestuário, mesmo barato, já não é vi-vido de maneira humilhante. Nem todo mundo tem acesso àsmarcas prestigiosas,mas usar roupas menos onerosas não émaisindício de indignidade social nem mesmo de exclusãodo campoda moda. Porque as desigualdades indumentárias não são maisofensivas,porqueos looksmaisdiscordantestêmdireitode cida-dania, porque a importância da aparência indumentária está nu-ma vertente declinante, os sentimentos de rancor, nesse domí-

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nio, diminuíram notoriamente. Nesse contexto pluralista e des-centrado, os indivíduos - com exceçãodos adolescentes - nãosentem mais muito prazer em despertar a inveja dos outros exi-bindo a última tendência. Para a maioria, o importante não épro-vocar inveja,mas usar aquilo de que gostam, o que lhes cai bem,o que exprime sua personalidade e seus gostos.

Além disso,numa época marcada pelo enfraquecimento dasculturas de classe,os gostose as aspiraçõessão menos socialmen-te homogêneos, destradicionalizados que são pela dinâmica deindividualização e de pluralização. Nessas condições, se a maiorparte dos indivíduos desejadispor de um poder de compra maior,elesnão sonham necessariamentecom adotar a maneira pelaqualos mais favorecidosou seus "vizinhos" conduzem sua existênciae ordenam seu ambiente de vida. Éassim que se torna freqüentesentir-se "alérgico"às escolhas consumidoras dos outros. Muitosimplesmente, não partilhamos seus gostos estéticos, e a manei-ra como vivem está tão longe do que valorizamos que não é ca-paz de despertar nossa inveja.Diversificando os gostos, as estéti-cas e os modos de existência, legitimando sistemas de valorheterogêneos, a sociedade de hiperconsumo contribuiu forte-mente para reduzir o desprazer diante da maneira pela qual osoutros, próximos ou menos próximos, gerem seu orçamento eorganizam seu ambiente cotidiano.

guém negará que essas inclinações continuam em atividade: te-mos mesmo todas as razões para pensar que prosseguirão no fu-turo por intermédio, especialmente, dos "novos-ricos" e outrascategorias de esnobes. No entanto, surgem outros tipos de com-pras onerosas que, alimentando-se de motivações mais pessoais,visam antes de tudo a experiências mais refinadas, sensualistas eestéticas. O objetivo é, então, gozar intimamente a diferença emrelação às massas,saborear prazeres raros e por elesmesmos, an-tes que despertar a cobiça alheia. Viver o luxo para si em vez deexibi-lo: a fase IIIse distingue pelo recuo das comparações humi-lhantes em favor de um neo-aristocratismo "interior", da expe-riência emocional das coisasbelas, de um erotismo estendido aocampo dos bens mercantis.J6

É preciso relembrar que a nascente era moderna democrá-tica foi palco, no século XVIII,de uma famosa "querela" que opu-nha os partidários do luxo a seus adversários redibitórios? É for-çoso observar que essas disputas memoráveis não encontrammais que um eco abafado. Não significaque as críticas ao esban-jamento tenham desaparecido,simplesmentevisammais,em nos-sos dias, à hipertrofia do consumismo de massa que aos excessosdo luxo.À indignação moral suscitada pelo fausto dos privilegia-dos sucede a inquietação alimentada pelas poluições industriaise pela devastação dos recursos naturais do planeta; as flechastra-dicionais lançadas contra o supérfluo e a vaidade são seguidaspelos protestos contra a degradação do gosto, das paisagens e daqualidade de vida. Viver melhor "aproveitando o tempo", slowfood, gosto pelas marcas e produtos de qualidade: já não são tan-to os bens dispendiosos que alimentam os requisitórios quanto afalta de tempo, a aceleração generalizada, a vida sem qualidade.Tudo se passa como se o luxo houvesse perdido sua capacidadede provocar o ressentimento, a hostilidade aberta, o desejo dedespojar os ricos.

Luxo e comparação provocante

As despesas de luxo mostram uma mesma tendência ao en-fraquecimento do papel da inveja. Em sua célebre tese, Veblen su-blinha que o motor do consumo dispendioso não émais que uma"corrida à estima, à comparação provocante". Prevalecer sobre osoutros, atrair "a estima e a inveja dos semelhantes", eis os moti-vos de fundo que levam à aquisição dos bens suntuosos.JS Nin-

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A geração da contracultura assimilava o luxo ao mundo afe-

tado dos burgueses e dos "coroas': Hoje os jovens são tomados poruma febre de produtos topo de linha, e o grande público adoracontemplar na telinha as sagas dos abastados, os rituais obsoletosdos nobres, as grandes festas chiques e os hotéis de luxo, os cru-zeiros e as residências suntuárias. O luxo tinha um ar antiquado,está na moda; era signo de alienação, ei-lo marcador de qualidadede vida. Cada vez mais os indivíduos procuram selos de qualidade,compram marcas de luxo "acessíveis" e vez por outra fazem "lou-curas" dispendiosas, em ruptura com o ethos popular tradicionaldo consumo. As antigas denúncias do luxo foram substituídas pe-lo direito democrático a ele: vivemos o tempo da legitimação e dademocratização de massa dos desejos de luxo. Transformaçõesque assinalam o recuo da hostilidade invejosa em relação aos benspreciosos. Na sociedade de hiperconsumo, não se trata mais tan-to de combater privilégios tirando bens dos ricos quanto de teracesso a eles com fins de gozos privados emocionais.

satisfações alheias sempre foram os elementos desencadeadoresdas reaçõesde inveja:só que essaverdade se impõe com uma evi-dência mais"pura".Eis-nosclaramente numa época de invejapós-materialista ou existencial.

Schoeck tinha razão de afirmar que uma sociedade da qualestivesseausente toda forma de inveja é quase impensável, umavez que esta parece consubstancial à existência humana. A faltade confiança em si, o sentimento de impotência, os fracassos, ainsatisfação em relação à nossa vida são umas tantas experiên-cias que abrem caminho aos rancores. Jáque a vida nos fere e nosfaz infelizes,como o espetáculo da felicidade alheia poderia nãoparecer, de uma maneira ou de outra, uma "agressão"?Como asaflições do outro poderiam não nos consolar de nossos males?Esta velha verdade "humana, demasiado humana" permaneceinalterada: nada permite pensar que amanhã será diferente.

Da mesma maneira que "a inveja particular" prossegue, "ainveja geral",aquela sentida pelos desfavorecidos em relação aosmais dotados,37não se evaporou. Os rendimentos exorbitantesdas elites econômicas provocam clamores de protesto. O impos-to sobre as grandes fortunas continua a beneficiar-se de um am-plo apoio popular, embora seu rendimento seja dos mais fracos.Não faltam indivíduos que se alegram com os dissabores dos per-sonagens mais em evidência. E os linchamentos midiáticos a quese assiste são menos comandados por um espírito de justiça quepela vontade de oferecer "cabeças" à inveja doentia do público.Em alta altitude, o panorama da inveja continua a apresentar amesma quantidade de relevos.

Inveja existencial e inveja geral

A inveja deve ser posta, então, na prateleira das antiguida-des?A idéia é absurda. No mundo do trabalho, do espetáculo eda política, das artes e das letras, por toda parte o sucesso de al-guns favoreceo rancor dos outros, por toda parte os ciúmes e asalegrias más florescem.Mas não são mais tanto as diferenças deriqueza que provocam os sentimentos malévolos quanto as cate-gorias de bens cuja característica é, precisamente, não poder sercomprados. Prestígio,celebridade,talento, vitória, promoção pro-fissional, beleza, sedução, conquista amorosa, felicidade de seramado, eis o que inspira a inveja nos tempos hipermodernos.Quando reina o consumo-mundo, são os bens que não se com-pram que alimentam as paixões tristes. Por certo, as felicidadese

Por real que seja, a persistência dos sentimentos maus nãodeve ocultar, na escala histórica, uma mudança de regime visível

o recuo da inveja

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não apenas nas paixões coletivas, mas também nas motivaçõessubjetivas. A abolição da propriedade privada não está mais naordem do dia e as grandes utopias igualitárias já não dão bilhe-teria, tendo o imaginário da revolução sido varrido pelo culto in-dividualista do dinheiro e do desenvolvimento íntimo. Evidente-mente, a condenação do mundo liberal ergue sua voz, mas, semsolução alternativa digna de crédito, sua retórica já não é capazde mobilizar os ódios vingadores contra o sistema estabelecido.

O universo da mercadoria é estigmatizado, mas todos desejamparticipar dele. Da mesma maneira que se observa um apazigua-mento da conflituosidade social e política,38 assiste-se, na fase 1II,ao recuo do ressentimento em relação aos mais favorecidos. Se

as primeiras democracias modernas desenvolveram "a inveja, ociúme e o ódio impotente" (Stendhal), as nossas são testemunhasde uma redução dos rancores e das hostilidades em relação aosricos. O hiperconsumidor individualista sofre mais por si pró-prio do que com a prosperidade insolente dos outros, a qual des-perta mais curiosidade ou indiferença que raiva destrutiva. O quenão impede de modo algum a revivescência dos protestos e dascríticas radicais ao neoliberalismo: simplesmente, eles se alimen-tam mais de indignação moral que de indignação-inveja.

Ao analisar o caso americano, E. Luttwak relaciona a regres-são do ressentimento em relação aos super-ricos à influência oni-presente da herança calvinista. Pelo fato de a riqueza, na doutri-na calvinista, ser signo de favor divino, os vencedores despertamrespeito e os perdedores se depreciam precisamente por não te-rem êxito econômico.39 Que seja. Mas como não observar que asnações européias, menos dominadas pela tradição protestante,passam por uma evolução que, por ser mais hesitante, nem porisso é menos paralela? Do outro lado do Atlântico, também se re-

duzem as cobiças suscitadas pelos hipervencedores. Mesmo que,no oeste da Europa, as grandes desigualdades de fortuna conti-

nuem a ser alvos privilegiados da crítica, os indivíduos tendemcada vez mais a "culpar antes a si próprios que ao sistema",4ocadaum se tornando responsável por seu sucesso ou por seu fracasso.À medida que as regulações coletivas se atenuam diante das nor-mas do indivíduo que governa a si mesmo, a inveja destrutiva ce-de o passo a uma cultura ofensora da auto-estima dos perdedores.A guerra de todos contra todos é substituída pelo questionamentodepreciativo de si por si.

Segundo Descartes, "nenhum vício causa tanto dano à feli-cidade dos homens quanto o da inveja".41Pode-se duvidar de queainda seja assim. Nos tempos hiperindividualistas, o que maisenvenena a existência não é o bem que acontece aos outros, masnosso próprio infortúnio. As solicitações em excesso e as ofertasde felicidade certamente não fazem desaparecer a inveja, mas re-duzem-lhe o poder invasor, cada um se preocupando mais coma própria vida que com a dos outros. Daí em diante, nada é maisimportante que viver "mais", sentir-se melhor, conhecer novasexperiências, não passar ao lado do que nos é "prometido". Porisso, torna-se difícil sustentar, a exemplo de Friedrich Logau, que"invejar e ser invejado são nossas principais atividades nesta ter-ra".42Justa, talvez, nas sociedades holistas, essa apreciação não o émais nas épocas hiperindividualistas, prevalecendo a preocupa-ção com a felicidade privada sobre o olhar que se lança à felici-dade dos outros. A verdade é que sabemos avaliar cada vez me-lhor nossa própria felicidade sem compará-Ia à do outro. Nemtoda felicidade é de comparação: nas sociedades hiperindividua-listas, a busca dos gozos privados basta por si só.

As sociedades tradicionais favoreceram o desenvolvimento

da inveja e as nascentes democracias modernas levaram adianteesse trabalho. Assim, as "civilizações de vergonha", da mesma ma-neira que as "civilizações de culpabilidade",43 podem ser conside-radas civilizações de inveja. Nesse plano, a sociedade de hiper-

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consumo marca uma ruptura. Não apenas o medo da inveja jánão comanda as representações sociais e individuais, mas tam-bém os desejos de ver alguém privado de suas vantagens ocupamum lugar menor na economia psíquica dos indivíduos. A socie-dade do narcisismo conseguiu, talvez pela primeira vez, atenuara força da inveja sentida por Nêmesis.

Não nos alegremos depressa demais de ver recuar as afliçõesda inveja. A alegria maldosa se atenua, a indiferença ao outro pro-gride. E muitos outros tormentos assaltam o hiperindivíduo quesofre de solidão, de ansiedade, de dúvidas sobre si próprio. Ummal expulsou o outro. Não há progresso da felicidade.

11. Homofelix: grandezae misériade urna utopia

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Os Modernos, afirmavaNietzsche, gostam de dizer que "in-ventaram a felicidade".1Mesmo que, nesses termos, a afirmaçãoseja eminentemente discutível, não é menos verdade que, a par-tir do século XVIII,a questão da felicidade adquire um novo sig-nificado, bem como um relevo excepcional na paisagem da vidaintelectual e cultural. Lutando contra a crença na corrupção danatureza humana, reabilitando o epicurismo, os prazeres e as pai-xões, os homens das Luzeselevaram a felicidade terrestre à con-dição de ideal supremo. De livro em livro, o mesmo postulado éenunciado: o homem nasceu para ser livre e feliz. Primeira dasleis naturais, a busca da felicidadeaparece como a atividade maiscrucial, a mais urgente que existe, ao mesmo tempo que se tornaobjeto de debates apaixonados, um problema incansavelmenteanalisado: "Agrande ocupação, e a única que se deve ter, é viverfeliz"/ escreveVoltaire.

Diante da negligência com que os homens, geralmente, tra-tam essa "ocupação", os moralistas consideram que é seu deverempregar todos os meios para esclareceros semelhantes sobre as

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condições físicas,morais e afetivasque permitem alcançar a vidafeliz. Eis a moral erigida em ciência da felicidade, a única a serrealmente útil aos homens. Moral da felicidade,mas também so-nhos de felicidade:os discursos utópicos que imaginam uma so-ciedade diferente, reconciliada com a felicidade,multiplicam-se;romances e poemas, canções e peças de teatro a põem em cena;3mesmo o ambiente de vida (residências, interiores, jardins, mo-biliário, modas, bibelôs, decoração) concretiza o novo primadoreconhecido aos prazeres e à vida radiante.4A secularização domundo caminhou junto com a sacralizaçãoda felicidadeterrena.

Asmaiores esperanças são depositadas nos progressos dasciências,cujo objetivo, segundo se pensa, não émais estritamen-te especulativo, mas utilitário. Apartir de Bacon e Descartes, oprojeto prometéico dos Modernos está claramente delineado: oconhecimento valorizado é aquele que permite promover conti-nuamente o bem-estar dos homens através de uma "infinidadede artifícios': Poder da ciência:graças às suas aplicações técnicas,os homens poderão gozar confortavelmente dos "frutos da ter-ra", conservar a saúde, prolongar seu tempo de vida, vencer asmisérias da existência.Elabora-seuma visão otimista do futuro,baseada no progresso cumulativo dos conhecimentos e das téc-nicas, que será sistematizada nas grandes filosofias da históriados séculosXVIII e XIX.De Turgot a Condorcet, de Hegel a Spen-cer, impõe-se uma concepção necessitarista do progresso, a idéiade que a história avança inevitavelmente do menos bom para omelhor. Ao contrário das idéias tradicionais da decadência, osModernos assimilaram a história a um progresso contínuo e ili-mitado que se encaminha para a justiça, a liberdade e a felicida-de.Ahistória universaltem um sentido: elenão émais que o pro-gresso ao infinito da humanidade, a marcha desta rumo àfelicidade mais completa. Os conhecimentos eliminarão os pre-conceitos, os homens se tornarão melhores à medida que forem

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mais esclarecidos,as técnicas melhorarão a existência material ealongarão a esperança de vida: "Aidade de ouro do gênero hu-mano não está atrás de nós, está à frente".5A grande e boa notí-cia é que a dinâmica da história nos prepara um futuro necessa-riamente feliz, sempre melhor. Com osModernos, o Romo felixdeixou de ser uma promessa endereçada apenas aos sábios, tor-nou-se o horizonte do gênero humano, inscrito na própria lei daevoluçãohistórica.

A ideologia do capitalismo de consumo constitui uma figu-ra tardia dessa fé otimista na conquista da felicidadepela técnicae a profusão dos bens materiais. Simplesmente, a felicidade nãoé mais pensada como futuro maravilhoso,mas como presente ra-diante, gozo imediato sempre renovado, "utopia materializada"6da abundância. Não mais a promessa de uma salvação terrestrepor vir, mas a felicidade para já, esvaziada da idéia de astúcia darazão e da positividade do negativo. A plenitude exaltada pelostempos consumistas não depende mais de um pensamento dia-lético: é eufórica e instantânea, exclusivamente positiva e lúdica.O discurso profético foi substituído pela sagração do presentehedonista veiculado pelas mitologias festivas dos objetos e doslazeres.

O que não impede que o século xx seja acompanhado poruma profunda crise da religião secular do progresso. Iniciadasnos séculos XVIII e XIX,as refutações da idéia de progresso tive-ram um avanço espetacular em conseqüência das duas guerrasmundiais, dos extermínios de massa, do totalitarismo, do perigoatômico e, mais recentemente, das degradações dos ecossistemase das ameaças biotecnológicas.Aspromessas progressistas foramseguidas de visões pessimistas, sendo a tecnociência assimilada auma máquina satânica mais produtora de desvastações que debenefícios. Os filósofosprometiam o Éden neste mundo; alguns,hoje, anunciam que o pior está às nossas portas, quase inevitá-

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vel.Em nossos dias, as inovações provocam mais inquietação ouceticismo que entusiasmo, por toda parte se exprimem as dúvi-das sobre o progresso, bem como exigências de proteção e de li-mites: a fé em um futuro necessariamentemelhor emais felizdis-solveu-se.?

Enquanto a confiança no futuro perde o fôlego,aumentamos medos ecológicos, os apelos a um outro tipo de desenvolvi-mento econômico, mas também novos movimentos religiosos,novas aspirações espirituais. Fenômenos que aparecem como osigno de uma crise da cultura materialista da felicidade.Asma-ravilhas técnicasmultiplicam-se, o planeta está em perigo.Omer-cado oferececadavezmais meios de comunicação e cadavezmaisdistrações, a ansiedade, a solidão, a dúvida sobre simesmo fazemestragos. Produzimos e consumimos sempre mais, não somosmais felizespor isso.É possívelque o caminho tomado pela civi-lização tecnomercantil seja um impasse fatal? É possível que oculto moderno do Homofelix seja o instrumento de nossa maiorinfelicidade?

FELICIDADE E ESPERANÇA

É em nome da felicidade que se desenvolve a sociedade dehiperconsumo. A produção dos bens, os serviços, as mídias, oslazeres, a educação, a ordenação urbana, tudo é pensado, tudo éorganizado, em princípio, com vista à nossa maior felicidade.Nesse contexto, guias e métodos para vivermelhor fervilham, atelevisão e os jornais destilam conselhos de saúde e de forma, ospsicólogos ajudam os casais e os pais em dificuldade, os gurusque prometem a plenitude multiplicam-se. Alimentar-se, dor-mir, seduzir,relaxar,fazeramor, comunicar-se com os filhos,con-servar o dinamismo: qual esfera ainda escapa às receitas da feli-

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cidade? Passamos do mundo fechado ao universo infinito daschaves da felicidade: eis o tempo do treinamento generalizado eda felicidade"modo de usar" para todos.

Devemos felicitar-nos por essa inflação de solicitudes e depromessas de plenitude? Em um livro recente, Pascal Brucknerdesenvolve a idéia de que, à força de ter feito da felicidade umideal supremo, esta se tornou um sistema de intimidação, uma"injunção terrificante" de que somos todos vítimas. Assim, o di-reito à felicidadetransformou-se em imperativo de euforia, crian-do vergonha ou mal-estar naqueles que dela se sentem excluídos.À hora em que reina a "felicidade despótica", os indivíduos nãosão mais apenas infelizes, sentem a culpabilidade de não se sen-tir bem.8

Essa análise comporta inegavelmente uma parte de verda-de: aponta justamente a nova pressão exercida pelo ideal de de-senvolvimento pessoal sobre as maneiras de perceber e de julgarnossa vida. O ponto é pouco contestável:ao erigir a felicidadeemnorma onipresente, nossa época torna mais difícil ainda a pro-vação do fracasso da felicidade.Essa interpretação chega,por is-so, à essênciadas coisas?Não estou convencido disso.

É justificado assimilar a onda do ideal de plenitude a umapatologia moderna, à "perversão da mais bela idéia que existe"?9Somos testemunhas da substituição do direito democrático poruma coerção "despótica"? A verdade é que nos deparamos me-nos com um "mecanismo perverso" que com uma implacável di-nâmica sustentada pelo próprio desenvolvimento do reino do in-divíduo e do mercado. Quando o indivíduo é posto como valorprimeiro, a felicidadese impõe de imediato como ideal supremo:esse processo não fezmais que se ampliar. Longe de ser um des-vio aberrante, a obsessão contemporânea por plenitude repre-senta a realizaçãoperfeita, irresistível,do programa da moderni-dade individualista emercantil. E,certamente, não serão os apelos

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a "zombar da felicidade" que mudarão o que quer que seja. Nadadeterá a promoção, por todos os meios, do desabrochamento sub-jetivo. Cada vez mais mercado, cada vez mais estimulações a vi-ver melhor; cada vez mais indivíduo, cada vez mais exigência defelicidade: esses fenômenos são estritamente solidários. Não seefetuou de modo algum inversão de lógica; o que se manifesta éum efeito coerente, pletórico, último da civilização individualis-ta-mercantil abrindo continuamente seu leque de ofertas e depromessas com vista a uma vida melhor.

Por um instante, imaginemos nosso mundo livre da "tira-nia" da felicidade. Os homens seriam por isso realmente mais fe-lizes? Podemos duvidar disso. Não sofremos porque um meca-nismo perverso nos convenceu de que era preciso ser feliz: ofracasso, a solidão, as mágoas sentimentais, o tédio, a pobreza, adoença, a morte de nossos próximos, todas essas experiências tra-zem consigo a infelicidade, a despeito de toda imposição ideoló-gica e do "dever de felicidade" em particular. A partir do momen-to em que o indivíduo se desprendeu das coerções comunitárias,sua busca irresistível da felicidade não pode senão tornar proble-mática e insatisfatória sua existência: esse é o destino do indiví-

duo socialmente independente que, sem apoio coletivo e religio-so, enfrenta só e desamparado as provações da vida.

Sabedoria da ilusão

vida sem sonhos de um melhor ou de um diferente? Esperamosdemais?Talvez,mas para o comum dos mortais e a vida como elaé, o grau zero da esperança é mil vezesI;'ior:significa desespero,abatimento redibitório. A felicidadepor vir não seconfunde comuma felicidade ilusória, pois é também o que permite ter con-fiança na vida, projetar-nos no futuro com algum otimismo. Ofilósofobem pode dizer que"a sabedoria está em desesperar': masa vida, essa exige a esperança, e nenhuma sociedade é possívelsem um corpo de mitos, de imagens e de crenças que acene coma possibilidade de um melhor. Nesseplano, Nietzsche tem razão:a ilusão, as ficções,os simulacros são necessários à vida porque épreciso que a vida inspire confiança. Por isso,é ir por mau cami-nho assimilar as promessas da sociedade de hiperconsumo a umsistema de intimidação e de culpabilização quando estas são, an-tes de tudo, um complexo de mitos, de sonhos, de significaçõesimaginárias que, impulsionando objetivos e confiança no futu-ro, favorecea reoxigenação de um presente muitas vezes esgota-do. Se,como severá,há uma ilusão da sabedoria, há também umasabedoria da ilusão.

Razõesde ter esperança que sãotanto mais necessáriasquan-to nossa época é atingida por um vasto sentimento de impotên-cia para dirigir Ocurso do mundo. A hipertrofia da mitologia eu-demonista tem o encargo de contrabalançar esse sentimento dedespojamento, reforçando a idéia de que o infortúnio não é umafatalidade, de que existem caminhos, se não para ser feliz,ao me-nos para ir menos mal. Assim, essemagma de significações e deimagens eufóricas funciona não tanto como um "entorpecentecoletivo" quanto como uma incitação a renovar os quadros e oselementos de nossas existências, estímulo a "mudar de vida".Aodespertar novos centros de interesse e novas perspectivas, ele émenos dogma ou maquinismo de obrigação que movimentação

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Essa oferta excrescente de felicidade constitui um novo ter-

ror? Não há uma outra face da moeda? Como não ver que esseexcesso de propostas edênicas tem igualmente o efeito de injetarrazões para ter esperança em uma melhoria de nossa sorte? Afir-mar que "o homem feliz é aquele que não tem mais nada a espe-rar"lOé cultivar demais a arte do paradoxo. Naturalmente, com aesperança aumentam as ilusões e as decepções, mas o que é uma

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o processo intentado contra a civilização da felicidade con-sumista ultrapassa muito o quadro das misérias subjetivas. Ei-Iaagora reconhecida como culpada de degradar a ecoesfera a pontode fazer pesar sobre o futuro da humanidade ameaças verdadei-ramente cataclísmicas. Voltada para os gozos e os interesses ime-diatos, indiferente às conseqüências a longo prazo, a frenética per-seguição da produção e das satisfações materiais é denunciada,cada dia um pouco mais, como uma empresa insensata que pro-voca a poluição do meio ambiente, a erosão da biodiversidade, oaquecimento do clima. "A casa está pegando fogo": se nada for fei-to, logo não conseguiremos garantir aos nossos filhos um futuroem que se possa viver. Sob as aparências do Homo felix, afinal nãoé nada além do poder pelo poder que se desencadeia, fazendo-noscorrer diretamente para o abismo. É assim que, cada vez mais, osanátemas lançados contra a modernidade produtivista e consu-mista passam do vermelho ao verde: vícios privados, desastres eco-lógicos; felicidade presente, inferno das gerações futuras; paraísoprometido da abundância, potencial de apocalipse.

O auto lavrado é alarmante. No ritmo atual de crescimento,em um século todos os recursos em combustíveis fósseis estarão

esgotados. As degradações do meio ambiente são tais que "a ca-pacidade dos ecos sistemas de responder às demandas das gera-ções futuras não pode mais ser considerada segura': 11 Para fazerface a semelhantes desafios, alguns apelam à reativação da ener-gia nuclear, que tem o mérito de não causar o efeito estufa. Ou-tros privilegiam o desenvolvimento das energias renováveis. De

todo modo, é imperativo reduzir sem demora nosso consumo bu-límico de petróleo, de gáse de carvão a fim de limitar as emissõesde CO2.Ahora é do controle ou da limitação do consumismo poresta razão de fundo de que os consumidores se tornaram os pri-meiros responsáveispelo efeitoestufa,os primeiros poluidores doplaneta. 12Na fase li, o consumidor era percebido como uma víti-ma ou um fantoche alienado; agora está no banco dos réus e é de-signado como um sujeito a ser informado e educado, investidoque está de uma missão de primeiríssimo plano: salvar o planeta,mudando seus gestosde todos os dias e"consumindo de maneiradurável".O princípio de responsabilidade não se dirige mais ex-clusivamenteaosprodutores, mas aos próprios consumidores, tra-zendo de novo para discussão o princípio de abundância segun-do o qual cada um tem direito a consumir uma quantidade deenergia sem limite. Economizar a energia, eliminar os desperdí-cios, tomar consciência dos efeitosnegativosde nossos modos devida sobre o meio ambiente: a fase IIIé aquela em que se afirma aexigênciado consumidor responsávele cidadão.

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das existências, ao mesmo tempo que instrumento de reapropria-ção subjetiva destas.

CONSUMO DESTRUTIVO E CONSUMO RESPONSÁVEL

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Uma sociedade de hiperconsumo durável?

A questão se levanta: as ameaças que pesam sobre a ecoes-fera e sobre nossos recursos fósseis trazem em germe uma rup-tura próxima com a.sociedade de hiperconsumo? Os limites danatureza levam ao desaparecimento dos "fins imoderados" do hi-perconsumo e de sua "festa humana frívola alegre"?13O pós-faseIIIjá começou?Tendo em vista a dinâmica da economia mundial,é forçoso notar que esse não é o enredo que se prepara, ao me-nos para as próximas décadas.

O que sevê?O crescimento energético na Europa é relativa-mente fraco, mas é muito vigoroso nos Estados Unidos. Em ra-zão da decolagem econômica da China, da Índia e de outros paí-

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ses emergentes, a demanda de energia aumentará de modo con-siderável ao longo das próximas décadas. O consumo da Chinadeverá ultrapassar o da Europa em 2010 e o da América do Nor-te em 2020. Segundo o Conselho Mundial de Energia, a deman-da mundial poderia duplicar até 2050.O consumo de energia nomundo progride cerca de 2% ao ano, e esse ritmo deverá prosse-guir até 2020. Evidentemente, o enterro da sociedade de hiper~consumo não é para amanhã, sendo a época antes testemunha desua ampliação planetária.

Por certo, a degradação da biosfera e os limites dos recursosnaturais levarão inevitavelmente a modos de produção e de con-sumo menos predadores edestrutivos. Oprocessojá está emmar-cha: enquanto em 1971a economia mundial consumia o equi-valente a 560 litros de petróleo para criar mil dólares de PIB,utilizava apenas 380 em 2002;essacifra poderia cair para trezen-tos em 2020.Mas a passagem a uma economia mais "sóbria" nãosignifica fim da sociedade de hiperconsumo. Amais longo pra-zo, é pensável um outro futuro que seria marcado, de um lado,pelo decréscimo do consumo das energias fósseise, do outro, pe-lo crescimento do consumo de energias renováveise limpas. Umamudança que deveria acelerar-se sob o triplo impulso dos pro-gressos tecnológicos, da tomada de consciência das populações,das regulamentações públicas. Processosque permitiriam conci-liar desenvolvimento econômico e proteção do meio ambiente.Nessas condições, os desafios energéticos e ecológicos que en-frentamos poderiam constituir a condição do desenvolvimentosustentável da sociedade de hiperconsumo em vez de as causasde seu desaparecimento.

Essasmudanças anunciam tanto menos o desaparecimentoda sociedade de hiperconsumo quanto a estrutura da produçãoe do consumo semodifica em favordas atividadesde serviço.En-tre 1990 e 2003, o consumo de serviços aumentou mais que o

consumo total. No presente, na França, o consumo de serviçosrepresenta a metade das despesas das famílias. Ora, esse tipo deconsumo é mais econômico em energia, menos devorador de re-cursos naturais. A ecologia industrial, as tecnologias limpas, mastambém a terciarização da economia e a desmaterialização doconsumo são fenômenos importantes, que preparam não tantoa ruptura com a fase 11Iquanto uma configuração desta compa-tível com a durabilidade ambiental.

Amanhã, irresistivelmente, serão os países do Sul que entra-rão no sistema do consumo-mundo, uma vez que nossa época nãodispõe de nenhum sistema alternativo global e digno de crédito àcomercialização generalizada dos modos de vida. Enquanto os ati-vistas antiglobalização martelam que "o mundo não é uma mer-cadoria", as relações mercantis não cessam de alcançar novas re-giões do mundo e novas esferas da vida. A busca da felicidade pormeio dos bens e dos serviços mercantilizados está apenas no co-meço de sua aventura histórica. Saúde, lazeres, jogos, transporte,cultura, comunicação, informação, proteção da natureza - é aintegralidade das necessidades que será anexada pela lógica damercadoria, instalando a fase IIIem todo o planeta. É preciso ren-der-se à evidência, a sociedade de hiperconsumo se impõe comonosso único horizonte, nada deterá a expansão do consumo pagoa todas as nossas atividades, a onimercantilização do mundo. Seexistem diferentes políticas econômicas ou sociais, não existe, porora, solução alternativa à sociedade de hiperconsumo.

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Hiperconsumo e anticonsumo

Certas mudanças de comportamento contemporâneas sãopor vezes apresentadas como o signo precursor da superação dasociedade de hiperconsumo. Pesquisas assinalam que 15% a 20%dos consumidores podem ser considerados "anticonsumidores"

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que optam por produtos éticos, recusam a identificação com asmarcas, compram alimentos biodinâmicos, interrogam-se sobreo impacto ambiental dos produtos: comportamentos que de-monstram uma preocupação em ser antes ator "responsável"que"vítima" passivado mercado. Aceitando a idéia de pagar mais ca-ro por produtos que preservam o meio ambiente, informando-se sobre as condições sociais nas quais os artigos são fabricados,esforçando-se por minimizar seu consumo de energia (casaeco-lógica, transporte), esses consumidores de um novo gênero en-volvem-se pessoalmente em seu modo de consumo. Se a fase IIIfavorece a "loucura compradora", vê desenvolver-se, ao mesmotempo, um consumidor engajado, "responsável", para o qualoato de compra não deve ser separado de uma interrogação éticaou cidadã. A sociedade de hiperconsumo acha-se corroída pordentro por essasnovas atitudes?É testemunha de aspirações e decomportamentos que minam a excrescênciaconsumista?

É inegável que esses grupos de compradores representamuma dissidência em relação ao modelo frenético do superconsu-mo. Elesquerem consumir "demodo diferencial': recusam com-prar para jogar fora, denunciam os excessosdo acondicionamen-to, mostram-se preocupados com o desenvolvimento duradouro,criticam a busca sistemática da novidade, abandonam as grandesmarcas por produtos menos caros.É forçosoobservar,porém, queeles não constituem de modo algum um grupo de "desconsumi-dores".Seu intuito não é sair do universo consumista: a prova dis-so é que gastam mais que a média dos consumidores em muitasdas referênciasde produtos. O que lhes importa é consumir "me-lhor': escolherprodutos de melhor qualidade, mais respeitadoresdo meio ambiente. Trata-se de comprar de maneira "inteligente':como um sujeito,não como um fantoche-consumidor.

Assim, o "anticonsumidor" não faz mais que ilustrar umadas tendências do hiperindividualismo contemporâneo, marca-

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do pela suspeita em relação às grandes instituições, a reflexivida-de dos comportamentos individuais, as buscas qualitativas. Umavertente da sociedade de hiperconsumo incita ao frenesi do "sem-pre mais, sempre novo"; uma outra, baseada na informação, nadinâmica da autonomia subjetiva, nas aspirações de qualidadede vida e de identidade pessoal, leva os indivíduos a recusar umconsumismo sem consciência, formatado e "sob influência".Pri-vilegiando a qualidade de vida, desejososde escapar ao condicio-namento publicitário, preocupados em exercer um controle so-bre sua vida cotidiana emancipando-se do conformismo demassa, os "anticonsumidores" não se opõem à sociedade de hi-perconsumo: são uma de suasmanifestações exemplares,sem dú-vida destinada a ampliar-se. Essemovimento não constitui demodo algum um esboço de saída da fase III:acentuando a indivi-dualização das despesas, diversificando e fragmentando os mo-dos de consumo, obrigando os industriais a abrir mais ainda suapolítica de segmentação dos mercados, o anticonsumismo nãofaz senão consumar a essênciada sociedade de hiperconsumo.

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Frugalidade e felicidade

Os questionamentos do produtivismo e do consumismo de-senfreados não são tidos apenas como imperativos para garantira sobrevivência do planeta: são por vezes considerados as únicassoluções socialmente justas, assim como as mais desejáveis emfunção do ideal da felicidadee do vivermelhor. Em primeiro lu-gar, segundo os adversários da globalização liberal, esta provo-cou um aprofundamento vertiginoso das desigualdades entre ospaíses ricos e os países pobres, entre a fortuna de alguns super-ricos e o nível de vida miserávelde bilhões de indivíduos. O rom-pimento com a sociedade de crescimento é apresentado como aúnica solução capaz de restaurar um mínimo de justiça social.

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Em seguida, o crescimento furioso é devastador do equilíbriomental e social por escravizar ao dinheiro e às mercadorias, re-duzir a importância da vida social, atrofiar os bens relacionais."Menos bens e mais vínculos" proclamam os que, hoje, convi-dam a sair do desenvolvimento e do economismo.

Devemos reconhecer que, no plano da felicidade, as críticasao hiperconsumo não são desprovidas de fundamento. Dispo-mos de um número incessantemente aumentado de objetos e delazeres: não se vê a sociedade mais radiante por isso. Consome-se três vezesmais energia que nos anos 1960:a quem faremos crerque somos três vezesmais felizes?A idéia é justa: o Produto In-terno Bruto não é a Felicidade Nacional Bruta,14a vida boa nãopode ser confundida com o avanço consumista.

Dito isso,o projeto de uma sociedadereorientada por aquiloque uma escola de pensamento chama de "decrescimento con-vivial"ou "pós-desenvolvimento"ISconstitui um programa dese-jável?Tudo convida a pensar o contrário: semelhantes transfor-mações exigiriam medidas tão autoritárias que nossos votos nãopoderiam reclamá-Ias. Quem não vê que a situação em matériade emprego e de finanças públicas seria pior do que a conhecidapor nós? E, no detalhe, quais consumos deveriam ser "sacrifica-dos"?A quê seria preciso renunciar?Pergunta temível,pois o queé útil e o que é supérfluo nessedomínio? Onde ficaa fronteira quesepara as verdadeiras das falsasnecessidades?Da mesma maneiraque é legítimo que a lei proíba ou freie certos consumos por umapolítica de taxação,não sepode aceitar a idéia de que pretenda re-definir integralmente a vida boa no que se refere às necessidadeshumanas. Querer realizara felicidadedos indivíduos contra avon-tade deles não pode provocar mais que resultados calamitosos,para não dizer terrificantes. Com todas as suas imperfeições, omercado continua a ser,nesseplano, a soluçãomenos ruim, amaisbem adaptada a uma sociedade de indivíduos reconhecidos co-

mo livres. O "antidesenvolvimento" ou a sociedade de decresci-mento aparece como um modelo não apenas irrealista, mas tam-bém não desejável.Seéverdade que "mais não émelhor'~não con-cluamos daí que "menos" seja a solução de nossosmales.

Por mais justificadas que sejam, as críticas ao hiperconsu-mo não devem levar a erigir "a sobriedade ou mesmo uma certaausteridade no consumo material"16em sistema global de vida,em chave universal do desabrochamento coletivo e individual.Uma vida frugal e "racional", sem luxo nem frivolidade de espé-cie alguma, é realmente aquilo a que aspiramos? Isso é esquecerque não consumimos apenas para satisfazer necessidades "pri-meiras", mas também para sonhar, distrair-se, aparecer, desco-brir outros horizontes, "aliviar" a existência cotidiana. Evitemosperder de vista essa "recreação psicológica"17que marca nossosmodos de consumo. Uma parte de nossas felicidades é feita deprazeres "inúteis", de jogo, de superficialidade, de aparências, defacilidades mais ou menos insignificantes. Essaparte não moraldo Homo felix que alimenta a lógica de hiperconsumo não é pa-ra ser erradicada, e isso porque responde à necessidade humanade felicidades fáceis ou frívolas. A sociedade de hiperconsumotem muitos vícios, mas não tem todos os vícios: ela considera ohomem tal como é, múltiplo, fútil e contraditório, com seus de-sejos de distrações e de evasõescertamente sem grande nobreza,mas que, no entanto, fazemparte da vida. Eccehomo.

Sem dúvida, é necessário corrigir a sociedade de hipercon-sumo, reorientá-Ia segundo caminhos menos desiguais e mais"responsáveis": não a ponto, porém, de reverter-lhe a economia"frívola"em favor de uma espéciede ascetismo racional.Aí seve-ria, mais uma vez,que dasmelhores intenções o inferno está cheio.

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IA SABEDORIA OU A ÚLTIMA ILUSÃO equilíbrio. Dão testemunho desse modelo "psicoespiritual" o de-

senvolvimento de novas formas de religiosidade,o novo surto deinteresse pelas vias espirituais e as tradições místicas, o êxito dassabedorias antigas. Surgem obras e cursos, institutos e grupos detrabalho que oferecem práticas psicocorporais ou psicoesotéri-cas destinadas ao aperfeiçoamento pessoal. Paralelamente, o bu-dismo, a mística, as literaturas religiosas ou espirituais fazem umnotável sucesso.Ao que se acrescenta um novo entusiasmo pelafilosofiavivida e as sabedorias dos Antigos. Fenômenos que ilus-tram o que alguns chamam de uma "mudança de paradigma"/1uma "Nova Era" caracterizada pela busca da "sabedoria" ou doauto-aperfeiçoamento espiritual. 22

Ao contrário da concepção materialista da felicidade, essasatitudes espirituais estão centradas na busca do equilíbrio inte-rior, na harmonização do corpo e do espírito, na expansão e noaprofundamento da consciência. O importante não é tanto mu-dar o mundo quanto mudar o eu, despertar a consciência parapotenciais inexplorados, inventar uma nova arte de viver que re-concilie o indivíduo consigo mesmo. A sabedoria passava porideal obsoleto: ei-Ia novamente no primeiro plano. O que vem àluz é uma microutopiapsicoespiritual,redesenhando a mitologiada felicidade individualista no coração da sociedadede hipercon-

A felicidade é o valor central, o grande ideal celebrado semtréguas pela civilização consumista. Mas essa permanência damitologia eudemonista não impede de modo algum a variabili-dade de seus conteúdos ou de seus temas. Assim, quando se ob-serva o curso do último meio século, é possíveldistinguir, muitoesquematicamente, três modelos ou três momentos que estrutu-raram o imaginário social da felicidade à hora do consumo demassa.

A partir dos anos 1950,um primeiro modelo de realizaçãode si se formou em torno de dois pólos primordiais: a vida ma-terialista e a vida afetiva, as "coisas" e o coração, a mitologia doconsumo e a do amor.18Dois sistemas de referência que, parale-lamente, veicularam uma" microutopiaconcreta"de massa ou um"utopismodavidaprivada':19Nãoé inútilsublinharqueessemo-delo bipolar não perdeu nada de seu atrativo, meio século maistarde.

No rastro dos anos da revolta adolescente,surge uma segun-da mitologia. Ela se apóia na exaltação da liberação individual,em oposição frontal às normas do consumível e da moral tradi-cionaL Denunciando as falsas necessidades e a repressão sexual,o momento contestador dá prioridade à autenticidade do eu e àemancipação dos corpos. Mesmo o termo "felicidade"já não fazsucesso,visto que é associado às imposições familiares e burgue-sas.A ela seprefere o gozo,a festa,o desejo sem restrição.Duran-te um breve recreio, um segundo modelo consagrou uma utopiatransgressiva e transpolítica.20

Com a fase III,a ideologia da felicidade passa por um novoaggiornamento.À divisão felicidade consumista/felicidade amo-rosa, acrescenta-seagora a clivagemque opõe felicidademateria-lista e felicidade espiritual, felicidade-movimento e felicidade-

sumo.

A sabedoria light

Tudo parece opor diametralmente a concepção da felicida-de material e a da felicidadeespiritual. Uma põe a ênfasena aqui-sição dos bens mercantis, a outra, no aperfeiçoamento da cons-ciência; uma dá prioridade ao ter, a outra, ao ser. Mas o que éverdade no nível dos princípios o é nos outros planos? Essasdi-cotomias são tão profundas, tão radicais quanto afirmam os adep-

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tos da sabedoria New Age? Temos algumas razões para duvidardisso, uma vez que estes últimos participam, sob muitos aspec-tos, daquilo que recusam.

Os "valores essenciais" são celebrados, mas, na realidade, amudança, as modas, a mobilidade dos entusiasmos, a curiosida-de epidérmica é que dirigem as novas buscas de sentido. Valori-za-se a coerência consigo mesmo? Isso não impede os adeptos deadotar constantemente novos métodos, de mudar de escola e de

mestres, de passar de um "produto espiritual" a outro, a exemplodo hiperconsumidor volátil. As mídias aplaudem o fato de o Pro-zac ser substituído pela sabedoria filosófica: ainda é preciso es-clarecer a natureza dessas boas graças concedidas à filosofia. Semdúvida, os neoleitores procuram nos livros de sabedoria os ca-minhos que podem aproximá-Ios da felicidade, mas querem che-gar a isso com facilidade, confortavelmente, de imediato, sem es-

forços de vontade, sem os "exercícios espirituais" persistentes queprescreviam os mestres da Antiguidade.23 "Experimenta-se" Sê-neca ou Epicuro como se vai ver um filme ou como se "faz" umaviagem: daí em diante, até mesmo a sabedoria funciona comoum "produto de salvação de eficácia imediata':24Centrada no ime-diatismo e no emocional, a sabedoria que sobrevém é uma sabe-doria lightem perfeita concordância com o hiperconsumidor ex-periencial: deparamo-nos menos com uma "revolução espiritual"que com uma das figuras do consumo-mundo.

Nas sabedorias antigas, tratava-se de despojar totalmente ohomem, de superar o eu fechado em sua estrita individualidade,libertando-o de seus vãos apetites. Elas implicavam uma mudan-

ça total de vida, passando por exercícios espirituais repetidos, pe-la indiferença ao mundo, um verdadeiro desempenho ascético.Estamos muito longe disso. O que se procura nos mestres de vi-da, a não ser receitas para maximizar nossos gozos e nossos maisdiversos potenciais psicológicos? Os ideais de renúncia ao mun-

do foram trocados pelas técnicas de auto-ajuda que supostamen-te proporcionam a uma só vez êxito material e paz interior, saú-de e confiança em si, poder e serenidade, energia e tranqüilida-de, em outras palavras, a felicidade interior, sem que seja precisorenunciar ao que quer que sejade exterior (conforto, sucessopro-fissional, sexo, lazeres). O indivíduo hiperconsumidor aspira àsvantagens do mundo moderno, àharmonia interior alémdomais.A sabedoria confundia-se com o desapego e com o despojamen-to de si (budismo): nós queremos a plena realizaçãodo Ego.Tra-ta-se menos de mudar de estilo de existência que de adaptar-seao nosso mundo, vivendo nele confortavelmente, sem estressenem ansiedade. O objetivo é tornar a existênciamaterialista maisqualitativa e mais equilibrada: eis-nos no tempo do imagináriodo conforto integral, material e emocional, consumidor e psico-lógico.Sob a etiqueta das sabedorias antigas, é a busca individua-lista da felicidade mundana que se prolonga. Não uma "mudan-ça de paradigma': mas a dinâmica de pluralização das mitologiasda felicidade individualista.

Ilusão da sabedoria

É freqüente apresentar o novo favor de que se beneficiam asespiritualidades religiosase leigascomo uma transformação con-siderávelque, libertando-nos das falsaspromessas do ter, nos abreos caminhos da felicidade autêntica. Enquanto a busca dos bensmateriais causa insatisfações e frustrações, a aventura psicoespi-ritual proporciona um pleno desabrochamento, rico em sentidoe harmonia tanto consigo quanto com o cosmo. No coração doinacreditável supermercado que constitui o amálgama neo-espi-ritual, afirma-se a primazia da experiência interior como condi-ção do bem viver. Para todos os movimentos do Potencial Hu-mano, basta tornar nosso pensamento harmonioso e o mesmo

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se dará em nossa vida. Aprendamos a nos amar, modifiquemosnossos pensamentos e a vida se tornará alegre,próspera, cheia desaúde. O "novo paradigma" é construído segundo o seguinte es-quema silogístico:o que nos acontece é o espelho de nossa atitu-de interior; ora, podemos mudar e controlar nossa consciência;portanto, a felicidade nos pertence, é aprendida, está integral-mente em nossas mãos. Podemos ser tão felizes quanto decidi-mos sê-Io:esseé o credo incansavelmente repetido pelos mestresem espiritualidade e desenvolvimento pessoal.

Assim, sob as aparências de um psicologismo triunfante, épura e simplesmente o pensamento mágicoque retoma ao uni-verso contemporâneo. O hiperconsumidor tornou-se um deman-dante de neomagia, de remédios miraculosos baseados na oni-potência da consciência, de fórmulas e de rituais encantatóriosque garantam que a felicidade é coisa que depende inteiramentede nós.

Não o ocultemos: como não ficar desconcertado diante des-sa cascata de programas de beatitude, veiculando tanto ingenui-dades quanto falsaspromessas?Pois se existeuma coisaque a ex-periência da vida ensina é que somos realmente incapazesde nostornar senhores da felicidade.Seo novo estado de graça da espi-ritualidade traduz novas aspirações,não é por isso menos porta-dor de uma cegueira que pode confinar com o obscurantismo.Volta aos Antigos?A atitude tem suas virtudes, com a condiçãode não estar acompanhada pela rejeiçãodo ensinamento dosMo-dernos, por uma denegação de suas insubstituíveis lições,revela-doras das ilusões do poder da consciênciae da sabedoria.

Ninguém melhor que Rousseau soube pôr em evidência osdilemas insuperáveisda questão da felicidade.Ser incompleto, in-capazde bastar-se por si só, o ser humano tem necessidadede ou-trem para conhecer a felicidade.Mas, porque esta é inseparávelda relaçãocom o outro, o indivíduo está inevitavelmentedestina-

do às decepções e àsmágoas da vida. Dependente dos outros pa-ra ser plenamente feliz,minha felicidade é necessariamente fugi-dia e instável. Sem o outro, não sou nada, com o outro estou àmercê dele: a felicidadea que o homem pode ter acessonão podeser mais que uma "frágil felicidade".25A lição é luminosa: porquenão podemos ser felizessozinhos, não somos senhores da felici-dade. Ela nos "acontece"ou nos abandona, em grande parte, semnós, é por excelênciao que não possuímos. Forte é a influência dooutro sobre nossa felicidade, fraco nosso poder de controlar-lheo curso. Efêmera, infelizmente,é a experiência da felicidade.

Naturalmente, ninguém rejeitará a idéia segundo a qual otrabalho de si sobre si, as espiritualidades religiosas ou filosófi-cas podem confortar, redesenhar nossos horizontes, ajudar-nos aviver melhor. Dito isso, grande é a ilusão que consiste em crerque um sistema de pensamento ou um método de qualquer or-dem possa fornecer a solução absoluta, duradoura, definitiva aoenigma da felicidade. Isso é ocultar profundamente o que, sob onome de inconsciente, designa a impossibilidade de uma plena einteira posse de si por si. Cada dia traz a prova disso: o homemnão é "senhor e possuidor de si próprio", a consciência é impo-tente para moldar a experiência vivida subjetiva tal como a so-nhamos. Se é inegável que muitas satisfações dependem de nós,as oscilações do prazer, nossas alegrias profundas e a felicidadede viver não são "coisas"de que dispomos à vontade: não as con-duzimos, são sentimentos que "vão e vêm",em grande parte semnós. Encontra-se a felicidade,ela não está às nossas ordens. É as-sim que a fé na possibilidade de controlar nossa própria felicida-de pela ação da consciência ressoa como uma de nossas últimasilusões, uma ilusão a que o homem, provavelmente, jamais re-nunciará por completo.

Porque há inevitavelmente uma parte de "sofrido", de in-consciente, de incontrolável na experiência da felicidade,soume-

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nos eu que a escolho do que ela que me escolhe.Uma espécie deestado de graça, "vem quando quer, não quando eu quero':26Daíos limites de todas as doutrinas que ensinam os caminhos da fe-licidade supervalorizando o poder da consciência sobre os esta-dos vividos. Tudo que podemos esperar delas - e não é pouco- é um remédio provisório, uma muleta de duração limitada.Mas não nos enganemos quanto a isso, as escolas de sabedoriaserão sempre de uma "eficácia"das mais reduzidas em compara-ção à das disposições psicológicas ou metapsicológicas dos indi-víduos, sendo a felicidadee a alegria de vivermais um "estado deespírito", um "dom recebido" que o resultado do despertar e datransformação da consciência.

Enquanto prossegue a dominação tecnocientífica do mun-do, perpetua-se a impotência para conduzir a felicidade. Nossopoder sobre as coisas segue uma curva exponencial, o que exer-cemos sobre a alegria de existir não anda nem desanda. O proje-to de poder ilimitado dos Modernos aqui atinge, evidentemente,seus limites: a felicidadenão progride, escapa com obstinação aocontrole dos homens. Por certo, não se pode mais separar com-pletamente a busca da felicidadedas realizaçõesdo mundo técni-co e, no entanto, um abismo continua a separar a marcha dessesdois universos. O homem prometéico se parece sempre com umanão sentado sobre ombros degigante:resta-nos vivercom acons-ciência de que a felicidade é o incontrolável, fugidio, imprevisí-vel, intransponível enigma de hoje e, sem dúvida, de amanhã.

A que se assemelha uma cultura devorada pelasmídias de massaa não ser a um oceano de tolices e de insignificância?O que restada vida do espírito quando triunfam o zapping e o divertimentogeneralizados? Enquanto se enfraquece a autoridade simbólicada vida intelectual, as indústrias de entretenimento prosperam,os parques temáticos e os jogos atraem as massas, o tempo pas-sado na frente da televisãoaumenta: a era gloriosada cultura apa-gou-se em favor do império do entertainment.

Ainda há pouco, os artistas e os homens de letras ambicio-navam criar obras imortais; agora importa ser "conhecido",apa-recer nas mídias, vender em grande número produtos com du-ração de vida limitada. A cultura clássica atribuía-se o fim deelevar o homem, as indústrias culturais empenham-se em dis-traí-Io. O "valor espírito" de que falavaValéry27foi substituídopelo "valor animação", explorado sistematicamente a serviço dovalor mercantil.

Diante dos danos provocados pelo consumo-mundo, mui-tos intelectuais estigmatizam a escalada de uma nova "barbárie",um niilismo destruidor de tudo que constituía a humanidade dohomem. Alguns evocamuma "dessimbolizaçãogeneralizada",ca-racterizando-se pela redução niilista do homem a um indivíduocalculista, livre de toda preocupação com valores e ideais, moti-vado exclusivamente pelo dinheiro e por seus próprios interes-ses.28Outros sublinham a barbárie mansa de uma época relati-vista que, negando o critério objetivo da excelência, se recusa aestabelecer uma diferença hierárquica entre cultura duradoura ecultura de consumo passageiro.29Michel Henry interpreta asmí-dias, e a televisão em particular, como a "prática por excelênciada barbárie".30Bernard Stiegler denuncia a lógica de "proletari-zaçãodo consumidor" que seestende a todos osmodos de existên-cia individual, a todas as faculdadeshumanas, sejamelasmentais,afetivas ou estéticas.31Tudo o que se vive se precipitaria, assim,

ÉTICA E ESTÉTICA: UMA NOVA BARBÁRIE?

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Paralelamente à biosfera, o mundo do espírito ou da cultu-ra aparece como um outro grande continente devastado pelo ca-pitalismo de consumo. A acusação compreende muitas queixas.

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para um horizonte desumanizado e niilista, povoado de rebanhoshumanos padronizados, tão inconsistentes quanto sedentos desatisfaçõesvulgares.A esfera transcendente dos ideais, as artes debem viver, os desejos de elevação, tudo isso foi liquidado peloconsumo industrial, por um universo que se tornou integralmen-te mercantil. Sociedade de hiperconsumo e barbárie intelectual,moral e estética,é tudo uma e a mesma coisa.

O culto da eficiênciae do dinheiro destronou inegavelmen-te o antigo prestígio do "pensamento meditante"; o princípio dadescartabilidade substituiu o da durabilidade; a atitude consu-mista ou turística atinge domínios antigamente envoltos em ve-neração. Temos o direito, por isso,de qualificar o estágio hiper-mercantil de universo "decadente': rebarbarizado, niilista?

o todo da relação contemporânea dos indivíduos com as expe-riências estéticas. A sensibilidade à paisagem, o "culto dos mo-numentos", a freqüência a museus, o gosto pela decoração dosinteriores ilustram o lugar crescente dos apetites estéticos. Re-lembremos igualmente que o cinema, a música, a moda, o luxo,o turismo estão no coração da economia da fase11I:cada vezmaisé uma estéticado consumoque ordena as atividadesde lazer.Alémdisso, assiste-se à multiplicação das oficinas literárias e dos ma-nuscritos de autores "amadores", ao desenvolvimento da práticamusical, a um aumento considerável do número de pintores e defotógrafos, de artistas profissionais e amadores, de artesãos dearte, de desenhistas, grafistas e designers. Ademocratização dasexperiências estéticas caracteriza mais o universo hiperindivi-dualista que a miséria da sensibilidade ao belo.

Mesmo que as obras já não sejam contempladas no recolhi-mento, mesmo que a relaçãocom a arte estejaamplamente sujei-ta à lógicanômade do hiperconsumo, o certo é que a experiênciaestética funciona, para um número crescente de pessoas, comoum ingrediente da felicidade.Ao contrário das teses que afirmamo condicionamento regressivoda sensibilidade,a verdade é que asociedade de hiperconsumo enriqueceu as capacidades estéticasdos indivíduos, a distância do olhar, a sensibilidade ao belo forade toda perspectiva utilitária. A fase IIIé contemporânea de umconsumo estético de massa, de uma demanda maior de arte e debeleza, de estilos e de experiências estéticas em todas as dimen-sões da existência.Quanto mais a eficáciatecnomercantil governao mundo, mais a oferta é estetizada e mais a demanda se vê mar-cadapelosdesejosde apreciar as alegriasdas"impressõesinúteis".33

Barbárie estética?

Nossa época é testemunha de uma onda de imagens vulga-res e pornográficas. É testemunha também de uma infinidade dehappenings e de performances que, pulverizando as aspiraçõesao belo e à obra duradoura, elevam o "faça qualquer coisa"J2aoseu coroamento perfeito. Por toda parte, as ruas comerciais, oslocais turísticos, as lojas de arte e de artesanato oferecemos mes-mos artigos kitsch, as mesmas jóias de imitação, as mesmas esta-tuetas exóticas.Aomesmo tempo, a atitude propriamente estéti-ca ou contemplativa foi suplantada por um consumo de imagensem constante renovação, menos vistas que engolidas com gran-de rapidez. Na frente da televisão ou no museu, impõe-se o hi-perconsumidor com suas condutas de zapping, sua bulimia des-contraída, sua curiosidade desatenta ou turística. Triunfo docomercial,do descartável,da dispersão:o Homo aestheticusé umaespécieem via de extinção?

Por mais reais que sejam, essesfenômenos não representam

Barbárie moral?

São legião as vozes que se erguem contra o naufrágio de umacivilização em que se desencadeiam o egoísmo do cada um por

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si, o dinheiro-rei, a delinqüência, a grande criminalidade econô-mica e financeira. Esses fenômenos que acompanham a indivi-dualização extrema de nossa época são pouco contestáveis. Masexiste outra vertente que impede a assimilação unilateral do hi-perindividualismo a um processo de decadência.A lógicados in-teressesindividuais domina? Semnenhuma dúvida. Mas,ao mes-mo tempo, os impulsos de solidariedade com os deserdados, asdoações feitas em favor das vítimas de doenças ou de catástrofesatingem pontos altos.Por que se critica a instrumentalização dosvalores pelo marketing? Por que o comércio respeitador dos di-reitos humanos e do meio ambiente pode encontrar certo eco naopinião pública? Como explicar a multiplicação das associaçõese dos voluntários? Todos esses fenômenos, como muitos outros,indicam que a sociedade de hiperconsumo não conseguiu dissol-ver de lado a lado o valor dos princípios morais.

O entusiasmo político extinguiu-se, não os sentimentos mo-rais. É preciso torcer o pescoço da idéia batida segundo a qual oconsumo-mundo é condutor de deslegitimação de todos os va-lores, de cinismo e de relativismo generalizados. Por mais quereine o "tudo se equivale",a maior parte dos indivíduos tem con-vicções morais que se exprimem por reações de indignação, as-sim como por diferentes tipos de comportamentos "responsá-veis"ou altruístas. Assistimosnão tanto ao definhamento niilistados ideais quanto a uma nova regulação socialda ética, compatí-vel com o indivíduo hipermoderno. Os ideais do Bem e do Justosão tudo, menos mortos: mesmo que não construam um mundoà sua imagem, permitem, contudo, julgar, criticar, corrigir certosexcessosou desviosdo cosmo individualista-consumista.

A verdade é que nossa época é menos testemunha da depre-ciação de todos os valores que de uma revivescência da interro-gaçãomoral ligadaao recuo da influência do político e dos gran-des sistemasde sentido.Àmedida que aumenta o poder da técnica

e do mercado, o domínio ético vê-se revestido de nova impor-tância, redignificado, reativado, como o ilustram os debates refe-rentes às biotecnologias, ao aborto e à eutanásia, ao casamentogay,à adoção de filhos pelos homossexuais, ao uso do véu islâ-mico, ao assédio moral. Nenhum desaparecimento catastróficodos valores,mas o desenvolvimento de morais em conflito, amul-tiplicação dos sistemas de valor, a diversidade das concepções dobem que é preciso interpretar como um aprofundamento da au-tonomia da esfera moral, o signo de uma sociedade liberal plu-ralista, na qual os valores e sua tradução social estão emancipa-dos da autoridade da Igreja e da tradição.34De um lado, assiste-seao enfraquecimento do poder da democracia sobre si própria, dooutro, ao coroamento da vontade da sociedade e dos indivíduosde responsabilizar-se pelas regras que fundamentam sua ação.Não "morte dos valores",mas derrocada das regras morais hete-rônomas e, correlativamente, individualização da relação com aesfera ética.A sociedade hiperindividualista não se reduz ao cul-to obsessivodos prazeres privados, é também aquela em que ca-be ao indivíduo determinar-se quanto ao que deve fazer, inven-tando as regras de sua própria conduta. Consenso em torno dosvalores humanistas democráticos, desenvolvimento da reflexivi-dade ética: a cultura da fase IIInão pode ser assimilada a um es-tado de barbárie niilista.

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o ESPÍRITO DE CONSUMO: ATÉ ONDE?

Os mais pessimistas consideram que o desastre já aconte-ceu. Ele é de uma profundidade abissal.Nossos sistemas de edu-cação estão degradados, incapazes que são não apenas de trans-mitir a herança cultural, mas também de alfabetizarcorretamenteuma proporção importante de jovens. A autoridade da cultura

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desmoronou: o que subsiste da dignidade do pensamento numaépoca em que o ideal é "gozar"? Que futuro diferente da barbá-rie intelectual se desenha quando o princípio de animação subs-titui o de excelência,quando a vida intelectual é assimiladaa uma"chateação", quando a "telelixeira" entusiasma as massas?A so-ciedade de hiperconsumo, ao que nos dizem, venceu:ela não dei-xará mais de estender seu império devastador,propagando o con-formismo generalizado, a preguiça do espírito, a incultura, asuperficialidade e a incoerência dos seres.Acabaram-se as signi-ficaçõese os ideais elevados;os únicos objetivos nos quais os in-divíduos se reconhecem são o dispêndio fútil, o bem-estar e asaúde. Diante dessa mutação, alguns falam de um estado "pós-cultura";35outros, mais radicalmente, evocam uma imensa crisedas significações, uma fase de desagregação e de decomposiçãoacelerada que priva os indivíduos das normas, dos valores, dasmotivações necessáriasao funcionamento da sociedade.36Outrosainda sublinham a entrada na "pós-história", coincidindo comuma humanidade "reanimalizada e infantilizada", tudo o queconstituía o homem propriamente falando - o trabalho, a lutade morte, o conflito, a contradição - tendo ficado sem herdei-ros.37Na cidade das Letras, o catastrofismo é a coisa do mundomais bem partilhada.

Sem rodeios, essasleituras me parecem basicamente inacei-táveis. Elas o são não por falta de espírito de observação de seusautores, mas porque semostram cegasàs forças antagonistas ematividade no presente, às tensões entre os valores, às expectati-vas, demandas emotivações antinômicas que alimentam a épo-ca. É pouco duvidoso que a sociedade de hiperconsumo sejaacompanhada por uma crise da cultura, da escola, da política.Mas esseprocesso não é irresistível; estão em marcha dinâmicascontrárias que permitem recusar as radiografias unilaterais apre-

ciadas pela classe intelectual e que tornam ininteligível o poderde autocorreção das sociedades individualistas.

A humanidade está tomada pela síndrome de "não-pensa-mento", é atingida por letargia avançada, por "êxtases sonambú-licos"?Não pensa mais que em consumir, divertir-se, manter-seviva?Não há nenhum contrapoder diante do avanço das neces-sidades consumistas? Bastaobservar as novas demandas de edu-cação, as críticas pedagógicas que semultiplicam, as querelas emtorno da escola e da "queda de nível" para se convencer do con-trário.

O que significamessas reações,senão um imperativo de res-ponsabilização formadora que não depende em nada do planetaconsumista? A celebração dos gozos subjetivos é uma tendênciaprimordial de nossa época, mas existe uma outra que leva a umadireção completamente diferente: trata-se do dever de formaçãodos jovens, de sua estruturação intelectual, da aquisição de sabe-res fundamentais como condição da autonomia individual. Qual-quer que seja a lunaparkização da cultura, a preocupação educa-tiva de preparação para o futuro aumenta em razão de uma épocadominada pela incerteza e pelo risco. A utopia do desabrocha-mento pessoal pode brilhar: isso não impede que permaneça in-teira a exigência de educação, que passa necessariamente peloacesso ao saber, pela imposição de conteúdos e de métodos, poraprendizagens mais ou menos coercitivas. O ciclo da fé na per-missividade e na espontaneidade subjetiva está encerrado. Umapágina foi virada: estamos diante dos limites e das contradiçõesdo puro hedonismo. Mesmo que as práticas educativas estejamlonge de tirar todas as conseqüências dessa exigência de forma-ção, a causa está entendida: o hedonismo liberal não conseguefornecer o fundamento e os quadros de um sistema de educaçãodigno desse nome. Não falta a consciência do problema: a ma-neira de resolvê-Ioestá toda por inventar.

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Por que muitos pais impedem os filhos de engolir altas do-ses dos programas de televisão?Por que nos preocupamos comos efeitos dos jogos de vídeo, com a influência das marcas sobreos adolescentes e, de maneira mais geral, sobre os indivíduos? Éque o mergulho de si no universo hedonista e midiático é assi-milado ao empobrecimento de si, a uma existência sem interio-ridade, ao aniquilamento do sujeito como ser de reflexão e deperfectibilidade. A despeito de todas as incitações à felicidade, aordem consumista é legítima apenas na medida em que não cons-titui obstáculo à autonomia reflexivados indivíduos, à exigênciade formação e de aperfeiçoamento dos sujeitos. Não é verdadeque o princípio do prazer se tenha tornado a medida de todas ascoisas,alfae ômega da vida.

É igualmente um engano afirmar que a fase IIIconseguiuproduzir indivíduos que não aspiram mais que a divertir-se e en-velhecer em boa forma. O sistema de referência hedonista e mé-dico pode ser dominante, mas não é exclusivo.Criar, construir,empreender, superar-se, fazer melhor, todos essesvalores e essasaspirações continuam a orientar mais ou menos as existências.Estão em ação freios, contratendências que impedem o progra-ma do hiperconsumo de chegar às suas últimas conseqüências.Aosprincípios imanentes de divertimento-conservação opõem-se as lógicas transcendentes de invenção do novo e da superaçãode si.Apesardas sereiasda vida fácile narcísica,o desejo de trans-cender a si mesmo não foi de modo algum erradicado da vida doser-sujeito.A "monstruosidade pós-humana': a absorção integralda economia psíquica pelo turboconsumismo não são mais queficçõessensacionalistas,novas ilustrações típicas das visões deca-dentistas dos Modernos.

Ninguém contestará as profundas repercussõespsicológicasda passagemde uma cultura organizada pelo recalque a uma cul-tura baseada no direito à livre expressão de todos os desejos, ao

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gozo perfeito e sem limite. Mas essamutação é sinônimo de umprocesso de "igualação dos gozos"sob o signo do "imperativo dasatisfaçãocompleta"?38Como não observar que, no reino do ple-no desabrochamento, se cava uma forte dicotomia entre aquelescuja motivação principal é multiplicar os gozos materiais e dis-trativos e aqueles cujos objetivos na existência continuam a im-plicar esforço e método, audácia e risco, invenção e criação? Sobesseaspecto,o futuro da democratização do consumo poderia defato ser sistematicamente desigual, a maioria aspirando às satis-fações fáceis do bem-estar enquanto uma espécie de hiperclasseadota regrasde vida mais"austeras",marcadas pelo desejo de acei-tar os desafios, de criar e de superar os obstáculos. Não é apenaso "grau de mobilidade"39dos seres que institui as novas diferen-ciações sociais, são também as maneiras de se relacionar com otrabalho, com os gozos do consumo, com os objetivos da vida.Descreveu-sea sociedade de hiperconsumo como sendo a da ge-neralização das normas hedonísticas, a da fusão dos valores me-ritocráticos e dos valores da contracultura, dos burgueses e dorebelde.40Contudo, esse movimento de "conciliação dos opos-tos" é, em parte, um processo com aparência enganosa, uma vezque é contemporâneo de uma reorganização de novas clivagens,de estados de espírito, de objetivos existenciais dessemelhantes.Pela primeira vez, a "classe dos lazeres" não ocupa mais o topoda pirâmide social: daí em diante, quanto mais se está no alto dahierarquia, mais se trabalha e menos o consumo é o princípioaxial da vida. A antiga lógica do lazer ostentatório é seguida poruma orgia de ativismo e de voluntarismo profissional entre asnovas elites que consagram a maior parte de sua energia ao tra-balho, considerado um "jogo",uma experiência enriquecedora,um instrumento de desenvolvimento pessoal. Sob o estilo "boê-mio", coole descontraído, trata-se sempre de "vencer", de dar omelhor de simesmo, de orgulhar-se de suas realizações,de trans-

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cender-se. Mesmo que consagre os lazeres,a descontração e a fa-cilidade, a sociedade de hiperconsumo não pôs fim de modo al-gum às disposições humanas de criar, dominar e superar-se.

Não sedeixou de observá-Io:a sociedadedo bem-estar com-pleto é também aquela em que semultiplicam, paradoxalmente,as paixões pela conquista e pelo risco.Visivelmente, o consumonão é a motivação primeira dos grandes homens de negócios:elestrabalham "como loucos",negligenciam os prazeres e o confortoda tranqüilidade a fim de satisfazer sua paixão pelo poder, peladominação e pelo risco. Em um plano inteiramente diferente, afase IIIé palco do sucesso da mitologia da "aventura", da multi-plicação do arriscar-se, das façanhas de todo tipo realizadas pe-los adeptos do "extremo" (escalada, trekking,travessiassolitárias).A sociedade de gozo não esmagou de modo algum as motivaçõespara chegar ao fim de seus limites e de suas forças, para enfren-tar riscos e perigos. Em vezdisso contribuiu para instituir o ris-co como prova pessoal e escolhida a despeito de toda cultura declasse.A dinâmica hiperindividualista não coincide apenas comuma febre de bens mercantis, impele igualmente um maior nú-mero de sujeitos a inventar desafios, a assumir riscos como ma-neira de viver mais intensamente, quebrar as rotinas, despertarum sentimento de renovação, ter sensações fortes, provar a simesmo do que se é capaz.41Democratização do bem-estar e de-senvolvimento das práticas de risco caminham juntos: para alémde suas evidentes oposições, são expressões do novo individua-lismo experiencial. Sob que aparências se apresentará amanhã oamor pelo extremo? Como quer que seja, tudo indica que a erado bem-estar emocional prepara menos a eliminação dessaspai-xões que sua expansão social.

Arcaísmos?

Podemos considerar as "resistências" ao tropismo consumi-dor como simples "resíduos" culturais, sobrevivências "arcaicas"destinadas a desaparecer sob o rolo compressor da fasem?Estouconvencido do contrário. Mesmo que o capitalismo de hipercon-sumo tenha subvertido a relação consigo, com os outros e com acultura, não conseguiu criar uma humanidade pós-histórica, asvontades de aprender, compreender, progredir, transcender-secontinuam em atividade, ainda que muito desigualmente repar-tidas entre os homens e apresentadas sob formas inteiramentenovas. A despeito do poder do consumismo, isso será da mesmamaneira amanhã. Sublinharei apenas duas razões em apoio des-sa tese.

Em primeiro lugar, as ciências,cujo papel não cessade cres-cer, representam disciplinas exemplares de formação intelectual,escolas de rigor e de racionalidade, um apelo sem fim a com-preender, provar, progredir no caminho da verdade. Mobilizan-do o esforço e a disciplina demonstrativa, a ciência é inseparávelde uma dinâmica de transcendência sempre interrogativa, sem-pre aberta. Irresistivelmente,ela elabora as questões, relança a in-terrogação e o espírito crítico. Ao fazer isso, constitui uma dasgrandes forças de futuro que impedirão a cultura de ser inteira-mente devorada pelo reino do espetáculo e da facilidade consu-mista.

Em segundo lugar, dado que as sociedades abertas se ba-seiam na valorização da inovação, da criação, do sucesso econô-mico, é pouco provável que os gozos do bem-estar possam cons-tituir a única exigência dos indivíduos, o único caminho derealizaçãopessoal.Porquevaloresde referênciadiferentesdo bem-estar organizam o universo neo-individualista, eles continuarãoa magnetizar, de uma maneira ou de outra, as existências. Uma

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pequena minoria? Talvez, mas isso não é certo. De todo modo,empreender, arriscar, descobrir, inventar, criar continuarão a ser,para muitos indivíduos, meios insubstituíveis de afirmar-se, deconquistar a estima de si e dos outros, de intensificar a relaçãoconsigo e com o tempo vivido. A identidade individual e a valo-rização de si continuarão a ser buscadas, ao menos por esses, atra-vés do que exige trabalho, esforço, movimento de superar-se, is-to é, além do princípio do prazer consumidor. Se uma tendênciado hiperindividualismo leva a demandas hiperbólicas de recrea-ção e de conservação de si, outra encoraja a construção merito-crática42e "a expansão de si".Nossa época favorece a primeira di-nâmica: nada diz que será sempre assim.

Evitemos confundir os poderes contrários à onda consumis-ta com vestígios de uma outra era. A verdade é que a sociedadede hiperconsumo só pode existir na medida em que sua tendên-cia forte se vê contrariada por princípios antagonistas. Se conse-guisse eliminar o espírito crítico, a exigência ética, o desejo decriação, os esforços para transcender a si mesmo, ela deixaria, porisso mesmo, de funcionar. A sociedade de hiperconsumo tem ne-cessidade de contradições, de resistências, de limites ao seu pró-prio universo: o que se opõe às normas do hiperconsumo deveser afirmado como a condição de seu desenvolvimento.

Por causa disso, a crítica não deve referir-se tanto à espiraldas necessidades mercantis quanto às instituições de base que têmo encargo, idealmente, de "armar" os indivíduos, de formá-Ios,dando-Ihes as ferramentas necessárias para pensar, agir e aperfei-çoar-se. A hipertrofia consumista e midiática é, afinal, menos por-tadora de ameaças do que as falhas de nossos sistemas de educa-ção. Promover programas televisivos de qualidade, estabelecerpolíticas culturais ambiciosas, tudo isso é excelente, mas há algu-

, ma ingenuidade em crer que essasmedidas consigam constituirreais contrapesos ao consumo desenfreado. A verdade é que só in-

teresses e paixões de um outro gênero poderão erguer barreirasdiante da vagahiperconsumidora. Mídias mais"culturais': menossujeitasaos ditames do ibope não estão à altura da missão.Se"sal-vação" existe, ela reside na invenção ou no aperfeiçoamento dedispositivosque permitam o desenvolvimento de gostos e de pai-xões diferentes do consumo. Temosmenos de demonizar a epi-demia consumista do que procurar os meios que incitariam os se-res na direção de objetivos mais diversos. O que pode levar oshomens a não buscar a felicidade exclusivamente nos bens mer-cantis senão desejos e centros de interesse diferentes: trabalho,criação, engajamento público? Aexigência do futuro está na in-venção de novos modos de educação e de trabalho que permitamque os indivíduos encontrem uma identidade e satisfaçõesem ou-tra parte que não nos paraísos fugazesdo consumo.

o PÓS-HIPERCONSUMO

Dizerque não existe,hoje, soluçãoalternativaà faseIII nãosignifica de modo algum que ela represente uma espécie de "fimda história". As reflexões precedentes talvez consigam lançar al-guma luz sobre o que significaria uma saída da sociedade de hi-perconsumo.

Com o capitalismo de consumo, o hedonismo se impôs co-mo um valor supremo e as satisfações mercantis, como o cami-nho privilegiado da felicidade. Enquanto a cultura da vida coti-diana for dominada por esse sistema de referência, a menos quese enfrente um cataclismo ecológico ou econômico, a sociedadede hiperconsumo prosseguirá irresistivelmente em sua trajetó-ria. Mas, senovas maneiras de avaliaros gozosmateriais e os pra-zeres imediatos vierem à luz, se uma outra maneira de pensar aeducação se impuser, a sociedade de hiperconsumo dará lugar a

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routro tipo de cultura. Amutação decorrente será produzida pelainvenção de novos objetivos e sentidos, de novas perspectivas eprioridades na existência. Quando a felicidade for menos identi-ficada à satisfação do maior número de necessidades e à renova-ção sem limite dos objetos e dos lazeres, o ciclo do hiperconsu-mo estará encerrado. Essa mudança socioistórica não implicanem renúncia ao bem-estar material, nem desaparecimento daorganização mercantil dos modos de vida; ela supõe um novopluralismo dos valores, uma nova apreciação da vida devoradapela ordem do consumo volúvel.

Quem poderá dizer quanto tempo será necessário para queuma consciência de outro tipo se levante, para que nasçam no-vos horizontes, novas maneiras de avaliar o avanço consumista?Sea resposta a essapergunta está fora de nosso alcance,não éme-nos verdade que existem sinais que, por mais discordantes, indi-cam desejos de orientação inédita, buscas de uma "outra coisa"em relação àsmiragens e à centralidade do consumo. Não tenha-mos a ingenuidade de crer que essas"dissidências"bastarão parafazer mudar de rumo: elas assinalam apenas que a multiplicaçãoe a renovação perpétua dos bens mercantis não podem ser con-sideradas a única e principal vocação do homem. Chegará o diaem que a procura da felicidadeno consumo não terá mais o mes-mo poder de atração, a mesma positividade: a busca da realiza-ção de si acabará por se desprender da corrida sem fim aos pra-zeres consumidores.

Com certeza,essahora ainda não soou, e será longa a esperaaté que tudo o que o frenesi consumidor comporta de quiméricose torne visível.Contudo, essemomento, inevitavelmente, chega-rá. Da mesma maneira que a opção consumista é uma invençãohistórica datada, seu futuro não será eterno. Segundo a hipótesedesenvolvidaaqui, é, paradoxalmente, menos a partir de uma re-volução do modo de produção que de uma revoluçãodos valores

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ou de uma mutação cultural reavaliadora do lugar dos gozos ime-diatos que é preciso esperar semelhante transformação. Uma in-versão na hierarquia dos valores que não anunciaria o reinado doSuper-Homem, porém, mais certamente, das democracias pós-consumistas, nas quais o hedonismo já não constituiria o princí-pio axial ou estruturante da vida.Nessemomento, adquirir, com-prar, renovar indefinidamente as mercadorias não será maisconsiderado o caminho privilegiado da felicidade. Um pós-he-donismo que, inelutavelmente, terá repercussões nos sistemas deeducação e de formação, nas maneiras de pensar e de preparar ofuturo, nas concepções da vida boa. O Homo consomatornão terádesaparecido: terá perdido seu imaginário luxuriante e sua cen-tralidade triunfal. Os antropólogos de um futuro distante pode-rão, então, debruçar-se com curiosidade sobre essacivilizaçãoes-clarecida em que o Homo sapiensprestava culto a um deus tãoderrisório quanto fascinante: a mercadoria efêmera.

o ECLETISMO DA FELICIDADE

Muitas são as razões que levam a pensar que a cultura da fe-licidade mercantil não pode ser considerada um modelo de vidaboa. São suficientes, no entanto, para invalidar radicalmente seuprincípio?

Porque o homem não é Uno, a filosofia da felicidade tem odever de fazerjustiça a normas ou princípios de vida antitéticos.Temos de reconhecer a legitimidade da frivolidade hedonísticaao mesmo tempo que a exigência da construção de si pelo pen-samento e pelo agir.Afilosofiados Antigos procurava formar umhomem sábio que permanecesse idêntico a si próprio, querendosempre a mesma coisa na coerência consigo e na rejeição do su-pérfluo. Isso é de fato possível,de fato desejável?Não o creio. Se,

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como sublinha Pascal,o homem é um ser feito de "contrarieda-des",a filosofia da felicidade não tem de excluir nem a superfi-cialidade nem a "profundidade", nem a distração fútil nem a di-fícil constituição de si mesmo. O homem muda ao longo da vidae não esperamos sempre asmesmas satisfaçõesda existência.Sig-nifica dizer que não poderia haver outra filosofia da felicidadeque não desunificada e pluralista: uma filosofiamenos cética queec1ética,menos definitivaque móvel.

No quadro de uma problemática "dispersa", não é tanto opróprio consumismo que compete denunciar, mas sua excres-cência ou seu imperialismo constituindo obstáculo ao desenvol-vimento da diversidade das potencialidades humanas. Assim, asociedade hipermercantil deve ser corrigida e enquadrada em vezde posta no pelourinho. Nem tudo é para ser rejeitado, muito épara serreajustado e reequilibrado a fimdeque aordem tentaculardo hiperconsumo não esmague a multiplicidade dos horizontesda vida. Nessedomínio, nada está dado, tudo está por inventar econstruir, sem modelo garantido. Tarefaárdua, necessariamenteincerta e sem fim, a conquista da felicidadenão pode ter prazo.

O que é verdade para a sociedade é verdade para o indiví-duo: o homem caminha rumo a um horizonte que se evapora àmedida que ele imagina estar próximo, toda solução trazendoconsigo novos dilemas. A cada dia, a felicidade tem de ser rein-ventada e ninguém detém as chavesque abrem as portas da Ter-ra Prometida: sabemos apenas pilotar sem instrumentos e retifi-car ponto por ponto, com mais ou menos sucesso.Lutamos poruma sociedade e uma vida melhor, buscamos incansavelmenteos caminhos da felicidade,mas o que nos é mais precioso, a ale-gria de viver,como ignorar que sempre nos será dada por acrés-cimo?

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Notas

1. AS TRÊS ERAS DO CAPITALISMO DE CONSUMO [pp. 26-37]

1.Sobre esses pontos, a obra clássica de Alfred D. Chandler, La main visi-

b/e des managers, Paris, Économica, 1988.

2. Ibid., pp. 325-32.

3. Ibid., pp. 304-16.

4. Richard S. Tedlow, L'audaee et /e marehé. L'invention du marketing aux

États Unis, Paris, Odile Jacob, 1997.

5. Cf. Patrice Carré, "Les ruses de Ia 'fée électricité"', in Du /uxe au eonfort

(sob a direção de Jean-Pierre Goubert), Paris, Belin, 1988.

6. R. S. Tedlow, op. cit., pp. 79-83.

7. Suzan Strasser, Satisfaetion guaranteed. The making of the Ameriean Mass

Market, Nova York, Pantheon Book, 1989, pp. 87-8 e 35.

8. Michael B. Miller, Au Bon Marehé 1869-1920. Le consommateur appri-

voisé, Paris, Armand Colin, 1987.9. William Leach, Land of desire. Marehants, power and the rise of new Ame-

riean eu/ture, Nova York, Vintage Books, 1994.

10. M. B. Miller, op. cito

11.Philippe Moati, L' avenir de /a grande distribution, Paris, Odile Jacob,2001.

12.Vance Packard, L'art du gaspillage,Paris, Calmann-Lévy, 1962.

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13.Henri Lefebvre, La vie quotidienne dans le monde moderne, Paris, Gal-limard, 1968.

14.Gilles Lipovetsky, L'ere du vide, Paris, Gallimard, 1983.

11.A participação das despesas de saúde no PIBduplicou desde os anos1960. Entre 1980 e 1995, as despesas médicas dobraram de volume.

12.Em 2000, a busca de informações médicas era a primeira atividade dosinternautas americanos na Web.

13.Pascale Weil, A quoi rêvent les années 90, Paris, Seuil, 1993.14.Victor Scardigli, La consommation, culture du quotidien, Paris, PUF,1983,

pp. 191-4. Sobre a "expropriação" do corpo do doente, Roland Gori, Marie-JoséDel Volgo, La santé totalitaire. Essai sur Ia médica/isation de I'existence, Paris,Denoel, 2005.

15. Édouard Zarifian, Des paradis plein Ia tête, Paris, Odile Jacob, 1994.Igualmente, David Le Breton, L'adieu au corps, Paris, Métailié, 1999, pp. 51-62.

16.Bernard Andrieu, Les cultes du corps, Paris, L'Harmattan, 1994,pp. 67-75.17. Lucien Sfez, La santé parfaite. Critique d'une nouvelle utopie, Paris,

Seuil,1995.18.Pierre Bourdieu, op. cit., p. 257.

2. ALÉM DA POSIÇÃO SOCIAL: O CONSUMO EMOCIONAL [pp. 38-59]

1.Jean Baudrillard, La sociétéde consommation, Paris, SGPP,1970.Igual-mente, Pierre Bourdieu, La distinction,Paris, Éditions de Minuit, 1979.

2.Jean Baudrillard, op. cit.,p. 107.3.Ernest Dichter,Handbookof consumermotivations,NovaYork,McGraw-

HilI,1964.

4.VancePackard,Lesobsédésdu standing,Paris, Calmann-Lévy,1960.5. Éno momento em que o consumo se livra de sua dimensão antagonis-

ta intersubjetiva que semultiplicam, em particular nos EstadosUnidos, os pro-cessosentabulados pelos consumidores que, descontentes e na posição de víti-mas, apresentam queixas por víciode fabricação com vista à obtenção de fortescompensações financeiras. Todo ano, nos Estados Unidos, cerca de 2 milhõesde queixas são apresentados contra as empresas. Quanto menos as lutas sim-bólicas têm relevo,mais o número de conflitos judiciários relacionados ao con-sumo aumenta. Escaladada judiciarização impulsionada, da mesma forma, pe-las empresas no combate contra a falsificação e, mais recentemente, contra atransferência ilícita de dados por computador e a pirataria dos cos e dos ovos.O "campo de luta" não desapareceu, deslocou-se: às rivalidades estatutárias se-guiu-se a ação judiciária das vítimas com vista à sua indenização, bem como aluta repressiva contra as fraudes que desrespeitam os direitos da propriedadeintelectual.

6. Relembremos que a moradia se tornou o primeiro item de despesa dasfamílias francesas: representava, em 1999,mais de 30% do orçamento das famí-lias contra 20% no começo dos anos 1960.

7. Para a ilustração literária do fenômeno yuppie, Bret Easton Ellis,Ame-ricanpsycho,Paris,Seuil, 1998.[Ed.bras. Opsicopataamericano,Rio de Janeiro,ROCCO,1991.J

8. Thorstein Veblen, Théorie de Ia classede loisir,Paris, Gallimard, Te!,1970, p. 27.

9. Sobre essaoposição, Pierre Bourdieu, op. cit., pp. 198-230.10. Esse processo precedeu a fase 11I,especialmente através do automóvel,

cujo sucesso é inseparável de sua capacidade de livrar o usuário das imposiçõesdo transporte coletivo; ver Paul Yonnet, "La société auto mobile", Le Débat, n231, 1984, pp. 144-5.

3. CONSUMO, TEMPO E JOGO [pp. 60-75]

1.Jean Baudrillard, op. cit.,p. 123.2. Certas avaliações desenvolvem a hipótese de que as despesas reais de

lazer poderiam representar um quarto do orçamento das famílias, tornando-se, assim, o primeiro item de despesa, na frente da moradia; d. Gérard Mermet,Francoscopie2001,Paris, Larousse, 2000, p. 390.

3. Olivier Donnat, Les pratiques culturelles des Français, Paris, La Docu-mentation française, 1998, pp. 62-3; Jean Viard, Le sacre du temps libre, Paris,Éditions de l'Aube, 2004, p. 93.

4. Na França, as despesas dedicadas aos jogos representam 6% do PIB.5.JeremyRifkin, L'âgede l'acces.La révolution de Ia nouvelleéconomie,Pa-

ris, La Découverte, 2000.6. Joseph Pine e James Gilmore, The experienceeconomy:work is theatre

and everybusinessa stage,Cambridge, MA,Harvard Business School Press, 1999;Michael Wolf, The entertainment economy- ali businessis show business.A re-view of entertainment economy,NovaYork,Time Books, 1999;sobre o adventoda economia da experiência,AlvinToffler,Le chocdu futur, Paris, Denoel, 1971,pp. 250-70. [Ed. bras. O choquedo futuro, Rio de Janeiro, Record, 1994.]Essaproblemática é retomada por J. Rifkin, op. cit., pp. 182-216.

7. Bernard e Véronique Cova, "L'hyperconsommateur, entre immersionet sécession", in L'individu hypermoderne (sob a direção de Nicole Aubert), Pa-ris, Eres, 2004, pp. 199-213;Jean Viard, op. cit., pp. 106-15.

372 373

Page 188: A Felicidade Paradoxal

8. PaulYonnet, Travail, loisir, Paris,Gallimard, 1999,p. 75.9. Observador Cetelem 1999.

10.William Severini Kowinski, The malling of America: an inside look atthegreat consumerparadise,NovaYork.Morrow, 1985,pp. 349-50.

11.A expressão consumo experiencial foi introduzida em marketing porMorris Holbrook e Elizabeth Hirschman, "The experiental aspects of consump-tion. Consumer fantaisies, feelingsand fun': ]ournal of ConsumerResearch,vol.9, n22, 1982.Sobre o marketing experiencial,G. Ritzer,Enchantinga disenchan-tedworld: revolutionizing the meansof consumption,Pine ForgePress,1999;Oli-vier Badot e Marc Dupuis, "Le réenchantement de Iadistribution", LesÉchos-L'Art du Management, 18 de abril de 2001; Bernard Cova, "Expérience etmarketing': Business Digest, n2 129, abril de 2003; Yves Evrard e Christophe Bé-navent, "Extension du domaine de I'expérience", Décisions Marketing, n2 28,2002.

12.Sigmund Freud, Essaisdepsychanalise,Paris, Payot, Petite Bibliothe-que Payot, p. 45. No século XVIII,uma vasta literatura já sublinhou os laços queunem o prazer à diversidade e à mudança; ver Robert Mauzi, L'idéedu bonheurdans Ia littérature et Iapenséefrançaise au XVlflCsiecle,Paris,Albin Michel,1994,capo 10.

13. Alvin Toffier, op. cit., capo X.

14.Assim, a fase IIIfunciona segundo duas lógicas contrárias, desenvol-vendo-se o consumo lúdico paralelamente ao consumo ansioso ou desconfia-do (qualidade do produto, perigo das mercadorias, dos organismos genetica-mente modificados).

15.Anne Godignon e Jean-Louis Thirlet, "Pour en finir avec le conceptd'aliénation",LeDébat,nQ56,setembro-outubro de 1989.

16.GuyDebord, La sociétédu spectacle,Paris,Champ Libre,1971,p. 15.17.Raoul Vaneigem, Traitédesavoir-vivre à l'usagedesjeunesgénérations,

Paris, Gallimard, 1967,P.159.

18.Claude Lévi-Strauss, "La technique du bonheur aux U.S.A.': L'âge d'or,nQ 1, 1946.

19. Philippe Muray, Apres l'histoire, Paris, Les Belles Lettres, tomo I, 1999;tomo lI, 2000; igualmente, Exorcismes spirituels, 11I,Paris, Les Belles Lettres, 2002.

20. Roger Caillois, Lesjeux et leshommes, Paris, Gallimard, Idées, 1967,p.61.

21. lbid., p. 62.

22. Sob muitos aspectos, elas se reforçam, como o demonstra o desenvol-vimento das publicações, dos programas televisivos, dos objetos, dos locais, doslazeres, dos jogos destinados explicitamente às crianças e às diferentes catego-rias de idade.

374

23.Eugen Fink, Le jeu comme symbole du monde, Paris, Minuit, 1966,p.229.

24. lbid., p. 228.

4. A ORGANIZAÇÃO PÓS-FORDISTA DA ECONOMIA [pp. 76-97]

1.A formulação clássica da questão encontra-se em Daniel Bell, VersIasociétépost-industrielle, Paris, Robert Laffont, 1976.Hoje, os setores dos servi-ços empregam mais de 77% da mão-de-obra e representam 75% do valor agre-gado produzido pela economia americana, J.Ritkin, op. cit., p. 112. Na França, o"terciário", que concentrava 48,8% do emprego em 1970, reunia 73% dele em2000.

2. Philippe Delmas,Lemaitre deshorloges,Paris,Odile Jacob,1991,p. 115.3. Entrevista com Pierre Rosanvallon, "Ou va I'industrie française?",Le

Débat, n2 28, janeiro de 1984.4. Dominique Turpin, "Marketing: lesstratégies japonaises",RevueFran-

çaisedeGestion,n2 91, novembro-dezembro de 1992.5. Um exemplo clássico é fornecido pelas campanhas publicitárias "Gera-

ção Pepsi". Desde os anos 1950 e sobretudo 1960, a Pepsi-Cola adotou uma es-tratégia de segmentação do mercado, não se baseando mais no terreno dos pre-ços, mas na juventude e num certo estilo de vida. Sobre esse ponto, Richard S.Tedlow,L'audaceet le marché. L'invention du marketing aux États Unis, Paris,Odile Jacob, 1997, em particular, para a "guerra das colas", pp. 53-142.

6. Até 1955,a Coca-Cola só estava disponível na célebre garrafinha de vi-dro imortalizada por Andy Warhol. Foi apenas a partir da metade dos anos 1970que a firma efetuou uma alteração, escolhendo uma política de diversificaçãosistemática que resultará numa ampla gama de produtos, de acondicionamen-tos e de formatos, cf. R.Tedlow,op. cito

7. Esse ponto é desenvolvido em meu livro L'empire de éphémere,Paris,Gallimard, 1987, 2! parte. [Ed. bras. O império do efêmero,SãoPaulo, Compa-nhia das Letras, 1989.]

8. Sobre esses pontos, bem como sobre os outros aspectos da transforma-ção da grande distribuição, ver o excelente livro de Philippe Moati, L'avenir deIa grande distribution, op.cito

9. No presente, a rentabilidade de um novo produto depende em grandeparte de seu grau de inovação, cf. R. Cooper e E. Kleinschmidt, "New products:what separateswinners from losers?",]ournal ofProduct lnnovation Management,4,1987, pp. 169-84; igualmente, B. Zirger e M. Maidique, "A mo dei of new pro-duct development: an empirical test",ManagementScience,36, 1990, pp. 867-83.

375

Page 189: A Felicidade Paradoxal

10. Jean-Claude Andréani, "Marketing du produit nouveau: 95% des pro-duits nouveaux échouent': RevueFrançaisedu Marketing, n2 182, 2001/2, pp. 5-11.

11.Élyette Roux, "Temps du luxe, temps des marques': in GillesLipovetskye ÉlyetteRoux, Le luxe éternel,Paris, Gallimard, 2003, p. 112.

12.Céline Abecassis-Moedas, "L'évolution du rôle des acteurs dans Ia fi-liere. Application à Ia conception de nouveaux produits d'habillement", in Del'idée au marehé(coordenado por Alain Bloche Delphine Manceau), Paris,Vui-bert, 2000, p. 330.

13.Françoise Benhamou, L'éeonomiede Ia eulture, Paris, LaDécouverte,2004, p. 69.

14. Pierre Veltz, Le nouveau monde industriel, Paris, GaIlimard, 2000. Domesmo autor, Mondialisation, villes et territoires, Paris, PUF,2005.

15.Todos esses pontos são analisados por Delphine Manceau, "L'annoncepréalable de nouveaux produits: préparer le marché ou gêner les concurrents",in De l'idée au marehé,op. cit., pp. 49-68.

16.VancePackard, L'art du gaspillage,op.cito17.Naomi Klein, No logo,Paris, Leméac/ Acte Sud, 2000.

18.Sobre os desafios do desconto, Jean-Noel Kapferer, Cequi va ehangerlesmarques,Paris,Éditions d'Organisation, 2005.

19.Essesexemplos são extraídos de Nicolas Riou, Pubfietion, Paris, Édi-tions d'Organisation, 1999.

das ruas comerciais e com investimentos reduzidos ao mínimo, os produtos ali-mentícios vendidos inicialmente por diferentes especialistas.

8. É em 1916que aparece a primeira loja com auto-serviço sob o impulsode Clarence Saunders, com a marca Piggly Wiggly. Essa fórmula é introduzidana França em 1948por Goulet Turpin; Étienne Thil, Les inventeurs du eommer-eemoderne,Paris,Arthaud, 1966.

9. Gilles Lipovetsky, L'eredu vide, op.cito10. Todas essas características são brilhantemente descritas por Jean Bau-

drillard, La sociétédeeonsommation,op. cito11.No começo dos anos 1960, Edgar Morin já escreve: "A cultura de mas-

sa orienta a busca da salvação individual no lazer": a novidade, acrescenta ele,"são os progressosde uma concepção lúdica da vida";E.Morin, L'esprit du temps,Paris, Grasset, 1962, pp. 92-3.

12.Entre 1961 e 1981,o número de pessoas que saíram de férias ao menosuma vez por ano triplicou, passando de 10 para quase 30 milhões. Em 1974, umfrancês em dois saiu de férias.

13.No fim da Segunda Guerra Mundial, os americanos praticamente nãotinham dívidas; no começo dos anos 1960, duas famílias em três tinham umaforma ou outra de dívida a reembolsar. As atitudes positivas em relação ao cré-dito aos consumidores tornam-se majoritárias; G. Katona, op. cit., pp. 202-16.Igualmente, John K.Galbraith, L'erede l'opulenee, Paris, Calmann-Lévy, 1970,pp. 188-99.

14.Vance Packard, La persuasion clandestine,Paris, Calmann-Lévy, 1958,pp. 102-9.

15.Edgar Morin, "Salut les copains", Le Monde, 6 e 7 de julho de 1963, re-tomado em Sociologie, Paris, Fayard, Points, 1994, pp. 399-407.

16.Em 1956, o poder de compra dos americanos de treze a dezenove anosera avaliado em 7 bilhões de dólares, dispondo o adolescente "médio" de onzedólares por semana, cf. David Halberstam, Lesfifties. La révolution amérieainedesannées50,Paris, Seuil, 1995,p. 351.O poder de compra dos jovens francesesera estimado, em 1966, em 5 bilhões de francos.

17. Desde 1966, 42% daqueles entre quinze e vinte anos dispõem de umtoca-discos, Anne-Marie Sohn, Âge tendre et têtede bois.Histoire desjeunes desannéessoixante,Paris, Hachette-Littératures, 2001, p. 68.

18. Em 1967-8, dois ouvintes em três possuíam um rádio portátil, citadopor Jean-François SirineIli,"Lecoup de jeune des sixties",in La eulture de masseen Franeede Ia Belle Époqueà aujourd'hui (sob a direção de Jean-Pierre Riouxe J. F. Sirinelli), Paris, Fayard, 2002, p. 127.

19. Ludovic Tournes, "Reproduire I'oeuvre: Ia nouveIle économie musica-le': in La eulture demasse,op.cit., pp. 253-5.

5. RUMO A UM TURBO CONSUMIDOR [pp. 98-127]

1.Robert Rochefort, La société des eonsommateurs, Paris, Odile Jacob, 1995,p.83.

2. Ibid., pp. 75-100.

3.GeorgeKatona, La sociétédeeonsommationdemasse,Paris,Hommes etTechniques, 1966, pp. 3-36.

4. Robert Castel, Lesmétamorphosesde Ia question sociale,Paris, Fayard,1995,p. 336.

5. Entre a metade dos anos 1950 e o fim dos anos 1970, já se pode obser-var uma redução das particularidades do mundo operário, aproximando-se arepartição de suas despesas orçamentárias da repartição média, cf. Henri Men-dras, La seeonde Révolution Française, Paris, GaIlimard, Folio Essais, 1994, p. 373.

6. Sobre a grande distribuição como "avatar comercial do fordismo': Phi-lippeMoati,L'avenirdeIagrandedistribution,op.cit.,pp.23-68.

7. O primeiro supermercado surge nos Estados Unidos, em 1930,sob amarca King CuIlen.A inovação consiste em reunir sob um mesmo teto, longe

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Page 190: A Felicidade Paradoxal

.....

20. O mercado do disco estava avaliado em 18milhões em 1956,41 em 1963,130 em 1975.Nos anos 1960, 60% a 70% das compras de discos eram efetuadaspelos jovens. Venderam-se 750 mil cassetes em 1967 e 18 milhões em 1979; verLudovic Tournes, art. cit., pp. 243-5.

21.Claude Fischler, L'homnivore, Paris, Odile Jacob, Points, 1993,pp. 212-6.22. François Bellanger, Bruno Marzloff, Transit. Les lieux et les temps de Ia

mobilité, Paris, Mitions de I'Aube, 1996.23.Marc Augé, Non-lieux, Paris, Seuil, 1992.24. François Bellanger, Bruno Marzloff, op. cit., pp. 179e 203.25. Nos aviões de longo curso, os equipamentos eletrônicos destinados ao

conforto e às distrações dos passageiros são idênticos, em valor, aos destinadosà pilotagem do avião.

26. Luc Gwiazdzinski, La ville 24 heures sur 24, Paris, Éditions de I'Aube,2002.

I

27. Edward N. Luttwak, Le turbo-capitalisme, Paris, Odile Jacob, 1999.28. Sobre todos esses pontos, Luc Gwiazdzinski, op. cit.; do mesmo autor,

La nuit, derniere frontiere de Ia ville, Paris, Éditions de I'Aube, 2005.29. Bernard Stiegler, Mécréance et discrédit, Paris, Galilée, 2004, p. 169.30. Sobre a temática do imediatismo e da urgência, Zaki Laidi, Le sacre du

présent, Paris, Flammarion, Champs, 2000; Nicole Aubert, Le culte de l'urgence,Paris, Flammarion, 2003. Propus uma interpretação da economia contemporâ-nea do tempo em "Temps contre temps ou Ia société hypermoderne': in GillesLipovetsky e Sébastien Charles, Les temps hypermodernes, Paris, Grasset, 2004.

31.Zaki Laidi, op. citoIgualmente, Jean Cheneaux, Habiter le temps, Paris,Bayard, 1996.

32. Zaki Laidi, op. cit., p. 217.

33. Richard Hoggart, La culture du pauvre, Paris, Minuit, 1970, pp. 130-1.Igualmente, Pierre Bourdieu, La distinction, Paris, Minuit, 1979,pp. 443-4.

34. Pierre Bourdieu, ibid., pp. 190-3.

35. Em 2000, o poder de compra direto das crianças de oito a quinze anosestava compreendido entre 12 e 15bilhões de francos. Estima-se que os de sete-doze anos exerçam uma influência sobre 40% das despesas das famílias. Por es-se novo papel, as crianças podiam gerar cerca de 600 bilhões de francos por ano.

36. R. Rochefort, op. cit., p. 128. Igualmente, do mesmo autor, Le consom-mateur entrepreneur, Paris, Odile Jacob, 1997.

37. R. Rochefort (1995), p. 128.

38.Analisei essa questão em Le crépuscule du devo ir,Paris, GalIimard, 1992.

I

I

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6. o FABULOSO DESTINO DO HOMO CONSUMERICUS [pP. 128-49]

1.H. Marcuse, H. Lefebvre, J.Baudrillard, G. Debord são suas figuras maisrepresentativas.

2. Os limites encontrados no presente pelo processo de comercializaçãodas necessidades não são mais externos, mas inerentes à modernidade, consti-tutivos dela mesma (os direitos humanos). Dimensão fundamental que impe-de que a integralidade das realidades e experiências humanas caia no puro con-sumível.

3. Sobre todos esses pontos, cf. o notável estudo de Yves Lambert, Dieuchange en Bretagne, Paris, Cerf, 1985,muito particularmente pp. 355-83.

4. Françoise Champion e Martine Cohen, "Recompositions, décomposi-tions. Le renouveau charismatique et Ia nébuleuse mystique-ésotérique depuisles années soixante-dix", Le Débat, n2 75, maio-agosto de 1993.

5.Daniele Hervieu-Léger, Lepélerin et le converti, Paris, Flammarion, 1999,pp.180-1.

6. Cf. o número especial de Esprit, "Le temps des religions sans Dieu", ju-nho de 1997.

7. De l'émotion en religion (sob a direção de Fr. Champion e D. Hervieu-Léger), Paris, Centurion, 1990. Igualmente, Jean-Louis Schlegel, Religions à Iacarte, Paris, Hachette, 1995, pp. 103-26.

8. Pierre Rosanvallon, La question syndicale, Paris, Calmann-Lévy, 1988,pp. 29-59.

9. J. Baudrillard, La société de consommation, op. cit., p. 294.10. Sobre a modernidade reflexiva, Ulrich Beck, La société du risque. Sur

Ia voie d'une autre modernité, Paris, Aubier, 2001. Igualmente, Antony Giddens,Les conséquences de Ia modernité, Paris, l'Harmattan, 1994, pp. 43-51. [Ed. bras.As conseqüências da modernidade, São Paulo, Unesp, 1991.]

11.Esse conceito é extraído de Albert Hirschman, Face au déclin des entre-

prises et des institutions, Paris, Éditions Ouvrieres, 1972.12. Pierre Alphandery, Pierre Bitoun, Yves Dupont, L'équivoque écologi-

que, Paris, La Découverte, 1991.Igualmente, Suren Erkman, "l'écologie indus-trielle, une stratégie de développement", Le Débat, n2 113,janeiro-fevereiro de2001.

13.Sobre as novas posturas de oposição, Philippe Raynaud, "Les nouvel-les radicalités': Le Débat, n2 104, março-abril de 1999. E Marcel Gauchet, La dé-mocratie contre elle-même, Paris, GalIimard, 2002, pp. 315-25.

14. É assim que as ações ditas de "resistência cultural" (rabiscos em pai-néis publicitários, logotipos deturpados, esvaziamento de pneus de 4X4, "rai-des" na internet) tendem a moldar-se segundo as formas tomadas à civilização

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.....-

lúdico-mercantil (humor, animações engenhosas, "rapto" do palhaço Ronalddo McDonald's, paródias de missa na "igreja do Santissimo Consumo"). Du-rante a desobediência civil,o "espetáculo"continua: a antipublicidade está ain-da carregada de espirito publicitário.

15.MarcelGauchet, op.cit.,pp. 321-5.16.Não se pode, ainda por cima, separar a nova fortuna dos direitos hu-

manos da expansão do universo do consumo. Ao elevar a busca das felicidadesprivadas a norma de vida, este contribuiu para desqualificar as grandes visõesdo futuro que sacrificam o individuo no altar da história e da nação, ele digni-ficou o eixo do presente social e, correlativamente, o individuo e seus direitoscomo fundamento último e norma organizadora da vida pública.

17.JeremyRifkin,L'âgede I'acces,Paris, La Découverte, 2000, pp. 309-25.18. Philippe Muray, Apres l'histoire 11,Paris, Les Belles Lettres, 2000, pp.

166 e 178-9.

19. José Ortega y Gasset, La révoltedesmasses,Paris,Gallimard, 1967.20. Nietzsche, La volonté depuissance,Paris, Gallimard, Tel, tomo I, pp.

229 e 234.21.Guy Debord, La sociétédu spectacle,op.cit.,pp. 141-2.22. Jean Baudrillard, Pour une critique de I'économie politique du signe, Pa-

ris, Gallimard, 1972,p. 211.23. Citado em Sciences Humaines, n2 108, agosto-setembro de 2000, p. 10.24. Olivier Donnat, Les pratiques culturelles des Français, Paris, La Docu-

mentation Française, 1998, pp. 217-22.25. Ibid., pp. 17-24 e pp. 45-51.26. Philippe Breton, L'utopie de Ia communication, Paris, La Découverte,

1997, p. 160.27. François Ascher, Métapolis ou I'avenir des vil/es, Paris, Odile Jacob, 1995,

pp. 138-40.28. D. Kanter e Ph. Mirvis, The cynical American, Jossey, Bass, 1989.29. Sébastien Roché, Le sentiment d'insécurité, Paris, PUF,1993.Ver igual-

mente Jean de Maillard, Le marché Jait sa loi, Paris, Fayard, 2001.30. Em 2004, a França enumerava cerca de 12 milhões de voluntários.

Quanto aos niveis de confiança mútua, variam de um pais a outro. t provávelo elo entre um alto nivel de vida e um alto grau de confiança interindividual.Ronald Inglehart, La transitionculturelle,Paris, Economica, 1993,pp. 39-47.

31.Sobre esses pontos, o leitor pode remeter-se à minha obra, Le crépus-cule du devoir, Paris, Gallimard, 1992, pp. 142-50.

32. O que não quer dizer que o amor não traga a marca do hiperconsu-mo. De fato, é cada vez mais por compras e presentes que se exprime o amordos pais pelos filhos (Natal, aniversário, lazeres). O amor no casal seguirá esse

modelo? O Dia dos Namorados já se tornou a segunda ocasião do ano em im-portância, depois do Natal, para oferecer presentes.

7. PENfA: GOZOS MATERIAIS, INSATISFAÇÃOEXISTENCIAL [pp. 157-205]

1. Tibor Scitovsky, L'économie sans joie, Paris, Calmann-Lévy, 1978, pp.43-67.

2. Ibid., pp. 130-8.3. Ibid., pp. 207-26.4. Ibid., pp. 251-65.5. Albert Hirschman, Bonheur privé, action publique, Paris, Fayard, 1983,

PP.49-76.6. Ibid., pp. 77-80 e 111-5.7. Ibid., pp. 13-34.8. O despertar contemporâneo das espiritualidades enraíza-se, segundo o

que às vezes se diz, na decepção experimentada em relação ao mundo do "ter".Na verdade, os protestos dos neocrentes contra o consumo são limitados e, so-bretudo, muito desiguais. A insatisfação se deve, principalmente, a um univer-so despojado dos deuses, desencantado, em que as ideologias já não fornecemsistema de unidade, de certeza, de inteligibilidade do mundo vivido. t dessa in-certeza hipermoderna, e não do consumo infeliz, que se elevam as novas for-mas do crer. Sobre esse ponto, DanieIe Hervieu-Léger, Re!igion pour mémoire,Paris, Cerf, 1993, pp. 106-9.

9. Sobre as lógicas que estão no principio da decepção relativa à arte con-temporânea, Anne Cauquelin, Petit traité d'art contemporain, Paris, Seuil, 1996.

10. Por meio de seus sites de relacionamento, a internet está igualmente

na origem de um novo gênero de decepção resultante da defasagem entre aspossibilidades infinitas e os "resultados" inferiores às expectativas, entre as fan-tasias multiplicadas e o real, entre o ser virtual com quem se comunica e a pes-soa de carne e osso.

11. John Kenneth Galbraith, Le nouve! État industriel, Paris, Gallimard,1968, pp. 205-25. [Ed. bras. O novo Estado industria~ São Paulo, Pioneira, 1983.]

12.Henri Lefebvre, La vie quotidienne dans le monde moderne, Paris, Gal-limard, 1968.

13. Benjamin R. Barber, Djihad versus McWorld, Paris, Desclée de Brou-wer, 1996, pp. 47-60.

14.Stuart Ewen,Consciencessousinfluence.Publicité etgenesede Iasociétéde consommation,Paris,Aubier,1983.

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Page 192: A Felicidade Paradoxal

15.Naomi Klein, No logo, Leméac-Actes Sud, 2001. Igualmente, B. Barber,op. cito

16. Robert Leduc, Le pouvoir publicitaire, Paris, Bordas, 1974,pp. 61-7.17.A despeito de seu expansionismo, a influência da publicidade mercan-

til permanece, em muitas esferas, menos importante que a "publicidade" oralfeita pelos próprios consumidores. A compra de um livro, a decisão de ver umfilme, a escolha de um lugar de férias são mais determinadas pela força do bo-ca-a-boca que pela persuasão publicitária.

18. Jean Ades, Michel Lejoyeux, La fievre des achats, Paris, Les Empêcheursde penser en rond/Le Seuil, 2002, pp. 46-8.

19. É verdade que esse fenômeno não é universal. Assim é que a taxa depoupança dos lares americanos é particularmente baixa, tendo atingido um ní-vel próximo de zero em 2000. Ao mesmo tempo, estes estão duas vezes mais en-dividados que seus homólogos franceses. Mas essa "anomalia" americana temmuito menos a ver com o poder das incitações publicitárias do que com o de-senquadramento das práticas do crédito ao consumo: uso discricionário do car-

tão de crédito concedido pelos bancos e pelas empresas de distribuição aos par-ticulares, importância dos empréstimos para moradia, equity withdrawal. Essaanálise é apresentada por Jean-Luc Gréau, L'avenir du capitalisme, Paris, GaIli-mard, 2005, pp. 49-58.

20. Jean Ades, Michel Lejoyeux, op. cit., pp. 79-80.21.Ver, igualmente, GiIles Lipovetsky, L'empire de l'éphémere, Paris, Galli-

mard, pp. 226-34.

22.As novas tendências publicitárias são bem analisadas por Nicolas Riou,Pub fiction, Paris, Éditions d'Organisation, 1999.

23. Em 2000, a campanha Benetton que exibia retratos de condenados àmorte americanos despertou vivos protestos, bem como a retirada de seus arti-gos das quatrocentas lojas da cadeia de distribuição Sears. Em conseqüência dis-so, a Benetton despediu O. Toscani e desistiu de suas publicidades de escândalo.

24. Jean-Marie Domenach, Le retour du tragique, Paris, Seuil, Points, 1967,P.249.

25. Daniel Cohen, Nos temps modernes, Paris, Flammarion, 1999, p. 64.Uma avaliação idêntica encontra-se já em Pierre Kende, L'abondance est-ellepossible?, Paris, Gallimard, 1971,p. 88, nota I.

26. Pierre Bourdieu, La distinction, op. cit., pp. 190-9.27. No começo dos anos 2000, a França contava cerca de 3,5 milhões de

pessoas vivendo no limiar da pobreza; 3,4 milhões de assalariados, dos quais 80%de mullieres, recebiam um salário inferior ao salário mínimo. Os baixos salários(dois terços do salário médio) e os baixíssimos salários (metade do salário mé-dio) referiam-se respectivamente, em 2001, a 17% e a 9% dos assalariados.

28. O conceito é desenvolvido por Robert Castel, Les métamorphoses de Iaquestion sociale, Paris, Fayard, 1995.

29. Didier Lepeyronnie, L'individu et les minorités. La France et Ia Gran-de-Bretagnefaceà leursimmigrés,Paris, PUF,1993,p. 274.

30. François Dubet, La galere: jeunes en survie, Paris, Fayard, 1987, reed.Seuil, Points, 1993.

31.Serge Paugam, La société française et ses pauvres, Paris, PUF,Quadrige,2002, pp. 230-9.

32. Judith Lazar, "La violence contagieuse? Représentation symbolique etréalité", Le Débat, nO94, 1997, p. 161.

33. Hughes Lagrange, Demandes de sécurité. France, Europe, États Unis,Paris, Seuil, 2003.

34. Robert Castel, op. cit., p. 468.35. Serge Paugam, La desqualification sociale, Paris, PUF,Quadrige, 2000.36. Jean Fourastié, Les Trente Glorieuses, Paris, Fayard, Pluriel, 1979, p. 246.37. Cifras referidas por Le Monde, 24-25 de outubro de 2004.38. Annick Le Pape, Thérese Leconte, Prévalence et prise en charge médi-

cale de Ia dépression, Credes, setembro de 1999.39. Alain Ehrenberg, La fatigue d'être soi, Paris, Odile Jacob, 1998.40. Émile Durkheim, Le suicide (1897), Paris, PUF,1979, p. 445.

8. DIONíSIO: SOCIEDADE HEDONISTA,

SOCIEDADE ANTIDIONISíACA [pp. 206-59]

I. Harvey Cox, La fête des fous. Essai théologique sur les notions de fête et defantaisie, Paris, Seuil, 1971,p. 72.

2. Theodore Roszak, Vers une contre-culture, Paris, Stock, 1970, pp. 60-5.3. Daniel BeIl, Les contradictions culturelles du capitalisme, Paris, PUF,1979,

pp. 138-54.4. Jean Brun, Le retour de Dionysos, Paris, Les Bergers et les Mages, 1976

(I" ed. 1969).5. As análises de Michel Maffesoli ilustram de modo bem próximo esse

tipo de problemática.6. Guy Burgel, La ville aujourd'hui, Paris, Hachette-Pluriel, 1993, PP.1l9-

29; Alain Cluzet, Au bonheur des villes, Éditions de I'Aube, 2002, pp. 131-7.7. Citado por Maria Daraki, Dionysos et ia déesse terre, Paris, Flammarion,

Champs, 1994, p. 70.8. Olivier Donnat, Les pratiques culturelles des Français, op. cit., p. 62.9. Olivier Le Goff, L'invention du confort, Lyon, Presses Universitaires de

Lyon,1994.

382 383

Page 193: A Felicidade Paradoxal

10. Claudette Seze, "La modification", in Confort moderne. Une nouvelleculture du bien-être, Autrement, n2 10, 1994.

11.Essa dinâmica não se dá sem um risco de disneylização dos centros his-tóricos, transformados em cenário de teatro ou cidade cartão-postal. Em nomeda qualidade de vida, organiza-se a cidade comercializada que, entregue ao con-sumo de ambiência e de animação, se aproxima do parque temático. Ver AlainBourdin, La métropole des individus, Éditions de I'Aube, 2005, pp. 70-84.

12.A visita a uma loja ou a uma feira de objetos usados tornou-se a saídacultural número um dos franceses. Cf. Gérard Mermet, Francoscopie 2001, Pa-ris, Larousse, p. 396.

13.Martine Segalen e Béatrix LeWita, "Éditorial", in Chez-soi, Autrement,n2 137, 1993, p. 12.

14. David Le Breton, L'adieu au corps, Paris, Métailié, 1999.15.Philippe Breton, L'utopie de Ia communication, Paris, La Découverte,

1997, p. 155.

16.Tibor Scitovsky, L'économie sans joie, op. cit., pp. 164-5.17.Claudette Seze, art. cit., pp. 119-23.18.Richard Hoggart, La culture du pauvre, Paris, Minuit, 1970, pp. 70-3.19.Sobre as transformações do comer, François Ascher, Le mangeur hyper-

moderne, Paris, Odile Jacob, 2005; Jean-Pierre Poulain, Sociologie de l'alimenta-tion. Les mangeurs et l'espace social alimentaire, Paris, PUF,2002; Jean-Pierre Cor-beau, Jean-Pierre Poulain, Penser l'alimentation. Entre imaginaire et rationalité,Paris, Privat, 2002; Claude Fischler, L'homnivore, Paris, Odile Jacob, 1990.

20. Patrick Babayou, Jean-Luc Volatier, "Les consommateurs veulent plusde saveurs dans leur assiette", Crédoc, Consommation et modes de vie, n2 113,de-zembro de 1996.

21. Baudelaire, "Le peintre de Ia vie moderne", Oeuvres completes, Paris,Gallimard, Bibliotheque de Ia Pléiade, 1951,p. 879.

22. Gilles Lipovetsky, "Temps contre temps ou Ia société hypermoderne",in Gilles Lipovetsky e Sébastien Charles, Les temps hypermodernes, Paris, Gras-set, 2004, pp.lOl-6.

23. Pierre Aiach, "Les voies de Ia médicalisation", in Pierre Aiach, DanielDelanoe, L'ere de Ia médicalisation, Paris, Anthropos, 1998, pp. 17-20. Igualmen-te, Nicolas Postel- Vinay, Pierre Corvol, Le retour du dr. Knock. Essai sur le risquecardiovasculaire, Paris, Odile Jacob, 2000.

24. Vance Packard, Le sexe sauvage, Paris, Calmann-Lévy, 1969.25. Dominique Folscheid, Sexe mécanique, Paris, La Table Ronde, 2002,

pp. 43-4.

26. Les comportements sexuels en France, sob a direção de Alfred Spira, Pa-ris, La Documentation française, 1993,pp. 141e 135.Esses dados são apenas apro-

ximativos, tendo os homens a tendência a exagerar o número de suas conquis-tas e as mulheres, a minimizá-Io.

27.Daniel Welzer-Lang, "La planete échangiste à travers ses petites an-nonces", Panoramiques, n2 34, 1998, p. 112.

28. Florence Haegel, "Les pratiques sexuelles", in Sofres, Opinion publique1986, Paris, Gallimard, 1986.

29. Hughes Lagrange, Demandes de sécurité, Paris, Seuil, 2003, p. 22.30. Béatrice Mabilon-Bonfils, "Une nouvelle forme de participation poli-

tique?", e Stéphane Hampartzoumian, "Du plaisir d'être ensemble à Ia fusionimpossible", La fête techno, Autrement, Paris, 2004.

31.Pierre Nora, 'Tere de Ia commémoration", in Les lieux de mémoire, Pa-ris, Gallimard, Quarto, 1997, p. 4715.

32. As festas tristes não escapam mais a essa lógica: um ano depois do de-saparecimento de Lady Di, "o efeito" havia desaparecido. Manifestamente, aprincesa não entrará no panteão dos deuses a celebrar.

33. Marlene Albert-Llorca, "Renouveau de Ia religion locale en Espagne",in Grace Davie e DanieJe Hervieu-Léger, ldentités religieuses en Europe, Paris,La Découverte, 1996. Igualmente, DanieJe Hervieu-Léger, Le pélerin et le con-verti, Paris, Flammarion, 1999.

34. Roger Caillois, L'homme et le sacré, Paris, Gallimard, Idées, 1950, p. 124.35. Julio Caro Baroja, Le carnaval, Paris, Gallimard, 1979.36. lbid., pp. 77-83.37. Elias Canetti, Masse et puissance, Paris, Gallimard, 1966, pp. 17-20. [Ed.

bras. Massa e poder, São Paulo, Companhia das Letras, 1995.)38. Mikhail Bakhtine, L'oeuvre de François Rabelais et Ia culture populaire

du Moyen Âge et sous Ia Renaissance, Paris, Gallimard, 1970; Georges Minois,Histoire du rire et de Ia dérision, Paris, Fayard, 2000, pp. 135-243. [Ed. bras. A cul-

tura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de Françoise Rebelais.São Paulo/Brasília, Edunb/Hucitec, 1999.)

39. Paul Yonnet, Travail, loisir, op. cit., p. 200.40. Ibid., p. 214.41. Gérard Mermet, Francoscopie 1993,Paris, Larousse, 1992, p. 241.

9. SUPER-HOMEM: OBSESSÃO PELO DESEMPENHO,PRAZERES DOS SENTIDOS [pp, 260-305]

1.LucBoltanskie EveChiapello,Le nouvelesprit du capitalisme,Paris,Gal-limard, NRFEssais,1999.Pierre Veltz,Le nouveaumonde industriel, Paris, Galli-mard, 2000.

384 385

Page 194: A Felicidade Paradoxal

2. Alain 'Ehrenberg, Le eulte de Iaperformanee, Paris, Calmann-Lévy, 1991,pp. 13-9.

3. Entrevista com Jean Daniel, "L'irrésistible ascension du temps libre",Coleções do Nouvel Observateur, Ce qui ne sera jamais plus eomme avant, p. 6.

4. Sem dúvida, uma proporção não desprezível de pessoas vive mal a pas-sagem à aposentadoria. Em todo caso, a maioria se diz feliz por não estar maisobrigada ao trabalho.

5. Pesquisa LeMonde-Médias PA, "L'élite des grandes écoles est fatiguée':Le Monde, 23 de outubro de 1991.

6. Roger Sue, Temps et ordre social, Paris, PUF,1994, pp. 198-200.

7. Philippe Askenazy, Les désordres du travail. Enquête sur le nouveau pro-dUdivisme, Paris, Seuil, 2004.

8. Em 2002, quase um trabalhador europeu em três reconhecia ser afeta-

do pelo estresse no trabalho. Dez por cento dos assalariados sofrem de depres-são ou de ansiedade; 9% dos europeus declaram ter sido objeto de uma intimi-dação ou de um assédio moral no trabalho.

9. Christophe Dejours, Souffranee en Franee, Paris, Seuil, 1998. Jean-Pier-re Le Goff, "Que veut dire le harcelement mora!?", Le Débat, n~ 123e 124,2003.

10. Pesquisa Rebondir-Sofres, Rebondir, outubro de 2000.

11.Bernard Perret, L'avenir du travail, Paris, Seuil, 1995,pp. 179-80.12.Nicole Aubert, Le eulte de l'urgenee, Paris, Flammarion, 2003.13.Isabelle Queval, S'aeeomplir ou se dépasser. Essai sur le sport eontempo-

rain, Paris, Gallimard, 2004, pp. 229-30. Suzanne Laberge e Guy Thibault, "Do-page sportif: attitudes de jeunes athletes québécois et significations dans le con-texte d'une éthique postmoderne': Loisir et société, vol. 16, n2 2, 1993.

14. Stéphane Mandard, "Le dopage dans les salles de musculation est envoie de banalisation", Le Monde, 14de novembro de 2003.

15.Sobre esses efeitos e o esporte como doping, Isabelle Queval, op. cit.,PP.231-49.

16. Paul Yonnet, Systemes des sports, Paris, Gallimard, 1998, pp. 53-m.17.Nietzsche, La volonté de puissanee, T. 1., Paris, Gallimard. 1995,p. 230.18.La volonté de puissanee, op. cit., p. 234.

19.Citado por Luc Ferry, Homo aesthetieus, Paris, Grasset, 1990, p. 246.20. La volonté de puissanee, op. cit., p. 382.21. Jean-Jacques Courtine, "Les stakhanovistes du narcissisme': Commu-

nieations, n2 56, 1993.

22. Isabelle Queval, op. cit., pp. 12e 199.23.Em 2003,a França contava cerca de 20 milhões de adultos obesos ou

com sobrepeso. De 5%em 1980,a porcentagem de crianças com sobrepeso ouobesas passou a 16%em 2000. Segundo um relatório do Inserm apresentado

em 2005, a obesidade afeta, na França, 11% dos adultos e 4% das crianças, ouseja, uma duplicação em cinco anos. Na Europa, a prevalência de adultos comsobrepeso é estimada em 30%. Nos Estados Unidos, 50% da população está comsobrepeso; a taxa de obesidade passou de 11,8%em 1990 a 20,1% em 2000.

24. Alain Cotta, L'ivresseet Iaparesse,Paris, Fayard,1998,pp. 734-56.25.Alain Ehrenberg, op. cit., pp. 163-8.26. Élisabeth Tissier-Desbordes, "Le corps hypermoderne", in Nicole Au-

bert, L'individu hypermoderne, Paris, Eres, 2004.27. Paris, Balland, 1988.28. Citado por Petr Skrabanek, La fin de Ia médecine à visage humain, Pa-

ris, Odile Jacob, 1995, p. 44.29. Cf. Isabelle Queval, op. cit., pp. 255-65.30. Heidegger, Essais et eonferenees, Paris, Gallimard, 1958.31.Bernard Andrieu, Le eulte du eorps, Paris, L'Harmattan, 1994, pp. 147-9.32. David Le Breton, L'adieu du eorps, op. citoPaul Virilio, Cybermonde, Ia

politique du pire, Paris, Textuel, 1996.33.Anne Godignon e Jean-Louis Thiriet, "De Ia servitude volontaire. Ré-

flexions sur I'agir moderne", Le Débat, n2 59, março-abril de 1990, p. 150.34. Pascal Bruckner, L'euphorie perpétuelle, Paris, Grasset, 2000, p. 113.[Ed.

bras. A euforia perpétua, Rio de Janeiro, Difel, 2002.]35. Pascale Weil, A quoi rêvent les années 90, op. cito36. Jean-Claude Hagege, Séduire. Chimeres et réalités de Ia ehirurgie esthé-

tique, Paris, Albin Michel, 1993, pp. 83-99 e 158-62.37.Oconceitodearteizaçãoé desenvolvidoporAlainRoger,Courttraité

du paysage, Paris, Gallimard, 1997. Para pontos de vista paralelos ao da arteiza-ção do hiperconsumo, Yves Michaud, L'art à I'état gazeux. Essai sur le triomphede l'esthétique, Paris, Stock, 2003; François Ascher, Le mangeur hypermoderne,op. cit., pp. 205-39.

38. Retomo o título de um número da revista Esprit, julho-agosto de 1989.39. Sobre o processo reflexivoda modernidade avançada, Ulrich Beck,La

soeiété du risque, op. cit., 2001.40. Sobre esse ponto, Édouard Zarifian, Des paradis plein Ia tête, Paris,

Odile Jacob, 1994, pp. 193-219.41. Mais de uma família em duas, na França, possui ao menos um animal

de estimação. Contam-se, hoje, 56,5 milhões de animais domésticos.42.Helmut Schelsky,Sociologiede Ia sexualité,Paris,Gallimard, 1966,pp.

215-32.43.David Riesman,La foule solitaire,Paris,Arthaud, 1964,p. 208.44. Helmut Schelsky, op. cit., pp. 212e 203.45. André Béjin, "Le pouvoir des sexologues et Ia démocratie sexuelle", in

386 387

Page 195: A Felicidade Paradoxal

Sexualités occidentales (sob a direção de Philippe Aries e André Béjin), Paris,Seuil, Points, 1982, p. 227.

46. Pascal Bruckner e Alain Finkielkraut, Ie nouveau désordre amoureux,Paris, Seuil, 1977,p. 40.

47. Jean-Claude GuilIebaud, Ia tyrannie du plaisir, Paris, Seuil, 1998, pp.107-31.

48. Allan Bloom, L'amour et l'amitié, Paris, De FalIois, 1996, pp. 9-32.49. Tony AnatrelIa, Ie sexe oublié, Paris, Flammarion, Champs, 1990.50. Jean-Claude Kaufmann, Ia femme seule et le Prince charmant, Paris,

Nathan, 1999.

51. Serge Chaumier, La déliaison amoureuse. De Ia fusion romantique audésir d'indépendance, Paris, Armand Colin, 1999.

52. Les comportements sexuels en France, sob a direção de Alfred Spíra, Pa-ris, La Documentation Française, 1993,p. 145.

53.Michel Bozon, "Le désir peut-il durer?'; Panoramiques, nQ34, 1998,p. 49.54. Hughes Lagrange, Les adolescents, le sexe, l'amour, Paris, Syros, 1999,

pp. 160 e 177-8.

55. Roland Barthes, Fragments d'un discours amoureux, Paris, Seuil, 1977,pp. 207-11. [Ed. bras. Fragmentos de um discurso amoroso, São Paulo, MartinsFontes, 2003.]

56. Edward Shorter, Naissance de Iafamille moderne, Paris, Seuil, 1977,pp.175-8; Jean-Louis Flandrin, Les amours paysannes. XVIe-XIxe siecle, Paris, Gal-limard, 1993,pp. 243-6.

57. Les comportements sexuels en France, op. cit., p. 185.Sobre os confiden-tes, cf. p. 173.

58. O que escreve Maureen Dowd a respeito do Viagra é eloqüente: "Mi-nhas companheiras antes desejam uma pílula que mude o comportamento dohomem uma hora depois do amor, uma pílula que faça com que ele telefone namanhã seguinte, por exemplo", citado por Sylvie Kauffmann, "Viagra, Ia pilulequi ne change pas l'homme apres l'amour", Le Monde, 2 de maio de 1998.

59.Ver especialmente Jean Bottéro, "Tout commence à Babylone'; in Amouret sexualité en Occident, Paris, Seuil, Points, 1991,pp. 23-5; Robert Van Gulik, Iavie sexuelle dans Ia Chine ancienne, Paris, GalIimard, 1971,p. 180; Jean-Noel Ro-bert, Éros romain, Paris, Hachette, 1998, pp. 260-1; John BosweIl, Christianisme,tolérance sociale et homosexualité, Paris, GaIlimard, 1985,p. 115;Alain Corbin, "Lapetite Bible des jeunes époux'; in Amour et sexualité en Occident, op. cit., p. 239.

60. GilIes Lipovetsky, Ia troisieme femme, Paris, GaIlimard, NRFEssais,1997, pp. 57-62. [Ed. bras. A terceira mulher, São Paulo, Companhia das Letras,2000.]

61.Os romances de Michel HouelIebecq dão-lhe a mais contundente ilus-

tração.62. Allan Bloom, op. cit., p. 16.63. Les comportements sexuels en France, op. cit., p. 157;Nathalie Bajos, Mi-

chel Bozon, Alexis Ferrand, Alain Giami, Alfred Spira, La sexualité au temps du

sida, Paris, PUF,1998.64. Nos anos 1940, o relatório Kinsey assinalava que a duração média das

preliminares se situava em torno de doze minutos. O coito tinha uma duraçãomédia de dois minutos. Cf. Edward Shorter, op. cit., pp. 307-8.

65. Les comportements sexuels en France, op. cit., p. 201;Michel Bozon, art.cit., p. 48.

66. Ibid., pp. 165-6.67. Michel Bozon, art. cit., p. 48.

10. NtMESIS: SUPEREXPOSIÇÃO DA FELICIDADE,

REGRESSÃO DA INVEJA [pp. 306-32]

1. La Rochefoucauld, Máxima 27.2. Daniel BelI, Les contradictions culturelles du capitalisme, op. cit., p. 33,

nota 23.3. Helmut Schoeck, L'envie. Une histoire du mal, Paris, Les BelIes Lettres,

1995, p. 155.

4. Robert Nozick, Anarchie, État et utopie, Paris, PUF,1988, pp. 294-302.5. René Girard, Mensonge romantique et vérité romanesque, Paris, Grasset,

1961;Des choses cachées depuis da fondation du monde, Paris, Grasset, 1978.6. Raymond Boudon, Effet pervers et ordre social, Paris, PUF,1979,pp. 131-55.7. Jean-Pierre Dupuy, Libéralisme et justice sociale, Paris, Hachette, Plu-

riel, 1997, p. 60.8. Helmut Schoeck, op. cit., p. 8.9. Citado por Helmut Schoeck, ibid., p. 76.10. Helmut Schoeck, ibid., pp. 57-67.11.Sobre todos esses aspectos, as magníficas análises de E. E. Evans-Prit-

chard, Sorcellerie,oracleset magie chezlesAzandé, Paris,Gallimard,1972,pp. 96-154.[Ed.bras. Bruxaria, oráculosemagia entre osAzande, Rio de Janeiro, JorgeZahar, 2004.]

12. George M. Foster, "The anatomy of envy: a study in symbolic beha-vior", Current Anthropology, vol. 13, nQ 2, abril de 1972.

388 389

Page 196: A Felicidade Paradoxal

13.George M. Foster, "Peasant society and the image of limited good",American Anthropologist, vol. 67, n!!2, abril de 1965.

14.Evans-Pritchard, Op.cit., PP.137-8 e 144-5.

15. John Berger, Ways of seeing, Londres, British Broadcasting Corpora-tion/Penguin Books, 1972,pp. 131-48.

16. Daniel Bell, op. cit., p. 33.17.Lucrécio, De Ia nature, Livro 11,v. 1-14.

18.Max Weber, "Le métier et Ia vocation de savant': in Le savant et le poli-tique, Paris, UGE,1959, p. 70.

19. Louis Dumont, Romo aequalis, Paris, Gallimard, 1977; Paul Dumou-chel, "L'ambivalence de Ia rareté", in Paul Dumouchel e Jean-Pierre Dupuy, L'en-fer des choses,Paris, Seuil, 1979,pp. 139-51.

20. Helmut Schoeck, op. cit., pp. 20 e 51.21.Helmut Schoeck, op. cit., p. 77.

22. Hélene Riffault, Les valeurs des Français, Paris, PUF,1994, p. 31.23. Jean Stoetzel, Les valeurs du temps présent: une enquête européenne, Pa-

ris, PUF,1983,pp. 22 e 189;Hélene Riffault, op. cit., p. 30.24. Antony Giddens, Les conséquences de Ia modernité, op. cit., pp. 85-98.25.As taxas de participação em redes formais ou informais variam segun-

do os países, mas são por vezes muito elevadas. Um único exemplo: em 1992,92% dos suecos adultos pertenciam ao menos a uma organização voluntária.

26. Hélene Riffault, op. cit., p. 31.27. Ronald Inglehart, La transition culturelle dans les sociétés industrielles

avancées, Paris, Economica, 1993,pp. 39-47.

28. Tocqueville, De Ia démocratie en Amérique, Paris, Gallimard, 1961,t. I,vol. 11, p. 14.

29. Tocqueville, ibid., p. 144.

30. René Girard, Mensonge romantique et vérité romanesque, op. cit., pp.138-62.

31.David Potter, People of plenty. Economic abundance and the Americancharacter, Chicago, University of Chicago, 1954.

32.Vance Packard, Les obsédés du standing, op. cit., pp. 284-5.33. Paul Dumouchel, Jean-Pierre Dupuy, L'enfer des choses, op. cito34. Sobre esse ponto, Raymond Boudon, op. cit., pp. 152-5.35. Thorstein Veblen, Théorie de Ia classede loisir, op. cit., pp. 23-4.36. Gilles Lipovetsky, "Luxe éternel, luxe émotionnel': in Gilles Lipovetsky

e Élyette Roux, Le luxe éternel, Paris, Gallimard, 2003. [Ed. bras. O luxo eterno,São Paulo, Companhia das Letras, 2005.]

37. Essa distinção conceitual é desenvolvida por John Rawls, Théorie de Iajustice, Paris, Seuil, 1987,p. 574.

38. Mareei Gauchet, La démocratie contre elle-même, Paris, Gallimard,2002, pp. 230-5.

39. Edward N. Luttwak, Le turbo-capitalisme, op. cit., pp. 39-49.40. Edward N. Luttwak, ibid., p. 45.41. Descartes, Les passions de l'âme, art. 184.42. Citado por Helmut Schoeck, op. cit., p. 230.43. Ruth Benedict, Le chrysantheme et le sabre, Paris, Philippe Picquier,

"Piquier Poche", 1995. [Ed. bras. O crisântemo e a espada, São Paulo, Perspecti-va, 2002.] Sobre o ressentimento e a culpabilidade na história, Nietzsche, La gé-néalogie de Ia morale, li e 2i dissertação. [Ed. bras. Genealogia da moral, SãoPaulo, Companhia das Letras, 1998.]

11. ROMO FELIX: GRANDEZA E MISÉRIA

DE UMA UTOPIA [pp. 333-70]

1.Nietzsche, Ainsi parlait Zarathoustra, Prólogo 5. [Ed. bras. Assim falouZaratustra,São Paulo,Martin Claret, 2002.]

2.Voltaire, "Lettre à Madame Ia Présidente de Berniere" (1722), citado porRobert Mauzi, L'idée du bonheur dans Ia littérature et Ia pensée françaises auxvme siecle, op. cit., p. 80.

3. Paul Hazard, La pensée européenne au XVIIle siecle, Paris, Fayard, 1963,pp. 23-34.

4. André Corvisier, Arts et sociétés dans /'Europe du XVIIle siecle, Paris,PUF,1978;Alphonse Dupront, Qu'est-ce que les Lumieres?, Paris, Gallimard, Fo-lio, 1996, pp. 278-322; Jean Starobinski, L'invention de Ia liberté 1770-1789,Gene-bra, Skira, 1964.

5. Claude-Henri de Saint-Simon, De Ia réorganisation de Ia société euro-

péenne (1814), citado por Pierre-André Taguieff, Du progres, Paris, Librio, 2001,P.76.

6. Jean Baudrillard, "L'Amérique ou Ia pensée de l'espace", in Citoyennetéet urbanité, Paris, Esprit, 1991,p. 156.

7. Krysztof Pomian, "La crise de I'avenir", Le Débat, n!! 7, dezembro de1980; Pierre-André Taguieff, L'effacement de I'avenir, Paris, Galilée, 2000.

8. Pascal Bruckner, L'euphorie perpétuelle, op. cito9. lbid., p. 17.10. André Comte-Sponville, Le mythe d'Icare. Traité du désespoir et de Ia

béatitude, Paris, PUF,1988, p. 22.11.Relatório sobre o estado dos ecossistemas do planeta, ver Hervé Kempf

390 391

Page 197: A Felicidade Paradoxal

e Philippe Pons, "L'épuisement da Ia nature menace le progres': Le Monde, 12deabril de 2005.

12.Jean-Marc Jancovici, "Climat, énergie: les impasses du futur", Le Débat,n2 130, 2004. Sobre os que contribuem para as emissões de cOz, Hervé de Treute Jean-Marc Jancovici,L'effetdeserre,Paris, Flammarion, 2004,pp. 139-62.

13.Hans Jonas,Leprincipe responsabilité,Paris, Cerf,1990,p. 253.14.Michel Godet, Le chocde2006.Démographie, croissance,emploi, Paris,

Odile Jacob, 2004, p. 297.15.SergeLatouche,Survivreau développement,Paris, Fayard,2005.16. Ibid., p. 95.17.Raymond Ruyer,Élogede Ia sociétédeconsommation,Paris,Calmann-

Lévy, 1969, p. 91.

18.Edgar Morin, L'esprit du temps, op. cit., pp. 171-9.19. Edgar Morin, Sociologie, Paris, Fayard, 1984; Seuil, Points Essais, 1994,

p. 333; David Riesman, L'abondance, à quoi bon?, Paris, Laffont, 1969, p. 359.20. Gilles Lipovetsky, "Changer Ia vie ou l'irruption de l'individualisme

transpolitique': Pouvoirs, n2 39, 1986.

21. Marilyn Ferguson, Les enfants du Verseau, Paris, Calmann-Lévy, 1981.

22. Jean Vernette, Nouvelles spiritualités et nouvelles sagesses,Paris, Bayard,1999; Françoise Champion, "Thérapies et nouvelles spiritualités", Sciences hu-maines, n2 106, junho de 2000; Luc Ferry, L'homme-Dieu ou le sens de Ia vie, Pa-ris, Grasset, 1996.

23. Pierre Hadot, Études de philosophie ancienne, Paris, Les Belles Lettres,1998, e Qu'est-ce que Ia philosophie antique?, Paris, Gallimard, Folio Essais, 1995.

24. Françoise Champion e Louis Hourman, "Nouveaux mouvements re-ligieux et sectes",in Françoise Champion eMartine Cohen, Secteset démocra-tie, Paris,Seuil,1999,p. 85.

25.Retomo aqui a leitura muito convincente de Tzvetan Todorov,Lejar-din imparfait, Paris,Grasset, 1998,em particular pp. 294-6. [Ed.bras. O jardimimperfeito, SãoPaulo,Edusp, 2005.]

26. "Um pensamento vem quando 'ele' quer e não quando 'eu' quero",Nietzsche, Par-delà le bien et le mal, I, 17. [Ed. bras. Além do bem edo mal, SãoPaulo, Companhia das Letras, 1992.]

27.PaulValéry,Regardssur lemondeactuel,Paris,Gallimard, Folio Essais,2002, p. 211.

28. Dany-Robert Dufour, Patrick Berthier, "Vers un nouveau nihilisme?':Le Débat, n2 123, janeiro-fevereiro de 2003.

29. Alain Finkielkraut, La défaite de Ia pensée, Paris, Gallimard, 1987;Jean-François Mattéi, La barbarie intérieure, Paris, PUF, 1999.

30. Michel Henry, La barbarie, Paris, Grasset, Le Livre de Poche, 1987,p. 158.

31.Bernard Stiegler, Mécréance et discrédit, Paris, Galilée, 2004.32.Thierry de Duve,Au nom de l'art, Paris,Minuit, 1989,pp. 107-44.33. Paul Valéry, "Notion générale de I'art", Oeuvres, Paris, Gallimard, Bi-

bliotheque de Ia Pléiade, tomo I, p. 1406.34. SylvieMesure eAlain Renaut, La guerre desdieux. Essaissur Ia querelle

desvaleurs,Paris,Grasset, 1996,p. 139.35.George Steiner, Dans le château deBarbe-Bleue.Notespour une redéfi-

nition de Ia culture, Paris, Seui!,1973.36.Cornelius Castoriadis, La montéede l'insignifiance, Paris,Seuil, 1996.37.Philippe Muray,Apres l'histoire, lI, op. cito38.Charles Melman, L'homme sansgravité. Jouir à tout prix, Paris, Galli-

mard, 2005, p. 138.39.Zygmunt Bauman, Le cout humain de Ia mondialisation, Paris,Hachet-

te, 1999, p. 132.40. David Brooks, Lesbobos,Paris, Le Livre de Poche, 2000.41.David LeBreton, Passionsdu risque,Paris, Métailié, 1991.42.Marcel Gauchet, La démocratie contre elle-même,op. cit.,pp. 144-5.

392 393

J

Page 198: A Felicidade Paradoxal

rÍndice remissivo

Abecassis-Moedas, Céline, 376n

abundância (sociedade de), 15, 17, 20,

23,32,35,38,153,155,157,158,184,

189,190,207,210,211,227,228,232,

234,237,254,286,335,340,341

Ades, Jean, 382n

Adrià, Ferran, 236

Aiach, Pierre, 384n

Albert-Llorca, Marlene, 385n

Allen, Woody (Allen Stewart Konigs-

berg, dito), 149

Alphandery, Pierre, 379n

amor, 19, 44, 60, 120, 131, 142, 147, 187,

189,206,224,225,242,245,246,261, 273, 291, 293, 294, 296, 304,336, 348,364, 380n,388n

Anatrella, Tony, 388nAndréani, Jean-Claude, 376nAndrieu, Bernard, 373n, 387nansiedade, estresse, 16, 49, 50, 55, 56,

57,149,164,165,169,170,176,199,

201,238,241,268,293,301,302,318,

332,336,351,386n

Aragon, Louis, 17Aristóteles, 18

Artaud, Antonin, 214

Ascher, François, 380n, 384n, 387n

Askenazy, Philippe, 386nAubert, Nicole, 373n, 378n, 386n, 387n

Augé, Marc, 378n

autenticidade, 14, 63, 65, 306, 348

autonomia individual, independên-cia (aspiração à), 52, 55,99,102,124,198,222,225,361

Babayou, Patrick, 384nBacon, Francis, 334Badot, Olivier, 374nBajos, Nathalie, 389nBakhtin, Mikhail, 385nBarber, Benjamin R., 172,38ln, 382nBarthes, Roland, 295, 388nBaudelaire, Charles, 237, 384n

395

Page 199: A Felicidade Paradoxal

Baudrillard, Jean, 61, 138, 209, 372n,373n, 377n, 379n, 380n, 39ln

Bauman, Zygmunt, 393nBeck, Ulrich, 379n, 387nBeineix, Jean-Jacques, 117Béjin, André, 387n, 388nbeleza, 57, 84, 172, 176, 221, 233, 240,

260,261,279,284,286,328,357Bell, Daniel, 207, 308, 313,324, 375n,

383n, 389n, 390nBellanger, François, 378nbem-estar, maior bem-estar (ideal

de), 11, 14, 15, 16, 17, 19, 24, 40, 43,

45,46,58,70,102,106,113,116,117,

121,125,132,133,141,142,143,149,

153,155,156,158, 160, 164, 166, 169,

181,187, 198, 200, 202, 203, 204,

216,217,219,220,221,222,223,226,

227, 228, 229, 230, 232, 239, 251,

266,269,270,274,277,281,282,

283,285,286,289,290,298,299,

323,324,334,360,363,364,365,368

Bénavent, Christophe, 374nBenedict, Ruth, 39ln

Benhamou, Françoise, 376n

Berger, John, 312, 390nBerthier, Patrick, 392

Bitoun, Pierre, 379n

Bloch, Alain, 376n

Bloom, Allan, 301, 388n, 389n

Boltanski, Luc, 385n

Boswell, John, 388n

Bottéro, Jean, 388n

Boudon, Raymond, 308, 389n, 390nBourdieu, Pierre, 115,372n, 373n, 378n,

382nBourdin, Alain, 384n

Bozon, Michel, 388n, 389n

Breton, Philippe, 380n, 384nBrooks, David, 393n

396

Bruckner, Pascal, 337,387n, 388n, 39lnBrun, 207, 383nBrune, François, 172Burgel, Guy, 383n

Condorcet, Marie Jean Antoine Ca-ritat, marquês de, 334

consumismo, 12,75, 104, 129,133,134,135,136,142,155,181,210,291,327,341,345,365,370

Cooper, Robert, 375nCorbeau, Jean-Pierre, 384nCorbin, Alain, 388ncorpo (relação com), 52, 54, 56, 58,

122,153,176,210,224,227,228,229,230, 237, 239, 258, 264, 276, 279,282, 283, 286, 299,349; otimiza-ção, melhoramento do, 52, 55,56,125,155,176,206,227,239,272,274,275,276,277,278,280,285

Corvisier, André, 39lnCorvol, Pierre, 384nCotta, Alain, 387nCourtine, Jean- Jacques, 386nCova, Bernard, 373n, 374nCova, Véronique, 373nCox, Harvey, 383ncrise subjetiva e relacional, mal-es-

tar, 60, 149, 156, 169, 195, 202, 204,

205,261,268,269,289,290,300,337

Caillois, Roger, 73, 256, 374n, 385nCalvino, 330Canetti, Elias, 258, 385ncapitalismo de consumo, 11,12,24, 26,

28,76,131,142,309,317,335,354,367, 371n

Caro Baroja, Julio, 385nCarré, Patrice, 37lnCastel, Robert, 100, 376n, 383nCastoriadis, Cornellius, 393nCauquelin, Anne, 38lnChampion, Françoise, 379n, 392nChandler, Alfred D., 37lnCharles, Sébastien, 378n, 384nChateaubriand, François René, vis-

conde de, 322Chaumier, Serge, 388nCheneaux, Jean, 378nChiapello, Eve, 385nCluzet, Alain, 383nCohen, Daniel, 382nCohen, Martine, 379n, 392n

competição, concorrência interindi-vidual, 39, 42, 44, 58, 76, 90, 92,

93, 94, 95, 135, 154, 181, 183, 227,

260,261,264,268,272,279,280,

281,287,289,304,323

Comte-Sponville, André, 391n

comunicação, 12, 14, 17, 24, 27, 41, 43,

46,52,58,61,68,77,81,92,93,94,

95, 96, 111, 113, 123, 125, 144, 145,

155,165,170,172,175,177,182,183,

189,219,227, 228, 247, 250, 279,

282,298,299,336,343

Daniel, Jean, 386nDaraki, Maria, 383nDavie, Grace, 385nDebord, Guy, 69, 164, 172,374n, 379n,

380nDejours, Christophe, 386nDel Volgo, Marie- José, 373nDelanoe, Daniel, 384nDelmas, Philippe, 375nDescartes, René, 331,334, 391ndesenvolvimento pessoal, realização

de si, 15, 132, 255, 264, 337, 348, 352,

363,368

Diana, princesa ver Spencer, DianaDichter, Ernest, 39, 372nDion, Céline, 294Domenach, Jean-Marie, 382nDonnat, Olivier, 373n, 380n, 384nDowd, Maureen, 388nDubet, François, 383nDufour, Dany-Robert, 392nDumazedier, Joffre, 265Dumont, Louis, 390nDumouchel, Paul, 324, 390nDupont, Yves, 379nDupront, Alphonse, 39lnDupuis, Marc, 374nDupuy, Jean-Pierre, 308, 324, 389n,

390nDurkheim, Émile, 204, 383nDuve, Thierry de, 393n

Ehrenberg, Alain, 383n, 386n, ;387nEllis, Bret Easton, 372nemoção, emocional, 38, 41, 45, 46, 47,

53,63,67,69,70,71,74,84,94,96,97,119,133,146,147,163,166,170,

181,182,219,229,231,232,236,251,

254,255,272,274,276,285,291,297,

299,325,327,350,351,364,372~Epicuro, 350

Erkman, Suren, 379n

erotismo, pornografia, 40, 207, 244,

247,286,293,307,327

espetáculo, espetacular, 17, 36, 42, 46,

63, 64, 65, 69, 75, 96, 101, 120, 144,

172,175,180,181, 183, 209, 210, 212,

214,237,252,274,275,279,307,312,

313,315,319,328, 329,335, 365, 380n

espiritualidade (busca de), 15, 24, 131,

132, 135, 351, 352, 353, 38ln

ética, responsabilização (consumo

397

Page 200: A Felicidade Paradoxal

e), 114,133,234, 237,344,354,358,359, 361, 366

Eurípides, 211Evans-Pritchard, Edward Evan, 389n,

390nEvrard,Yves,374nEwen, Stuart, 38ln

felicidade mercantil, consumista, 157,171,194,195,340,348,369

felicidade privada, 39, 102, 155, 162,255,331

Ferguson, Marilyn, 392nFerrand, Alexis, 389nFerry, Luc, 386n, 392nFink, Eugen, 375n. Finkielkraut, Alain, 388n, 392nFischler, Claude, 378n, 384nFlandrin, Jean-Louis, 388nFolscheid, Dominique, 384nFord, Henry, 12, 25, 27, 32, 33, 34, 76,

77,78, 81, 83, 86,130, 263, 375n

Foster, George M., 311,389n, 390nFourastié, Jean, 200, 383nFreud, Sigmund, 16, 67, 149, 374n

Galbraith, John Kenneth, 172, 377n,38ln

Gauchet, Mareei, 379n, 380n, 39ln,393n

Gerbner, George, 195Giami, Alain, 389nGiddens, Antony, 321,379n, 390nGilmore, James, 373nGirard, René, 308, 324, 389n, 390nGodet, Michel, 392nGodignon, Anne, 374n, 387nGori, Roland, 373nGoubert, Jean-Pierre, 371nGréau, Jean-Luc, 382n

l398

Guillebaud, Jean-Claude, 388nGwiazdzinski, Luc, 378n

Hirschman, Elizabeth, 374nHoggart, Richard, 378n, 384nHolbrook, Morris, 374nHouellebecq, Michel, 304, 389nHourman, Louis, 392n

Hadot, Pierre, 392nHaegel, Florence, 385nHagege, Jean-Claude, 285, 387nHalberstam, David, 377nHampartzoumian, Stéphane, 385nHanon, Bernard, 79Hazard, Paul, 39lnhedonismo, 11,35,40,49,64,67,7°,

73,102,122,131,134,142,153,154,

209, 211, 214, 235, 241, 244, 245,

266,269,275,282,284,292,294,3°5,361,367,369

Hegel, Friedrich, 334

Heidegger, Martin, 281, 387nHenry, Michel, 355, 393n

Hervieu-Léger, Daniele, 379n, 38ln,385n

hiperconsumo (sociedade de), 12, 13,16,17,18,19,20,21,25,41,42,43,44,48,49,51,53,54,57,66,67,69,7°,74,76,77,82,93,94,96,97,1°5,106, 108, 110,113,115,118,119,122,123, 128, 129, 130, 132, 133, 139, 141,

142,145,146,148,149,158,163,164,170,172,179,181,189,190,191,192,197, 199, 200, 204, 205, 211, 217,220,234,236,241,243,244,248,249,254,265,266,267,268,269,271,276, 278, 279, 283, 286, 287,290,291,296, 297,3°7,3°8,315,318,320,324,325,326,328,331,336,339,341,342,343,344,345,346,347,349,356,357,358,360,362,363,364,365,366,367,368,370,380n,387n

Hirschman, Albert, 161,162,165,379n,38ln

individualização: e comunitarização,118, 119, 211; e política, 14, 31, 45,77,78,92,101,1°9,129,135,14°,

155,156,174,193,306,3°7,321,328,

330,345,346,360, 375n; e religião,11, 14, 45, 54, 60, 131, 132, 133, 212,

216,217,264,266,270,335

Inglehart, Ronald, 380n, 390ninsatisfação, frustração, 17, 154, 156,

157,158,160,163,164,168,169,171,

172,173,176,178,184,185,188,193,197,198, 200, 300, 301, 329, 381n

Jancovici, Jean-Marc, 392n

Jonas, Hans, 392n

Jordan, Michael, 183

Kanter, Donald 1., 380nKapferer, Jean-Noel, 376nKatona, George, 376n, 377nKaufmann, Jean-Claude, 388nKaufmann, Sylvie, 388nKempf, Hervé, 392nKende, Pierre, 382nKinsey, Alfred, 389nKlein, Naomi, 376n, 382nKleinschmidt, Elko, 375nKowinski, William Severini, 374n

La Rochefoucauld, François, duquede, 389n

Laberge,Suzanne,386nLagrange,Hughes, 383n,385n,388nLaidi,Zaki, 378n

Lambert, Yves, 379n

Latouche, Serge, 392nLazar, Judith, 383n

lazer(es), 11, 16, 17, 33, 35, 36, 39, 41, 42,

45,48,61,62,63,64,65,66,68,71,74, 75, 94, 100, 102, 103, 113,125,126,131,144,145,153,156,161,173,180,187,192,193,194,209,210,211,212,213,216,222,253,254,256,261,265, 266, 275, 276, 277, 279, 335,336,343,346,351,357,363,364,368,373n, 375n, 377n, 380n

Le Breton, David, 373n, 384n, 387n,393n

Le Goff, Jean-Pierre, 386nLe Goff, Olivier, 384nLe Pape, Annick, 383nLe Wita, Béatrix, 225,384nLeach, William, 37lnLeconte, Thérese, 383nLeduc, Robert, 382nLefebvre, Henri, 172,372n, 379n, 38lnLejoyeux, Michel, 382nLepeyronnie, Didier, 383nLévi-Strauss, Claude, 71,374nLipovetsky, Gilles, 372n, 376n, 377n,

378n, 382n, 384n, 388n, 390n, 392nLogau, Friedrich, 331Lucrécio, 315,390nLuttwak, Edward N., 330, 378n, 39ln

Mabilon-Bonfils, Béatrice, 385nMaffesoli, Michel, 383nMaidique, M. A., 376nManceau, Delphine, 376nMandard, Stéphane, 386nmarcas, 14, 23, 24, 29, 45, 46, 47, 48,

49,50,73,77,81,87,92,93,94,97,107,114,116,121,123,138,142,173,175,176,177,181,182,183,185,215,

399

Page 201: A Felicidade Paradoxal

229,279,284,324,325,327,328,344, 362

Marcuse, Herbert, 137,172,379nmarketing, comunicação, 12, 14, 15,

26,28,29,31,34,45,47,62,67,77,79, 81, 82, 84, 86, 89, 93, 108, 110,122,123,175,177,182,183,252,358,37ln, 374n, 375n

Marx, Karl, 85Marzloff, Bruno, 378nMattéi, Jean-François, 392nMauzi, Robert, 374n, 39lnMelman, Charles, 393nMendras, Henri, 376nMermet, Gérard, 373n, 384n, 385nMesure, Sylvie, 393nMichaud, Yves, 387nmídias, 36,39, 50, 139, 146, 148, 163,

167,175,177,193,235,272,279,3°2,312,314,315,321,336,35°,355

Miller, Michael B., 37lnMillet, Catherine:, 245Minois, Georges, 385nMirvis, Philip H., 380nMoati, Philippe, 37ln, 375n, 376nMorin, Edgar, 103,377n, 392nMuray, Philippe, 71, 252, 374n, 380n,

393n

necessidades (multiplicação e mer-cantilização das), 11,12, 18, 20, 24,

25,36,38,39, 41, 58, 59, 61, 63, 68,

69,71,78,79,82,83,92,94,100,

111, 123, 127, 128, 130, 136, 139, 140,

148,153,154,157,171,172,176,180,

183,184,185,186,187,19°,232,267,

289,299,343,346,347,348,361,

366,368, 379n

Nietzsche, Friedrich, 143, 188, 274, 275,

400

309,315,322,333,339, 380n, 386n,

39ln, 392n

Nora, Pierre, 253, 385n

Nozick, Robert, 308, 389n

qualidade de vida, 14, 24, 41, 42, 48,51, 57.. 121, 126, 137, 142, 220, 221,

232,269,270,271,29°,300,327,

328, 345, 384n

Queval, Isabelle, 386n, 387nOrtega y Gasset, José, 143,380nOrwell, George (Eric Blair, dito), 177 Rabelais, François, 385n

Rawls, John, 308, 390nRaynaud, Philippe, 379nreconhecimento (busca de), 38,47,

143,169,188,189,192,246,248,255,269,270,291

reflexividade do indivíduo, do con-sumidor, 138, 139, 140, 200, 202,234,241,295,345,359

Reich, Wilhelm, 214Renard, Jules, 308Renaut, Alain, 393nRiesman, David, 387n, 392nRiffault, Hélene, 390nRifkin, Jeremy, 373n, 375n, 380nRiou, Nicolas, 376n, 382nRioux, Jean-Pierre, 377nRitzer, George, 374nRobert, Jean-Noel, 388nRoché, Sébastien, 380nRochefort, Robert, 98, 99, 376n, 378nRoger, Alain, 387nRosanvallon, Pierre, 375n, 379nRoszak, Theodore, 207, 383nRousseau, Jean-Jacques, 157,352Roux, Élyette, 376n, 390nRuyer, Raymond, 392n

Packard, Vance, 40, 324, 371n, 372n,376n, 377n, 384n, 390n

Pascal, Blaise, 188,370Paugam, Serge, 383nPerec, Georges, 24,196Perret, Bernard, 386nPhillips, Wendell, 280Pine, Joseph, 373n, 374nPomian, Krysztof, 39lnPons, Philippe, 392nPostel- Vinay, Nicolas, 384nPotter, David, 110,323,390nPoulain, Jean-Pierre, 384nprazer, 16, 31,39, 47, 48, 49, 61, 63, 64,

65,66,67,68,71,72,73,74,83,84,100, 112,120, 131,153,154,156,159,160,161,162,163,164,166,178,184,185,216,220,223,224,231,235,236,237, 247, 254, 256, 257, 267, 275,276, 282, 283, 284, 285, 286, 291,292,293,299,300,301,302,303,315, 316, 326, 353,362, 366,374n

prevenção, desejo de segurança, 24,49,52,53,55,92,126,138,142,143,

149,167, 202, 222, 223, 226, 227,

229,233,234,239,240,257, 267,

280,287,296

publicidade, 12, 29, 30, 31, 36, 40, 46,67,81,95,96,119,122,124,130,131,

137,141,142,158,168,171,172,173,

174,175,176,177,178,180,181,182,

183,195, 280,312,313, 382n

Saint- Just, Louis Antoine, 156

Saint-Simon, Claude-Henri de Rou-vroy, conde de, 39ln

saúde, 14, 41, 42, 43, 53, 54, 55, 58, 121,125,126,137,142,149,161,167,172,209, 226, 233, 234, 235, 238, 239,

240,241,257,260,261,269,273,

277,278,280,281,284,287,288,

311, 334, 336, 351, 352, 360, 373 nSaunders, Clarence, 377nScardigli, Victo, 373nSchelsky, Helmut, 387nSchlegel, Jean-Louis, 379nSchoeck, Helmut, 308, 329, 389n,

390n>39lnSchumpeter, Joseph, 85Scitovsky, Tibor, 158, 159, 160, 164,

38ln,384nSegalen, Martine, 225,384nsegmentação dos mercados, diversi-

ficação da oferta, 12, 14, 25,34,41,

78,79, 8o, 81, 82, 122, 345, 375n

Sêneca,350sexo, sexualidade, 57, 117,135,207, 238,

241,242,243,245,246,248,260,261, 291, 292, 293, 294, 295, 296,297,298,299,300,3°1,302,303,304,3°5,307,351

Seze, Claudette, 384nSfez, Lucien, 373nShorter, Edward, 388n, 389nSirinelli, Jean-François, 377nSkrabanek, Petr, 387nSloan, Alfred P., 78Smith, Adam, 315Sohn, Anne-Marie, 377n

Spencer, Diana, 385nSpencer, Herbert, 334Spira, Alfred, 385n, 389nStarobinski, Jean, 39lnSteiner, George, 393nStendhal (Henry Beyle, dito), 322,330Stiegler, Bernard, 355,378n, 393nStoetzel, Jean, 390nStrasser, Suzan, 37lnSue, Roger, 386n

401

Page 202: A Felicidade Paradoxal

Taguieff, Pierre-André, 39lnTaylor, Frederick Winslow, 33, 78, 90,

264tecnologias da informação e da co-

municação, 24, lU, 219,227Tedlow, Richard S., 81,37ln, 375nThibault, Guy, 386nThil, Étienne, 377nThiriet, Jean-Louis., 387nTissier-Desbordes, Élisabeth, 387nTocqueville, Charles Alexis Clérel de,

58, 214,309,322, 390nTodorov, Tzvetan, 392nToffler, Alvin, 373n, 374nToscani, Oliviero,382nTournes, Ludovic, 378nTreut, Hervé de, 392nTurgot, Anne Robert Jacques, barão

de, 334Turpin, Dominique, 375n, 377n

Valéry, Paul, 392n, 393nVan Gulik, Robert, 388n

402

Vaneigem, Raoul, 70, 374nVeblen, Thorstein, 38, 39, 47, 48, 326,

372n,390nVeltz, Pierre, 376n, 385nVernette, Jean, 392nViard, Jean, 373nVirilio, Paul, 229, 387nVolatier, Jean-Luc, 384nVoltaire (François Marie Arouet, di-

to), 333,39ln

Warhol, Andy, 375nWeber, Max, 390nWeil, Pascale, 373n, 387nWelzer-Lang, Daniel, 385nWolf, Éric, 310Wolf, Michael, 373n

Yonnet, Paul, 65, 259, 274, 372n, 374n,385n,386n

Zarifian, Édouard, 373n, 387nZirger,B.J.,376n