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s gregos e os romanos usavam o termo Candaces como nome próprio para designar as rainhas africanas com as quais estabele- ciam relações políticas. O título foi comum a todas as 14 rainhas que governaram o Império Méroe, na Antigüidade, região da atual Etiópia. Subvertendo a lógica da dominação destinada às mulheres desde os tempos antigos, as Candaces sim- bolizam o poder feminino, não só de procriar, mas de lutar por seu território e por sua cultura, conquistan- do respeito, espaço e também prosperidade. Na história da África ancestral encontra-se a referência para as “guerreiras” negras contem- porâneas brasileiras, as “Candaces do século XXI”, que muitos consideram autênticas heroínas por sobreviver e defender seus filhos, sua família e sua comunidade. Defender-se do dia a dia, da desigual- dade no tratamento da mídia, do álcool – “muleta” sentimental que “substitui” a falta de quase tudo, do tráfico potencialmente aliciador, dos desvios da polícia e da política discriminatória. Famosas ou anônimas, elas não vivem nenhum grande drama, além de serem mulheres e negras num país que se o rgulha de ser miscigenado, porém repleto de desigualdades e preconceitos. Segundo o estudo Retratos da desigualdade realiza- do pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em setembro de 2006, a mulher negra de nossos dias ocupa o último lugar da hierarquia social brasileira, tendo os piores postos de trabalho Julho/Dezembro 2006 60 A força da mulher negra BRUNA DE FRIAS, FERNANDA NOVAES E JOYCE SANTOS O reflexo do espírito guerreiro das Candaces, rainhas da África ancestral, na mulher negra brasileira de hoje Cena da peça Candaces, a reconstrução do fogo Divulgação

A força da mulher negrapuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/16%20-%20a%20for%E7a%20da%20… · M é roe, na Antigüidade, região da atual Etiópia. S u b v e rtendo a lógica da

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s gregos e os romanos usavam o term oCandaces como nome próprio para designaras rainhas africanas com as quais estabele-ciam relações políticas. O título foi comum a

todas as 14 rainhas que governaram o ImpérioM é roe, na Antigüidade, região da atual Etiópia.S u b v e rtendo a lógica da dominação destinada àsm u l h e res desde os tempos antigos, as Candaces sim-bolizam o poder feminino, não só de pro c r i a r, mas delutar por seu território e por sua cultura, conquistan-do respeito, espaço e também prosperidade.

Na história da África ancestral encontra-se areferência para as “guerreiras” negras contem-porâneas brasileiras, as “Candaces do século XXI”,que muitos consideram autênticas heroínas por

sobreviver e defender seus filhos, sua família e suacomunidade. Defender-se do dia a dia, da desigual-dade no tratamento da mídia, do álcool – “muleta”sentimental que “substitui” a falta de quase tudo,do tráfico potencialmente aliciador, dos desvios dapolícia e da política discriminatória. Famosas ouanônimas, elas não vivem nenhum grande drama,além de serem mulheres e negras num país que seo rgulha de ser miscigenado, porém repleto dedesigualdades e preconceitos.

Segundo o estudo Retratos da desigualdade realiza-do pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada(Ipea) em setembro de 2006, a mulher negra denossos dias ocupa o último lugar da hierarquiasocial brasileira, tendo os piores postos de trabalho

Julho/Dezembro 200660

A força da mulher negra

BRUNA DE FRIAS, FERNANDA NOVAES E JOYCE SANTOS

O reflexo do espírito guerreiro das Candaces, rainhas daÁfrica ancestral, na mulher negra brasileira de hoje

Cena da peça Candaces, a reconstrução do fogo

Divulgação

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e os menores rendimentos, como fruto de dupla dis-criminação: de raça e de gênero. Já as Candacesafricanas ocupavam postos elevados e desempe-nhavam importantes funções no reino, subordi-nadas apenas ao próprio rei.

Mais tarde, essas rainhas, mães e esposas, pas-saram a se autoproclamar soberanas máximas deMéroe, assumindo todo o poder político do Império.A rainha Candace mais antiga de que se tem noti-cia é Shanakdakete, cujo reinado ocorreu no séculoII a.C. Num segundo momento, duas rainhas tive-ram especial destaque: Amanirenas e Amani-shakehte. Seus maridos foram figuras apagadas, euma delas tinha um olho só, sendo consideradamulher vigorosa e heróica, que negociou com osromanos em tempos de guerra.

Segundo historiadores, os descendentes dasCandaces espalharam-se pelo mundo, tendoalguns deles, inclusive, sido trazidos como escravospara o Brasil. Assim, a herança guerreira dasCandaces poderá, quem sabe, estar presente emalgumas das 44% de mulheres negras que formama população brasileira, segundo dados do InstitutoBrasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Entreelas, está Ana Cristina da Costa Gomes, de 46 anos,que procura refletir na sua vida pessoal e em seusprojetos profissionais a mesma garra e determi-nação das Candaces.

Moradora do bairro da Taquara, na Zona Oestedo Rio de Janeiro, Ana Cristina criou sozinha osdois filhos, hoje com 15 e 17 anos. Separada desdeo nascimento de seu segundo filho, a professora eatual coordenadora pedagógica da Escola Mu-nicipal Alberto Rangel, acredita que a mulher atualprecisa ser, também, uma guerreira para conciliaro papel de mãe, dona de casa e profissional e, nocaso das negras, enfrentar ainda os preconceitos detoda ordem. “Por estar (geralmente) na base dapirâmide social, a mulher negra tem que enfrentaruma carga muito grande para poder se levantar ecaminhar. A vida inteira é uma guerra, em que nãoé possível relaxar nunca”, afirma Ana Cristina.

A pedagoga Vanda Maria de Souza Ferreira, umaatuante da causa negra, concorda com Ana e dizque o poder desempenhado pela mulher negra é,na maioria das vezes, invisível. “Poucos são osavanços de reconhecimento da mulher negra na

sociedade atual. Ainda temos um longo caminho apercorrer nesta questão”, explica. Segundo ela, aquestão racial é o fator determinante para a colo-cação da mulher negra sempre como coadjuvanteem todas as situações sociais: “Ainda nos dias dehoje não há a devida valorização em nenhuma dassituações vigentes, mesmo quando ocupamospapéis de destaque”, aponta.

A professora Ana Cristina define a músicaFelicidade guerre i r a, de Gilberto Gil, como atradução desta realidade do cotidiano das negrasque, como ela, têm que se dividir entre o cuidadocom os filhos, a casa e a vida profissional e aindaserem tratadas com respeito, sem que se esperedelas nada além da subalternidade. “A vida damulher negra é como Gil canta, porque nós já acor-damos tendo que guerrear, tendo que lutar contra acorrente. Mesmo inconscientemente, todas as mu-lheres negras agem como guerreiras”, avalia a pro-fessora.

A mãe de Ana era uma dessas guerreiras instinti-vas que, mesmo tendo baixa escolaridade, buscoualternativas dignas para sustentar a família. “Ela

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Candaces, a reconstrução do fogo

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deixou o Recife, onde nasceu, e veio para o Rio deJaneiro. Aqui, trabalhou como empregada domésti-ca e, já separada do meu pai, fazia curso deculinária à noite. Por meio de um emprego na co-zinha de uma empresa, conseguiu comprar umapartamento para morarmos”, relata a professora,lembrando-se da postura inconformada da mãe.“Durante todo o tempo em que vivemos na casados patrões, ela sempre me falava: ‘Se você nãoquiser lavar roupa e cozinhar para os outros, entãoestuda’”, recorda emocionada.

Representações artísticas contemporâneas deCandaces

A Cia. dos Comuns, grupo teatral formado pora t o res negros, montou em 2003 o espetáculoCandaces, a reconstrução do fogo, que esteve em car-taz nos teatros Gláucio Gil e Carlos Gomes, e noTeatro Municipal, no Rio de Janeiro, com tempo-radas também em Salvador e Brasília. O diretor daCompanhia, Hilton Cobra, encontrou o temaatravés da professora Lélia Gonzalez, uma dasmaiores acadêmicas ligadas às questões da culturanegra no Brasil. Lélia, antiga chefe do departamen-to de Sociologia e Política da PUC-Rio, morreu umasemana após a conversa que despertou o interessede Eclética em tematizar Candaces.

A construção do espetáculo partiu da re i n-venção artística e histórica destas personagens,para retratar um painel de histórias pro t a g o n i-zadas por personagens absolutamente comuns.Mostrando um retrato fiel da bravura cotidiana edo poder feminino, a peça destacou a riqueza, osp e rcalços e os avanços que têm marcado a tra-jetória das mulheres negras e as contribuiçõespolíticas, culturais e sociais até a época atual. A

dificuldade da montagem foi obter material paraa pesquisa. “Há pouquíssimos re g i s t ros sobre asCandaces para a importância que elas tiveram”,lamenta o dire t o r. Para Hilton, a peça cumpriu amissão de levar ao conhecimento do público a tra-jetória dessas mulheres, que foram esquecidaspela História.

O espetáculo da Cia. dos Comuns serviu de inspi-ração para o enredo do carnaval de 2007 da Escolade Samba Acadêmicos do Salgueiro. No enredo,mais do que uma linhagem de rainhas, Candacestorna-se um conceito, através do qual a força damulher negra se faz presente em lutas, conquistas eno legado matriarcal que venceu o tempo e as dis-tâncias.

O u t ro produto artístico a abordar essas negrasg u e rreiras é o documentário C a n d a c e s, dirigido pelosa t o res Gustavo Mello e Fernando Barcellos, ambosvinculados à Cia. dos Comuns. O filme tem estréiap revista para o segundo semestre de 2007, quando,em função do desfile do Salgueiro, já haverám a i o res referências para o público sobre o tema.

Haroldo Costa, jornalista e comentarista de car-naval na Rede Globo, ressalta que o Salgueiro é aescola que tradicionalmente tem o papel de passarpor cima das discriminações e abrir as portas paraa expressão do poder de mulheres negras atuantes,que recusam a dominação de uma sociedade emi-nentemente patriarcal e preconceituosa. “Com asCandaces, mais uma vez as escolas de samba saemna frente e, aliás, foi o Salgueiro quem abriu estecaminho”, conta o comentarista.

A exemplo do novo enredo da escola, o Salgueirojá apresentou outros dois sobre duas mulheres degrande representação na cultura negra, Xica daSilva e Dona Beija. “Esses foram dois maravilhosose n redos que contaram a vida destas extra-ordinárias mulheres e as revelaram para todo omundo. Candaces terá sem dúvida o mesmoefeito”, afirma Haroldo.

O carnavalesco Milton Cunha, que estréia esteano na escola de samba Porto da Pedra, tambémcom um enredo de raízes africanas, Preto e branco ac o re s, diz que se o carnavalesco do Salgueiro ,Renato Lage, não fizesse Candaces, um dia elefaria. “Assisti ao espetáculo da Cia. dos Comuns efiquei arrebatado com a força daquela negritude,

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tanto pelo vigor físico e pela beleza plástica, quantopela ideologia do texto. Candaces era um dos enre-dos que eu guardava para realizar um dia e agoraele se vai nas mãos desse grande artista que é oRenato”, explica.

O que mais seduz Milton no enredo desenvolvidopelo Salgueiro é a ponte feita entre a parte histórica,que trata das negras africanas da Antigüidade, e atemática de Candaces na contemporaneidade:“Cada mulher negra refaz no seu corpo e na suavida a trajetória das Candaces e é importante parao Carnaval, como a grande vitrine da culturabrasileira, colaborar para o entendimento do Brasil

de hoje”, esclarece. Segundo ele, mesmo os enredosdatados acabam por refletir de alguma maneira otempo atual, mas quando o enredo traz essa ligaçãoentre o passado e o presente a Sapucaí passa, defato, a ser um espelho do povo brasileiro.

Para o carnavalesco, o que torna as mulheresnegras mais admiráveis é que, apesar de todas aslutas que têm que enfrentar, elas não perderam aternura, a graça e a feminilidade. “As candacesmodernas agregam, sustentam e defendem suasfamílias com a destreza das leoas, mas não perdema doçura. Elas são ao mesmo tempo ternas e ter-ríveis”, admira Milton Cunha.

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Majestosa ÁfricaBerço dos meus ancestraisReflete no espelho da vidaA saga das negras e seus ideaisMães feiticeiras, donas do desti-no...Senhoras do ventre do mundoRaiz da criaçãoDo mito à HistóriaEncanto e belezaSeduzindo a realeza

Candaces mulheres, guerreirasNa luta... justiça e liberdadeRainhas soberanasF l o rescendo pra eternidade (BIS)

Novo mundo, novos temposO suor da escravidãoA bravura persistiuAportaram em nosso chãoNa Bahia, alforriaNas feiras, tradiçãoMães de santo, mães do samba!Pedem proteçãoE nesse canto de féSalgueiro traz o axéE faz a louvação

Odoyá, Iemanjá; Saluba NanaEparrei OyáOrayê yê o, OxumOba xi oba (BIS)

Samba-enredo da Acadêmicos do Salgueiro (2007)• Tema: Candaces • Autores: Dudu Botelho, Marcelo Motta, Zé Paulo e Luiz Pião

“A força da mulhernegra brasileira vem lá dos

primórdios, porque as grandesdeusas, as mães primeiras eram

negras. O mundo era matri-arcal” (Léa Garcia)

As mulheres negrassão as que vivem num isola-

mento político maior e por outrolado são aquelas que resistem

mais” (Lúcia Xavier)

Frases da negritude

“Ser mulher negraé complicado, porque ela ganha

menos que a mulher branca e menosque o homem negro. A mulher tem que

administrar o salário mínimo na grandemiséria, é a provedora da casa”

(Zezé Motta, atriz)

“Meu pai dizia quemulher não tem que estudar,

p o rque senão vai ter que sustentar ohomem. Porque, pra mulher negra, só

resta o resto: ser amante do homemn e g ro intelectual ou do patrão, ou sus-

tentar o homem sem instru ç ã o ”( Vanda Ferre i r a )