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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC/SP
IVAN BARBOSA MARTINS
A FORMAO DO EMBU NO PERODO COLONIAL:
INTERSECO ENTRE A AO EVANGELIZADORA DOSJESUTAS NO MBITO DA POLTICA COLONIAL E AS
DECORRNCIAS SIMBLICAS E CULTURAIS DO ENCONTRO DEMISSIONRIOS E INDGENAS
DISSERTAO DE MESTRADO EM CINCIAS DA RELIGIO
SO PAULO
2007
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC/SP
IVAN BARBOSA MARTINS
A FORMAO DO EMBU NO PERODO COLONIAL:
INTERSECO ENTRE A AO EVANGELIZADORA DOSJESUTAS NO MBITO DA POLTICA COLONIAL E AS
DECORRNCIAS SIMBLICAS E CULTURAIS DO ENCONTRO DEMISSIONRIOS E INDGENAS
DISSERTAO DE MESTRADO EM CINCIAS DA RELIGIO
Tese apresentada Banca Examinadora daPontifcia Universidade Catlica de So Paulo,como exigncia parcial para obteno do ttulo deMESTRE em Cincias da Religio, sob aorientao do Prof., Doutor nio Jos da CostaBrito.
SO PAULO
2007
BANCA EXAMINADORA
___________________________________
___________________________________
___________________________________
Dedicatria
memria de Ansia que, com o seu amor de me, foi meu porto seguro,
fonte de estmulo e coragem, fez-me saber e acreditar que tudo possvel
quando nos dispomos a fazer.
Aos meus filhos, Bruna e Guilherme, que sempre estiveram ao meu lado,
muitas vezes percebendo a ausncia, no cobraram, compreenderam a
necessidade.
Aos meus irmos e amigos que sempre me incentivaram.
AGRADECIMENTOS
Necessrio se faz, mais do que a lembrana, o agradecimento a tantas mos
que significaram apoio, impulso e segurana nesta tarefa:
A Joo e Ansia, meus pais, que nunca deixaram de buscar entender e
incentivar os caminhos que procurava.
Ao professor Dr. nio Jos da Costa Brito que, com sua paciente orientao,
contribuiu de forma significativa para o desenvolvimento e a concluso desta
dissertao e, acima de tudo, pela luz que sem perceber deixou em meu trabalho e
em minha vida.
Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CAPES,
pelo apoio e financiamento da pesquisa, sem os quais no seria possvel
transformar o sonho em realidade.
Aos professores do Programa de Estudos Ps-Graduados em Cincias da
Religio, pela acolhida e pelo apoio neste caminhar, em especial ao professor Dr.
Jos J. Queiroz.
A Arlete, amiga e colega de trabalho, que sempre prestativa pde dar o
caminho inicial do meu trabalho, ao emprestar as obras originais dos autores que
primeiro escreveram sobre Embu. Sem estas obras meus caminhos seriam mais
rduos.
Aos amigos do programa de Cincias da Religio, pelos momentos srios,
porm, descontrados, vividos durante todos esses anos.
Aos amigos, que estiveram ao meu lado, demonstrando solidariedade, dando
bons conselhos e ajudando a amenizar as dificuldades e os problemas que o mundo
nos coloca.
A Bruna e Guilherme, meus filhos, os ltimos, por serem os primeiros em
minha vida.
RESUMO
O processo de colonizao do Brasil se deu aps Portugal constituir-se como
Reino, cuja vocao para a expanso martima, alinhada aos os interesses de
nobres e membros da Igreja Catlica, transformou a colonizao em um projeto
nacional, com impulsos comerciais e religiosos.
O vnculo entre a Companhia de Jesus e Portugal fato que se estrutura
logo aps a sua fundao por Incio de Loyola. Os jesutas formavam uma
corporao religiosa destinada a constituir uma milcia de elite no combate Contra-
Reforma, na luta em prol da religio liderada pelo Papa.
O surgimento do Embu (MBoy) est atrelado a esses interesses, por isso
fazemos uma anlise do processo de seu surgimento. Buscamos compreender o
papel dos missionrios quanto ao ideal de f, colonizao catequista e s
estratgias empregadas no processo de converso dos nativos.
O encontro entre jesutas e indgenas foi cercado de expectativas e
descobertas em relao ao processo cultural de universos que divergiam e se
ressignificavam. O resultado deste encontro foi uma religiosidade popular marcada
por um sincretismo, manifestado atravs de festas religiosas.
Portanto, o objeto de pesquisa a formao de Embu, municpio da regio
metropolitana de So Paulo. Pesquisamos a ao jesutica, o processo de
catequizao dos guaranis e as relaes culturais resultantes de uma
ressignificao religiosa que produziram na sociedade de Embu um catolicismo
tipicamente popular. Analisaremos o perodo colonial, especificamente aquele
referente a So Paulo, entre 1554 e 1700, no qual se consolida o papel do padre
Belchior Pontes, considerado ento o fundador dessa cidade.
Palavras-chave: Colonizao, Jesuta, Indgena, Ressignificao, Embu.
ABSTRACT
The process of settling of Brazil IF gave Portugal after to consist as Kingdom
and transforming into maritime country, searched the interests of the classrooms
noble and members of the Church Catholic, transforming into a national Project with
commercial impulses ando f religious mission.
The entailing enters the Company of Jesus and Portugal is fact that if
structure, then after its foundation for Incio de Loyola, the Jesuits formed a religious
corporation destined to constituent of the elite military service to be used in the
Against-Reformation, in the fight in favor of the religion undertaken for the Pope.
The sprouting of the Embu (MBoy), is atrelado in this interest, therefore we
make na analvsis of the process f itssprouting. We search to understandthe paper of
the missionaries, how much the ideal of the faith and the catequista settling, that the
activity of the Company evidences, and the strategies articulated in promoting its
facts to keep the cultural monopoly and to lead the sheep.
The meeting between Jesuits and aboriginalds, was to sth by expectations
and dicoveries in relation to the cultural process of universes that divergiam and
ressignificavam, but that it was necessary for the social maintenance. The resulto of
this meeting was, a popular religiousing marketing by a revealed religious
sincretismo through religious parties.
Therefore, the research object is the formation of Embu, city of the region
metropolitan of So Paulo. We search the jesutica action and the process of
catequizao of the guarani, and the cultural relations resultant of a religious
ressignificao that resulted in the society of Embu a typically popular catolicismo. I
Will be analyzing the colonial period, specifically that referring of So Paulo, even
enter 1554 for 1700 return, in which if it consolidates the paper of the Pe. Belchior
Pontes, then considered the founder of this city.
Key-words: Settling, Jessuit, Aboriginal, Ressignificao, Embu
SUMRIO
Introduo ................................................................................................................. 9
Captulo I: Antecedentes histricos da formao colonial do Brasil ................ 14
1.1 - Processo de colonizao ............................................................................. 14
1.2 - O Imprio Teocrtico - Misso Jesutica no Brasil ....................................... 21
1.3 - Fundao e desenvolvimento das Redues .............................................. 30
Captulo II: Formao do aldeamento de Embu: reduo jesutica de MBoy .. 54
2.1 - Fundao de Piratininga .............................................................................. 54
2.1.1 - A Fundao da aldeia de MBoy ........................................................... 56
2.1.2 - Origem do nome .................................................................................... 66
2.1.3 - A importncia econmica de Embu para So Paulo ............................. 67
2.2 - O ideal da f catlica .................................................................................... 69
2.2.1 - Colonizao catequtica ....................................................................... 70
2.2.2 - Converso do gentio ............................................................................. 74
Captulo III: Ressignificao simblica religiosa ................................................ 83
3.1 Cultura guarani ............................................................................................ 84
3.2 A viso do colonizador ................................................................................ 95
3.3 Ressignificao simblica ........................................................................... 97
3.4 A cristandade e a religiosidade popular .................................................... 104
3.5 Religiosidade popular no Embu ................................................................ 106
Concluso ............................................................................................................. 113
Bibliografia ............................................................................................................ 118
LISTA DE FIGURAS
Captulo I: Antecedentes histricos da formao colonial do Brasil
Figura 1 .................................................................................................................... 39
Captulo II: Formao do aldeamento de Embu: reduo jesutica de MBoyFigura 2 .................................................................................................................... 58
Figura 3 .................................................................................................................... 60
Figura 4 Padre Belchior de Pontes ....................................................................... 63
Figura 5 Convento e Igreja de Nossa Senhora do Rosrio, hoje Museu de Arte
Sacra ........................................................................................................................ 65
Captulo III: Ressignificao simblica religiosa
Figura 6 Festa de Santa Cruz em Embu ............................................................ 109
Figura 7 - Festa de Santa Cruz em Embu ............................................................. 111
9
INTRODUO
Compreender o processo colonizador um desafio para aqueles que se
interessam pela formao do Brasil.
Uma questo me incomodava, desde que comecei a dar aulas nas escolas da
regio do Embu: como esta regio foi colonizada?
A motivao para realizar esta pesquisa partiu, pois, de uma atividade sobre a
histria de Embu, com os alunos do ensino mdio da rede pblica estadual. O grupo
chegou a uma primeira hiptese: o padre Belchior de Pontes teria sido o fundador da
cidade. Muitas lendas e mitos envolviam a fundao da aldeia de MBoy, que no
futuro tornar-se-ia Embu.
A partir de tais indagaes, procurei ampliar a pesquisa e melhor fundament-
la. Tarefa rdua, pois no havia quase nada escrito sobre o Embu. Acrescente-se a
isso a falta de documentao disponvel.
Uma das lendas sobre a fundao da cidade, apresentada em flderes
tursticos sobre o municpio, relata que o jesuta Belchior de Pontes, vindo de
Itanham para So Paulo se perdeu e, exausto, desfaleceu.
Foi salvo por um ndio, que mais tarde seria engolido por uma cobra. No
entanto, foi encontrado pelo padre, pois sua cabea pendia visvel da boca da cobra.
O missionrio o sepultou nos padres cristos e neste lugar foi fundada uma aldeia
para catequizar os indgenas que recebeu o nome de MBoy.
Desejava na pesquisa encontrar novos caminhos para explicar a fundao da
cidade e como se deu o seu desenvolvimento.
Embu preserva ainda hoje caractersticas do perodo colonial na arte e na
religiosidade popular, frutos do intenso processo de simbiose ocorrido nesse
perodo.
Esperamos que esta pesquisa possa contribuir para um estudo histrico e
antropolgico, oferecendo sociedade e aos pesquisadores de diferentes reas
subsdios histricos e culturais que possibilitem novos pesquisas com perspectivas
10
diversas, de tal forma que a histria da cidade possa ser reinterpretada sob outro
olhar.
Nosso objeto de pesquisa a formao de Embu. Pesquisaremos a ao
jesutica e o processo de catequizao dos guarani, tendo presente as relaes
culturais que se deram nesse encontro. Um intenso processo de ressignificao
ocorreu com reflexos na vida social e religiosa do Embu de ontem e de hoje. Nossa
anlise revisitar So Paulo entre 1554 e 1700. Nesse perodo, padre Belchior
esteve presente realizando trabalhos na regio.
Comearemos pela anlise do processo de formao colonial do Brasil,
partindo da constituio de suas regies e das cidades que hoje as compem, como
So Paulo, antes Piratininga. No estudo sobre das aldeias que circundavam a
cidade, enfatizaremos os aspectos polticos, econmicos e culturais, alm do papel
de Embu no desenvolvimento regional. Como a cidade deixou de ser um aldeamento
jesuta e se transformou numa importante cidade turstica? A presena dos
missionrios deixou marcas profundas na regio, antes habitada por tribos
consideradas hostis.
Algumas questes nortearam a pesquisa:
A primeira hiptese volta-se para o eixo poltico. S com a expanso da
colonizao, Portugal garantiria a posse da terra e tornaria a colnia fornecedora de
gneros alimentcios e minrios de grande valor no comrcio europeu.
A segunda hiptese contempla as ambigidades e as disputas por poder na
relao entre Igreja e Estado e seus reflexos no projeto colonial e no convvio
conflitante entre missionrios, colonos e indgenas.
A terceira hiptese tenta explicar a sobrevivncia da cultura indgena em meio
colonizao. Sobrevivncia esta que se d graas a um amplo processo de
ressignificao elaborado no encontro cultural que se deu especialmente no mbito
das redues jesuticas.
medida que a pesquisa evoluiu, foi possvel delinear o papel exercido por
Embu: um ponto de parada entre Piratininga e o serto, um autntico corredor de
passagem para os que buscavam indgenas no interior. Os missionrios que se
aventuraram em busca de ndios no serto paravam em MBoy. As terras de MBoy
pertenciam a Ferno Dias Paes Leme, administrador das aldeias do real padroado
11
de So Paulo. Ele se estabeleceu no stio dos Pinheiros, onde tinha uma grande
fazenda agrcola. Para melhor vigiar as suas terras, Ferno Dias se fixou no meio do
caminho entre as aldeias de MBoy e Itapecerica. MBoy comeou como um
aldeamento particular e foi posteriormente doado aos jesutas. A atuao deles no
Embu remete ao ano de 1554, com a presena sucessiva de vrios religiosos,
comeando por Manoel da Nbrega at a chegada do padre Belchior de Pontes.
O encontro entre jesutas e indgenas, desde seus primrdios, foi cercado de
expectativas e descobertas de ambas as partes. Elementos da cultura dos
missionrios foram absorvidos pelo mundo indgena, por fazerem sentido no seu
universo. Algo semelhante ocorria com os missionrios que tambm acolheram
elementos culturais indgenas. As mudanas no projeto missionrio confirmam o que
acabamos de dizer. A forte presena do catolicismo popular em Embu nos dias
atuais, especialmente nas festas, mais uma manifestao do processo de
ressignificao.
Como referenciais tericos recorremos aos autores Boris Fausto e Caio Prado
Junior, profundos conhecedores do processo de colonizao portuguesa,
especialmente no seu aspecto econmico. Laura de Mello e Souza e Srgio
Buarque de Holanda nos ajudaram a compreender a mentalidade crist dos
colonizadores europeus e sua viso de mundo, permeada por mitos, crenas e pela
idealizao do paraso. Quanto ao papel da Igreja na colonizao e difuso da
crena catlica, recorro s anlises de Riolando Azzi, Eduardo Hoonaert e
novamente a Srgio Buarque de Holanda.
Fomos auxiliados no entendimento da atividade missionria dos jesutas tanto
por autores clssicos como Serafim Leite, quanto pelas novas pesquisas
desenvolvidas por Castelnau-LEstoile, John Monteiro e Maximine Haubert.
Com relao formao de MBoy, a pesquisa de Joaquim Gil Pinheiro foi de
fundamental importncia, pois resgata a memria de Embu dentro de uma
configurao etnogrfica, discutindo sua origem e a miscigenao ocorrida entre os
povos. Recorro a Moacyr Faria Jordo, que compreende o Embu a partir de sua
insero na dinmica do processo colonizador instaurado no planalto.
Ao analisar o desenvolvimento dos aldeamentos, em especial do aldeamento
de Embu, chamamos a ateno para a questo cultural, no interior da qual se d a
12
ressignificao. A obra missionria acabou por influenciar significativamente a
cosmoviso indgena. Para trabalhar esta questo, recorremos a Mxime Haubert,
Cristina Pompa, Graciela Chamorro e Castelnau-LEstoile.
A pesquisa tem um perfil bibliogrfico, detendo-se na anlise das obras dos
autores citados. Quanto documentao histrica sobre Embu, empreendemos uma
busca no arquivo da Curia Metropolitana de So Paulo e no Museu de Arte Sacra do
Embu. Os nicos registros encontrados pertenciam ao acervo do Museu da Cria
Metropolitana. Eram livros de batismo e casamento do final do sculo XVIII e do
incio do sculo XIX, sinais claros de que os padres continuavam desenvolvendo
suas atividades no Embu. Encontramos tambm uma carta de agradecimento por
doao de uma escultura sacra cidade, datada do sculo XVII. Esse foi o
documento mais antigo. Entre outros documentos, podemos citar o do anncio de
vendas de lotes na regio pelo Engenheiro Buccolini, alm dos panfletos de
divulgao de festas populares tradicionais, j do incio do sculo XX. Todos esses
documentos tambm foram utilizados por Leonardo Arroyo, em 1954, em seu livro
Introduo ao estudo dos tempos mais caractersticos de So Paulo com a crnica
da cidade.
O trabalho articula-se em trs captulos, organizados a partir dos seguintes
pilares: aspecto social, aspecto poltico e aspecto cultural-religioso. No primeiro
captulo descrito o processo de colonizao levado a cabo por Portugal, que
desempenhou importante papel na expanso martima. O projeto colonizador
aglutinou interesses do reino, da Igreja e das classes hegemnicas. A expanso da
f e a colonizao caminharam juntas. A Igreja e o Estado estavam unidos no
projeto colonial; a primeira, tendo nas mos a educao das pessoas, o controle
das almas, era um instrumento eficaz para veicular a idia de obedincia,
principalmente a obedincia ao reino portugus. No mbito missionrio, as redues
indgenas, atravs dos aldeamentos, foram teis para o controle da populao
indgena e, conseqentemente, para o recrutamento de mo-de-obra. A tarefa
missionria foi confiada a Companhia de Jesus, ordem recm fundada por Incio de
Loyola, que se destacava no servio Igreja.
O segundo captulo destaca a formao de So Paulo e os aldeamentos ao
seu redor, tidos como ponto de apoio para a penetrao no serto, povoado pelos
ndios. O surgimento do Embu (MBoy) liga-se a este fato. Buscamos compreender o
13
papel dos missionrios, seu ideal e suas estratgias para converter os indgenas e
conserv-los na f. Os aldeamentos atenderam ao desejo de criar um espao que
facilitasse o trabalho evangelizador e a perseverana na vida crist. A misso no foi
realizada sem tenses, pois a insero dos missionrios na vida da colnia e a sua
defesa dos indgenas despertou a ira dos colonos.
No terceiro captulo, trabalhamos o encontro dos universos simblicos de
jesutas e guaranis e suas ressignificaes. A cultura guarani, quanto questo
religiosa, apresentava alguns traos prximos da viso catlica, facilitando a sua
difuso e, por outro lado, proporcionando uma interpretao peculiar. O resultado
deste encontro pode ser percebido em diversos lugares de So Paulo, como
tambm no Embu, por meio de uma religiosidade popular sincrtica, resultante do
processo de ressignificao.
14
CAPTULO I - ANTECEDENTES HISTRICOS DAFORMAO COLONIAL DO BRASIL
Trabalharemos neste captulo a abordagem panormica das transformaes
europias, que justificaram a necessidade de um empreendimento de colonizao
de terras vis, tanto no aspecto econmico como no difusionismo religioso deste
perodo.
A nossa preocupao buscar subsdios, que justificam o empreendimento
missionrio jesutico, como fio condutor para a colonizao, no que se refere aos
seus aspectos econmicos, sociais e religiosos.
1.1 - PROCESSO DE COLONIZAO
Na anlise do processo de formao colonial do Brasil, So Paulo, antes
Piratininga, aparece como um local povoado por grandes tribos indgenas,
consideradas hostis para se escravizar ou catequizar, como os tapuias e tupiniquins.
Para melhor compreender esse processo, examinaremos a histria do Brasil,
dando especial ateno dinmica da colonizao e ao encontro entre europeus e a
populao amerndia, bastante homognea em termos culturais e lingsticos,
distribuda ao longo da costa e na bacia dos rios Paran-Paraguai. Boris Fausto nos
relembra que:
difcil analisar a sociedade e os costumes indgenas porque se lida compovos com uma cultura muito diferente da nossa, sobre a qual existiram eainda existem fortes preconceitos. Isto se reflete em maior ou menor grau nosrelatos escritos por cronistas, viajantes e padres, especialmente jesutas.1
Na fundamentao de nosso estudo, recorreremos a elementos que formaram
a base da estrutura econmica do Brasil colonial, especialmente a escravido
1 Boris FAUSTO, Histria Concisa do Brasil, p. 15.
15
indgena. Caio Prado Jnior analisa alguns deles, como o meio geogrfico
explorado, o incio das atividades agrcolas e os demais aspectos formadores da
economia brasileira daquele perodo. Procuraremos demonstrar tambm, de forma
sucinta, a dinmica das relaes polticas, com intuito de compreender mais
profundamente o papel dos missionrios jesutas que deram suporte corte
portuguesa e dominao em terras vis.
Em suma e no essencial, todos os grandes acontecimentos desta era a quese convencionou com razo chamar de descobrimento articularam-se numconjunto que no seno um captulo da histria do comrcio europeu. Tudoque se passa so incidentes da imensa empresa comercial a que se dedicamos pases da Europa a partir do sculo XV e que lhes alargar o horizontepelo Oceano afora. 2
O sentido da evoluo de um povo pode variar em virtude de transformaes
infra-estruturais, mas tambm de circunstncias externas at ento ignoradas.
Portugal, aps sua constituio como reino, voltou-se cada vez mais para a
explorao martima, atividade que logo a transformaria numa potncia colonial. A
expanso territorial europia impulsionava a busca por novas terras e Portugal
despontava como pioneira no perodo das grandes navegaes.
A expanso martima dos pases da Europa, depois do sculo XV, (...) seorigina de simples empresas comerciais levadas a efeito pelos navegadoresdaqueles pases. Deriva do desenvolvimento do comrcio continentaleuropeu, que at o sculo XIV quase unicamente terrestre e limitado, porvia martima, a uma mesquinha navegao costeira e de cabotagem. Agrande rota comercial do mundo europeu que sai do esfacelamento doImprio do Ocidente a que liga por terra o Mediterrneo ao mar do Norte. 3
A fase colonial da histria do Brasil coincide com o perodo da histria da
Europa no qual esta atingida por profundas transformaes advindas do
expansionismo martimo4.
2 Caio PRADO JUNIOR, Histria Econmica do Brasil, p. 14.3 IDEM, Formao do Brasil Contemporneo, p. 21.4 Francisco IGLSIAS, Trajetria poltica do Brasil: 1500-1964, p. 17, afirma que: o incio docontato entre o Velho e o Novo Mundo, com a explorao das riquezas e a subjugao de velhasculturas pelo dominador espanhol e pelo portugus.
16
Segundo Boris Fausto, Portugal no escapou crise geral que atingia o
continente europeu. Enfrentou-a em condies polticas melhores do que os outros
reinos. Durante todo o sculo XV, Portugal foi um reino unificado e menos sujeito a
convulses e disputas, contrastando nesse sentido com a Frana, a Inglaterra, a
Espanha e a Itlia, todas envolvidas em guerras e conflitos dinsticos, fator
essencial para explicar seu pioneirismo na expanso.5
No incio do sculo XV, a expanso correspondia aos interesses das classes,
grupos sociais e instituies que compunham a sociedade portuguesa. Para os
comerciantes, era a perspectiva de um bom negcio; para o rei, a oportunidade de
criar novas fontes de receita numa poca em que os rendimentos da Coroa tinham
decado muito, alm de ser uma boa forma de ocupar e prestigiar os nobres. Para
estes e tambm para os membros da Igreja6, servir ao rei ou servir a Deus,
cristianizando povos brbaros, resultava em recompensas e em cargos cada vez
mais difceis de se conseguir nos estreitos quadros da metrpole. Para o povo,
lanar-se ao mar significava sobretudo emigrar e tentar uma vida melhor, fugindo de
um sistema social opressor.
A expanso converteu-se em uma espcie de grande projeto nacional, ao
qual todos ou quase todos aderiram e que atravessou sculos. Os impulsos para a
aventura martima no eram apenas comerciais. Havia continentes e oceanos
desconhecidos. As chamadas regies ignotas atraam a imaginao dos povos
europeus, que a vislumbravam reinos fantsticos, monstros e a possibilidade do
paraso terrestre.
A descoberta da Amrica talvez tenha sido o feito mais espantoso da histriados homens: abria as portas de um novo tempo, diferente de todos os outros.(...) Todo um universo imaginrio acoplava-se ao novo fato, sendosimultaneamente, fecundado por ele: os olhos europeus procuravam aconfirmao do que j sabiam, resultantes ante o reconhecimento do outro.Numa poca em que ouvir valia mais do que ver, os olhos enxergavamprimeiro o que se ouviria dizer; tudo quanto se via era filtrado pelos relatos deviagens fantsticas, de terras longnquas, de homens monstruosos quehabitavam os confins do mundo conhecido.7
5 Cf. Boris FAUSTO, Histria Concisa do Brasil, p. 10.6 Segundo M. de F. JORDO, O Embu na histria de So Paulo, p. 23: Erram os defensores emprocurar negar a inteno da Companhia, uma vez que as prprias cartas Jesuticas confessam essepropsito com evidncia incontestvel (...) as razes que os determinaram foram as mais elevadas ejustas, visando defesa da Igreja Catlica, ameaada pela Reforma religiosa.7 Laura de Mello e SOUZA, O diabo e a Terra de Santa Cruz, p. 21-22.
17
A anlise de Souza demonstra que a expanso ocidental caracterizou-se pela
bifrontalidade: por um lado, incorporavam-se novas terras, sujeitando-as ao poder
temporal dos monarcas europeus; por outro, conquistavam-se novas ovelhas para a
religio, para o papa. De todos os frutos que poderia dar a terra recm-descoberta,
pareceu a Caminha que o melhor seria salvar os indgenas: (...) Esta deve ser a
principal semente que Vossa Alteza em ela deve lanar8. A propagao da f
catlica aparece no texto de Caminha como forte desejo do monarca. Quase
cinqenta anos depois, D. Joo III reitera os propsitos cristianizadores da
monarquia portuguesa para que o povo pudesse se converter a santa f catlica,
criando assim um mecanismo ideolgico justificatrio para a colonizao da
Amrica.9
No imaginrio europeu, a colnia brasileira era palco de uma luta entre Deus
e o Diabo, entre o paraso e o inferno. Numa poca em que ouvir valia mais do que
ver, os relatos de viagens davam espao a sonhos e fantasias. Imaginrio esse
fascinado pelas riquezas proporcionadas pela expanso comercial e pelo contato
com povos diferentes. Alm disso, o processo colonizador trazia no seu bojo o dever
de expandir a f, de conquistar novas terras para o reino de Deus. Misso que
comportava inmeros desafios, pois, para a viso europia, a religio daqueles
povos estava repleta de prticas mgicas, bruxaria e supersties.
A f no se apresentava isolada da empresa ultramarina: propagava-se a f,mas colonizava-se tambm. As caravelas eram de Deus, nelas navegavamjunto missionrios e soldados, pois no s so apstolos os missionriosseno tambm os soldados e capites, porque todos vo buscar gentios etraz-los ao lume da f ao grmio da Igreja.10
Para Souza, o descobrimento do Brasil revelou aos portugueses, como numa
ao divina, a natureza que tanto se aproximava da imagem do paraso terrestre,
principalmente pelo clima, pela fertilidade e pela vegetao. Aquela terra to distante
e desconhecida tornava-se mais prxima e familiar. Contrastando com a viso 8 Carta de Pero Vaz de Caminha, In: Carlos Malheiro DIAS (org.), Histria da Colonizao Portuguesado Brasil, 32.9 D. Joo III escrevera em 1548 a Tom de Souza (Regimento de Tom de Souza), reiterando opropsito da converso. Para Souza, a religio forneceu os mecanismos ideolgicos justificadores daconquista e colonizao da Amrica. Cf. Laura de Mello e SOUZA, O diabo e a Terra de Santa Cruz,p. 32.
18
paradisaca, a presena do gentio revelava de maneira inequvoca a ao do
demnio no novo mundo.
A poca Moderna caracterizou-se por uma religiosidade exacerbada cheia de
angstia, religiosidade esta que seria implantada na colnia. A idia de que Deus
proveu tudo, determinando que os portugueses descobririam terras para coloniz-
las, cristianizando-as, dava nimo aos colonizadores para que empreendessem a
misso de conquista material e espiritual.
Assim, a edenizao da natureza e o desprezo dos homens, vistos como
brbaros, animais, demnios, faziam-se presentes no imaginrio dos colonizadores,
que viam o que queriam ver e o que tinham ouvido dizer.11
Os europeus acrescentaram imagem do homem selvagem a da
monstruosidade. No mundo precrio, a necessidade de nomear e encarar o
desconhecido, a fim de manter o medo dentro de limites suportveis, acabou
propiciando cruzamentos culturais que geraram uma religiosidade popular com
muitas particularidades na colnia.
Hilrio Franco Jnior, em As Utopias Medievais, relembra que a questo do
mito, em especial do paraso, era revestida por medos, dvidas, anseios,
expectativas e sonhos coletivos. Estes aspectos vm ao encontro das projees do
imaginrio europeu, que edenizava ou satanizava as novas terras.
Portanto o mito trata de fatos e situaes ocorridos in illo tempore, a ideologiade um presente a ser de um tempo modificado, a utopia de um tempo por vir,futuro. Aquilo que o homem perdeu na Histria, narrado pelo mito, ele buscaatravs da ideologia e recupera no alm-Histria da utopoia. (...) Em outrostraos ainda utopia e ideologia se afastam: uma coletiva, outra segmentada;a primeira muitas vezes produto inconsciente, a segunda sempreconsciente; uma se fundamenta no sentimento e na esperana, outra nopensamento e na ao.12
Entre os temas que mais contriburam para a gestao desse imaginrio
estavam a fauna e a flora extraordinrias, a idia do paraso e do inferno, a fartura
10 Ibid., p. 35.11 Cf. Laura de Mello e SOUZA, O diabo e a Terra de Santa Cruz, p. 36.12 Hilrio FRANCO JUNIOR, As Utopias Medievais, p. 13.
19
de ouro e pedras preciosas, os lugares sagrados das histrias bblicas e as
deformaes fsicas.13
Para Souza, o mito acaba sendo explicitado no cotidiano colonial, na
representao religiosa. A utopia presente na viso colonial, sendo uma
representao coletiva, muitas vezes produto inconsciente, enquanto que a
ideologia consciente. Uma fundamentada na esperana e outra, na ao.
A expanso da f e a colonizao caminharam juntas. A Igreja e o Estado
estavam unidos no projeto colonial. A Igreja, tendo nas mos a educao das
pessoas e o controle das almas, era um instrumento eficaz para veicular a idia
geral de obedincia e, mais restritamente, de obedincia ao poder do Estado.
Entretanto, o papel da Igreja no se limitava a isso. Presente na vida e na morte das
pessoas, nos episdios decisivos do nascimento e do casamento, mantinha um
amplo controle da populao.14
A tendncia para o absolutismo monrquico fez com que a Igreja fosse
profundamente dominada pelo Estado. Agir decisivamente sobre a vida religiosa
dentro da prpria metrpole seria resultado de uma contnua e progressiva
interferncia do Estado nos assuntos eclesisticos. A posio do Estado, em face da
Igreja em Portugal durante toda a Idade Mdia, em nada se distinguia das demais
naes crists, no fosse por uma devoo particular autoridade papal. 15
Portugal foi dos raros pases que aceitaram as decises do Conclio de
Trento, talvez, por essa presena no mbito eclesistico. No reinado de D. Manuel,
conseguiu-se obter da Santa S o direito de apresentao para os novos bispados
do padroado real, e mesmo para os antigos bispados estabeleceu-se o costume de
prov-las16.
Segundo Fausto, na histria do mundo ocidental, as relaes entre Estado e
Igreja variaram muito de pas a pas e no foram uniformes no mbito de cada um
desses pases ao longo do tempo. No caso portugus, ocorreu uma subordinao da
13 Cf. Neide GONDIN, A inveno da Amaznia, p. 16.14 Ver a instigante obra de Cludia RODRIGUES, Nas fronteiras do alm: a secularizao da morteno Rio de Janeiro (sculos XVIII e XIX). RODRIGUES mostra os mecanismos de controle da Igrejasobre o agir e as representaes diante da morte no ocidente catlico e no Rio de Janeiro.15 Cf. Srgio Buarque de HOLANDA, A poca Colonial, p. 51.16 Ibid., p. 51.
20
Igreja ao Estado por meio de um mecanismo conhecido como padroado real17, que
consistiu em uma ampla concesso da Igreja de Roma ao Estado portugus, em
troca da garantia que a Coroa promoveria e asseguraria os direitos e a organizao
da Igreja em todas as terras descobertas.
Para Holanda, de modo geral, os provimentos dos cargos eclesisticos foram
feitos atravs da apresentao do rei ou de um representante, o provedor-mor. Mais
tarde, do prprio governador-geral e da confirmao do bispo. O padroado consistiu
praticamente no controle das finanas da Igreja e das nomeaes das autoridades
eclesisticas pelo Estado. Durante os primeiros anos, no se conhecem
interferncias diretas das autoridades civis no terreno espiritual. Mas, por outro lado,
a administrao eclesistica estava entrosada com a mquina administrativa do
governo. Seria difcil para o povo ver nela no um departamento do Estado, mas um
poder autnomo.18
O controle da Coroa sobre a Igreja foi em parte limitado pelo fato de que a
Companhia de Jesus, at a poca do marqus de Pombal (1750-1777), teve forte
influncia na corte. Na Colnia, o controle sofreu outras restries. De um lado, era
muito difcil enquadrar as atividades do clero secular, disperso pelo territrio; de
outro, as ordens religiosas conseguiram alcanar maior grau de autonomia. A
independncia das ordens dos franciscanos, mercedrios, beneditinos, carmelitas e,
principalmente, jesutas resultou de vrias circunstncias. Elas obedeciam a regras
prprias de cada instituio e tinham uma poltica definida com relao a questes
vitais da colonizao, da evangelizao e da civilizao do indgena. Alm disso, na
medida em que se tornaram proprietrias de grandes extenses de terras e
empreendimentos agrcolas, no dependiam apenas da Coroa para sua
sobrevivncia.
No processo colonizador, estiveram presentes outras ordens religiosas, alm
dos jesutas, que tambm tiveram papel catequizador importante. Os franciscanos
foram os primeiros religiosos a chegarem Terra de Santa Cruz. Suas atividades 17 Com o padroado real, o rei de Portugal ficava com o direito de recolher tributos devidos pelos fiis,conhecidos como dzimo, correspondente a um dcimo dos ganhos obtidos em qualquer atividade.Cabia tambm Coroa criar dioceses e nomear bispos. Muitos dos encargos da Coroa resultaram,pelo menos em tese, em maior subordinao da Igreja, como o caso da incumbncia de remuneraro clero e de constituir e zelar pela conservao dos edifcios destinados ao culto. Para supervisionartodas essas tarefas, o governo portugus criou uma espcie de departamento religioso do Estado, aMesa da Conscincia e Ordens. Boris FAUSTO, Histria Concisa do Brasil, p. 29.
21
estivam ligadas aos indgenas em torno do Rio de Janeiro. Quanto aos capuchinhos,
eram de origem francesa. Desenvolveram a catequizao de indgenas e colonos e
tambm levantarem um hospcio na Bahia, em 1679. Os carmelitas tambm atuaram
como evangelizadores. Os beneditinos foram exceo. No trabalharam neste
campo, s mantiveram suas fazendas e mosteiros.19
A organizao das dioceses e parquias foi muito lenta e sua influncia sobre
o catolicismo vivido no Brasil bastante reduzida. Ambas ficaram vacantes por
grandes perodos, pois a Coroa s mostrava interesse na funo episcopal e
sacerdotal medida que estas estavam ao seu servio. A vivncia real da religio
catlica foi, dessa forma, pouco afetada pela estrutura eclesial. O clero secular
atendia s necessidades sacramentais, como batismo, confisso ou missa de
defuntos. Os sacramentos eram administrados populao em geral, independente
de sua vontade, pois a colnia era catlica.20
Coube afinal igreja, na formao da nacionalidade, o que se fez em matria
de educao, de cultura, de catequese e de assistencialismo social. Hierarquia, clero
secular, ordens religiosas e corporaes de leigos, formadas por irmandades e
ordens terceiras, foram os responsveis por inserir os habitantes da colnia na
Igreja, no somente no campo da exclusiva devoo, como tambm no da ao
social.21
Podemos considerar uma demonstrao de superioridade da metrpole a
estratgia de colonizao calcada na influncia da Igreja Catlica. No h dvida de
que, na histria da formao do povo brasileiro, o fator religioso representa uma
contribuio singularmente valiosa.
1.2 O IMPRIO TEOCRTICO: MISSO JESUTICA NO BRASIL
Na trajetria histrica dos povos, certos momentos tm seus primrdios bem
documentados e comentados por estudiosos e outros, nem tanto. Diversos episdios
da histria colonial merecem ser revistos e melhor interpretados. 18 Cf. Srgio Buarque de HOLANDA, A poca Colonial, p. 57.19 Cf. Srgio Buarque de HOLANDA, A poca Colonial, p. 72.20 Cf. Eduardo HOORNAERT, A Igreja no Brasil-Colnia (1550-1800), p. 12-13.
22
Neste desafio, Serafim Leite com sua Histria da Companhia de Jesus no
Brasil o nosso principal aliado, especialmente por ter apontado a questo. Sua
obra tem uma intencionalidade muito bem definida: exaltar Portugal e a figura dos
padres jesutas portugueses. Outro autor importante para nosso estudo John
Monteiro que em Negros da Terra resgata a imagem dos colonos e dos ndios do
planalto paulista.
John Monteiro aborda a questo da administrao dos ndios por particulares
e a contenda no seio da Companhia de Jesus referente a esta administrao,
chamando a ateno para a escravizao dos ndios, fora de trabalho mais barata
que a do negro.
Estes autores nos ajudam na compreenso das transformaes ocorridas nos
primrdios da Idade Moderna, que acabaram resultando nas conquistas de novas
terras, na dominao de gentios e na reao da Igreja Catlica frente Reforma
Protestante.
A Societatis Jesu, a Companhia de Jesus22, foi criada em 27 de setembro de 1540,
pelas bulas papais Regimini Militantis Ecclesiae e Exposcit debitu, de Jlio III.
Ambas do o estatuto eclesial nova ordem. Contava ela, inicialmente, com apenas
dez homens - dos quais dois seriam mais tarde canonizados: Incio de Loyola e
Francisco Xavier - que se punham total disposio do papa para qualquer misso
que o Sumo Pontfice ordenasse. Faziam votos de pobreza, castidade e
obedincia.23
A primeira bula estabelecia que a Companhia de Jesus se dedicasse principalmente
ao bem das almas e propagao da f pelo ministrio da Palavra de Deus, pelos
exerccios espirituais e pelas obras de caridade, pela formao crist das crianas e
dos ignorantes e pela consolao espiritual dos fiis por meio da confisso. A nova
ordem combateria por Deus sob o estandarte da cruz, servindo ao Senhor Jesus e
seu vigrio na Terra.24
21 Cf. Srgio Buarque de HOLANDA, A poca Colonial, p. 75.22 Ver A. RAVIER, Incio de Loyola funda a Companhia de Jesus.23 Para conhecer melhor o fundador da Companhia de Jesus, ver J. LOYOLA, Obras Completas deSan Igncio de Loyola; Ricardo Garcia VILLOSLADA, Santo Incio.24 INCIO DE LOYOLA escreveu um nico livro, os Exerccios Espirituais. Uma sntese de suaexperincia espiritual. O livro deu uma contribuio fundamental mstica ocidental e a norma deconduta da Companhia de Jesus.
23
O grupo se distinguiu rapidamente e se beneficiou do seu prestgio em crculos
limitados da aristocracia espanhola e italiana. Os jesutas viam na educao um
meio de conscientizar e de fortalecer as vontades para o servio do Reino de Deus.
Rapidamente, a Companhia se fez presente em diversos pases. Em 1556, ano da
morte de Incio de Loyola, contava com mais de 50 colgios espalhados pelo
mundo.25
Em 17 de fevereiro de 1554, de Roma, Incio de Loyola, escreve ao padre
Manuel da Nbrega, provincial dos jesutas no Brasil, delegando a ele poderes para
exercer como representante o Propsito Geral da Companhia de Jesus:
Ao dilecto em Cristo Irmo P. Manuel da Nbrega, presbtero da mesmaCompanhia, e Propsito na ndia do Brasil, sujeita ao Serenssimo Rei dePortugal, e noutras regies mais alm, sade sempiterna no Senhor. Tendo oPapa Paulo III, de Feliz memria, concedido benignamente nossaCompanhia, do tesouro do poder apostlico, muitas graas espirituais para aglria de Deus e edificao das almas, as quais o Propsito Geral que for, porsi ou por outros que julgar idneos, pode exercer e dispensar: ns, que hpouco, confiando muito na vossa piedade e prudncia em Cristo Jesus, voselegemos Propsito de todos os nossos Irmos que andam nas sobreditasregies, e confirmando primeiro a autoridade conferida, vos comunicamostodas aquelas graas e autoridade, que a Santa S de qualquer modo noscomunicou e podemos comunicar (excepto duas, a saber, a indulgnciaplenria a conceder uma vez por ano, e a admisso profisso sem nossaexpressa licena), no s para usardes delas para edificao dos prximos,mas tambm para que possais e tenhais poder de fazer participantes delas osque esto sob a vossa obedincia e julgardes idneos, aos quais ns, desdeagora para ento, segundo o vosso parecer, as concedemos. E esperamosno Senhor que estas graas e faculdades vos ho-de ser, no futuro, armas dejustia para consolao e ajuda das almas e glria e honra de DeusAltssimo.26
O vnculo entre a Companhia de Jesus e Portugal se estrutura pouco tempo
depois da fundao da ordem por Incio de Loyola. J no governo de D. Joo III,
vemo-los ativos no seio da Corte portuguesa e pelejando para ligarem-se aos
negcios de Estado. De acordo com Khel, a relao entre o projeto colonial
portugus e o projeto de catequizao da Santa S bastante conhecida e tem sua
origem na forma de autoridade de Roma at ento, sendo o Papa representante de
uma entidade supranacional, ao mesmo tempo sancionadora e legitimadora do
25 Cf. Ricardo Garcia VILLOSLADA, Santo Incio.26 Serafim LEITE, Cartas dos Primeiros Jesutas do Brasil VII (1553 1558), p. 21-22.
24
poder real. Essa posio sustenta-se na bula Orthodoxe Fidei27: (...) de todas as
obras, a mais agradvel a Divina Majestade que a religio crist seja exaltada e
divulgada em todos os pases, e as naes brbaras sejam subjugadas e
convertidas f catlica28.
Alfredo Ellis Junior, em Captulos da Histria Social de So Paulo, conta que
a criao da Companhia de Jesus era uma das trs aes planejadas pelo Papa
Paulo III para enfrentar a reforma religiosa. Os jesutas constituam uma espcie de
milcia de elite da contra-reforma empreendida pelo Papa.
Dando continuidade s afinadas relaes entre Roma e Lisboa, os jesutas
foram liberados pelo Papa para ir ao Novo Mundo, com a misso de converso dos
gentios e de dar atendimento aos portugueses. Sua chegada, em 1549, posterior
presena dos franciscanos, que aqui haviam aportado com Cabral em 1500, porm
apenas de passagem.
Foram trs as misses jesuticas vindas para o Brasil:
1. Em 1549, vindos na armada do primeiro governador Tom de Sousa,
desembarcaram em 29 de maro os padres Manoel da Nbrega, Juan de Azpicuelta
Navarro, Leonardo Nunes e Antnio Pires, alm dos irmos Diogo Jcome e Vicente
Rodrigues;
2. Em 1550, vindos na armada de Simo da Gama de Andrade,
desembarcaram os padres Afonso Brs, Salvador Rodrigues, Francisco Pires e
Manuel de Paiva;
3. Em 1553, vindos na armada do segundo governador, D. Duarte da
Costa, desembarcaram em 13 de junho os padres Lus da Gr, Ambrsio Pires e
Brs Loureno, alm dos irmos Joo Gonalves, Antnio Blazquez, Gregrio
Serro e Jos de Anchieta.
Os jesutas distriburam-se pela costa, abrindo casas na Bahia, em Salvador e
Porto Seguro; em So Paulo, em So Vicente; no Esprito Santo e em Pernambuco.
27 Ortodoxe Fidei, de Sixto IV (1471-1484), concede a bula da cruzada aos reis catlicos para areconquista de Granada. Esta bula mais ampla nos seus privilgios que as bulas anteriores. Elamarca o incio da reconquista definitiva de Granada e, em 2 de janeiro de 1492, decreta a expulsoou a converso obrigatria dos judeus. Cf. Paulo SUESS (org.), A conquista da Amrica Espanhola,p. 232-246.28 Luis Augusto Bicalho KHEL, Simbolismo e profecia na fundao de So Paulo, p. 36.
25
Entretanto, desde o incio, Nbrega estava interessado em abrir uma casa em
Piratininga, o que lhe permitiria estabelecer as bases para da penetrar no serto.
Desde as primeiras notcias da presena de ndios menos belicosos ao sul edas possibilidades e ligao com o Peru por meio do Paraguai, Nbregainsistia em aventurar-se no serto adentro. J em 1550, est o padreLeonardo Nunes em So Vicente, em companhia de alguns Carijs cujalibertao na Bahia conseguira pessoalmente, e no de duvidar que eles otenham ciceroneado em suas primeiras incurses ao interior, de onde voltariaentusiasmado com a receptividade dos ndios.29
Serafim Leite30 esclarece que o fim principal da Misso do Brasil era a
converso de gentios, mas simultaneamente atender aos portugueses que aqui j
estavam e aos que chegariam. Ergueram igrejas, abriram escolas para meninos e
comearam as visitas aos ndios, cuja liberdade e dignidade defendiam. A ao da
Companhia expandiu-se pela costa e sempre com o mesmo mtodo de trabalho:
atender aos brancos e visitar e atrair os ndios, reunindo-os e educando-os. Ao
mesmo tempo, iniciou-se o movimento de entrada de portugueses na Companhia,
principalmente os que aqui estavam e j conheciam o tupi. Organizou-se a vida
religiosa da comunidade segundo a prtica do Colgio de Coimbra, porque a
Companhia ainda no tinha a Constituio31.
Trs anos depois, em 1553, o provincial de Portugal deu ao superior da
misso poderes de vice-provincial, resoluo aprovada por Santo Incio que, mais
tarde, assinou a patente de Nbrega como provincial da nova Provncia do Brasil,
em 9 de junho daquele mesmo ano. Com o passar do tempo e o desenvolvimento da
colnia, os ministrios nas cidades, a necessidade de organizao rural das
fazendas e a educao nos grandes colgios iriam ocupar muitos padres. No
entanto, a Companhia no deixou de trabalhar com os ndios, razo primeira da sua
presena na Amrica. O interesse dos jesutas pelos ndios no se limitava ao 29 Luis Augusto Bicalho KHEL, Simbolismo e profecia na fundao de So Paulo, p. 45.30 Cf. Serafim LEITE, Cartas dos Primeiros Jesutas do Brasil VII (1553 1558), p. 21-22.31O texto das Constituies uma referncia constante para os jesutas, uma vez que eles soconvidados a rel-lo ao longo de toda sua vida. nele que se encontra explicitado o modo defuncionamento da Companhia. Ela se concebe uma metfora do corpo humano: uma vez que foiincorporado por um longo processo de formao na Companhia , um jesuta se torna membro dessecorpo que regido por uma nica cabea, o preposto geral. Os membros desse corpo, unidos porum mesmo lao de dependncia que os liga a sua cabea , esto dispersos no mundo, para ir
26
aspecto etnolgico, mas tambm as suas qualidades como homens e as suas
aptides para se tornarem civilizados e cristos. O termo civilizado, muito utilizado
no perodo, caracterizava a diferena entre os chamados evoludos e os no
evoludos. A expresso posteriormente seria substituda pela noo de cultura, como
ter ou no cultura32.
Para Serafim Leite, o fruto destas misses consiste em faz-los de brbaros,
homens e de homens, cristos e de cristos, perseverantes na f33. Para atingir tal
objetivo, os missionrios viviam nas aldeias ensinando, curando e orientando. A
misso continuava progredindo. Os superiores gerais, sempre atentos s atividades
desenvolvidas pelos jesutas espalhados pelo mundo, costumavam de tempos em
tempos enviar um visitador.
No incio dos anos de 1580, a provncia do Brasil recebeu um visitador, padre
Gouva, encarregado de implantar as diretrizes romanas, cuja finalidade era
reacender a vida e a disciplina religiosa. O visitador, representante do poder central
jesuta, aps a visita, como de costume, escrevia um relatrio no qual informava a
situao da Provncia. Deixava tambm recomendaes a serem seguidas.34
Os jesutas encontravam-se distribudos em colgios, residncias e aldeias,
espalhados por centros de povoamento como Olinda, em Pernambuco; Salvador,
Ilhus e Porto Seguro, na Bahia; Esprito Santo; Rio de Janeiro; So Vicente e
Piratininga, a nica vila no interior das terras. No Brasil, o colgio ocupava o centro
do dispositivo da Companhia, fruto de uma evoluo iniciada j nos seus primrdios.
Na verdade, a criao de colgios no estava no projeto original do fundador. Incio
de Loyola havia imaginado uma ordem essencialmente itinerante. Mas a demanda
social levou a recm-criada Companhia a assumir tarefas de ensino. Com os
colgios veio a estabilizao e o aumento de seus membros, o que obrigou a ordem
a assegurar sua independncia econmica. O colgio era especializado no ensino,
destinado primeiramente a atender a formao dos integrantes da Companhia.
Gradativamente, passou a acolher estudantes externos.35
trabalhar na vinha do cristo. Charlotte de CASTELNAU-LESTOILE, Operrios de uma vinha estril,p. 67-68.32 Cf. Serafim LEITE, Cartas dos Primeiros Jesutas do Brasil VII (1553 1558), p. 9.33 Ibid., p. 12.34 Cf. Charlotte de CASTELNAU-LESTOILE, Operrios de uma vinha estril, p. 49-51.35 Cf. Ibid.
27
Os colgios gozavam de autonomia financeira e na provncia do Brasil no
era diferente. Os jesutas, alm de estarem presentes nos colgios e residncias,
residiam nas aldeias. A aldeia reunia ndios sob a direo dos missionrios que se
encarregavam de catequiz-los e civiliz-los.
Tambm se faziam presentes em outros espaos da colnia onde
permaneciam em misso por cerca de quinze dias. Nessas misses, privilegiavam-
se os lugares sem padre, secular ou regular. Alm de pregar e confessar, os
missionrios batizavam e realizavam casamentos.
Os jesutas agiam no mundo buscando a maior glria de Deus, como
relembra bem Charlotte. Esta ao trazia consigo inmeros desafios. A provncia do
Brasil envolvia-se cada vez mais com aspectos econmicos e polticos da vida da
colnia.
Em 1580, a colnia brasileira vive um momento de prosperidade graas
produo de cana-de-acar. A cultura da cana desenvolveu-se muito e a colnia
estava em via de se tornar o primeiro centro produtor e exportador de acar do
mundo. O Brasil se beneficiava de uma conjuntura de preos elevados do acar na
Europa e a atividade exportadora era fortemente rentvel. O visitador interessou-se
muito pela produo do acar, pois a provncia estava envolvida com a produo.36
Essa explicao dos lucros do comrcio aucareiro um convite explcito aconsiderar o interesse que haveria para os jesutas em produzir acardiretamente. (...) Para Cardim e Gouva, parece claro que os jesutasdevessem se engajar na economia aucareira para garantir a sobrevivnciada provncia e aliviar de dvidas os colgios.37
Na metade do sculo XVI, a Coroa portuguesa olha com maior ateno para a
sua colnia americana, pois a produo aucareira poderia ser ampliada e ajudaria
equilibrar s finanas do reino. A colnia poderia tornar-se a maior produtora e
distribuidora de acar. Portugal, naquele momento, sofria com a concorrncia do
Oriente.38 A qualidade do solo e o clima do litoral nordestino favoreciam o cultivo da
36 Cf. Charlotte de CASTELNAU-LESTOILE, Operrios de uma vinha estril, p. 58.37 Ibid., p. 59.38 Cf. Capistrano ABREU, Caminhos antigos e Povoamentos do Brasil, p. 75.
28
cana-de-acar. Os engenhos se multiplicavam, a economia se dinamizava sob a
tutela portuguesa.39
Nesse contexto, a presso pela mo-de-obra escrava aumentava. Os ndios
encontrariam nos jesutas aliados contra os colonos, mas estes tambm acabaram
encontrando nos ndios mo-de-obra barata.40
O fato de se envolverem com a produo de acar em suas fazendas no
levou os jesutas a abandonarem seu projeto missionrio de evangelizar os ndios.
Para Gouva e seu secretrio Cardim, a produo de acar pelos jesutas ajudaria
a garantir a sobrevivncia da provncia e a aliviar as dvidas dos colgios. Nesse
sentido, a posse de escravos pela Companhia no parecia perturbar o visitador e
seu companheiro.41
(...) De fato, na estratgia jesuta, o trabalho junto s elites era central; eletinha efeitos multiplicadores, abria as portas fundamentais da sociedade, por meio dele que se garantiam provncia os ganhos pelo vis das esmolase das doaes, e eventualmente recrutas de qualidades. Ferno Cardim osapresenta ento como uma clientela-alvo da qual era necessrio se ocuparatravs dos colgios e da educao de seus filhos. Ele insiste sobre aimportncia das misses temporrias no Recncavo baiano e no interiorpernambucano, para se ocupar das populaes escravas de suas fazendas.42
A insero na sociedade colonial, com suas exigncias e tenses, acabou
introduzindo modificaes no projeto inicial dos jesutas. Por outro lado, as
novidades e desafios da vida na colnia tambm influenciariam nessa dinmica.
Cabe aqui, um olhar para as Constituies. Estas queriam levar os que entravam na
Companhia a plasmar sua identidade jesutica. Os Exerccios Espirituais dariam uma
contribuio especfica e importante para este processo.43
A longa formao, a dedicao aos estudos e a prtica anual dos exerccios
espirituais contriburam para fortalecer a identidade do jesuta e lev-lo a agir para a
maior glria de Deus, sendo um contemplativo na ao. As Constituies no eram
regras fixas. Tinham um dinamismo interno que levava o jesuta a traduzir na ao, 39 Cf. Jacob GORENDER, O escravismo colonial, p. 498.40 Cf. Antnio Jos SARAIVA, Histria e Utopia, p. 22.41 Cf. Charlotte de CASTELNAU-LESTOILE, Operrios de uma vinha estril, p. 62.42 Ibid., p. 62.43 Para traar paralelos e cruzamentos entre os Exerccios, as Constituies e as cartas jesuticas e omodo de proceder, ver J. EISENBERG, As misses jesuticas e o pensamento poltico moderno.
29
no seu modo de proceder, a sua experincia identitria. As Constituies
convidavam-nos a agirem com liberdade e criatividade dentro dos limites do bom
senso.44
Pode-se entender nessa dinmica a criao dos aldeamentos. O aldeamento
foi uma soluo encontrada para superar as inmeras dificuldades na evangelizao
dos indgenas, embora as aldeias fossem espaos perigosos para os missionrios.
O visitador Gouva reconhece no Regimento a legitimidade dos jesutas estarem
nas aldeias, como demonstra Charlotte:
O regimento confirma o lugar da aldeia na provncia definindo aosmissionrios os meios de realizar ali sua salvao e a dos ndios. Esse textode uso interno do mundo jesuta leva tambm em considerao o mundoexterior no caso, a sociedade colonial e os poderes polticos e religiosos pois a aldeia no somente um espao religioso, mas fundamentalmente umespao poltico, uma unidade administrativa onde vivem os ndios livres, eum espao econmico, o lugar onde se concentra uma fora de trabalho. Noentanto, apesar de evidentes tentativas conciliadoras, o regimento noconsegue resolver essa questo do lugar da aldeia na sociedade colonial, oque explica as dificuldades das aldeias jesutas na dcada seguinte.45
A empresa colonial trazia no seu bojo contradies que no tardariam a se
manifestar. Propagar a f46 e conquistar terra, mais cedo ou mais tarde, geraria
tenses. De um lado, o colono com seus interesses mercantis e do outro, os
jesutas, protegendo os ndios e, ao mesmo tempo, concorrendo com os prprios
colonos. Os missionrios no se restringiram somente catequese. Acabaram
tornando-se tambm bons administradores e bons colonizadores. Quando houve a
necessidade de se expandir o projeto mercantilista, os primeiros a sofrerem foram os
indgenas. Requisitados como mo-de-obra, tiveram nos missionrios seus
defensores. Defesa pouco eficaz, verdade, pois o genocdio foi inconstestvel.
A fora do projeto mercantilista acabou levando de roldo ndios e
missionrios. Essa histria teve vrias etapas que relembremos a seguir.
44 Charlotte de CASTELNAU-LESTOILE, Operrios de uma vinha estril, p. 69.45 Ibid., p.150.46 Segundo Laura de Mello e SOUZA, em O diabo e a Terra de Santa Cruz, p. 33: A f no seapresentava isolada da empresa ultramarina: propagava-se a f, mas colonizava-se tambm. Ascaravelas portuguesas eram de Deus, nelas navegavam juntos missionrios e soldados, pois no sso apstolos os missionrios seno tambm os soldados e capites, porque todos vo buscargentios e traz-los ao lume da f e ao grmio da Igreja.
30
1.3 FUNDAO E DESENVOLVIMENTO DAS REDUES
Na qualidade de gro-mestre da Ordem de Cristo, o rei portugus era o
responsvel pela propagao da f crist nos territrios descobertos sob sua alada.
Para cumprir essa tarefa, de acordo com um parecer papal, o rei era competente
para recolher tambm os tributos devidos Igreja na colnia e investi-los para o
desenvolvimento do projeto missionrio. Obedecia, assim, a uma das prerrogativas
que lhe vinha em forma de dever, por conta do regime do padroado47, institudo em
Portugal desde a Idade Mdia, como mencionamos anteriormente.
De todos os cantos da Europa e de todas as ordens religiosas surgiram
voluntrios cheios de coragem e zelo apostlico, oferecendo-se como missionrios
para levar a Santa F aos gentios. Catequizar os nativos era urgente. Os voluntrios
aplicaram-se com notvel empenho na conquista das almas para a Igreja,
compensando na Amrica as duras perdas europias com a Reforma.
A Vila de So Paulo, no sculo XVI, vivia da agricultura de subsistncia at
ser redimensionada pela ao dos bandeirantes. As bandeiras estavam ligadas
demanda por mo-de-obra nos arredores do planalto e no serto.
John Monteiro, em Negros da Terra48, reconstitui a evoluo da escravido
indgena e do bandeirantismo. Esse processo tem o seu auge no sculo XVII. O
planalto paulista, graas mo-de-obra indgena, deixa de ser uma das regies
mais atrasadas da colnia e assiste a um grande desenvolvimento agrcola.
Tanto no sculo XVI quanto no XVII, o escravo indgena, em So Paulo, era a
maioria da populao. A busca constante de mo-de-obra seria o contraponto para
garantir o abastecimento, devido ao alto ndice de mortes. O montono ritmo da vida
e o trabalho em uma fazenda contrastavam com a vida nmade e selvagem. A morte
do indgena no ocorria apenas pelo volume de trabalho, mas pela forma desumana
como este trabalho se realizava. Outro fator letal era a falta de resistncia s
doenas da civilizao.
47 Sobre o padroado portugus, consulte: Eduardo HOORNAERT, Histria da Igreja na AmricaLatina, p. 160.48 Cf. John MONTEIRO, Negros da Terra, p. 8.
31
A constante busca da mo-de-obra indgena estava tambm ligada
socialmente a um aspecto da vida portuguesa. H nos colonos, brancos e mestios,
uma forte averso ao trabalho braal. Ocupar o tempo com o trabalho na lavoura era
considerado indigno. Ter quem faa por ele hbito presente desde os primeiros
momentos da colonizao. A digna ociosidade49, dentro dos ditames e
entendimentos da poca, ope-se sofrida luta pelo po de cada dia.
Numerosa escravaria se fazia necessria para a produo de um excedente
que pudesse ser exportado para outras partes da colnia com custos baixos. A mo-
de-obra escrava ndia era imprescindvel para a expanso econmica da colnia. Ao
mesmo tempo, a Coroa visava aumentar suas rendas com a cobrana do quinto
sobre toda e qualquer produo. As finanas do reino necessitavam de entrada de
capital para se equilibrarem. A crise gerada pelo processo de Restaurao foi
agravada com a perda do acar de Pernambuco - a capitania cara nas mos dos
holandeses, na primeira metade do sculo XVII. Acrescente-se ainda a expulso
deles em 1654, que exigiu altos custos.
Na verdade, no decorrer do sculo XVII, os colonos afirmaram, cada vez commais convico, a necessidade do cativeiro indgena, reconhecendoexplicitamente que, para viabilizar o desenvolvimento econmico, mesmo emescala modesta, seria necessrio superar os obstculos mais fortes que aposio jesutica em prol da liberdade dos ndios. Ora, praticamente semcapital e sem maior acesso a crditos, reconheciam a impossibilidade deimportar escravos africanos em nmero considervel. Ademais, esbarravamna serra do Mar, o que tornava o transporte difcil e caro, especialmente paraos produtos de valor relativamente baixo que saam do planalto.50
Para John Monteiro, segundo a mentalidade da poca, os paulistas
prestavam grandes servios a Deus e Coroa, fosse tomando posse da terra ou
convertendo os ndios verdadeira f e civilizando-os, sem esquecer que as razes
econmicas do cativeiro estavam atreladas s convenincias do quinto.
Tanto que se afirma que no h paulista sem o ndio. Estes garantiram o
poder e a riqueza dos primeiros. Entende-se, ento, a rejeio paulista a tudo o que
se interpusesse entre eles e os ndios. A averso aos jesutas aumentava. Ao longo
da histria colonial paulista, inmeros episdios expressaram esta forte rivalidade e 49 Cf. Srgio Buarque de HOLANDA, Razes do Brasil, p. 27-28.
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averso, que era recproca. O jesuta manifestava sua rejeio ao paulista apreador
e administrao dos ndios por particulares.
Diversos estudiosos, como Fausto, Jordo e Castelnau-LEtoile, entre outros,
ao falar sobre a administrao dos ndios por particulares, remetem o leitor, por
comparao, a encomienda, que era uma das formas encontradas pela Amrica
Espanhola, em paralelo escravido negra, tal como no Brasil, para que o ndio
fosse utilizado como mo-de-obra da empresa colonial. A encomienda e a
administrao do ndio por particulares, por serem formas muito prximas,
confundem-se em suas caractersticas, embora se saiba que a prtica espanhola
goze de uma conformao jurdica mais complexa. Quando se trata da
administrao do ndio por particulares no Brasil, trabalha-se com a idia de que a
prtica teria nascido de um procedimento oposto norma padro51, que seria o
aldeamento sob administrao religiosa ou leiga, isto , a cargo de um capito-mor
indicado, por exemplo, pelo governador. Do aldeamento, os ndios passaram a ser
desviados, ou por ao do capito-mor ou mesmo por mando direto de
governadores, para estabelecimentos particulares, fixando-se, assim, o hbito da
administrao do ndio por particular. Nas palavras de Gorender:
(...) mas os governadores e capites-mores das aldeias, em oposio norma oficial, desviaram parte dos ndios aldeados para seusestabelecimentos particulares e ali os convertiam em escravos, nasceu da osistema de administrao confiada a particulares.52
Assim, ao lado do ndio propriamente escravo e do ndio aldeado, tem-se a
figura do ndio administrado. Ele to escravo quanto o primeiro. Entretanto, do
ponto de vista legal, isto no poderia acontecer, pois, a princpio, o ndio
administrado por particulares forro, tal como se d na encomienda. Em outras
palavras, o administrado no pode ser visto como escravo, o que de fato no
aconteceu no cotidiano da colnia. Cedo, o ndio administrado engrossou o nmero
dos verdadeiros cativos. No fundo, a administrao particular sempre foi preldio da
50 John MONTEIRO, Negros da Terra, p. 133.51 Cf. Jacob GORENDER, O escravismo Colonial, p. 498.52 Ibid., 498.
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forma completa de escravido53. Neste sentido, o ndio administrado, por lei, no
era escravo, mas na prtica, no havia diferena.
A administrao do ndio por particulares gerou deformaes como o no
pagamento do salrio e a alienao de mo-de-obra, ao deixar ndios como herana.
Tudo o que um administrador no podia permitir. Ao longo do tempo, a
administrao servia como suporte para escravizao dos indgenas.54
O aldeamento podia estar sob administrao jurdica tanto de particulares,
quanto de religiosos. Nas duas situaes o ndio estava sob tutela.
O processo de colonizao, fazendo palco de uma tentativa passageira deimplantao de uma economia de mercado, e valorizando o planalto a partirdo core representado pelos Campos de Piratininga, por intermdio de umaestrutura econmica particular, marcada pela modstia das relaes com oexterior, contribuiu para que o referido core se constitusse no cenrio maissignificativo das iniciativas de implantao de aldeamentos. Estes foram, semdvida, elementos perfeitamente entrosados no conjunto das caractersticasque marcaram os fatos da colonizao (...) as condies, fundamentalmentefsicas, que presidiram o processo de colonizao condicionam tambm osfatos de distribuio, ou de redistribuio dos grupos indgenas. (...). Nestesentido, os quadros do povoamento pr-cabralino, participantes do processode reorganizao do espao pela colonizao, foram grandementeresponsvel pelas oportunidades que ofereceram para a criao dealdeamentos no planalto. (...) justificam os contrastes entre a riqueza dealdeamentos no planalto e sua pobreza no litoral. (...). Ela constitui emimportantssimo instrumento do prprio processo de colonizao, na medidaem que, utilizando o motivo da cristianizao para justificar a fixao e oaldeamento do indgena.55
A ligao da Vila de So Paulo com os jesutas era antiga. Os aldeamentos
organizados por eles buscavam maior distanciamento do litoral. O fato de os
tupinamb estarem em guerra impulsionava a busca pelo serto. No serto seria
possvel evangelizar os carij. A vila, por estar estrategicamente localizada no incio
do planalto, tornou-se ponto obrigatrio para os que queriam adentrar o serto e,
aos poucos, a ela acorreram moradores que, em suas imediaes, cultivavam
lavouras que empregavam mo-de-obra indgena. Os paulistas buscavam-na nas
matas dos arredores e, medida que escasseava, foram busc-la mais longe.
53 Cf. Jacob GORENDER, O escravismo Colonial, p. 501.54 Ibid., p. 498.55 Pasquale PETRONE, Aldeamentos Paulistas, p. 108.
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No sculo XVII, j nas primeiras dcadas, vemos convergir para So Paulo
levas indgenas que os paulistas capturavam nos mais distantes lugares, como nos
territrios pertencentes s misses jesuticas, a oeste do estado do Paran. Fato
que escandalizava os religiosos da Companhia e os punha em litgio com os
colonos, pois a legislao afirmava que o ndio, descido do serto, deveria
permanecer aldeado e sob o controle espiritual e temporal dos jesutas56. O intuito
no era evitar a prestao de servio do ndio ao colono, porque isso soava natural e
bvio no contexto da estrutura colonial, mas impedir que o ndio fosse posto em
regime de escravido absoluta e logo se finasse, devido s condies desumanas
de trabalho. Em So Paulo, o poder real declarou-se a favor da entrega da
administrao dos sistemas organizados de aldeamento aos jesutas. Somente no
incio do sculo XVII a administrao temporal dos aldeamentos passou s mos de
um capito, que era escolhido pelo poder civil. A populao paulista acabou
desenvolvendo o hbito de intervir ativamente no cuidado do ndio muito antes dos
jesutas assumirem a administrao temporal. Entende-se, ento, o motivo do
choques entre jesutas e colonos. Mesmo na Bahia, a implantao dos aldeamentos
no surtiu o efeito desejado pelos missionrios e pela Companhia. O Regimento de
Tom de Souza57, documento oficial, permitia a criao e implantao do sistema de
aldeamento:
Eu, el-rei, fao saber a vs Tom de Sousa fidalgo de minha casa que vendoeu quanto servio de Deus e meu conservar e nobrecer as capitanias epovoaes das terras do Brasil e dar ordem e maneira com que melhor emais seguramente se possam ir povoando para exaltamento da nossa santaf (...) Eu sou informado que os gentios que habitam ao longo da costa dacapitania de Jorge de Figueiredo da vila de So Jorge at a dita baa deTodos os Santos so da linhagem dos topinambais e se levantaram j porvezes contra os cristos e lhes fizeram muitos danos e que ora esto aindalevantados e fazem guerra e que ser muito servio de Deus e meu seremlanados fora dessa terra para se poder provar assim dos cristos como dosgentios da linhagem dos topiniquis que dizem que gente pacfica e que se
56 De modo geral, o aldeamento foi visto como algo positivo pela Coroa e autoridades coloniais. Noplano poltico, foi como um brao da autoridade real, sendo institudo para a prestao de serviospblicos, fez parte da razo do Estado portugus lutar pela sua preservao, pois o aldeamentoserviria como celeiro de mo-de-obra barata para as obras pblicas, para trabalhos agrcolas eexcedentes para abastecimento das praas em momentos de escassez. Para maioresesclarecimentos ler: Jacob GORENDER, O escravismo Colonial; Jos Antnio SARAIVA, Histria eUtopias.57 Tom de Sousa, primeiro governador-geral do Brasil, chegou Bahia em 29 de maro de 1549.Trazia consigo um regimento que recebera do rei D. Joo III em dezembro de 1548, nomeando-opara o exerccio do cargo e definindo suas tarefas.
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oferecem a ajudar a os lanar fora e a povoar e a defender a terra pelo quevos mando que escrevais pessoa que estiver por capito na dita capitaniade Jorge de Figueiredo e a Afonso Alvares provedor de minha fazenda em elae a algumas outras pessoas que vos bem parecer que venham dita baa enela forem praticveis com ele e com quaisquer outras que nisso bementendam a maneira que se ter para os ditos gentios serem lanados na ditaterra e o que sobre isso assentardes poreis em obra tanto que vosso tempoder lugar para o poderdes fazer. (...) Porque parece que ser grandeinconveniente os gentios que se tornarem cristos morarem na povoao dosoutros e andarem misturados com eles e que ser muito servio de Deus emeu.58
Pelo do Regimento de Tom de Souza, ficava claro o interesse do rei no
Brasil, tanto pela colonizao, quanto pelas questes de ordem religiosas.
Os jesutas foram encarregados pela Coroa de pr em ao a poltica real de
converso e proteo dos ndios. O mesmo aconteceria na poca de Mem de S
(1557-1575)59, quando do estabelecimento das aldeias.
Segundo Charlotte, o estatuto das aldeias, de Mem de S (1558), previa a
presena de missionrios encarregados pela realizao da missa, de ensinar a
doutrina e o ensino elementar, mas no lhes confiava papel administrativo.60
De acordo com Khel61, os jesutas que primeiro chegaram no Brasil
encontraram a terra abandonada em todos os sentidos, especialmente no terreno
espiritual. A escravido dos ndios representava uma sria dificuldade s intenes
catequticas, pois instilava sentimentos de rancor em relao a qualquer branco
indiscriminadamente. Os padres tomaram a defesa da liberdade dos ndios,
granjeando-lhes logo a simpatia.
As tribos resistiram s vrias formas de sujeio: pela guerra, pela fuga, pela
recusa ao trabalho obrigatrio. Foram ainda vtimas de doenas como sarampo,
varola e gripe, para as quais no tinham defesas biolgicas. Duas epidemias, entre
1562 e 1563, mataram mais de 60 mil ndios.
58 REVISTA DO INSTITUTO HISTRICO E GEOGRFICO BRASILEIRO apud Darcy RIBEIRO;Carlos de Araujo MOREIRA NETO (orgs.), A fundao do Brasil.59 A origem dos aldeamentos est ligada estreitamente ao projeto portugus: o Regimento dasMisses, trazido pelo governador Mem de S e orientado em seus primeiros passos por Nbrega,consistia no estabelecimento de centros de concentrao nos quais os ndios eram localizados,instrudos na religio e em rudimentos da agricultura e iniciados na prtica de um trabalho regular.Lus Augusto Bicalho KHEL, Simbolismo e profecia na fundao de So Paulo, p. 70.60 Cf. Charlotte de CASTELNAU-LESTOILE, Operrios de uma vinha estril, p.115.61 Lus Augusto Bicalho KHEL, Simbolismo e profecia na fundao de So Paulo, p. 35.
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Podemos distinguir duas tentativas bsicas de sujeio dos ndios por partedos portugueses. Uma delas, realizada pelos colonos segundo um frio clculoeconmico, consistiu na escravizao pura e simples. A outra foi tentadapelas ordens religiosas, principalmente pelos jesutas, por motivos que tinhammuito a ver com suas concepes missionrias. Ela consistiu no esforo paratransformar os ndios atravs do ensino em bons Cristos, reunindo-os empequenos povoados ou aldeias. Ser bom cristo significava tambm adquiriros hbitos de trabalhos dos europeus, com o que se criaria um grupo decultivadores indgenas flexvel em relao s necessidades da Colnia.62
necessrio ter presente que o aldeamento sob jurisdio religiosa, forma
incompleta de escravido indgena, continuava se preocupando com a preservao
da mo-de-obra nativa.
Para Serafim Leite63, o aldeamento dos ndios visava garantir o xito de uma
catequese mais aprofundada. Percorrer as aldeias indgenas no era suficiente para
uma catequese mais slida. O nomadismo, a falta de exerccios religiosos e o
convvio com cristos poderiam ser prejudiciais aos ndios recm-evangelizados
que, com freqncia, retornavam aos hbitos antigos. O aldeamento fixando
caadores e pescadores andarilhos poderia contribuir com o xito das misses. Se
os padres se contentassem com percorrer as aldeias indgenas, alm dos possveis
riscos, tirariam precrio fruto. O que ensinavam um ms, por falta de exerccio e de
exemplo estiolaria no outro 64.
No s a necessidade de fix-los era urgente para eliminao das prticas
antigas, como de subtrair os batizados da influncia dos que continuavam pagos,
polgamos e antropfagos. Dispersos pelo serto, os ndios nem se purificariam de
suas supersties, nem deixariam de se guerrear e comer uns aos outros. Era
necessrio modificar o seu sistema social e econmico, da a necessidade de fix-
los nas aldeias.
Os aldeamentos propostos pelos jesutas j haviam sido ordenados por D.
Joo III no Regimento a Tom de Sousa, dada a inconvenincia de os ndios se
tornarem cristos e ficarem soltos, misturados com os ainda no convertidos. Para o
Regimento, seria de muito servio a Deus e Coroa que os convertidos s
conversassem com cristos e no mais com gentios. O aldeamento tambm
62 Boris FAUSTO, Histria Concisa do Brasil, p. 23.63 Cf. Serafim LEITE, Cartas dos Primeiros Jesutas do Brasil VII (1553 1558), p. 42-48.64 Ibid., p. 42.
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defendia o ndio da influncia dos colonizadores, principalmente dos maus colonos,
e tambm limitava a liberdade e cerceava suas crenas, suas manifestaes
religiosas, num ambiente em que a nica e verdadeira expresso religiosa era a do
homem branco. A poltica de segregao gerou nos ndios, devido tambm
catequese, o respeito pelos brancos. Cabia aos padres inculcarem a religio catlica
como nica e verdadeira.
Porque parece que ser grande inconveniente os gentios que se tornaremcristos morarem na povoao dos outros e andarem misturados com eles eque ser muito servio de Deus e meu apartarem-nos de sua conversaovos encomendo e mando que trabalheis muito por dar ordem como os queforem cristos morem juntos perto das povoaes das ditas capitanias paraque conversem com os cristos e no com os gentios e possam serdoutrinados e ensinados nas coisas de nossa santa f e os meninos porqueneles imprimir melhor a doutrina trabalhareis por dar ordem como se faamcristos e que sejam ensinados e tirados da conversao dos gentios e aoscapites das outras capitanias direis de minha parte que lhes agradecereimuito ter cada uma cuidado de assim o fazer em sua capitania e os meninosestaro na povoao dos portugueses e em seu ensino folgarei de se ter amaneira que vos disse.65
As primeiras tentativas de aldeamentos jesuticos datam de 1550. No comeo
daquele ano, Nbrega escrevera: desejamos congregar todos os que se batizam,
apartado dos mais66. Para isso, ordenou que o padre Diogo lvares ficasse entre
eles. Em 1552, Diogo lvares avisara D. Joo III que os ndios estavam reunidos em
uma aldeia, em torno de uma igreja, onde eram ensinados.67
(...) Quantas vezes, com o nomadismo intermitente dos ndios, ao voltarem ospadres a uma povoao, que deixaram animada pouco antes, em lugar delaachavam cinzas.68
Atravs dos aldeamentos, a modalidade mais eficaz e original da colonizao
crist do Brasil, foi a primeira semente das clebres redues, e o desenvolvimento
do trabalho missionrio. Mem de S deu o mais decisivo apoio material e moral a
65 REVISTA DO INSTITUTO HISTRICO E GEOGRFICO BRASILEIRO apud Darcy RIBEIRO;Carlos de Araujo MOREIRA NETO (orgs.), A fundao do Brasil.66 Cf. Serafim LEITE, Cartas dos Primeiros Jesutas do Brasil VII (1553 1558), p. 42.67 Ibid., p. 42-48.68 Ibid., p. 42-48.
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Nbrega e a todos os jesutas, pois com o consentimento de El-Rei, algumas penas
de lei foram aplicadas no momento e na tentativa de fixar os moradores, que facilitou
a construo de Igrejas e aldeias.
Os zelosos jesutas organizaram de tal modo as aldeias, oferecendo aos
ndios vantagens espirituais e materiais, que muitos se sentiram atrados para a vida
crist, apresentada como superior ao seu antigo modo de vida.
O crculo das aldeias, iniciado ao redor da cidade, alargava-se pouco a
pouco.69 Nos primeiros aldeamentos, o trabalho dos padres consistia em misses
mais ou menos demoradas pelas aldeias pags. Mergulhados no universo dos
ndios, os jesutas procuravam captar a simpatia dos membros influentes das tribos,
enquanto os meninos rfos atraam para o Colgio crianas indgenas para serem
evangelizadas.
Ao discutir o modo mais eficaz para executar os planos jesuticos, Nbregainsistiu que queria ver o gentio sujeito e metido no jugo da obedincia doscristos, para se neles poder imprimir tudo quanto quisssemos, porque elede qualidade que domado se escrever em seus entendimentos e vontademuito bem a f de Cristo.70
Depois da estabilizao das aldeias e da fixao de residncia dos padres em
cada uma delas, o problema passou a ser as atribuies dos religiosos, dado o
aumento do nmero de missionrios. Em 1598, o Regimento acata o desafio de
conciliar a experincia missionria com o esprito da Companhia. A aldeia era um
espao perigoso para a identidade jesutica, mas era tambm a forma original
encontrada pelos jesutas de evangelizar.71 Uma srie de mecanismos
recomendados pelo Regimento visava fazer a Companhia existir no lugar da misso,
isto , aonde ela no existe na aldeia.72 O superior de cada aldeia tinha o papel
supervisionar, coordenar e delegar as atribuies dos padres ou desloc-los, se
necessrio, para melhor desenvolvimento das aldeias.73
69 Cf. Serafim LEITE, Cartas dos Primeiros Jesutas do Brasil VII (1553 1558),p. 48.70 John MONTEIRO, Negros da Terra, p.41.71 Cf. Charlotte de CASTELNAU-LESTOILE, Operrios de uma vinha estril, p.130-131.72 Cf. Ibid., p. 150.73 Cf. Serafim LEITE, Cartas dos Primeiros Jesutas do Brasil VII (1553 1558), p. 48.
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Os jesutas foram atrs dos ndios para conhecer sua lngua e seus costumes,
agreg-los s suas igrejas e aos seus colgios e transform-los em bons cristos e
em trabalhadores submissos. As misses e as redues reuniram dezenas de
milhares de ndios de diferentes tribos. Os jesutas acreditavam poder preserv-los
da escravido, catequiz-los e, principalmente, organiz-los em comunidades de
trabalho coletivo sob seu direito e pleno controle. Mas o projeto jesutico, no qual a
coero e o paternalismo muito contriburam para a desfigurao cultural indgena,
pouco ajudou para a sobrevivncia dos ndios e de sua cultura, principalmente por
causa do avano das bandeiras.
Figura 1
Fonte: Divalte, Histria Volume nico, 2002
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As grandes bandeiras ou entradas, organizadas no planalto de Piratininga,
foram freqentes na primeira metade do sculo XVII, mais especificamente entre as
dcadas de vinte e quarenta daquele sculo. Nessa poca, os bandeirantes
assaltaram as redues jesuticas paraguaias para de l trazer levas de ndios
guarani que, por sua prpria cultura, eram os mais capazes para as lidas da terra. O
bandeirantismo de larga escala representou o esforo vigoroso para manter e
desenvolver o projeto mercantilista no planalto paulista. A agricultura paulista contou
com a fora do trabalho escravo necessria para que o preo dos produtos fosse
competitivo no mercado. Dessa forma, os paulistas foram rotulados de um lado,
como escravizadores de ndios e, de outro, como administradores.74 Eles assumiram
de maneira mais incisiva o papel de administradores no final do sculo XVI, mais
especificamente nas duas primeiras dcadas do domnio filipino - momento em que
Portugal estava sob o domnio espanhol.
A Espanha, no campo da legislao indgena, possua um conjunto de leis
mais benficas aos ndios do que Portugal. Nesse aspecto, Portugal nunca chegou a
igualar-se a Espanha.
Neste perodo ocorreu tambm a chamada Unio das duas coroas, quandoPortugal e Castela tiveram um nico rei (1580-1640). Tal episdio interferiuigualmente na vida colonial do Brasil, pois se de um lado produziu umalegislao mais favorvel liberdade indgena, de outro facilitou a penetraoportuguesa em terras de Castela.75
A elaborao de novas leis indgenas respondeu evoluo da sociedade
colonial. A colnia estava plenamente engajada na cultura do acar, que favorecia
o desenvolvimento, mas necessitava de mo-de-obra abundante tanto para a cultura
da cana, quanto para a sua transformao em acar.76
As primeiras leis de proteo do ndio foram as de 1595 e 1596, com o intuito
de preservar o indgena nas terras da coroa espanhola. No que tange ao Brasil,
parecem ter visado situao do ndio no litoral do Nordeste, mas valiam para todo
o territrio. O mais importante nessas leis foi a preocupao em regular os trabalhos
74 Cf. John MONTEIRO, Negros da Terra, p. 44.75 Benedito A PRZIA, Os ndios do planalto paulista nas crnicas quinhentistas e seiscentistas, p.80.76 Cf. Charlotte de CASTELNAU-LESTOILE, Operrios de uma vinha estril, p.274-275.
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que os ndios poderiam prestar, se aldeados, estabelecendo, por exemplo, o tempo
de servio fora do aldeamento - dois meses, na lei de 1596. A lei de 1595 afirmava
que o ndio apreendido em guerra justa77 era escravo. Os demais, livres - isso em
ambas as leis. Os trs primeiros pargrafos da Lei de 26 de julho de 1596 nos
indicam suas prioridades:
Lei de 26 de Julho de 1596 sobre a liberdade dos ndios
Eu el rej faco saber aos que este aluara, e regimento uirem, q considerandoeu o muito que emporta, p. a conuerso do gentio do Brasil a nossa feecatholica, e p a conseruao daquelle estado dar ordem, com q o gentiodea do serto p as partes uesinhas as pouaes dos naturais deste Reyno,e se comuniquem com elles, e aia entre hus, e outros a boa corespondeia, qconvem para uiuerem em quietao, e conformidade, me pareceo emcarregarpor hora, em quanto eu nom ordenar outra cousa, aos religiosos da Comp deJesu o cuydado de fazer descer este gentio do serto e o enstruir nas cousasda religio xpa, e domesticar, emsinar, e escaminhar no q convem aomesmo gentio, assi nas cousa de sua salvao, como na uiuenda comum, etratamento com os pouadores, e moradores daquellas partes, no qprocedero pollamaneyra seginte.
Primeiramente os Relygiosos procuraro por todos os bons meosencaminharao gentio praque uenha morar e comunicar com os moradores nos lugares, qo governador lhe ainara com pareer dos Religiosos, para trem suaspouaes, e os Religiosos ceclararo ao gentio, q he liure, e q na sualiberdade uiuira nas ditas pouaes e sera snor da sua fazenda, asi comohena serra, por quanto eu o tenho declarado por liure, e mando que seiaconseruado em sualiberdade e usaro o