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ANAIS DO II ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES Revista Brasileira de História das Religiões – ANPUH Maringá (PR) v. 1, n. 3, 2009. ISSN 1983-2859. Disponível em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html 1 A GLOSSOLALIA (FALAR EM LÍNGUAS) NO CRISTIANISMO DO PRIMEIRO SÉCULO E O FENÔMENO HOJE Sebastiana Maria Nogueira * RESUMO: O fenômeno do “falar em línguas” é citado em dois livros do Novo Testamento: Atos e I Coríntios. Este trabalho busca compreender o que Paulo (I Cor 12-14) quer dizer por “falar em línguas”, que tipo de fenômeno essas línguas querem mostrar e que papel elas desempenham na vida Cristã. A partir dessas informações compreender se Paulo estava falando de uma manifestação diferente do moderno “falar em línguas”. PALAVRAS-CHAVE: Êxtase, Estado Alterado de Consciência, Transe, Corinto, Paulo, Paralelos Helenísticos INTRODUÇÃO A segunda carta de Paulo aos Coríntios, capítulos 12-14, especialmente o 14 testificam a existência do fenômeno conhecido como “falar em línguas” dentro do Cristianismo primitivo do primeiro século. Nossa evidência, no entanto, quanto à natureza da glossolalia Cristã primitiva é limitada e controversa. O fato de nossa principal fonte de informação sobre a profecia e glossolalia cristãs no primeiro século (1Cor 12-14) vir de um contexto predominantemente helenístico leva muitos a afirmarem que as influências da cultura greco-romana são determinantes. Aqueles que defendem esta posição argumentam que Paulo, em 1Cor 12-14, define a natureza da profecia e da glossolalia para distingui-las das experiências religiosas pré-cristãs da congregação de Corinto. A reivindicação de que o fenômeno exibe paralelos na história das religiões, inclusive os do mundo moderno, nos conduzem a buscar esclarescimentos no exame desses paralelos. É impossível também divorciar o fenômeno da glossolália dos conceitos antropológicos do transe, do estado de consciência alterado e do contexto sociológigo do êxtase. Uma das formas de expressão da glossolalia é o balbuciar de palavras ou sons sem interconexão ou sentido. Vários paralelos deste fenômeno são encontrados em diferentes períodos e lugares da história das religiões. * Universidade Metodista de São Paulo – UMESP.

A Glossolalia Falar Em Linguas No Cristianismo

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A Glossolalia Falar Em Linguas No Cristianismo

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  • ANAIS DO II ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTRIA DAS RELIGIES E DAS RELIGIOSIDADES Revista Brasileira de Histria das Religies ANPUH Maring (PR) v. 1, n. 3, 2009. ISSN 1983-2859. Disponvel em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html

    1

    A GLOSSOLALIA (FALAR EM LNGUAS) NO CRISTIANISMO DO

    PRIMEIRO SCULO E O FENMENO HOJE

    Sebastiana Maria Nogueira*

    RESUMO: O fenmeno do falar em lnguas citado em dois livros do Novo Testamento: Atos e I Corntios. Este trabalho busca compreender o que Paulo (I Cor 12-14) quer dizer por falar em lnguas, que tipo de fenmeno essas lnguas querem mostrar e que papel elas desempenham na vida Crist. A partir dessas informaes compreender se Paulo estava falando de uma manifestao diferente do moderno falar em lnguas. PALAVRAS-CHAVE: xtase, Estado Alterado de Conscincia, Transe, Corinto, Paulo, Paralelos Helensticos

    INTRODUO

    A segunda carta de Paulo aos Corntios, captulos 12-14, especialmente o 14

    testificam a existncia do fenmeno conhecido como falar em lnguas dentro do

    Cristianismo primitivo do primeiro sculo. Nossa evidncia, no entanto, quanto

    natureza da glossolalia Crist primitiva limitada e controversa. O fato de nossa

    principal fonte de informao sobre a profecia e glossolalia crists no primeiro sculo

    (1Cor 12-14) vir de um contexto predominantemente helenstico leva muitos a

    afirmarem que as influncias da cultura greco-romana so determinantes. Aqueles que

    defendem esta posio argumentam que Paulo, em 1Cor 12-14, define a natureza da

    profecia e da glossolalia para distingui-las das experincias religiosas pr-crists da

    congregao de Corinto. A reivindicao de que o fenmeno exibe paralelos na

    histria das religies, inclusive os do mundo moderno, nos conduzem a buscar

    esclarescimentos no exame desses paralelos. impossvel tambm divorciar o

    fenmeno da glossollia dos conceitos antropolgicos do transe, do estado de

    conscincia alterado e do contexto sociolgigo do xtase.

    Uma das formas de expresso da glossolalia o balbuciar de palavras ou sons

    sem interconexo ou sentido. Vrios paralelos deste fenmeno so encontrados em

    diferentes perodos e lugares da histria das religies.

    * Universidade Metodista de So Paulo UMESP.

  • ANAIS DO II ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTRIA DAS RELIGIES E DAS RELIGIOSIDADES Revista Brasileira de Histria das Religies ANPUH Maring (PR) v. 1, n. 3, 2009. ISSN 1983-2859. Disponvel em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html

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    O movimento pentecostal e carismtico renovado tem colocado a glossolalia na

    pauta de seus estudos recentes. Pesquisas sobre a moderna glossolalia tm afirmado que

    no h evidncia de que o falar em lnguas esteja relacionado com intelecto inferior,

    educao, posio social ou psicologia patolgica. Esta concluso tambm foi revelada

    por Felicitas Goodman1 em sua pesquisa antropolgica sobre a glossolalia em

    comunidades pentecostais. No entanto, ao contrrio da posio do movimento

    pentecostal, Goodman afirma que o falar em lnguas o produto do que

    freqentemente se chama de estado dissociativo. Para a autora a sada do mundo da

    conscincia representa um padro de comportamento humano observvel em vrias

    regies e que se manifesta em maior ou menor grau de acordo com as condies

    pessoais, varia de uma sociedade para outra.

    O conflito entre a compreenso de Paulo e a dos Corntios no que se refere s

    manifestaes extticas revela que Paulo no antecipou tipos de profecia exttica, como

    muitos afirmam, mas o transe proftico mais controlado. Para Paulo, aquele que

    profetiza est suficientemente consciente do que o rodeia e capaz de controlar sua fala

    quando outro sinaliza ter recebido uma revelao imediata (1Cor 14,30). O apstolo

    Paulo no nos diz nada diretamente a respeito do que os corntios concebiam como fala

    inspirada. Mas ele faz objees s atitudes dos corntios na assemblia, tais como: a

    larga prtica da glossolalia sem interpretao, o que no contribuia para o crescimento

    da assemblia, inclusive na presena dos descrentes; a prtica da profecia sem o teste

    congregacional; e o desejo individual de exercitar os dons profticos por competio,

    disputando oportunidades.

    A maioria das discusses teolgicas crists ignora a literatura etnogrfica sobre o

    assunto e as ferramentas oferecidas pelas cincias comportamentais. De um lado

    discute-se a exclusividade do comportamento nas igrejas crists como uma experincia

    restrita aos tempos apostlicos e conferida como uma graa especial aos seguidores de

    Jesus crucificado, a fim de pregar o Evangelho aos estrangeiros. Por outro, ressalta-se

    atualmente a discusso acerca da proibio, da tolerncia ou do encorajamento da

    glossolalia nos cultos cristos a fim de prover alternativas que permitam expressar

    sentimentos mais profundos.

    1 Speaking in Tongues. A Cross-Cultural Study of Glossolalia, 1974

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    DESENVOLVIMENTO

    A leitura preliminar de 1Cor 14,1-19 nos faz depreender uma divergncia entre a

    concepo de Paulo acerca de profecia e fala inspirada e a compreenso dos corntios.

    Uma das justificativas para tal divergncia encontra-se na prpria gnese do movimento

    cristo. Comeando sua existncia na Palestina Judaica, imersa por sculos nas

    tradies israelita-judaicas, cujo centro so as Escrituras, o movimento cristo emergiu

    como uma seita judaica, mas amadureceu em um contexto greco-romano, sendo

    profundamente alterado pela cultura e tradio ocidentais. Em pouco tempo, atraiu

    gentios de tal forma que, no fim do primeiro sculo, era em grande parte no-judaico.

    As artes mnticas, desde a adivinhao tcnica at a adivinhao inspirada,

    assim como os orculos, foram caractersticas integrais da vida religiosa e social em

    todo o perodo greco-romano. O conhecimento do futuro era indispensvel para reduzir

    os riscos inerentes em uma grande variedade de atividades humanas.

    Uma das formas de recepo desses orculos era a comunicao da divindade

    por meio de um mdium humano, como Ptia em Delfos e as Sibilas. Ptia foi uma

    sacerdotisa (mantij) que, sobre o trip de Apolo (que representava o trono divino),

    entrava em transe e, neste estado, proclamava seus orculos em uma linguagem que

    parecia uma mistura de um grego truncado e incoerente e uma vocalizao ininteligvel,

    relata Forbes2. A fala de Ptia era interpretada pelo profh,thj, que a transmitia ao

    interrogador em forma oracular hexamtrica e, se requerido, podia levar uma cpia

    escrita. A resposta de Ptia podia variar em grau de coerncia e inteligibilidade. O

    profeta transmitia a resposta de forma reduzida, e ditava para o inquiridor escrever, se

    desejasse.

    Neste sentido, Forbes3 destaca a importncia de se distinguir claramente entre

    um tipo de balbucio incoerente, fenmeno ininteligvel no nvel lingstico, e a

    obscuridade dos pronunciamentos oraculares de Ptia. Tal obscuridade no , de forma

    alguma, uma questo de inteligibilidade lingstica, mas simplesmente o fato de que

    seus orculos eram formulados em termos enigmticos de um tipo de aluso literria e

    metfora.

    2 Prophecy and Inspired Speech in Early Christianity and its Hellenistic Environment, 1997. p. 103. 3 Prophecy and Inspired Speech in Early Christianity and its Hellenistic Environment, 1997. p. 109.

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    Se estabelecermos um paralelo com a glossolalia, veremos tambm que no

    fcil descrever o contedo inteligvel daqueles que falam em lnguas. Goodman, ao

    tentar transcrever as gravaes em udio do material coletado em sua pesquisa de

    campo, concluiu que a glossolalia uma lngua desconhecida, que lembra o som de

    instrumentos musicais tocados sem harmonia.

    As religies mistricas constituem uma fonte importante para a compreenso do

    fenmeno da glossolalia praticada na comunidade de Corinto no tempo de Paulo.

    Forbes4, citando Eurpedes (Bacchae), descreve uma fala exttica com violentas

    manifestaes fsicas, tpicas das celebraes dionisacas, como gritos dos adoradores

    em frenesi, danas enrgicas, balanar frentico da cabea e cabelos em desordem. O

    ritmo marcado ao som de tambores, cmbalos e flautas. Os gritos invocatrios

    representam ttulos alternativos para a divindade. Forbes diz que no h indicao de

    que esses gritos sejam de uma lngua estrangeira, mas invocaes e aclamaes que

    parecem estar na lngua de origem dos membros do culto.

    Dentre os gritos de adorao popular a Dioniso, um que se apresenta com

    aparncia exttica e entendido como fenmeno da glossolalia o Bacchic tongues, que

    se dirige queles que no tm parte nos ritos Bacchic. Os coros so chamados satricos e

    destinados a expulsar todos aqueles que no so iniciados nos mistrios da comdia, que

    constituem parte do festival de Dioniso.

    Flon permanece como uma exceo na compreenso de inspirao no mundo

    helenstico. Para Forbes, a natureza da inspirao e do entusiasmo em Flon deve ser

    entendida a partir de duas categorias. A primeira evidncia est no prprio Flon, que

    atesta ter sido tomado pelo frenesi, manifestando os sintomas visveis da inspirao. A

    segunda advm da sua viso idiossincrtica acerca da natureza do frenesi filosfico, que

    ele considera uma inspirao divina.

    Os primeiros sintomas de inspirao, segundo Flon, so mentais, e localizadas

    dentro do indivduo. Mas transbordam para um reino visvel, onde so comumente

    incompreendidos. Para ele, a inspirao d acesso a formas de conhecimento antes

    indisponveis. Flon usa o termo possesso divina no para descrever experincias

    psicolgicas, mas para indicar o que ele mesmo vivenciou e chama de experincia

    proftica. Neste sentido, a experincia proftica de possesso do filsofo no

    4 Prophecy and Inspired Speech in Early Christianity and its Hellenistic Environment, 1997. p. 127.

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    acompanhada por gritos e danas violentas ou outros movimentos; o que considerado

    inspirao a contemplao, no o frenesi.

    Felicitas Goodman5 nos apresenta a primeira anlise intercultural do

    comportamento da glossolalia a partir da Lingstica e da Antropologia, relacionando o

    estudo dos estados psicolgicos e o comportamento lingstico e ritual. Embora o

    fenmeno seja observvel em muitas religies do mundo, no se trata de um

    comportamento dirio comum. Neste sentido, a autora pretende demonstrar em sua

    investigao que a glossolalia est associada a um estado alterado de conscincia.

    Muitas teorias sociolgicas justificam a glossolalia como um comportamento

    tpico das pessoas de classes desfavorecidas devido a um sistema nervoso

    qualitativamente diferente do de pessoas de classes privilegiadas, presumivelmente no

    propensas a tais manifestaes. Outras, a partir de um enfoque funcional, demonstram

    que a glossolalia pode ser um componente no processo de comprometimento com

    movimentos de transformao tanto pessoal quanto social.

    H teorias do campo da Psicologia que afirmam que se trata de uma

    manifestao de doena mental. Em abordagens psicolgicas como essas, pessoas que

    apresentam comportamento de glossolalia so freqentemente chamadas de

    esquizofrnicas, epilpticas ou histricas, e o fenmeno em si tratado como transtorno

    mental. Outras pesquisas tm demonstrado diferenas significativas entre pessoas que

    sofrem de desordem mental e pessoas que participam de atividades religiosas

    envolvendo glossolalia e outros comportamentos dissociativos, pois a glossolalia no

    seria algo comum, ou um comportamento do dia-a-dia, e sim um estado alterado de

    conscincia. Por conseguinte, a questo com que se depara se os estados alterados so

    considerados, por si mesmo, patolgicos.

    Goodman observou que no contexto de sua pesquisa nas comunidades

    pentecostais as congregaes so constitudas, em geral, por uma classe social mais

    baixa e, em sua maior parte, compostas por mulheres. A glossolalia vista como

    revelao das palavras do prprio Jesus, ou do Esprito Santo, e traz prestgio dentro do

    grupo. Sua mensagem dada em uma lngua estrangeira considerada comum, que

    poderia ser entendida caso houvesse algum que a conhecesse. A interpretao tambm

    provm do Esprito. De acordo com o evangelista, a pessoa que est falando nem

    5 Speaking in Tongues. A Cross-Cultural Study of Glossolalia, 1974

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    mesmo sabe o que diz. Trata-se de um dom do Esprito altamente desejado e acessvel

    a qualquer filho de Deus (aquele que se arrepende), que fortalece o crente, dando-lhe

    a garantia de que ele no retroceder. Todos tm uma sensao de bem estar. O estado

    alterado manifestado na glossolalia curto. O acordar sempre rpido.

    Na investigao do comportamento da glossolalia, Goodman chama a ateno

    para mais um aspecto antes de entrar no cerne da questo, ou seja, as pessoas que

    proferem a glossolalia: Quem so? E o que experimentam?

    Para responder a essas questes, a autora coletou vrios depoimentos de

    converses. Sua concluso foi a de que nenhum dos entrevistados parecia psictico, o

    que corroborado pelos trabalhos de outros pesquisadores6, que no encontraram

    patologia em glossolalistas em seus estudos comparativos, chamando a ateno para o

    fato de que o estado de transe no pode ser considerado resultado automtico de

    distrbio de personalidade uma vez que, de acordo com seus dados, tal comportamento

    aprendido. H unanimidade entre eles de que os praticantes de glossolalia eram bem

    ajustados a seus meios sociais e seus comportamentos eram considerados normais,

    exceto por seu falar em lnguas. Assim, descartava-se a explicao de que a

    glossolalia era uma patologia.

    Quanto experincia do transe e da glossolalia, vrios aspectos tornam-se

    importantes para o informante individual. H unanimidade no que se refere ao deleite da

    experincia: a assombrosa percepo de que no conseguem mais se submeter ao

    controle da conscincia, a alterao de percepes somticas, que podem ser visuais, ou

    a alucinao do auditrio, e a experincia de transe em vez do falar em lnguas.

    Muitas das histrias de converso se reportam ao batismo no Esprito,

    enfatizando o falar em lnguas. comum ouvir relatos sobre o no entender o que se

    est falando, o medo de ter sido dominado por Sat ao invs de pelo Esprito Santo; o

    cantar em lnguas; a presena de uma alegria inigualvel que leva a pessoa a gritar,

    transbordando de emoo; a surpresa do conhecimento de se poder falar em lnguas em

    6 Speaking in Tongues. A Cross-Cultural Study of Glossolalia, 1974, citando Alexander Alland. Possession in a revivalist Negro church. J. for the Scientific Study of Religian 1.2. 1961. L. M. Vivier van Etfeldt. The glossolalic and his personality. In Beitrge zurEkstase. Theodor Spoerri, ed. Biblioteca Psychiatrica et Neurologica No. 134. Basel: S. Karger, 1968. Virginia H. Hine. Pentecostal glossollia: toward a functional interpretation. J. for the Scientific Study of Religion 8:212-26, 1969. Vivian Garrison. Marginal religion and psychosocial deviancy: a controlled comparison of Puerto Rican Pentecostals e Catholics. In: Pragmatic religion: contemporary religious movements in America, Irving I. Zaretsky and Mark P. Leone, eds. Princeton University Press (in preparation), sem data.

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    outros lugares que no o templo e uma experincia maravilhosa com uma emoo muito

    forte.

    Nota-se que as pessoas que experimentam a glossolalia, pouco a pouco,

    encaixam-se no comportamento no para seu prprio bem ou pela alegria e liberdade

    que isso possa trazer, mas porque o cumprimento de uma obrigao pela qual ficou

    responsvel ao se juntar ao grupo.

    Essas histrias de converso fornecem detalhes de como muitos glossolalistas se

    sentem quando se comprometem a falar em lnguas: estavam conscientes de ter chorado,

    de sentir que as veias pareciam estourar, de ter a lngua trancada ou inchada, de ser

    levantado, de sentir um calor ou um aperto no peito, de as mos parecerem inchar, de

    uma chuva suave descer pelo pescoo, pelos ombros e penetrar no peito, de uma

    sensao nas pernas e no meio das costas e, em seguida, voltar ao normal. As condies

    dentro das quais o glossolalista ou a pessoa que medita se coloca so conhecidas por

    diferentes termos na literatura: xtase, frenesi, transe, delrio, estados hipnticos ou de

    sonambulismo e outros.

    Para Goodman, quando uma pessoa se ausenta do estado de conscincia da

    realidade comum que a cerca, ela est em um estado mental alterado. O estado do

    glossolalista , neste sentido, um estado alterado de conscincia. A autora usa o termo

    dissociao para caracterizar a separao da pessoa da realidade comum, e afirma que

    algumas pessoas podem alcanar dissociao espontaneamente. Outras, segundo a

    autora, por aprendizado: as pessoas podem ser ensinadas a entrar em transe. De fato, a

    expectativa cultural j parte da instruo. E essa expectativa transmitida ao recm-

    chegado dentro do grupo e est disponvel tanto pelas demonstraes do fenmeno em

    operao nos cultos quanto pela fala deliberada da liderana. As motivaes poderosas

    erigidas em favor da experincia da glossolalia supem tambm iniciao dissociao,

    reconhecida como um primeiro passo, e os suplicantes so conscientizados atravs de

    comandos. Um terceiro caminho para o transe a induo. Pode-se preparar a mente e o

    corpo do indivduo para o estado de transe a fim de que atinja a dissociao, mas trata-

    se de um mecanismo de facilitao, uma vez que no se pode afirmar que o uso de

    determinada estratgia resulte, invariavelmente, nisto ou naquilo. As drogas e o jejum,

    por exemplo, facilitam a realizao do transe, pois trazem conseqncias bioqumicas

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    que podem afetar a conscincia. O esforo fsico empregado em trabalhos duros, ao

    contrrio, freqentemente impede a capacidade daqueles que desejam entrar em transe.

    Geralmente, o comportamento motor que acompanha o transe rtmico, e sua

    freqncia variada, desde muito devagar at incrivelmente rpido e pode,

    convenientemente, ser organizado em uma escala, indo do micro ao macro padro:

    tremor e agitao, contrao (face e trax), cimbra nos dedos e alongamento (no tudo

    simultaneamente), balano da cabea, manejo das mos , jogo do tronco de um lado

    para o outro, pulo, movimento do brao, etc.

    As pessoas no permanecem em estado de dissociao indefinidamente: depois

    de algum tempo, retornam conscincia da realidade, acordam, gradual ou

    precipitadamente, a energia disponvel torna-se reduzida, a dissociao enfraquece, a

    pessoa suspira, abre os olhos e reverte linguagem comum. H dois fatores interpondo-

    se neste retorno natural conscincia: a recuperao do nvel de energia, o qual, em

    seguida, induzir a pessoa ao estado anterior dissociao; e a qualidade da

    dissociao: quanto mais recentemente essa capacidade foi adquirida, mais difcil

    sentir quando chega o ponto de sada. Logo, a pessoa em transe precisa de ajuda.

    Nas congregaes que praticam o falar em lnguas, tal fenmeno entendido

    como sinal da presena do Esprito Santo na pessoa e aprovao de sua conduta,

    segundo Goodman. Para Lewis7 a experincia de possesso d ao mstico o

    conhecimento experimental do divino. A possesso pela divindade objetivo explcito e

    abertamente encorajado para uma comunho exttica, que representa o pice da

    experincia religiosa.

    Em I Cor 14,1-5 Paulo diz que para se assegurar a edificao da assemblia (v.

    3-5), necessrio que as manifestaes no culto sejam inteligveis. Lnguas no so

    compreendidas, pois fala mistrios somente a Deus (v. 2); a profecia sim, pois fala

    aos homens (v. 3). Portanto, a profecia um dom maior. Mas o apstolo no condena

    aquele que fala em lnguas; pelo contrrio, expressa seu desejo de que todos falem em

    lnguas (v. 5), pois ele mesmo fala em lnguas mais do que todos (v. 18).

    Fee8 comenta que, embora Paulo prefira a profecia a lnguas na reunio da

    assemblia (v.5), a questo central no o dom das lnguas em si mesmo, mas a sua

    7 xtase Religioso: Um Estudo Antropolgico da Possesso por Esprito e Xamanismo, 1977 8 The First Epistle to the Corinthians, 1987. p. 653.

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    interpretao ou inteligibilidade na assemblia (v. 13), pois, neste caso, ele tambm

    edificaria (v. 5). Ou seja, segundo o autor, os v. 2-3 sugerem que a oposio entre

    lnguas e profecia no tem a ver com seus valores inerentes, mas com a direo da

    edificao da assemblia. No se trata de poder ou no exercer o dom de lnguas, mas

    do uso que se faz dele.

    Para Senft9, Paulo, ao afirmar, no v. 2, que a glossolalia uma linguagem que

    ningum compreende, no est dizendo que ela seja desprovida de sentido, uma vez que

    possvel que algum a interprete (v. 5.13.27); ela tem sua lgica e sua sintaxe, como

    nos mostrou Felicitas Goodman10, mas imprpria comunicao com os outros. A

    glossolalia tem funo e objetivo prprios fala a Deus, mas no aos homens. Sob a

    ao do Esprito ou em xtase, fala mistrios.

    Fee e Felicitas Goodman11 concordam que tal fala est fora de compreenso,

    mas constitui comunho com Deus, o que difere da noo de mensagem em

    lnguas, que parece no ocorrer em Paulo. Thiselton12, citando Fee, diz que em nenhum

    ponto do captulo 14 Paulo sugere que lnguas so faladas diretamente s pessoas; trs

    vezes ele indica que se fala diretamente a Deus (v. 2,14-16.28).

    Como nos testemunhos relatados na experincia de campo de Felicitas

    Goodman13 nas comunidades pentecostais, falar em lnguas no captulo 14 da 1 Carta

    aos Corntios quase sempre denota um enaltecimento de louvor e orao, alegres

    aclamaes a Deus. Por exemplo, o grito (choro) Abba em Rm 8,26-27 pode sugerir

    um contedo inconsciente, rompendo em xtase. Mas a glossolalia crist, como

    apresentada, no pode ser confundida com os gritos dionisacos, como afirma

    Christopher Forbes14. Segundo o autor, os gritos dionisacos so invocaes e

    aclamaes. Embora a glossolalia crist no tenha sido invocatria, nem parea ter sido

    predominantemente aclamatria, teve sim suas invocaes rituais e aclamaes, tais

    como Amm, Aleluia, Hosana, Maranata, Abba e Senhor Jesus, o que

    9 La Premire pitre de Saint Paul aux Corinthiens, 1990. p. 174. 10 Speaking in Tongues: A Cross-Cultural Study of Glossolalia, 1972. p. 87-125. 11 Speaking in Tongues: A Cross-Cultural Study of Glossolalia, 1972. p. 10. 12 The New International Greek Testament Commentary (NIGTC).2000, p1085-86, citando Fee: Paul, the Spirit and the People of God. 13 Speaking in Tongues: A Cross-Cultural Study of Glossolalia, 1974. p. 24-57. 14 Prophecy and Inspired Speech in Early Christianity and its Hellenistic Environment, 1997. p. 147.

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    revela pelo menos um ponto de contato entre o fenmeno de fala inspirada do

    cristianismo primitivo e o contexto helenstico.

    No v. 4, Paulo enfatiza que uma vez que a edificao permanece a questo

    central, ele aplica o mesmo termo para falar do uso de lnguas como meio de edificao

    individual, o que controverso. Pode-se entender que o individualismo em Corinto o

    alvo do ataque de Paulo. Contra esta viso pejorativa, Fee15 insiste que Paulo no

    pretende tal coisa. A edificao prpria, diz o autor, no centrada em si mesmo, mas

    na edificao pessoal do crente por meio da orao privada, da adorao, da comunho

    com a divindade. Contrrio opinio de muitos, Fee diz que a edificao pessoal pode

    ocorrer de diferentes formas, e no s pela mente. Paulo acreditava em uma

    comunicao imediata com Deus por meio do Esprito Santo, que algumas vezes evita a

    mente; nos v. 14-15, ele argumenta que, para a sua prpria edificao, usar tanto a

    mente quanto o esprito. Mas, na assemblia, trar somente o que pode comunicar aos

    outros crentes atravs de suas mentes. Conzelmann16 e Senft17 adotam um meio termo,

    diz Thiselton18: para Paulo, o termo individual importaria enquanto forma de

    contraste com o todo abrangente da evkklhsi,a (assemblia).

    Para Thiselton19 o falar em lnguas pode refletir um autntico jorrar do que seria

    de outra forma um inexpressivo louvor a Deus (v. 2a); mas, em Corinto (no por meio

    de Paulo), o falar em lnguas tornou-se provavelmente o sinal supremo do poder e

    maturidade espiritual dos falantes, produzindo um efeito colateral negativo20. A fala

    esotrica usualmente considerada uma atividade de status elevado, exceto nas

    sociedades racionalistas ocidentais, onde o falar em lnguas tomado como evidncia

    de ignorncia, baixa condio social e susceptibilidade ao entusiasmo21. Frank D.

    Macchia 22, ao contrrio, enfatiza o lado positivo do uso das lnguas na devoo pessoal

    nos movimentos pentecostais:

    Ser que a orao como uma resposta articulada e racional a Deus no esgota a resposta humana...? Poesia, cntico, dana e silncio tm sido

    15 The First Epistle to the Corinthians, 1987. p657 16 I Corinthians, 1988. p. 235. 17 La Premire pitre de Saint Paul aux Corinthiens, 1990. p. 175. 18The New International Greek Testament Commentary (NIGTC).2000, p1094 19 Ibid. p1095. 20 Ibid. (citando Hays, First Corinthians). 21 Ibid. (citando Martin Tongues of Angels). 22 Sighs Too Deep for Words: Toward a Theology of Glossolalia 47-73 / Discerning the Spirit in life: a Review of God the Spirit by Michael Welker, 1997. p. 3-28.

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    sempre oferecidos como exemplos de profundas respostas a Deus... Glossolalia certamente uma de tais respostas a Deus 23.

    Thiselton24, comentando sobre este artigo, diz que Macchia reconhece que uma

    experincia cristologicamente orientada difere em espcie de uma euforia

    emocionalmente autocentrada e vazia. Glossolalia, presumivelmente, como Paulo

    praticou em privado, para ser entendida cristologicamente.

    No v. 13, sutilmente Paulo se move no sentido da orao que pode ser proferida

    em lnguas. Ele no parece ter a inteno de banir a glossolalia da assemblia cltica,

    mas insiste que seja interpretada, e a pessoa que fala em lngua deve orar para que isso

    acontea. Paulo regulamenta o dom de lnguas na assemblia por meio da exigncia

    de sua interpretao, tornando a fala inteligvel, a fim de satisfazer o princpio da

    edificao da assemblia.

    Para Paulo, o produto da orao em lngua no contexto do culto pblico no tem

    valor, pois no compreendida, seja na forma de revelao, seja na forma de ensino, ou

    seja, no h a edificao de que tanto necessitam. Se a comunicao verbal for racional,

    o resultado pode edificar a comunidade e gerar frutos (v.14a) de amor para outros.

    Assim, no v. 14 Paulo enfatiza no contexto cltico que a edificao das pessoas

    tem a ver com uma comunicao verbal racional: Pois, se eu oro em lngua, o meu

    esprito ora, mas a minha mente fica infrutfera. Que fazer ento?, pergunta-se

    retoricamente no v. 15. O estilo simples, tal como em Rm 3,9; 5,15; 11,7 e 1Cor

    14,26. Nota-se que a glossolalia pode estar relacionada no apenas orao, mas

    tambm ao cntico. possvel que a fala esttica algumas vezes assuma a forma de

    cnticos inarticulados, cantos sem palavras inteligveis ou melodias definidas, diz

    Robertson e Plummer25. A resposta Orarei no esprito, mas tambm orarei na mente

    leva-nos a concluir que a orao racional no menos espiritual que a irracional.

    Nos v. 18-19, Paulo reafirma sua palavra anterior e acrescenta novamente seu

    exemplo pessoal. Ele revela falar em lnguas mais do que qualquer um e agradece a

    Deus pelo dom recebido, mas declara que, em pblico, prefere abrir mo deste dom

    pessoal a fim de outros sejam beneficiados. comum considerar essa afirmao retrica

    23 Traduo literal. 24 The New International Greek Testament Commentary (NIGTC).2000. p1096. 25The New International Greek Testament Commentary (NIGTC).2000. p1113.

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    ou at hipottica, no entanto, segundo Fee26, ela reflete a espiritualidade paulina. Senft27

    questiona o argumento segundo o qual Paulo teria rebaixado a glossolalia por cime.

    Neste caso, afirmando que tambm fala em lnguas, poderia estar defendendo seu

    prprio status na comunidade ao estabelecer critrios para o seu uso e rejeitar a

    apropriao deste dom por outros membros. Mas, continua o autor, Paulo, guiado por

    seu sentimento de responsabilidade apostlica, recusa-se a falar em lnguas, como eles

    desejavam, e prefere a forma inteligvel para a edificao de todos (14,15) e o ensino

    dos outros (14,17.19).

    Outro aspecto a ser discutido o da semelhana ou no entre a glossolalia e a

    linguagem comum falada ou as linguagens angelicais (1Cor 13,1). Paulo Nogueira28,

    referindo-se experincia descrita no livro dos Atos dos Apstolos, diz que as lnguas,

    no cristianismo paulino, no tinham a finalidade de ser uma proclamao pblica do

    Evangelho, e muito menos se referiam ao falar de lnguas estrangeiras. Em 1Cor 13,1,

    por exemplo, ao se referir explicitamente lngua dos anjos, o apstolo Paulo o faria a

    partir do contexto religioso da apocalptica judaica e da descrio do culto celestial

    como paralelo ao culto terreno.

    Para Fee29, Paulo e os corntios concebiam o dom das lnguas como linguagens

    dos anjos por dois motivos. Primeiro, porque h fontes judaicas que levam a acreditar

    que os anjos possuam linguagens prprias (ou dialetos) e que, por meio do Esprito,

    poder-se-ia falar esses dialetos (Test. de J 48-50). Segundo, porque o sentido de

    espiritualidade da comunidade de Corinto a levava a acreditar que j haviam

    experimentado algo da existncia angelical, o que se pode perceber, por exemplo, a

    partir de expresses que ordenam ou rejeitam a vida sexual (1Cor 7,1-7; 11,2-16), ou

    que recusam uma futura existncia corporal (1Cor 15,12.35).

    Forbes30, no que diz respeito s lnguas angelicais, diz que, para alguns, 1Cor

    13,1 somente ser entendido como um paralelo de 1Cor 14,7-8, no que se refere s

    coisas inanimadas que emitem sons, como a flauta e a harpa. Este caso tenta convencer

    com referncia crena em lnguas divinas no mundo helenstico, ou crena de

    26 The First Epistle to the Corinthians, 1987. p. 674. 27 La Premire pitre de Saint Paul aux Corinthiens, 1990. p. 178. 28 Experincia Religiosa e Crtica Social no Cristianismo Primitivo, 2003. p. 64ss. 29 The First Epistle to The Corinthians, 1987. p. 630. 30 Prophecy and Inspired Speech in Early Christianity and its Hellenistic Environment, 1997. p.58

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    lnguas angelicais expressas em algumas obras intertestamentrias judaicas. Eles

    acreditam que o Testamento de J e o Apocalipse de Sofonias fornecem o paralelo

    substancial mais prximo para a glossolalia no cristianismo primitivo e reivindicam que

    o conceito de lnguas divinas ou angelicais um importante link que une os vrios

    fenmenos. Aqueles que desejam argumentar que Paulo pretende que seus leitores

    compreendam somente as linguagens angelicais so forados a ignorar, em 1Cor 13,1,

    as lnguas dos homens. Aqueles que desejam argumentar em favor da linguagem

    humana defendem que a expresso as lnguas dos anjos, no mesmo versculo,

    apenas uma hiprbole.

    Para Paulo Nogueira31, o contexto mais prximo da glossolalia no cristianismo

    primitivo o misticismo apocalptico. no mbito religioso que o elemento exttico se

    desenvolve no judasmo do perodo, por exemplo, as lnguas dos anjos citadas nos

    manuscritos do Mar Morto. O contedo dos louvores dos cnticos para o sacrifcio do

    sbado apresenta uma linguagem densa, o que parece ser indcio dos limites da

    linguagem humana para expressar as coisas celestiais. A referncia s lnguas dos

    anjos (tambm chamadas lnguas de conhecimento) contrape-se lngua humana

    (lngua do p) em 4 Q400 fraq. 2,7-11. Mas, segundo o autor, a presena da

    glossolalia aqui no dada como certa.

    Goodman32 declara que no h dados suficientes na literatura sobre o assunto

    que possam assegurar que a glossolalia semelhante ou no linguagem comum falada.

    Ela insiste que a glossolalia um padro de vocalizao, um automatismo de fala

    produzido no substrato de uma dissociao de ultra-excitao (hyperarousal), reflexo

    direto de processos neurofisiolgicos observados em pessoas com estado mental

    alterado. Para a autora, parece tratar-se de uma necessidade psicolgica equiparar

    vocalizao e fala: os humanos tm uma necessidade urgente de compreender o que

    experimentam, de explicar novos fenmenos em termos do que j conhecem. Assim,

    esto convencidos de que, ao escutarem uma lngua, viva ou morta, ela pode ser

    compreendida caso haja algum que a conhea (xenoglossia). O fato de a glossolalia

    no apresentar a estrutura de superfcie de um cdigo simblico e lingstico de uma

    estrutura lingstica profunda, mas sim um artefato de dissociao super ativada 31 Experincia Religiosa e Crtica Social no Cristianismo Primitivo, 2003. p. 64ss. 32 Speaking in tongues: A Cross-Cultural Study of Glossolalia, 1974. p.101, 123, 150-51.

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    (hyperarousal), confirma, segundo a pesquisadora, a hiptese de que a glossolalia tem

    em sua estrutura profunda uma dissociao super ativada.

    Devido rejeio quase universal da parte dos pentecostais e carismticos

    quanto afirmao de que o dom das lnguas supe o xtase ou transe, foram feitos

    testes do nvel de conscincia e da habilidade de desempenhar tarefas mentais durante a

    glossolalia. A concluso foi a de que o glossolalista receptivo s informaes externas

    e capaz de process-las e reagir a elas durante os encontros de glossolalia. O falar em

    lnguas pode acompanhar o transe, mas certamente no requer um estado de conscincia

    alterado significativo ou uma dissociao (alm daquela envolvida, por exemplo, em

    dirigir um carro e pensar sobre qual restaurante escolher).

    Mark Cartledge33 oferece-nos um artigo que traz um debate entre Goodman e

    William J. Samarin. Samarin aponta os limites da pesquisa de Goodman, uma vez que

    ela no considerou a literatura do movimento pentecostal, mas somente os estudos da

    cincia comportamental. Caso o fizesse, diz o autor, ela teria percebido que a

    dissociao algumas vezes pode acompanhar a glossolalia, mas no pode ser

    considerada causa do falar em lnguas. Algumas pessoas falam em lnguas sem entrar

    em xtase.

    Cartledge cita outros autores que discordam da tese de Goodman, por exemplo,

    N. P. Spanos, E.C. Hewitt, W. K. Bartlett e T. Moyle. Em geral, tais autores

    argumentam que os estados alterados de conscincia nem sempre acompanham a

    glossolalia, ainda que um dado intercultural favorea tal afirmao. Alm disso, o

    estudo de Goodman no seria propriamente sobre a glossolalia, mas sobre como casos

    de dissociao ou estados alterados de conscincia se relacionam com a glossolalia. A

    maioria dos pesquisadores concorda com as afirmaes de Samarin.

    No que diz respeito presena dominante de mulheres nas atividades clticas,

    tanto Lewis como Goodman34 nos oferecem dados estatsticos. Para Goodman, as

    mulheres entram em glossolalia muito mais facilmente do que os homens e quase todas

    so glossolalistas habituais35.

    33 Interpreting Charismatic Experience: Hypnosis, Altered States of Consciouness and the Holy Spirit? Journal of Pentecostal Theology 13. 1998 p117 -132 34 Ibid. p. 5.9. 35 Ibid. p. 10.

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    Em relao ao controle da glossolalia, Goodman36 faz uma distino entre os

    papis do clero e dos leigos. O leigo seria mais dependente no controle da situao. O

    clero estaria consciente da possibilidade de exercer tal controle. Diz um ministro: Eu

    agora sou capaz de falar em lnguas; quando eu quero, eu posso controlar isso, e se eu

    no quero, ento eu posso conter a mim mesmo. Eu tambm posso controlar como

    falar, se de forma alta ou baixa.

    Em 1Cor 14,32, Paulo diz que os espritos dos profetas esto sujeitos aos

    prprios profetas. A diferenciao dos papis de leigos e clero, apontada por Goodman,

    desperta nosso interesse em averiguar o entusiasmo sem controle nas assemblias

    paulinas como possvel resultado da experincia de iniciados ou da prpria elite da

    comunidade, e nos desafia a buscar elementos que permitam compreender diferentes

    graus de alterao da conscincia dentro do xtase.

    Pouco nos oferecem os artigos recentemente publicados para fazermos qualquer

    tipo de anlise sobre a glossolalia praticada atualmente nos meios pentecostais e

    carismticos. As informaes a que tivemos acesso acerca da moderna glossolalia fazem

    parte da pesquisa sobre fontes pentecostais e artigos teolgicos catalogados por Max

    Turner37, que serviram de base para os captulos 17 a 20 de sua obra.

    Quando surgiu a discusso sobre o falar em lnguas dentro do movimento

    pentecostal, todos os envolvidos julgavam tratar-se do dom de lnguas estrangeiras para

    o propsito do evangelismo. As reivindicaes de reconhecimento da xenolalia feitas

    recentemente, como j havia afirmado Goodman, baseiam-se em material de segunda ou

    terceira mo, o que inviabiliza a anlise minuciosa. Lingistas que se dedicam a estudar

    essas numerosas gravaes do falar em lnguas de conhecidas etnias no atestam a

    xenolalia e mesmo os possveis casos de xenolalia so muito raros e no tm

    comprovao cientfica.

    As gravaes de falas em lnguas submetidas criteriosa anlise revelaram

    que poucas (ou nenhuma) apresentam uma estrutura lingstica ou gramatical que se

    assemelhe s linguagens humanas. Trata-se de uma evidncia contrria pesquisa de

    Goodman, que afirmava que o falar em lnguas era um outro tipo de linguagem com

    estrutura lingstica prpria.

    36 Speaking in Tongues: A Cross-Cultural Study of Glossolalia, 1974. p. 84. 37 The Holy Spiritual Gifts in the New Testament Church and Today,1996.

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    O dom das lnguas nas comunidades pentecostais e carismticas tem a funo de

    trazer uma mensagem e aprofundar o relacionamento do cristo com Deus e sua

    capacidade de ador-lo. A conscincia de ser habitao do esprito de Cristo conduz a

    uma dedicao plena. A maioria dos pesquisadores sobre lnguas tem focalizado as

    experincias individuais, mas os primeiros pentecostalistas valorizavam o dom como

    uma contribuio para a congregao. A prtica difundida durante o culto manifestava-

    se em ocasies em que a congregao sentia a presena de Deus. Era como uma

    resposta corporativa feita de cantos harmnicos em lnguas. Nesses momentos, as

    lnguas no eram interpretadas, mas compreendidas como uma livre doxologia

    inspirada. Segundo Max Turner38, no existe precedente direto para isto no Novo

    Testamento, embora se encontrem algumas oraes carismticas invasivas no Antigo

    Testamento e no Judasmo. Existe uma crtica manifestao desse fenmeno por julg-

    la uma violao s instrues de Paulo em 1Cor 14,27.28. As pessoas, nas assemblias

    clticas, podem sentir um forte impulso para dirigir um perodo em lnguas a Deus e

    congregao, compreendido como uma compulso divina, e a fala resultante desta

    experincia seria interpretada, de acordo com 1Cor 14,13.27.28. Lnguas seguidas de

    interpretao funcionam como profecia na congregao.

    CONCLUSO

    Levantamos uma srie de questionamentos sobre a Glossolalia que necessitam

    de maior investigao tanto no campo do estudo comparativo das religies quanto nos

    aspectos especficos da compreenso de Paulo e da comunidade de Corinto.

    A concluso de nossa pesquisa que no h um fenmeno helenstico difundido

    que fornea uma base de compreenso para os problemas de Corinto, embora no

    perodo helenstico tenha havido diferentes tradies de fala carismtica inspirada. No

    h evidncias suficientes de que os cristos primitivos no acreditassem ser a glossolalia

    o poder de falar lnguas humanas no aprendidas ou mesmo as lnguas dos anjos

    (embora, neste caso, as evidncias no sejam fortes). A tradio da glossolalia crist,

    embora apresente alguns elementos helensticos, substancialmente diferente. Ela

    vista como revelao e orao, no como invocao. um ritual comunicativo,

    espontneo, articulado e pode ser interpretada.

    38 The Holy Spirit and Spiritual Gifts in the New Testament Church and Today, 1996. p. 312.

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    Paulo critica no a glossolalia em si, mas o uso que a comunidade de Corinto faz

    deste dom. Para ele, a glossolalia simplesmente uma entre as vrias manifestaes do

    Esprito nem a mais elevada, nem a mais baixa em valor. Mas todos os dons tinham a

    funo de edificar a assemblia como um todo. Por isso, o falar em lnguas no culto

    devia ser interpretado.

    Para Paulo, na assemblia cltica, a glossolalia interpretada estava altura da

    profecia, como manifestao de Deus confrontando, desafiando, confortando e

    instruindo seu povo. Lnguas interpretadas eram sinal de salvao, testemunho da

    presena imediata de Deus na e para a comunidade. Mas Paulo tambm admite a

    glossolalia como um dom de uso privado na orao carismtica inspirada e como meio

    de expresso do gemido interior, dos anseios que uma pessoa no consegue manifestar

    em suas prprias palavras.

    Hoje, falar em lnguas funciona como uma forma doxolgica, cristocntrica,

    s vezes de minimizao da ansiedade, outras vezes de edificao da congregao,

    porm sempre um dom espiritual. A questo se podemos traar um paralelo com o

    falar em lnguas da comunidade paulina de Corinto. Se h diferentes tipos de lnguas,

    no poderamos incluir nesse quadro a xenolalia, a lngua dos anjos e as lnguas faladas

    reveladas pela pesquisa moderna? Ainda que Paulo estivesse falando sobre uma

    manifestao diferente, no parece haver espao para um dogmatismo que descarte

    qualquer possibilidade de a glossolalia de hoje ser o mesmo fenmeno que Paulo

    conhecia.

    Podemos sintetizar tudo o que foi pesquisado nas palavras de Paulo: Ainda que

    eu fale as lnguas dos homens e dos anjos (...), ainda que eu tenha o dom de profetizar e

    conhea todos os mistrios e toda a cincia (...), se no tiver amor nada serei, nada disso

    me aproveitar.

    REFERNCIAS

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