ANAIS DO II ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTRIA DAS RELIGIES E DAS RELIGIOSIDADES Revista Brasileira de Histria das Religies ANPUH Maring (PR) v. 1, n. 3, 2009. ISSN 1983-2859. Disponvel em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html
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A GLOSSOLALIA (FALAR EM LNGUAS) NO CRISTIANISMO DO
PRIMEIRO SCULO E O FENMENO HOJE
Sebastiana Maria Nogueira*
RESUMO: O fenmeno do falar em lnguas citado em dois livros do Novo Testamento: Atos e I Corntios. Este trabalho busca compreender o que Paulo (I Cor 12-14) quer dizer por falar em lnguas, que tipo de fenmeno essas lnguas querem mostrar e que papel elas desempenham na vida Crist. A partir dessas informaes compreender se Paulo estava falando de uma manifestao diferente do moderno falar em lnguas. PALAVRAS-CHAVE: xtase, Estado Alterado de Conscincia, Transe, Corinto, Paulo, Paralelos Helensticos
INTRODUO
A segunda carta de Paulo aos Corntios, captulos 12-14, especialmente o 14
testificam a existncia do fenmeno conhecido como falar em lnguas dentro do
Cristianismo primitivo do primeiro sculo. Nossa evidncia, no entanto, quanto
natureza da glossolalia Crist primitiva limitada e controversa. O fato de nossa
principal fonte de informao sobre a profecia e glossolalia crists no primeiro sculo
(1Cor 12-14) vir de um contexto predominantemente helenstico leva muitos a
afirmarem que as influncias da cultura greco-romana so determinantes. Aqueles que
defendem esta posio argumentam que Paulo, em 1Cor 12-14, define a natureza da
profecia e da glossolalia para distingui-las das experincias religiosas pr-crists da
congregao de Corinto. A reivindicao de que o fenmeno exibe paralelos na
histria das religies, inclusive os do mundo moderno, nos conduzem a buscar
esclarescimentos no exame desses paralelos. impossvel tambm divorciar o
fenmeno da glossollia dos conceitos antropolgicos do transe, do estado de
conscincia alterado e do contexto sociolgigo do xtase.
Uma das formas de expresso da glossolalia o balbuciar de palavras ou sons
sem interconexo ou sentido. Vrios paralelos deste fenmeno so encontrados em
diferentes perodos e lugares da histria das religies.
* Universidade Metodista de So Paulo UMESP.
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O movimento pentecostal e carismtico renovado tem colocado a glossolalia na
pauta de seus estudos recentes. Pesquisas sobre a moderna glossolalia tm afirmado que
no h evidncia de que o falar em lnguas esteja relacionado com intelecto inferior,
educao, posio social ou psicologia patolgica. Esta concluso tambm foi revelada
por Felicitas Goodman1 em sua pesquisa antropolgica sobre a glossolalia em
comunidades pentecostais. No entanto, ao contrrio da posio do movimento
pentecostal, Goodman afirma que o falar em lnguas o produto do que
freqentemente se chama de estado dissociativo. Para a autora a sada do mundo da
conscincia representa um padro de comportamento humano observvel em vrias
regies e que se manifesta em maior ou menor grau de acordo com as condies
pessoais, varia de uma sociedade para outra.
O conflito entre a compreenso de Paulo e a dos Corntios no que se refere s
manifestaes extticas revela que Paulo no antecipou tipos de profecia exttica, como
muitos afirmam, mas o transe proftico mais controlado. Para Paulo, aquele que
profetiza est suficientemente consciente do que o rodeia e capaz de controlar sua fala
quando outro sinaliza ter recebido uma revelao imediata (1Cor 14,30). O apstolo
Paulo no nos diz nada diretamente a respeito do que os corntios concebiam como fala
inspirada. Mas ele faz objees s atitudes dos corntios na assemblia, tais como: a
larga prtica da glossolalia sem interpretao, o que no contribuia para o crescimento
da assemblia, inclusive na presena dos descrentes; a prtica da profecia sem o teste
congregacional; e o desejo individual de exercitar os dons profticos por competio,
disputando oportunidades.
A maioria das discusses teolgicas crists ignora a literatura etnogrfica sobre o
assunto e as ferramentas oferecidas pelas cincias comportamentais. De um lado
discute-se a exclusividade do comportamento nas igrejas crists como uma experincia
restrita aos tempos apostlicos e conferida como uma graa especial aos seguidores de
Jesus crucificado, a fim de pregar o Evangelho aos estrangeiros. Por outro, ressalta-se
atualmente a discusso acerca da proibio, da tolerncia ou do encorajamento da
glossolalia nos cultos cristos a fim de prover alternativas que permitam expressar
sentimentos mais profundos.
1 Speaking in Tongues. A Cross-Cultural Study of Glossolalia, 1974
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DESENVOLVIMENTO
A leitura preliminar de 1Cor 14,1-19 nos faz depreender uma divergncia entre a
concepo de Paulo acerca de profecia e fala inspirada e a compreenso dos corntios.
Uma das justificativas para tal divergncia encontra-se na prpria gnese do movimento
cristo. Comeando sua existncia na Palestina Judaica, imersa por sculos nas
tradies israelita-judaicas, cujo centro so as Escrituras, o movimento cristo emergiu
como uma seita judaica, mas amadureceu em um contexto greco-romano, sendo
profundamente alterado pela cultura e tradio ocidentais. Em pouco tempo, atraiu
gentios de tal forma que, no fim do primeiro sculo, era em grande parte no-judaico.
As artes mnticas, desde a adivinhao tcnica at a adivinhao inspirada,
assim como os orculos, foram caractersticas integrais da vida religiosa e social em
todo o perodo greco-romano. O conhecimento do futuro era indispensvel para reduzir
os riscos inerentes em uma grande variedade de atividades humanas.
Uma das formas de recepo desses orculos era a comunicao da divindade
por meio de um mdium humano, como Ptia em Delfos e as Sibilas. Ptia foi uma
sacerdotisa (mantij) que, sobre o trip de Apolo (que representava o trono divino),
entrava em transe e, neste estado, proclamava seus orculos em uma linguagem que
parecia uma mistura de um grego truncado e incoerente e uma vocalizao ininteligvel,
relata Forbes2. A fala de Ptia era interpretada pelo profh,thj, que a transmitia ao
interrogador em forma oracular hexamtrica e, se requerido, podia levar uma cpia
escrita. A resposta de Ptia podia variar em grau de coerncia e inteligibilidade. O
profeta transmitia a resposta de forma reduzida, e ditava para o inquiridor escrever, se
desejasse.
Neste sentido, Forbes3 destaca a importncia de se distinguir claramente entre
um tipo de balbucio incoerente, fenmeno ininteligvel no nvel lingstico, e a
obscuridade dos pronunciamentos oraculares de Ptia. Tal obscuridade no , de forma
alguma, uma questo de inteligibilidade lingstica, mas simplesmente o fato de que
seus orculos eram formulados em termos enigmticos de um tipo de aluso literria e
metfora.
2 Prophecy and Inspired Speech in Early Christianity and its Hellenistic Environment, 1997. p. 103. 3 Prophecy and Inspired Speech in Early Christianity and its Hellenistic Environment, 1997. p. 109.
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Se estabelecermos um paralelo com a glossolalia, veremos tambm que no
fcil descrever o contedo inteligvel daqueles que falam em lnguas. Goodman, ao
tentar transcrever as gravaes em udio do material coletado em sua pesquisa de
campo, concluiu que a glossolalia uma lngua desconhecida, que lembra o som de
instrumentos musicais tocados sem harmonia.
As religies mistricas constituem uma fonte importante para a compreenso do
fenmeno da glossolalia praticada na comunidade de Corinto no tempo de Paulo.
Forbes4, citando Eurpedes (Bacchae), descreve uma fala exttica com violentas
manifestaes fsicas, tpicas das celebraes dionisacas, como gritos dos adoradores
em frenesi, danas enrgicas, balanar frentico da cabea e cabelos em desordem. O
ritmo marcado ao som de tambores, cmbalos e flautas. Os gritos invocatrios
representam ttulos alternativos para a divindade. Forbes diz que no h indicao de
que esses gritos sejam de uma lngua estrangeira, mas invocaes e aclamaes que
parecem estar na lngua de origem dos membros do culto.
Dentre os gritos de adorao popular a Dioniso, um que se apresenta com
aparncia exttica e entendido como fenmeno da glossolalia o Bacchic tongues, que
se dirige queles que no tm parte nos ritos Bacchic. Os coros so chamados satricos e
destinados a expulsar todos aqueles que no so iniciados nos mistrios da comdia, que
constituem parte do festival de Dioniso.
Flon permanece como uma exceo na compreenso de inspirao no mundo
helenstico. Para Forbes, a natureza da inspirao e do entusiasmo em Flon deve ser
entendida a partir de duas categorias. A primeira evidncia est no prprio Flon, que
atesta ter sido tomado pelo frenesi, manifestando os sintomas visveis da inspirao. A
segunda advm da sua viso idiossincrtica acerca da natureza do frenesi filosfico, que
ele considera uma inspirao divina.
Os primeiros sintomas de inspirao, segundo Flon, so mentais, e localizadas
dentro do indivduo. Mas transbordam para um reino visvel, onde so comumente
incompreendidos. Para ele, a inspirao d acesso a formas de conhecimento antes
indisponveis. Flon usa o termo possesso divina no para descrever experincias
psicolgicas, mas para indicar o que ele mesmo vivenciou e chama de experincia
proftica. Neste sentido, a experincia proftica de possesso do filsofo no
4 Prophecy and Inspired Speech in Early Christianity and its Hellenistic Environment, 1997. p. 127.
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acompanhada por gritos e danas violentas ou outros movimentos; o que considerado
inspirao a contemplao, no o frenesi.
Felicitas Goodman5 nos apresenta a primeira anlise intercultural do
comportamento da glossolalia a partir da Lingstica e da Antropologia, relacionando o
estudo dos estados psicolgicos e o comportamento lingstico e ritual. Embora o
fenmeno seja observvel em muitas religies do mundo, no se trata de um
comportamento dirio comum. Neste sentido, a autora pretende demonstrar em sua
investigao que a glossolalia est associada a um estado alterado de conscincia.
Muitas teorias sociolgicas justificam a glossolalia como um comportamento
tpico das pessoas de classes desfavorecidas devido a um sistema nervoso
qualitativamente diferente do de pessoas de classes privilegiadas, presumivelmente no
propensas a tais manifestaes. Outras, a partir de um enfoque funcional, demonstram
que a glossolalia pode ser um componente no processo de comprometimento com
movimentos de transformao tanto pessoal quanto social.
H teorias do campo da Psicologia que afirmam que se trata de uma
manifestao de doena mental. Em abordagens psicolgicas como essas, pessoas que
apresentam comportamento de glossolalia so freqentemente chamadas de
esquizofrnicas, epilpticas ou histricas, e o fenmeno em si tratado como transtorno
mental. Outras pesquisas tm demonstrado diferenas significativas entre pessoas que
sofrem de desordem mental e pessoas que participam de atividades religiosas
envolvendo glossolalia e outros comportamentos dissociativos, pois a glossolalia no
seria algo comum, ou um comportamento do dia-a-dia, e sim um estado alterado de
conscincia. Por conseguinte, a questo com que se depara se os estados alterados so
considerados, por si mesmo, patolgicos.
Goodman observou que no contexto de sua pesquisa nas comunidades
pentecostais as congregaes so constitudas, em geral, por uma classe social mais
baixa e, em sua maior parte, compostas por mulheres. A glossolalia vista como
revelao das palavras do prprio Jesus, ou do Esprito Santo, e traz prestgio dentro do
grupo. Sua mensagem dada em uma lngua estrangeira considerada comum, que
poderia ser entendida caso houvesse algum que a conhecesse. A interpretao tambm
provm do Esprito. De acordo com o evangelista, a pessoa que est falando nem
5 Speaking in Tongues. A Cross-Cultural Study of Glossolalia, 1974
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mesmo sabe o que diz. Trata-se de um dom do Esprito altamente desejado e acessvel
a qualquer filho de Deus (aquele que se arrepende), que fortalece o crente, dando-lhe
a garantia de que ele no retroceder. Todos tm uma sensao de bem estar. O estado
alterado manifestado na glossolalia curto. O acordar sempre rpido.
Na investigao do comportamento da glossolalia, Goodman chama a ateno
para mais um aspecto antes de entrar no cerne da questo, ou seja, as pessoas que
proferem a glossolalia: Quem so? E o que experimentam?
Para responder a essas questes, a autora coletou vrios depoimentos de
converses. Sua concluso foi a de que nenhum dos entrevistados parecia psictico, o
que corroborado pelos trabalhos de outros pesquisadores6, que no encontraram
patologia em glossolalistas em seus estudos comparativos, chamando a ateno para o
fato de que o estado de transe no pode ser considerado resultado automtico de
distrbio de personalidade uma vez que, de acordo com seus dados, tal comportamento
aprendido. H unanimidade entre eles de que os praticantes de glossolalia eram bem
ajustados a seus meios sociais e seus comportamentos eram considerados normais,
exceto por seu falar em lnguas. Assim, descartava-se a explicao de que a
glossolalia era uma patologia.
Quanto experincia do transe e da glossolalia, vrios aspectos tornam-se
importantes para o informante individual. H unanimidade no que se refere ao deleite da
experincia: a assombrosa percepo de que no conseguem mais se submeter ao
controle da conscincia, a alterao de percepes somticas, que podem ser visuais, ou
a alucinao do auditrio, e a experincia de transe em vez do falar em lnguas.
Muitas das histrias de converso se reportam ao batismo no Esprito,
enfatizando o falar em lnguas. comum ouvir relatos sobre o no entender o que se
est falando, o medo de ter sido dominado por Sat ao invs de pelo Esprito Santo; o
cantar em lnguas; a presena de uma alegria inigualvel que leva a pessoa a gritar,
transbordando de emoo; a surpresa do conhecimento de se poder falar em lnguas em
6 Speaking in Tongues. A Cross-Cultural Study of Glossolalia, 1974, citando Alexander Alland. Possession in a revivalist Negro church. J. for the Scientific Study of Religian 1.2. 1961. L. M. Vivier van Etfeldt. The glossolalic and his personality. In Beitrge zurEkstase. Theodor Spoerri, ed. Biblioteca Psychiatrica et Neurologica No. 134. Basel: S. Karger, 1968. Virginia H. Hine. Pentecostal glossollia: toward a functional interpretation. J. for the Scientific Study of Religion 8:212-26, 1969. Vivian Garrison. Marginal religion and psychosocial deviancy: a controlled comparison of Puerto Rican Pentecostals e Catholics. In: Pragmatic religion: contemporary religious movements in America, Irving I. Zaretsky and Mark P. Leone, eds. Princeton University Press (in preparation), sem data.
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outros lugares que no o templo e uma experincia maravilhosa com uma emoo muito
forte.
Nota-se que as pessoas que experimentam a glossolalia, pouco a pouco,
encaixam-se no comportamento no para seu prprio bem ou pela alegria e liberdade
que isso possa trazer, mas porque o cumprimento de uma obrigao pela qual ficou
responsvel ao se juntar ao grupo.
Essas histrias de converso fornecem detalhes de como muitos glossolalistas se
sentem quando se comprometem a falar em lnguas: estavam conscientes de ter chorado,
de sentir que as veias pareciam estourar, de ter a lngua trancada ou inchada, de ser
levantado, de sentir um calor ou um aperto no peito, de as mos parecerem inchar, de
uma chuva suave descer pelo pescoo, pelos ombros e penetrar no peito, de uma
sensao nas pernas e no meio das costas e, em seguida, voltar ao normal. As condies
dentro das quais o glossolalista ou a pessoa que medita se coloca so conhecidas por
diferentes termos na literatura: xtase, frenesi, transe, delrio, estados hipnticos ou de
sonambulismo e outros.
Para Goodman, quando uma pessoa se ausenta do estado de conscincia da
realidade comum que a cerca, ela est em um estado mental alterado. O estado do
glossolalista , neste sentido, um estado alterado de conscincia. A autora usa o termo
dissociao para caracterizar a separao da pessoa da realidade comum, e afirma que
algumas pessoas podem alcanar dissociao espontaneamente. Outras, segundo a
autora, por aprendizado: as pessoas podem ser ensinadas a entrar em transe. De fato, a
expectativa cultural j parte da instruo. E essa expectativa transmitida ao recm-
chegado dentro do grupo e est disponvel tanto pelas demonstraes do fenmeno em
operao nos cultos quanto pela fala deliberada da liderana. As motivaes poderosas
erigidas em favor da experincia da glossolalia supem tambm iniciao dissociao,
reconhecida como um primeiro passo, e os suplicantes so conscientizados atravs de
comandos. Um terceiro caminho para o transe a induo. Pode-se preparar a mente e o
corpo do indivduo para o estado de transe a fim de que atinja a dissociao, mas trata-
se de um mecanismo de facilitao, uma vez que no se pode afirmar que o uso de
determinada estratgia resulte, invariavelmente, nisto ou naquilo. As drogas e o jejum,
por exemplo, facilitam a realizao do transe, pois trazem conseqncias bioqumicas
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que podem afetar a conscincia. O esforo fsico empregado em trabalhos duros, ao
contrrio, freqentemente impede a capacidade daqueles que desejam entrar em transe.
Geralmente, o comportamento motor que acompanha o transe rtmico, e sua
freqncia variada, desde muito devagar at incrivelmente rpido e pode,
convenientemente, ser organizado em uma escala, indo do micro ao macro padro:
tremor e agitao, contrao (face e trax), cimbra nos dedos e alongamento (no tudo
simultaneamente), balano da cabea, manejo das mos , jogo do tronco de um lado
para o outro, pulo, movimento do brao, etc.
As pessoas no permanecem em estado de dissociao indefinidamente: depois
de algum tempo, retornam conscincia da realidade, acordam, gradual ou
precipitadamente, a energia disponvel torna-se reduzida, a dissociao enfraquece, a
pessoa suspira, abre os olhos e reverte linguagem comum. H dois fatores interpondo-
se neste retorno natural conscincia: a recuperao do nvel de energia, o qual, em
seguida, induzir a pessoa ao estado anterior dissociao; e a qualidade da
dissociao: quanto mais recentemente essa capacidade foi adquirida, mais difcil
sentir quando chega o ponto de sada. Logo, a pessoa em transe precisa de ajuda.
Nas congregaes que praticam o falar em lnguas, tal fenmeno entendido
como sinal da presena do Esprito Santo na pessoa e aprovao de sua conduta,
segundo Goodman. Para Lewis7 a experincia de possesso d ao mstico o
conhecimento experimental do divino. A possesso pela divindade objetivo explcito e
abertamente encorajado para uma comunho exttica, que representa o pice da
experincia religiosa.
Em I Cor 14,1-5 Paulo diz que para se assegurar a edificao da assemblia (v.
3-5), necessrio que as manifestaes no culto sejam inteligveis. Lnguas no so
compreendidas, pois fala mistrios somente a Deus (v. 2); a profecia sim, pois fala
aos homens (v. 3). Portanto, a profecia um dom maior. Mas o apstolo no condena
aquele que fala em lnguas; pelo contrrio, expressa seu desejo de que todos falem em
lnguas (v. 5), pois ele mesmo fala em lnguas mais do que todos (v. 18).
Fee8 comenta que, embora Paulo prefira a profecia a lnguas na reunio da
assemblia (v.5), a questo central no o dom das lnguas em si mesmo, mas a sua
7 xtase Religioso: Um Estudo Antropolgico da Possesso por Esprito e Xamanismo, 1977 8 The First Epistle to the Corinthians, 1987. p. 653.
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interpretao ou inteligibilidade na assemblia (v. 13), pois, neste caso, ele tambm
edificaria (v. 5). Ou seja, segundo o autor, os v. 2-3 sugerem que a oposio entre
lnguas e profecia no tem a ver com seus valores inerentes, mas com a direo da
edificao da assemblia. No se trata de poder ou no exercer o dom de lnguas, mas
do uso que se faz dele.
Para Senft9, Paulo, ao afirmar, no v. 2, que a glossolalia uma linguagem que
ningum compreende, no est dizendo que ela seja desprovida de sentido, uma vez que
possvel que algum a interprete (v. 5.13.27); ela tem sua lgica e sua sintaxe, como
nos mostrou Felicitas Goodman10, mas imprpria comunicao com os outros. A
glossolalia tem funo e objetivo prprios fala a Deus, mas no aos homens. Sob a
ao do Esprito ou em xtase, fala mistrios.
Fee e Felicitas Goodman11 concordam que tal fala est fora de compreenso,
mas constitui comunho com Deus, o que difere da noo de mensagem em
lnguas, que parece no ocorrer em Paulo. Thiselton12, citando Fee, diz que em nenhum
ponto do captulo 14 Paulo sugere que lnguas so faladas diretamente s pessoas; trs
vezes ele indica que se fala diretamente a Deus (v. 2,14-16.28).
Como nos testemunhos relatados na experincia de campo de Felicitas
Goodman13 nas comunidades pentecostais, falar em lnguas no captulo 14 da 1 Carta
aos Corntios quase sempre denota um enaltecimento de louvor e orao, alegres
aclamaes a Deus. Por exemplo, o grito (choro) Abba em Rm 8,26-27 pode sugerir
um contedo inconsciente, rompendo em xtase. Mas a glossolalia crist, como
apresentada, no pode ser confundida com os gritos dionisacos, como afirma
Christopher Forbes14. Segundo o autor, os gritos dionisacos so invocaes e
aclamaes. Embora a glossolalia crist no tenha sido invocatria, nem parea ter sido
predominantemente aclamatria, teve sim suas invocaes rituais e aclamaes, tais
como Amm, Aleluia, Hosana, Maranata, Abba e Senhor Jesus, o que
9 La Premire pitre de Saint Paul aux Corinthiens, 1990. p. 174. 10 Speaking in Tongues: A Cross-Cultural Study of Glossolalia, 1972. p. 87-125. 11 Speaking in Tongues: A Cross-Cultural Study of Glossolalia, 1972. p. 10. 12 The New International Greek Testament Commentary (NIGTC).2000, p1085-86, citando Fee: Paul, the Spirit and the People of God. 13 Speaking in Tongues: A Cross-Cultural Study of Glossolalia, 1974. p. 24-57. 14 Prophecy and Inspired Speech in Early Christianity and its Hellenistic Environment, 1997. p. 147.
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revela pelo menos um ponto de contato entre o fenmeno de fala inspirada do
cristianismo primitivo e o contexto helenstico.
No v. 4, Paulo enfatiza que uma vez que a edificao permanece a questo
central, ele aplica o mesmo termo para falar do uso de lnguas como meio de edificao
individual, o que controverso. Pode-se entender que o individualismo em Corinto o
alvo do ataque de Paulo. Contra esta viso pejorativa, Fee15 insiste que Paulo no
pretende tal coisa. A edificao prpria, diz o autor, no centrada em si mesmo, mas
na edificao pessoal do crente por meio da orao privada, da adorao, da comunho
com a divindade. Contrrio opinio de muitos, Fee diz que a edificao pessoal pode
ocorrer de diferentes formas, e no s pela mente. Paulo acreditava em uma
comunicao imediata com Deus por meio do Esprito Santo, que algumas vezes evita a
mente; nos v. 14-15, ele argumenta que, para a sua prpria edificao, usar tanto a
mente quanto o esprito. Mas, na assemblia, trar somente o que pode comunicar aos
outros crentes atravs de suas mentes. Conzelmann16 e Senft17 adotam um meio termo,
diz Thiselton18: para Paulo, o termo individual importaria enquanto forma de
contraste com o todo abrangente da evkklhsi,a (assemblia).
Para Thiselton19 o falar em lnguas pode refletir um autntico jorrar do que seria
de outra forma um inexpressivo louvor a Deus (v. 2a); mas, em Corinto (no por meio
de Paulo), o falar em lnguas tornou-se provavelmente o sinal supremo do poder e
maturidade espiritual dos falantes, produzindo um efeito colateral negativo20. A fala
esotrica usualmente considerada uma atividade de status elevado, exceto nas
sociedades racionalistas ocidentais, onde o falar em lnguas tomado como evidncia
de ignorncia, baixa condio social e susceptibilidade ao entusiasmo21. Frank D.
Macchia 22, ao contrrio, enfatiza o lado positivo do uso das lnguas na devoo pessoal
nos movimentos pentecostais:
Ser que a orao como uma resposta articulada e racional a Deus no esgota a resposta humana...? Poesia, cntico, dana e silncio tm sido
15 The First Epistle to the Corinthians, 1987. p657 16 I Corinthians, 1988. p. 235. 17 La Premire pitre de Saint Paul aux Corinthiens, 1990. p. 175. 18The New International Greek Testament Commentary (NIGTC).2000, p1094 19 Ibid. p1095. 20 Ibid. (citando Hays, First Corinthians). 21 Ibid. (citando Martin Tongues of Angels). 22 Sighs Too Deep for Words: Toward a Theology of Glossolalia 47-73 / Discerning the Spirit in life: a Review of God the Spirit by Michael Welker, 1997. p. 3-28.
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sempre oferecidos como exemplos de profundas respostas a Deus... Glossolalia certamente uma de tais respostas a Deus 23.
Thiselton24, comentando sobre este artigo, diz que Macchia reconhece que uma
experincia cristologicamente orientada difere em espcie de uma euforia
emocionalmente autocentrada e vazia. Glossolalia, presumivelmente, como Paulo
praticou em privado, para ser entendida cristologicamente.
No v. 13, sutilmente Paulo se move no sentido da orao que pode ser proferida
em lnguas. Ele no parece ter a inteno de banir a glossolalia da assemblia cltica,
mas insiste que seja interpretada, e a pessoa que fala em lngua deve orar para que isso
acontea. Paulo regulamenta o dom de lnguas na assemblia por meio da exigncia
de sua interpretao, tornando a fala inteligvel, a fim de satisfazer o princpio da
edificao da assemblia.
Para Paulo, o produto da orao em lngua no contexto do culto pblico no tem
valor, pois no compreendida, seja na forma de revelao, seja na forma de ensino, ou
seja, no h a edificao de que tanto necessitam. Se a comunicao verbal for racional,
o resultado pode edificar a comunidade e gerar frutos (v.14a) de amor para outros.
Assim, no v. 14 Paulo enfatiza no contexto cltico que a edificao das pessoas
tem a ver com uma comunicao verbal racional: Pois, se eu oro em lngua, o meu
esprito ora, mas a minha mente fica infrutfera. Que fazer ento?, pergunta-se
retoricamente no v. 15. O estilo simples, tal como em Rm 3,9; 5,15; 11,7 e 1Cor
14,26. Nota-se que a glossolalia pode estar relacionada no apenas orao, mas
tambm ao cntico. possvel que a fala esttica algumas vezes assuma a forma de
cnticos inarticulados, cantos sem palavras inteligveis ou melodias definidas, diz
Robertson e Plummer25. A resposta Orarei no esprito, mas tambm orarei na mente
leva-nos a concluir que a orao racional no menos espiritual que a irracional.
Nos v. 18-19, Paulo reafirma sua palavra anterior e acrescenta novamente seu
exemplo pessoal. Ele revela falar em lnguas mais do que qualquer um e agradece a
Deus pelo dom recebido, mas declara que, em pblico, prefere abrir mo deste dom
pessoal a fim de outros sejam beneficiados. comum considerar essa afirmao retrica
23 Traduo literal. 24 The New International Greek Testament Commentary (NIGTC).2000. p1096. 25The New International Greek Testament Commentary (NIGTC).2000. p1113.
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ou at hipottica, no entanto, segundo Fee26, ela reflete a espiritualidade paulina. Senft27
questiona o argumento segundo o qual Paulo teria rebaixado a glossolalia por cime.
Neste caso, afirmando que tambm fala em lnguas, poderia estar defendendo seu
prprio status na comunidade ao estabelecer critrios para o seu uso e rejeitar a
apropriao deste dom por outros membros. Mas, continua o autor, Paulo, guiado por
seu sentimento de responsabilidade apostlica, recusa-se a falar em lnguas, como eles
desejavam, e prefere a forma inteligvel para a edificao de todos (14,15) e o ensino
dos outros (14,17.19).
Outro aspecto a ser discutido o da semelhana ou no entre a glossolalia e a
linguagem comum falada ou as linguagens angelicais (1Cor 13,1). Paulo Nogueira28,
referindo-se experincia descrita no livro dos Atos dos Apstolos, diz que as lnguas,
no cristianismo paulino, no tinham a finalidade de ser uma proclamao pblica do
Evangelho, e muito menos se referiam ao falar de lnguas estrangeiras. Em 1Cor 13,1,
por exemplo, ao se referir explicitamente lngua dos anjos, o apstolo Paulo o faria a
partir do contexto religioso da apocalptica judaica e da descrio do culto celestial
como paralelo ao culto terreno.
Para Fee29, Paulo e os corntios concebiam o dom das lnguas como linguagens
dos anjos por dois motivos. Primeiro, porque h fontes judaicas que levam a acreditar
que os anjos possuam linguagens prprias (ou dialetos) e que, por meio do Esprito,
poder-se-ia falar esses dialetos (Test. de J 48-50). Segundo, porque o sentido de
espiritualidade da comunidade de Corinto a levava a acreditar que j haviam
experimentado algo da existncia angelical, o que se pode perceber, por exemplo, a
partir de expresses que ordenam ou rejeitam a vida sexual (1Cor 7,1-7; 11,2-16), ou
que recusam uma futura existncia corporal (1Cor 15,12.35).
Forbes30, no que diz respeito s lnguas angelicais, diz que, para alguns, 1Cor
13,1 somente ser entendido como um paralelo de 1Cor 14,7-8, no que se refere s
coisas inanimadas que emitem sons, como a flauta e a harpa. Este caso tenta convencer
com referncia crena em lnguas divinas no mundo helenstico, ou crena de
26 The First Epistle to the Corinthians, 1987. p. 674. 27 La Premire pitre de Saint Paul aux Corinthiens, 1990. p. 178. 28 Experincia Religiosa e Crtica Social no Cristianismo Primitivo, 2003. p. 64ss. 29 The First Epistle to The Corinthians, 1987. p. 630. 30 Prophecy and Inspired Speech in Early Christianity and its Hellenistic Environment, 1997. p.58
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lnguas angelicais expressas em algumas obras intertestamentrias judaicas. Eles
acreditam que o Testamento de J e o Apocalipse de Sofonias fornecem o paralelo
substancial mais prximo para a glossolalia no cristianismo primitivo e reivindicam que
o conceito de lnguas divinas ou angelicais um importante link que une os vrios
fenmenos. Aqueles que desejam argumentar que Paulo pretende que seus leitores
compreendam somente as linguagens angelicais so forados a ignorar, em 1Cor 13,1,
as lnguas dos homens. Aqueles que desejam argumentar em favor da linguagem
humana defendem que a expresso as lnguas dos anjos, no mesmo versculo,
apenas uma hiprbole.
Para Paulo Nogueira31, o contexto mais prximo da glossolalia no cristianismo
primitivo o misticismo apocalptico. no mbito religioso que o elemento exttico se
desenvolve no judasmo do perodo, por exemplo, as lnguas dos anjos citadas nos
manuscritos do Mar Morto. O contedo dos louvores dos cnticos para o sacrifcio do
sbado apresenta uma linguagem densa, o que parece ser indcio dos limites da
linguagem humana para expressar as coisas celestiais. A referncia s lnguas dos
anjos (tambm chamadas lnguas de conhecimento) contrape-se lngua humana
(lngua do p) em 4 Q400 fraq. 2,7-11. Mas, segundo o autor, a presena da
glossolalia aqui no dada como certa.
Goodman32 declara que no h dados suficientes na literatura sobre o assunto
que possam assegurar que a glossolalia semelhante ou no linguagem comum falada.
Ela insiste que a glossolalia um padro de vocalizao, um automatismo de fala
produzido no substrato de uma dissociao de ultra-excitao (hyperarousal), reflexo
direto de processos neurofisiolgicos observados em pessoas com estado mental
alterado. Para a autora, parece tratar-se de uma necessidade psicolgica equiparar
vocalizao e fala: os humanos tm uma necessidade urgente de compreender o que
experimentam, de explicar novos fenmenos em termos do que j conhecem. Assim,
esto convencidos de que, ao escutarem uma lngua, viva ou morta, ela pode ser
compreendida caso haja algum que a conhea (xenoglossia). O fato de a glossolalia
no apresentar a estrutura de superfcie de um cdigo simblico e lingstico de uma
estrutura lingstica profunda, mas sim um artefato de dissociao super ativada 31 Experincia Religiosa e Crtica Social no Cristianismo Primitivo, 2003. p. 64ss. 32 Speaking in tongues: A Cross-Cultural Study of Glossolalia, 1974. p.101, 123, 150-51.
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(hyperarousal), confirma, segundo a pesquisadora, a hiptese de que a glossolalia tem
em sua estrutura profunda uma dissociao super ativada.
Devido rejeio quase universal da parte dos pentecostais e carismticos
quanto afirmao de que o dom das lnguas supe o xtase ou transe, foram feitos
testes do nvel de conscincia e da habilidade de desempenhar tarefas mentais durante a
glossolalia. A concluso foi a de que o glossolalista receptivo s informaes externas
e capaz de process-las e reagir a elas durante os encontros de glossolalia. O falar em
lnguas pode acompanhar o transe, mas certamente no requer um estado de conscincia
alterado significativo ou uma dissociao (alm daquela envolvida, por exemplo, em
dirigir um carro e pensar sobre qual restaurante escolher).
Mark Cartledge33 oferece-nos um artigo que traz um debate entre Goodman e
William J. Samarin. Samarin aponta os limites da pesquisa de Goodman, uma vez que
ela no considerou a literatura do movimento pentecostal, mas somente os estudos da
cincia comportamental. Caso o fizesse, diz o autor, ela teria percebido que a
dissociao algumas vezes pode acompanhar a glossolalia, mas no pode ser
considerada causa do falar em lnguas. Algumas pessoas falam em lnguas sem entrar
em xtase.
Cartledge cita outros autores que discordam da tese de Goodman, por exemplo,
N. P. Spanos, E.C. Hewitt, W. K. Bartlett e T. Moyle. Em geral, tais autores
argumentam que os estados alterados de conscincia nem sempre acompanham a
glossolalia, ainda que um dado intercultural favorea tal afirmao. Alm disso, o
estudo de Goodman no seria propriamente sobre a glossolalia, mas sobre como casos
de dissociao ou estados alterados de conscincia se relacionam com a glossolalia. A
maioria dos pesquisadores concorda com as afirmaes de Samarin.
No que diz respeito presena dominante de mulheres nas atividades clticas,
tanto Lewis como Goodman34 nos oferecem dados estatsticos. Para Goodman, as
mulheres entram em glossolalia muito mais facilmente do que os homens e quase todas
so glossolalistas habituais35.
33 Interpreting Charismatic Experience: Hypnosis, Altered States of Consciouness and the Holy Spirit? Journal of Pentecostal Theology 13. 1998 p117 -132 34 Ibid. p. 5.9. 35 Ibid. p. 10.
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Em relao ao controle da glossolalia, Goodman36 faz uma distino entre os
papis do clero e dos leigos. O leigo seria mais dependente no controle da situao. O
clero estaria consciente da possibilidade de exercer tal controle. Diz um ministro: Eu
agora sou capaz de falar em lnguas; quando eu quero, eu posso controlar isso, e se eu
no quero, ento eu posso conter a mim mesmo. Eu tambm posso controlar como
falar, se de forma alta ou baixa.
Em 1Cor 14,32, Paulo diz que os espritos dos profetas esto sujeitos aos
prprios profetas. A diferenciao dos papis de leigos e clero, apontada por Goodman,
desperta nosso interesse em averiguar o entusiasmo sem controle nas assemblias
paulinas como possvel resultado da experincia de iniciados ou da prpria elite da
comunidade, e nos desafia a buscar elementos que permitam compreender diferentes
graus de alterao da conscincia dentro do xtase.
Pouco nos oferecem os artigos recentemente publicados para fazermos qualquer
tipo de anlise sobre a glossolalia praticada atualmente nos meios pentecostais e
carismticos. As informaes a que tivemos acesso acerca da moderna glossolalia fazem
parte da pesquisa sobre fontes pentecostais e artigos teolgicos catalogados por Max
Turner37, que serviram de base para os captulos 17 a 20 de sua obra.
Quando surgiu a discusso sobre o falar em lnguas dentro do movimento
pentecostal, todos os envolvidos julgavam tratar-se do dom de lnguas estrangeiras para
o propsito do evangelismo. As reivindicaes de reconhecimento da xenolalia feitas
recentemente, como j havia afirmado Goodman, baseiam-se em material de segunda ou
terceira mo, o que inviabiliza a anlise minuciosa. Lingistas que se dedicam a estudar
essas numerosas gravaes do falar em lnguas de conhecidas etnias no atestam a
xenolalia e mesmo os possveis casos de xenolalia so muito raros e no tm
comprovao cientfica.
As gravaes de falas em lnguas submetidas criteriosa anlise revelaram
que poucas (ou nenhuma) apresentam uma estrutura lingstica ou gramatical que se
assemelhe s linguagens humanas. Trata-se de uma evidncia contrria pesquisa de
Goodman, que afirmava que o falar em lnguas era um outro tipo de linguagem com
estrutura lingstica prpria.
36 Speaking in Tongues: A Cross-Cultural Study of Glossolalia, 1974. p. 84. 37 The Holy Spiritual Gifts in the New Testament Church and Today,1996.
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O dom das lnguas nas comunidades pentecostais e carismticas tem a funo de
trazer uma mensagem e aprofundar o relacionamento do cristo com Deus e sua
capacidade de ador-lo. A conscincia de ser habitao do esprito de Cristo conduz a
uma dedicao plena. A maioria dos pesquisadores sobre lnguas tem focalizado as
experincias individuais, mas os primeiros pentecostalistas valorizavam o dom como
uma contribuio para a congregao. A prtica difundida durante o culto manifestava-
se em ocasies em que a congregao sentia a presena de Deus. Era como uma
resposta corporativa feita de cantos harmnicos em lnguas. Nesses momentos, as
lnguas no eram interpretadas, mas compreendidas como uma livre doxologia
inspirada. Segundo Max Turner38, no existe precedente direto para isto no Novo
Testamento, embora se encontrem algumas oraes carismticas invasivas no Antigo
Testamento e no Judasmo. Existe uma crtica manifestao desse fenmeno por julg-
la uma violao s instrues de Paulo em 1Cor 14,27.28. As pessoas, nas assemblias
clticas, podem sentir um forte impulso para dirigir um perodo em lnguas a Deus e
congregao, compreendido como uma compulso divina, e a fala resultante desta
experincia seria interpretada, de acordo com 1Cor 14,13.27.28. Lnguas seguidas de
interpretao funcionam como profecia na congregao.
CONCLUSO
Levantamos uma srie de questionamentos sobre a Glossolalia que necessitam
de maior investigao tanto no campo do estudo comparativo das religies quanto nos
aspectos especficos da compreenso de Paulo e da comunidade de Corinto.
A concluso de nossa pesquisa que no h um fenmeno helenstico difundido
que fornea uma base de compreenso para os problemas de Corinto, embora no
perodo helenstico tenha havido diferentes tradies de fala carismtica inspirada. No
h evidncias suficientes de que os cristos primitivos no acreditassem ser a glossolalia
o poder de falar lnguas humanas no aprendidas ou mesmo as lnguas dos anjos
(embora, neste caso, as evidncias no sejam fortes). A tradio da glossolalia crist,
embora apresente alguns elementos helensticos, substancialmente diferente. Ela
vista como revelao e orao, no como invocao. um ritual comunicativo,
espontneo, articulado e pode ser interpretada.
38 The Holy Spirit and Spiritual Gifts in the New Testament Church and Today, 1996. p. 312.
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Paulo critica no a glossolalia em si, mas o uso que a comunidade de Corinto faz
deste dom. Para ele, a glossolalia simplesmente uma entre as vrias manifestaes do
Esprito nem a mais elevada, nem a mais baixa em valor. Mas todos os dons tinham a
funo de edificar a assemblia como um todo. Por isso, o falar em lnguas no culto
devia ser interpretado.
Para Paulo, na assemblia cltica, a glossolalia interpretada estava altura da
profecia, como manifestao de Deus confrontando, desafiando, confortando e
instruindo seu povo. Lnguas interpretadas eram sinal de salvao, testemunho da
presena imediata de Deus na e para a comunidade. Mas Paulo tambm admite a
glossolalia como um dom de uso privado na orao carismtica inspirada e como meio
de expresso do gemido interior, dos anseios que uma pessoa no consegue manifestar
em suas prprias palavras.
Hoje, falar em lnguas funciona como uma forma doxolgica, cristocntrica,
s vezes de minimizao da ansiedade, outras vezes de edificao da congregao,
porm sempre um dom espiritual. A questo se podemos traar um paralelo com o
falar em lnguas da comunidade paulina de Corinto. Se h diferentes tipos de lnguas,
no poderamos incluir nesse quadro a xenolalia, a lngua dos anjos e as lnguas faladas
reveladas pela pesquisa moderna? Ainda que Paulo estivesse falando sobre uma
manifestao diferente, no parece haver espao para um dogmatismo que descarte
qualquer possibilidade de a glossolalia de hoje ser o mesmo fenmeno que Paulo
conhecia.
Podemos sintetizar tudo o que foi pesquisado nas palavras de Paulo: Ainda que
eu fale as lnguas dos homens e dos anjos (...), ainda que eu tenha o dom de profetizar e
conhea todos os mistrios e toda a cincia (...), se no tiver amor nada serei, nada disso
me aproveitar.
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