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4 UMA HISTÓRIA PARA A NOÇÃO DE VALÊNCIA QUÍMICA A noção de valência é um tema ao mesmo tempo controverso e central na história da química. Através das diferentes aproximações desenvolvidas para precisar o seu papel no desenvolvimento da química, a noção de valência demonstrou ser pelo menos uma estratégia metodológica bastante eficiente para aproximação do químico com o misterioso mundo interior da combinação química. Essa noção se atreveu a tentar explicar os antigos domínios da afinidade química, acabando com isso por produzir uma maneira especial de representar a realidade invisível dos átomos e moléculas através das chamadas fórmulas estruturais. Como se não bastasse, a valência provocou também o mundo periódico, organizando a posição dos primeiros elementos tanto no sistema russo, proposto por Medeleev, como no alemão, proposto por Meyer. A partir de todas essas influências, alguns professores de química concordam que é impossível dar os primeiros passos na disciplina sem ser apresentado a ela. Contudo a situação da noção de valência no presente é bem diferente do ponto de vista acadêmico. Os avanços crescentes da chamada química teórica, na verdade uma sub- classe do macro-domínio da mecânica quântica, retiraram da valência seus atributos e designaram-na uma função meramente sintática. Assim, o que outrora fora encarado como uma teoria fundadora, agora é mormente remetido através de locuções adjetivas tais como: elétrons de valência, nível de valência e configuração de valência. Em relação a uma evolução temporal restrita, a história da valência pode ser dividida, grosso modo, em três períodos. O primeiro, de 1850 a 1870, sendo caracterizado pela emergência do conceito e seu desenvolvimento no interior do programa de pesquisa da química orgânica. O segundo, de 1870 até 1920, que assinala a influência da periodicidade química sobre ela, determinando uma ampla divulgação e utilização do

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4 UMA HISTÓRIA PARA A NOÇÃO DE VALÊNCIA QUÍMICA

A noção de valência é um tema ao mesmo tempo controverso e central na história

da química. Através das diferentes aproximações desenvolvidas para precisar o seu papel

no desenvolvimento da química, a noção de valência demonstrou ser pelo menos uma

estratégia metodológica bastante eficiente para aproximação do químico com o misterioso

mundo interior da combinação química. Essa noção se atreveu a tentar explicar os antigos

domínios da afinidade química, acabando com isso por produzir uma maneira especial de

representar a realidade invisível dos átomos e moléculas através das chamadas fórmulas

estruturais. Como se não bastasse, a valência provocou também o mundo periódico,

organizando a posição dos primeiros elementos tanto no sistema russo, proposto por

Medeleev, como no alemão, proposto por Meyer. A partir de todas essas influências,

alguns professores de química concordam que é impossível dar os primeiros passos na

disciplina sem ser apresentado a ela.

Contudo a situação da noção de valência no presente é bem diferente do ponto de

vista acadêmico. Os avanços crescentes da chamada química teórica, na verdade uma sub-

classe do macro-domínio da mecânica quântica, retiraram da valência seus atributos e

designaram-na uma função meramente sintática. Assim, o que outrora fora encarado como

uma teoria fundadora, agora é mormente remetido através de locuções adjetivas tais como:

elétrons de valência, nível de valência e configuração de valência.

Em relação a uma evolução temporal restrita, a história da valência pode ser

dividida, grosso modo, em três períodos. O primeiro, de 1850 a 1870, sendo caracterizado

pela emergência do conceito e seu desenvolvimento no interior do programa de pesquisa

da química orgânica. O segundo, de 1870 até 1920, que assinala a influência da

periodicidade química sobre ela, determinando uma ampla divulgação e utilização do

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conceito tanto no campo acadêmico quanto no didático. E o terceiro, após 1920, que

assinala a colisão entre os antigos referenciais da noção de valência com os resultados da

utilização de métodos físicos modernos no estudo da estrutura das substâncias, incluindo-

se o alcance dos preceitos da mecânica quântica sobre os objetos da química.

Esse trabalho não tratará desse terceiro período, procurando focalizar uma

apresentação histórica voltada para o que se chama comumente de noção clássica de

valência, em contraposição à teoria eletrônica de valência que se verifica como um efeito

do desenvolvimento da mecânica quântica, após 1920.

A anotação da noção clássica de valência pretendida aqui, não estará pautada pelo

intervalo temporal indicado anteriormente, em seu lugar recorreremos como ponto de

partida a uma investigação das origens da noção de afinidade química. Essa escolha

decorre principalmente da identidade que a noção clássica de valência assumiu com essa

noção ao longo de sua evolução. Por sua vez, o ponto final dessa apresentação pretende

trazer à tona as mutuas implicações que ocorreram entre a noção de valência e a

periodicidade química no final século XIX. A estratégia/organização é mais bem

identificada como um mapa histórico das idéias que em diversas épocas constituíram ou

foram constituídas pela noção de valência, preservando sempre que possível uma ordem

cronológica. Denota-se assim, uma pretensa história das idéias que em diversas épocas

constituíram o currículo dessa noção.

Os critérios de escolha para a configuração desse mapa de idéias pertinente à noção

clássica de valência foram amparados, mas não determinados, pela bibliografia consultada.

O quadro histórico desenhado aqui é uma história e não a história da valência, ele deve

apoiar a leitura da análise dos livros que virá posteriormente. Todavia não foi delegado a

ela, em nenhum momento, um caráter secundário, mas sim o de uma poderosa ferramenta

na metodologia desse trabalho e de sua proposta.

4.1 AS PRIMEIRAS IDÉIAS SOBRE AFINIDADE QUÍMICA

A metáfora mais antiga correspondendo a uma explicação para a transformação da

matéria recorre aos primeiros mineradores que acreditavam que os minérios cresciam no

solo como embriões, resultado da união do céu masculino com a terra feminina. Para eles

os vários tipos de minerais eram uma forma passageira, de gestação natural para

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progressão até o estado mais perfeito, o ouro, que correspondia ao estado mais raro dessa

união. Procedimentos ritualísticos extremamente elaborados foram desenvolvidos para

auxiliar a natureza no seu trabalho de transformar minérios simples em ouro puro. Sejam

como lendas ou simples metáforas, a força dessas concepções pode ser verificada pela sua

insistência em se manter presente desde a Grécia Antiga, atravessando a Idade Média, até o

Renascimento.

Mesmo tendo como referência o caráter místico de suas origens, pode-se inferir que

os primeiros contatos com diferentes tipos de matéria, através de experimentos controlados

ou não, indicaram que a ação química – algumas vezes vigorosa e outras vezes vagarosa e

incompleta – poderia ser devida a forças ou a atrações particulares. Os primeiros químicos,

no entanto, não estavam interessados em interpretar tais fenômenos por meio de causas

físicas, ficando satisfeitos com a observação e considerando as causas como manifestações

de intenções divinas, ou devidas a misteriosos poderes ocultos. Em períodos posteriores,

chegou-se a considerar que a causa que estimularia a combinação química seria a

semelhança entre as substâncias. A frase “Similia similibus”35 (Stilmann, 1960),

personifica um dos mais antigos simbolismos e reflete uma vontade primeira de exprimir a

causa dos processos de transformação química.

A palavra afinidade, quando utilizada pelos antigos praticantes da arte36, implicava,

entre outros aspectos, também a idéia de uma semelhança ou similaridade entre os corpos

que reagem. Durante o século XIII, Alberto Magno (1193–1280) utiliza a palavra

“affinitas” com esse sentido quando diz que “o enxofre escurece a prata e queima os metais

em geral, devido à “afinidade natural que existe entre eles” (propter affinitatem naturae

metalla adurit)37. Alberto Magno foi o primeiro a demonstrar que o lapis Rubens (cinábrio

– sulfeto de mercúrio), que se encontrava nas minas de onde se retirava mercúrio, era um

composto de enxofre e mercúrio (Magno, 1974). Magno descreveu também, com riqueza

de detalhes, a preparação do ácido nítrico, que nomeava água prima, ou água filosófica no

primeiro grau de perfeição.

35 Semelhante gosta de semelhante 36 É entendida aqui como arte toda manifestação vinculada a correntes da alquimia ou tradição hermética e que poderia misturar os conhecimentos tanto de iniciados como de artesãos para os mais diversos fins, desde a cura de doenças até o charlatanismo. 37 De Rebus metaliicis, Rouen, 1476. A obra pode ser consultada indiretamente através do site da ORB – Online Reference Books for Medieval Studies – disponível em <http://orb.rhodes.edu/bibliographies/ almagnus.html> acesso em 14 de outubro de 2002.

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Essa afinidade medieval era plena de características animadas, como se pode

perceber também a partir da narrativa de Johann Rudolf Glauber (1604-1668) em seu livro

Furni novi philosophici (1646), quando dizia que a areia possui uma sociedade com o sal

de tártaro (carbonato de potássio) de modo que eles “se amam tanto que não concordam

em se separar” (Glauber, 1659).

4.2 INFLUÊNCIAS DO CORPUSCULARISMO DE ROBERT BOYLE

Robert Boyle (1627-1691), em seu livro Químico Cético (1661), protesta contra a

crença generalizada nas idéias de simpatia/antipatia, amizade/aversão, quando associadas a

substâncias materiais. Para Boyle tais atributos são do domínio da alma humana e não

podem ser comuns a corpos inanimados. Tanto no Químico Cético quanto no As Origens

das Formas e Qualidades Boyle critica os modos de explicação que são comuns nos

séculos dezesseis e dezessete e considera que existem basicamente duas correntes de

pensamento: os aristotélicos ou peripatéticos e os químicos ou espagiristas38.

Os peripatéticos usavam os elementos aristotélicos (terra, água, fogo e ar) para

explicar os fenômenos naturais, de modo que todas as substâncias eram compostas desses

elementos em diferentes proporções, explicando-se assim as propriedades observadas e os

comportamentos em termos dos constituintes dos diferentes corpos. Esses elementos não

eram idênticos ao que se concebe cotidianamente por terra, água, fogo e ar, mas sim

responsáveis por suas qualidades, ou seja, por propriedades observáveis em seus

compostos tais como dureza, peso, volatilidade, por exemplo. Já as explicações dos

químicos dependiam daquilo que chamavam princípios químicos e de seus conceitos

básicos. Um das idéias mais populares era conhecida como a tria prima39 e se referia ao

sal, enxofre e mercúrio de forma que todos os materiais consistiam de uma mistura desses

três princípios em proporções diferentes, e as diferenças nas proporções eram responsáveis

pelas diferentes características desses materiais. Assim como no caso dos elementos

aristotélicos, os princípios sal, enxofre e mercúrio não remetiam diretamente às substâncias

38 O espagirista era um alquimista interessado em preparar remédios utilizando as vias da tradição hermética. A espagíria precedeu historicamente a corrente iatroquímica (também conhecida como quimiatria) que pode ser reconhecida como um conjunto de idéias que explicavam o funcionamento do corpo humano e as doenças segundo processos químicos. 39 A tria prima, conforme professava o maior de todos os espagiristas – Phillipus Aureolis Theophrastus Bombastus von Hohenheim, o Paracelso (1490–1541) – era o conjunto dos elementos formadores do cosmos.

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observáveis, mas correspondiam a uma espécie de essência pura que explicava ou causava

as qualidades observadas nas substâncias40.

Os argumentos de Boyle procuram indicar que, mesmo a despeito das diferenças

em seus conceitos fundamentais, peripatéticos e químicos possuíam modos de explicação

com as mesmas falhas, modos estes divergentes quanto à forma de identificação e

separação das mesmas substâncias. Descrevendo no livro vários experimentos que não

podiam ser explicados por nenhuma das duas correntes, Boyle acredita que conceitos mais

simples e de fácil entendimento aumentam o grau de explanação de um conjunto de idéias

tornando-o mais abrangente, econômico e claro. O corpuscularismo de Boyle está

fundamentado nessas idéias41.

Da mesma maneira que muitos outros membros da Royal Society, Boyle é muito

cauteloso ao utilizar entidades ocultas, mas considera possível recorrer a alguma coisa

oculta se esse for o único meio de explicar satisfatoriamente uma propriedade particular ou

um fenômeno e não haver outro método de confirmar sua presença. Assim, dado seu receio

de introduzir forças ocultas como causadoras dos fenômenos químicos, sua filosofia

corpuscular é considerada por alguns historiadores como cinemática (Alexander, 2000).

Por exemplo, Boyle afirma que ao examinar um fenômeno natural de perto, especialmente

com o auxílio de recursos óticos, pode-se encontrar que a cor depende de modificações na

estrutura interna das substâncias e que as explicações mais fundamentais podem também

depender da estrutura mais íntima das substâncias e de partes muito pequenas delas que

não podem ser observadas.

Boyle se sentia atraído pelo antigo atomismo, mas descontente com sua grande

dependência de raciocínios a priori e hipóteses ad hoc. Mesmo assim, as explicações

atomistas possuíam para Boyle clareza bastante aceitável, uma vez que recorriam a

entidades e eventos muito familiares àqueles que podiam ser conquistados pela experiência

sensível. Uma das correspondências mais peculiares entre o atomismo e a experiência

sensível estava na possibilidade de entender as evidências atômicas, a partir do

comportamento das bolas de ‘croquet’, envolvendo simplesmente seu peso, forma,

40 O mercúrio é o agente transformativo, responsável pela fluidez e pela volatilidade. O enxofre é o agente de ligação e de transformação entre as substâncias, é o responsável pela combustibilidade da matéria. O sal é o agente da solidificação, que é responsável pela forma. 41 Mesmo antes da crítica realizada por Boyle, o iatroquímico belga Joan Baptista Van Helmont (1577–1644) criticou a tria prima em seu livro Ortus medicinae que foi publicado em 1648. A crítica de Van Helmont tratava, principalmente, de demonstrar como a análise pelo fogo não poderia ser considerada como uma prova final da pré-existência da tria prima nos compostos (Newman, 2000).

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tamanho e movimento. Tais explicações eram simples e podiam produzir os efeitos

desejados. Boyle desejava obter as vantagens do poder explanatório do atomismo sem cair

em argumentos metafísicos, apoiando-se ao invés disso na observação e na experiência. A

fim de marcar claramente as novidades existentes em seu atomismo purificado, Boyle

atribui, no lugar de átomo, o termo corpúsculo (corpuscule) para sua partícula mínima.

Outro motivo para não usar o termo átomo era sua associação com o ateísmo42. Os

corpúsculos eram como pequenas bolas de ‘croquet’ de várias formas que possuíam as

mesmas qualidades que podiam ser verificadas nos objetos materiais observáveis. Esse

contexto indicava para ele que somente hipóteses sustentadas por observações e

experimentos podiam de alguma forma ser significativas para a complementação da

hipótese corpuscular.

Para Boyle, o fenômeno químico era entendido como um conjunto de interações

físicas, explicadas em termos da modificação de um arranjo de corpúsculos chamado

textura. A textura era uma coleção de corpúsculos arranjados de maneira particular, na

qual cada corpúsculo era exatamente um igual ao outro (esse arranjo também era chamado

de matéria universal). As alterações químicas eram devidas ao rearranjo, espaçamento,

adição ou retirada de corpúsculos na textura. Boyle se refere a sua hipótese corpuscular

como mecânica, uma vez que procura recorrer exclusivamente a peso, forma e tamanho

como qualidades. No Químico Cético, Robert Boyle apresenta uma definição para

elemento, procurando se distanciar do que pretendiam os peripatéticos com esse mesmo

termo43:

(...) [o] que entendo por elementos são certos corpos primitivos e simples, perfeitamente sem mistura, os quais não sendo formados de quaisquer outros certos corpos, nem um dos outros, são os ingredientes dos quais todos os corpos perfeitamente misturados são feitos, e nos quais podem finalmente ser analisados. (Boyle, 1661)

É muito importante ter claro que essa definição de elemento de Boyle possui caráter

de contestação em relação às idéias dos peripatéticos, tendo pouca relação com o elemento

42 O ateísmo pode ser encarado sob o ponto de vista filosófico como uma atitude ou doutrina que dispensa a idéia ou a intuição da divindade, quer do ângulo teórico (não recorrendo à divindade para se justificar ou fundamentar), quer do ângulo prático (negando que a existência divina tenha qualquer influência na conduta humana). 43 Uma cópia digitalizada do original de 1661 do Químico Cético pode ser obtida na página da Biblioteca da Universidade da Pensilvânia, disponível em <http://www.library.upenn.edu/etext/collections/science/boyle/ chymist/index.html>, acesso em 14 de dezembro de 2002.

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químico de Lavoisier e quase nenhuma com a noção atual, apesar da insistência de muitos

autores de livros e revistas em imputar essa simetria.

O modelo corpuscular de organização da matéria de Boyle caracteriza uma

afinidade mecânica entre as partículas do corpo químico, mas é muito mais um conjunto

de restrições empíricas que procurou censurar o uso de argumentos e explicações que não

recorressem explicitamente ao domínio da experimentação ou da observação. Isso

implicou na busca de novos dados experimentais a respeito das transformações químicas,

procurando-se indicar exatamente o que era visto, sem metáforas herméticas, sem

simpatias e antipatias, mas com tentativas de estabelecer relações mecânicas como

responsáveis pelas mudanças na organização dos corpos químicos. Contudo, antes dessa

busca pela ordem a partir da experimentação, um dos alunos de Boyle irá provocar grandes

mudanças, curiosamente utilizando como referência a mesma doutrina hermética que seu

mestre havia se dedicado a criticar ostensivamente.

4.3 A AFINIDADE NA QUESTÃO 31 DO ‘ÓTICA’ DE ISAAC NEWTON

Um dos esforços mais interessantes e significativos para caracterizar a afinidade

química teve origem na obra de um físico, talvez o mais famoso deles, Sir Isaac Newton

(1642–1727). Em seu livro Ótica, Newton fornece na questão 31 (a última de uma série de

questões propostas ao leitor ao final do livro) uma série de inquietantes provocações a

respeito de transformações químicas que ele mesmo havia conduzido.

Não têm as pequenas partículas dos corpos certos poderes, virtudes ou forças por meio dos quais elas agem a distância não apenas sobre os raios de luz, refletindo-os, refratando-os e inflectindo-os, mas também umas sobre as outras, produzindo grande parte dos fenômenos da natureza? Pois sabe-se que os corpos agem uns sobre os outros pelas ações da gravidade, do magnetismo e da eletricidade; e esses exemplos mostram o teor e o curso da natureza, e não tornam improvável que possa haver mais poderes atrativos além desses. (...) Não examino aqui o modo como essas atrações podem ser efetuadas. O que chamo de atração pode-se dar por impulso ou por algum outro meio que desconheço. (Newton, 1998, p. 274)

Newton propõe a existência de um tipo especial e específico de força de atração,

como responsável pela ação química, diferente dos fenômenos de gravitação, magnetismo

e eletricidade, que estaria sujeita a suas próprias leis e até aquele momento não conhecida.

A fascinação de Newton pela transmutação alquímica e sua convicção do caráter hermético

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desse conhecimento fez com que ele criticasse um trabalho de Boyle a respeito de estudos

alquímicos, não pelo assunto mas porque acreditava que o público em geral não devia ter

acesso a tal conhecimento. Muitas de suas notas em alquimia revelaram sucessos em

experimentos onde outros contemporâneos haviam falhado, no entanto, o físico alquimista

falhou em seu propósito de descobrir qual a força que governa os pequenos corpos

componentes dos processos químicos, as quais procurava submeter à mesma interação que

age nos grandes corpos.

O monge croata Ruggero Giuseppe Boscovich (1711-1787), por exemplo, utilizou

uma tese de Newton, que tratava o corpo químico como sendo constituído por um edifício

complexo de partículas, podendo este ser modificado pelas reações. Nesse caso, Boscovich

indica que as forças de atração que atuam no corpo químico são específicas pois são

determinadas pelo edifício e resultantes da atuação de cada ponto individual que participa

dele. A dinâmica do sistema idealizado por Boscovich era bastante complexa, de tal forma

que a porção de uma partícula pertencente ao edifício poderia atrair uma outra, enquanto

outra porção poderia repelir uma terceira. Nesse sistema, essa partícula última, responsável

pela ação química, é um centro de força pontual. Com isso, o monge croata pretendia

unificar todas as ações naturais em torno dessa noção, como indica o nome de seu livro

publicado em 1758 Uma teoria de filosofia natural – Reduzindo a uma única lei todas as

forças que existem na natureza44. Boscovitch conclui que mesmo que se constitua uma

teoria das operações químicas não se conseguiria prever que combinações poderiam ser

feitas. As origens ou causas dos efeitos que produzem os diferentes tipos de edifícios

químicos “excedem de longe o poder do espírito humano” (Stengers, 1989, p. 131).

É patente o traço de semelhança entre os sistemas de Newton e Boscovich, assim

como foi influente o caminho que abriram para novas possibilidades de uma afinidade que

poderia incluir entidades até então desconhecidas.

4.4 AS DIFERENTES FACES DA AFINIDADE QUÍMICA

A edição de 1732 do Elementa Chemia de Hermann Boerhaave (1668-1738) cita

extensivamente a questão 31 de Newton e a utiliza para demarcar o domínio de atividade

da Química:

44 Theoria Philosophiae Naturalis - Redacta ad Unicam Legem Virium in Natura Existentium

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Todas as operações, como conseqüência as que a Química realiza nos corpos também, são meras trocas em relação ao movimento. Um corpo pode operar trocas em relação ao movimento de duas formas: quando todo o seu tamanho é removido de um lugar para o outro, o qual não é considerado pela Química, mas sim pela Mecânica; ou quando suas partes são trocadas entre elas mesmas, ou seja, quando há uma transposição entre suas partes.(...) por isso a Química pode ser definida como a arte de modificar os corpos por dissolução e coagulação (...) separando parte que estavam unidas, ou unindo partes que antes estavam separadas (...). (Boerhaave, apud Stilmann, 1960, p. 503)

As trocas assinaladas por Boerhaave não produzem alterações nos elementos que

constituem os corpos45. Apesar de não haver uma definição específica para o termo

elemento, com ele Boerhaave quer assinalar o último nível de mudança na organização do

corpo químico, indicando uma aproximação com as tendências corpusculares da época.

Boerhaave utiliza o termo affinitas em seu tratado não no sentido dos antigos46, mas

aplicada a tendência de reagir entre corpos de qualidades iguais ou semelhantes, tal como

Newton havia proposto. Muitos tratados após Boerhaave usam o termo afinidade como

atração, no mesmo sentido que Newton, procurando indicar uma atração específica entre

corpos regentes, e colocam ênfase, preferencialmente, na descrição das limitações e

regularidades dessa atração do que sobre o entendimento de sua causa última.

O naturalista francês e famoso matemático Georges Buffon (1707-1788), antecipa

em 1778 a proposição de que o fenômeno de afinidade química poderia ser calculado pela

força de gravitação, sendo que a as manifestações dessa ação seriam modificadas pelas

pequenas distâncias entre as partículas e por suas diferentes formas. Buffon, entende que

devido ao fato dos corpos químicos estarem muito mais próximos uns dos outros do que os

planetas, e mesmo apesar da razão 1/r2, a aproximação newtoniana que faz reduzir as

massas a pontos não valeria na escala das operações químicas. A diversidade e a

especificidade das reações químicas devem e podem ser explicadas pela diversidade de

formas dos corpos. Haveria como se calcular as reações químicas. Ao entender as formas

das partículas que constituem a matéria, poderiam ser deduzidas as afinidades e quais as

possibilidades de reação. A teoria de Buffon foi apoiada por Torbern Olof Bergman (1735-

1784) e Louis Bernard Guyton de Morveau (1737-1816), entre outros. Na França, nesse

momento, evidencia-se a procura por uma química racional, enquanto na Inglaterra, talvez

45 “Art goes no farther than to elements (...)” (p. 503). 46 Dando a entender a semelhança existente entre as propriedades dos corpos que reagem de forma semelhante.

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influenciados pela Revolução Industrial, institui-se um químico utilitarista47, preocupado

mais com a popularização da prática dessa disciplina do que com seus aspectos

conceituais.

Durante o século XVIII as atenções estão concentradas na apuração de leis e

generalizações relativas à afinidade química, começando a surgir trabalhos sistemáticos a

respeito do comportamento de substâncias através da mesma metodologia – a criação das

tabelas de afinidade. O primeiro trabalho a ser publicado com essa ênfase pertence a

Étienne François Geoffroy (1672-1721), professor de Química que apresenta na Academia

de Ciências de Paris em 1718 um ensaio intitulado Tabela de diferentes Afinidades

observadas na Química entre diferentes Substâncias48. Geoffroy utiliza como premissa

para a confecção de sua tabela uma lei básica da época:

Sempre que duas substâncias, possuindo a mesma tendência de combinação uma com a outra, encontram-se combinadas e introduz-se uma terceira que possua maior afinidade com uma das duas, a terceira se unirá a esta, deixando a outra livre. (Stengers, 1996, p. 127)

FIGURA 4.1 – Tabela de Afinidades de Geofroy no original (Hudson, 1992, p. 49)

47 O Historiador Joseph Bem-David (1974) indica que na Inglaterra do século XVIII mede-se o valor da ciência por sua eventual contribuição ao desenvolvimento técnico, econômico e social Segundo Stengers (1996) esta seria uma adequação ao modelo de ciência útil de Fancis Bacon, que imputa seu prestígio mais de um serviço prestado à comunidade do que à razão 48 Table of different Connections (‘rapports’) observed in Chemistry between different Substances (Stilmann, 1960, p. 504)

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A tabela de afinidades de Geofroy consiste de dezesseis colunas listando

substâncias por seus símbolos alquímicos. No topo de cada coluna está uma substância ou

uma classe de substâncias que reage com todas colocadas abaixo da coluna em ordem de

afinidade, de forma que a mais próxima possui maior afinidade. Uma substância acima

pode deslocar outra abaixo, mas o inverso não pode ocorrer.

TABELA 4.1 – Adaptação da Tabela de Afinidades Relativas, segundo Geoffroy (Stilmann, 1960, p. 504)

A F I N I D A D E S R E L A T I V A S

ácidos ácido de sal marinho49 ácido nitroso50 terra absorvente

álcali fixo51 estanho ferro ácido vitriólico52

álcali volátil53 régulo de antimônio54 cobre ácido nitroso

terra absorvente55 cobre chumbo ácido de sal marinho

Metais prata mercúrio

mercúrio prata

Outros dois químicos da segunda metade do século XVIII que dedicaram muita

atenção à determinação das afinidades relativas das substâncias são Torbern Bergman e

Guyton de Morveau. Bergman apresentou seu trabalho sobre afinidade na academia de

Upsala em 1775, e Morveau publicou Elementos de Química, Teórica e Prática em 1777.

Ambos acreditavam na existência de um valor constante para as afinidades mas

encontraram muitas dificuldades experimentais quando procuraram obter tais valores.

Muitas das dificuldades encontradas pelos dois cientistas eram devidas a alterações no

comportamento de afinidade provocadas tanto pelo excesso de um reagente como pela

temperatura. Dessa forma, as tabelas construídas eram em muitos aspectos as expressões

de seus juízos, uma vez que haviam sido obtidas a partir de dados experimentais não

sistemáticos para as afinidades relativas a temperaturas normais de trabalho. Bergman

construiu tabelas para a via seca e para a via úmida, reconhecendo assim a influência de 49 Ácido clorídrico (HCl). 50 Corresponde ao ácido nítrico (HNO3) atual. 51 Carbonato de sódio (Na2CO3). 52 Ácido sulfúrico (H2SO4). 53 Termo muito comumente associado a soluções amoniacais, e.g. hidróxido de amônio. 54 Os antigos mestres, quando se referiam ao antimônio queriam indicar o respectivo mineral, ou seja, a estibina (antimonita) ou sulfeto natural de antimônio. Para distinguirem o mineral do metal designavam este último por régulo de antimônio. 55 Não há fórmula correspondente específica, normalmente associado a carbonatos (incluindo o mármore por exemplo), silicatos e sulfatos.

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uma grande faixa de temperatura nos processos que conduzia. Ele dispôs as substâncias em

49 colunas encabeçadas pelas mais diferentes delas: ácidos, álcalis, “calces”56 de metais,

etc., ou seja, todas as substâncias conhecidas até aquela época, arranjadas abaixo das

anteriores em ordem decrescente de afinidade relativa. A partir dessas tabelas, chamadas

de Atrações Eletivas Simples pretendia-se que os químicos poderiam antever o curso de

qualquer ação57 entre as correspondentes substâncias.

TABELA 4.2 – Primeira e penúltima colunas da tabela de atrações eletivas simples de Bergman (Stilmann, 1960, p. 507)

C o l u n a 1 Á c i d o S u l f ú r i c o

C o l u n a 4 8 C a l x d e M e r c ú r i o

Pela via úmida Pela via seca Pela via seca Pela via úmida 2. barita pura58 barita pura ácido sebácico ouro 3. potash puro59 potash puro ácido hidroclórico prata 4. soda pura soda pura ácido oxálico platina 5. cal ligeira60 cal ligeira ácido arsênico chumbo 6. amônia pura magnésia pura ácido fosfórico estanho 7. magnésia pura61 calces metálica ácido sulfúrico zinco 8. alumina pura amônia ácido lático 9. calx de zinco alumina pura ácido tartárico bismuto 10. calx de ferro ácido cítrico 11. calx de manganês ácido fórmico cobre 12. calx de cobalto ácido nítrico antimônio 13. calx de níquel ácido fluorídrico arsênio 14. calx de chumbo ácido acético ferro 15. calx de estanho ácido carbônico 16. calx de cobre 17. calx de bismuto 18. calx de antimônio 19. calx de arsênio 20. calx de prata 21. calx de ouro62 22. calx de platina

56 Qualquer substância obtida por aquecimento forte em presença de corrente de ar, normalmente óxidos. 57 No sentido de uma combinação química. 58 Óxido de bário. 59 Carbonato de potássio. 60 Óxido de Cálcio. 61 Carbonato de magnésio. 62 Não realmente um composto, mas pedaços de ouro sem cor, formados após longa exposição a temperaturas elevadas.

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64

As tabelas de afinidade, e em especial a de Bergman, atraíram a atenção dos

químicos do final do século XVIII. Lavoisier, por exemplo, ficou impressionado com o

poder de organização das tabelas e apontava que finalmente a Química encontrava seu

caminho para uma verdadeira ciência, destacando no entanto os obstáculos que poderiam

ser encontrados no curso desse caminho. No livro de Richard Kirwan (1733-1812) Essai

sur la Phlogistique, traduzido para o francês pela esposa de Lavoisier, há uma crítica a

uma tabela de afinidades feita pelo próprio Lavoisier a respeito das relações de

combinação de diversas substâncias com o oxigênio. Lavoisier nessa mesma edição

francesa rebate:

O Sr. Kirwan, em suas críticas à minha tabela de afinidades do princípio oxigênio com várias substâncias, não me julga mais severamente do que eu mesmo, então deve ser avisado de que todas as objeções que faz em relação à minha tabela, eu mesmo havia feito antes dele, e talvez de maneira mais competente. (Stilmann, 1960, p. 506).

Lavoisier admite ter utilizado a estratégia das tabelas de afinidade a fim de

encontrar regularidades na ação de seu principe oxigéne com outras substâncias, mas

defende-se expondo que não era ignorante das dificuldades envolvidas nessa estratégia.

Primeiramente, ele indica que tais tabelas representam afinidades simples, enquanto

existem casos de afinidade dupla, tripla e outros mais complicados. Em seguida, a

influência da temperatura também é considerada, o que complica as combinações através

da fusão e ebulição dos corpos e altera suas afinidades relativas. De modo a serem obtidas

tabelas em acordo maior com a experiência, seria necessário fazer uma para cada grau do

termômetro. Outro aspecto considerado pelo químico francês é com relação a incapacidade

das tabelas de expressar modificações que ocorrem na força de atração das substâncias

devido os diferentes graus de saturação que possuem, ou seja, o enxofre e oxigênio

possuem no ácido sulfúrico diferente atração daquela manifestada no ácido sulfuroso.

Mesmo ciente de todas essas limitações, Lavoisier aponta que optou pelo uso de tabelas de

afinidade uma vez que poderiam, ainda assim, ser de alguma utilidade pelo acúmulo de

experimentos que conseguem organizar. “Talvez, algum dia, a precisão dos dados

conduzirá a ponto dos matemáticos poderem calcular o fenômeno da combinação química

de qualquer substância, da mesma forma que calculam o movimento dos corpos celestes”

(ibidem). Enfim, Lavoisier preferia não depositar esperança totalmente na afinidade devido

à ausência de dados experimentais confiáveis, e de toda forma, para ele, seria muito confiar

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65

que esse tipo de instrumental constituísse a base fundamental de uma parte tão importante

da Química.

O programa de pesquisa químico se inaugura com uma extensão empirista, onde há

um grande investimento em atividades experimentais para produção de tabelas de

afinidades que pretendem fornecer subsídios para o entendimento do que há por trás da

ação química. Tanto esse frenesi empírico quanto o alerta agnóstico de Lavoisier em

relação aos perigos de sua adoção indistinta, marcaram as pesquisas posteriores. A posição

de Lavoisier é na verdade de respeito em relação às afinidades, sendo digno de nota que

em seu tratado de nomenclatura, ao apresentar a nomenclatura dos sais de vários ácidos, o

químico francês arranja as bases “em ordem de suas afinidades com os ácidos” (Stilmann,

1960, p. 510); sendo essa a mesma ordem usada por Bergman na via úmida.

As antigas noções de matéria não foram simplesmente descartadas, mesmo quando

reavaliadas à luz do racionalismo. Na verdade, o trabalho empírico pioneiro desses

cientistas, mesmo quando exposto à luz de uma racionalidade científica, está carregado de

paixão, ciúme, mistério e espiritualidade, somente não mais de forma hermética como

preferiam os iniciados.

4.5 A AFINIDADE POSITIVA DE BERTHOLLET

Claude Louis Berthollet (1748-1822), nascido italiano de pais franceses, foi

discípulo tardio de Lavoisier e procurou desprezar na noção de afinidade qualquer atributo

intrínseco e constante desse ou daquele elemento, mostrando que a manifestação da ação

química depende de fatores físicos variáveis e externos ao corpo químico: quantidade de

substâncias, calor, pressão, bem como o estado físico63 dos compostos capazes de surgirem

da eventual reação. Os enunciados de Berthollet são, ainda hoje, as bases didáticas para o

entendimento dos processos de dupla troca:

Todas as vezes que, por dupla decomposição puder formar-se um corpo menos solúvel dentre diversos que se acham em presença, esse composto se formará, efetuando-se completamente a dupla troca. Todas as vezes que, por dupla decomposição, puder formar-se um composto volátil nas circunstâncias da

63 Quanto à influência do estado físico das substâncias, Berthollet persegue o mesmo caminho proposto por Bergman, quando assinalou que a reação entre certos corpos se processa de modo diverso conforme ajam no estado natural (via seca), ou dissolvidos na água (via úmida).

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experiência esse composto se formará efetuando-se completamente a dupla troca. (Garcia Paula, 1950, p. 41)

Para Berthollet as forças que produzem os fenômenos químicos são todas derivadas

da atração mutua das moléculas dos corpos, as quais são chamadas de afinidade, com o

objetivo de serem distinguidas daquilo que ele chamava de atração astronômica. Para

Berthollet, essas duas atrações, uma inerente aos corpos químicos e a outra inerente aos

corpos celestes podia ser governada segundo os mesmos princípios. A afinidade,

entretanto, seria totalmente modificada por condições particulares e freqüentemente

indetermináveis, ou seja não dedutíveis a partir de um princípio geral, mas que mesmo

assim podiam ser constatadas sucessivamente. Nenhum desses efeitos que modificariam a

afinidade de um corpo ocorreria isolado dos outros, de modo que não poderia ser

submetido a um cálculo.

O efeito imediato da afinidade de uma substância seria uma combinação, na qual

todos os efeitos que são produzidos pela ação química são uma conseqüência da formação

de qualquer combinação. Toda a substância que tende entrar em combinação age pela ação

de sua afinidade e de sua quantidade, mas não somente por causa delas.

A ação química de uma substância não depende somente da afinidade que é própria das partes que a compõem, e da quantidade; ele depende ainda do estado que essas partes se encontram, é pela alteração disso que se pode fazer aumentar ou diminuir uma parte de sua afinidade, pela dilatação ou condensação que faz variar a distância recíproca. (...) A análise da ação química deve levar em consideração todas essas condições. (Berthollet, 1803, p. 3)

Berthollet minimiza a constituição química como definidora das características do

corpo químico e procura colocar na disputa o estado de agregação da substância. Essas

convicções são decorrentes de sua premência pelo visível, o qual revelaria que as

substâncias quando se encontram dissolvidas tomam parte na ação química de modo muito

mais efetivo do que quando se encontram no estado sólido.

Seguindo o caminho do positivismo, Berthollet procura formular uma teoria que

organize as características peculiares dos processos químicos de transformação. Nessa

peculiaridade, Berthollet parece querer encontrar também uma forma própria da ação

química que seja, por exemplo, independente das forças características dos corpos celestes.

O caminho trilhado por ele é preferencialmente de demarcação dessas interseções através

de definições de atributos da matéria que seriam totalmente particulares à química.

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67

O primeiro efeito da afinidade sobre o qual eu fixo atenção, é o que produz a consistência das partes que entram na composição dos corpos. É esse efeito recíproco das partes em afinidade que eu distingo pelo nome de força de coesão, que se torna uma força oposta a todas aquelas que tendem a fazer o corpo entrar em combinação. Todas as afinidades que tendem a diminuir a força de coesão devem ser consideradas com uma força que lhe é oposta, cujo resultado é a dissolução. (...) A ação recíproca que tende a unir as partes de uma substância, pode vir a se tornar uma força dissolvente, e sua energia diminui à medida que se aumenta a quantidade de solvente, ou aumentada pela ação do calor. (...) A cristalização é um dos efeitos mais notáveis da força de coesão, as partes que se cristalizam assumem um arranjo simétrico que é determinado pela ação mútua das partes sólida, cujas forças de coesão separaram do líquido. (Berthollet, 1803, p. 10-12, sem grifo no original)

Berthollet procurou proteger o conceito de afinidade das fantasias metafísicas que o

assombravam, buscando legitimação através de um caráter racional apoiado em dados

empíricos e da experiência sensível. Agora, não bastava somente a afinidade para por um

corpo em ação química com outro, outros fatores deveriam ser observados64.

4.6 A VALÊNCIA PREMATURA DE HIGGINS

Em 1789, o químico irlandês William Higgins (1763-1825) foi responsável por uma

antecipação da noção de valência com fundamentos atomistas quando, ainda estudante de

Oxford, publicou um livro comparando opiniões contra e a favor da teoria do flogisto.

Durante suas especulações sobre combinação química, Higgins utiliza um sistema baseado

em partículas últimas, que são assinaladas em diagramas, procurando explicar as forças

que as mantém unidas, usando como exemplo óxidos de nitrogênio. Nesse caso, tem-se que

a força entre a partícula última de oxigênio e a partícula última de nitrogênio é 6,00

(conforme a figura 4.2), e esse valor é dividido igualmente entre os elementos. Se duas

partículas de oxigênio se combinarem com uma de nitrogênio, a força 3,00 da partícula de

nitrogênio é dividida em duas forças de 1,50 de modo que a força que une cada partícula de

oxigênio à de nitrogênio é agora 4,50.

64 Para Berthollet os outros fatores continuavam provocando modificações na afinidade dos corpos. Em certa medida, ele mantinha a afinidade como a causa última da ação química. Essa relação mútua de causa e efeito entre um fator e a afinidade era prioritariamente de natureza química, a dissolução de um sólido em um líquido era governada por conjunto de ações químicas que poderiam, inclusive alterar a composição química da substância em questão. Ironicamente, em 1864, 61 anos depois da primeira edição do Statique Chimique, Cato Maxmilliam Guldberg e Peter Waage num artigo intitulado “Estudo a respeito da afinidade” formulariam matematicamente, pela primeira vez, as bases da ação química pretendida por Berthollet, que acabaria por se consagrar mesmo como uma influência física e não química – a concentração dos reagentes.

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FIGURA 4.2 – Diagramas de Higgins para óxidos de nitrogênio (Partington, 1957, p. 167).

Ao adicionar 3, 4 e 5 partículas de oxigênio, as forças entre as partículas em

combinação se tornam, respectivamente, 4,00; 3,75 e 3,60. Higgins conclui em seguida que

a força que resultaria da adição de mais uma partícula a esse sistema, seria tão pequena que

não seria suficiente para manter as partículas unidas, desse modo, compostos de nitrogênio

com quantidades relativas de oxigênio maiores do que cinco unidades não deveriam existir.

Mesmo sendo as idéias de Higgins derivadas apenas em parte de informações

experimentais, mormente a partir de especulações, e principalmente sem ter levado em

consideração os pesos relativos dos elementos, sua proposta poderia ter sido um

“esqueleto” muito promissor, tanto da própria valência, quanto de questões como energias

de ligação e proporções múltiplas. O momento, no entanto, não era oportuno para um

atomismo químico uma vez que a química analítica ainda estava em estado rudimentar, e

assim sendo, mesmo tendo suas idéias bem divulgadas no continente o trabalho do irlandês

atraiu pouca atenção.

4.7 A AFINIDADE, O EQUIVALENTISMO E OS ÁTOMOS DE DALTON

O inglês John Dalton (1766-1844) era ainda um jovem professor interessado em

estudos meteorológicos, quando teve acesso ao trabalho de Newton e começou a investigar

o fenômeno da difusão gasosa, o qual apontava problemas para o quadro newtoniano de

comportamento dos gases. Newton demonstra na proposição 23 do livro II do Principia

que em um gás as partículas se repelem pela ação da força proporcional à raiz quadrada do

inverso da distância entre elas, e que a pressão de uma quantidade fixa de gás dobra

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quando o volume é diminuído à metade, obedecendo à lei de Boyle. As descrições

históricas existentes em muitos livros didáticos apontam o modelo atômico de Dalton

como um sucessor de Lavoisier e fazem concluir que haveria sido nessa trilha que o

cientista inglês teria elaborado seu átomo. Mas foram as pegadas de Newton e não de

Lavoisier que Dalton seguiu inicialmente. Dalton empregou um modelo muito similar ao

usado por Newton, essencialmente estático, que imaginava o gás como sendo um arranjo

tridimensional de partículas mutuamente repulsivas e idênticas.

Dalton não fez nenhum trabalho experimental importante até o final do século

XVIII, quando se interessou pelo estudo da natureza da atmosfera. Ele verificou que a

quantidade de vapor d´água no ar aumentava com a temperatura, determinando o mesmo

comportamento para outros gases. Seus estudos sobre a pressão de vapor da água levaram-

no a rejeitar as idéias de Lavoisier e da escola francesa que indicava que esse vapor estava

quimicamente combinado com o nitrogênio e o oxigênio na atmosfera, convencendo-se

mais tarde de que o ar não era um composto químico. Durante esses estudos, em 1801,

Dalton percebe que a adição de vapor d´água ao ar seco aumenta a pressão total do

sistema, o que é indicado pelo aumento da quantidade de pressão de vapor. Ele passa a

entender que a pressão que o vapor d´água exerce na mistura é igual à pressão que seria

exercida se nenhum outro gás estivesse contido no mesmo volume total, concluindo então

que a pressão que um gás exerce em uma mistura independe da pressão exercida pelo outro

gás, e que a pressão total do sistema é a soma das pressões que cada gás exerce

isoladamente. Está formulada então a lei das pressões parciais.

Porque a história das pressões parciais é importante para a afinidade? O sucesso na

descrição desse tipo de comportamento de sistemas gasosos, promove um alerta no

químico inglês quanto à possibilidade de descrever tais propriedades em função de suas

partículas constituintes últimas. A física do século XVII postulava que a pressão de um

sistema gasoso era devida a repulsão de suas partículas constituintes. Para Dalton era

difícil conciliar um sistema onde só houvesse repulsão entre as partículas do mesmo tipo,

então ele passa a considerar que as partículas gasosas devem consistir de centros de massa,

rodeados por uma atmosfera de calórico65. O calórico seria o responsável pela força

repulsiva, sendo desse modo possível à repulsão entre partículas diferentes. O próximo 65 O calórico era considerado como um tipo especial de substância, responsável pelos efeitos térmicos da natureza. Quando se aquecia qualquer tipo de matéria, se estava adicionando calórico a ela. O calórico era uma espécie de invólucro do átomo nessa concepção estática da matéria. Para uma consulta detalhada sobre a participação do calórico na teoria dos gases, incluindo a participação de Lavoisier, Laplace e Sadi Carnot, pode-se consultar Fox (1971).

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passo de Dalton é indicar que diferentes tipos de partículas possuem diferentes tamanhos,

exercendo assim diferentes forças entre elas. Outra indicação decorrente dessa explicação é

que, provavelmente, se as partículas possuíam diferentes tamanhos deveriam possuir

diferentes pesos.

O primeiro anúncio de sua teoria a respeito dos tamanhos e pesos das partículas

constituintes dos gases veio num artigo referente à solubilidade de gases em água, lido em

1803 na Sociedade Literária e Filosófica de Manchester, e publicado em 1805. Nesse

artigo, Dalton esclarece que o processo de dissolução de um gás em um líquido é

“simplesmente uma mistura mecânica” e não uma combinação química. O modelo

mecânico newtoniano anterior, que supunha a existência de partículas gasosas semelhantes,

indicaria que a água deveria dissolver todos os gases da mesma forma, ou seja, na mesma

quantidade, mas isso não acontece; essa dificuldade diversificada estaria associada aos

diferentes tamanhos e pesos das “partículas finais” desses gases. Nesse artigo também

Dalton apresenta a primeira tabela de pesos atômicos, apesar de não revelar como os teria

obtido.

FIGURA 4.3 – Representação de Dalton para os átomos com seus invólucros de calórico. Note-se que entre os átomos semelhantes às linhas de calórico se tocam perfeitamente, havendo repulsão entre eles. Entre os átomos diferentes, as linhas de calórico não se tocam, garantindo a mistura. (Dalton, 1808)

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O relato completo, na forma de uma “teoria atômica”, foi dado primeiramente em

1807 por Thomas Thomsom66 (1773-1852) na terceira edição do seu livro Sistema de

Química67 e definitivamente pelo próprio Dalton em 1808 no livro Um Novo Sistema de

Filosofia Química68, onde Dalton substitui suas “partículas finais” pela palavra átomo. Os

elementos seriam compostos de átomos elementares e os compostos de átomos compostos.

A forma de combinação entre os átomos nos diferentes compostos, obedecia ao que Dalton

Chamava de Princípio da Simplicidade, no qual ele postulava que quando dois elementos

A e B, por exemplo, formam um único composto, este contém um átomo de A e um de B;

se um segundo composto existir o átomo composto conterá dois átomos simples de A e um

de B; se ainda um terceiro existir será formado por um de A e dois de B, seguindo-se as

menores combinações inteiras simples entre eles. Com base nisso Dalton propõe que a

molécula da água era composta por um átomo de hidrogênio e um de oxigênio. Apesar de

totalmente infundado, Dalton fez boas previsões com seu princípio para alguns compostos.

Uma parte significativa do trabalho de Dalton está relacionada ao simbolismo que

ele criou para seus átomos. Diferente dos símbolos existentes, que possuíam relações

místicas e alquímicas implícitas, Dalton impunha um significado quantitativo na sua forma

de representação, que utilizava círculos com desenhos específicos para cada um dos

átomos elementares. O arranjo dos átomos elementares nos átomos compostos era

arbitrário mas procurava manter a noção de que átomos iguais se repeliam.

66 Thomsom havia sido convertido para os pontos de vista de Dalton a partir de uma visita em 1804. 67 System of Chemistry. 68 A New System of Chemical Philosophy.

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FIGURA 4.4 – Representação proposta por Dalton para seus átomos. (Dalton, 1808)

Os átomos de Dalton não foram aceitos de pronto, apesar do amplo poder

explanatório que esse modelo oferecia para muitas evidências empíricas surgidas, ou já

amplamente conhecidas no começo do século XIX. Uma das características singulares dos

átomos de Dalton, conforme alguns historiadores da ciência (Thuillier, 1994, p. 178), é a

de exemplificar que uma teoria pode ser utilizada sem que necessariamente sejam

admitidas como realidade às “entidades teóricas” criadas por ela, ou seja, a adoção prática

da teoria de Dalton não implicava necessariamente na crença da existência real dos átomos.

Isso fornece uma medida do tamanho do caráter especulativo que os átomos de Dalton

carregam. Há uma certa ingenuidade na crença de que os modelos de Dalton são

conseqüência de uma atividade experimental organizada, bem como também é ingênua a

crença de que as famosas leis ponderais sejam uma coleção de fatos puramente empíricos e

teoricamente neutros, que implicam imediatamente nos átomos de Dalton. Na verdade,

Dalton hesitou entre apostar firmemente nos seus átomos materiais, e desenvolver uma

coleção de dados empíricos que demonstrassem a relação de quantidade existente entre os

elementos que participavam de um composto. O vacilo de Dalton fez com que alguns

atomistas recém-natos abjurassem, e se voltassem para terrenos mais seguros como o

equivalentismo.

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4.7.1 O Equivalentismo

O intenso trabalho experimental de Jeremias Richter (1762-1807), e sua obsessão

por descrever os processos de transformação a partir de relações matemáticas, colocam-no

como um dos precursores que ajudaram no estabelecimento do conceito de equivalente ou

peso de combinação. Muito desse trabalho realizado anteriormente foi sumarizado em

1802 por Ernst Fischer (1754-1831), que produziu uma tabela de equivalentes de ácidos e

bases, considerando o valor do ácido sulfúrico como 1000. Nessa escala, o ácido

muriático69 possuía o valor 712, a soda 859 e a potassa 1605. Isso significava que 859

partes de soda ou 1605 partes de potassa eram necessárias para neutralizar 1000 partes de

ácido sulfúrico ou 712 partes de ácido muriático.

Uma das mais graves objeções à teoria atômica de Dalton estava no Princípio da

Simplicidade. Em 1814, William Hyde Wollaston (1766-1828) que fora um dos primeiros

adeptos da teoria atômica já havia perdido seu entusiasmo devido às limitações que a

simplicidade impunha à determinação dos pesos atômicos, propondo que fossem usados

em seu lugar os pesos equivalentes. Ritcher havia calculado os equivalentes em termos de

ácidos e bases, Wollaston ampliou esses resultados incluindo sais e outros elementos. Os

equivalentes de Wollaston usavam uma escala baseada no oxigênio que era assinalado com

o valor referencial 10, baseado nisso, por exemplo, o hidrogênio assumia o valor 1,32.

Wollaston indicava em seus trabalhos que não rejeitava a teoria atômica completamente,

mas considerava que o trabalho de determinação de pesos atômicos era em vão, uma vez

que havia uma suposição arbitrária que governava às razões pelas quais esses átomos

combinavam. As opiniões de Wollaston foram muito influentes e muitos químicos

utilizaram os equivalentes químicos no lugar de pesos atômicos.

Em 1814 Wollaston publica Escala Sinótica de Equivalentes Químicos70 (Nye,

1996, p. 36), a qual usava o oxigênio no lugar do hidrogênio como base de referência para

os cálculos dos chamados pesos equivalentes. Essa tabela foi extremamente popular na

Inglaterra até a década de 1860, inspirando inclusive o germânico professor de química da

Universidade de Heidelberg, Leopold Gmelin (1788–1853).

69 Ácido clorídrico, HCl. 70 Synoptic Scale of Chemical Equivalents.

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4.7.2 Dalton Versus Gay-Lussac e a Molécula de Avogadro

Um trabalho importante que poderia ter colocado luz definitivamente sobre a

questão das razões de combinação entre os átomos e nas relações de afinidade dos

elementos, pelo menos a respeito das reações gasosas, foi apresentado em 1808 por

Joseph-Louis Gay-Lussac (1778-1850). Por aqueles anos, mesmo Dalton sabia que

oxigênio e hidrogênio combinavam-se na razão 1:2 de seus volumes para a formação de

água, Gay-Lussac demonstrou que também em outras reações existem relações inteiras

entre os volumes dos reagentes e produtos, o que poderia sugerir que volumes iguais de

gases diferentes poderiam possuir a mesma quantidade de átomos elementares ou

compostos. Dalton entretanto não concordava, nem aceitava os resultados de Gay-Lussac,

os quais rebatia a partir do exemplo do monóxido de carbono que segundo essa idéia

deveria ser mais denso (contendo um átomo de carbono e um de oxigênio) do que o

oxigênio (que segundo Dalton seria formado por um único átomo elementar), o que no

caso os dados empíricos contestavam71.

Foi o italiano Amedeo Carlo Avogadro (1776-1856) que demonstrou que era

possível reconciliar a teoria atômica de Dalton com os resultados de Gay-Lussac. Partindo

dos exemplos discutidos no trabalho de Gay-Lussac, Avogadro demonstrou que as

ambigüidades desapareciam se fosse assumido que as moléculas envolvidas nas reações se

dividissem em meias-moléculas, ou seja, que se pudesse supor a existência de espécies

com dois átomos elementares como entidades formadoras dos sistemas gasosos. Avogadro

não utilizava a palavra átomo, mas sim o termo meia-molécula como seu substituto, além

de se referir a outros tipos de moléculas: molécula integrante, quando se referindo aos

sistemas combinados de meias-moléculas; molécula constituinte, referindo-se à molécula

dos gases como oxigênio, hidrogênio, nitrogênio, etc.; molécula elementar, usada em

analogia aos átomos dos elementos. Avogadro demonstrou, baseando seus argumentos nos

raios de combinação e na densidade dos gases, de que maneira a densidade do vapor de

água poderia ser menor do que a do oxigênio.

Apesar de suficientemente coerentes e fielmente suportadas por material empírico

confiável, as propostas de Avogadro foram amplamente rejeitadas. Os químicos

aparentemente davam nenhuma importância ao artigo de Avogadro, que comumente é 71 A questão aí é que Dalton entendia que o gás oxigênio seria formado por um átomo elementar, quando na verdade deveria ser formado por dois.

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encarado como confuso, portador de uma terminologia ambígua e recorrendo a uma

matemática complexa. A análise de alguns historiadores, no entanto, considera difícil

desenhar esse quadro, indicando que a terminologia seria nova mas sem nenhuma

ambigüidade, utilizando uma matemática simples e de acordo com os recursos da prova

que pretendia obter. A hipótese de Avogadro ainda foi revivida em 1814 por André Marie

Ampère (1775-1836), mas sem maiores sucessos.

4.7.3 A Controvérsia a Respeito das Proporções Definidas

A concepção de afinidade que Dalton possuía não era contrária à de seus

contemporâneos, onde um sólido era concebido como um sistema mantido pela afinidade

mútua de pequenas partículas, que no caso de uma dissolução, por exemplo, passariam a

ter maior afinidade pelo líquido que as dissolveria do que entre elas mesmas, mesmo

quando estava no estado sólido. As soluções, como sal de cozinha em água e os gases na

atmosfera, eram consideradas como resultado de combinações químicas conduzidas pelas

afinidades mutuas dos corpúsculos que constituíam essas substâncias. Uma controvérsia

central na Química do início do século XIX decorria dessa evidência empírica a respeito

das soluções. Os químicos queriam saber se haviam proporções constantes nas

combinações químicas, ou seja, se uma combinação química levaria sempre a uma

substância com composição fixa. Dalton achava evidente que sim, pois se uma combinação

não acontecia em proporção fixa não era uma combinação química72. Por Dalton não

possuir uma formação específica em Química, essa não era uma questão central em suas

atividades, sua aceitação acerca das proporções fixas era mais uma concepção a priori do

que um entendimento mais claro das possibilidades de causas desse comportamento.

O debate acerca das proporções fixas foi polarizado em torno de dois personagens

franceses: Joseph Louis Proust (1754-1826) e Claude-Louis Berthollet (1748-1822). O

segundo foi um dos colaboradores de Lavoisier na reforma da nomenclatura química e

dedicou-se ao estudo da produção de salitre, necessário a fabricação da pólvora. Durante a

lavagem das rochas nitrosas, observava-se que quanto maior a quantidade de salitre

existente na água, menor era a eficácia da extração. Berthollet deduz desse comportamento 72 Um dos problemas estava no fato de encararem soluções de sal em água como reações químicas, desse modo, a amostra de águas salgadas de diferentes regiões revelava na maioria das vezes proporções diferentes de sal na água.

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76

que a capacidade de um corpo se combinar deve diminuir proporcionalmente em relação à

quantidade de combinação já obtida. A afinidade química, nesse sentido, passa a ser função

de um estado físico quantidade de partículas por unidade de volume dos reagentes

envolvidos. Para Berthollet um composto químico não tem uma identidade determinada,

cada composto é uma mistura particular, que depende de suas condições de produção. As

proporções entre as quantidades de elementos que integram um corpo químico são

variáveis. A proeminência dos resultados de Berttholet e seu poder no sistema político

francês como ministro de Napoleão renderam-lhe algumas tranqüilidades na defesa das

proporções variáveis. No entanto essa noção seria demolida pelo filho de um farmacêutico,

durante uma longa batalha.

Em 1799 Proust analisou o carbonato básico de cobre de ocorrência natural

(malaquita) e o mesmo produto preparado em laboratório, encontrando os mesmos

resultados analíticos. Proust demonstrou que havia constância na proporção de composição

dessa substância assim como em outras, indicando também que diversos metais podem

formar diferentes óxidos e sulfetos, onde cada um deles apresenta composição constante.

As evidências empíricas de Proust não convenceram Berthollet, que desafiava Proust

constantemente. Berthollet citava o exemplo do metal cobre que parecia formar uma ampla

série de óxidos composição diferente. Proust respondia que isso era devido à formação de

diferentes misturas de dois óxidos, cada um desses dois com composição constante. A

disputa entre Berthollet e Proust permaneceu por um bom tempo, a noção das composições

variáveis, no entanto, era inconciliável com as propostas ponderais de Dalton e foi

paulatinamente perdendo espaço, considerando-se que somente a partir de 1808 houve uma

“aceitação geral” das proporções constantes73. Trabalhando em Madri nesse mesmo ano,

Proust tem seu laboratório destruído quando Napoleão invade a Espanha. As proporções

definidas foram enunciadas conforme a seguir pelo próprio Proust.

(...) as propriedades dos compostos verdadeiros são invariáveis, assim como a razão de seus constituintes. Em toda sua extensão são idênticos quanto a esses dois aspectos; sua aparência pode variar devido à forma de agregação, mas suas propriedades nunca. Nenhuma diferença foi encontrada até o momento, entre os óxidos de ferro do norte e do sul. O cinábrio [sulfeto de mercúrio] do Japão é constituído na mesma proporção daquele de Almadenha. (Freund, 1904, p.137)

73 Deve-se destacar que muitos anos depois foram descobertos alguns compostos, como óxidos e sulfetos de ferro II, que de fato podem possuir composição variável. No caso do sulfeto de ferro II, alguns pontos da rede cristalina são substituídos por ferro III ou permanecem vazios, causando essa alteração. Esses compostos “não estequiométricos” são chamados de Berthollide Compounds.

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77

Desse modo a lei das proporções fixas se tornou um fato para os químicos. Antes

disso, a afinidade, conforme derivada da filosofia mecanicista de Isaac Newton, devia

explicar ao mesmo tempo as ligações que formam um composto químico e a reação. As

duas questões são distintas agora. As reações podem ser manipuladas em função da

temperatura e das concentrações, por exemplo. Não se pode no entanto, manipular a forma

como os corpos simples interagem a fim de formar as substâncias.

4.7.4 O Unitarismo através da Hipótese de Prout

Dalton insistia que os átomos de um elemento eram diferentes dos átomos de outro

elemento. Como a quantidade de elementos crescia durante o início do século XIX, a

quantidade de átomos ia à mesma medida. Lavoisier havia listado 31 elementos

originalmente em seu Tratado elementar de Química, já em 1826 a tabela de Berzelius

continha 49 elementos. Desde os filósofos da Grécia antiga, entretanto, o pensamento

ocidental dominante apontava para a descrição do mundo material em termos da unidade e

da simplicidade, o que influenciava uma grande parte dos químicos da época e indicava

que o grande número de partículas fundamentais, formulados a partir da teoria atômica,

deveria corresponder a um passo na direção errada. Segundo esse grupo, que sob a égide

da unidade da matéria se opôs ao sistema de Dalton de diversas formas, a natureza deveria

seguir por caminhos mais simples, ou seja, por trás da multiplicidade de elementos deveria

haver algo mais fundamental, um princípio unitário.

O unitarismo orientou os trabalhos do inglês Humphry Baronet Davy (1778-1829),

que decompôs alguns dos elementos de Lavoisier na busca de um elemento fundamental,

encontrando substâncias que posteriormente seriam aceitas como novos elementos. Em

1815 foi publicado no Annals of Philosophy74 um artigo anônimo, indicando que os valores

das densidades de muitos gases podiam ser colocadas como múltiplos inteiros da densidade

do hidrogênio. William Prout (1785-1850), o autor anônimo, publica outro artigo em

seguida, sugerindo que todos os pesos atômicos poderiam ser expressos como múltiplos do

hidrogênio, que então poderia ser considerado como o protyle, a “substância primeira” a

partir da qual todos os outros elementos eram compostos.

74 Revista editada por Thomas Thomsom.

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78

A Hipótese de Prout recebeu consideração por parte da comunidade científica em

geral, uma vez que o conceito de elemento que estabelecia era suficientemente operacional

e não havia ainda certeza de como definir se uma substância era um elemento ou um

composto. Alguns dos trabalhos de Davy sugeriam também que havia presença de

hidrogênio no enxofre, no fósforo, e em alguns outros elementos, de onde em alguns casos

os experimentos conduzidos demonstravam que se poderia até recuperar hidrogênio.

Thomas Thomsom foi um dos que lutou para adequar os números atômicos ao novo

conceito, seu livro Uma Tentativa de Estabelecer os Princípios Primeiros da Química por

Experimentos (1825) trazia pesos atômicos baseados na Hipótese de Prout. Para vários

elementos havia números inteiros múltiplos do peso atômico do hidrogênio. O que parecia

ser uma evidência a favor de Prout era na verdade uma negligência de Thomsom para

algumas discrepâncias, as quais ele considerava como erro experimental. Berzelius, a

maior autoridade em valores de pesos atômicos daquela ápoca, estava seguro que as

discrepâncias eram reais e que as evidências a favor da Hipótese não podiam ser

consideradas. Mesmo assim a Hipótese de Prout fazia adeptos de tempos em tempos, e

mesmo Jean Baptiste André Dumas (1800-1884) utilizou-a como referência em suas

pesquisas. O início de sua derrocada definitiva foi marcado pelo artigo publicado em 1860

por Jean Servais Stas (1813-1891).

4.7.5 O Dualismo Eletroquímico de Berzelius

Entre os defensores da teoria atômica de Dalton se encontrava o sueco Jöns Jacob

Berzelius (1779-1848), que em 1813 submeteu o ensaio “proporções químicas”, no qual

fornecia dados experimentais que suportavam a teoria atômica de Dalton e que propunha

um novo sistema de símbolos para os elementos atômicos. Berzelius indicou o uso da letra

inicial do nome em latim do elemento para designá-lo. Quando ocorresse a repetição da

primeira letra de algum elemento, dever-se-ia usar a primeira letra que os dois elementos

não possuíssem em comum em seus nomes75.

Para Berzelius, a causa das proporções múltiplas e das proporções definidas nas

reações químicas residia nos corpos que são formados por partículas indivisíveis do ponto

de vista mecânico, que podem ser chamadas de partículas, átomos, moléculas, equivalentes

75 Por exemplo: enxofre (S – sulfur); silício (Si – silicium); antimônio (Sb – stibium) e estanho (Sn – stanum).

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79

químicos, etc. Seguindo o caminho trilhado por Humphry Davy (1778-1829), Berzelius

usou as recém criadas baterias para decompor substâncias salinas através da passagem de

corrente elétrica, depositando assim seus constituintes nos pólos do sistema experimental.

Desse modo, o químico sueco pretendia associar a força de afinidade química com a força

de atração elétrica. As fórmulas químicas utilizadas por Berzelius indicavam como os

grupos de átomos polarizados se mantinham coesos em uma molécula ou composto através

de forças ou cargas de natureza elétrica. As “fórmulas racionais” para o sal amoniacal76 e

para o salitre77 (cujas fórmulas empíricas são NH4Cl e KNO3, respectivamente) eram

assinaladas conforme a figura 4.5 A explicação eletroquímica da afinidade, conforme

elaborada por Berzelius, ficou conhecida como a “teoria dualística” da composição

química.

NH3 • HCl KO • NO2

sal amoniacal salitre

FIGURA 4.5 – Fórmulas racionais, segundo Berzelius, para o sal amoniacal e o salitre (Nye, 1996, p. 42)

O dualismo eletroquímico caracteriza que cada corpo simples ou composto possui

uma polaridade elétrica cuja intensidade varia segundo a natureza do corpo. Essa carga

elétrica reside em todos os corpos e seria a causa da atividade química, cuja intensidade

determina o grau de afinidade existente entre os corpos. O modelo também prevê como as

reações químicas se darão, bastando para isso classificar os corpos numa escala, em função

da quantidade de carga positiva ou negativa. O modelo dualístico de Berzelius recebeu

bastante atenção da comunidade científica, e estava afinado com as descobertas

experimentais de Michael Faraday (1791-1867) que indicavam a existência de uma

proporcionalidade entre o equivalente químico de uma substância e a quantidade de

eletricidade necessária para liberar os elementos constituintes dela78. Estas evidências

empíricas foram encaradas como uma manifestação contundente da analogia entre a força

elétrica e a afinidade química.

76 Cloreto de amônio. 77 Nitrato de potássio. 78 Os equivalentes eletroquímicos de Faraday poderiam ter auxiliado os químicos na solução do problema dos pesos atômicos dos elementos, entretanto, os químicos estavam longe de acreditar na realidade dos átomos. O própio Faraday e Davy antes dele, nunca acharam necessário acreditar em átomos, tendo utilizado em seu lugar os pesos equivalentes.

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A teoria dualística foi utilizada como munição pesada contra a Hipótese de

Avogadro. Um dos principais questionamentos residia na impossibilidade de entender

como dois átomos de oxigênio poderiam formar uma molécula estável, uma vez que íons

oxigênio são coletados no anodo (pólo positivo) do aparato eletrolítico, indicando assim

que possuem carga negativa. Nesses termos, os átomos eram encarados como partículas

que apresentavam cargas, onde os átomos de alguns elementos eram eletronegativos e

outros eletropositivos. O oxigênio era o mais eletronegativo de todos os elementos e os

metais eram geralmente eletropositivos.

A combinação química resultava da neutralização mútua das cargas opostas,

todavia, o composto formado não era necessariamente neutro dado que as cargas que se

combinavam não eram necessariamente iguais em magnitude (figura 4.6).

+ – Cu + O → CuO (levemente positivo) + – S + 3O → SO3 (levemente negativo)

Os óxidos formados não são neutros e podem combinar-se: + – CuO + SO3 → CuO • SO3 (atualmente CuSO4)

FIGURA 4.6 – Mecanismo reacional proposto através da teoria dualista de Berzelius (Ihde, 1984, p. 132)

O dualismo descreveu com sucesso o modo de combinação dos elementos durante

algum tempo. Com o advento da Química Orgânica entre 1830 e 1840, a teoria dualística

se tornou um empecilho para o entendimento dos compostos orgânicos. Alguns cientistas

concordavam que os preceitos dualistas deviam ser excluídos da obviamente ainda confusa

química dos compostos orgânicos. Mesmo assim, o pensamento dualista continuou a ser

popular entre mineralogistas e analistas79.

79 Ainda hoje os vestígios das idéias de Berzelius são sentidas na análise quantitativa, onde a quantidade dos elementos é demonstrada em termos do óxido no lugar do próprio elemento. Os fertilizantes em geral são comprados por seu conteúdo de K2O e P2O5, no lugar de potássio ou fósforo simplesmente.

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81

4.8 A AURORA DA QUÍMICA ORGÂNICA

No início do século XIX a Química orgânica procurava encontrar sua identidade no

interior de uma Química ainda bastante imatura. Lavoisier, por exemplo, já havia pensado

a Química Orgânica como parte integral da Química, e não meramente como relacionada

aos organismos vivos, uma vez que os compostos orgânicos eram produzidos por eles. Mas

essa não era a atitude prevalente no início do século XIX. Berzelius era da opinião de que

os compostos orgânicos não obedeciam a lei das proporções múltiplas, e mesmo tendo de

mudar de opinião posteriormente ele não tinha certeza de como posicionar esses compostos

na Química.

Leopold Gmelin (1788-1853) foi um dos articuladores desse separatismo através da

obra Handbuch der theoretischen Chemie em 1817. O livro era uma compilação do

conhecimento químico da época e mantinha compostos orgânicos e inorgânicos em

categorias separadas. O motivo para essa separação, segundo Gmelin, estaria associado a

quantidade de elementos constituintes dos compostos orgânicos em relação aos minerais.

Os compostos minerais seriam formados prioritariamente por dois elementos, enquanto os

orgânicos por três80. Ele acreditava que os compostos minerais poderiam ser sintetizados

diretamente a partir de seus elementos constituintes, enquanto os compostos orgânicos

requeriam uma planta ou animal para sua produção, sendo o químico capaz de apenas

executar pequenas modificações em sua natureza. Essa concepção era amplamente

difundida e conhecida como vitalismo.

A síntese da uréia por Friedrich Wöhler (1800-1882) costuma ser marcada como a

“experiência crucial” que provocou a derrocada do vitalismo81, no entanto, nem o próprio

Wöhler ou seus colaboradores reclamaram a síntese da uréia como o marco da morte do

vitalismo (Ihde, 1984). O vitalismo na verdade foi perdendo espaço gradualmente à medida

que o conhecimento sobre novos compostos foi sendo permitido pela expansão de um novo

e legítimo programa de pesquisa: a síntese orgânica.

No interior dos grupos que promoviam em ritmo cada vez mais acelerado a síntese

dos novos compostos orgânicos, a substituição de um elemento por outro era um aspecto

80 Seguindo esse noção, Gmelin colocou compostos orgânicos como metano (CH4), etileno (C2H4), cianogênio (C2N2), entre outros, na seção de seu livro que tratava de compostos minerais. 81 Tanto Ihde (1984) quanto Nye (1996) consideram que a demonstração real da possibilidade de preparação de um composto orgânico a partir de materiais completamente inorgânicos foi alcançada por Hermann Kolbe (1818-1884) em 1844 quando sintetizou o ácido acético.

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82

que clamava por uma explicação. Esse foi o berço da noção de valência. Um conjunto de

teorias que surgiram a partir da explosão da Química Orgânica.

4.8.1 A Teoria dos Radicais

Durante seu estudo sobre a natureza dos ácidos, Lavoisier postulou que esses

compostos fossem espécies binárias constituídas de um radical e oxigênio. Mesmo com

essa indicação prematura, nenhuma ênfase particular foi dada a essa abordagem estrutural

até 1828, quando Jean Baptiste André Dumas (1800-1884) e Pierre Boullay (1777-1869)

sugeriram que os compostos relacionados ao álcool poderiam ser entendidos como

produtos de adição do etileno (C2H4), assim como compostos amoniacais eram entendidos

como produtos da amônia. A estruturação dos compostos a partir da teoria dos radicais

pressupõe que para qualquer substância que se deseja relacionar a um radical, deve-se

encontrar em sua composição pelo menos uma unidade da fórmula empírica dele (veja a

tabela 4.3).

TABELA 4.3 – Comparação entre compostos derivados do radical etileno e amônia (Ihde, 1984, p. 186)

R A D I C A I S E R E S P E C T I V O S C O M P O S T O S D E R I V A D O S

Derivados do etileno: C2H4 Derivados da amônia: NH3

Álcool C2H4, H2O Hidróxido de amônio NH3, H2O

Éter sulfúrico 2C2H4, H2O Óxido de amônio 2NH3, H2O

Éter clorídrico C2H4, HCl Cloreto de amônio NH3, HCl

Éter iodídrico C2H4, HI Iodeto de amônio NH3, HI

Éter nítrico C2H4, HNO2 Nitrito de amônio NH3, HNO2

Éter acético C2H4, C2H4O2 Acetato de amônio NH3, C2H4O2

Berzelius não se mostrou muito entusiasmado com a proposta do radical etileno, a

não ser pelo fato de que incorporava um certo aspecto dualista. Passado mais algum tempo,

em 1832, Justus von Liebig (1803-1873) e Whöhler publicam um artigo sobre óleo de

amêndoas amargas. Em seus estudos, encontram evidências da existência do radical

benzoil C14H10O2 (na verdade C7H5O). Este trabalho sim impressiona Berzelius, pois o

radical benzoil contém três elementos, incluindo o oxigênio e se comporta como se fosse

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83

uma espécie única. Berzelius chega a propor e implementar uma nomenclatura específica

para esses radicais: Bz para o benzoil, E para o etileno.

Liebig também desenvolveu estudos sobre ácidos “polibásicos”, nos quais observou

que esses ácidos possuíam diferentes comportamentos no processo de substituição com os

metais. Assim, Liebig contornou as diferentes capacidades de combinação dos elementos

ao constatar que por exemplo um átomo de antimônio era equivalente a três átomos de

hidrogênio numa substituição, e que um átomo de potássio era equivalente a um único

átomo de hidrogênio. Segundo a definição de Liebig, um radical deveria apresentar pelo

menos duas das três características a seguir:

1. Ser um corpo de constituição fixa que participa de uma série de compostos;

2. Poder ser substituído nos compostos por um corpo simples;

3. Poder se combinar com um corpo simples ou com seus equivalentes.

Um dos pontos críticos na teoria dos radicais era decidir sobre o radical mais

adequado para responder pela formulação mais abrangente de substâncias ou grupos de

substâncias. No entanto, durante a década de 1830, novas séries de compostos sugeriram a

existência de novos radicais. Todos os radicais eram “batizados” por Berzelius.

Entre algumas crises, ajustes e a consagração de outros radicais como capazes de

orientar a formulação e a composição das substâncias orgânicas, a teoria dos radicais foi

muito eficaz para a Química Orgânica. Com ela começou-se a utilizar um radical ou grupo

de radicais para dar forma e “estrutura” a um conjunto de substâncias. Outro aspecto

importante da teoria dos radicais estava no valor particular desse modelo no que se referia

à nomenclatura. A utilização de radicais como “referenciais” para a formulação das

substâncias facilitou a nomenclatura e procurou dar certa ordem ao crescimento de

substâncias orgânicas que eram descobertas e produzidas.

Um dos graves problemas acerca dos radicais era a verossimilhança de suas

fórmulas, normalmente obtidas a partir de pesos atômicos não totalmente confiáveis.

Mesmo os cientistas mais proeminentes, não concordavam entre si e adotavam diferentes

pesos atômicos para o mesmo elemento. Como resultado disso não havia uma

possibilidade de generalização dos radicais obtidos, uma vez que as fórmulas associadas a

eles não faziam sentido fora do sistema mássico particular desse ou daquele cientista. A

tabela 4.4 exemplifica essa dificuldade demonstrando os diferentes pesos atômicos

adotados por diferentes cientistas.

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TABELA 4.4 – Pesos atômicos dos elementos mais comuns em compostos orgânicos, segundo sua utilização pelos cientistas (Ihde, 1984, p. 191)

D I F E R E N T E S P E S O S A T Ô M I C O S U S A D O S P O R C I E N T I S T A S N O S É C . X I X

C I E N T I S T A H C O

J. J. Berzelius 1 12 16

Liebig 1 6 8

A. Dumas 1 6 16

O que parecia indicar uma solução para a formulação dos compostos orgânicos se

tornou uma grande confusão, com substâncias idênticas sendo formuladas especificamente

por diferentes cientistas, idealizadas a partir de radicais diferentes (tabela 4.5).

TABELA 4.5 – Comparação das diferentes fórmulas associadas às mesmas substâncias derivadas do álcool etílico (Ihde, 1984, p. 191)

F Ó R M U L A S D A S S U B S T Â N C I A S P A R A D I F E R E N T E S C I E N T I S T A S

RADICAL (CIENTISTA RESPONSÁVEL)

Etileno (C2H4) Etil (C2H5) Acetil (C2H3)NOME ATUAL FÓRMULA

ATUAL (Dumas) (Berzelius e Liebig) (Liebig)

Álcool etílico C2H5OH C2H4 • H2O C2H5O • H C2H3O • 3H

Éter etílico (C2H5)O 2C2H4 • H2O [C4H10O • H2O] [C4H6O • 6H]

Cloreto de etila C2H5Cl C2H4 • HCl C2H5 • Cl C2H3Cl • 2H

4.8.2 A Teoria das Substituições e dos Núcleos

O cristalógrafo Auguste Laurent (1807-1853), na sua tese de doutoramento em

Química defendida em 1837, conclui a partir de várias experiências que, em certas

situações, átomos de hidrogênio são eliminados, sendo substituídos por átomos de oxigênio

ou halogênio. Este resultado obtido por Laurent, estava em acordo com a teoria ou lei

empírica das substituições formulada por Dumas em 1834, a qual estabelecia que quando

uma substância contendo hidrogênio é submetida a desidrogenação pela ação do cloro, do

bromo, do iodo, ou do oxigênio, para cada átomo de hidrogênio perdido, ganha-se um

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átomo de cloro, de bromo, de iodo ou metade de um átomo de oxigênio. Assim, Dumas

supunha que hidrogênio, cloro, bromo e iodo eram equivalentes, e que o oxigênio tinha o

dobro do valor desses elementos em capacidade de substituição. Dumas introduziu assim o

nome metalepsia para as reações de substituição.

Laurent não se conforma com os argumentos meramente descritivos da metalepsia

e durante seu trabalho de doutoramento com Dumas, critica abertamente a teoria dualista

de Berzelius82. Na explicação eletroquímica da combinação, a substituição de um elemento

eletropositivo como o hidrogênio, por um eletronegativo como o cloro, deveria mudar a

natureza da substância formada. Tal fato não ocorria com os corpos estudados por Laurent,

já que o composto de partida e o resultante da substituição possuíam propriedades

semelhantes.

Para Laurent existia uma forma própria de arrumação para os átomos nas

moléculas83, o composto não era somente uma composição. Deveria haver uma

organização preferencial na estrutura elementar desse corpo químico que orientaria as

substituições. Em 1836, ele defende o que viria a ser conhecido como a teoria dos núcleos,

onde advoga que os compostos químicos contêm núcleos ou radicais onde ocorreriam as

substituições. De acordo com Laurent, existiriam núcleos originais (radicaux

fundamentaux) e núcleos derivados (radicaux derivés). Os núcleos originais produziriam

os derivados pela substituição de átomos de hidrogênio por cloro, bromo ou oxigênio ou

ainda por radicais compostos como os grupos amida e nitro. A teoria dos núcleos deveria

corresponder a um abandono da teoria dos radicais, já que os radicais (agora núcleos) não

possuiriam necessariamente uma composição fixa.

Os núcleos originais são apresentados como formas geométricas. Um exemplo de

núcleo original (C8H12) é mostrado na figura 4.7 e corresponde a um prisma quadrilátero

com oito vértices ocupados por átomos de carbono e doze átomos de hidrogênio no centro

dos doze lados. Note-se na mesma figura que os pontos de substituição estão localizados

em faces opostas, assinalados com um X. A substituição nessas posições é possível sem

destruição do núcleo fundamental.

82 Laurent, A. Théorie des combinaisons organiques. Annales de Chimie, n. 61, p. 125-146, 1836. 83 Bensaude-Vincent e Stengers (1992) indicam que Laurent possuía uma distinção evidente entre molécula e átomo: “o átomo representa a menor quantidade de um corpo simples que pode existir em combinação; e a molécula representa a menor quantidade de um corpo simples que pode ser usada para efetuar uma reação química” (p. 187).

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FIGURA 4.7 – Núcleo fundamental C8H12 (para C=6), segundo a Teoria do Núcleo de Laurent (Ihde, 1984, p.195).

A interpretação geométrica que era decorrente da teoria dos núcleos foi recebida de

modo bastante desfavorável. O modelo pretendido por Laurent abandonava o dualismo de

Berzelius e permitia que o núcleo fosse utilizado sem sofrer modificação, sendo esse

aspecto semelhante ao conceito tradicional de radical. O próprio Dumas recusou suas

especulações.

De maneira muito interessante, um dos papéis cruciais das teorias da substituição e

do núcleo foi exatamente de, através de seu material empírico, iniciar um processo de crise

no modelo dualista de Berzelius. Mais interessante ainda é o fato de que seria o mesmo

Dumas, fiel escudeiro dualismo, que em 1838 ao preparar o ácido tricloroacético e estudar

suas reações e derivados, começaria a aceitar que, nesses casos, o cloro estaria tomando o

papel do hidrogênio. Segundo o modelo dualista, nenhum elemento altamente

eletronegativo como cloro, poderia substituir um hidrogênio eletropositivo, sem alterar

drasticamente o caráter da substância.

Outros adendos empíricos foram conquistados para as fileiras da substituição com

os trabalhos de Thomas Graham (1805-1869), que estudou as diferentes formas de ácido

fosfórico e que acabou por influenciar as pesquisas de Liebig sobre os ácidos

dicarboxílicos. Nesse trabalho, Liebig ressuscita uma tese adormecida de Davy e Dulong

sobre o papel dos hidrogênios nos ácidos, indicando ainda capacidades de saturação

variáveis para o cloro: “o ácido clorídrico é um composto de cloro e hidrogênio, (...) o

radical do ácido clorídrico pode tomar vários átomos de oxigênio sem modificar sua

capacidade de saturação (...).” (Ihde, 1984, p. 201).

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TABELA 4.6 – Representações dos ácidos minerais do elemento cloro proposta por Liebig (Ihde, 1984, p. 201)

Ácido Representação por Liebig84 Àcido clorídrico Cl2 + H2

Ácido hipocloroso Cl2O2 + H2

Ácido cloroso Cl2O4 + H2

Ácido clórico Cl2O6 + H2

Ácido perclórico Cl2O8 + H2

Ainda segundo esse ponto de vista os ácidos são composto nos quais o hidrogênio

possui a capacidade de ser substituído por metais.

TABELA 4.7 – Representações de Liebig para o ácido fosfórico e para um sal derivado por substituição do hidrogênio

Espécie Representação por Liebig85 Àcido fosfórico P2O8 + H6

Pirofosfato de potássio P2O8 + 3K

Mesmo diante de todas essas evidências, Berzelius se manteve com o dualismo e

em 1841 formulou uma hipótese ad hoc, a teoria da cópula, que tentou, sem sucesso,

salvar o dualismo eletroquímico. Em 1842, a verificação da possibilidade do ácido tricloro-

acético ser reconvertido em ácido acético pelo tratamento com potássio, conduziu

Berzelius à mudança definitiva de posição, aceitando finalmente a possibilidade da

substituição.

4.8.3 O Tamanho da Confusão em Meados do Século XIX

Ao final da década de 1840, a visão dualista nos compostos orgânicos teve de ceder

lugar a uma visão unitária. Um composto não podia mais ser considerado como uma

combinação de duas unidades independentes. Entretanto, muitos cientistas se encontravam

totalmente perdidos quanto a que modelo seguir, ou qual caminho tomar em suas

pesquisas. A despeito dos fatos a favor da substituição, a teoria dos radicais se mantinha 84 Observe-se que as fórmulas propostas estão todas com as quantidades de elementos dobradas em relação à proporção correta, por exemplo o ácido cloroso possui fórmula HClO2. 85 Observe-se que as fórmulas propostas estão todas com as quantidades de elementos dobradas em relação à proporção correta, por exemplo o ácido cloroso possui fórmula HClO2.

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88

em muitos laboratórios e muitos pesquisadores tinham absoluta certeza de que os radicais

poderiam existir em um estado livre.

A maior das confusões continuava acerca da composição das substâncias, implicada

pela falta de clareza na distinção entre equivalentes, átomos e moléculas. Em muitos casos

os equivalentes de Wollaston e Gmelin eram preferidos em relação aos pesos atômicos de

Berzelius. Os seguidores de Berzelius, no entanto, mantinham-se fiéis à utilização de

fórmulas dobradas para gases simples, como o cloreto de hidrogênio86. As notações

utilizadas eram da mesma forma confusas e com pouco sentido87.

A falta de um fio condutor mais eficaz para as especulações sobre os mecanismos

das reações químicas fazia com que celebridades científicas da época tivessem de apelar

para critérios “pouco científicos” a fim de contornar situações problemáticas a medida que

iam sendo reveladas limitações para os modelos vigentes.

A queda de um esquema interpretativo respeitado da química numa aventura mais ou menos especulativa, pela aliança entre um fenômeno curioso e um jovem doutor inexperiente [referindo-se a ousadia de Laurent], constituiu um acontecimento pleno de significado para a disciplina. Pelo contrário, a proposta mais modesta de Dumas, a morte de Berzelius e a discreta mudança de atitude de Liebig, Transformam o fim do dualismo eletroquímico num “não-acontecimento”, no apagar de um programa de investigação em degenerescência, no sentido de Lakatos. (Bensaude-Vincent e Stengers, 1992, p. 189)

Durante o trabalho com o ácido tricloroacético e ao comparar as características do

cloral, acetaldeído, metano e clorofórmio, dumas aceitou definitivamente que o cloro podia

tomar o papel do hidrogênio em diferentes compostos. Dois anos depois, em 1840, Dumas

preparou um artigo introduzindo a idéia de tipo mecânico. Dumas entendia o tipo como

uma estrutura na qual um átomo ou um grupo de átomos mantém unidos outros átomos ou

grupos de átomos. Para ele havia um tipo químico, o qual não era necessariamente alterado

pela substituição, e um tipo mecânico que podia ser criado pela adição ou eliminação de

átomos. Dumas atribuía essa idéia a Henri-Victor Regnault (1810–1878) e se referia a

Laurent de passagem como alguém que sustentava que o papel do cloro era igual ao do

hidrogênio em compostos substituídos antes de haverem evidências empíricas para

sustentar essa idéia. Dumas ignorou o trabalho desenvolvido por Laurent sobre a

substituição de halogênios no benzeno, naftaleno e fenol e ao mesmo tempo sugeriu que

86 A fórmula do cloreto de hidrogênio para Berzelius era H2Cl2, no lugar de HCl. 87 A fórmula da água podia ser escrita como HO, H2O, HO, ou HO. Kekulé assinala que em 1861 existem 19 representações diferentes para o ácido acético (Kekulé, p. 58, 1867b).

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somente seu próprio trabalho sobre o ácido tricloroacético deveria ser tomado como

evidência significativa contra a teoria dualística e a favor da idéia de substituição.

Obviamente, Laurent reivindicou a primazia sobre a idéia dos tipos mecânicos e acusava

Dumas de copiar suas idéias.

As idéias de Laurent e Dumas são significativamente distintas, particularmente em

relação às suas origens conceituais. O núcleo de Laurent deriva de seu conhecimento sobre

cristalografia mineral e isomorfismo88 químico, ou seja, segue a classificação de cristais.

De modo diferente, a teoria mecânica dos tipos de Dumas é baseada na tradição da história

natural que ele aprendera como estudante do botânico Augustin-Pyrame de Candolle

(1778-1841) em Geneva. Candolle foi o autor de uma classificação botânica baseada no

conceito de “tipo”, influenciando Dumas para uma aproximação a partir da classificação de

organismos. O interesse de Dumas por esse assunto não foi casual, uma vez que durante a

década de 1830 esse assunto tomava a cena principal da Academia de Ciências de Paris,

numa disputa acadêmica entre o paleontólogo Georges Cuvier (1769-1832) e o zoólogo

Étienne Geoffroy Saint-Hilaire (1772-1844), os quais discutiam as bases para um sistema

natural de classificação em zoologia.

Muitos contornos e debates se seguiram, com disputas mediadas tanto por cartas

anônimas desdenhando da teoria de uns, quanto interpelações pessoais acusando a teoria de

outros. Mesmo assim a partir de 1840 os químicos começam a aceitar a idéia de

substituição de elementos ou radicais em tipos químicos. Na verdade os tipos se tornarão

uma ampla teoria, a primeira grande teoria estrutural da química.

4.8.4 A Teoria dos Tipos: Um Berço para a Noção Clássica de Valência

Naqueles tempos favoráveis a turbulências, quem estava no interior do programa de

pesquisa da Química Orgânica tinha certeza de que o crescimento quantitativo dos

compostos orgânicos era assustador e superava em larga escala os compostos minerais. O

empenho e a dedicação na organização e sistematização do conhecimento acumulado nesse

domínio da química foi uma marca de Charles Frédéric Gerhardt (1816-1856),

principalmente através de sua obra Traité de Chimie Organique (quatro volumes 88 O isomorfismo foi formulado por Eilhardt Mitscherlich (1794-1863) em 1819 e corresponde a um fenômeno onde substâncias diferentes cristalizam com a mesma orientação e disposição dos átomos, das moléculas ou dos íons.

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90

publicados entre 1853 e 1856). A contrariedade em relação às idéias de Dumas fez com

que Gerhardt fosse perseguido em muitos centros de pesquisa da França, obrigando-o a

subsistir com tutorias de alunos particulares e da rentabilidade de seus livros. Gerhardt só

conseguiu um posto na Universidade de Estrasburgo um ano antes de sua morte aos

quarenta anos.

Em 1839, Gerhardt propôs um argumento a favor da substituição chamado Teoria

dos Resíduos que para muitos era considerada como uma segunda teoria dos radicais.

Gerhardt não aceitava essa comparação pois seus resíduos não possuíam nenhuma natureza

elétrica. Na proposição dos resíduos, certos compostos inorgânicos são tão estáveis que

podem ser formados a partir de compostos orgânicos com grande facilidade. Esse fato

promove a formação de resíduos orgânicos que se combinam e formam novos compostos.

Por exemplo, supondo compostos orgânicos que originalmente contenham hidrogênio e

oxigênio, tem-se que o hidrogênio se separa rapidamente de um composto, o oxigênio de

outro, e ocorre a produção de água, uma molécula estável. Os resíduos orgânicos então se

combinam a fim de formar uma molécula estável de um novo composto orgânico.

As reações químicas, conforme entendidas a partir dos resíduos, se tornam

decomposições que são seguidas por trocas entre resíduos, seguidas de suas combinações.

Esses resíduos são na verdade radicais capazes de estabelecer rearranjos. Com essa

asserção, Gerhardt pretendia tornar claro que os radicais deviam ser entendidos como

espécies que podiam se combinar com outros radicais a fim de formar novas substâncias,

ou seja, não possuiriam existência independente mas poderiam ser isolados. A síntese do

nitrobenzeno, que havia sido isolado por Eilhard Mitscherlich (1794–1863), era entendida

conforme a equação da figura 4.8.

C6H5•H + HONO2 = H2O + C6H5•NO2

FIGURA 4.8 – Equação representando a síntese do nitrobenzeno

Estimulado por Laurent, Gerhardt também atacou o problema dos pesos atômicos e

verificou que as fórmulas dos compostos orgânicos podiam ser divididas por dois89. Essa

89 Gerhardt havia estudado com Liebig até 1841 e sob sua influência adotava o uso de fórmulas que representavam o volume de vapor que era ocupado pelo mesmo espaço ocupado por quatro volumes de hidrogênio. No caso do etanol: C4H12O2 = H4.

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divisão resultava em pesos que eram compatíveis com a hipótese de Ampére90. O efeito

dessa inovação proposta por Gerhardt foi a substituição de equivalentes como C=6 e O=8

nas fórmulas dos compostos orgânicos por valores dobrados que na verdade correspondiam

a seus pesos atômicos verdadeiros, isto é, C=12 e O=16. Mesmo assim, nos primeiros três

volumes de seu tratado ele ainda publicou os pesos antigos, entendendo que era necessário

atrair mais adeptos para suas correções, apenas no quarto volume, que foi publicado após

sua morte, foram editadas as novas fórmulas empíricas91.

Na obra Précis de chimie Organique (1844), Gerhardt advoga contra o

estabelecimento de estruturas para os compostos orgânicos, defendendo o uso exclusivo de

fórmulas empíricas para a descrição dessa classe de substâncias. Qualquer arranjo

estrutural assinalado para átomos numa fórmula, era considerado uma conveniência

particular para a descrição de uma reação ou conceito específico, não possuindo nenhum

sentido real92. É também no Précis que Gerhardt amplia e sistematiza as diversas

substâncias até então conhecidas em três séries de classificação. A série homóloga,

proposta primeiramente por J. Schiel, reunia compostos que eram semelhantes do ponto de

vista das características de combinação, mas que diferiam por um ou mais grupos CH2 na

fórmula, por exemplo: álcool metílico e etílico. A série isóloga, que incluía compostos

também semelhantes do ponto de vista das características de combinação, mas que não

apresentavam nenhuma evidência de homologia, por exemplo: ácido acético e benzóico. A

série heteróloga, que indicava compostos com uma “relação genética”, ou seja, podiam ser

interconvertidos por reações, esses compostos possuíam normalmente a mesma quantidade

de carbonos, por exemplo: álcool etílico e ácido acético.

A disposição das substâncias nessas três séries abriu o caminho para que Gerhardt e

Laurent trabalhassem na definição de uma nova espécie de tipo que deveria se comportar

como mecanismo principal das reações de substituição. Ao mesmo tempo, em diferentes

centros de pesquisa, estão sendo identificados outros tipos.

O extenso trabalho de classificação de compostos e o respectivo posicionamento

nas diferentes séries existentes na época, conduzem Gerhardt e Laurent na direção do

trabalho de Charles Adolf Wurtz (1817-1884) e August Hofmann (1818-1892) sobre a

90 Gerhardt se referia à Hipótese de Avogadro e Ampére somente como Hipótese de Ampére, esquecendo propositalmente Avogadro. 91 O sistema de Gerhardt só foi foi amplamente utilizado a partir do Congresso de Karlsruhe em 1860. 92 Essa atitude arbitrária contra as noções estruturais era lamentada por Laurent, que enquanto cristalógrafo considerava que alguns arranjos especiais podiam ser derivados das características das substâncias.

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determinação do tipo amônia e no de Alexander Williamson (1824-1904) sobre a

explicação do tipo água.

4.8.4.1 O tipo amônia

A determinação do tipo amônia foi desenvolvida a partir dos estudos das aminas,

uma classe de compostos que não havia sido estudada de forma sistemática até 1840. A

anilina (fenilamina), por exemplo, que havia sido preparada em 1826 pela decomposição

do índigo, foi explicada por Berzelius como uma cópula estabelecida entre a amônia e um

hidrocarboneto (NH3•C12H8, conforme descrito originalmente). August Wilhelm von

Hoffman (1818-1892), concordou com esse conceito por algum tempo. Enquanto

trabalhava em sua tese de doutoramento com Liebig, Hoffman estudou os derivados da

hulha, entre eles anilina. Em 1845, ele preparou a anilina pela redução do nitrobenzeno93

com zinco e ácido clorídrico.

Nesse mesmo tempo, um outro aluno de Liebig, Charles Adolphe Wurtz (1817-

1884), reconheceu as aminas como bases comparáveis à amônia através da substituição de

um equivalente de hidrogênio do NH3 por radicais metil e etil. As reações conduzidas por

Wurtz levaram-no, em 1849, a obter os compostos metilamina (CH3NH2) e etilamina

(CH3CH2NH2), através do tratamento de ciano-ésteres com o hidróxido de potássio. Esses

resultados forneceram evidências conclusivas para a participação da amônia como um

“composto tipo”. Após algum tempo trabalhando com Liebig, Wurtz se tornou assistente

de Dumas na École de Médecine e seu sucessor na direção dela a partir de 1853. Apesar de

sua amizade por Dumas, Wurtz admirava as idéias de Laurent e Gerhardt, exercendo

também muita influência para o reconhecimento de seus trabalhos.

De posse dos resultados de Wurtz, Hoffman também produziu etilamina, agora pela

reação de amônia com iodeto de etila. O resultado positivo na substituição de um

hidrogênio por um radical orgânico alertou Hoffman para a possibilidade dessa ser uma

característica regular. Assim, Hoffman prosseguiu, sistematicamente, obtendo análogos

secundários e terciários por substituição dos equivalentes de hidrogênio da amônia,

percebendo que podiam ser diversamente substituídos por compostos orgânicos. Na figura

93 O nitrobenzeno foi preparado por Eilhardt Mitscherlich (1794-1863) em 1832.

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4.9 tem-se a representação utilizada para as “fórmulas tipo” de algumas substâncias

derivadas do tipo amônia.

FIGURA 4.9 – Representações estruturais dos compostos originados do tipo amônia, respectivamente: amônia, etilamina, dimetilamina e trietilamina.

Hoffman ampliou os estudos do tipo amônia, identificando também que a

trietilamina quando tratada com iodeto de etila formava um produto de adição cristalino,

identificado na época como iodeto de trietilamônio. Hoffman interpretou esse produto de

adição como um sal, análogo ao obtido pela ação de sódio e potássio sobre iodetos

metálicos. Os estudos seguintes de Hoffman indicaram também que o tipo amônia possuía

análogos fosfínicos94, que foram estudados por Auguste Cahours (1813-1891), também

treinado por Dumas, professor da École Centrale.

4.8.4.2 O tipo água

O tipo água foi proposto por Alexander William Williamson (1824-1904), a partir

de experiências conduzidas na preparação de éteres pela reação de alcooxilatos com

derivados halogenados Williamson começou a trabalhar com álcoois em 1850, com a

intenção de preparar produtos substituídos, da mesma forma que Hofmann havia preparado

“amônias substituídas”. Ao tratar o iodeto de etila com etóxido de potássio, foi

surpreendido com a obtenção do éter etílico95, conforme a figura 4.10.

+ C2H5I KI +C2H5

KO

C2H5

C2H5

O

FIGURA 4.10 – Reação de substituição conduzida por Williamsom para obtenção de éteres. 94 A fosfina (PH3) seria o análogo do fósforo para a amônia (NH3). 95 Williamson não utilizou chaves em suas fórmulas; Gerardt foi o primeiro a utilzá-las (Ihde, p. 212)

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Williamson foi capaz de reconhecer a relação entre os éteres e os álcoois e indicou

pelo menos duas outras rotas sintéticas alternativas para obtê-los. A utilização do tipo água

incluía os éteres e as cetonas como composto desse tipo e também propunha soluções para

controvérsias a respeito da estrutura de ácidos e sais desses ácidos. Na figura 4.11

verificam-se alguns derivados do tipo água. Apesar dos exemplos apresentados serem de

natureza orgânica, o próprio Williamson, em 1851, procurou demonstrar que muitos sais

do ácido sulfúrico podiam ser estruturados a partir do tipo água.

FIGURA 4.11 – O tipo água e os derivados etanol, dietil éter e ácido etanóico.

O tipo água possuía uma versatilidade maior do que o tipo amônia, isso permitiu

que outros compostos passassem a ser descritos a partir dele. William Odling (1829–1921),

por exemplo, estendeu a idéia do tipo água para um tipo chamado múltiplo, nesse caso era

admitida uma proporção diferente entre os radicais que compunham o tipo (figura 4.12).

FIGURA 4.12 – Exemplos de aplicação do tipo múltiplo de Odling: tipo multiplo água, ácido fosfórico, fosfato ácido de potássio e nitrato de bismuto (Ihde, 1984, p. 214)

O tipo água incluía, por um lado, compostos de caráter neutro como os álcoois e

éteres, e por outro, os compostos ácidos, como os ácidos carboxílicos e os anidridos. Os

ésteres também eram escritos a partir do tipo água, ocupando uma posição intermediária

entre os ácidos e os neutros.

Gerhardt entendia que o esforço para adequação dos compostos a um único tipo

seria pouco proveitoso. Sua ambição era estabelecer através dos tipos já estabelecidos e de

outros, um sistema de classificação dos compostos orgânicos que pudesse servir de

orientação para a prática nesse campo de conhecimento. Assim ele amplia o sistema dos

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95

tipos para além da amônia e água, a fim de conseguir incluir a maior parte de substâncias

que se encontravam em evidência na pesquisa em compostos orgânicos.

4.8.4.3 Os tipos hidrogênio e cloreto de hidrogênio

Já muito próximo de sua morte, Gerhardt coloca a teoria dos tipos num alto grau de

desenvolvimento ao ampliar para um total de quatro as possibilidades de arranjo dos

átomos numa fórmula empírica. Nesse sentido, ele adiciona o tipo hidrogênio e o tipo

cloreto de hidrogênio. O primeiro descrevia compostos como hidrocarbonetos, cetonas e

aldeídos, e o segundo incluía cloretos de alquila e ácidos organo-clorados, bromados ou

iodados. Em verdade os tipos hidrogênio e cloreto de hidrogênio são muito semelhantes,

conforme figura 4.13.

FIGURA 4.13 – Substâncias segundo os tipos hidrogênio (acima): hidrogênio, etano, acetona e acetaldeído; e cloreto de hidrogênio (abaixo): cloreto de hidrogênio, cloreto de etila, cloreto de metila e cloreto de etanoíla

Agora com quatro tipos, Gerhardt consegue dar conta de um grande número de

reações e prever novos produtos, pela substituição do hidrogênio por radicais em cada um

dos tipos. Na visão do historiador Aaron Ihde (1984), o germe da idéia foi claramente de

Laurent, o estimulo experimental veio do trabalho de Wurtz, Hoffman e Williamsom, mas

a sistematização foi trabalho exclusivo de Gerhardt. Ele não acreditava em nenhuma

fórmula que pretendesse revelar o arranjo dos átomos, seus tipos revelavam uma proporção

empírica entre os elementos na substância. O radical é para ele uma forma de transporte de

elementos ou grupos de elementos de um corpo para o outro.

Existia ainda nos tipos de Gerhardt a possibilidade de um mesmo composto possuir

diferentes formas de representação, mesmo assim o sistema constituía uma ampla forma de

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classificação e organização que retirava o melhor de idéias anteriores como tipos e radicais

para fornecer uma forma de tratamento das reações de substituição.

4.9 ENFIM A NOÇÃO CLÁSSICA DE VALÊNCIA

Costuma ser um empreendimento proveitoso e acalorado o debate acerca da

primazia de uma idéia ou noção científica. É bem verdade que para muitos casos a

ponderação é de que tenha havido uma aproximação simultânea de diferentes correntes, a

partir de diferentes direções. Além do mais, a primazia não é o critério exclusivo para a

indicação de um “mérito científico”. No caso da noção clássica de valência a disputa desse

mérito acabou sendo tão acirrada entre os historiadores quanto entre os protagonistas.

Questões políticas colocaram muitas vezes a disputa dessa historiografia entre um bloco

oriental e outro ocidental. Mesmo assim, na criação da noção clássica de valência não se

pode imputar a um único personagem essa responsabilidade. Houve influências de vários

tipos e formas contribuindo para seu nascimento e desenrolar na segunda metade século

XIX. Se não podemos escolher um, devemos pelo menos indicar quantos foram esses

personagens e como foram suas contribuições para o desenvolvimento desse argumento

que se constituiu a chave para o início da química estrutural.

Um estudo da bibliografia que trata da história da noção clássica de valência, revela

em alguns momentos relatos implicados por concepções polarizadas em torno de dois eixos

políticos distintos. Num extremo estaria por exemplo o nobre inglês Sir Edward Frankland

(1825-1899), que foi responsável pela identificação prioritária das regularidades existentes

nas capacidades de combinação dos metais com radicais orgânicos. No entanto Frankland

não fez nenhum uso dela. Talvez impregnado pelo preconceito sobre a afinidade química

dos antepassados, ele não quisesse investir em uma teoria nesse sentido.

No outro extremo, costuma-se posicionar a lenda alemã Fiedrich August Kekulé

(1829-1896), que de tão impregnado pela vontade de responder às demandas de sua recém

inventada palavra: valência, criava “salsichas carbônicas” e até sonhava com ouroboros

alquímicos que lhe iluminavam na solução de problemas a respeito da estrutura de

compostos desafiadores. Entre Frankland e Kekulé estão também outros atores e fatores,

não coadjuvantes mas tão importantes quanto os primeiros, algumas vezes minimizados em

seus papéis e influências.

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97

4.9.1 A Capacidade de Combinação

O período entre 1830 e 1860 foi caracterizado por tensões metodológicas e

epistemológicas entre os que cultuaram a nova disciplina da química orgânica, o

conhecimento desses aspectos são importantes pois é no interior da química orgânica que a

noção de valência vai surgir, crescer e se consolidar. Dentre outros fatores epistemológicos

cruciais, começava-se a destacar quais seriam as verdadeiras implicações da busca de

teorias que evidenciassem a realidade microscópica do mundo químico.

Os tipos de Gerhardt não foram bem recebidos por Adolf Wilhelm Hermann Kolbe

(1818-1884) e Edward Frankland, ambos ainda discípulos do dualismo de Berzelius. Os

dois cientistas preferiam rejeitar o conceito unitário de compostos químicos e considerar os

radicais como grupos estáveis de elementos, do que considerar arranjos arbitrários criados

somente para fins de classificação. Tanto Kolbe quanto Frankland receberam influências

acadêmicas de Lyon Playfair (1818-1898) da Universidade de Edinburg, onde permanecia

a convicção sobre a Teoria da Cópula de Berzelius. Kolbe queria perseguir um novo corpo

de conceitos que pudesse conciliar as novas evidências empíricas da substituição em

compostos orgânicos com o velho dualismo eletroquímico de Berzelius, trazendo ainda a

reboque a teoria dos radicais

Em 1847 Kolbe e Frankland se encontravam como assistentes de Playfair e

envolvidos em sínteses de derivados de ácidos carboxílicos96. Nesse mesmo ano

conseguiram produzir ácido acético pela reação de uma base com o cianeto de metila. Essa

reação deu origem a uma série de experimentos de obtenção de ácidos carboxílicos a partir

de cianetos de alquila que convenceram Kolbe da presença de uma cópula nesses ácidos.

Frankland, por sua vez, conduzia experimentos a fim de confirmar a estabilidade do

radical etil durante algumas transformações químicas. Quando o iodeto de etila era tratado

com zinco, formava-se iodeto de zinco e butano97, conforme a figura 4.14.

2Butano

104Etila de Iodeto52 ZnI HC Zn IHC 2 +→+

FIGURA 4.14 – Equação representando a obtenção do butano a partir do iodeto de etila e zinco 96 O trabalho com ácidos carboxílicos viria a ser a tônica da pesquisa acadêmica de Kolbe. Ele foi o responsável pela preparação do primeiro composto orgânico (ácido acético) a partir de substâncias completamente inorgânicas em 1844. 97 Na época chamado de “etil livre”.

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Na reação acima, como subproduto, um pouco de etil zinco sempre era produzido,

conforme a figura 4.15.

2 ZincoEtil

252Etila de Iodeto52 ZnI Zn)HC( Zn 2 IHC 2 +→+

FIGURA 4.15 – Equação representando a produção de etil zinco

O produto inesperado da figura 4.15 foi o precursor da classe dos compostos

organo-metálicos e a primeira pista para Frankland passar a confiar numa regularidade de

capacidade de combinação de alguns elementos. Frankland expandiu suas sínteses para

outros metais, confirmando que um metal apresentava sempre a mesma capacidade de

saturação em relação a um tipo de radical, mesmo quando os radicais eram modificados

essa regularidade se mantinha. A conclusão que havia chegado indicava que os compostos

organometálicos eram derivados por substituição de tipos inorgânicos. Assim, apesar de

apoiado em idéias de um programa de pesquisa concorrente, Frankland se sentiu mais

seguro para expandir as regularidades para os compostos inorgânicos, pedindo permissão

para introduzir o termo força de combinação em um artigo de 1852 para a Royal Society98.

Quando as fórmulas de compostos químicos inorgânicos são consideradas, até um observador superficial é impressionado pela simetria geral de sua construção. Os compostos de nitrogênio, fósforo, antimônio e arsênio, especialmente, exibem a tendência de formar compostos contendo 3 ou 5 átomos de outros elementos, sendo nessas proporções que suas afinidades são mais bem satisfeitas. Assim, no grupo ternário temos: NO3, NH3, NI3, NS3, PO3, PH3, PCl3, SbO3, SbH3, SbCl3, AsO3, AsH3, AsCl3, etc. Ao passo que no grupo de cinco átomos temos: NO5, NH4O, NH4I, PO5, PH4I, etc. Sem oferecer nenhuma hipótese com respeito a causa desse agrupamento simétrico de átomos, é suficientemente evidente a partir dos exemplos fornecidos anteriormente, que tal tendência ou lei prevalece, e que, não importando o caráter dos átomos que estabelece a união, a força de combinação do elemento que atrai, se for permitida a utilização do termo, é sempre satisfeita pelo mesmo número desses átomos. (Frankland, 1852)

A força de combinação, que também ficou conhecida como capacidade de

saturação era uma nova expressão da antiga afinidade química dos elementos. A favor de

Frankland estavam as leis das proporções múltiplas e das proporções constantes, que 98 Apesar de efetivamente explicitadas por Frankland, as regularidades na capacidade de combinação dos elementos já estavam sugeridas em muitas pesquisas conduzidas anteriormente. Em 1834, Dumas havia percebido que um átomo de cloro era substituído por um único átomo de hidrogênio e “meio átomo” de oxigênio. Os estudos de Liebig sobre poliácidos revelavam também diferentes capacidades de substituição dos metais, onde fora observado que um átomo de antimônio era equivalente a três átomos de hidrogênio e um átomo de potássio era equivalente a um único átomo de hidrogênio.

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carregavam a implicação de que a capacidade dos átomos se combinarem deveria ser exata

e limitada. Os argumentos de Frankland se baseavam em um conjunto restrito de

regularidades e ele se recusava a constituir uma teoria a respeito, isso favoreceu a

apresentação de diversos contra-exemplos que decorriam da confusão que atormentava as

fórmulas empíricas, em função da ausência de uma demarcação clara entre os átomos e os

equivalentes químicos. Esses exemplos e o fato de que a capacidade de combinação de um

elemento podia variar, minaram a ampla aceitação das idéias de Frankland.

A capacidade de combinação de Frankland foi entendida muito mais como uma

confirmação das idéias de Gerhardt, Laurent e Williamsom em torno da teoria dos tipos do

que como uma explicação independente. Uma noção funcional de valência só poderia

emergir após a solução dos problemas na determinação de fórmulas empíricas de

compostos orgânicos e inorgânicos, ou seja, após os conceitos de átomo, molécula e

equivalente terem sido diferenciados.

4.9.2 O Arquiteto e seus Sonhos

Friedrich Kekulé iniciou sua vida acadêmica como aluno de arquitetura na

Universidade de Giessen, onde sob a influência de Liebig, foi convertido para o estudo da

química, graduando-se em 1851. Seguiu então para Paris, onde desenvolveu seu trabalho

de doutoramento sob a orientação de Charles Gerhardt, mantendo contatos com os

trabalhos de Dumas. Em 1853, por meio de uma recomendação do próprio Liebig, mudou-

se para Londres a fim de trabalhar como assistente de John Stenhouse no St

Bartholomew’s Hospital, o que lhe valeu contatos preciosos com Williamsom, Frankland e

William Odling (1829-1921). É na Inglaterra que Kekulé vai amadurecer a arquitetura de

suas estruturas químicas revolucionárias, que segundo suas próprias palavras, teriam sido

reveladas a partir de sonhos.

Em 1854, enquanto desenvolvia um método de preparação para o ácido tioacético,

Kekulé chegou a algumas conclusões que validavam o sistema de pesos atômicos de

Gerhardt e rejeitavam as conclusões de Frankland sobre a equivalência de combinação

entre o cloro e o oxigênio.

Ao representar a reação conforme descrito na figura 4.16, Kekulé atentou para a

diferença na capacidade de combinação entre cloro e enxofre. O produto clorado era

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100

resultado da destruição do tipo original, enquanto com o enxofre isso não acontecia. A

afirmação para a tal efeito era que “a quantidade de enxofre que é equivalente a dois

átomos de cloro não é divisível” (Ihde, 1984). Com essa interpretação, Kekulé passou a

fornecer um sentido teórico para os tipos de Gerhardt, indicando que “o número de átomos

de um elemento que combinam com um outro elemento dependem de sua basicidade ou

relação de tamanho de suas partes componentes” (Kuznetsov, 1980, sem grifo no

original). A esse respeito os elementos podiam recair em três grupos principais:

monobásicos, e.g. H e Cl; dibásicos, e.g. O e S e tribásicos, e.g. N e P.

C2H30

H5 O + P2S5

C2H30

H5

C2H30

HS P2O5+

ácido tioacéticoácido acético

C2H30

H5 O + 2PCl5

5C2H3OCl5HCl

P2O5+

FIGURA 4.16 – Reações conduzidas por Kekulé que implicaram na diferenciação entre a capacidade de combinação do cloro e do enxofre (Ihde, p. 222, 1984)

Em 1857, enquanto professor na Universidade de Heidelberg, Kekulé introduz o

tipo gás do pântano99, aplicando-o a um número limitado de compostos e utilizando

inconvenientes representações com dois carbonos100, que no entanto eram extremamente

populares entre os químicos alemães.

pântano do gás2HHHHC

metila de cloreto2HHHClC

oclorofórmi2HClClClC

FIGURA 4.17 – Representações de Kekulé para compostos tipo gás do pântano, utilizando fórmulas empíricas com dois carbonos

No ano de 1858, Kekulé muda para a Bélgica e assume uma cátedra na

Universidade de Ghent. Lá ele volta a usar os pesos atômicos de Gerhardt, o que reconduz

seu tipo gás do pântano a forma CH4. Foi durante sua estada em Ghent que Kekulé 99 O gás do pântano corresponde ao gás metano. 100 A fórmula empírica do gás metano é CH4.

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101

formulou a tetra-atomicidade do carbono além de sua capacidade de estabelecer esqueletos

pela utilização de duas das quatro atomicidades entre átomos de carbono: “o carbono é

tetratômico, (...) e entra em combinação com ele mesmo, possuindo capacidade de

saturação mútua” (Nye, 1996, p. 130). Em sistemas com dois carbonos os esqueletos eram

entendidos como arranjos onde a atomicidade do sistema era 6 e não 8101, porquê cada

carbono era satisfeito parcialmente por uma combinação entre carbonos. Assim, em

compostos como o etano (C2H6), cloreto de etila (C2H5Cl) e acetaldeído (C2H4O2), existem

seis elementos em combinação com o esqueleto de dois carbonos. Com essa inferência,

Kekulê propunha também que no mecanismo das reações desses compostos o esqueleto

permanecia inalterado.

As formulações de Kekulê receberam muitas influências dos tipos de Dumas e

Gerhardt no período que ele esteve na França, onde realizou os estudo dos derivados do

gás do pântano. Pode-se entender que essas questões estavam latentes em muitos trabalhos

da época. Na verdade, Kekulé disputava constantemente a primazia das questões que

apresentava, as quais singularmente eram favorecidas pela burocracia dos protocolos de

publicação da época.

O escocês Archibald Scott Couper (1831-1892), que trabalhava com Wurtz,

publicou as mesmas idéias de Kekulé, semanas depois102. Mesmo sendo derrotado no que

se refere à primazia, as representações utilizadas por Couper em seu artigo eram muito

mais eficientes do que aquelas utilizadas por Kekulé. O alemão utilizava uma forma de

representação que ficou conhecida como a forma salsicha devido a sua característica

arredondada nas extremidades, enquanto Couper explicitava a combinação dos elementos

por linhas retas. Couper não pode desenvolver seus trabalhos devido a graves problemas de

saúde que lhe obrigaram a afastar-se da pesquisa.

101 Uma vez que cada carbono era tetra-atômico, em um sistema com dois carbonos a atomicidade deveria dobrar também. 102 O artigo de Couper foi publicado em Junho de 1958 no Annales de chemie et de physique. Série 3, 53 (1858).

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102

FIGURA 4.18 – Representações de: (A) Kekulé para o gás metano na forma salsisha e (B) Couper para o ácido tartárico

Kekulé entendia que a afinidade de um átomo pode ser usada completa ou

parcialmente. No caso do SO2, por exemplo, a substância seria composta de três átomos,

cada um dos quais dibásico. Das seis afinidades possíveis para o enxofre, quatro são

usadas para conectar os átomos de oxigênio, de modo que duas afinidades permaneceriam

sem uso. Apesar de seu sentido estar praticamente completo no entorno de 1960, a palavra

valência só será usada a partir do final dessa década.

A noção de valência não poderia estar completamente formulada antes da solução

do problema das massas atômicas, mesmo assim, o italiano Stanislao Canizzaro (1826-

1910), seguindo o caminho da hipótese de Ampére e Avogadro, fazia uso de massas

atômicas corretas e conseguiu contestar alguns postulados de Kekulé que indicavam a

mono-atomicidade para a maioria dos metais. Canizzaro demonstrou experimentalmente

que vários metais podiam assumir múltiplas atomicidades, em diferentes compostos.

O cálculo dos pesos moleculares ainda era uma questão incerta. Conjecturas

descabidas e regras arbitrárias eram lugar comum em 1958. O desacordo com respeito aos

pesos moleculares precisava ser resolvido rapidamente.

4.9.3 O Congresso de Karsruhe

No dia 3 de setembro de 1960, cerca de 140 químicos se reuniram na cidade alemã

de Karlsruhe, convidados por Kekulé e Wurtz. O objetivo principal era dissolver as

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103

diferenças em torno da determinação dos pesos moleculares, no entanto, iniciado o evento

esse passou a ser o único objetivo103.

O comitê dirigente formado com a participação de Kekulê, Canizzaro e Wurtz

encaminhou uma série de questões sobre átomos, moléculas, radicais e equivalentes. O

plenário discutiu ativamente todas as questões, mas não houve nenhum acordo. No

segundo dia, Canizzaro abriu os trabalhos descrevendo suas idéias sobre a determinação

dos pesos e de como conduzia seus alunos sobre o tema, mas não conseguiu conquistar a

platéia. No terceiro dia retomou a palavra discursando sobre o significado do trabalho de

Gerhardt, que baseou seus pesos moleculares nas hipóteses de Avogadro e Ampére e em

seguida apresentou extensamente como a Hipótese de Avogadro e Ampére poderia ser

usada no cálculo de pesos atômicos e moleculares. As discussões que se seguiram

começaram a indicar alguns adeptos, ainda assim a mesa diretora encaminhou que

nenhuma votação poderia ser tomada em questões científicas e que cada presente estaria

livre para decidir sobre que caminho tomar104. Embora o congresso tenha terminado sem

uma unanimidade, as argumentações de Canizzaro convenceram muitos participantes

(Nye, 1996).

A questões relativas à valência ou atomicidade ocuparam minimamente os

participantes do congresso. A recomendação encaminhada pelo comitê responsável

considerava o equivalente químico como um conceito empírico, independente do conceito

de átomo e molécula, indicando que este poderia ser determinado tanto teórica como

empiricamente.

4.9.4 As Raízes Etimológicas da Valência

O primeiro termo que os químicos utilizaram para descrever as características

quantitativas de afinidade dos elementos e radicais foi basicidade. Esse termo foi

introduzido por Williamsom em 1852 para caracterizar radicais em função da quantidade

de ligantes em seu entorno como monobásicos, dibásicos, tribásicos, etc. Entre 1854 e

103 Estiveram presentes em Karlsruhe tanto cientistas consagrados como Bunsen, Canizzaro, Dumas e Hoffman, quanto aqueles que seriam futuros promissores como Baeyer, Beilstein, Erlenmeyer, Friedel, Mendeleev e Lothar Meyer. No entanto, foram sentidas as ausências de Liebig, Wöhler, Hofmann e Frankland. 104 Ao final do congresso, Angelo Pavesi, professor de química da Universidade de Pavia e seguidor de Canizzaro panfletou cópias do artigo de Canizzaro.

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104

1856 Kekulé também utilizou esse termo em suas descrições, oferecendo em seguida o

termo atomicidade para situações análogas. Couper utilizava o termo grau de afinidade

para descrever a habilidade de um elemento em formar compostos, nem esse termo nem a

capacidade de combinação de Frankland foram amplamente adotados.

Em 1864, Odling utilizou os termos mônade, díade e tríade, os mesmos utilizados

por Laurent em 1846 com outros propósitos. Em 1858 surge o temo equivalente, no qual o

elemento hidrogênio é considerado como a unidade de equivalência.

Em seu manual didático publicado em 1865, Hofmann sugere que o termo

atomicidade deveria ser substituído pelo termo quantivalência e que os elementos

deveriam ser descritos como univalentes, bivalentes, trivalentes e tetravalentes em função

de sua capacidade de fixar átomos. O termo quantivalência foi adotado na Inglaterra tanto

em livros texto quanto em periódicos até 1885. Frankland, entretanto, mantinha a sua

própria capacidade de combinação, tendo utilizado também atomicidade e posteriormente

equivalência até 1877.

O termo valência entra no vernáculo científico no final dos anos 1860. Sua primeira

aparição foi num artigo de Kekulé, em 1867.

Quando experimentei o problema de explicar minhas opiniões sobre a constituição atômica dos compostos químicos, utilizei por alguns anos um método pelo qual átomos de diferentes valências (valenz) eram representados por tamanhos diferentes. (Kekulé apud Kuznetov, 1980, p. 45)

O termo valência para Kekulé é concebido como uma derivação de quantivalência

de Hofmann, passando a ser incorporado a partir de 1969 e entrando para a enciclopédia

britânica em 1876.

Os termos apontados por Russel (1971) como raízes para a formação da palavra

valência são:

1. valens: significando forte, poderoso, enérgico, capaz.

2. valere: ordinariamente significando ser forte ou bondoso e posteriormente

no sentido de possuir valor.

3. valentia: termo do latim medieval significando valor.

A literatura científica russa não absorveu o termo valência de pronto, continuando a

utilizar os termos atomicidade e equivalência até o início do século XX. Mendeleev, por

exemplo utilizou em seus manuais didáticos tanto equivalência como atomicidade. Outros

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105

autores, de origem russa como Menshutkin e Chugaev utilizaram unidades de afinidade

(Kuznetsov, 1980).

4.9.5 A Ligação Química como Causa da Valência de um Elemento

O termo ligação química foi utilizado primeiramente por Alexander Mikhailovich

Butlerov (1828-1886) em um artigo de 1863 sobre a isomeria nos compostos orgânicos.

Desde a primeira vez que os termos valência e ligação química começaram a se encontrar

observou-se uma ampla confusão para o sentido de ambos. Essa dificuldade foi marcada

pela ausência de uma tentativa inicial de demarcar os limites de abrangência dos dois

termos. Como apontamos anteriormente, a existência de certas causas responsáveis pela

combinação dos átomos em um composto estava presente antes mesmo da teoria atômica

de Dalton ou do modelo eletroquímico de Berzelius. Mesmo assim, a primeira tentativa

oferecida para a distinção entre os dois termos colocava a valência como uma força inata

ao elemento, utilizada para atacar outros elementos e expressa numericamente pelo número

de elementos monovalentes capazes de serem atacados por ele, e a ligação química como

sendo o efeito resultante da ação dessa força.

Kekulé, pó exemplo, não indicava nenhum termo específico para ligação química e

denotava através de unidades de afinidade tanto a quantificação da valência, quanto as

quantidades de ligação química de um elemento em um composto. O alemão contornava a

discussão admitindo que o termo ligação química não possuía um sentido exato, nem

“princípios científicos” (Kuznetsov, 1980, p. 49). A valência se consagrou mesmo como

uma característica do corpo químico, sendo a ligação química uma conseqüência, ainda

incompreendida, externa a ele. Kekulé apostava na valência para formular suas explicações

sobre as características estruturais das substâncias.

Couper também abraçou a utilização da noção de valência como argumento central

em suas explicações, indicando que o caráter dos compostos podia ser deduzido a partir

das propriedades dos átomos livres105.

105 Cabe ressaltar que Couper foi um atomista muito mais convicto do que Kekulé. Kekuké não conseguia conceber a existência de uma espécie atômica fora do corpo químico (molécula). Ou seja para Kekulé o átomo não era uma entidade independente, mas sim uma entidade operacional dentro do corpo químico.

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106

Quando todas as propriedades e faculdades dos elementos forem conhecidas individualmente, deveremos ser capazes de entender a constituição dos compostos que são sintetizados a partir deles, (...) [a] afinidade quantitativa dos elementos é uma propriedade fundamental, inerente a todos elementos, sem a qual o elemento é destituído de seu caráter, e que devido a ela este passa a ocupar um lugar especial no composto químico. (Couper apud Kuznetzov, 1980, p.51)

Para Butlerov, o criador do termo, havia uma relação diferente entre a valência e a

ligação química. O elemento possuía uma quantidade de força que produzia o fenômeno

químico, parte dessa força ou sua quantidade total era convertida em outra forma e

transformada na ligação ao se formar um composto. A força era sempre expressa através

de números inteiros e o valor relativo ao hidrogênio constituía o valor mínimo que podia

ser assumido por qualquer elemento. Nessa descrição de Butlerov está implícita a aceitação

de uma valência variável, a partir da utilização completa ou incompleta da afinidade do

elemento. Ao contrário de Butlerov, Kekulé não aceitava a idéia de que unidades de

afinidade podiam ser usadas parcialmente, sustentando sempre o conceito de uma valência

fixa para cada elemento. Tanto para Butlerov, quanto para Kekulé a valência era uma

propriedade inerente ao elemento e suas ligações químicas uma manifestação dessa

propriedade.

Butlerov dividia todos os elementos em dois grupos, um com valências pares e

outro com valências impares. De acordo com essa divisão, os elementos com valências

pares poderiam existir como espécies isoladas fora de um composto106 químico.

“A quantidade de afinidade livre é sempre um número par (0, 2, 4, etc.); conseqüentemente um átomo que possui duas unidades de afinidade livre pode existir independentemente, ou seja ser uma partícula.” (Butlerov107, apud Kuznetzov, 1980, p. 53)

Butlerov também utilizou as unidades de valência para explicar o mecanismo de

algumas reações.

Pode-se assumir que uma partícula sem afinidade livre, mas certamente possuindo pelo menos duas unidades de afinidade latente [valências em uso], se decompõe no momento da reação e então as duas unidades que estavam anteriormente conectadas uma a outra na partícula, agora combinam com duas afinidades que pertencem a uma partícula diatômica. (Butlerov apud Kuznetzov, 1980, p. 53)

106 Nesse ponto Butlerov não se refere essa espécie química isolada como uma molécula, no entanto parece demonstrar sua aceitação em relação à hipótese de que espécies diatômicas podem formar agregados estáveis. 107 Butlerov, Alexander M. Collectec Works. V. 1. Moscou: Academy of Science Press, 1953.

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107

Na proposta mecanística apresentada por Butlerov, existe como pressuposto a

conservação das unidades de valência, de um mesmo elemento, durante a combinação. A

explicação para essa combinação é conduzida a partir da noção de valência: o elemento

possui unidades de valência que são usadas no momento da combinação química, ele

desfaz as valências em uso com um elemento para poder utilizá-las com outro,

conservando essas quantidades, ou seja, durante o processo não são criadas nem destruídas

unidades de valência em um elemento. Enfim, para Butlerov a valência é uma força de

afinidade responsável pelo fenômeno químico.

4.9.6 Valência e as Fórmulas Racionais como Palavras na Química.

No panorama do início dos anos 1860 a Química Orgânica impressiona como um

programa de pesquisa consolidado, um segmento que arrebanha cada vez mais seguidores

e que começa a saltar aos olhos daqueles que percebem a rentabilidade de um excelente

domínio científico para investimentos em pesquisa108.

A explosão da quantidade de substâncias orgânicas que se começava a conhecer só

era comparável ao crescimento da complexidade delas. As nomenclaturas que eram

propostas, na maioria das vezes não conseguiam dar conta das relações de funcionalidade

específicas que havia entre os diferentes grupos de compostos. Em contrapartida, cresciam

as correntes que apostavam na necessidade de uma representação simbólica como solução

108 A partir da década de 1860 pode-se começar a compor as origens de uma “química orgânica industrial”, interassada inicialmente em corantes. Em 1845 August Hoffman foi para Londres a convite do Príncipe Albert para assumir o cargo de primeiro superintendente do Royal College of Chemistry. Hoffman foi um dos primeiros a verificar que o alcatrão da hulha, que era fartamente disponível a baixo custo a partir das indústrias de gás em franca expansão na Europa, podia dar origem a muitos compostos de interesse comercial. Entre essas substâncias estava o benzeno. A essa altura já era de domínio acadêmico que o benzeno, quando tratado com ácido nítrico, transformava-se num óleo amarelo chamado nitrobenzeno. Esse óleo amarelo quando tratado com agentes redutores formava a anilina, assim chamada pois havia sido isolada primeiramente a partir do índigo, nome adotado na França, o qual em Portugal era anil. Entre um dos muitos alunos de Hoffman no Royal College, estava William Henry Perkin que, em seus dezoito anos, encontrou uma semelhança grande entre a fórmula racional da alil-toluidina, um derivado da anilina, e uma droga muito eficaz contra a malária, a quinina. Perkin concebeu que poderia oxidar a alil-toluidina convertendo-a em quinina, mas não obteve nenhum resultado. Diante de sua decepção, partiu para experimentar o mesmo processo a partir da anilina, conseguindo uma lama negra donde se obtinha curiosamente alguns cristais púrpuros. A cor intensa do cristal obtido sugeriu a Perkin que poderia se tratar de um potencial corante, ao passo que ele experimentou colorir amostras de seda e algodão, obtendo uma cor azul uniforme e totalmente resistente à lavagem. A patente britânica número 1984 do ano de 1856 pertence a esse corante de Perkin, que montou uma fábrica, enriqueceu e continuou procurando caminhos para a síntese de outros corantes, como a alizarina, derivado de outro produto abundante no alcatrão da hulha, o antraceno.

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108

para essa limitação. O sucesso de uma teoria estrutural “dependia tanto da normalização

dos pesos atômicos quanto da noção de valência” (Weininger, 1998). Essa proposta

confiava na hipótese de que o arranjo e a posição dos elementos era tão ou mais importante

quanto sua quantidade, para a caracterização das propriedades de uma substância.

Naturalmente, havia uma disputa entre aqueles que confiavam nas possibilidades de uma

representação estrutural – conhecida à época como fórmula racional – e os que entendiam

que esse seria um esforço improdutivo. Essa disputa era colocada, algumas vezes de forma

implícita, nos livros didáticos desse período: “Deve ser marcado firmemente que tal

fórmula [racional] não pretende expressar como os átomos estão arranjados no espaço,

porque a respeito disso somos totalmente ignorantes” (Schorlemmer, 1874, p. 72).

A primeira representação química isenta de caracteres alfabéticos foi o hexágono de

Kekulé associado ao benzeno, em 1865. Essa trajetória não foi direta nem livre de uma

especulação inicial marcada por arbitrariedades e influências pouco científicas, como

denotam as propostas estruturais feitas à época para explicar as características pouco

comuns dessa substância que precisava justificar principalmente como seis átomos de

carbono podiam estar associados à somente seis átomos de hidrogênio – fórmula empírica

C6H6 –, numa substância altamente estável e resistente a muitos ataques por combinação

química.

Kekulé não apostava desde o início nas possibilidades de descrição das fórmulas

racionais, preferindo as fórmulas de constituição, que apontavam os grupos dos átomos

envolvidos nas substâncias. As propostas estruturais feitas por Kekulé para o benzeno

ofereceram bastante dificuldade devido à baixa relação carbono:hidrogênio (1:1). Essa

relação sugeria que o composto deveria possuir um alto grau de insaturação (ligações

duplas e/ou triplas), mas o benzeno não sofria processos de adição, assim como outros

compostos insaturados. Sua saída para o dilema foi a proposição de um estrutura cíclica,

que lhe teria ocorrido em um sonho109.

109 A citação seguinte é um trecho do discurso de Kekulé nos 25 anos de aniversário da teoria estrutural do benzeno no ano de 1890: “Vocês estão celebrando o jubileu da teoria do benzeno. Eu devo, antes de tudo, falar-lhes que, para mim, a teoria do benzeno foi somente uma conseqüência muito óbvia das idéias que eu formara sobre as valências dos átomos e da natureza de suas ligações, as idéias, portanto, as quais nós hoje chamamos de teoria da valência e estrutural. O que mais eu poderia ter feito com as valências não utilizadas? Durante minha estada em Londres, eu residi em Chapman Road (...). Em um agradável anoitecer de verão, estava retornando no último ônibus, sentado do lado de fora, como de costume, trafegando pelas ruas desertas da cidade (...). Eu caí em devaneio, e vejam só, os átomos estavam saltando diante dos meus olhos! Até agora, sempre que esses seres diminutos haviam aparecido para mim, estavam sempre em movimento, mas até aquele momento eu não fora capaz de perceber a natureza dos seus movimentos. Agora, entretanto, eu via como, freqüentemente, dois átomos menores uniam-se para formar um par; como um maior abraçava os

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109

Mesmo com as dificuldades do benzeno, Kekulé insistiu e manteve a tetravalência

do carbono como o “núcleo duro” de sua proposta. A estrutura cíclica sonhada por Kekulé

era a base para uma série de compostos que ele designava como compostos aromáticos. Os

compostos aromáticos possuíam um núcleo comum C6A6, onde A denotava

necessariamente uma unidade de afinidade (valência) não utilizada. Essas seis afinidades

dos núcleos aromáticos poderiam ser satisfeitas por seis elementos monoatômicos, ou em

parte por elementos poliatômicos trazendo necessariamente com eles outros elementos,

produzindo assim uma ou mais cadeias laterais. Segundo essa mesma teoria, duas

afinidades de um núcleo não poderiam ser satisfeitas por um elemento diatômico ou

mesmo três afinidades por um elemento triatômico, desse modo, compostos com fórmulas

C6H4O, C6H4S ou C6H3N seriam impossíveis.

Em suas primeiras publicações acerca dos compostos aromáticos, Kekulé preferia

as “formas salsisha” (figura 4.19A), sendo essa a forma utilizada no primeiro volume do

seu Lerbuch der organischen chemie (1865). No ano seguinte, Kekulé adota o hexágono

(figura 4.19C). O problema da tetravalência do carbono foi resolvido com a suposição da

existência de valências duplas alternadas entre os carbonos do anel aromático do benzeno

(figura 4.19B). Entretanto muitos químicos não estavam dispostos a aceitar a forma do

benzeno como um ciclohexatrieno, uma vez que não havia reação de adição para ele nos

mesmos moldes de outros compostos insaturados. A presença das valências duplas

continuou em aberto.

outros dois menores; como outros ainda maiores retinham três ou mesmo quatro dos menores; enquanto o conjunto mantinha-se girando em uma dança vertiginosa. Vi como os maiores formavam uma cadeia arrastando os menores atrás de si, mas somente nos finais da cadeia (...). O grito do motorista : “Chapman Road” acordou-me do sonho; mas passei uma boa parte da noite colocando no papel pelo menos o esboço dessas formas de sonho. Essa foi a origem da “teoria estrutural”. Algo semelhante aconteceu com a teoria do benzeno. Durante minha estada em Ghent, morava em elegantes aposentos de solteiro na via principal. Meu escritório, no entanto, tinha frente para um beco estrito e nenhuma luz do dia penetrava nele (...). Estava sentado escrevendo meu livro didático, mas o trabalho não progredia; meus pensamentos estavam em outro lugar. Virei minha cadeira para o fogo e cochilei. Novamente os átomos estavam saltando diante dos meus olhos. Nessa hora, os grupos menores mantinham-se modestamente no fundo. Meu olho mental, que se tornara mais aguçado pelas visões repetidas do mesmo tipo, podia agora distinguir estruturas maiores de conformações múltiplas: fileiras longas, às vezes mais apertadas, todas juntas, emparelhadas e entrelaçadas em movimento como o de uma cobra. Mas veja! O que era aquilo? Uma das cobras havia agarrado sua própria cauda, e essa forma girava desdenhosamente diante de meus olhos. Acordei como se por um raio de luz; e então, também passei o resto da noite desenvolvendo as conseqüências da hipótese.” (Roberts, 1995, p. 102)

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110

(A) (B)

(C)

FIGURA 4.19 – Representações de Kekulé para a molécula de benzeno: (A) fórma "salsicha", do primeiro volume do

livro de Kekulé: Lehrbuch der organischen chemie (1865); (B) e (C) representações esquemáticas cíclicas para a substância, que constavam do segundo volume da mesma obra

Sem se preocupar diretamente com as questões relativas ao benzeno, mas assistindo

de perto esses debates que possuíam amplas implicações estruturais, estava Butlerov. Em

1861 o russo havia publicado um artigo onde já colocava explicitamente o papel e o lugar

da representação estrutural. O ponto central do artigo de Butlerov foi o de firmar a opinião

de que o conceito de atomicidade poderia conduzir seguramente a uma teoria da

constituição dos compostos químicos, ampla e consistente.

No mesmo sentido que Gerhardt, negamos a possibilidade de conhecer a posição exata dos átomos no interior de uma molécula. Parece óbvio que a química, que lida somente com corpos em estado de transformação, é incapaz de julgar a estrutura matemática, conquanto investigações físicas não afetem a questão. Por outro lado, entretanto, estou certo de que ninguém poderá dizer que esse fato permanecerá inacessível para nós no futuro. Para ser exato, não conhecemos a conexão existente entre o efeito químico relativos dos átomos em uma molécula composta e a posição mecânica desses átomos. Não sabemos também se, em tal molécula, dois átomos que afetam um ao outro diretamente, estão de fato situados próximos um do outro, mas não podemos negar, colocando o conceito de átomos físicos inteiramente de lado, que as propriedades químicas de um corpo são determinadas em particular pela coesão entre os elementos que o formam. Prosseguindo com a suposição de que existe em cada átomo químico apenas uma” quantidade limitada de força química [afinidade], com a qual ele participa da formação dos corpos, eu designaria a essa coesão química, ou a maneira de ligação mútua entre os átomos em um corpo composto, pelo nome de estrutura química. (Butlerov apud Rocke, 1981)

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111

A distinção ontológica entre o mundo físico e o mundo químico isenta Butlerov de

problemas acerca da realidade positiva da matéria. O arranjo aparente da matéria

(químico) poderia ser revelado pelas reações químicas, sem se fazer nenhum julgamento de

sua identidade com o arranjo verdadeiro (físico). As proposições de Butlerov sugerem que

seria possível investigar a estrutura química dos corpos sem se preocupar com questões até

então sem resposta.

Os principais historiadores que tiveram como objeto de pesquisa a teoria da

estrutura química concordam que “qualquer discussão sobre as origens da teoria estrutural

deve envolver concepções claras sobre o que se queria dizer com essa frase” (Russel apud

Rocke, 1981, p. 36). Butlerov definiu o termo estrutura química de diferentes maneiras

desde 1861 até 1864: (1) coesão mútua ou maneira de ligação mútua entre os átomos em

um composto, (2) a forma como os elementos químicos estão conectados, (3) distribuição

da ação de afinidade, (4) ordem da ação química mútua dos vários átomos elementares,

resultando na existência de partículas definidas, (5) seqüência de ação mútua – a forma da

ligação química mútua dos átomos em uma molécula. Rocke indica que Butlerov inventou

o termo estrutura química significando “a aplicação consistente das regras de valência na

construção sistemática de moléculas” (Rocke, 1981, p. 37).

O próprio Butlerov entendia que suas formulações sobre a estrutura química eram

pouco mais do que a idéia de atomicidade de Kekulé, ou seja, a idéia de estrutura química

surgiria diretamente a partir da noção de valência. Mesmo assim Butlerov colocou sua

estrutura química de maneira forte e convincente, reconduzindo o trabalho de muitos que já

haviam tomado outros rumos. Foram algumas críticas de Butlerov ao primeiro volume do

Lehrbuch que influenciaram Kekulé a redesenhar a estrutura do Benzeno.

Kekulé e Butlerov nunca disputaram pessoalmente a primazia da teoria estrutural;

esse foi um serviço abraçado com fervor por partidários de ambos. Do lado russo o

defensor mais contundente era um aluno de Butlerov, Vladimir Vasilyevich Markovnikov

(1838-1904). Pelo lado alemão o representante mais gabaritado na defesa da primazia de

Kekulé foi ninguém menos do que seu amigo pessoal, Julius Lothar Meyer (1830-1895).

Ao final das controvérsias, Butlerov admitia que Kekulé poderia ter tido as idéias de

ligação química antes de 1857 e que Couper havia planificado inicialmente as idéias de

uma fórmula química estrutural, mas reclamava que em suas formulações iniciais, Kekulé

não apresentou de forma consistente os princípios de uma teoria estrutural porque ainda

não tinha abandonado algumas doutrinas anteriores, como por exemplo o uso de tipos

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112

múltiplos e mistos, que facilmente conduzia a fórmulas diferentes para o mesmo composto.

Depois de 1868 o debate entre os dois se apagou, parecendo que ambos reconheciam sua

importância no cenário da teoria estrutural. Kekulé, entretanto, ainda teve de reunir forças

para debater novamente questões de primazia com Frankland e Kolbe.

O sonho de Kekulé iluminou o caminho da teoria estrutural, mas quando a chama

apagou ainda faltava uma boa parte até o fim da trilha. A plenitude do sonho estava na

metáfora colocada por ele: a cobra que persegue a própria cauda, o uroboro110 (figura

4.20).

FIGURA 4.20 – Uroboros conforme ilustração do livro The Psicology of C. G. Jung (Jacobi, 1973, p. 96)

Mesmo assim, com ou sem apelo ao imaginário, para descobrir mais precisamente

como seis átomos de carbono podem se manter numa cadeia fechada com valências duplas

alternadas e ainda sem se submeter a reações de adição, os químicos ainda iriam dar

algumas voltas.

110 Serpente que morde a própria cauda e simboliza um ciclo de evolução encerrado nela mesma. Esse símbolo contém ao mesmo tempo as idéias de movimento, de continuidade, de fecundidade e, em conseqüência, de eterno retorno. O uroboro (também chamado de oroboro ou ouroboro) foi utilizado na simbólica alquímica como emblema de traição da morte. A serpente que morde a própria cauda, que não para de girar sobre si mesma, que se encerra no seu próprio ciclo, evoca a roda da existência, como que condenada a jamais escapar de seu ciclo para se elevar a um nível superior: simboliza então o eterno retorno, o círculo indefinido dos renascimentos, a repetição contínua, que trai a predominância de um impulso fundamental de morte. (Chevalier e Gheerbrant, 1999).

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113

4.9.7 O Sonho Foi Somente o Começo

Em 1861, mesmo ano em que Butlerov iniciou a descrição das possibilidades de

uma ligação química, o químico escocês Alexander Crum Brown (1838-1922) começou a

usar fórmulas com linhas conectando símbolos dos elementos, assim como Couper havia

feito anteriormente. Crum Brown foi paulatinamente sofisticando tanto a forma de

descrição através dos desenhos, quanto corrigindo seus pesos atômicos, até uma

configuração bastante precisa e simplificada para diferentes compostos. Na notação de

Crum Brown, os símbolos dos elementos estão inscritos em círculos de onde partem tantas

linhas quantas forem os equivalentes desse elemento. Quando os equivalentes dos dois

elementos que pretendem a ligação são mutuamente satisfeitos, as linhas são unidas.

Conforme descritas pelo próprio, as fórmulas de Crum Brown procuravam descrever a

localização química dos átomos em lugar da localização física.

FIGURA 4.21 – Reação de nitrilação de um ácido carboxílico, conforme representada por Crum Brown (1867)

Outra tentativa de estabelecer fundamentos gráficos para a teoria estrutural foi feita

pelo professor do ensino secundário de Viena Josef Loschmidt (1821-1895), que divulgou

em um livro texto tais representações designadas como “fórmulas de constituição da

química orgânica em representação gráfica”. Inspirado primariamente nas representações

de Dalton, Loschmidt apresentava os átomos de carbono como círculos, os átomos de

hidrogênio como círculos menores, os átomos de oxigênio como dois círculos inscritos e o

nitrogênio como três círculos inscritos111. As representações de Loschmidt receberam

pouca atenção, inicialmente112 devido à circulação restrita da obra que fora editada pelo

111 A indicação da quantidade de círculos inscritos para cada elemento estava amparada na valência (oxigênio como bivalente e nitrogênio como trivalente). 112 Tomando o ano de 1861, a proposta de Loschmidt é praticamente tão eficiente quanto as salsichas de Kekulé. Loschmidt foi o primeiro a calcular a quantidade de partículas de uma determinada massa de

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114

próprio autor, e posteriormente porque não conseguia dar conta regularmente da

representação de todas as valências do carbono, principalmente para a molécula de

benzeno (figura 4.22).

FIGURA 4.22 – Representações de Loschmidt para diferentes compostos orgânicos: (A) (B) e (C) tentativas de representar o núcleo aromático, (D) Benzeno, (E) fenol, (F) metoxi benzeno, (G) anilina), (H) diaminobenzeno, (I) uma imida. (Ihde, 1980, p. 308)

Também conduzido pela vontade de formar representações estruturais e convencido

de que seria um caminho frutífero na solução dos problemas com as séries de compostos

homólogos113, August Wilhelm Hofmann (1818-1892) apresentou em 7 de abril de 1865,

durante a leitura de seu artigo sobre a força de combinação dos átomos na Royal College of

Chemistry, alguns modelos de bolas e varetas. Nesses modelos os átomos eram

representados pelas bolas e suas diferentes capacidades de combinação pelo número de

varetas que saíam das bolas.

(A) (B) (C)

FIGURA 4.23 – Modelo de bolas e bastões de Hoffman para descrever a estrutura do: (A) gás metano, (b) acetileno e (C) dicloro etano

matéria, utilizando preceitos da termodinâmica. O número de moléculas contidas em um centímetro cúbico de gás a determinada temperatura e pressão é conhecido como a constante de Loschmidt e vale 2,6 x 1019. 113 Como visto anteriormente, substâncias homólogas são aquelas que possuem a mesma função química, mas diferem pelo número de átomos de carbono da cadeia principal.

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115

Hofmann não utilizou seus modelos de bolas e bastões para tentar representar

estruturas fechadas; continuava em aberto a situação das valências no núcleo aromático do

Benzeno.

Mesmo com a difícil aceitação da proposta das duplas valências alternadas pela

comunidade científica, a forma cíclica hexagonal do benzeno estava amplamente

confirmada. A elucidação de como era o interior desse anel aromático, guiada sempre pela

determinação empírica de ausência de reações típicas de adição para esse composto, se

tornou um sub-programa de pesquisa provisório, no interior da química orgânica.

O alemão Adolf Claus (1840-1900), que havia sido aluno de Wöhler e Kolbe, era

um dos interessados em elucidar essa questão. Para ele cada átomo de carbono deveria

possuir três valências satisfeitas por três outros átomos de carbono. Uma outra alternativa

foi proposta pelo aluno de Kekulé, James Dewar (1842-1923), indicando que a situação

conforme a figura 4.24.

(A) (B) (C)

FIGURA 4.24 – Propostas de Claus (A e B) e Dewar (C) para saturação das valências do anel do benzeno (Ihde, 1984, p. 313)

Albert Ladenburg (1842-1911) verificou que a proposta de Kekulé indicaria a

existência de dois isômeros de substituição para a posição 1,2 do anel aromático,

dependendo de onde estivessem esses susbtituintes em relação à posição das três duplas

alternadas (figura 4.25). X

XX

X

FIGURA 4.25 – Fórmula estrutural plana dos isômeros aromáticos obtidos por substituição do benzeno nas posições 1,2, que foi refutada por Ladenburg

Uma vez que tais isômeros não eram conhecidos para nenhum composto aromático

di-substituído nas posições 1,2, Landenburg argumentou que cada átomo de carbono

deveria estar ligado a três outros e sugeriu três formas alternativas para as distribuições de

valência (Figura 4.26). A primeira proposta de Landenburg (4.26A) foi idêntica a uma das

propostas de Claus (4.26B). O prisma e a estrela são originais, sendo que o autor preferia o

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116

prisma, pois conseguia explicar em boa medida os isômeros di e tri-substituídos, mas era

ineficiente para o entendimento das valências para outras situações.

(A) (B) (C)

FIGURA 4.26 – Possibilidades de distribuição das valências dos carbonos na molécula do benzeno, segundo Landenburg (Ihde, 1984, p. 314)

O grande mérito do trabalho de Landenburg não está associado às suas estruturas,

particularmente simpáticas e parcialmente eficazes, mas sim ao interessante contra-

exemplo que fora revelado em relação à inexistência de isômeros 1,2 di-substituídos no

anel aromático. Esse mérito fez reavivar o Kekulé arquiteto que a partir de todas as

propostas de saturação de valência feitas até então delineou, em 1872, uma

complementação à sua proposição original, indicando um mecanismo oscilatório entre as

duplas valências do anel que fazia com que todas as posições dos seis átomos de carbono

fossem equivalentes, o que particularmente resolvia o problema da inexistência dos

isômeros. Segundo as proposições de Kekulé, os átomos na molécula oscilavam em torno

de uma situação de equilíbrio, colidindo constantemente com os átomos vizinhos. O

número dessas colisões por unidade de tempo era capaz de gerar uma força que, tanto

mantinha a molécula coesa, quanto era transformada numa valência uniforme para cada

átomo de carbono na estrutura.

As questões postas por Kekulé indicavam que as duas estruturas da figura 4.27

eram a situação inicial e final em cada intervalo de tempo proposto para a então chamada

situação de equilíbrio. A comunidade científica em geral não conseguiu entender o

significado estrutural das representações de Kekulé, até mesmo porquê ela tinha problemas

de consistência quando procurava se referir à dinâmica das colisões e do equilíbrio

conseqüente delas. Contudo, o saldo final é bastante positivo: as valências dos seis átomos

de carbono no anel benzênico são equivalentes. Mesmo assim, não há concordância quanto

à localização das valências duplas ou triplas nesse anel.

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117

FIGURA 4.27 – Reprodução de uma página do periódico alemão Annalen der Chemie und Pharmacie (n. 162, v. 88, 1872), onde Kekulé publicou as formas equivalentes do benzeno. (Ihde, 1984, p. 315)

Lothar Meyer também discute essas questões no mesmo ano e sugere algumas

soluções para o problema do lugar da quarta valência do carbono no benzeno. Ele

introduziu a idéia de que cada carbono nesse caso possui uma afinidade livre. Assim, a

estrutura do benzeno poderia ser representada conforme a figura 4.28A. Havia

concordância sobre a existência de somente 3 produtos di-substituídos. As representações

de Meyer ficaram conhecidas como fórmulas cêntricas e apesar de adormecidas logo após

sua divulgação, foram retomadas nove anos depois por Johann Friedrich Adolf von Baeyer

(1835-1917) e Henry Armstrong (1848-1937).

(A) (B) (C)

FIGURA 4.28 – Formas cêntricas para o Benzeno segundo Meyer (A), Baeyer (B) e Armstrong (C) (Ihde, 1984, p. 316)

A pesquisa sobre a natureza das ligações no benzeno chegou ao final da década de

1880 com a intenção de convergência. A maior vontade dos praticantes da recém nata

teoria estrutural era de buscar reconciliação entre as hipóteses existentes, a fim de obter

uma conjectura o mais abrangente possível. Alguns axiomas podem ser enunciados como a

base dessa busca final: (i) a estrutura é cíclica com cada carbono utilizando duas valências

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com outros dois carbonos contíguos, perfazendo um total de seis carbonos; (ii) a terceira

valência de cada carbono é utilizada com um elemento externo a esse anel; (iii) todas as

valências dos carbonos nessa estrutura são equivalentes. A questão ainda em aberto é:

como está situada a quarta valência de cada carbono desse ciclo? Duas respostas competem

lado a lado, de um lado as duplas alternadas de Kekulé, do outro as fórmulas cêntricas de

Meyer e seguidores. Em verdade, essa disputa não ficará totalmente esgotada até que a

físico-química ilumine o caminho da química orgânica já no século XX, contudo, uma

proposta mecanística interessante e a dilatação da noção de valência irão deixar o time de

Kekulé em boa vantagem.

O fato de os compostos aromáticos não sofrerem adição foi investigado por

Johannes Thiele (1865-1918) com uma estratégia bastante peculiar. Thiele conduziu uma

série de experimentos de adição em compostos de cadeia aberta com as características de

duplas alternadas dos anéis aromáticos. Thiele verificou que, em compostos como o

butadieno, a adição é feita nas posições 1,4, com a transposição da dupla ligação para os

carbonos 2,3 (figura 4.29).

FIGURA 4.29 – Equação da reação de adição 1,4 do bromo ao butabieno, indicando a transposição da dupla ligação para a posição 2,3

Para explicar esse efeito, Thiele sugeriu em 1899 que algumas ligações duplas

possuem valências não satisfeitas, ou uma ligação química potencial. Quando ligações

duplas estão em átomos de carbono adjacentes, as valências centrais parciais se tornam

ineficazes, e as posições mais externas (1,4) são as mais reativas (figura 4.30).

FIGURA 4.30 – Representação das valências parciais existentes na estrutura de dienos em carbonos adjacentes (Ihde, 1984, p. 317)

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Todas as valências parciais são adjacentes no anel do benzeno e por isso são

ineficazes. A molécula só participa de processos de adição sob condições extremas (figura

4.31).

FIGURA 4.31 – Noção de valências parciais aplicada à estrutura do benzeno. Na figura a representação a partir da fórmula cêntrica é interconvertida numa que considera as valências parciais do benzeno. (adaptado de Ihde, 1984, p. 317)

De acordo com Thiele, as valências parciais dos átomos adjacentes saturavam uns

aos outros nas moléculas dos dienos; isso explicava a atividade dos átomos nas posições 1

e 4. Esse conceito de valência parcial, introduzido por Thiele, conduziu a uma explicação

interessante do mecanismo da adição de dienos. Hoje se tem uma explicação bastante mais

elaborada, que só foi possível pela justaposição da físico-química com a química orgânica,

dois domínios ainda bastante independentes até o final do século XIX. A responsável pela

celebração dessa comunhão seria a energia: a energia de uma ligação química possui

relação direta com a afinidade química dos elementos e com suas interações. No entanto,

os conceitos decorrentes dessa relação foram constantemente colocados e modificados ao

longo do século XIX. Durante vários períodos dessa época, conceitos de afinidade foram

desenvolvidos no programa de pesquisa da termodinâmica e da termoquímica, indicando

diferentes modos de energia de formação e decomposição de compostos114.

As relações entre afinidade, valência, ligação química e energia só ficaram um

pouco mais claras quando a mecânica quântica estabeleceu qual seria a melhor forma para

se entender a essência do quimismo, estabelecendo relações quantitativas entre energia de

114 Na época em que a valência foi considerada como o número de unidades de afinidade de um átomo, o termo afinidade era entendido como a força presente em um átomo que mantinha o sistema químico agregado em uma molécula. Mesmo depois da apropriação dos conceitos termodinâmicos pela química orgânica, a afinidade permaneceu presente, disfarçada como o calor de formação dos compostos ou como o potencial de Gibbs. Desse modo, no contexto das modernas descrições de energia, a valência perde seu lugar para “novas categorias de afinidade” melhor quantificadas, como por exemplo a energia de formação, que pode medir a “afinidade” do oxigênio pelo hidrogênio na molécula da água. Mesmo assim, a noção de valência propiciou um caminho extremamente proveitoso.

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120

formação de uma substância e suas características estruturais. Para chegar nesse estágio, a

química precisou passar pelo caminho sinuoso das teorias fenomenológicas consideradas

anteriormente.

4.9.8 Valência Constante versus Valência Variável

Todos que assumiam a valência como sendo uma propriedade inerente a um

elemento e que consideravam-na como uma medida da habilidade de um elemento

combinar-se com outros, queriam determinar se todas as unidades de afinidade eram ou

não utilizadas totalmente durante uma combinação química. No início do desenvolvimento

da noção de valência, Frankland e Couper advogavam que poderia haver variações na

capacidade de combinação dos elementos, enquanto Kekulé e seus seguidores defenderam

a idéia de unidades de valência fixa.

Tendo chegado à descrição das características da valência através da teoria dos

tipos e posteriormente pelo estudo da combinação de não-metais com o hidrogênio, Kekulé

entendia que a valência deveria ser fixa e que possuía valor máximo quatro no caso dos

elementos carbono e o silício. Nesse caso a valência era uma qualidade intrínseca do

elemento que expressava quantitativamente a afinidade química e devia ser constante como

a massa atômica115. Durante a formação de qualquer composto, todas as unidades de

afinidade eram completamente utilizadas para formar ligações químicas; não havia

unidades de afinidades livres. No caso de alguns compostos, para os quais havia

discordância dos dados empíricos com suas assertivas, Kekulé engendrava um conjunto de

múltiplas ligações que acomodasse novamente suas hipóteses116. Ele assumia o mercúrio

como divalente, mas diante da produção de compostos nos quais o mercúrio se mostrava

monovalente, acomodava a valência fixa indicando que nesses casos o metal tinha uma de

suas valências saturadas por outro mercúrio (figura 4.32).

115 O que Kekulé assinalava para todos os elementos era o que se entende hoje como o menor estado de valência possível do elemento, e.g. 1 para os halogênios, 2 para os calcogênios e 3 para o nitrogênio e fósforo. 116 Esse tipo de argumentação ad hoc foi responsável pela antecipação de algumas soluções para questões estruturais muito particulares como o caso dos peróxidos (R–O–O–R) e das pontes de enxofre (R–S–S–R).

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121

Hg

Hg

Cl

Cl

FIGURA 4.32 – Formula racional do cloreto de mercúrio I, conforme assinalado por Kekulé, onde o mercúrio possui valência 1

Quando se verificava que em algumas substâncias o valor da valência era muito

maior do que o previsto anteriormente, Kekulé admitia que ocorria a formação de

compostos moleculares117.

TABELA 4.8 – Demonstração das acomodações conceituais feitas por Kekulé, a fim de contornar crises impostas por contra-exemplos à noção de valência fixa

Elemento Valência Prevista Originalmente

Substância encontrada como “contra-exemplo”

Composto molecular proposto por Kekulé para acomodar a valência original118

Fósforo (P) 3 PCl5 PCl3•Cl2

Nitrogênio (N) 3 NH4Cl NH3•HCl

Selênio (Se) 2 SeCl4 SeCl2•Cl2

Mesmo diante de soluções de contorno bastante perspicazes, a valência fixa foi

caindo em uma situação de “insolvência”, uma vez que o aumento dos contra-exemplos

obrigava exercícios mentais cada vez maiores. O caso do elemento ferro é um bom

exemplo para entender como estava cada vez mais perto a necessidade de se admitir

plenamente a variabilidade da valência.

Acreditava-se que o ferro era uma espécie tetravalente119, o que conduzia a

fórmulas de seus haletos como na figura 4.33.

117 Os compostos moleculares aqui querem denotar compostos complexos. 118 Observe-se que essa forma de representação é uma reaplicação da noção de radicais, agora com uma intenção favorável a Kekulé. Essa especulação também se demonstrou profícua nos dias de hoje, e.g. o entendimento do hidróxido de amônio, NH4OH, como NH3.H2O. 119 Essa crença estava relacionada a interpretação da fórmula empírica da pirita – FeS2.

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122

Fe Fe Cl

ClCl

Cl Fe Fe Cl

ClCl

Cl

Cl Cl

Cloreto férricoCloreto ferroso

FIGURA 4.33 – Representação das valências do ferro em haletos

Uma outra vertente de químicos, como Frankland e Wurtz, acreditava que a

valência do mesmo metal era 6. Esses químicos estenderam o conceito de ligações

múltiplas dos compostos orgânicos para os compostos inorgânicos, retomando, no entanto,

a idéia de mútua saturação de afinidades. O resultado dessa interpretação pode ser

observado na figura 4.34.

Fe Fe Cl

ClCl

Cl

Cl Cl

Cloreto férrico

FIGURA 4.34 – Representações da distribuição de valência em haletos do ferro

Os advogados da valência variável defendiam o consumo passo a passo do valor

máximo de valência que existia previamente em um elemento. O grau de consumo ou

saturação de afinidades de um elemento dependia da reação a qual estava submetido e da

natureza dos outros elementos que tomavam parte dela. O tempo e os contra-exemplos

oferecidos pelo aumento da atividade experimental em torno da química orgânica

demonstraram que a valência variável era o caminho mais legítimo a ser seguido. Ela

ofereceu a seus seguidores amplas possibilidades no estudo das manifestações de

reatividade dos elementos.

Ainda assim, questionamentos foram feitos quanto à validade de se admitir que a

valência seria uma qualidade preexistente de um elemento. Esses questionadores estavam

caminhando na direção de admitir que a valência podia expressar somente o número de

ligações químicas do elemento. As vozes dessa tendência foram acolhidas no campo da

teoria estrutural, uma vez que aí era interessante o exame das propriedades dos elementos

no interior do corpo químico, ou seja, do átomo ligado.

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123

A pesquisa em torno das propriedades químicas dos elementos não foi de forma

nenhuma colocada de lado pelo avanço da teoria estrutural, pelo contrário, o final do

século XIX seria cúmplice de mais um empreendimento com a orientação da noção de

valência, uma organização revolucionária dessas propriedades.

4.9.9 Valência e Periodicidade Química

Mendeleev trabalhou na obtenção de uma regularidade na periodicidade química

dos elementos durante aproximadamente quinze anos. Durante esse período ele estudou

sistematicamente todas as propriedades químicas mensuráveis e disponíveis na época:

isomorfismo, volume atômico, composição dos compostos e massa atômica. Quando

começou com seus estudos foi bastante influenciado pela Teoria dos Tipos de Gerhardt e

como essa teoria estava diretamente conectada com a noção de valência, essa também

passou a influenciar Mendeleev na escrita de seu livro Primcipios de Química (1868).

Antes da publicação da lei periódica, Meyer elaborou uma tabela em 1864 onde os

elementos eram arranjados em seis colunas de acordo com suas valências (tabela 4.9).

TABELA 4.9 – Parte da tabela elaborada por Meyer com os elementos organizados a partir de suas valências (Kuznetzov, 1970, p. 75)

v 4 3 2 1 1 2

Li Be

C N O F Na Mg

Si P S Cl K Ca

Quando iniciou sua classificação dos elementos químicos, Mendeleev também

elaborou tabelas organizando os elementos em relação a suas valências em óxidos e

haletos. No primeiro estágio de seu trabalho, o objetivo era comparar as características de

variação da massa atômica e do volume atômico com a valência; em seguida Mendeleev

passou a considerar o isomorfismo como uma propriedade central e começou a compará-la

também com a valência.

Mendeleev formulou três regras, sendo que as duas primeiras correlacionavam

diferentes formas dos compostos com suas valências. A primeira regra indicava que havia

uma relação entre os compostos nos quais os elementos apresentavam sua valência máxima

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e o hidrogênio ou o oxigênio, fazendo a representação EHn para o hidreto, onde n é a

valência máxima do elemento E com o hidrogênio, e EOm a representação do óxido, onde

m é a valência máxima do elemento E com o oxigênio. Pode-se escrever:

82 =+ mn

Exemplos que atendem a expressão acima são encontrados nos pares: CH4 e CO2;

SH2 e SO3. Outra forma utilizada por Mendeleev para revelar a regularidade a respeito do

número 8 na conjugação da valência dos elementos é mostrada na tabela 4.10.

TABELA 4.10 – Indicação de Mendeleev para a o fato significante da soma das valências dos elementos dos grupos superiores ser igual a 8 (Palmer, 1948, p. 29)

Grupo120 Valência no hidreto

Valência no óxido

Total numérico das duas valências

0 (18) O 0 ––

I (1) 1 1 ––

II (2) 2 2 ––

III (13) ? 3 ––

IV (14) 4 4 8

V (15) 3 5 8

VI (16) 2 6 8

VII (17) 1 7 8

A segunda regra trata de uma relação entre os hidretos de alguns compostos e os

oxiácidos de maior valência existentes na mesma série. Essa regra não vale para elementos

com valores extremos de valência (1 ou 7, por exemplo). A terceira regra expressa uma

relação entre a representação de compostos binários e moleculares (tabela 4.11).

TABELA 4.11 – Representação da regularidade observada por Mendeleev (segunda regra) entre o hidreto e o oxiácido de valência mais elevada, para elementos da mesma série

EH HEO4 NaH HClO4 EH2 H2EO4 MgH2 H2SO4 EH3 H2EO4 AlH3 H3PO4 EH4 H4EO4 SiH4 H4SiO4

120 Entre parênteses está a codificação atual do grupo segundo a IUPAC.

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125

Mesmo estando primeiramente sob a orientação da noção de valência fixa,

Mendeleev se voltou contra ela após os dilemas e controvérsias apresentados acerca da

identificação de sua natureza, se fixa ou variável. Mas por que essa ingratidão? As

investigações de Mendeleev estavam inicialmente concentradas tanto na determinação da

composição das substâncias, levando em consideração os limites técnicos e conceituais

existentes, quanto na determinação das relações entre essa composição e suas propriedades

a partir das reações características de uma série de compostos. Nesse contexto, ele se

tornou um opositor à teoria estrutural por considerá-la uma construção estática, que não

considerava a dinâmica do sistema químico. Essa mesma teoria estrutural que Mendeleev

recusava, possibilitou a reinterpretação da noção de valência, que passava a oscilar entre

uma medida invariável da quantidade de afinidades que um elemento possuía e uma

qualidade do elemento no seu estado combinado. Mendeleev não reconhecia e rejeitava

essa interpretação estrutural da valência. Ele preferia entendê-la como uma característica

inerente ao elemento que poderia ser aferida a partir da fórmula empírica de uma

substância.

Mendeleev trabalhava geralmente com compostos inorgânicos, e a partir deles

pretendia obter sempre um valor para a valência de um elemento, verificando a relação

entre sua massa atômica e o equivalente químico da substância na qual estava contido. Na

seqüência de seu trabalho, ele ficou convencido de que a valência variava e nenhuma

teoria, seja de composição ou estrutural, conseguia explicar essas variações.

Mendeleev subestimou as possibilidades de organização que a noção de valência,

mesmo oscilando em torno de questões ainda pouco claras, poderia fornecer à sua

classificação periódica. Então como ele administrou essa situação? Mesmo ciente da perda

que havia conferido ao seu trabalho, Mendeleev foi capaz de sintetizar os conceitos

estequiométricos de Proust e Dalton com as idéias de Bertholet e obter uma forma de

verificar as relações entre a capacidade de combinação de diversos elementos, a partir de

várias reações conhecidas.

Foi somente em novembro de 1870 que [Mendeleev] finalmente resolveu o problema da unificação, formulando o princípio básico de seu sistema: a distribuição natural dos elementos em grupos de acordo com seus pesos atômicos, corresponde à quantidade máxima de oxigênio que o elemento pode incorporar na forma de um óxido salino. (Dimitriev, 2001)

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126

Foi a partir das diferentes possibilidades reacionais dos elementos, expressa através

de relações estequiométricas, que ele coordenou a distribuição dos elementos em grupos

que expressavam características químicas similares.

No final do século XIX ficou claro que a posição de um elemento no sistema

periódico é determinada, não somente por sua massa atômica121, mas também pelo

conjunto de suas propriedades químicas, que por sua vez demonstram as potencialidades

de valência de um elemento.

4.10 A URGÊNCIA DA DILATAÇÃO DA NOÇÃO DE VALÊNCIA

A determinação em se manter a valência como uma propriedade constante e

característica de cada elemento, à semelhança da massa atômica, permitiu algumas

conjecturas bastante interessantes, conforme visto anteriormente. A noção de valência

promoveu o trabalho da química orgânica a um legítimo programa de pesquisa, que se

expandia com a ajuda da teoria estrutural. A fertilidade proporcionada pela noção de

valência fixa no canteiro da química orgânica não se repetiu do lado daqueles que

cultivavam a química inorgânica.

O defensor mais ilustre – e também o mais inflexível – da valência fixa era Kekulé.

Sua insistência já não mais podia ser suportada pela quantidade de evidências empíricas

contrárias. Mesmo assim ele procurava “soluções de contorno” que se traduzissem na

possibilidade de exprimir a estrutura de uma substância considerando-se valores de

valência fixa para os elementos. Talvez influenciado pela possibilidade observada a partir

do átomo de carbono, Kekulé admitia nas estruturas do ácido nítrico e do ácido sulfúrico

que os átomos de oxigênio também podiam se combinar formando cadeias (figura 4.35).

O N O O H

O S O O O HH

FIGURA 4.35 – Fórmulas racionais (estruturais) para o ácido nítrico e ácido sulfúrico, conforme proposta por Kekulé, assumindo-se a possibilidade do oxigênio formar cadeias (Kuznetzov, 1980, p. 86)

121 A ordenação da classificação periódica hoje obedece ao número de prótons (número atômico) que o elemento possui. Mesmo assim observa-se que, em relação a essa organização atual, a ordem originalmente proposta a partir das massas atômicas só é quebrada em três pares de elementos, a saber: Ar (39,9)/K (39,1); Co (58,9)/Ni (58,7); Te (127,6); I (126,9).

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Para Kekulé a valência era uma propriedade fundamental de um átomo, assim como

sua massa atômica, constante e invariável. Para garantir sua prevalência, Kekulé formulou

uma teoria explicitamente ad hoc para tentar salvar a noção de valência fixa, a

diferenciação entre compostos atômicos e compostos moleculares (Kuznetsov, 1980, p.

86). Nessa proposta apenas os compostos atômicos poderiam ser considerados como

moléculas verdadeiras, nas quais todos os elementos estão associados por saturação de suas

afinidades. O composto atômico é aquele em que o elemento se manifesta com sua

valência mais comum, por exemplo: amônia NH3 e tricloreto de fósforo PCl3. Já nos

compostos moleculares, a ligação não era estabelecida entre átomos separados, mas entre

moléculas. Essas moléculas agregadas seriam formadas como resultado da conservação da

força de atração de um átomo em relação ao outro durante a formação de compostos

atômicos. A formação dos compostos moleculares correspondia a uma interrupção no

mecanismo natural de formação de compostos atômicos, que proporcionaria a formação de

grupos de átomos com alguma estabilidade. Entretanto, a estrutura dos compostos

moleculares não podia ser determinada por fórmulas e esses compostos possuíam

estabilidade menor do que os compostos atômicos122. Na sua proposta de compostos

atômicos e moleculares, Kekulé parecia retomar questões já há muito adormecidas, como a

questão dos radicais, uma vez que para ele o PCl5 seria uma associação entre o tricloreto e

o cloro (PCl5 = PCl3 • Cl2).

Na defesa da valência variável encontrava-se Wurtz, que em 1864 já considerava

que, a partir da lei das proporções múltiplas, devia-se considerar que a capacidade de

combinação dos elementos era consumida gradualmente até atingir um valor limite que não

poderia ser ultrapassado (Kuznetsov, 1980, p. 87). Para Wurtz, o que deveria ser

perseguido era a característica de valência de um elemento num determinado composto,

essa característica desse elemento não poderia ser transportada para outros compostos que

o contivesse. A esse tipo de característica, Wurtz denomina “capacidade de combinação

factual” (ibidem, p. 88). Desse modo, a valência de um elemento é algo relativo à

substância na qual o elemento toma parte. Wurtz indicou a necessidade de se distinguir

entre afinidade, a força que se manifesta na interação entre átomos, e valência de um

122 Note-se que Kekulé começa a vincular as características estruturais de um composto à sua estabilidade. Sabia-se que PCl5 – composto molecular, segundo Kekulé – não era encontrado no estado gasoso. Desse modo o PCl3 – composto atômico, ou seja, mais estável – prevalecia no estado gasoso. Em verdade, atualmente se considera que existe o equilíbrio PCl5 ⇔ PCl3 + Cl2. Entretanto, havia anomalias que permaneciam sem solução a partir do modelo proposto por Kekulé, pois, por exemplo, sabia-se também que o PF5, composto análogo ao PCl5, podia ser encontrado no estado gasoso.

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elemento, a força de um átomo para se combinar ou substituir um certo número de átomos

de um outro elemento. A eloqüência de Wurtz e seus exemplos de variabilidade na

valência de muitos elementos (eg. ICl e ICl3) mantinham aceso o debate. Mesmo assim, ele

considerava que o cloro possuía valência fixa e admitia, à semelhança de Kekulé, a

possibilidade de cadeias de átomos de oxigênio para elaborar as fórmulas racionais dos

anidridos do cloro (figura 4.36).

O O O O O ClCl

FIGURA 4.36 – Fórmula racional para o Cl2O5, conforme proposta por Wurtz (Kuznetsov, 1980, p. 90)

Para alguns adeptos da valência variável, como o sueco Christian Wilhelm

Blomstrand (1826-1897), uma questão importante era entender quais seriam os limites de

variabilidade da valência para os diferentes elementos. Ao procurar estabelecer esses

limites, Blomstrand propõe de forma bastante correta a estrutura dos oxiácidos, entendendo

que o não metal característico de cada um deveria ocupar o lugar central nessa estrutura.

N O HO

OS

O

O

H

H

O

O

FIGURA 4.37 – Estruturas propostas por W. Blomstrand para o ácido nítrico e para o ácido sulfúrico (Kuznetsov, 1980, p. 91)

Blomstrand justifica o arranjo das estruturas da figura 4.37 a partir do “caráter

eletroquímico” (Kuznetsov, 1980, p. 91) que os elementos apresentam. Nesse caso, um

elemento frente a elementos positivos apresentaria uma valência e frente a elementos

negativos apresentaria outra.

As propostas estruturais de Blomstrand levam Wurtz a reconsiderar suas

formulações iniciais com cadeias de átomos de oxigênio e procurar francamente nas

fórmulas estruturais o caminho para solucionar as questões que definitivamente poderiam

enterrar a valência fixa.

Apesar de sua eficiente descrição acerca dos oxiácidos, o campo de trabalho

principal de Blomstrand tratava dos sais de cobalto, mais especificamente o lúteo (cloreto

de hexaminocobalto (III)). Na tentativa de explicar a estrutura desse sal, tanto Blomstrand

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na Suécia, quanto Sophus Mads Jörgensen (1837-1914) na Dinamarca procuraram

descrever a estrutura dos sais de cobalto em forma de cadeia.

Co NH3 NH3 NH3 NH3 Cl

NH3

NH3

Cl

Cl

FIGURA 4.38 – Representação estrutural em "cadeia" para o cloreto de hexamin-cobalto III, conforme proposta pela teoria de Blomstrand-Jörgensen (Ihde, 1984, p. 382)

Apesar de terem sido conduzidas em anos diferentes123, as propostas de notação dos

sais de cobalto ficaram conhecidas como a teoria de Blomstrand-Jörgensen. Nessa teoria o

nitrogênio atuaria, assim como o átomo de carbono, com possibilidade de formar cadeias,

onde o NH3 se comportava como o radical metileno (CH2) dos compostos orgânicos.

A teoria das cadeias foi duramente criticada por Medeleev. Ele considerava que

uma estrutura em cadeias proporcionaria compostos bastante instáveis, característica não

observada nesses sais. Para Mendeleev o metal deveria ocupar a posição central do arranjo

estrutural. A possibilidade de o metal continuar formando ligações com outros elementos

era explicada pela possibilidade de existir uma quantidade de “afinidade residual”, que

continuaria dando ao elemento essa possibilidade.

O arranjo teórico mais completo a respeito da estrutura dos compostos inorgânicos

foi trazido à tona pelo alemão Alfred Werner (1866-1919). A proposta de Werner colocava

no centro do arranjo espacial o metal, funcionando como o coordenador das ligações a

serem estabelecidas com os grupos – chamados de ligantes – que estariam dispostos ao

redor desse átomo central. Para Werner, o arranjo no espaço se dava considerando duas

esferas, a primeira contendo o átomo central e os ligantes, a segunda contendo os

elementos mais distantes, ligados à primeira esfera. No lúteo, por exemplo, a configuração

das duas esferas estaria colocada, conforme a figura 4.39.

123 Blomstrand formulou pela primeira vez uma estrutura em cadeia em 1869. Jörgensen, em 1884, ampliou a noção de Blomstrand para outros sais.

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[ ]EsferaSegunda

3

EsferaPrimeira

63 Cl)Co(NH

FIGURA 4.39 – Designação da primeira e segunda esfera no cloreto de hexaminocobalto (III), conforme definido por Werner (Kuznetsov, 1980, p. 103)

Tão importante quanto a definição da posição central do elemento responsável pela

coordenação do conjunto estrutural – denominado complexo – foi a criação de um novo

conceito, o de número de coordenação, que afastava em grande parte as dificuldades

implicadas pela noção de valência. Num radical complexo, o número de coordenação é o

número de grupos que são coordenados pelo elemento central, de tal modo que, se o

número de coordenação de um átomo é seis, esse átomo pode coordenar seis grupos.

Alguns elementos possuem número de coordenação fixos, outros possuem número de

coordenação variável.

Para Werner, cada átomo podia ser considerado como um ponto material que ocupa

um determinado volume no espaço. O número de grupos que um átomo pode coordenar

depende desse volume, de tal forma que átomos menos volumosos coordenam menos

grupos do que átomos maiores. Na verdade, o número de relações entre o átomo central e

os grupos ligantes depende do volume do átomo central e dos ligantes. Werner sabia que

para o mesmo elemento, o volume do átomo central dependia de sua valência124. Não havia

como se libertar totalmente dela.

Com isso Werner procurou estabelecer o mais claramente possível a diferença entre

o número de coordenação e a valência.

A valência expressa o número máximo de átomos monovalentes que podem se unir diretamente a um dado átomo, sem a participação de outros átomos elementares. O número de coordenação indica o número máximo de átomos ou grupos que podem ser ligados diretamente com um dado átomo. (Kuznetsov, 1980, p. 105)

Com o número de coordenação, Werner procurou delinear um conceito tão

abrangente e importante para a química inorgânica, quanto a valência havia sido para a

química inorgânica.

124 O número de coordenação da platina tetravalente é 6, enquanto da platina divalente é 4. Quando se indicava o número de coordenação de um metal, era necessário especificar também sua valência. Um dado interessante, conforme apresentado pelo próprio Werner, é que todos os elementos possuem números de coordenação diferentes de suas valências, exceto o carbono, que possui valência e número de coordenação igual a 4.

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O número de coordenação, na teoria estrutural dos compostos complexos, que são formados pela combinação de várias moléculas simples, é tão importante quanto a valência na teoria estrutural dos compostos simples, e dos compostos de carbono em particular. (Kuznetsov, 1980, p. 105)

A teoria de valência existente era considerada por Werner como insuficiente e

inaplicável aos compostos complexos. Na verdade essa inadequação da valência aos

complexos já havia sido apontada anteriormente, uma vez que Mendeleev já havia

constatado que mesmo saturada a capacidade máxima de combinação de um elemento,

ainda assim ele seria capaz de participar da construção de moléculas complexas. A

próxima etapa de Werner deveria ser a de refinar a noção de valência a fim de melhor

acomodá-la ao mundo dos complexos.

A possibilidade de formação dos complexos deixava claro que de alguma forma os

compostos chamados de primeira ordem125 – por exemplo: SO3, H2O, AuCl3, KCl, PtCl4 –

não estão completamente saturados, uma vez que ainda possuem afinidades livres para

formar compostos de ordem maior, como por exemplo os complexos. Werner conduziu a

idéia de que essas afinidades, ainda livres nos compostos de primeira ordem, podiam ser

entendidas como forças oriundas de valências auxiliares – para diferenciar das forças

decorrentes da valência principal –, as quais eram utilizadas para formar os compostos de

primeira ordem. As tentativas para encontrar diferenças na natureza das forças das

valências auxiliares e principais foram em vão. No ano em que Werner publicou sua teoria

da valência principal e auxiliar, o elétron foi descoberto (1897). Werner foi um dos

primeiros a tentar utilizar elétrons na descrição dos problemas relacionados à valência dos

elementos.

4.11 VALÊNCIA – UMA IDÉIA NÃO CONCLUÍDA

Ao final dessa história falta perguntar: o que é valência? Reunindo afinidade

química e valência no mesmo escopo, uma resposta possível é que a valência se constitui

na permanente, tumultuada, desordenada, controversa e não completada tentativa de

entender como a natureza organiza e transforma seus constituintes. Mesmo entre

acadêmicos ou especialistas, a utilização do termo valência se refere ao íntimo da atividade

125 O composto era dito de primeira ordem se possuía estabilidade e se nele podia ser encontrado o elemento em sua condição máxima de valência.

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química. No imaginário daqueles que atravessaram uma graduação em química ou áreas

afins, falar de valência é particularmente falar do poder – que pode ser traduzido

cientificamente das mais variadas formas – que faz com que um átomo assuma

determinada “atitude química” frente a outro.

A busca pelas origens da valência na afinidade química revela que esse

empreendimento sempre foi o pano de fundo das atividades da química, mesmo antes de

ela se constituir como um domínio científico ou disciplinar de estudo. A afinidade emerge

dos frascos e cadinhos alquímicos para procurar seu lugar nas prateleiras dos laboratórios

das universidades.

Nas origens, essa força, essa afinidade, essa capacidade de combinação, nos foi

permitida por um físico. Talvez, sem a questão 31 de Newton, ainda estivéssemos

procurando descrever a natureza dessa ação singular entre os corpos químicos por meio de

uma força que age inversamente ao quadrado da distância. É bem verdade que essa

afinidade se manteve, quase sempre, cautelosamente assombrada pelas descrições físicas,

como era de se esperar da criatura que se afasta do criador.

A afinidade, ambiciosa, preteriu os átomos de Dalton e preferiu o caminho dos

equivalentes químicos. A disputa entre atomistas e equivalentistas não enfraqueceu a

afinidade, mas colocou-a em um estado latente. Seja qual fosse a opinião a respeito do

modo de constituição do corpo químico, haveria de existir uma afinidade química nele,

responsável por seu comportamento químico.

As diferentes invenções realizadas para dar conta de como esse corpo químico

existia – radicais, núcleos e tipos –, precipitavam a existência de uma certa ordem nesse

corpo químico. A forma como esse corpo químico se organiza depende, obviamente, da

afinidade que seus componentes possuem, os componentes, por sua vez, se valem de tipos

de afinidade diferentes para se combinarem e para se manterem combinados. A valência é

resultado disso, não somente da percepção de uma regularidade na combinação dos

elementos, mas principalmente na determinação de transpor essa regularidade para outros

elementos, tornando-a uma propriedade geral dos corpos elementares e um conceito chave

para a criação da teoria estrutural.

Valência e afinidade não são a mesma coisa. A valência é um produto da afinidade

de um elemento126. As descrições da valência como, por exemplo, poder, capacidade e

126 A afinidade química derivou outros conceitos e idéias como os relativos à termodinâmica/termoquímica e ao equilíbrio químico.

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força refletem características ontológicas que foram herdadas da afinidade química. No

entanto, o caráter abrangente tomado pela noção de valência imprimia o traço de uma

personalidade múltipla, ao que sua própria utilização e prática orientou-a para uma nova

marca ontológica, caracterizada, principalmente, por sua distinção como grau. Essa

graduação exigiu que números fossem utilizados como descritores de uma quantidade de

valência. Essa atribuição foi herdada da teoria dos tipos, outro argumento fundador da

noção clássica de valência.

Apesar de, a partir dos tipos, se poder perceber uma certa ordem intrínseca do

arranjo do corpo químico, essa característica não foi explorada naquele momento, ela só

foi explorada a partir da valência. Graduar a valência permitia antes de tudo classificar os

elementos em termos de suas potencialidades de combinação, mas também permitia

distinguir características diferentes dos componentes do corpo químico. A unidade de

valência não pode ser medida de forma independente, mas somente em relação a uma outra

unidade, ela é uma grandeza relacional. A expectativa inicial era a de que a valência fosse

uma propriedade invariante e regular como cada tipo, a fim de se tornar mais uma marca

especial e única de cada constituinte da natureza, mas não foi bem assim, pois um mesmo

elemento apresentava diferentes graus de valência.

A controvérsia acerca da valência fixa e da valência variável é uma mostra de como

proposições ad hoc são usadas para tentar salvar modelos explicativos que são contrariados

por novas evidências empíricas, e de como esse tipo de disputa pode ser particularmente

fecunda para o progresso de um determinado domínio do conhecimento.

A instabilidade da idéia de valência fixa e a sua disputa com a valência variável

proporcionaram a criação da ligação química, propriedade versátil, variável, conseqüência

da ação química e concebida como uma causa da valência. A ligação química podia ser

formada durante a combinação, ela pertencia ao corpo químico mas era externa ao

elemento que participava dele. A parceria entre ligação química e valência foi irreversível,

marca do final do século XIX e da criação da teoria estrutural. Passa-se a ter possibilidade

de representar, simbolizar a valência, no entanto, isso tudo só é conseguido através do uso

de fórmulas empíricas corretas, isto é, precisamos saber quantas e quais são as espécies que

participam dessa representação.

Outro esquema conceitual extremamente valioso para a consolidação e para a

crítica da noção clássica de valência foi o sistema de classificação periódica. A valência foi

– e talvez continue sendo ainda que nem todos percebam – a propriedade periódica

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essencial, além de um método conveniente de classificação, que poderia ser assinalada

como uma característica natural dos elementos.

Na conclusão desse discurso histórico, a noção de valência emerge como uma idéia

controversa e disputada, responsável pela organização de conceitos fundamentais a partir

do século XIX. Num mundo ainda sem elétrons, ela reforçou a busca por fórmulas

empíricas corretas e, quando estas ficaram prontas, permitiu o salto para um olhar no

interior do que elas representavam. O horizonte de pesquisa daqueles que fizeram uso dela

foi ampliado, não porque a valência tivesse trazido uma resposta direta para suas

perguntas, mas porque havia criado dúvidas necessárias.

As formas de representação e de classificação que foram herdadas da utilização da

noção clássica de valência permanecem vivas na atividade do químico e no ensino de

química. Quando o mundo dos elétrons cobriu o corpo químico com equações e

indeterminações, a valência quase ficou reduzida ao lugar onde esses elétrons, os novos

protagonistas da ação química, realizam as modificações da matéria. Mesmo assim, a

valente valência não perde a pose, seja na Teoria Eletrônica da Valência, na Teoria da

Ligação de Valência, na eletrovalência ou na covalência. A despeito de seu caráter

controverso e profundamente atraente, permanece no âmago da Química.