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Dia Internacional dos Monumentos e Sítios – Univ. C oimbra, 18 de Abril de 2009

O PATRIMÓNIO COMO OPORTUNIDADE E DESÍGNIO. CIÊNCIA, SOCIEDADE E CULTURA

CONFERÊNCIA 1: PATRIMÓNIO E HISTÓRIA DA ARTE

Professor Catedrático Vítor Serrão, IHA/FLUL

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A História da Arte em Portugal e a consciência do e studo e salvaguarda

do Património histórico-cultural.

É lugar comum e verdade indesmentida dizer-se que o estado do Património no nosso

país suscita cuidados e impõe medidas cautelares. São muitos os exemplos de Património

histórico-artístico – seja construído (a arquitectura: religiosa, militar, aristocrática, industrial,

civil), móvel (o equipamento: talha dourada, azulejo, pintura, paramentaria, escultura,

ourivesaria, mobiliário, etc), arqueológico ou, ainda, incorpóreo (imaterial) -- que vivem

tempos de ameaça, roubo, descuido, desmemória, delapidação pura e simples... E,

todavia, é ele que melhor define, juntamente com a língua portuguesa, as especificidades

culturais de um território como o nosso, e justifica, por isso, um programa de salvaguarda

em globalidade a partir dos princípios da Gestão Integrada do Património.

A destruição consentida do Património nacional, fruto de políticas descoordenadas,

insensibilidade crescente, valores de auto-menorização e falta de prioridades no esforço

de salvaguarda – sacrificado a altos interesses imobiliários e especulativos – avisa-nos

para o imperativo de desenvolver uma carta de direitos e deveres de cidadania no campo

da fruição de bens que são, antes de tudo, pertença das comunidades. Esse é um dos

imperativos de uma Democracia avançada. Na nova definição de Património sem

fronteiras cabe o entendimento artístico das unidades criadas pelas comunidades ao longo

de séculos (ontem, hoje, amanhã...), atento à especificidade de peças (monumentos,

objectos, conjuntos e espaços) e que só numa perspectiva de globalidade, que a História

da Arte assegura, pode ser integralmente preservada. Nunca é de esquecer que o

Património é testemunho de identidade, valor de inesgotável poder encantatório, mas

também é frágil e perecível e exige esforços congregados das tutelas e pessoas no

sentido da sua cabal preservação. A consciência da salvaguarda do Património artístico,

cultural e ambiental impõe um esforço pluri-disciplinar que visa congregar a comunidade

científica no seu conjunto (arquitectos, arqueólogos, técnicos de conservação e restauro,

etnógrafos, museólogos, bibliotecários-arquivistas, autarcas, galeristas, historiadores, etc)

e ganha ênfase no trabalho da História da Arte, disciplina cuja metodologia no estudo de

monumentos, espaços e obras a torna ponto de encontro fundamental para se reforçar a

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CONFERÊNCIA 1: PATRIMÓNIO E HISTÓRIA DA ARTE

Professor Catedrático Vítor Serrão, IHA/FLUL

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imperiosidade da defesa desses valores-memória e o imperativo político de estratégias de

análise, formação profissional, salvaguarda e fruição adequados às necessidades do

nosso tempo. Esta disciplina, cuja emancipação no quadro científico é uma realidade, está

apta a intervir neste processo de reabilitação, com a metodologia em que se alicerça e

com os seus instrumentos de análise dos conjuntos e obras de arte. É certo que não se

defende aquilo que se desconhece; por isso, a História da Arte vocaciona-se para activar

projectos integrados de estudo, inventário, salvaguarda e redignificação do Património com

outros técnicos da História, Conservação e Restauro, Museologia, Arqueologia, Turismo

Cultural, Arquivística, Antropologia, Arquitectura e Urbanismo, etc. Cada vez mais o

investimento nesta área (num país pobre como o nosso) assume-se mais-valia social.

A História da Arte portuguesa, depois de viver longa etapa de letargia, aprendeu a agir

com visão e prática interdisciplinares, ancorada em três princípios fundamentais, ao

assumir: -- a) uma doutrina e uma base teórica o mais possível alargada; -- b) uma

metodologia e uma prática de contornos pluri-disciplinares; -- c) uma ética e uma base de

princípios morais em nome da salvaguarda do património. A História da Arte tem vindo a

aprofundar, assim, algumas prioridades, como sejam:

1 -- identificar sem preconceito o seu objecto de estudo;

2 -- contextualizar, datar e revalorizar as obras em estudo;

3 -- definir o seu diagnóstico de conservação, prevenindo eventuais desgastes e perdas;

4 -- intervir no processo de restauro das obras de arte, quando tal é imperativo, formando

técnicos habilitados (IHAs e escolas do Estado, UCP, FRESS-ESAD, etc);

5 -- inventariar as existências com registos em globalidade;

6 -- investigar de modo sistemático as fontes documentais e arquivísticas;

7 -- analisar as dinâmicas trans-contextuais e trans-memoriais das obras de arte;

8 – estudar as realidades artísticas num alargado contexto que inclui os territórios da

lusofonia e (sem preconceitos redutores) do antigo Império;

9 -- divulgar e revalorizar as obras perante os agentes da sociedade e o público em geral;

10 -- promover um turismo cultural qualificado, alargando alternativas de empregabilidade;

11 -- recuperar obras extraviadas e devolvê-las às comunidades de origem;

12 -- combater os especuladores de espaços históricos e os traficantes de obras de arte;

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13 -- promover verdadeiras políticas de Estado neste sector, reforçando meios técnico-

financeiros e poder dialogal entre serviços a nível do Ministério da Cultura e áreas afins.

Em suma: a História da Arte tem vindo a entender o Património como corpo vivo, com

características vivenciais plurais, dialécticas e transformadoras, vendo-o como testemunho

artístico contemporâneo na medida em que afecta o olhar do presente e constitui um

garante de legitimação de identidades. Tornou-se actuante, útil, operativa, socialmente

comprometida, apta a dinamizar uma pesquisa de sensibilidades que visa o entendimento

globalizante (estético, histórico, ideológico, contextual, etc) das obras de arte particulares

à luz da compreensão dos seus «’pontos de vista’ intrínsecos» (como disse Aby Warburg),

ou seja, as condições culturais, políticas, socio-económicas, laborais, perdurações,

continuidades, ideologias, etc, que permitem o entendimento iconológico das obras.29)

Recordamos as circunstâncias físicas em que as obras de arte se apresentam com um

renovado poder imagético, que as habilita a serem revalorizadas, definidas em âmbito

trans-contextual, capazes de renovar o olhar de outros públicos que no tempo se

sucedem, e com valor distintivo em termos de documento histórico, de fruição presente e à

luz do mercado das artes. Por isso mesmo, importa saber distinguir as categorias

operativas que podem servir de base ao historiador de arte – a Iconografia, a Icononímia, a

Iconologia – e saber intuír os tipos de comportamento das imagens, sendo certo que elas

são sempre geradoras de actos de Iconoclastia e de Iconofilia, numa eterna relação de

dinâmicas sociais e de fascínios permanentemente renovados.

Damos destaque a quatro conceitos operativos que se consideram fundamentais para

bom exercício científico da nossa disciplina:

1. o conceito de Trans-Contextualidade, ou seja (segundo Arthur C. Danto), o estudo do

diálogo fecundo com as obras em atenção ao seu percurso perene de vivências, gerador

de novos olhares, e ao seu percurso de inesgotabilidade de afectos; ajuda a lembrar como

o património artístico já foi em algum momento contemporâneo, isto é, possui capacidades

dialécticas que o renovam como objecto de debates, fascínio, razão de crítica e discussão

pedagógica, mesmo que a sua função primitiva (religiosa, política, festiva, militar ou outra)

possa ter sido radicalmente alterada com os tempos. As obras que formam o Património

abrem-se sempre, quando interrogadas em plenitude, a renovadas contemplações.

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2. o conceito de Micro-História da Arte, ou seja, a prescrutação integrada (recorrendo a C.

Ginsburg) das existências na sua dimensão periférica ou regional; o conceito interessa à

revalorização do Património ao atentar na valência específica da arte de âmbito regional à

luz da noção relativizada de periferismo, alargando a esfera dos patrimónios a preservar à

dimensão muitas vezes desvalorizada das micro-produções artísticas.

3. o conceito de Cripto-História da Arte, ou seja, o reforço do testemunho memorial com

recurso à 'obra de arte morta', e com novo ênfase ao papel do 'fragmento' e do 'indício'

como parcela de unidades perdidas; o conceito ajuda a alargar a visão do Património

remanescente aduzindo-lhe a memória e o testemunho daquele que, devido a cataclismos

ou à incúria, já desapareceu – sem que tenha deixado de fazer parte integrante de um

tecido que urge reconstituír como testemunho integral de identidades. É por isso que o

fragmento (a obra parcialmente destruída, ou deslocada, ou refeita) é uma fonte essencial

de reconstituição das correntes evolutivas do património e das artes, assume hoje uma

grande importância para uma política de gestão integrada e integral do nosso Património.

4. e o conceito de programa artístico, objecto último da História da Arte (a partir da lição de

Warburg), ou seja, o enfoque iconológico das obras à luz dos seus constrangimentos

profundos (sociais, estéticos, políticos, afectivos, simbólicos, etc) que geram o acto criativo

e se expressam na sua imagem final, espécie de jogo de espelhos marcada por múltiplos

comprometimentos ideológicos e fios de comunicabilidade.

Se o Património artístico só ganha pleno sentido se integrado em visão global, a

História da Arte pode ajudar a revalorizar os espaços e obras ditos «menores» e justificar a

sua preservação, pois só assim se entende a caracterização dos mercados, as flutuações

de gosto dos artistas e clientelas, o investimento ideológico dos mercados, os 'ciclos

estilísticos' – em suma, tudo o que faz Património e caracteriza o sentido patrimonial de

uma região nas suas especificidades sui generis. Uma política de gestão integrada do

Património Cultural nacional -- ou de uma mais vasta dimensão espacial, como sucede

com a arte do antigo Império português se for vista como uma prioridade de estudos --

deverá assentar no reforço da História da Arte, esteio fundamental de alargamento de uma

consciência democrática de cidadania. Os inimigos são os de sempre: o estado da

ignorância, a desonestidade, o preconceito redutor no olhar para a realidade identitária do

Património, a desmemória, a especulação…

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Quanto trabalho existe neste campo em Portugal -- envolve os historiadores de arte,

dos mais velhos às novas gerações de estudiosos, os conservadores-restauradores, os

arqueólogos, os museólogos, os arquitectos -- na percepção dos mecanismos de gosto e

primado estético que se fixam, época a época, e geram património ! É imperioso não

esquecermos que é ao nível do saber ver em globalidade e sem preconceito que tudo se

inicia e que a consciência da salvaguarda do Património se reforça -- não mais como a

'parcela morta' no campo da Cultura (dicotomizada face a 'outra parcela', a 'Cultura dos

agentes contemporâneos', como erradamente se pensa tantas vezes), mas como um

corpo único, coerente e vivo, que impõe estudo e cuidados inadiáveis.

Vitor Serrão (IHA/FLUL) -- Historiador de Arte