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P rocuro não olhar muito para o topo da montanha. Olho fixo apenas alguns metros à frente de minha roda dianteira. Concentro-me para não perder a linha ideal pedalando a trilha, junto toda a minha energia e a coloco em minhas pernas e, como em um transe, pedalo montanha acima; o ritmo da pedalada é uma combinação entre respiração, batidas do coração e o movimento dos pedais. Alguns metros de ascensão e as coxas 80 Rev.sto BiCicleta começam a queimar. Eu não me impor- to, ignoro, faço caretas e continuo no meu ritmo, quase curtindo as dores. Estou chegando, agora é a vez de o pulmão exigir mais oxigênio, a respiração ficar mais ofegante, mas consigo chegar ao topo com um ritmo controlado. Não sei o que mais gosto ao subir montanhas. Será a vista do topo? Será o desafio da pedalada em si! Serão essas dores! Acho que é uma combinação de respostas. Gosto mais de subir que de descer pedalando as montanhas. Alguns me disseram que tenho tendências masoquistas. Será! Esse gosto pelas montanhas me fez pedalar pelas maiores cadeias montanhosas de nosso planeta, da cordilheira dos Andes ao Himalaia e os Alpes não poderiam faltar em minha coleção. Atravessar os Alpes de bicicleta não é apenas um desafio geográfico, é sobretudo um desafio físico e psicológi- co.

A história do Transalpes · bem-vindo e acaba descontraindo os participantes. Começamos a pedalada às 8 h 30 mino Em minha opinião, o primeiro dia é sempre o mais puxado, pois

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Page 1: A história do Transalpes · bem-vindo e acaba descontraindo os participantes. Começamos a pedalada às 8 h 30 mino Em minha opinião, o primeiro dia é sempre o mais puxado, pois

Procuro não olhar muito para o topoda montanha. Olho fixo apenas

alguns metros à frente de minha rodadianteira. Concentro-me para nãoperder a linha ideal pedalando a trilha,junto toda a minha energia e a coloco emminhas pernas e, como em um transe,pedalo montanha acima; o ritmo dapedalada é uma combinação entrerespiração, batidas do coração e omovimento dos pedais.

Alguns metros de ascensão e as coxas

80 Rev.sto BiCicleta

começam a queimar. Eu não me impor-to, ignoro, faço caretas e continuo nomeu ritmo, quase curtindo as dores.Estou chegando, agora é a vez de opulmão exigir mais oxigênio, a respiraçãoficar mais ofegante, mas consigo chegarao topo com um ritmo controlado.

Não sei o que mais gosto ao subirmontanhas. Será a vista do topo? Será odesafio da pedalada em si! Serão essasdores! Acho que é uma combinação derespostas. Gosto mais de subir que de

descer pedalando as montanhas. Algunsjá me disseram que tenho tendênciasmasoquistas. Será! Esse gosto pelasmontanhas me fez pedalar pelasmaiores cadeias montanhosas de nossoplaneta, da cordilheira dos Andes aoHimalaia e os Alpes não poderiam faltarem minha coleção.

Atravessar os Alpes de bicicleta não éapenas um desafio geográfico, ésobretudo um desafio físico e psicológi-co.

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A história do Transalpes

Moro a alguns anos no sul da Alema-nha e no quintal de casa tenho os Alpes.Para o meu trabalho de bike guideguiando ciclistas mountain bikers pelosAlpes, a cidade de Munique é o lugarideal para se viver.

Quando ainda morava no Brasil epedalava por serras ou atravessava osAndes, já lia ou ouvia falar a respeito dastravessias de bicicletas pelos Alpes em

"rnrnhas cicloviagens e encontros comcicloturistas europeus. A partir deentão, atravessar os Alpes de bicicletafoi um dos meus sonhos, realizado anosdepois, em 2009.

A história dos Transalpes ouAlpencross, como é chamada a traves-sia pelos Alpes de bicicleta, começouprovavelmente em 1989 com umroteiro criado pelo alemão AndiHeckmair saindo de Oberstdorf, no sulda Alemanha, com destino a Riva no

lago de Garda, na Itália. Esse roteiroclássico tem aproximadamente 320quilômetros e 13.500 metros deascensão total, transpondo diversospassos que são os pontos mais altos deestradas e trilhas.

Atualmente existem inúmerosroteiros, trilhas e estradas alpinas,sendo que diversas agências oferecemessas pedaladas e mesmo assim é raroo encontro com outro grupo.

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A vantagem de se contratar uma agência é otransfer da bagagem de um hotel para o outro,a reserva das hospedagens e o acompanha-mento de um guia especializado que conhecebem o roteiro. Isso significa ao ciclista aconcentração total na pedalada, atravessandovales, montanhas com lindas paisagens e vistasde tirar o fôlego.

Atualmente guio diversos trajetos, principal-mente partindo da cidade alemã de Garmischcom destino ao lago de Garda. Os roteirosexigem diferentes níveis técnicos e físicos.Alguns mais leves para bicicletas do tipotrekking, como pela Via Claudia Augusta ou aVia Bavarica Tyrolensis, e outros por caminhose trilhas mais exigentes para o mountain bike.

Alpes para iniciantes

Existem inúmeros trajetos e dois deles - a ViaBavarica Tyrolensis e a Via Claudia Augusta -são indicados para os iniciantes que gostariamde ter a primeira experiência nos Alpes,pedalando algumas trilhas menos técnicas.

Via Bavarica Tyrolensis - este belo roteirocomeça em Munique, a capital da Baviera, nosul da Alemanha, e segue até Innsbruck, acapital do estado do Tirol, na Áustria, e retornaa Munique. São aproximadamente 380qUilômetros e 2.225 metros de ascensão total.

O trajeto segue beirando o rio Isar até arepresa de Sylvenstein. No passo de Achen(941 metros), uma longa descida, passandopelo lago de mesmo nome, até Innsbruck. Valea pena pernoitar um ou dois dias em Innsbruck,dar uma volta pela cidade e subir nas monta-nhas para curtir o visual espetacular dos Alpese do Vale Inn. A volta para Munique é feita pelamesma rota até o passo de Achen. Do passosegue-se por outro caminho num sobe e descetranquilo até o lago de Tegern. Daqui são maisalguns quilômetros até Munique.

Um roteiro percorrido por muitas famílias,pois existe boa infraestrutura para hospeda-gem e alimentação, além de muito contato coma natureza, cultura e a história da região.

Via Claudia Augusta - foi construída porordem do imperador Claudius no ano 45 antesde Cristo. A antiga estrada romana é longa e otrecho mais conhecido liga a cidade mediterrâ-nea de Veneza, na Itália, até o rio Danúbio, naAlemanha, e tem aproximadamente 790quilômetros de comprimento.

Para os ciclistas, o trecho mais interessantefica nos Alpes, iniciando a pedalada em Füssen,onde também fica o famoso casteloNeuschwanstein, e terminando no lago deGarda, atravessando diversos passos eciclovias em bom estado de conservação. A ViaClaudia Augusta é um clássico dos Transalpes etalvez um dos trajetos mais conhecidos pelosciclistas europeus.

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Diário de uma pedalada

Para aqueles que querem se aventu-rar de forma clássica, não há nadamelhor que o roteiro de Garmisch aolago de Garda, percorrendo quatropaíses. O início é no sul da Alemanha,atravessando a Áustria, passandorapidamente pela Suíça e terminandono norte da Itália. São, no total, aproxi-madamente 390 quilômetros e 8.500metros de ascensão em cinco etapas depedalada.

Na noite anterior à partida,encontro-me com o grupo e faço umbriefing sobre a pedalada. Nessapequena reunião, dou informaçõesgerais sobre a etapa com o perfilaltimétrico, dicas e respondo perguntasdos participantes.

Também informo a importância depedalar racionalmente, economizandoe dividindo as energias. Vivencioalgumas vezes entre os ciclistas maisjovens e os mais velhos um ótimoexemplo para pedalada racional: osjovens, mais fortes e cheios de energia,pedalam com toda a sua força nosprimeiros dias e sofrem esgotados nasúltimas etapas. Já os ciclistas maisvelhos e experientes, economizam e

dividem suas forças chegando aodestino na maioria das vezes em melho-res condições físicas que os maisjovens.

1" EtapaGarmisch (Grainau) a ImstDistância: 58,9 quilômetrosAscensão total: 1.796 metros

No início do dia é possível perceber onervosismo do grupo, o que é normal.Todos estão mais quietos. É aquelemomento no qual cada um se perguntase conseguirá chegar até o final e se nãoserá o retardatário do grupo. Por isso,antes da partida, enquanto os partici-pantes se preparam, toco no meucelular a música "Highway to Hell" da-banda AClDC, o que é semprebem-vindo e acaba descontraindo osparticipantes.

Começamos a pedalada às 8 h 30 minoEm minha opinião, o primeiro dia ésempre o mais puxado, pois todosestão se conhecendo e se testando. Porisso mesmo, já na noite anterior e noinício do dia, aviso o pessoal para pegarleve, não exagerar e forçar a pedalada,pois é preciso economizar energia paraas próximas etapas. Esse dia também émuito importante para eu conhecer os

participantes e achar a velocidade idealpara os próximos dias.

A saída já começa com subida,pedalando em torno da maior monta-

/ nha alemã, a Zugspitze com 2.962metros de altura. Antes de atravessar afronteira com a Áustria passamos pelopequeno e gelado lago de Eibsee,subindo por uma trilha em meio a raízese pedras.

Passamos pelo primeiro passo do diaem Hochthórle (1.460 metros) etomamos o nosso primeiro café nacidade austríaca de Ehrwald, comdireito a um Apfelstruddel, uma torta demaçã típica da região.

A subida do segundo passo, o Marien-bergjoch (1.790 metros), é pauleira,talvez a subida mais forte de toda atravessia, sendo que o trecho final tem30% de inclinação. Quem pensa queTransalpes é só pedalar, engana-se,existem trechos onde a bicicleta temque ser empurrada ou mesmo carrega-da.

Chegando em Marienbergjoch,almoçamos em um refúgio que é umacasa típica e aconchegante da região,curtindo o visual e o mar de montanhas

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e vales. Depois descemos pedalando atéa pequena vila de Imst e para o fim denossa primeira etapa.

2" EtapaImst a NaudersDistância: 71,8 quilômetrosAscensão total: 1.807 metros

Outra pedalada puxada por lindostrechos de cascalho e trilhas entrebosques de pinheiros. Normalmente nosegundo dia o grupo já está entrosado etodos costumam incentivar-se mutua-mente durante a pedalada. No fim decada forte subida há a comemoração emgrupo e o respeito ao ritmo do próximo.

Já de início temos uma subida até opasso de Pillerhohe (1.559 metros) que éfeita por asfalto. Do topo tem-se umavista fascinante para o vale Inn e o rio demesmo nome. A descida é por trilha atéa vila de Prutz. Nosso almoço é feito àsmargens de um pequeno lago em Ried,

de sorte é possível ver de longe veados ejavalis cruzando o caminho.

3" EtapaNauders a MeranDistância: 97,9 quilômetrosAscensão total: 1.134 metros

Gosto de Nauders, uma pequenacidade localizada a 1.395 metros dealtura também muito conhecida pelasestações de esqui no inverno. Daquisaímos com destino a Meran em umaetapa longa de quase 100 quilômetros.O primeiro e único passo do dia é oPlamort com 2.170 metros de altura quecostumamos transpor ainda pela manhã,depois de duas horas de subida pormuito cascalho e pedras soltas. Em cimado passo existe uma barricada construí-da na época da segunda guerra mundialpara evitar que os tanques atravessas-sem a fronteira entre a Áustria e a Itália.Existem muitos bunkers espalhadospelas montanhas e podemos entrar num

Durante a pedalada, também se avista,em meio a muitas macieiras, o castelo de[uval, do famoso escalador ReinholdMessner. Ele comprou o castelo emruínas em 1983 por aproximadamente30.000 euros. Atualmente é a residênciado montanhista e um museu com arte epeças do Tibet e Nepal.

4" EtapaMeran a (oredoDistância: 55,6 quilômetrosAscensão total: 1.667 metros

Meran, já na Itália, é meio caótica porcausa do trânsito. É a segunda maiorcidade depois de Bolzano na região suldo Tirol. Saímos da cidade com destino àprimeira subida e a travessia do passo deGampen com 1.520 metros de altura.Pedalada difícil por trilhas eslameadas etécnicas. Passamos pela pequena vila deDon e iniciamos uma de minhas trilhaspreferidas até a entrada da cidade deCoredo.

ao lado do rio Inn. Para os mais corajo-sos, uma parada para dar um pulo naságuas frias de degelo.

De Ried pedalamos por um trecho deasfalto pela Via Claudia Augusta até aSuíça, onde começam os últimosquilômetros de pedalada por estreitastrilhas até Nauders, situada na Áustria.Uma longa subida por estradas de terrae cascalho até 1.750 metros de altura edepois um merecido downhill por umatrilha em meio à floresta. Com um pouco

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deles. Aqui de cima, uma vista maravilho-sa para a represa de Reschen.

Antes da construção da represa existiano local uma vila chamada Graun. Amesma foi reconstruída alguns metrosmontanha acima e atualmente vê-sedentro do lago apenas a ponta da torreda antiga igreja. Depois da represa, apedalada segue por uma leve e constan-te descida até Meran. Nesse dia oalmoço é feito na vila de Glurns em meioa construções e muros medievais.

5" Etapa(oredo a RivaDistância: 104 quilômetrosAscensão total: 2. 108 metros

Nesse dia costumamos acordar maiscedo para início da etapa às 7 h 45 minoO dia é longo e tem muita subida pelotrajeto. Eu costumo brincar e dizer aosparticipantes que eles precisam suarpara merecer o lago de Garda e a etapade hoje fecha com chave de ouro essatravessia.

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Pegamos uma forte subida a caminho de Andalo (1.040 metros). Aqui na região doTrentino existe uma área onde foram reintroduzidos dez ursos em 1992, hoje elessão vinte. A região também tem muitas macieiras e uvas, principalmente para ovinho. O passo de San Giovanni com os seus 1.110 metros de altura é a dura etapafinal por trilhas bem íngremes. Lá de cima um visual espetacular do lago de Garda eas montanhas a sua volta.

Descemos por uma estrada asfaltada cheia de curvas até a cidade de Arco. Daquipedalamos por aproximadamente cinco quilômetros até Torbole, no lago de Garda.Às margens do lago a comemoração em grupo, a alegria e a satisfação de terminaruma travessia alpina de bicicleta usando as próprias forças.

O lago de Garda tem grande movimento de turistas, principalmente entre abril esetembro. Tem opção de atividades para todos; é possível praticar esportesnáuticos, pedalar uma das inúmeras trilhas na região, caminhar, nadar ou aproveitaro sol em uma das muitas praias.

No final de cada Transalpes fica para mim aquela pergunta sem resposta clara eobjetiva: "Por que alguém, de mente a princípio sã, se sujeita a atravessar os Alpesde bicicleta sofrendo com longas subidas, trilhas técnicas, algumas dores e no finalainda alegrar-se?"

O "pior" de tudo é que muitos retornam no ano seguinte e pedalam algum novoroteiro que requer ainda mais do ciclista. Para mim, uma boa resposta e a maisplausível é que o visual dessas montanhas e o lago de Garda compensam todo equalquer esforço .•

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