44
UNVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ CAMILA MARCHIORO SÁRIS, FLORES E CORES: A ÍNDIA E A FILOSOFIA INDIANA NAS CRÔNICAS DE VIAGEM DE CECÍLIA MEIRELES CURITIBA - PR 2011

a índia e a filosofia indiana nas crônicas de viagem de cecília

  • Upload
    vuduong

  • View
    216

  • Download
    2

Embed Size (px)

Citation preview

UNVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

CAMILA MARCHIORO

SÁRIS, FLORES E CORES: A ÍNDIA E A FILOSOFIA INDIANA NAS

CRÔNICAS DE VIAGEM DE CECÍLIA MEIRELES

CURITIBA - PR

2011

CAMILA MARCHIORO

SÁRIS, FLORES E CORES: A ÍNDIA E A FILOSOFIA INDIANA NAS

CRÔNICAS DE VIAGEM DE CECÍLIA MEIRELES

Monografia apresentada ao curso de graduação em Letras - Português, Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Estudos Literários.

Orientadora: Profª Drª Raquel Illescas Bueno.

CURITIBA - PR

2011

Aos meus pais,

ao meu amado marido,

à minha orientadora Raquel.

RESUMO

Cecília Meireles, dentro do cenário literário brasileiro, ficou conhecida como um dos maiores

nomes da poesia nacional, todavia sua obra em prosa também foi bastante significativa.

Durante três décadas suas crônicas foram publicadas nos mais variados jornais brasileiros.

Sua preocupação estética com o gênero fez com que o seu texto se tornasse aquilo que

chamamos de literário. Dentre inúmeras crônicas publicadas encontram-se as de viagem,

que foram fruto de sua passagem por cerca de dezoito países. Em 1953 esteve na Índia,

país cujas conexões remontam à sua infância. A presença da influência hindu é um

elemento chave para o entendimento da obra de uma das maiores poetas de língua

portuguesa. A viagem à Índia foi a vivência concreta e direta de tudo o que a poeta

conheceu por meio de livros e relatos orais. Além dos poemas sobre o país, a viagem

rendeu mais de 50 crônicas. São esses relatos os motivadores deste trabalho, que se

direciona a avaliar como se dá a construção da descrição do espaço dentro das crônicas

que falam sobre a Índia e, por este meio, identificar que tipo de imagem se cria do país.

Palavras-chave: Cecília Meireles, Índia, análise do espaço.

ABSTRACT

Cecília Meireles has been known, in the Brazilian literary scene, as one of the biggest names

on the national poetry. However, her writings in prose were also highly significant. During

three decades her chronicles have been published in various Brazilian newspapers. Her

aesthetic concern made her writings bound to what we call "literary". Among many of her

published chronicles we come up with her travel chronicles, which are the result of her ride to

eighteen countries. In 1953 she went to India, a country which was connected by her to her

childhood memories. Moreover, the influence of Hindu philosophy is a key element to our

understanding of this author's writings. The trip to India was the concrete and direct

experience of everything this poet had known previously by books and oral reports, and,

more importantly, it yielded more than fifty chronicles, which motivated this analysis. Thus,

the main objective of this study is to analyze the author's description of space within the

chronicles about India and, by doing this, it aims to identify what kind of image is created of

this country.

Key-words: Cecília Meireles, India, space analysis.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................6

1. A CRÔNICA DE VIAGEM CECILIANA..................................................................9

1.1 CRÔNICA: UM GÊNERO HÍBRIDO......................................................................9

1.2 UM MUNDO DE ESSÊNCIAS.............................................................................10

2. CECÍLIA E A ÍNDIA..............................................................................................16

2.1 CECÍLIA, A ÍNDIA E O ORIENTALISMO:

TRANSPARÊNCIA E NEBULOSIDADE....................................................................20

2.2 O HINDUÍSMO.....................................................................................................25

3. A ÍNDIA DE CECÍLIA MEIRELES........................................................................29

3.1 “ÍNDIA FLORIDA” ................................................................................................32

3.2 “O DESLUMBRANTE CENÁRIO” .......................................................................36

3.3 “ADEUS AMIGA”..................................................................................................39

CONCLUSÃO............................................................................................................41

REFERÊNCIAS..........................................................................................................43

6

INTRODUÇÃO

Nesta viagem incessante, para além da Índia, para além do mistério das religiões e dos sonhos, Cecília Meireles consumiu sua vida.

Carlos Drummond de Andrade

Em sua crônica “Imagens para sempre”, Carlos Drummond de Andrade diz a

respeito de Cecília Meireles:

Não me parecia uma criatura inquestionavelmente real; por mais que aferisse os traços positivos de sua presença entre nós, marcada por gestos de cortesias e sociabilidade, restava-me a impressão de que ela não estava onde nós a víamos, estava sem estar, para criar uma ilusão fascinante, que nos compensasse de saber incapturável a sua natureza. Distância, exílio e viagem transpareciam no sorriso benevolente com que aceitava participar do jogo de boas maneiras da convivência [...]( DRUMMOND, 1964. p. 4)

Drummond salienta algumas características pelas quais a poeta ficou

conhecida: viagem e distância. Aeridade, etereidade, leveza e a forma singular de

tratar o tempo como não quantificável, em que “tudo o que se abarc [a] / se faz

presente” (GOUVEIA, 2001. p. 158) são, também, características inerentes à obra

da autora, que é um dos principais nomes da literatura nacional, reconhecida

principalmente por sua obra poética. Todavia, sua prosa também foi bastante

significativa; pois, durante três décadas, suas crônicas foram publicadas nos mais

variados jornais brasileiros. Dentre seus inúmeros relatos, estão aqueles que

produziu em decorrência de muitas viagens.

Em 1934 Cecília foi à Europa, sendo essa a primeira de suas muitas visitas

ao exterior. Em 1940 conhece os Estados Unidos e México. Em 1944 esteve no

Uruguai e Argentina e, em 1953, Índia.

A presença deste país oriental na obra da autora vai além da influência

literária e, segundo Dilip Loundo, contém em si mesma elementos essenciais para

uma avaliação mais profunda da singularidade e da excelência de uma das maiores

vozes da poesia brasileira, pois é possível encontrar ao longo de toda a sua obra

uma presença distinta e multidimensional da Índia (LOUNDO, 2007. pp. 129-178).

7

Para a autora, a Índia é um dos espaços que lhe oferece a possibilidade de um viver

ligado ao que é essencial. O Oriente apresentado por ela não é feito de curiosidade

ou exotismo, mas do “aprofundamento do eu” (GOUVEIA, 2001, p. 153), por meio do

desapego do mesmo.

A consciência da transitoriedade da existência, o desapego espiritual e uma

gradual anulação do eu, elementos presentes no pensamento oriental e também nas

Upanishads1;(D.S. SARMA, M.A. 9167. pp 21- 29) - que buscam bhûman (infinito) e

pûrumâm (plenitude) – podem ser identificados na sua obra. A poesia de Cecília,

para Dilip Loundo, “trata do caminhar do si-mesmo em busca de sua reinvenção por

meio do desapego e da contemplação serena da multiplicidade do mundo enquanto

existência unificada” (LOUNDO, 2007. p.140); esses aspectos são, sem dúvida,

parte da filosofia e da cultura indiana. Desde sua infância a “pastora de nuvens”

travou uma estreita relação com o Leste do globo; pois ouvia, de suas empregadas e

da avó, histórias sobre o Oriente e tinha contato com imagens do local

representadas em caixinhas de chá.

Durante muito tempo a viajante estreitou mais seus laços com o Oriente por

meio de leituras (viagens metafóricas) e em janeiro de 1953, finalmente concretizou

sua experiência com o lado esquerdo do meridiano de Greenwich, indo à Índia a

convite do primeiro-ministro Nehru para participar de um congresso sobre a obra de

Gandhi. Sua comunicação foi publicada em Gandhian out-look and techniques,

edição do Ministério da Educação, em Nova Delhi. Nessa mesma ocasião, recebeu

das mãos do presidente da Índia o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade

de Delhi. Em 1962, publicou a tradução - juntamente com Abgar Renault, e

Guilherme de Almeida - de alguns poemas de Rabindranath Tagore em edição

comemorativa do centenário do autor, pelo MEC, no Rio de Janeiro. No mesmo ano,

publicou seu livro Poemas escritos na Índia, contendo os poemas que, segundo

sugere o título, escreveu durante a viagem. O impacto causado pelo contato direto

com a filosofia, cultura e geografia do país eternizou-se também nos testemunhos

1 É o veda (dizem que Grandes Rsis escutaram as verdades eternas da religião e deixaram um

relatório para o benefício dos outros, esses relatórios são chamados Vedas - quatro livros escritos por

volta de 1500 mais antigo, literalmente “veda dos hinos”, é também o mais importante, pois os outros

derivam dele.. Cada Veda é dividido em quatro partes, sendo a terceira denominada Upanishads, que

são “expressões míticas que revelam profundas verdades espirituais”.

8

presentes em suas crônicas de viagem e é por meio da descrição do espaço que

encontramos nos relatos sobre a Índia todo o encantamento vivido pela cronista-

poeta nos dias em que lá esteve. Na crônica “Índia florida” diz:

O azul compacto do céu figura uma joia na testa do dia. O dia está vestido de verde cintilante, um verde sem poeira, metálico, brunido, de árvores bordadas à seda ou talhadas em esmeraldas transparentes. (MEIRELES, 1999. v.2, p.207)

De forma sutil, Cecília transmite, também por meio da caracterização do

espaço indiano, a sua impressão desse país. Não é possível distinguir no seu texto

quanto da sua descrição está relacionada a algo concreto e existente e quanto é

suscitado pelo que vê, tendo menos relação com a realidade objetiva do espaço

real. Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é, analisando o espaço, identificar que

retrato indiano se constrói no imaginário ceciliano em suas crônicas de viagem sobre

o país – independentemente de sua maior ou menor conexão com o espaço indiano

real, físico, da época.

O interesse está em identificar como é representado o lugar de onde vieram

várias das influências de sua obra e, se há em suas crônicas, assim como na

poesia, uma linguagem inspirada no Rig-Veda, além de referências a rodas, giros,

cirandas, mandalas e ao atman (o todo, o uno, o self), enfim, a tudo que representa

o circular, o permanente, imperecível; se, na descrição do espaço, é possível

encontrar elementos da filosofia hindu, como o crescente desapego dos objetos do

mundo, a crescente eliminação de um eu identificado com objetos, a percepção da

união do eu com o resto do mundo e a eliminação da dualidade.

9

1 A CRÔNICA DE VIAGEM CECILIANA

O que me parece o grande encanto das viagens é ir-se encontrar, num sítio distante, que nunca se frequentou, de cuja existência nem se tinha notícia, alguma criatura que na véspera nem se conhecia, e, de repente, se descobre ser tão amiga como os amigos de infância, e tão para sempre como a nossa própria alma

Cecília Meireles

1.1 CRÔNICA: UM GÊNERO HÍBRIDO

Muito já se disse a respeito deste gênero e várias questões já foram

exaustivamente desenvolvidas. Contudo, para entender os relatos de viagem de

Cecília é necessário retomar alguns breves aspectos para verificar que, não

raramente, a autora vai contra o que ficou definido como característico do gênero no

decorrer do século XX.

Desde a Grécia antiga, os gêneros literários foram divididos em três

categorias: lírico, dramático e épico (narrativo), porém, é evidente que, na prática,

raramente nos deparamos com um gênero puro, uma vez que a criação artística, no

caso a literária, muitas vezes mistura esses três elementos. Críticos como Todorov

apontam para o fato de que os gêneros literários devem ser estudados através das

características da obra e não a partir de nomes classificatórios (TODOROV, 1986),

porém, seria difícil analisar um determinado texto sem ao menos tentar denominar

ou aproximar o objeto estudado de uma determinada classificação.

No caso da crônica, determinações e definições tornam-se ainda mais

complicadas, pois o gênero é fronteiriço entre prosa e poesia, documento e ficção,

jornal e livro. Nesse sentido, a liberdade de criação é ampliada e as possibilidades

de mescla entre os gêneros literários também.

De origem francesa, foi conhecida, a princípio, como folhetim. Este era

dividido em dois tipos: o de romance e o de variedades, sendo que deste último

deriva a crônica. Apesar de todas as alterações sofridas, o gênero não perdeu uma

10

de suas mais evidentes características: ser híbrido e, por esse motivo, dificilmente

poder ser enquadrado em parâmetros restritivos. Como a etimologia do nome

sugere, a crônica está presa ao tempo e à efemeridade. Sob tais aspectos, o tempo

do relato é o presente e para referir-se a ele a narrativa se dá pelo uso de um

passado imediato.

No decorrer do século XX, o gênero definiu-se como originalmente atrelado

ao jornal e ao efêmero. Além disso, é ainda conhecido pela sua linguagem simples,

que retrata o dia-a-dia e por isso, segundo Antonio Candido, quebra o monumental

da ênfase, fazendo com que a realidade e a verdade surjam sem disfarce,

assumindo ares de um gênero menor (CANDIDO, 1979-80. passim). Tais definições

são recentes, pois se sabe que o gênero mudou muito desde suas primeiras

aparições ainda no século XV. É importante salientar que a crônica teve um

desenvolvimento surpreendente, constituindo-se um gênero propriamente literário,

com uma história específica e bastante expressiva no conjunto da produção literária

brasileira.

No caso do Brasil, adquiriu características específicas, estando sempre

relacionada ao retrato do cotidiano e conhecida por ser “descompromissada”.

Entretanto, é importante salientar que, em alguns casos, adquire a espessura de

texto literário, dada a elaboração de sua linguagem, sua complexidade interna e sua

penetração psicológica e social (ARRIGUCCI, 1985. pp. 43-53). É dentre essas

crônicas complexas e elaboradas que se encontram as de Cecília Meireles.

1.2 “UM MUNDO DE ESSÊNCIAS”

Tendo trabalhado em vários periódicos brasileiros, estima-se que a obra em

prosa da “poeta da aeridade” ultrapasse duas mil e quinhentas crônicas, escritas

entre os anos de 1930 e 1964. Sua atuação como jornalista estendeu-se a algumas

vertentes da crônica: relato do cotidiano, crônicas de educação, algumas sobre

folclore e as crônicas de viagem. Os relatos de viagem cecilianos não perdem parte

das características atribuídas ao gênero crônica, todavia mostram diferenças e

peculiaridades perante as definições estabelecidas, pois mesclam ficcionalidade

11

(aproximação com prosa ficcional e poesia), influências das narrativas de viagem,

além de apanágios próprios da produção de Cecília, o que carrega o texto de

marcas pessoais.

Em 1940 a poeta visitou EUA e México. Em 1944 esteve no Uruguai e

Argentina e no início da década de 50, na Índia, Goa e várias nações da Europa. Em

1954 visitou os Açores e novamente a Europa, em 1957 esteve em Porto Rico; em

1958 visitou Israel, Grécia e Itália e em 1959 novamente EUA, via Peru, e em 1962

mais uma vez México. Cecília também atravessou as fronteiras dentro do próprio

país de origem, particularmente Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul.

As viagens de Cecília Meireles, seu contato com outras culturas, suas

reflexões sobre os povos e o que viu ficaram imortalizados em suas crônicas. Em

seus relatos, ultrapassa fronteiras tanto geográficas como textuais, fazendo com que

o uso de uma construção textual elaborada e de uma linguagem poética e

metafórica, que foge da linguagem simples, imortalizasse o que viu. Sobre a viagem,

diz:

A arte de viajar é uma arte de admirar, uma arte de amar. É ir em

peregrinação, participando intensamente de coisas, de fatos, de vidas com

as quais nos correspondemos desde sempre e para sempre. É estar

constantemente emocionado – e nem sempre alegre, mas, ao contrário,

muitas vezes triste, de um sofrimento sem fim, porque a solidariedade

humana custa, a cada um de nós, algum profundo despedaçamento.

(MEIRELES, 1999. v. 2, p.61)

Octavio Ianni diz em seu artigo “A metáfora da viagem” (IANNI, 2000) que a

viagem, o viajante e sua narrativa agem como se revelassem ao mesmo tempo o

conhecido e o desconhecido, o próximo e o remoto, o real e o virtual. Nesse

sentido, Ianni afirma que toda viagem destina-se a ultrapassar fronteiras, seja

dissolvendo-as ou recriando-as; além disso, recria identidades. A viagem pode ser

tanto real quanto metafórica, mas revela-se como recurso comparativo excepcional,

podendo alterar o significado do tempo e do espaço, da história e da memória, do

que é e do que virá. Ianni aponta também para a inquietação e a interrogação, que

caminham juntas com o viajante e podem trazer tanto o óbvio quanto o insólito. O

autor ainda diz que à medida que viaja o viajante se desprende, podendo atravessar

barreiras e defrontar-se com o desconhecido.

12

Cecília Meireles, considerando-se uma viajante, ultrapassou não somente

fronteiras geográficas, mas também literárias, expandindo as limitações atribuídas

à crônica, tanto no aspecto da linguagem (elaborada) quanto no que se refere ao

conteúdo.

A autora, em seus relatos, atenta para diferenças existentes entre viajante e

turista; há, portanto, crônicas que têm como tema principal esta disparidade e

outras em que o assunto aparece como parte da construção do “enredo”. Cecília

trata o turista como aquele que viajava apenas pelo fato de poder conhecer um

lugar famoso e comprar lembranças que o fizessem recordar da viagem e afirma

que seu destino é "caminhar pela superfície das coisas". Já o viajante é aquele que

permanece; que caminha pelo profundo. Para a autora, o turista é uma criatura feliz

e rasa que sai com sua máquina, um guia no bolso e um singelo vocabulário. Já o

viajante procura raízes, interessa-se pela língua, demora mais tempo para fazer um

apontamento que o turista em percorrer toda uma cidade:

o viajante é criatura menos feliz, de movimentos mais vagarosos, todo

enredado em afetos, querendo morar em cada coisa, descer à origem de

tudo, amar loucamente cada aspecto do caminho, desde as pedras mais

toscas às mais sublimadas almas do passado, do presente até um futuro -

um futuro que ele nem conhecerá. (MEIRELES,1999. v2, p.101).

Não é necessário muito esforço para perceber que em seus relatos Cecília

faz justamente aquilo que considera típico ao viajante: interessa-se pela língua,

pelas minúcias, pelos detalhes, evoca o passado do local, deseja permanecer por

mais que tenha consciência da efemeridade do tempo. Ao narrar sua passagem por

uma livraria de Cattack (Índia), Cecília relata:

Pode-se ser feliz assim, no fim do dia, tão longe de tudo, tendo como único entretenimento este exercício do espírito que consiste em sentir como pensam as criaturas mais distantes, dentro das palavras mais diferentes [...] - e folheio estes livros de arte, cheios de pássaros coloridos, de deuses serenos [...] E pouco a pouco tudo vai se apagando – por mais brilhantes que sejam as gravuras, por mais impecável que seja o papel. O dia acaba, nesta sala, entre estes livros [...] (id, ibid. p. 230)

A crônica costuma ser considerada como exemplo do gênero narrativo, uma

vez que comumente é tratada como um texto que relata um fato, podendo contar,

comentar, descrever ou analisar, tendo algumas vezes uma espécie de enredo,

sendo ele mais ou menos próximo do real. As diversas temáticas dos relatos da

13

autora apresentam-se de modo a salientar o caráter híbrido da crônica, pois a

viajante demonstra uma preocupação estética com seu texto. Ao contrário de relatos

efêmeros e datados de suas viagens, temos propostas de reflexões profundas, que

demonstram a subjetividade da cronista. Neste caso, Cecília mescla narrativa e

lirismo, colocando-nos diante de um maior hibridismo quando comparamos seus

relatos aos de outros cronistas brasileiros viajantes, como Mário de Andrade, Manuel

Bandeira e Alcântara Machado.

Características tidas como típicas da linguagem da poesia estão presentes

na prosa ceciliana; as suas crônicas têm uma grande recorrência de elementos

como: aliterações, metáforas, polissíndetos, anáforas, personificação,

intertextualidade; além de uma presença muito forte do eu que escreve, ou seja,

uma espécie de voz poética que exprime seus sentimentos evocando reflexão. O

tempo é presente, porém, constantemente surgem evocações do passado, não de

um passado objetivo e datado, e sim um passado nebuloso, saudoso:

Uma noite, na Índia, éramos quatro pessoas numa praia absolutamente deserta, iluminada apenas pela claridade do céu [...] O som das ondas e o pequeno arabesco branco da espuma conduziam nossos lentos passos: e era como se fôssemos pouco a pouco saindo deste mundo. (Id, ibid, p. 257)

Drummond diz sobre Cecília: “suas anotações de natureza são esboços de

quadros metafísicos, com objetos servindo de signos de uma organização espiritual

onde se consuma a unidade do ser com o universo”2. Em vários de seus relatos, o

fluxo de pensamento e a descrição espacial não muito exata e concreta são partes

da construção do texto, por esse motivo, as crônicas da autora fogem da linguagem

simples, descritiva e jornalística típica ao gênero. Na maioria dos casos há

acidentes, sensações, ao invés de datas, locais e descrições precisas. Em “Luz e

som de Bombaim”, este é o relato da chegada ao aeroporto:

Depois de tantas horas de vôo sobre mares e desertos, o chão de Bombaim, confundido na noite, é território imaginário, por onde os passos dos fatigados aeronautas erram sem firmeza nem precisão. Na sombra pastosa de uma atmosfera úmida e morna, já não nos governamos muito; é mesmo o destino que nos vai conduzindo, através de um sistema de portas, mesas, balcões, guichês... (id, ibid. p. 159).

2 ANDRADE, Carlos Drummond. Imagens para Sempre. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 11 nov.

1964, p. 4

14

Segundo Staiger, em Conceitos fundamentais da poética, este é um traço

pertencente ao gênero lírico:

Quando falamos em poesia lírica, por essa razão, em imagens, não podemos lembrar absolutamente de pinturas, mas no máximo de visões que surgem e se desfazem novamente, despreocupadas com as relações de espaço e tempo. (STAIGER, 1972, p. 45).

Margarida Maia Gouveia, em “As viagem de Cecília Meireles”, observa que

nas Crônicas de viagem existe uma teoria do viajar, as viagens não são somente o

ato propriamente dito, mas o que elas produzem na cabeça do viajante. Nesse

sentido, é possível haver a viagem sem se sair do lugar. Portanto, a partir das

viagens concretas Cecília também viaja sonhando, o que torna os limites entre a

descrição do real e o que é fruto da imaginação, bastante tênues (GOUVEIA, 2007.

pp.111-127). Na descrição dos espaços visitados misturam-se elementos míticos ou

imaginários que afirmam a possibilidade de uma vida ilimitada em contraste com

elementos que afirmam o real da morte:

O belo e o terrível, o suntuoso e o miserável, todas as esperanças de vida como todas as sombras de morte crescem deste chão úmido. Não creio que ninguém consiga ficar indiferente ao choque desta cidade. Como se a torrente do tempo, precipitada em cascata, mostrasse e escondesse a todo instante essa pedra da eternidade sobre a qual desliza o que, com alegria ou com dor, todos avistam, sem saber. (MEIRELES, 1999. v.3. p 213)

Abstrato e concreto se fundem de modo lírico nas Crônicas de viagem; a

escolha do léxico faz com que tenhamos a impressão de volátil, etéreo, fluido. A

repetição da mesma frase no início de parágrafos, a ideia da efemeridade - em

várias crônicas o fim nos remete a um novo começo, predizendo o início da próxima

crônica (dando a impressão de um ciclo sem fim, que sempre acaba e sempre

recomeça) - nos levam a uma ideia de existência que está além do tempo,

relacionando-se à tradição indiana (a partir da época das Upanishads3 o tempo

passa a ter uma perspectiva menos relacionada à sucessão e duração).

3 As crenças do hinduísmo foram transmitidas oralmente durante séculos (há cerca de 3500 anos,

não se sabe ao certo) quando a escrita desse povo se desenvolveu (por volta do séc. 2 a.C) acredita-

se que tenham surgido as primeiras versões escritas dos vedas. O sânscrito usado nos vedas é

conhecido como sânscrito védico, sendo os Upanishads a parte conclusiva dos vedas, a sua

composição marca o fim do período védico, provavelmente na metade do primeiro milênio a.C.

Acredita-se, portanto, que este tenha sido o período de escrita dos Upanishads.

15

Dada a peculiaridade do gênero e as características de Cecília Meireles

(poeta, viajante, cronista...) temos nas crônicas relatos que servem como exemplo

de um gênero impuro, permeado por outros; e mesmo tendo tanto elementos do

lírico como da prosa narrativa, as Crônicas de viagem não perdem o caráter efêmero

e a ligação com a descrição do dia-a-dia (típicos da crônica), uma vez que, embora

seja o relato de uma viagem, se tratava do dia-a-dia de Cecília naquele momento e

foram publicadas em jornal.

Fica evidente, portanto, a dificuldade de dar à crônica de viagem uma

definição estanque. Não podemos nos esquecer, no entanto, de que se trata de

Cecília Meireles e que não serão todas as crônicas de viajantes que carregarão

essas peculiaridades. Porém, é essa mistura de registros e tons que torna a autora

exemplo da quebra de limites dentro da literatura e, portanto, exemplo da

modernidade.

16

2. CECÍLIA E A ÍNDIA

A Índia é um país em que a sabedoria não se encontra apenas nos livros sagrados, mas na vida diária, que repete os apólogos e fábulas entrelaçados na tradição como os ramos do bosque e as tranças dos rios.

Cecília Meireles

Como consequência do seu interesse pela cultura indiana, a poesia de

Cecília está prenhe de metáforas, prosopopeias e outras figuras de linguagem

inspiradas no Rig-Veda4, além de referências constantes a rodas, giros, cirandas,

mandalas e ao atman (o todo, o uno, o self, idêntico ao brahaman); a tudo que

representa o circular, o permanente, imperecível:

(...) Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias no vento.

Se desmorono ou se edifico se permaneço ou me desfaço - não sei, não sei. Não sei se fico ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: - mais nada.

(MEIRELES, 2001. p. 227)

Segundo Miguel Sanches Neto em “Cecília Meireles e o tempo inteiriço”, a

autora preferiu ser patrimônio da língua portuguesa, ou seja, antes de marcar sua

obra como "brasileira" dedicou-se a erigi-la pelo signo da universalidade. Sua obra

versa sobre os mais variados temas, não havendo limites e fronteiras, o que tornaria

a poeta moderna e não modernista. Porém, Dilip Loundo afirma que, uma vez que,

ao optar pelo questionamento da modernidade a partir de um imperativo “onto-

4 SANCHES; Neto, Miguel. «Cecilia Meireles e o tempo inteiriço». In: MEIRELES, Cecília. Poesia

completa. vol.1. Org. Antonio Carlos Secchin. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001

17

existencial”, comprometido com o desvendamento de suas profundezas metafísicas

e de sua universalidade; e uma vez que as manifestações da modernidade são

variadas, os temas escolhidos por Cecília são plurais (LOUNDO, 2007. pp. 129-178).

Nesse sentido, sua obra poética a insere na modernidade e no modernismo.

A proposta metafísica de Cecília e a relação existente estre ela e as

Upanishads ocorreu por meio de leituras sistemáticas, tanto de textos tradicionais

hindus, quanto de escritores indianos. A autora leu desde a literatura sânscrita,

clássica e antiga: os épicos Ramayana e Mahabharata; os textos dos Vedas e

Upanishads os Sutras, fábulas e sagas históricas. Passando pelo teatro e poesia,

traduziu poetas-místicos como Kabir, Miabai e Tulsidas, clássicos como O livro de

Simbad e As mil e uma noites. Além disso, leu muitos orientalistas franceses e

também se deteve no folclore regional de algumas regiões da Índia. Manteve

relações com escritos contemporâneos, como os de Ramakrishna, Vivekananda,

Aurobindo Gosh, Sarojíni Naidu, Tagore, Abhay Khatau, entre outros. Dessas

influências, as mais marcantes foram a do poeta ganhador do prêmio Nobel de 1913

Rabindranath Tagore e a de Mahatma Gandhi.

Segundo Dilip Loundo (Ibid, p.147), a presença de Tagore nas coletâneas

cecilianas inaugurais (Nunca mais... e Poema dos poemas e Baladas para El-Rei)

constitui uma fase preparatória dos encontros profundos que viriam a acontecer com

a Índia. Foi por meio de Tagore que Cecília passou a entender mais como trilhar o

ascetismo metafísico através da contemplação lírica do mundo, e também por meio

do poeta indiano Cecília obteve ensinamentos sobre as potencialidades da

educação enquanto esfera propícia para a busca dos compromissos espirituais de

solidariedade.

Já Mahatma Gandhi aparece na obra ceciliana como símbolo de uma

civilização antiga que se defronta com a modernidade. Os ideais de Mahatma

Gandhi (Ahimsa, que significa não violência, mergulho nas profundezas da

realidade: “Deus é a Verdade e a Verdade é Deus.”) perpetuados por meio de uma

práxis sociológica encontram seu espelho na lírica ceciliana. A Gandhi e ao poeta

Tagore Cecília dedicou poemas e crônicas. Traduziu vários livros de Tagore: Puravi,

os contos Mashi, Raja e Rani e Çaturanga e a peça O carteiro do rei. Dilip Loundo

afirma que Cecília reconhecia a diferença espiritual de Tagore e Gandhi: para o

18

poeta Deus era encarado enquanto experiência transcendental e para Gandhi

enquanto Verdade; a autora reconhecia que ambas as experiências mostravam a

diversidade indiana.

Em 1953 Cecília finalmente desembarcou na Índia e marcou o auge da sua

relação com o país. A viagem ocorreu em plena maturidade da autora, aos seus 51

anos. O que se evidencia nas suas crônicas é que, segundo Dilip Loundo, longe de

confirmar ou contradizer o que havia consolidado no Ocidente, a visita ao país foi

marcada por um ar de “retorno” ao já conhecido. Após oito dias de viagem Cecília

diz sentir-se como se estivesse sempre vivido ali. Isso se deve ao fato de que a

autora estabeleceu relações não somente com a antiguidade indiana, mas também

com a sua contemporaneidade:

(...) As danças contaram-me seu hieróglifos, os ídolos, suas histórias, os faquires, sua disciplina. Tudo isso vem comigo, ajustado à minha alma, como outras muitas heranças. Tudo isso vem comigo; nada disso venho procurar aqui. (MEIRELES, 1999. v.2, p.158)

As crônicas de viagem são a extensão de obra em verso de Cecília; pouco

têm de semelhante com um diário e carregam algumas características das narrativas

de viagem, porém lugares, datas e nomes geralmente estão ausentes e, quando há

menção, é vaga. Entretanto, no caso das crônicas sobre a Índia, geralmente temos

ao menos o nome da cidade, ou de algum monumento que nos remeta a um

determinado local.

Ao visitar a Índia, tudo o que havia sido assimilado por meio de leituras se

intensifica, pois o país passa a ser não apenas realidade imaginária, mas realidade

viva e palpável. O espaço indiano torna-se presente, as cidades, os cheiros, as

pessoas. Cecília Meireles passa então a captar a unidade que existe acima de toda

a multiplicidade que a Índia possa demonstrar. Há, em seus Poemas escritos na

Índia, a sutilização do eu, a celebração do eterno e, em suas crônicas de viagem, o

relato de suas impressões, da vivência da autora no país que tanto a influenciou e

temos acesso ao que a autora sentia e pensava a respeito do local. Na crônica

“Transparência de Calcutá” Cecília diz:

Ao relembrar essas coisas, tão longínquas, sinto a minha dívida para com a Índia. Dívida que é a de muitos ocidentais que tenho encontrado agora

19

nestes caminhos, aonde vieram ter para se identificarem mais com uma pátria que sentiram ser a do seu espírito.[...] (Id, ibid. p. 210)

A posição tomada pela cronista na sua viagem à Índia reflete a sua vivência

como viajante. Cecília penetra no miúdo dos elementos por ela narrados, nos dá

detalhes através de sensações e cores (nada muito exato, concreto) do que ela,

como viajante, via e sentia.

Segundo Dilip Loundo, que teve acesso a informações e documentos da

viagem por meio do neto da autora, a viagem durou 67 dias e a poeta visitou, na

primeira parte da viagem, Nova Delhi, Sikandara, Agra, Fatehpur, Sikri, Jaipur,

Patna, Calcutá, Cuttak, Puri, Chennai, Coibatore, Bangalore, Hyderabad, Golconda,

Aurangabad, Ajantá e Goa. A segunda parte se dá a partir da chegada de seu

marido Heitor Grillo, que viajou à Índia para estudar e conhecer as atividades de

diversas instituições de pesquisa agrícola e nela Cecília visita quase que

exclusivamente as cidades que estavam no itinerário do marido, o que, diz Loundo,

explica o fato de a poeta não poder visitar lugares que tanto desejava, como

Banaras, Shantineketan, Madurai e Cachemir. Nas crônicas a autora lamenta a

impossibilidade de visitar tais lugares, porém, ainda assim dá descrições vívidas

desses locais.

No dia 7 de janeiro de 1953 Cecília redigiu uma carta a seus amigos Eva

Arruda e Diogo de Macedo, contando-lhes fascinada as primeiras impressões do

território. Joaquim-Francisco Coelho chama a carta de “Carta do Achamento da

Índia”. Segundo Coelho, Cecília deslumbra-se mais com a Índia que Pero Vaz com o

Brasil. Coelho aponta para os adjetivos usados pela autora: fantástico, fabuloso,

maravilhoso, indescritível, inacreditável. Até as flores despontam mais lindas que em

outros lugares, Cecília celebra mais que informa, na breve carta utiliza 14 pontos de

exclamação; estava na Índia, finalmente. (COELHO, 2007, p.180)

20

2.1 CECÍLIA, A ÍNDIA E O ORIENTALISMO – TRANSPARÊNCIA E NEBULOSIDADE

Em casa, as estórias de sua avó sobre a Índia e as figuras dos livros e

tampas de caixas de chá vindas da China ou da Índia mexiam com a imaginação da

jovem Cecília. Ao longo de sua vida, segundo Margarida Maia Gouveia, as leituras e

ocupações da poeta atestam uma sedução orientalista (GOUVEIA, Op. cit. p.155).

As suas primeiras leituras representaram, diz Dilip Loundo (LOUNDO, 2007. p.132),

esforços preliminares de navegar em águas mais profundas marcadas por

preconceitos e estereótipos orientalistas, herdados do romantismo europeu.

Ao longo de séculos criou-se uma ideia de alteridade em relação aos que

vivem ao Leste, isto remonta aos textos gregos, passando pelos romanos e os

outros bárbaros, chegando aos cristãos e os outros islâmicos. Trata-se de um

acúmulo contínuo de informações que possibilitou lidar com o diferente de forma

familiar. Muitos ocidentais recorreram ao orientalismo como forma de descrever,

entender e interpretar o Oriente. Por décadas, os orientalistas falaram sobre o

Oriente, traduziram textos, descreveram civilizações, religiões, dinastias, culturas e

mentalidades.

Um significado mais geral para Orientalismo é sua tradição acadêmica que

reproduz um estilo de pensamento baseado em distinções ontológicas e

epistemológicas feitas entre “Oriente e Ocidente”; entretanto a tradição orientalista

acabou tornando o Oriente uma espécie de “parâmetro de comparação” para a

evolução do Ocidente; o que se evidenciou ao longo dos séculos foi a incapacidade

do ocidental de se ver em progresso sem que houvesse um referencial estático, fixo

no tempo e espaço. Nesse sentido, os orientalistas construíram em seu imaginário

um Oriente específico e estanque, que serve como parâmetro para a avaliação do

próprio Ocidente (SAID, W. 1990. passim).

Diz Dilip Loundo que a lista de orientalistas lidos por Cecília Meireles é vasta

demais para ser mencionada. Sob esse aspecto surge a pergunta: arraigou-se na

autora a ideia perpetuada pelos orientalistas de um Oriente estático, utilizado

apenas como modelo para afirmar a ideia de Ocidente? Para responder a tais

perguntas é necessário olhar com minúcia a obra da autora e perceber que tipo de

21

relação ela estabeleceu com o Oriente. Diz a autora na crônica “Meus „orientes‟”: (O

que se diz e o que se entende)

O Oriente tem sido uma paixão constante na minha vida: não, porém, pelo seu chamado "exotismo" - que é atração e curiosidade de turistas - mas pela sua profundidade poética, que é uma outra maneira de ser da sabedoria. Como se cristalizou em mim esse sentimento de admiração emocionada por esses povos distantes, não é fácil de explicar em poucas linhas. Mas foi uma cristalização muito lenta, dos primeiros tempos da infância. E lembro-me nitidamente desses antigos encontros, que me deixavam tão pensativa e interessada, antes que eu pudesse adivinhar, sequer, a sua significação. (MEIRELES, 1980. p.36).

Dada a relação que a autora estabeleceu com o Oriente desde sua infância,

seria muito difícil que ela se encaminhasse para os erros cometidos pelos

orientalistas e tratasse o Oriente como simples objeto para a reinvenção do

Ocidente. Para Cecília, o Oriente sempre foi vivo, e ainda que a partir dele ela

estabelecesse comparações com o Ocidente, fazia isso por meio de um

acompanhamento gradual da contemporaneidade oriental, lendo e conhecendo um

Oriente vivo que pulsava ao mesmo tempo em que o Ocidente:

O viajante ocidental [...] precisa, também, conhecer a atualidade desses povos, que não estão mortos, mumificados, incertos, mas, ao contrário, vivos, em grande vibração... (MEIRELES, 1999. v 2, p. 39).

Cecília, na crônica “Transparência de Calcutá”, faz menção às influências de

orientais e orientalistas em sua vida:

Escrevo Rabindranath Tagore e Saratchandra Chatterji, e ponho-me a recordar os meus primeiros encontros com a Índia [...] (MEIRELES,1999, v.3. p. 209)

Tempos em que tantas traduções de orientalistas famosos trouxeram ao Ocidente a notícia de um mundo que, literariamente, começara a existir, para nós, apenas a partir do século XVIII. (Id, ibid)

Tudo o que vinha desse mundo era sedutor: a filosofia e suas interpretações; a revelação religiosa do povo, a tendência mística de sua poesia; o folclore, que nos revelava, em formas arcaicas, lendas, histórias, brinquedos [...] (Id, ibid).

Cecília ainda cita a figura de Gandhi, o processo de independência da Índia

e a campanha da não violência. Para a autora, estes foram os tempos em que se

voltava a confiar na espécie humana. Ao relembrar esses fatos, a cronista também

salienta a dívida que muitos ocidentais têm para com a Índia, ocidentais estes que,

22

assim como ela, identificaram mais o país com “uma pátria que sentiram ser a do

seu espírito”.

Além do conhecimento do que se produzia na Índia contemporaneamente à

sua existência, a poeta leu os textos que fundamentam toda a cultura hindu e

conseguiu absorver os ensinamentos neles contidos, transmitindo-os por meio de

sua poesia - tanto nos temas, nas escolhas do léxico, quanto no ritmo e na forma -

fazendo dela o meio para a prática desta filosofia. Nos seus relatos de viagem,

encontramos poucas referências, em relação à forma do texto, à filosofia hindu, mas

a Índia está muito presente e os nomes Mahatma e Tagore ecoam evocando o

hinduísmo e seus ideais.

Em suas descrições da Índia tudo parece muito bonito, colorido e

surpreendente. Raras são as menções aos pobres, famintos e aos problemas

inerentes a um país subdesenvolvido; são tão poucas que, no conjunto das crônicas,

quase passam despercebidas, fazendo com que pensemos ser o relato ceciliano

algo idealizado.

Ainda em “Transparência de Calcutá”, Cecília descreve pouco o espaço que

realmente vê, de início sabemos que ela está lendo um livro e, a partir daí, surgem

todas as evocações citadas acima e, ainda mais, há uma aparente incredulidade por

parte da autora em ralação ao fato de estar na Índia. A autora afirma: “Na verdade,

já me parece demasiado ter vindo. O mundo é pequeno para os encontros, mas

longo para as viagens” (p. 210); “Quando poderia pensar em viver esta tarde em

plena Calcutá, debruçada sobre um livro de bengali?” (p. 211). Até este ponto,

Cecília apresenta seus pensamentos, não há nenhuma ação sendo narrada,

nenhum fato exterior à cronista. É por meio de suas lembranças que então

percebemos a relação de gratidão estabelecida entre a autora e o Oriente, por

vezes, o espaço real e o passado imediato são deixados de lado em prol de uma

evocação de um passado mais remoto. Nesta mesma crônica, embora as

experiências sejam recentes, Cecília recorda-se do espaço já visto e o descreve

mencionando não apenas as boas recordações de sua experiência com o país, mas,

também, aspectos negativos do local:

Estes olhos viram o lugar do sacrifício dos animais, - o que resta de antigos holocaustos. Viram os enfermos, os miseráveis além de toda a miséria

23

concebível. No entanto, há na Índia uma pobreza voluntária que explica muita coisa. (MEIRELES, 1999. v. 2. p. 213)

Cecília não ignorava as contradições da Índia, a respeito de Calcutá ela

diz que “é o passado, o presente e o futuro, num turbilhão”, e reconhece que a

cidade traz em si antíteses: “o belo e o terrível, o suntuoso e o miserável”. A

pobreza e sujeira do local, elementos tão incessantemente citados por outros

autores que estiveram no país na mesma época, como Lévi-Strauss, não são

suficientes para ofuscar o deslumbre causado por uma “relação de anos”, relação

esta efetivada com a viagem.

Há, portanto, nas crônicas sobre a índia, o que chamo de nebulosidade5,

que se refere ao modo de Cecília configurar seu discurso sobre a Índia fazendo

relatos que evidenciam mais as belezas do país e que, portanto, parecem estar mais

relacionados à realidade subjetiva da autora. Isto pode ser identificado na maioria

das crônicas sobre a Índia. São nebulosos os relatos também (e isso vale para as

demais crônicas de viagem) porque não há preocupação em relatar o factual. As

palavras escolhidas remetem ao universo dos pensamentos, desejos e lembranças,

há, portanto, um distanciamento dos fatos e ações que ocorrem num espaço real

rico em detalhes. Vejamos:

É um sol que resplandece sobre o azul como, realmente uma jóia faustosa. Um sol cujos raios se desdobram como asas Um sol que, de repente, nos faz compreender desenhos, amuletos, pedras gravadas, ídolos, inscrições, cânticos, ritos, sacerdotes, campos lavrados, Ísis, Horu Osíres, Morte, Ressurreição. (MEIRELES, 1999. v.2, p.154).

A noite no quarto é uma substância densa e cálida, muito densa e cálida, que os ventiladores trituram no seu giro incansável. E essa densidade e esse calor aderem às decorações encarnadas – cor insigne do Oriente e imagina-se andar em bosque de papoulas, em gruta de rubis, atrás de pássaros de fogo [...] (Id. Ibid. p.160).

5 A nomenclatura “transparência e nebulosidade” surgiu a partir do título da crônica “Transparência de

Calcutá”, onde a autora menciona aspectos da realidade factual da cidade, elementos que fazem

parte, em primeiro lugar, do real e não de sua imaginação, nesse caso, o espaço percebido é relatado

de forma aparentemente mais realista. A palavra nebulosidade surge como um contraponto para

transparência dialogando com a ideia de Cecília como poeta das nuvens. Para Cecília e para quem

conhece sua obra, nuvem tem conotação muito positiva. A intenção aqui é, portanto, mostrar duas

maneiras diferentes de Cecília descrever a Índia em suas crônicas. Nem sempre, ao longo das

análises, os termos couberam de forma eficiente, mas ajudaram a sistematizar melhor as diferenças

entre as descrições, que na maioria das vezes aparecem no mesmo relato.

24

Tão pura, a manhã. – tão leve, tão alto, tão diáfano o céu! – tão delicioso, o sítio, agora contornado por uma suave moldura de arbustos, que a lembrança da tragédia ali se transformava em sonho. [...] Estarão mortos, realmente, todos os mortos? [...] A descrição dilui-se no ar, - porque o céu é muito alto, e o horizonte muito amplo, e o sopro da palavra humana; - como o próprio sopro da vida, – uma coisa tênue e fugitiva, sem vestígio e nem eco. (Id, Ibid. p.175).

Há também o que chamo de transparência, que se refere aos trechos em

que Cecília menciona aspectos que parecem fazer parte da realidade indiana:

descrições das pessoas e suas roupas, dos mendigos, dos doentes, dos corvos, dos

pobres, das cores, da comida, das flores, dos templos, dos animais de forma a

deixar o relato mais próximo de uma descrição realista, como nos exemplos:

Até agora, só tinha visto, na Índia, pavões, elefantes, camelos, vários passarinhos, e, num palácio de Nova Delhi, um gracioso animal do Cachemir [...]. Muitos corvos também. E conhecia a voz dos chacais. Cobras, leões e tigres nunca me apareceram. Mas hoje travei conhecimento com os mosquitos. (MEIRELES, 1999. v.3, p.117)

Há, pois, muita gente, pelas ruas pobres, sem calçamento, extremamente pitorescas, com suas casas cobertas de palha [...] muitas crianças – estas crianças da Índia que me parecem as únicas crianças realmente infantis do mundo; muitos velhos, velhíssimos; alguns aleijados, moças bonitas, de cabelos lustrosos, rapazes barulhentos. (Id. Ibid. p. 221)

[...] pequenos grupos humanos, muito enrolados em panos cinzentos, velhos e desbotados.[...] Muita gente dorme assim pelas ruas. Há o problema da miséria, o problema dos refugiados (em consequência da separação do Paquistão), e também o gosto peculiar dos indianos pela natureza [...] (Id. Ibid. p. 204).

[...] os negros, mendigos sem mão, nem pés, os meninos cegos, as mulheres grávidas, os velhinhos barbados cobertos de cinza, que nós nunca soubemos se eram feiticeiros ou santos. (MEIRELES, 1999. v.2, p.169).

Uma análise mais minuciosa mostrou que o que antes tinha ares de uma

visão idealizada da Índia, pode ser visto como opção estética: Cecília relatou o que a

identificava com o local, a beleza, as cores, as afinidades espirituais. Seu interesse

não era jornalístico, não estava ali para mostrar a realidade factual histórica, pôde,

portanto, descrever aquilo que ela foi - e quis – (re)ver6 no país.

6 Utilizo o termo “rever” no sentido de salientar o que foi apontado por Dilip Loundo a respeito da

atmosfera de “revisita” que parece haver no encontro de Cecília com a Índia.

25

2.2 O HINDUÍSMO

Sábio filho, abandone a mente – o atributo limitador que origina a individualidade, assim causando a grande enfermidade de repetidos nascimentos e mortes – e realize Brahman.

Advaita Bodha Deepika, Cap. VIII, "A Extinção da Mente"

Não satisfeita com o tempo linear do cristianismo, Cecília encontra nas

religiões orientais o sentido de libertação, pela interioridade, alcançada nesta

existência. Para entender o que significa essa “libertação” é necessário entender

como se estabelece a noção de tempo no hinduísmo7.

Segundo Mircea Eliade, em O sagrado e o profano, há uma diferença entre o

tempo do homem religioso (tempo sagrado) e o tempo do homem não-religioso.

Para o homem religioso a duração temporal “profana” (tempo normal e inerente ao

homem não-religioso, com começo, nascimento, e fim - a morte) pode ser “parada”

periodicamente pela inserção, por meio de ritos, de um Tempo sagrado (tempo

mítico primordial tornado presente; toda a festa religiosa representa a reutilização de

um evento sagrado que teve lugar num passado mítico, “nos primórdios”), não

histórico. O homem religioso vive assim em duas espécies de tempo: o tempo

normal e o tempo sagrado, que se apresenta como um tempo circular reversível e

recuperável; espécie de eterno presente mítico reiterado por meio de ritos.

Já o homem não-religioso tem o tempo como algo pertencente à sua

natureza. O tempo não apresenta ruptura nem mistério, pois está ligado à sua

própria existência; tem um começo e um fim: a morte. O homem religioso recusa-se

a viver no presente histórico e esforça-se por voltar a unir-se a um Tempo sagrado

que de certo modo pode ser equiparado à eternidade (ELIADE, 1992. pp.66-67).

Este tempo do homem religioso aproxima-se muito do tempo hindu. No pensamento

7 É tarefa difícil definir o que é hinduísmo de maneira a fazer justiça a todas as suas crenças variadas,

apresentarei então um relatório daquilo que é comum às suas crenças variadas e práticas e também

ao que se encontra ao longo da obra de Cecília Meireles.

26

da Índia, assim como no de outras civilizações antigas, a ideia do tempo linear não

existe. O tempo é cíclico: o que está acontecendo agora, já aconteceu antes; o que

ainda virá, já aconteceu. É como Ouroboros, a serpente que morde a própria cauda,

símbolo da eternidade para os alquimistas medievais da Europa. Nas Crônicas de

viagem o tempo muitas vezes assemelha-se a este tempo religioso. Explanarei

melhor sobre isso nas análises das crônicas.

Além da questão do tempo, visto como eterno, há o princípio de não-

dualismo presente no Advaita Vedanta8 sistematizado por Shankara e difundido para

o Ocidente por Ramakrishna9 e seu discípulo Vivekananda. (SARASWATI, 1981.

passim). Para explicar o não-dualismo, começo pelo seu oposto. O cristianismo

pode ser considerado uma espécie de dualismo: criador e criatura, céu e inferno,

bem e mal e assim por diante.

A base da filosofia indiana são os Vedas, as fontes para o conhecimento do

Absoluto. Segundo os Vedas, Brahman10 é a única realidade, existente em si e para

si mesmo, homogêneo, sendo impossível atribuir-lhe características ou limites. O ser

que vive na ignorância (em avidya) se considera diferente do Brahman devido ao

seu ego (aham) e seu "egoísmo" (mamata), que desaparecem através de Jnana,

que promove a sabedoria (vidya) e que leva à libertação (moksha). Nesse sentido,

diferentemente do cristianismo, em que a criatura deve sentir-se inferior ao criador,

no hinduísmo, não há criador nem criatura. Ao alcançar o moksha ocorre a

libertação do eu, da dualidade, e tudo é Brahman. Livre da ignorância é possível

8 Advaita significa: “não dual”, é um sistema filosófico que sustenta a ideia de que Brahman é uno e

de que é necessário libertar-se da ilusão para entender a realidade, a consciência suprema

(Brahman). Vedanta deriva de vedas e _anta significa “final”, nesse sentido pode-se explicar vedanta

como sendo o “conhecimento mais profundo dos Vedas”.

9 Os conceitos básicos dos ensinamentos de Ramakrishna são a unicidade da existência, a

divindade de todos os seres vivos e a unidade de Deus e a harmonia das religiões. Assim como

Shankara, há cerca de mil anos, Ramakrishna renovou o hinduísmo, que tinha se fragilizado com o

excesso de superstição e ritualismo no século XIX. Todavia, além de defender a validade do Advaita

Vedanta, também aceitou o Nitya (substância eterna) e o Leela (dinâmica da realidade, literalmente

significa “jogar”) como um aspecto de Brahman. (Para entender o Advaita Vedanta de Shankara é

preciso compreender a natureza de Brahman).

10 Princípio divino e neutro é o "Absoluto", o "Espírito Divino e Infinito". É a origem e raiz de toda a

consciência que evolui neste mundo.

27

compreender a unidade do mundo e o desapego do eu torna-se consequência deste

entendimento (SARMA, 1967. passim).

O livro Cânticos (1927) 11, de Cecília Meireles, Segundo Dilip Loundo, é uma

obra de transição, ao sinalizar a inflexão da poeta na direção de sua fase mais

madura. Neste livro, encontramos os princípios do advaita presentes nas

Upanishads. (LOUNDO, 2007. p.136) Primeiro encontramos o desapego gradual

com relação aos objetos do mundo, depois a renúncia do eu e, por fiM, a ideia de

unicidade entre o eu e a totalidade do mundo, ou seja, o entendimento de Brahman.

Eles te virão oferecer o ouro da Terra. E tu dirás que não A beleza. E tu dirás que não. (...)

(Cânticos XIV)

(...) Não digas: “a vida é rápida”. Como foi que mediste a vida? Não digas: “eu sofro”. Que é que dentro de ti és tu? (...)

(Cânticos VIII)

Não busques para lá. O que é, és tu. Está em ti. Em tudo. (...)

12

(Cânticos XXII)

Já em Poemas escritos na Índia (1961)13, estão presentes os rituais e ciclos

que são símbolos de um tempo em que presente, passado e futuro (tempo Sagrado)

convergem numa conspiração para derrotar o instante. (LOUNDO, 2007. p.138).

Observando os trechos dos poemas citados até então é visível que Cecília Meireles

não só compreendeu a ideia de tempo e não-dualismo hindus como fez disso mote

11

É importante observar que Cânticos foi escrito cerca de mais de duas décadas antes da viagem da

autora à Índia, e já trazia de forma bastante evidente influências indianas.

12 In: Poesia completa. Op, cit. p 121- 134.

13 A Data suposta da primeira edição é 1961, os poemas provavelmente foram escritos em 1953. Em

correspondência pessoal, Secchin diz ter encontrado “exemplar autografado com data de janeiro de

1962”, o que auxilia na hipótese da data de publicação ter sido 1961.

28

para sua criação poética. Tais elementos não estão presentes de forma tão objetiva

em suas crônicas.

Para analisar as crônicas de viagem sobre a Índia, percebendo a

importância dada para a descrição do local, decidi fazê-lo sob o viés do espaço.

Analisando o espaço pretendo identificar que tipo de imagem a narradora-

personagem Cecília cria do país que tanto a influenciou e também mapear alguns

dos aspectos da filosofia hindu presentes no texto.

29

3 A ÍNDIA DE CECÍLIA MEIRELES

A Índia é um país de ritmos lentos e versos longos. [...] a poesia da Índia e a sua música têm uma densidade interminável. Como o próprio giro da vida, não parece haver, para elas, terminação, conclusão, fim – mas sempre continuação, encadeamento, num movimento

circular sem interrupção.

Cecília Meireles

Durante muito tempo, ao espaço foi atribuída uma função “auxiliar”, servil,

dentro do registro ficcional literário; o primeiro plano ficava a cargo do tempo. Este,

em oposição ao espaço, aparecia como uma noção nobre e filosófica. O espaço, de

certa forma, esteve sempre atrelado à noção de tempo: nós, humanos, mergulhados

nesses dois elementos, sendo-os, cometemos muitos equívocos ao tentar nomeá-

los; e, sendo a narrativa, objeto compacto, um emaranhado de ideias que culmina

em inúmeras outras, seria tarefa inútil tentar separar os dois termos para defini-los.

Michel Foucault observa que por um longo tempo a crítica literária dirigiu os

seus enfoques para a relação entre a literatura e o tempo por acreditar no

parentesco da linguagem com a temporalidade. Tal fato, de acordo com Foucault,

tem sua razão de ser, já que a linguagem restitui o tempo a si mesmo, pois ela é

escrita e, assim, vai-se manter no tempo e manter o que diz no tempo. (FOUCAULT,

2000. passim). Antonio Dimas também aponta para a carência de estudos mais

aprofundados da narrativa literária voltados para as espacialidades, diz que é fácil

perceber que alguns aspectos ganharam preferência sobre outros e que o estudo do

espaço ainda não encontrou receptividade sistemática. (DIMAS, 1994. passim).

No entanto, graças à crítica temática e à fenomenologia, o espaço passou a

assumir um papel mais digno, podendo então concorrer com a noção de tempo, já

bastante esgotada. A fenomenologia é o estudo das essências, da essência da

30

percepção, essência da consciência, e não pensa que possa haver compreensão do

mundo e do homem senão a partir dos fatos, pela experiência tal como ela é.

Transpondo tal conceito para as crônicas de Cecília Meireles sobre a Índia, é

possível, a partir de uma análise do espaço e dos elementos que o compõem,

reconhecer o posicionamento dessa narradora-personagem em relação à Índia.

Paulo Soethe, em seu artigo “Espaço literário, percepção e perspectiva” afirma que:

Dar forma literária ao espaço equivale a conformar verbalmente a linha de separação e união entre a personagem como sujeito perceptivo e o que está fora dela; equivale a distinguir e situar as coisas como delimitáveis no mundo que as personagens habitam e a explicitar a percepção do entorno das personagens. (SOETHE, 2007. p. 222).

Sob esse aspecto, além de reconhecer a percepção do país sob o viés da

cronista Cecília, pode-se, até certo ponto, delimitar o que é externo a ela e definir a

Índia sob tal ponto de vista. Todavia, como já apontado anteriormente, é uma

característica da autora usar como premissa o espaço real para dele distanciar-se e

evocar espaços imaginários. Nesse sentido, é necessário distinguir, dentro das

narrativas, quando se dá a nebulosidade e quando se dá a transparência. Para a

análise do espaço utilizarei, portanto, a definição dada por Paulo Soethe em seu já

citado artigo:

Assumo, diante disso, a definição do espaço literário como conjunto de referências discursivas, em determinado texto ficcional e estético, a locais, movimentos, objetos, corpos e superfícies, percebidos pelas personagens ou pelo narrador (de maneira efetiva ou imaginária) em seus elementos constitutivos (composição, grandeza, extensão, massa textura, cor, contorno, peso, consistência), e às múltiplas relações que essas referências estabelecem entre si. (SOETHE, 2007. p. 223).

Além da definição acima, a análise feita neste trabalho enquadra-se dentro

de dois modos de abordagem do espaço na literatura (abordagens estas

sistematizadas por Luis Alberto Brandão em seu artigo “Espaços literários e suas

expansões”)14; os modos “representação do espaço” e “espaço como focalização”.

14

No referido artigo, Luis Brandão” Este trabalho define os principais modos segundo os quais a

categoria espaço tem sido utilizada em análises literárias. Estes modos são: representação do

espaço; espaço como estruturação textual; espaço como focalização; espaço da linguagem. Também

aborda algumas tentativas de expandir o conceito de espaço e discute possíveis consequências para

os Estudos Literários”. (BRANDÃO, 2007. p. 207)

31

O primeiro é o que se interessa pela representação do espaço no texto

literário, sendo que, na maioria das vezes, nem se chega a indagar o que é espaço,

pois este é dado como categoria do universo extratextual. Isso ocorre, sobretudo,

“nas tendências naturalizantes, as quais atribuem ao espaço características físicas,

concretas (aqui se entende espaço como „cenário‟, ou seja, lugares de

pertencimento e/ou trânsito dos sujeitos ficcionais e recursos da contextualização da

ação)” (BRANDÃO, 2007 p. 208).

O segundo tem relação com o ponto de vista, afirma Luis Brandão:

Em sentido mais estrito, sobretudo no âmbito de narrativas realistas, trata-se da definição da instância narrativa: da “voz” ou do “olhar” do narrador. Em sentido mais amplo, trata-se do efeito gerado pelo desdobramento, de todo discurso verbal, em enunciado (produto do que se enuncia, ou aquilo que é dito) e enunciação (o processo de enunciar, a ação de dizer), a qual pressupõe necessariamente um agente, revestido ou não da condição ficcional. (Id. Ibid. p. 211)

Nesse tipo de percepção toma-se o narrador (ficcional ou não) também

como um espaço, “observar pode equivaler a mimetizar o registro de uma

experiência perceptiva” (Id. Ibid. p. 211). O ponto de vista do narrador é tido como

uma faculdade espacial baseada em dois planos que se relacionam: espaço visto,

percebido, concebido, configurado, e espaço vidente, perceptório, conceptor,

configurador.

Em vista disso, deve-se considerar que, no caso das crônicas de viagem,

Cecília é personagem e narradora de seu texto, e, por isso, a visão parte de um

mesmo lugar. Outro ponto importante é o fato de que o espaço descrito parte da

contemplação de um espaço real, em muitos casos, descrito de forma realista com o

intuito de descrever o que realmente se via; todavia, em outros casos, o espaço real

é apenas é motivo para que a descrição de um espaço imaginário e elucubrações

metafísicas ocorram.

Para demonstrar esses aspectos, seguem-se a análises de algumas

crônicas. Vale lembrar que os elementos mencionados acima encontram-se na

maioria das crônicas de viagem da autora e raramente separados (em crônicas

diferentes), portanto as que selecionei foram aquelas que me chamaram mais a

atenção por apresentarem de forma mais explícita um ou outro conceito e por

32

estreitarem os laços com o hinduísmo não apenas no conteúdo, mas também na

forma.

3.1 “ÍNDIA FLORIDA”

“O dia está vestido de verde cintilante, um verde sem poeira, metálico,

brunido [...]”. (MEIRELES, 1999. v. 2, p. 207) Nesta crônica, a Índia é figurada como

um imenso jardim onde tudo o que compõe o espaço transforma-se, pela cor, em

flor. Cecília descreve um almoço, em meio a jardins, em plena primavera. Os objetos

e pessoas misturam-se às flores dos jardins e, mesmo aquilo que não é natural,

parece ter origem no céu, nas pedras ou nos rios: “as mãos carregadas de

porcelanas que, pela cor, parecem arrancadas do próprio céu” (p. 207); “os doces

cristalizados têm o mesmo aspecto das pedras preciosas” (p. 208). A descrição

desse almoço assemelha-se a um sonho, emoldurado por flores, onde há um jardim

num dia de céu aberto, azul, ensolarado. A cronista relaciona o espaço do jardim

com o paraíso: “Para quem caminha por uma destas alamedas...” (p. 209).

As comidas típicas do local, junto àquelas que também são encontradas no

Brasil, fazem surgir na cronista um saudosismo: ”ah, meu Deus, como no Brasil das

crianças do meu tempo...” (p. 209) e a memória se turva devido às cores do local,

tudo parece um sonho “com estes verdes e azuis encarnados, e este céu e estas

flores, e esta gente que não parece viva, mas sonhada e sonhante...” (p. 209). Neste

ponto observa-se a nebulosidade: o espaço percebido constitui-se como motivo para

indagações, hipóteses fazendo com que se perca a referência do que é parte do

espaço real e do que pertence à imaginação de Cecília. Nessa crônica, quando as

linhas divisórias entre realidade e imaginação atenuam-se, surge a consciência da

efemeridade das coisas:

É a mansidão do arroio prisioneiro que apenas levanta o suspiro do repuxo, tão leve, e logo morre no ar, absorvido pelo vento, evaporado na luz; são os pássaros que chegam de repente, contemplam e partem [...] (Id. Ibid. p.209)

Caminhamos, assim, como quem vai mordendo a haste do dia, e a hora tem um gosto vegetal, doce ainda, de alegria, mas que sentimos tornar-se em acre saudade futura. (Id. Ibid. p.209)

E víamos, na manhã pura, as mãos dos jardineiros, essas morenas mãos, da mesma cor da terra, caminharem pelas hastes e folhas verdes, com levezas de borboleta, silenciosas, inteligentes, impessoais – como vindas de dentro da terra para completarem apenas aquele serviço das flores, e logo desaparecerem, obscuras e admiráveis, quando a luz do dia cobre de glória a sua criação. (Id. Ibid . p.210)

33

Evocar a efemeridade das coisas encaminha o relato para a descrição do

final do passeio (que encaminha a crônica para seu desfecho) onde, a partir da

contemplação de uma flor (que dura apenas aquele dia) a cronista estabelece uma

relação com os ideais hindus.

Quem se sentar aqui, em solidão, ouvirá, certamente, as flores conversarem; e que lições recolherá, do mundo vegetal, para os desvairados alunos humanos? Aceitação: consente em estar cativo na terra. Sonho: há luz, sol, estrelas, - porém muito longe. Bondade: teu doce mel é para as abelhas (que ferem). Disciplina: quando a Primavera ordena, vem-se, - não importa para quê. Humildade: que nome temos? Ignoramos. Renúncia: quando o vento quiser, leva-nos. Constância: em qualquer solidão, o mesmo perfume. Coragem: as primaveras se sucedem, embora com outras flores. Esperança: a eternidade não está na corola, mas na semente. (MEIRELES, 1999. v 2, p. 209)

A princípio, nesta citação, parece que Cecília dirige-se às flores: “teu doce

mel é para as abelhas (que ferem)”; no entanto, mais adiante, o texto passa para a

primeira pessoa do plural, e já não é mais “tu”, e sim a desinência referente ao

pronome “nós”: “que nome temos? Ignoramos?”. Após a aparição do “nós”, somem

as vozes e fica apenas uma espécie de narrador neutro, impessoal, próximo de uma

terceira pessoa: “as primaveras se sucedem, embora com outras floras. Esperança:

a eternidade não está na corola, mas na semente”.

A referência aos conceitos da filosofia hindu que permitem o reconhecimento

e entendimento da unidade ocorre por meio da analogia à flor. É ao observá-la que

se pode perceber bondade, disciplina, humildade, conceitos presentes na Bhagavad-

Gîtâ.

“Humildade: que nome temos? Ignoramos?”, nesse caso há uma referência

à renuncia do eu, necessária para que se possa ter a consciência de que tudo está

interligado, não há separação, não há ego . “Renúncia: quando o vento quiser, leva-

nos”, nesse caso refere-se à renúncia por meio do desapego, da aquietação da

mente. Entendemos, ao ler esta frase, que a flor está inerte, sem apresentar

qualquer resistência ao vento; no capítulo XVIII da Bhagavad encontramos três tipos

de abandono (renúncia) 1. o abandono do fruto, 2. o abandono da ideia que é o

agente, 3. o abandono de toda a ideia de agência, na compreensão de que o

34

“supremo” é o autor de tudo. Nesse sentido, o abandono, a renúncia são partes do

entendimento do que é brahman15.

Reencarna-se quantas vezes forem necessárias até que se esteja

completamente livre da ignorância para compreender brahman e chegar à

eternidade quebrando, assim, o ciclo de infinitos nascimentos e mortes: ou seja, a

vida continuará, ainda que em outros corpos.

“Disciplina: quando a primavera ordena, vem-se, - não importa para quê”. A

primavera é a época em que nascem as flores, podemos comparar esse trecho com

a ideia de reencarnação, ocorre o nascimento por algum motivo (cumprindo a lei do

Karma).16 Ainda há outra frase que se refere à primavera e à reencarnação:

“Coragem: as primaveras se sucedem, embora com outras flores” (p.209), ou seja, a

vida continuará, ainda que em outros corpos, até que finalmente se alcance moksha,

a libertação. Para os hindus, reencarna-se até que se realize brahman: “a eternidade

não está na corola, mas na semente”; entender Brahman significa chegar àquilo que

é a origem de tudo e a essência de tudo o que existe, a semente.

Todos esses ensinamentos encontram-se na Bhagavad-Gîtâ17. Para

exemplificar melhor resumirei em pequenas frases o assunto central de alguns

capítulos do Bhagavad, verificar-se-á, assim, a estreita ligação entre este trecho da

crônica e as bases da filosofia hindu: Caminho do Serviço Sem Egoísmo (Yoga da

ação - capítulo III); Caminho da Renúncia (Capítulo V); O Espírito Eterno (Brahman

indestrutível – capítulo VIII); A Manifestação do Absoluto (capítulo XI); Caminho da

15

De acordo com o advaita-vedanta, brahman é tudo que existe, nada pode existir para além dele,

sendo assim a “verdade absoluta” e a “realidade suprema” que absorve e elimina todo o dualismo

16 “Assim como a lei de causa e efeito se faz sentir no mundo físico, a lei do Karma atua no mundo

moral. Por exemplo, sempre que colocamos as mãos no fogo, queimamos os dedos. De modo

idêntico, sempre que um homem rouba, seu caráter é afetado para pior [...] O Hinduísmo ensina que

todas as criaturas [...] acham-se envolvidas neste processo do tempo [processo que continua por

várias vidas até que a alma obtenha moksha, a libertação], que é denominado Samsara, o estado de

cada criatura em vida particular depende do karma bom ou mau de suas vidas precedentes”

(SARMA, 1967. p. 68)

17 A Bhagavad-Gîtâ compreende os capítulos 23 a 41 do Bhismapavan, uma das seções da epopeia

Mahâbhârata. A Bhagavad-Gîtâ é um poema filosófico denominado o Evangelho da Índia, é o livro é o

livro mais lido e mais discutido de toda a literatura sânscrita, tendo 18 capítulos (18 é um número

sagrado para o Mahâbhârata) (STELLA, 1970. p.09)

35

Devoção (capítulo XII). No capítulo XVI da Bhagavad-Gîtâ encontramos as seguintes

palavras do avatar de Sri Krsna:

Destemor, pureza de espírito, firmeza no conhecimento, concentração, liberdade, controle e sacrifício, estudo das Escrituras, austeridade, retidão. Não violência, verdade, ausência de cólera, renúncia, paz, ausência de calúnia, compaixão pelos seres, ausência de ganância, doçura, modéstia, ausência de agitação. Energia, paciência, firmeza, pureza, ausência de malícia, ausência de arrogância, são as qualidades daquele que nasce com a natureza divina, ó filho de Bharata. (STELLA, 1970. p. 115)

A Bhagavad-Gîtâ reproduz, em forma poética, todos os princípios filosóficos

e éticos das Upanishads que, segundo Dillip Loundo, foram lidas por Cecília

Meireles. Daí, justifica-se o fato de encontrarmos, não raras vezes, na obra ceciliana

referências a estes textos sagrados. No caso de “Índia florida”, o espaço percebido,

uma flor - presente desde o início da crônica, onde elementos como tendas,

braceletes, mesas, travessas, a comida colorida, figuram como flores de um imenso

jardim – simboliza os sentimentos e desejos da personagem. E é sabido que a flor

lótus é a flor sagrada nacional da Índia; no Budismo e no Hinduísmo, uma flor de

lótus ainda em botão representa as possibilidades infinitas; quando aberta, simboliza

a criação do Universo; é ainda símbolo da elevação do espírito, da luz, da

meditação, da pureza e da imortalidade. Não se pode saber de que flor se trata a

que Cecília contempla naquele momento:

Aqui estamos contemplando como poetas e naturalistas esta maravilha recortada em seda viva, denticulada, franzida, polvilhada de matizes combinantes, enfeitada de pingentes mais luminosos que pérolas, mais finas que um raio de lua... Flor: mas como é seu nome particular? Não sabemos, Nem ela... Modéstia: ouvimos falar da nossa beleza, e nunca chegamos a saber de que se tratava... (MEIRELES, 1999. v.2, p. 210)

Mas é a partir do que emana dessa contemplação que se estabelecem as

relações com aquilo que é base para a cultura hindu. É sempre a partir do espaço

que surgem as evocações e divagações filosóficas e, nesta crônica, dar forma

literária ao espaço evidencia que há pouca separação entre o espaço que envolve a

“personagem” Cecília e ela como sujeito perceptivo. É como se um fosse a extensão

do outro; o espaço confirma as percepções de Cecília e vice-versa.

Nesta crônica, além de uma descrição superlativa do cenário indiano (que

exagera sua beleza), não é possível distinguir, em certo ponto, o que é real e o que

36

é imaginário, os contornos entre espaço externo à personagem e espaço interno se

atenuam de forma que a crônica termina com recordações de imagens que se

perenizam nos desenhos dos tapetes e imaginações que remetem a um espaço real,

mas que não se sabe se realmente existe. O modo indicativo é usado no lugar do

subjuntivo, atenuando mais ainda as linhas entre realidade e imaginação,

transparência e nebulosidade. Nesta análise, dei ênfase à nebulosidade, mas há

transparência quando Cecília indica as cores das tendas e as comidas, todavia a

subjetividade é bastante evidente, os adjetivos e as descrições fogem de imediato

do que tratei como transparência: os turbantes têm crista, as frutas amarelas e

vermelhas estão “suspensas como peixes em aquários”, ou seja, não sabemos a

forma, aonde estão exatamente os elementos que compõem este cenário. Tudo se

constrói como numa espécie de palheta de cores que se sobrepõem.

3.2 “O DESLUMBRANTE CENÁRIO”

Ao contrário de “Índia florida”, em “O deslumbrante cenário” Cecília atém-se

mais à descrição do espaço real. Ela relata seu trajeto de Bombaim para Nova Delhi.

A primeira parte da descrição refere-se a Bombaim, portanto. Ainda é cedo, tudo

está coberto pela sombra, as roupas estendidas balançam com a brisa, como se a

cronista estivesse passeando pela cidade. Após, os elementos do espaço são

tratados como “miniaturas”, e passa-se a desconfiar de que agora o narrador

descreve o local como que visto do alto, de um avião. Assim, Bombaim fica para

trás. Cecília manifesta o desejo de ser recebida em Nova Delhi por uma “linda fita”

“onde os olhos pudessem ler: „Delhi‟”, mas torna a voltar-se para o espaço real, pois

é “deslumbrante”. Dessa forma a cronista descreve Nova Delhi, a cidade cor-de-

rosa, seus jardins, palácios, até mesmo o seu calor no verão (embora naquele

momento estivesse frio). Nesta crônica, há bastante ransparência, os limites entre o

que é espaço real e o que é parte do mundo perceptivo imaginário da personagem

estão delimitados. Cecília cita as mesquitas, o Ktub Minar, o misterioso Pilar de

Ferro, os túmulos e... os jardins. Não é preciso muito esforço para notar que “jardins”

aparecem o tempo todo em suas crônicas da Índia, seja como título, seja como parte

do espaço. Vale salientar então que, na Índia, há muitos jardins, a maior parte deles

37

está relacionada diretamente às construções. A paixão dos indianos pelos jardins foi

herdada dos persas e o espaço ao ar livre é até hoje muito valorizado para o

descanso, a meditação e a contemplação. Nos jardins, portanto, passeiam as belas

moças e pelo chão sentam-se as famílias ao lado dos pássaros.

O deslumbrante cenário, neste caso, são as construções milenares, sua

história e seus jardins, as moças com seus sáris coloridos e suas jóias. Os jardins e

os pássaros são citados três vezes no decorrer da crônica como característicos do

Oriente e de Nova Delhi:

Os altos aposentos, os mármores brancos, o pátio interno com seu jardim cheio de pássaros mansos avivam-nos a certeza de estarmos no Oriente. (MEIRELES, 1999, v2. p. 48)

E sou arrebatada pela cidade cor-de-rosa, esta nova Delhi ocidental, de jardins grandes e virentes [...](Idem, p. 49)

Nos jardins é que passeiam as belas moças que descem dos carrinhos puxados pelos indescritíveis cavalos de Delhi. Passeiam todas enfeitadas de flores - nos cabelos, nos pulsos, no pescoço [...] (Idem, ibidem)

Pelo chão, as famílias sentam-se em grupos, a comer frutas e grãos, cercadas de pássaros que não fogem de ninguém. (Idem, ibidem)

O espaço real não serve apenas como ponte para evidenciar os desejos e

sentimentos da personagem em relação à própria Índia, mas também é apresentado

de forma mais realista - relacionado diretamente à realidade percebida pela cronista

- e detalhado de modo que consigamos visualizar uma imagem completa, não a

palheta de cores da crônica anterior.

O espaço é construído por meio da descrição da percepção sensorial que a

cronista tem do entorno, para isso a autora utiliza palavras prenhes de simbologia,

muitas vezes já estabelecida pela tradição hindu, outras vezes criada pela própria

narradora. Podemos entender, por meio da descrição detalhada do local e da

escolha de seus aspectos “belos” e “deslumbrantes”, a afinidade existente entre a

autora e a cidade. Desta vez, isto nos aparece tendo em vista aspectos de uma

relação no tempo presente (presente do texto) e nova, dada pelo conhecimento de

um novo espaço, ao contrário do que ocorre na crônica “Índia florida”, em que tal

correspondência vem por meio da descrição de um espaço que traz elementos do

passado, sendo a Índia uma já conhecida amiga - dando meios para uma maior fuga

38

da realidade. Ao ater-se principalmente a aspectos do espaço real, Cecília Meireles

demonstra estar diante de uma novidade, de um lugar ainda não conhecido.

Ainda nesta crônica, encontra-se a representação do tempo-sagrado. Como

apontado por Mircea Eliade, o homem sagrado vive em dois tempos: o sagrado e o

tempo “comum”. O tempo sagrado é retomado por meio dos rituais, revivendo a

cada instante a história dos deuses, tornando-os constantemente presentes, e

dando ao tempo uma característica cíclica. Ao visualizar as carruagens típicas de

Nova Delhi - mais precisamente os cavalinhos (que serão retomados na crônica

“Quando a vaga beija o vento”, referente a sua passagem pela Itália) – Cecília

considera que se for possível reencarnar, que seja sob a forma desses cavalos,

nesse ponto a autora aponta para o futuro, mas faz um retorno ao passado ao

mencionar a história de Xá Jehan, Aurang Zeb, Nadir Xá e o trono de pavão.18

Sob esse aspecto, Cecília une futuro, passado e presente tornando o tempo

um ciclo sem fim, onde tudo está interligado, não havendo linearidade, dialogando

então com o tempo do homem sagrado. Referir-se ao tempo sagrado ao fazer

crônica (gênero efêmero) e mesclar passado e presente ocorre porque a autora vê

no espaço elementos que permitem tais relações. Ela utiliza-se do que vê para

evocar histórias de um passado remoto da Índia que se faz presente em seus

prédios, jardins, cores e habitantes.

Na crônica a seguir há uma espécie de síntese do que se apresenta no

conjunto dos relatos sobre a Índia: referência à filosofia hindu, circularidade,

aeridade, nebulosidade e transparência. Todos esses elementos são perceptíveis a

partir da descrição do entorno que envolve a personagem.

18

Cecília reconta brevemente a história do diamante O Koh-í-noor - acredita-se que o diamante possa

ter feito parte do famoso trono de pavão do Xá Jehan (que mandou construir o Taj Mahal para abrigar

o corpo de sua amada) como um dos olhos do pavão - e cita um trecho de Jorge Manrique, dizendo

que todo o ouro e diamantes são supérfluos, mas os palácios ficaram.

39

3.3 “ADEUS AMIGA”

“Adeus, amiga: parto amanhã para Nova Delhi”, assim começa e termina a

crônica, o que de imediato também nos remete ao tempo cíclico dos hindus, Para o

homem sagrado o tempo sagrado não é linear, não há início nem fim. Além disso, há

a seguinte citação:

Os que crêem na sucessão das vidas saberão explicar por que viemos ter aqui, e, sem antecedentes nem apresentações, desconhecendo-nos completamente, andamos uma ao lado da outra pelos mesmos caminhos [...] (MEIRELES, 1999. v.3, p.167).

que remete ao conceito de Karma. Segundo Swami Sivananda o Karma produz os

frutos, assim como a dor e o prazer. Para a tradição hindu, seguramente, obtêm-se

nascimentos após nascimentos, para que se alcancem os frutos do Karma. As

diferenças de disposição que são encontradas entre um indivíduo e outro se devem

às ações passadas. Cecília refere-se ao fato de que por algum motivo (Karma) ela

está naquele momento em Bombaim.

Cecília despede-se de uma amiga, e recorda-se do que viu pela cidade.

Entretanto, embora saibamos que a autora fez uma amiga em Bombaim (ela

menciona o fato em outras crônicas).

Cecília despede-se de uma amiga, e recorda-se do que viu pela cidade.

Entretanto, embora saibamos que a autora fez uma amiga em Bombaim (ela

menciona o fato em outras crônicas), parece que em alguns momentos a cronista

dirige seu relato à cidade: “Deixo-te, Bombaim”. A princípio, isto parece estranho19,

porém pode-se dizer que Cecília está pondo em prática o princípio da não-

dualidade, está tratando a amiga e a cidade como seres que ora se confundem e

tornam-se o mesmo, ora se separam e ela dirige-se então apenas à amiga.

Outro ponto interessante é que, ainda que sendo uma despedida, Cecília não

se atém tanto a detalhes deslumbrantes da cidade, há transparência quando ela

relata aspectos mais realistas do espaço e, neste caso, dando ênfase para

elementos não tão coloridos e deslumbrantes como os de costume:

19

A princípio, parece que se trata de um erro de digitação, porém, estando a vírgula ali há a

possibilidade desta interpretação.

40

Adeus, amiga: fica tudo vivo entre nós – os negros mendigos sem mão, nem pés, os meninos cegos, as mulheres grávidas, os velhinhos barbados cobertos de cinza, que nós nunca soubemos se eram feiticeiros ou santos. Ficará o gesto claro das tuas mãos a distribuir moedas como quem dá milho aos pombos. E o guia a dizer-nos “Não dêem... não dêem... ou dêem apenas cobres...” E as tuas mãos a procurarem entender rupias e annas, sem saberem

com que dinheiro se pode tornar alguém menos infeliz. (MEIRELES, 1999. v2. p. 169)

Mas nem tudo é transparência. Há nebulosidade, a partir do que viu Cecília

atenua os limites entre realidade e imaginação. Recordando-se das lojas e bazares,

a cronista desloca-se para o universo do imaginário, passando do uso do modo

indicativo para o subjuntivo:

E começávamos a recordar contos maravilhosos, com princesas que tinham vestidos bordados de vaga-lumes [...] Se fôssemos sempre andando, sempre andando, muito tempo, muito tempo, encontraríamos uma ilha, e nessa ilha uma caverna, e nessa caverna muitos deuses... [...] tu e eu estaríamos acordados, ou dormindo? Vivos ou mortos? E quem éramos, com certeza fora do nosso nome, do nosso passaporte, das relações que ao longe conservamos – tão longe, além de tantos mares e montanhas...? (Id. Ibid. p. 170)

Há ainda a referência à efemeridade das coisas: “pelas apagadas janelas das

casas, os sonhos do sono esvoaçarão, como pássaros que levam e trazem

mensagens, panoramas, retratos efêmeros transmutáveis, irreais” (p. 167). Cecília

escreve como se ainda não tivesse saído do local, todavia já está imaginando o que

irá recordar quando estiver saindo: “irei pensando nas pequenas lojas onde se

amontoam objetos de metal amarelo” (p. 168). Ao escrever como se estivesse no

local, mas relatar o que irá recordar, já recordando, mais uma vez a autora

transforma o tempo aparentemente linear e efêmero da crônica em um tempo cíclico

e sagrado que é reafirmado por meio da repetição do começo no final do relato, ou

seja, ao final da leitura parece que ela já partiu da cidade, porém é necessário

relembrar que não, que isso tudo que foi dito acontecerá apenas amanhã.

Ainda nesta crônica, há outro elemento que aparece com alguma frequência

nos relatos de Cecília: a ficção. Aqui é quase certo que ela escreveu o relato após

ter saído da cidade, no entanto, ao escrever como se ainda não tivesse saído, a

autora insere esses tempos em uma ficção. Isto ocorre em outros relatos, em “Hotel

de verão”, por exemplo, Cecília inverte as características de algumas “personagens”

após a chegada de três meninas no hotel. Muitas vezes há início, clímax, desfecho e

a transformação das pessoas em personagens.

41

CONCLUSÃO

Concluiu-se, por meio de uma análise focada no espaço, que é a partir do que

viu que Cecília concebeu seus relatos, embora a autora tenha como característica a

nebulosidade, aeridade, etereidade e leveza, nas crônicas da Índia tudo provém do

espaço real, mesmo as lembranças, as sobreposições de tempo e as hipóteses.

O espaço percebido pela cronista-personagem é descrito de forma a salientar

algumas características do hinduísmo, como vimos o sagrado, o não-dualismo, os

ideais presentes nos vedas surgem a partir da descrição e contemplação de algum

elemento do espaço: a flor, a amiga, a própria cidade, os cavalinhos.

Após este trabalho, a imagem que se cria da Índia de Cecília é uma imagem

muito colorida de vermelho, amarelo e laranja, repleta de comidas típicas, de flores e

jardins deslumbrantes, de gente também colorida. É como a festa da primavera

intercalada por alguns nuances em que corvos, cinzas e mendigos que surgem para

completar o quadro. Todas essas imagens se mesclam de maneira não muito nítida,

dando uma ideia da mistura de tons e da diversidade que é o país. Além de deixar

em alto relevo as afinidades de Cecília com país, como já dito no capítulo 2, a autora

salienta em suas crônicas sobre a Índia aquilo que a aproximava do local; com uma

análise mais minuciosa confirma-se o que Dillip Loundo diz a respeito de a Índia ser

extremamente importante para o entendimento de toda a obra da autora.

Concluiu-se ainda que Cecília faz jus à ao hinduísmo, pois segundo Sarma,

em Hinduísmo e yoga, o hinduísmo é uma síntese de todos os tipos de experiência

religiosa, da mais baixa à mais elevada, é um conceito da vida, integral e completo.

É esta a razão pela qual se manteve de pé por todos estes milhares de anos e

sobreviveu às outras religiões. Cecília Meireles ficou conhecida por ser patrimônio

da língua portuguesa e pelas suas características universais, ao mesclar o que

aprendeu da Índia, com sua paixão por Brasil e Portugal, fazendo poesia para

crianças e adultos, interessando-se por educação, entre outras tantas coisas,

manteve sua obra complexa e instigante ao longo de todos estes anos.

Analisar o espaço em um gênero que é tido como tipicamente temporal foi um

desafio, ficou evidente a impossibilidade de separar espaço de tempo, mas foi

42

possível perceber como nos relatos de Cecília Meireles um complementa o outro,

redimensionando a crônica e tornando-a mais perene e complexa do que

comumente se define.

43

REFERÊNCIAS

Aletria: Revista de Estudos de Literatura - Poéticas do espaço. v. 15, n.1, p. 207-

220,jan.-jun./2007. Disponível em:

http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_txt/ale_15 - acesso em: maio de

2011.

ARRIGUCCI, Davi. “Fragmentos sobre a crônica”. Boletim bibliográfico Biblioteca

Mário de Andrade, São Paulo: 1985. v. 46. n. ¼. pp 43-53.

BACHELARD, Gaston. La poétique de l'espace. Paris: Presse Universitaire de

France, 1972.

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2007.

_____. “O efeito do real”. In: _____. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes,

2004, p. 181-198.

CANDIDO, Antonio. “A vida ao rés-do-chão”. In _____. Para gostar de ler. n. 5. São

Paulo: Ática, 1979-80.

DIMAS, Antonio. Espaço e romance. São Paulo: Ática, 1994.

ANDRADE, Carlos Drummond. “Imagens para Sempre”. Correio da Manhã. Rio de

Janeiro, 11 de nov. 1964, p. 4.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

______. Outros espaços. In: Ditos & Escritos III – Estética: Literatura e Pintura,

Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 411-422.

GOSVAMI, Satsvardupa dasa. Introdução à filosofia védica: a tradição fala por si

mesma. São Paulo: Bhaktivedanta Book Trust, 1986.

GOUVEIA, Leila V. B (org.) Ensaios sobre Cecília Meireles. São Paulo: Humanitas;

Fapesp, 2007.

IANNI, Octavio. “ A metáfora da viagem”. In____ . Enigmas da modernidade-mundo.

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

44

LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.

LOUNDO, Dilip. "Cecília Meireles e a Índia: viagem e meditação poética". In: Ensaios

sobre Cecília Meireles. São Paulo: Humanitas; Fapesp, 2007, p. 129- 178.

MEIRELES, Cecília. Crônicas de viagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 3 v.

_____. Poesia completa (org, Antonio Carlos Secchin). Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 2001.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins

Fontes, 1996.

PIMENTEL, Thais V. C. Viajar e narrar: toda viagem destina-se a ultrapassar

fronteiras. Varia Historia, Belo Horizonte: UFMG, 2001. n. 25. pp 81-120.

RONCARI, Luiz. A estampa da rotativa na crônica literária. Boletim Bibliográfico

Biblioteca Mário de Andrade, São Paulo: 1985. v. 46. n. ¼. pp 9-17.

SAID, Edward. Orientalism. London: Penguin Books, 2003.

SANCHARACHARYA. La sabiduria hindu. Buenos Aires: Dedalo, s/ data.

SARMA, M.A. Hinduísmo e yoga. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1967.

SARASWATI, Swami S. A systematic Course in the Ancient Tantric Techniques of

Yoga and Krya. Bihar, Índia: Yoga Publications Trust, 1981.

STELLA, Jorge B. A Bhagavad- Gîtâ. São Paulo: Revista de História, 1970.

TODOROV, Tzvetan. As categorias da narrativa literária. In: BARTHES, Roland et al.

Análise estrutural da narrativa. Petrópolis: Vozes, 1976, p. 209-254