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19 de Outubro de 2005 | Metafsica e lgica filosfica
A Libe rdade Evo lu i, de Daniel C. Dennett
Traduo de J orge Beleza
Lisboa: Temas e Debates, 2005, 365 pp.
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A liberdade evolui. E o determinismo?
Foi finalmente editada em Portugal a traduo de Freedom Evolves, de Daniel
Dennett, publicado no original em lngua inglesa em 2003. A disponibilizao
entre ns de A Liberdade Evolui merece ser assinalada, que o que pretendemos fazer com este texto.
A tese geral do livro perfeitamente compreensvel (e at esperada) dado o empenhamento do autor em
sublinhar a importncia da evoluo natural na compreenso da forma como as coisas chegaram a ser o
que so no nosso mundo:
"o livre-arbtrio real, mas no um aspecto preexistente da nossa existncia, como a lei da
gravidade. E tambm no o que a tradio declara que : um poder divino que dispensa a pessoa do
tecido causal do mundo fsico. Trata-se de uma criao da actividade e das crenas humanas que
evoluiu, e to real quanto outras criaes humanas (...)" (p. 28).
Temos, pois, que a tese central est toda no ttulo do livro: a liberdade evolui. Uma parte importante da
obra dedicada a recensear vrias tentativas para conceber como a evoluo poderia ter produzido
aquilo a que chamamos liberdade. Na verdade, no parece que Dennett esteja particularmente
empenhado em fazer valer alguma dessas teorias em particular - estando, isso sim, mais interessado em
mostrar que o padro geral das explicaes naturalistas evolucionista tambm neste particular objecto.
Embora partilhemos essa ideia geral, esta obra de Dennett no se explica somente pelo que parece ser a
sua tese central. que, se essa tese sobre a forma como a liberdade chegou a ser o que , por via
evolutiva, preciso saber de que falamos quando falamos de liberdade. Que liberdade essa que evolui?
Neste livro Dennett procura construir uma resposta a essa questo que seja compatvel com o
determinismo. Essa opo ter, claro, um efeito decisivo sobre a prpria noo de liberdade apresentada
e defendida. Num certo sentido, o determinismo passa a ser, por essa via, a verdadeira questo desta
obra. O que resultaria da eventual impugnao do argumento compatibilista, que sustenta a
compatibilidade entre liberdade e determinismo? Resultaria uma outra pergunta, "virtual", sem resposta neste texto, assim formulada: que liberdadeno-determ inista essa que evolui?
Dennett adopta nas suas obras uma posio acerca da filosofia e das suas relaes com as cincias que
reafirmada mais uma vez:
"as investigaes filosficas no so superiores ou mais importantes do que as investigaes das
cincias naturais, mas (...) so equiparadas a estas tentativas de procura da verdade (...)" (p. 29).
Esta a forma como a traduo portuguesa fixa a declarao de naturalismo de Dennett. Talvez o
original em ingls sublinhe mais a parceria entre a filosofia e as cincias do que a sua equiparao - mas,
no que toca filosofia, a higiene fundamental est l: no lhe cabe uma autoridade particular,
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Porfrio SilvaRectangle
competindo-lhe antes (o que nos parece muito mais exaltante) partilhar o esforo. Esta linha inspira a
Dennett uma viagem constante ao mundo das cincias, onde colhe alguns dos materiais que fazem a
beleza dos seus recursos argumentativos. Ilustrao clara desse processo a utilizao recorrente de
exemplos das cincias do artificial. Esse recurso, sempre fascinante, comporta, contudo, alguns riscos se
deixarmos em insuficiente aclaramento os pressupostos dos prprios dispositivos computacionais ou
tcnicos invocados. assim que o recorrente investimento em exemplificao originada em cincias do
artificial oculta, por vezes, tanto quanto mostra. Mais uma vez, neste livro, pode ser esse o caso.
Postas assim as coisas, o que nos propomos, neste texto, (i) esclarecer de que fala Dennett quando fala
de liberdade ou de livre-arbtrio - escolhendo para isso a via de (ii) fazer alguma luz sobre o significado
dos exemplos que o autor mobiliza s cincias do artificial para ilustrar e apoiar os seus argumentos.
Dennett usa uma definio de determinismo (de Van Inwagen) e prope-se defender trs teses que
contrariam o que considera serem trs erros comuns em questes de liberdade e determinismo (p. 39). A
definio a seguinte: "a cada instante s h exactamente um futuro fisicamente possvel". As trs teses
so: (1) o determinismo no implica inevitabilidade; (2) o indeterminismo no nos d liberdade; (3) um
mundo determinista no implica que as nossas opes sejam aparentes em vez de reais. O que
procuraremos fazer, no caminho do nosso objectivo, apreciar essas trs teses e os argumentos que as
servem ao longo da obra.
Chegaremos, desse modo, a um esclarecimento dos pressupostos do determinismo do autor, aos quais
(para terminar) oporemos algumas notas dissonantes.
1. Determinismo
A definio de determinismo que Dennett toma para orientar o seu argumento a seguinte: "a cada
instante s h exactamente um futuro fisicamente possvel" (p. 39). Temos de comear por considerar
um pouco mais de perto essa tese determinista. Isso necessrio, porque o autor introduz certos
dispositivos retricos que tendem a descaracterizar, na aparncia, a dita tese. O mais cndido desses
dispositivos consiste em incluir o "demnio de Laplace" na seco dedicada s simplificaes excessivas,
quando nada de substantivo da decorre para o argumento.
De facto, em certas passagens Dennett parece aperceber-se da ingenuidade do demnio de Laplace. o
caso da sua afirmao de que o determinismo uma doutrina acerca da suficincia: se S0 uma
descrio completa detalhada do estado do universo no momento t0 e S1 uma descrio igualmente
detalhada do estado do universo num momento posterior t1, S0 condio suficiente de S1 em qualquer
mundo fsico. O determinismo no uma doutrina acerca das condies necessrias para produzir S1.
Por exemplo, de acordo com o determinismo, se S0 descrever o estado do universo um segundo aps o
Big Bang, S0 causalmente suficiente para produzir o assassnio de J .F. Kennedy em 1963, mas no se
pode dizer que S0 causou tal acontecimento (pp. 99-100). Cabe notar, entretanto, que esta noo de
determinismo no corresponde tese determinista que Dennett anunciou ir guiar o seu argumento. Este
"determinismo limitado suficincia" diz apenas uma coisa simples: "o que aconteceu no mundo
material podia ter acontecido no mundo material" - e, mesmo isso, s dito retrospectivamente. Se
entendermos til usar a linguagem dos mundos possveis, poderemos ainda acrescentar: "e o que
aconteceu neste mundo podia ter acontecido em tais e tais mundos possveis". claro que Dennett pode
estar aqui a visar outro tipo de alvo, por exemplo, aqueles que defendem que h interveno divina na
histria ou que existem almas ontologicamente distintas da matria e providas de eficcia causal sobre o
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mundo fsico. No julgamos til chamar essas hipteses a qualquer tipo de explicao cientfica ou
filosfica, mas tambm no nos parece que seja preciso ser determinista para tomar a deciso
metodolgica de descartar tais hipteses. O que aqui interessa que este "determinismo da suficincia"
no o determinismo da definio adoptada por Dennett. Nessa definio, se o determinismo
verdadeiro, o assassnio de J .F. Kennedy no podia ter deixado de acontecer, quando, onde e como
aconteceu. que se "a cada instante s h exactamente um futuro fisicamente possvel" e se sempre
assim foi (isto , se o universo sempre foi determinista), ento s h um percurso possvel para este
universo desde as condies do primeiro instante e as leis que ento vigoravam. isso que leva o
matemtico Ren Thom, num clebre manifesto determinista, a atacar as teses de J acques Monod em Le
Hasard et la Ncssit nos seguintes termos: "uma vez a Terra constituda nas condies climticas e
qumicas da poca, a vida e o pensamento deviam necessariamente nascer, mesmo em presena de
"pequenas perturbaes" desse ambiente" (Thom 1990:68).
Na verdade, Dennett d ainda outros sinais de querer agilizar a sua tese determinista. Socorrendo-se de
Whitehead ("a vasta independncia causal de ocasies contemporneas o que preserva a margem de
manobra no Universo"), Dennett escreve mesmo que alguns eventos no tm qualquer causa (p. 100) -
mas, infelizmente, a explicao que d para isso no mnimo obscura. Os exemplos fornecidos (pp. 100-
103) assentam numa confuso grosseira entre a dificuldade de atribuir uma causa nica a certos
acontecimentos e o putativo carcter incausado desses mesmos acontecimentos. Para usar um dos seus
exemplos, certo que a I Guerra Mundial teve um conjunto complexo de causas, no tendo tido como
causa nica e separada o assassnio do Arquiduque Francisco Fernando, herdeiro da dupla coroa da
ustria e da Hungria, no dia 28 de J unho de 1914 em Sarajevo - mas isso no autoriza a concluso de que
I Guerra Mundial no teve qualquer causa.
O ponto de fuga de Dennett o mesmo do demnio de Laplace: a ignorncia. O autor afirma que
"vivemos num mundo que subjectivamente aberto" (p. 108), mas isso tem uma explicao: "Cada
utilizador de informao finito tem um horizonte epistmico; no sabe tudo sobre o mundo que habita e
esta ignorncia no evitvel assegura que tenha um futuro subjectivamente aberto" (p. 107). O nosso
futuro est fechado, fixado, ns que no sabemos como. A isso Dennett chama "suspense", mas estamos
como um espectador a assistir a um filme de suspense: nada est em aberto, apenas o nosso
conhecimento; a nossa sensao de liberdade pura ignorncia. No vemos em que que isso deva ser
motivo de regozijo, mas concordamos com Dennett em no deixar de esclarecer cientificamente o que
quer que seja por receio das consequncias de compreender melhor quem somos e em que mundo
estamos.
Onde a formulao de Dennett mais sofisticada do que a do demnio de Laplace ao focar-se na
pluralidade das descries possveis de um mesmo estado do mundo (pp. 83-84). Dizer que o
determinismo verdadeiro dizer que se quaisquer dois mundos partilham exactamente qualquer
descrio dos seus estados no presente, esses dois mundos partilham todas as descries dos seus
estados subsequentes. S que, mesmo com conhecimento perfeito e completo do estado do universo
debaixo de uma determinada descrio, certos aspectos que podem de um modo ou de outro ser
relevantes podem no ser acessveis nessa descrio. De qualquer modo, o problema continua a ser o
mesmo: o futuro s nos escapa a partir do presente porque no sabemos o suficiente acerca das leis
fsicas e do estado do mundo.
A tese determinista que Dennett prope para orientar o seu argumento implica que o universo s podia
ter seguido um percurso, exactamente aquele que seguiu, e nenhum outro. Nenhuma estratgia textual
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lateral deve prejudicar a compreenso desse ponto. A tese da compatibilidade entre liberdade e
determinismo (que passaremos a apreciar nas prximas seces) s pode ser devidamente apreciada se
mantivermos clara a noo de determinismo que guia o argumento.
2. Compatibilismo
Como vimos, o compatibilismo de Dennett desdobra-se em trs teses. Apreciemos cada uma delas vez.
Dete rm in ism o e in e vitabilidade . A primeira das teses que Dennett pretende defender a seguinte: o
determinismo no implica inevitabilidade. O argumento para essa tese ilustrado com um dos
dispositivos das cincias do artificial que aparecem recorrentemente nos argumentos do autor: o "jogo da
vida".
O "jogo da vida", concebido por John Hoston Conway em 1970 , um autmato celular (AC), uma
ferramenta tpica da investigao em Vida Artificial (A melhor verso do Jogo da Vida (para ambiente
Windows) que conheo pode ser obtida em linha aqui). Um AC constitudo por uma rede de clulas (um
universo). Damos agora um exemplo de 3 linhas por 5 colunas. Cada clula pode estar activa ou inactiva.
Neste exemplo, as clulas 22, 23 e 24 esto activas e todas as demais esto inactivas. Para o
comportamento de cada clula interessa o seu prprio estado e o estado das suas vizinhas imediatas (na
vertical, na horizontal e na diagonal).
O "Vida" tem 3 regras: (i) uma clula inactiva que tenha como vizinhos 3 clulas activas, torna-se activa;
(ii) uma clula activa que tenha como vizinhos 2 ou 3 clulas activas, mantm-se activa; (iii) em qualquer
outro caso, uma clula torna-se ou permanece inactiva. Uma interpretao possvel destas regras , em
coerncia com a designao de "jogo da vida", a seguinte: para que haja nascimentos, tem de haver uma
certa densidade populacional; as clulas no sobrevivem em isolamento extremo; uma densidade
populacional demasiado forte no permite a sobrevivncia. De qualquer modo, a interpretao no faz
qualquer diferena ao jogo, embora possa fazer diferena nossa maneira de olhar para ele.
O "Vida" funciona por etapas (geraes), sendo que em cada gerao se aplicam todas as regras a cada
clula. Calcula-se assim para cada clula o seu estado na gerao seguinte e, quando esse clculo est
completo, procede-se transio. Vamos aplicar esse procedimento ao exemplo apresentado acima e
teremos a seguinte "gerao 2" (em cada clula, agora, indica-se o nmero de vizinhos activos que ela
tinha na gerao 1):
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Tal como ilustrado neste caso, um AC tem trs propriedades fundamentais: paralelismo: todas as clulas
mudam de estado simultaneamente e independentemente umas das outras; localismo: a mudana de
estado de uma clula depende apenas do seu estado inicial e da sua vizinhana imediata;
homogeneidade: as leis so universais (comuns a todo o espao do AC).
Como exemplo da dinmica do "Vida", apresentam-se a seguir as primeiras geraes de um padro,
chamado "planador", que funciona precisamente segundo as regras anteriormente descritas.
O "planador" volta forma original ao fim de quatro geraes, deslocando-se no "universo" - e assim
continuar gerao aps gerao.
Um outro tipo interessante de padro aquele em que uma configurao "invade" outra, o que pode ter
vrias consequncias, uma delas sendo o desaparecimento de uma das configuraes e a permanncia de
outra (aquela "comida" por esta). o caso no exemplo seguinte.
Vejamos ento agora o uso que Dennett faz do jogo da vida. As regras do jogo e o estado inicial (quais
clulas esto activas e quais esto inactivas) definem a fsica deste universo. Uma descrio fsica do
ltimo exemplo apresentado acima seria entediante: algo do gnero de uma longa lista em que, para cada
gerao, seria indicado o estado de cada clula. Se tivssemos, em vez de um espao de 7 8 clulas, um
espao de, digamos, 1000 1000 clulas, veramos ainda melhor a inconvenincia desse tipo de
descrio. Podemos tornar a tarefa mais conveniente se adoptarmos a "postura do design": estudando os
efeitos dinmicos das regras "fsicas" do jogo podemos projectar certas configuraes celulares que
"fazem" isto ou aquilo, que "se deslocam", "se transformam", que "comem" o que lhes aparece frente,
que "evitam" as configuraes que "comem", que "persistem na sua identidade". E podemos descrever
essas configuraes com a linguagem prpria dessa postura. Como escreve Dennett (p. 56):
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"A fsica subjacente a mesma para todas as configuraes da Vida, mas algumas, em virtude nada
mais do que da sua forma, possuem poderes que outras no possuem. Este o facto fundamental do
nvel do design ."
Se dermos mais um passo e passarmos da "postura do design" para a "postura intencional", podemos
falar de configuraes no Vida que "sabem" ou "acreditam" ou "querem" isto ou aquilo. Desse modo,
aquelas configuraes do Vida que se limitavam a exibir este ou aquele padro de movimento so agora
concebidas como sistemas intencionais ou agentes racionais: "Partimos simplesmente do princpio de
que, independentemente da maneira como o fazem, fazem-no racionalmente - tiram as concluses certas
sobre o que fazer a seguir a partir da informao de que dispem e de acordo com que querem" (p. 59).
Dennett est a falar, convm no o esquecer, de configuraes de quadradinhos acesos ou apagados no
"jogo da Vida".
Dennett, apesar de reconhecer (p. 64) que no possvel especificar no Vida uma simulao
suficientemente rica para comportar certos fenmenos complexos (como uma evoluo com fim aberto,
proporcionado pela possibilidade de mutao), apoia-se na demonstrao matemtica de que possvel
implementar uma mquina de Turing universal num autmato celular deste gnero (pp. 60 -61) para
concluir que mesmo este "mundo determinista de brinquedo" tem todos os ingredientes necessrios para
permitir a evoluo de "evitadores" (configuraes "celulares" capazes de evitar o "dano" de serem
"comidas" por outras). Ento, conclui Dennett, se possvel neste mundo determinista que existam
evitadores, isso o suficiente para quebrar o nexo entre determinismo e inevitabilidade: num mundo
determinista, certos agentes podem evitar certas coisas, embora no possam evitar outras (p. 65).
Dennett resume assim o seu argumento (p. 70):
"Em alguns mundos deterministas h evitadores que evitam danos. Consequentemente, em alguns
mundos deterministas algumas coisas so evitadas. Todas as coisas que so evitadas so evitveis.
Consequentemente, em alguns mundos deterministas nem tudo inevitvel. Consequentemente, o
determinismo no implica inevitabilidade."
O que central para compreender o real significado deste argumento captar o que aqui quer dizer
"evitar": no h nada em nenhuma estrutura do Vida que evite o que quer que seja (como nada comido,
ou se desloca, ou mantm uma identidade). No Vida, ao nvel "fsico", no h evitamento nenhum. Ao
nvel "fsico" nem sequer h configuraes, apenas "clulas". No h nenhuma "lei fsica" (nenhuma
regra) para configuraes, s h regras para clulas. No h nenhum "agente" ao nvel "fsico". Tudo
depende, para ns, da iluso de movimento provocada pelo padro de "acender" e "apagar" de uns tantos
pontos no ecr do computador: como aqueles anncios de non das lojas, que tambm criam a iluso
de movimento. Est tudo "no olho do observador", tem tudo a ver com as limitaes do nosso
processamento visual: as mesmas limitaes que fazem que, quando vamos ao cinema, vejamos "imagens
em movimento" em vez de uma sucesso de fotografias (que era o que veramos se processmos as
imagens mais rapidamente e portanto as separssemos umas das outras). tudo um artefacto da
"postura intencional" inventada por Dennett. -nos conveniente, a ns humanos intrpretes, falar de
"evitamento" como um atalho de linguagem. Isso, alis, ajuda a esclarecer o verdadeiro valor da "postura
intencional", quando verificamos at que ponto ela permite este neo-animismo face a uma mera
configurao de pontos pretos a piscar num ecr de computador.
A primeira tese de Dennett (o determinismo no implica inevitabilidade) no obtm, no nosso entender,
qualquer ponto de apoio nesta ilustrao. As configuraes no "jogo da Vida" no evitam nada: com a
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dose certa de ingenuidade, parece-nos que "evitam", pela nica e simples razo de que o domnio
analtico das regras que impusemos ao projectar o jogo e ao desenhar certas configuraes nesse
universo no nos d o domnio da dinmica de um sistema a funcionar segundo essas regras (mas essa
uma limitao cognitiva nossa e no uma propriedade do sistema). Trata-se de mais um milagre da nossa
ignorncia. Para Dennett isso quer dizer que o ponto est no design. Connosco, humanos, a questo
basicamente a mesma. Ns e a lua somos feitos do mesmo material e obedecemos s mesmas leis fsicas,
mas a natureza da lua fixa e a nossa no. Ns temos muitas maneiras de reagir s condies ambientais
e a diferena est no design: ns "somos o produto de um processo de design competitivo a grande
escala; a Lua no" (p. 108). Voltaremos a este ponto.
In de te rm in ism o e libe rdade . A segunda das teses que Dennett se prope defender a seguinte: o
indeterminismo no nos d liberdade. Uma forma simples do argumento a favor desta tese traduzida
por outra das ferramentas ilustrativas a que Dennett recorre: o xadrez computacional. No essencial, o
argumento corre como segue. (Para uma introduo breve aos principais conceitos e uma crtica s
concepes acerca do xadrez computacional que prevalecem em certas correntes da investigao em
Inteligncia Artificial, cf. Silva 2004.)
Suponhamos que instalamos dois programas de xadrez (A e B) num computador e os pomos a jogar um
torneio entre eles. Como de costume as partidas ficam registadas jogada a jogada e, quando
posteriormente analisamos os registos, encontramos dois jogos exactamente iguais at 12. jogada. No
primeiro desses dois jogos, B (com as pretas) comete um erro crasso na 13. jogada e comea a a sua
derrota. No segundo desses dois jogos, A (agora com as pretas) faz uma 13. jogada completamente
diferente e ganha. Analisando o funcionamento dos dois programas, verifica-se que B no chega jogada
"salvadora" porque as respectivas vantagens na dinmica do jogo s se revelam muito longe na rvore de
procura e B, com um mecanismo de busca menos eficiente do que o de A, abandonou esse ramo da
rvore de procura antes de poder confirmar o seu interesse. O programa A, com um mecanismo de
procura mais eficiente, chega a uma avaliao suficientemente esclarecedora da jogada "salvadora"
dentro do tempo disponvel, opta por essa jogada e ganha onde B perdera. Num certo sentido, B "podia
ter feito aquela jogada": era uma jogada legal, sendo portanto uma "opo" para B. Contudo, continua
Dennett, na realidade "no podia", porque no tinha "capacidade de anlise" para l chegar: s num
mundo possvel bastante diferente que B podia ter feito aquela jogada (pp. 95-98). O design do
programa A fizera a diferena: as maneiras que ele tinha de reagir s condies ambientais eram mais
ricas do que era o caso com o programa B.
Para considerarmos, com este dispositivo, a tese agora em apreo, pergunta-se: o programa B poderia
melhorar a sua condio se tivesse acesso a um processo fsico indeterminista? Vejamos.
Os computadores incluem um gerador de nmeros pseudo-aleatrios, que para muitas aplicaes servem
como se fossem nmeros aleatrios. De cada vez que o gerador arranca (por exemplo, quando ligamos o
computador) criada uma longa sequncia de nmeros (sempre a mesma), aparentemente sem qualquer
padro. Se o computador, durante uma mesma sesso de trabalho, aceder vrias vezes a essa sequncia,
retirar de cada vez segmentos diferentes da mesma e desse modo simula aleatoriedade. Suponhamos
que o programa de xadrez, sempre que no consegue "decidir racionalmente" qual jogada fazer num
determinado momento (terminou o tempo de avaliao e as duas jogadas que so as melhores candidatas
a serem executadas na presente situao tm, com a anlise que foi possvel fazer, a mesma
classificao), "decide" recorrendo ao gerador de nmeros pseudo-aleatrios. Considere-se agora, por
mor daqueles que do muita importncia ao indeterminismo fsico, que o gerador de nmeros pseudo-
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aleatrios substitudo por um dispositivo genuinamente indeterminstico (com base em processos
qunticos, por exemplo). Se o programa A ganhava sempre ao programa B, no vai deixar de acontecer o
mesmo por se ter introduzido um mecanismo indeterminstico: o indeterminismo no acrescenta nada
em termos de possibilidades realmente interessantes (p. 98).
De forma mais profunda, o que Dennett pretende mostrar (analisando as teses de Robert Kane, em The
Significance of Free W ill, de 1976) que o indeterminismo fsico (no sentido em que a mecnica quntica
indeterminista) no tem como ser um factor de liberdade humana. Dennett identifica nestes
"libertistas" a ideia de que um agente humano s pode ser responsvel por uma sua aco desde que a
sua escolha dessa aco no tenha sido determinada pelo conjunto de condies fsicas anteriores a essa
escolha. Ora, Kane pretende garantir o livre-arbtrio introduzindo no mecanismo de tomada de deciso
prtica, algures entre a entrada e a sada de dados desse mecanismo, um processo aleatrio. Dennett, e
bem, considera que se isso tivesse alguma consequncia (o que duvidoso, como decorre do exemplo do
xadrez computacional), ela s podia ser uma: passamos a ter decises que, para situaes idnticas,
produzem resultados diferentes em momentos diferentes - o que uma concepo assaz estranha de
livre-arbtrio e de fundamento da responsabilidade (pp. 114, 126). No poderamos estar mais de acordo
com Dennett neste ponto e consideramos que, com o seu argumento que aqui esquematizmos, consegue
fazer valer a sua segunda tese: o indeterminismo no nos d liberdade. De facto, podemos perguntar:
quem quereria uma liberdade assente num mecanismo que pode ser simulado por um gerador de
nmeros pseudo-aleatrios? (Nada disto significa, contudo, que aceitemos por boas as razes apontadas
por Dennett para desvalorizar a presena e o papel do acaso, do aleatrio e do indeterminstico no
mundo fsico. A informao que Dennett carreia para esse ponto fica muito longe de fazer justia a todas
as dimenses do problema. Contudo, no sendo esse o ponto em anlise, no cabe aqui aprofundar essa
questo.)
Cabe assinalar, contudo, que Dennett pretende que a argumentao do seu captulo 4, dedicado a
mostrar as fraquezas dos "libertistas" que sigam as teses de Kane, faa outro trabalho: desmontar a tese
do incompatibilismo. A tese do incompatibilismo a seguinte: se o determinismo verdadeiro, ento no
temos livre-arbtrio. A tese que Dennett pretende defender o compatibilismo: o livre-arbtrio e o
determinismo so compatveis. Dennett mostrou bem, parece-nos, que pode haver indeterminismo e no
haver qualquer forma de livre-arbtrio moralmente relevante. Em nosso entender, de modo nenhum
demonstrou com este argumento que determinismo e livre-arbtrio possam conviver. Essa demonstrao
ter, eventualmente, de ser procurada noutro ponto, porque manifestamente abusivo considerar que o
que chega para desmentir Kane chega para fundar a tese da compatibilidade entre determinismo e livre-
arbtrio.
Op es apare n tes , o p es re ais . A terceira tese de Dennett que um mundo determinista no
implica que as nossas opes sejam aparentes em vez de reais.
O que so "opes aparentes" e "opes reais"? Seja o caso de um homem em queda num poo de
elevador. O homem "no sabe exactamente em que mundo possvel de facto se encontra" mas sabe que
est num "conjunto de mundos possveis" em que, em qualquer deles, em breve inevitavelmente cair no
fundo do poo. Isso no implica inevitavelmente a sua morte: em alguns dos mundos possveis (por
exemplo, em todos aqueles mundos possveis em que ele cai de cabea) ele morrer; mas em alguns
outros mundos possveis (por exemplo, alguns em que cai de ps e se enrola) pode sobreviver. O homem
pode planear a sua aco para aproveitar a margem de manobra que lhe dada por esse conhecimento
que ele tem das possibilidades incrustadas na sua situao: pode planear racionalmente a sua aco para
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tentar colocar-se num dos mundos possveis em que sobrevive (pp. 103-104). Aprecie-se ou no este tipo
de linguagem filosfica acerca de mundos possveis, o ponto de Dennett que por vezes podemos fazer
alguma coisa para evitar certos danos, mesmo num mundo determinista: "uma coisa inevitvel para [ti]
se [tu] no puderes fazer nada quanto a isso" (p. 74). Se temos os mecanismos apropriados para evitar
tais danos, podemos fazer alguma coisa, temos opes e elas podem fazer toda a diferena para ns: o
que interessa so as competncias de tomada de deciso que o agente tem ou de que carece (p. 147).
Nesse sentido, um organismo com um certo grau de competncia tem, num mundo determinista, uma
certa margem de manobra, opes reais, que so pontos de ramificao na nossa trajectria atravs da
histria (p. 117).
Organismos muito simples tm formas muito simples, automticas e cegas, de reagir a certas
caractersticas do ambiente que so particularmente importantes para evitar danos: meros interruptores
do tipo "se topares com a condio C, faz A". Organismos mais complexos tm tambm "mquinas de
escolhas", do tipo "se encontrares C, fazer A dar o resultado Z com a probabilidade p" (p. 177).
Organismos muito simples tm raras ocasies, durante toda a sua vida, de aplicar um desses mecanismos
a uma ramificao de caminhos. Organismos muito complexos enfrentam mais ocasies de aplicar esses
mecanismos. Nos organismos muito simples, as opes disponveis so muito limitadas; a complexidade
vem a par com mais respostas possveis s situaes. Organismos simples so "sistemas intencionais
balsticos", cujas metas so fixadas de uma vez por todas, sem reorientao possvel; organismos mais
complexos tm mais latitude para gerir metas (so "msseis guiados") (pp. 166-169).
O problema de certas interpretaes do determinismo a concepo estreita, limitada, de
"possibilidade": num mundo determinista pode haver aumento de competncia e alargamento de
oportunidades ao longo do tempo; aquilo que as pessoas podem fazer hoje mais do que as pessoas
podiam fazer no passado (pp. 307-308). Neste entendimento, h liberdade no sentido em que em certas
situaes pode dizer-se de uma pessoa que ela "podia ter feito de outra maneira". O que que isso quer
dizer? Simplesmente, que essa pessoa podia ter sido mais diligente a recolher informao pertinente para
uma determinada deciso, que informao sobre factores com um papel causal nas nossas aces
(sejam factores externos ou internos ao agente) (p. 310).
Homero, no Canto XII da Odisseia, apresenta o episdio do canto das Sereias. As Sereias, na sua ilha,
atraam com um canto irresistvel os marinheiros que navegavam ao largo, que assim se deixavam
conduzir a uma armadilha mortal. Ulisses, avisado por Circe, sabendo que tambm ele e os seus
companheiros no resistiriam tentao, preparou-se para a ocasio explicando a situao sua
tripulao, tapando com cera os ouvidos dos seus marinheiros e ordenando-lhes que o amarrassem ao
mastro do navio e que o prendessem ainda com mais cordas quando ele pedisse para o soltarem. Ulisses
no exps os seus companheiros tentao e garantiu que ele prprio, concedendo-se a oportunidade de
experimentar a situao, seria impedido nessa ocasio de tomar a m deciso que nesse momento
haveria de querer tomar: aceder ao armadilhado convite das Sereias. Esta distribuio do processo de
deciso revela uma competncia sofisticada para, com antecipao, tornar evitvel o que de outro modo
(e para os que assim no procederam) era uma inevitabilidade (pp. 219-220).
Afinal, o problema da liberdade uma questo de conhecimento: "Quanto mais sabemos, mais podemos
fazer; quanto mais podemos fazer, mais obrigaes enfrentamos" (p. 312). Devemos poder concluir,
nesse caso, que, descontadas todas as variaes irrelevantes (se no fosse possvel descontar as variaes
irrelevantes entre situaes, no seria vivel em nenhum caso fazer regras e leis de aplicao geral),
quaisquer duas pessoas que enfrentem situaes similares agiro, se estiverem igualmente bem
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informadas, substancialmente do mesmo modo nessa situao. Isso quer dizer que mil pessoas (ou um
milho de pessoas, ou...) que enfrentem uma situao equivalente na mesma posio, agiro do mesmo
modo desde que estejam igualmente bem informadas. Dennett no nos indica como fugir a esta
concluso absurda.
A tese em apreo neste ponto, lembramos, a seguinte: um mundo determinista no implica que as
nossas opes sejam aparentes em vez de reais. Tendo esclarecido o que isto significa para Dennett,
podemos desde j aceitar uma parte dessa tese: um mundo determinista no implica que no existam
opes reais, no sentido em que h pontos de ramificao na trajectria de um sistema ao longo da sua
histria. Falta esclarecer, parece-nos, um aspecto essencial: em que medida podemos dizer que essas
opes so "as nossas opes". Isto : em que sentido participamos na escolha de qual dos caminhos
seguimos em cada encruzilhada. Para isso interessa saber que liberdade essa que aqui est em questo.
3. Liberdade
Como j vimos, para Dennett a liberdade uma questo de design. Um agente tem mais ou menos
liberdade consoante a sofisticao dos mecanismos de resposta ao ambiente com que tenha sido dotado.
Certas configuraes do autmato celular "jogo da Vida" foram projectadas de forma a deslocar-se no seu
"universo", algumas foram projectadas para "comer" e outras para serem "comidas". O programa de
xadrez computacional A foi projectado de forma a avaliar correctamente a posio que se lhe apresenta
aps a 12. jogada e assim consegue encontrar o caminho para a vitria, o programa B foi projectado de
forma que o impede de encontrar esse caminho e acaba por no conseguir evitar uma derrota. O homem
em queda no poo do elevador ter ou no um conjunto de mecanismos suficientemente sofisticados
para elaborar uma resposta sua difcil situao e disso pode depender a sua vida ou morte. De que
decises cada uma dessas "mquinas" ou "organismos" capaz, consoante a forma como foi projectado,
que depende a competncia para tomar o caminho certo nas encruzilhadas que o ambiente lhes
apresenta. nesse sentido que a liberdade - a "margem de manobra" - uma questo de design.
Numa perspectiva neodarwinista, o projectista dos organismos a evoluo natural. A evoluo aumenta
os graus de liberdade:
"as rvores podem "decidir" que chegou a Primavera e que est na altura de florir", mas essas opes
so to rudimentares que no so propriamente decises. "Mas mesmo um comutador simples, que
ligado ou desligado por uma alterao do ambiente, marca um grau de liberdade, como dizem os
engenheiros, e por isso algo que precisa de ser controlado de uma maneira ou de outra. (...) Os
comutadores (quer os que s alternam entre o estado ligado e desligado, quer os de escolha mltipla)
podem ser ligados uns aos outros em srie, em paralelo e em circuitos que combinam ambos os tipos
de ligaes. medida que os circuitos proliferam, formando redes de comutao mais alargadas, os
graus de liberdade multiplicam-se vertiginosamente e as questes de controlo tornam-se complexas e
no lineares." (p. 176)
Os crebros servem para recolher e tratar a informao que permite que o organismo se oriente nesse
multidimensional espao de possibilidades. Em alguns organismos o mecanismo das "mquinas de
escolhas" torna-se particularmente sofisticado. Uma das formas mais sofisticadas de lidar com os sinais
do ambiente, que parece s existir plenamente nos humanos, consiste em distinguir aparncia e
realidade. A cultura , de forma mais geral, um patamar elevado de sofisticao desses mecanismos (p.
179).
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Para complementar a viso proporcionada pelo autmato celular e pelo programa de xadrez como
instncia de "decisores", convm tambm explicitar o que , para os engenheiros invocados por Dennett,
o conceito de "graus de liberdade". O conceito de "graus de liberdade" em engenharia compreende-se
bem, por exemplo, em robtica. Tomemos uma caracterizao bsica a partir de (Couto 2000 , captulo
2).
Um determinado membro robtico formado por vrios braos, ligados entre si por juntas. Cada tipo de
junta permite um certo movimento do segmento que lhe est ligado. O nmero de juntas e de braos de
um membro robtico permite um certo nmero de possibilidade de movimentos combinados, confere
um certo nmero de grau de liberdade (como se ilustra abaixo).
Um membro robtico com uma determinada configurao permite que a sua extremidade (a "mo")
alcance determinadas localizaes no espao circundante - mas no permite que alcance outras. Ao
espao desse modo acessvel ao membro robtico pode chamar-se "volume de trabalho" (cf. figura abaixo
para exemplos).
Adquirido, de forma precisa, o conceito de "grau de liberdade" para um "corpo robtico" ("como dizem os
engenheiros", segundo a expresso de Dennett), podemos associ-lo ao conceito de "programa de
computador" (tal como usado por Dennett) e ficar assim com o par de dispositivos conceptuais bsicos
para compreender a "liberdade em determinismo" que nos proposta: quais os danos que um
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mecanismo/ organismo capaz de evitar no mundo algo que depende do engenho posto pelo seu
projectista no respectivo programa de controlo e dos graus de liberdade conferidos ao seu corpo (ou
suporte fsico) pelo mesmo projectista. disso que depende a liberdade, porque a liberdade um
problema de design.
A reside um ponto essencial: a nossa liberdade a margem de manobra que nos foi conferida pelo
projectista (pela evoluo). A liberdade uma questo de competncia, que depende do nosso programa
e dos graus de liberdade do nosso corpo. Se o programa B de xadrez computacional tivesse sido dotado
de um mecanismo mais eficiente de procura na rvore de jogadas, esse programa de computador teria
mais liberdade. Dennett poderia ter acrescentado que o mero facto de correr o mesmo programa de
xadrez em dois computadores com velocidades de processamento muito diferentes resultaria em duas
mquinas de xadrez com competncias muito diferentes - e, nesse caso, a mquina de xadrez (programa
mais processador) com mais capacidade de clculo seria a mquina com mais liberdade.
Se a mquina, em vez de ser o computador-com-programa, for eu ou o meu leitor, temos um problema: a
nossa liberdade a "competncia" de fazer tudo aquilo que o nosso programa e os nossos mecanismos
determinam que faamos em cada situao, at aos limites suportados pelo nosso hardw are. Como
Dennett explica longamente, o nosso programa ser enormemente mais complexo do que o programa do
computador e lidar com aspectos do mundo que deixam o computador indiferente. Contudo, o nosso
programa no deixa de ser um programa, cuja "liberdade" algo como uma "medida objectiva", que nos
exterior, da nossa competncia para reagir de forma muito complexa a um ambiente complexo. Ns
somos, nessa concepo, uma mquina de digerir informao e transform-la em comportamento - to
livre como um computador. A diferena entre um humano que consideramos responsvel e outro que
acusamos de irresponsabilidade , nestes termos, uma diferena de sofisticao, de preciso e de
manuteno do mecanismo: o mecanismo do irresponsvel est a funcionar mal, no fez toda a ginstica
que consideramos normal num mecanismo humano e, portanto, fez um uso no ptimo da margem de
manobra que consideramos padro para um humano no nosso mundo. Essa a liberdade do
determinista, a liberdade definida pelo design.
Na liberdade do determinista, o que o agente faz numa certa situao depende, num certo sentido, de
quem o agente . Parece que a poder residir a responsabilidade moral. Mas "aquilo que o agente " foi
determinado por quem o projectou (pelo design do agente, pela evoluo) e pelo ambiente. Em suma, o
que o agente faz em cada instante determinado pelo estado do universo no instante anterior e,
cumulativamente, por todos os estados anteriores (de acordo com a definio de determinismo seguida
por Dennett). Se o agente no ginasticou melhor o seu corpo, se no se preparou melhor para a situao,
se no antecipou, se no treinou, se no tomou precaues - isso faz que o agente seja responsvel pelas
suas aces, porque podia ter feito de outra maneira? No, porque o que o agente fez ou no fez, em cada
instante dessa "fase preparatria", foi por sua vez determinado pelo estado do mundo no instante
anterior (mecanismos internos e ambiente). A liberdade do agente na acepo do determinista uma
iluso: s est no olho do observador. A liberdade apenas mais um efeito da postura intencional. Ns
pensamos que os outros so livres, porque no conhecemos os seus mecanismos de determinao - e
pensamos que ns prprios somos livres, porque to-pouco conhecemos os nossos prprios mecanismos
de determinao.
Uma vez que Dennett descarta o modelo do "teatro cartesiano", o que o agente faz ou deixa de fazer o
resultado de um conjunto de processos internos centrados no sistema nervoso, tambm eles processos
fsicos igualmente sujeitos ao determinismo postulado: o estado do crebro (ou do conjunto do sistema
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nervoso central, ou mesmo de todo o sistema nervoso) num dado instante estritamente determinado,
em boa ordem, pela sucesso dos seus estados precedentes - at ao nascimento do organismo e, em bom
determinismo, at qualquer ponto no passado do universo.
E isso tudo, para o determinista: a "liberdade" reduz-se a uma forma conveniente de falar de certos
sistemas. Aprofundemos, de seguida, a noo de liberdade que est aqui em causa, considerando o seu
significado em sistemas multi-agentes.
4. Liberdade em sociedade
Um elemento central da estratgia argumentativa de Dennett em A Liberdade Evolui consiste em
procurar substituir uma discusso em termos de livre-arbtrio por uma discusso das explicaes
possveis para o aparecimento da liberdade no nosso planeta. O principal resultado negativo dessa
estratgia alimentar a iluso de que um partidrio de alguma forma de evoluo natural tem de ser
necessariamente determinista - o que no o caso. De qualquer modo, perfeitamente concebvel que o
autor nos oferea uma tese ou um ponto de vista convincente sobre esse problema, a evoluo da
liberdade, mesmo que da no resulte uma sustentao adequada para o ponto de vista determinista.
Vale a pena, por isso, considerar o que nos diz Dennett numa parte substancial do seu texto, quando se
dedica a desenhar uma perspectiva acerca da liberdade de seres sociais como os humanos.
Os termos em que Dennett coloca a questo do determinismo gentico um bom ponto de partida para
esta abordagem, porque coloca em joga o papel do ambiente. Criticando em particular Stephen J ay Gould
e a sua oposio ao determinismo gentico, Dennett muito claro: o que no determinado pelos nossos
genes determinado pelo nosso ambiente (no interessa muito onde se coloca o papel do acaso, porque
isso no nos d liberdade) e no h nenhuma boa razo para preferirmos o determinismo ambiental ao
determinismo gentico (p. 172). O ponto de partida do argumento inescapvel: ningum pensa que
possamos rever completamente o nosso legado gentico (pelo menos por enquanto, no h vontade,
educao ou aprendizagem que permitam a um humano do sexo masculino dar luz). Alguns genes
fixam de forma irrevogvel certos aspectos do meu destino. Do lado do ambiente, como mostrou J ared
Diamond (Arm as, Germ es e Ao), muito do que se passa nas tendncias pesadas da evoluo das
comunidades humanas depende do seu ambiente: o nosso ambiente em grande medida o que resulta
das caractersticas genticas dos animais e plantas que esto nossa volta. No meio, esto as "mquinas
de escolhas", que fazem o melhor que podem para evitar danos.
O que curioso que, sendo isto verdade, isto no toda a verdade. Para a espcie humana, uma espcie
organizada em sociedades densas e complexas, o "ambiente" , em larga medida, constitudo pelos
nossos congneres. Para o dizer brutalmente, somos hoje predadores e presas de outros humanos muito
mais do que de qualquer outra espcie. Assim, os mecanismos de que resultam as razes da nossa aco
so, em larga medida, mecanismos cuja funcionalidade est virada para a interaco social complexa. O
problema da liberdade tem, pois, de ser pensado em termos de liberdade em sociedade.
Dennett, em perfeita coerncia com a sua ideia de que a raiz da liberdade o evitamento (como algumas
configuraes do "jogo da Vida" evitam ser comidas por outras), alinha com os inmeros autores cujos
esforos tericos so profundamente marcados pela dificuldade em compreender o altrusmo. A ideia de
proteger o interesse prprio por arranjos sociais que tm em conta o interesse comum com outros vista
como o que de mais prximo do altrusmo podemos conceber - mas sem ser realmente altrusmo, antes
uma forma de pseudo-altrusmo ou, mais propriamente, de egosmo prudente (pp. 207, 209).
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"(...) os organismos podem vir a ser concebidos pela evoluo para cooperar ou, mais precisamente,
concebidos para se comportarem de modo a preferirem o bem-estar a longo prazo do grupo ao seu
bem-estar individual imediato" (p. 210).
O argumento contra a cooperao e a favor do egosmo o seguinte: no se percebe como que a
cooperao pode ter evoludo naturalmente, porque "naturalmente" os altrustas seriam sempre
suplantados pelos "oportunistas" no seio do grupo (pp. 210-211).
Parte importante de A Liberdade Evolui utilizada para apresentar e discutir vrias teorias, propostas e
hipteses acerca de como poderiam ter evoludo naturalmente (quer dizer, como poderiam ter uma base
egosta) as formas mais elevadas de moral tal como as reconhecemos entre os humanos. No parece
muito pertinente dar pormenorizada conta de todos esses recantos da exposio de Dennett. A facilidade
com que se multiplicam teorias de base evolucionista parece-nos, em vez de um sinal de sade desse
programa de investigao, um indicador de risco de degenerescncia prematura, de deriva ideolgica, em
que "vale tudo" por faltar uma compreenso mais aguda de que s uma nfima parte do que poderia ter
evoludo teve realmente lugar na evoluo que efectivamente acabou por acontecer. Como Dennett
afirma em True Believers, dizer que um sistema como porque a evoluo assim o desenhou, afirmar
uma verdade que no explica nada: preciso ser mais concreto acerca de como que as coisas se
passaram (ou se podiam ter passado) efectivamente no processo evolutivo (Dennett 1979: 33).
As concepes de Dennett acerca das formas superiores de liberdade em sociedade so pobres, na
medida em que, exceptuando referncias ocasionais a instituies e a aco poltica, se conformam a
esquemas explicativos de exclusiva inspirao individualista. Sempre que se torna claro que difcil
compreender certas situaes, comportamentos ou fenmenos sociais numa base ordinariamente
individualista, Dennett volta sua palavra de ordem (repescada de Elbow Room ) segundo a qual quanto
mais alargar o meu eu mais serei capaz de internalizar dimenses que de outro modo encararia como
exteriores ou alheias a mim (pp. 137,227). No entender de Dennett, essa operao vai contra as
concepes "pontilhistas" do eu, do eu como "ilha" ou como "enclave" protegido do resto do mundo (p.
138). Na verdade, pelo contrrio, esse mecanismo do "alargamento do eu" torna-se necessrio nesta
concepo em que nunca se consegue ver na sociedade mais do que agregados de indivduos em ltima
instncia egostas. O "eu alargado" indispensvel para conferir alguma flexibilidade a este
individualismo que, de outro modo, ficaria encurralado na sua prpria estreiteza. Como no se quer
admitir nada que no seja o egosmo, mais ou menos "esclarecido", o que seja inexplicvel pelo "egosmo
ordinrio" reinterpreta-se como "egosmo de um eu alargado": eu defendo o barco dos outros porque
tambm navego nele e no me quero afundar.
Os instrumentos a que Dennett recorre para estimular a imaginao na direco da sua particular
concepo de liberdade em sociedade so, se bem lhes dermos ateno, esclarecedores. Focaremos a
ateno em dois deles: os memes e as explicaes em termos de teoria dos jogos.
Dete rm in ism o cu ltural: a m quin a de m e m e s
O leitor pode neste momento reproduzir, mesmo mentalmente, as quatro primeiras notas da Quinta
Sinfonia de Beethoven? No extraordinrio que essa "ideia" esteja to espalhada entre os humanos,
pelo menos de certas zonas do globo, de tal modo que provavelmente ser reconhecida como "sinal
musical" e reproduzida mesmo por pessoas que no sabem de onde ela vem exactamente? Outras ideias
andam h muitos anos pelo mundo. Esses factos so interpretados de uma forma particular por uma
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determinada teoria da cultura humana, a teoria dos memes. Dennett usa a teoria dos memes como
entrada para a sua viso da liberdade em sociedade, razo pela qual necessrio clarificar o que est em
causa por esse facto.
Richard Dawkins, em O Gene Egosta, expe a hoje em dia bem conhecida tese de que "ns, e todos os
outros animais, somos mquinas criadas pelos nossos genes", "somos mquinas de sobrevivncia -
robots cegamente programados para preservar as molculas egostas conhecidas por "genes"", de tal
modo que os nossos comportamentos resultam, pela evoluo, no dos nossos prprios interesses, nem
sequer dos interesses da espcie ou do grupo, mas dos "interesses" da unidade fundamental que o gene.
Bem vistas as coisas, o gene apenas um caso particular de um "replicador", isto , de uma molcula
capaz de fazer cpias de si mesma. Esse replicador, em dado momento, descobriu uma forma de
prolongar a sua existncia: criar mquinas de sobrevivncia, dentro das quais se instala e que controla a
partir do interior. Ns somos uma etapa dessas mquinas de sobrevivncia, robots desajeitados
construdos e controlados por colnias de genes cuja preservao a razo ltima da nossa existncia
(Dawkins 1976:29,23,41-42, 47,53-54).
No ltimo captulo dessa obra, Dawkins prope uma forma de explicar uma especificidade da nossa
espcie: a forma particular de cultura humana. A ideia que tenha surgido recentemente uma nova
estirpe de replicadores, os memes. Um meme "uma unidade de transmisso cultural, ou uma unidade
de imitao", uma estrutura que parasita os nossos crebros, tomando-os como seus veculos, sendo que
"tal como os genes se propagam no pool gentico, saltando de corpo para corpo atravs dos
espermatozides ou dos vulos, tambm os memes se propagam a si mesmos de crebro para
crebro" (Dawkins 1976: 299-300). Exemplos de memes so: melodias, ideias, modas no vesturio,
tcnicas. O meme "realizado fisicamente, milhes de vezes seguidas, como uma estrutura no sistema
nervoso de homens individuais espalhados por todo o mundo". Um exemplo de meme a ideia de Deus,
a qual tem, no ambiente da cultura humana, "um elevado grau de sobrevivncia ou de poder infectante".
Como os crebros e os seus corpos e outros veculos dos memes tm capacidades limitadas, h
competio entre memes pelo controlo desses veculos - dos crebros, mas tambm do tempo de antena
nos meios de comunicao e do espao nas bibliotecas, por exemplo (Dawkins 1976: 306). Os memes so
uma produo dos genes, porque foram estes que deram crebros s suas mquinas de sobrevivncia. Tal
como os genes, tambm os memes podem ser egostas, isto , "um trao cultural poder ter evoludo da
maneira como o fez simplesmente porque vantajoso para si prprio" (Dawkins 1976:310), mas memes
e genes podem combinar-se no sentido do reforo ou no sentido da oposio (este ltimo caso pode ser
exemplificado por um meme para o celibato).
Apesar de ter lanado uma tempestade intelectual centrada na ideia dos memes, Dawkins parece nunca
ter fixado uma leitura coerentemente determinista dessa teoria, tendo salientado a imperfeio de um
paralelismo entre genes e memes. Alm das hesitaes e reconsideraes que far em obras posteriores
dessa sua teoria, logo na sua verso original escreve, a fechar o livro (Dawkins 1976:311):
"Somos construdos como mquinas de genes e educados como mquinas de memes, mas temos o
poder de nos revoltar contra os nossos criadores. S ns, na Terra, temos o poder de nos rebelar
contra a tirania dos replicadores egostas."
Aparentemente, teramos alguma capacidade para manobrar os nossos prprios memes, embora no se
chegue a explicar como seria o correspondente mecanismo.
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Dennett, por seu lado, no partilha dessas hesitaes de Dawkins e vai levar to longe quanto possvel a
"teoria social darwinista" (como Robert L. Trivers designa as teses de Dawkins em O Gene Egosta).
Tomemos as suas formulaes sobre esse ponto em A Ideia Perigosa de Darw in (1995, principalmente
captulo XII).
A reconhece Dennett que a cultura humana nos diferencia como espcie e que ela pode contrariar
resultados de processos genticos anteriores (por exemplo, o aumento espectacular da estatura mdia
dos humanos em poucas geraes um efeito da cultura - alimentao e condies de vida - e no da
gentica), at porque as mudanas ambientais provocadas por inovaes culturais podem mudar
rapidamente a orientao das presses da seleco gentica. Contudo, cuidado com as iluses, porque "a
mente "independente" que luta para se proteger de memes estranhos e perigosos um mito": ns somos
os nossos genes e os nossos memes e o que faz a diferena no caso dos humanos que os memes so
capazes de trocar as voltas aos genes (Dennett 1995:364). A narrativa esta: tal como nos estdios
iniciais da nossa histria evolutiva as clulas procariticas foram invadidas por uma espcie de parasitas
benficos que, graas a um processo de simbiose mutuamente benfico, originaram o aparecimento de
clulas eucariticas e dos organismos multicelulares - tambm o tipo de entidades que chamamos
"pessoas" foi criado quando um certo tipo de animal (um macaco) foi infestado por um tipo especfico de
invasor, os memes (Dennett 1995: 338-339). Na verdade, continua Dennett, "eu no sou mais do que um
sistema complexo de interaces entre o meu corpo e os memes que o infestam" (Dennett 1995: 365); "o
que faz de algum o que ele ou ela so coligaes de memes que governam - que desempenham papis
prolongados para determinar que decises vo sendo tomadas" (Dennett 1995:367).
Precisamos dessa explicao, no entender de Dennett, porque, apesar da concepo corrente segundo a
qual aceitamos uma ideia por ela ser verdadeira ou bela e rejeitamos ideias falsas ou feias, se d muitas
vezes o caso de aceitarmos ideia falsas ou feias enquanto rejeitamos ideias verdadeiras ou belas (Dennett
1995: 362-363). Seria bom esclarecer - entendemos ns - quem dita a verdade e a beleza de uma ideia,
coisa que o autor no faz, como seria conveniente para revelar os pressupostos com que ataca o problema
acabado de enunciar. Ser que se trata to-somente de afirmar que existem indivduos que no se
conformam a certos padres de verdade e beleza? Ou ser que se trata de afirmar que certos indivduos
aceitam ideias que consideram falsas ou feias? Se o problema est apenas em que nem todos os
indivduos partilham os mesmos cnones de verdade e beleza, talvez valesse a pena sugerir a Dennett que
experimente revisitar uma ou outra teoria da ideologia para resolver a dificuldade proposta.
O tipo de tctica argumentativa de Dennett , neste caso, iluminado pela estratgia da mono-explicao:
"como a vida em si, e todas as restantes coisas maravilhosas, a cultura tem de ter uma origem
darwinista" (Dennett 1995:339, nfase nosso). No h, pois, que ter receio de mostrar todas as faces do
argumento. o que Dennett faz, mais uma vez, com este exemplo: "Um acadmico no passa de um meio
de uma biblioteca fazer outra biblioteca" (Dennett 1995: 344). Ns somos, bem vistas as coisas,
marionetas: "O abrigo de que todos os memes dependem a mente humana, mas esta em si mesma um
artefacto criado quando os memes reestruturam um crebro humano de modo a tornarem-no um melhor
habitat para memes" (Dennett 1995: 364). Na evoluo cultural, o agente da transmisso no o
indivduo humano: o agente da transmisso o prprio meme (Dennett 1995: n.6 p. 354). essa a
razo pela qual Dennett ridiculariza a ideia de que a evoluo memtica possa ser considerada
lamarckiana.
Em A Liberdade Evolui, Dennett sugere que os memes podem abrir uma porta ideia de que podemos
fugir nossa herana biolgica, que esse ponto de vista nos abre um mundo de imaginao que de outro
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modo nos estaria vedado (p. 192). Vista a histria da ideia e a verso que dela d Dennett, sabemos o que
isso significa. Como essa a porta de entrada para as teses do autor acerca da liberdade em sociedade,
convm ter presente em que fundamentos repousam essas teses. No fundo, A Liberdade Evolui um
longo desenvolvimento de uma nica frase de A Ideia Perigosa de Darw in : "Onde est a autonomia de
que eu preciso para agir com livre-arbtrio? "Autonomia" no passa de uma palavra sofisticada para
"autocontrolo"" (Dennett 1995: 365).
Para vislumbrar o papel que desempenham as cincias do artificial nestes debates, interessa ainda
esclarecer de outro modo o que so os memes. O meme informao, informao independente do
veculo, uma receita, um algoritmo. Na verdade, as diferenas entre capacidades humanas dependem de
diferenas micro-estruturais nos crebros humanos, a um nvel que as neurocincias (ainda) no captam.
Essas diferenas so produzidas pelos memes (Dennett 1995:420). Os memes so pequenos programas,
realizveis em diferentes suportes (papel, vdeo, crebro, computador) (Dennett 2003: 189). Isto : a
teoria dos memes mais uma forma de nos aparentar aos computadores digitais, hardw are com
softw are, mquinas com programa incorporado. Essa concepo encaixa num pano de fundo no qual a
transmisso cultural (continuando a abusar de Shannon e ignorando os seus avisos) emisso e recepo
de informao - o que se faz, por exemplo, ao "instalar energicamente tanta cultura quanto possvel nos
mais novos logo que estes a consigam absorver" (Dennett 2003:186). Somos, pois, objectos adequados, j
no apenas para a engenharia gentica, mas tambm para a engenharia memtica (Dennett 2003:277).
Parece-nos difcil de perceber que vantagem pode ter esta teoria dos memes para um ponto de vista
determinista gentico-memtico do tipo de Dennett. Talvez existam alguns ganhos ao nvel da
publicidade, um factor memtico que Dennett valoriza. Contudo, esses ganhos dissipam-se rapidamente
se tivermos o cuidado de ler com ateno tudo o que nos dito e no descurarmos o que parecem ser
pormenores. Certos autores tiveram mesmo oportunidade de mostrar o seu desagrado com a falta de
considerao da memtica por teorias anteriores que pretendiam fazer basicamente o mesmo trabalho.
o caso de Nick Rose, que preferia preservar as conquistas tericas da sociobiologia e recorrer memtica
s quando aquela fonte se mostrasse insuficiente. Rose exemplifica o problema ao analisar um
argumento de Aaron Lynch. Lynch, na sua obra Thought Contagion: How Belief Spreads through
Society (1996), em que defende uma verso da memtica como "contgio social", escreve:
"Comer alimentos ricos em gorduras faz que as pessoas ganhem peso medida que envelhecem.
Assim, a percentagem de gordura corporal das mulheres est correlacionada com a sua idade. Mas os
homens que preferem mulheres jovens podem ter carreiras reprodutivas mais longas, replicando os
seus memes em mais filhos. Desse modo, nas sociedades modernas bem alimentadas, a preferncia
por parceiras magras, ao favorecer as mulheres jovens, tem um efeito replicador mais poderoso do
que a preferncia por parceiras gordas."
Ora, escreve Rose, basta substituir a palavra "memes" pela palavra "genes" para obtermos um argumento
sociobiolgico (Rose 1998, 4). Nem sempre a mesma substituio to fcil; talvez nem sempre seja
possvel; mas til compreender a proximidade das estratgias argumentativas.
Ego sm o para co m putado res
Quando trata de tentar compreender a liberdade em sociedade, Dennett socorre-se de novo de um
instrumento popular para os praticantes das cincias do artificial: o dilema do prisioneiro, um dos
modelos mais estudados em teoria dos jogos. A teoria dos jogos uma tentativa altamente formalizada
de representar e analisar situaes em que jogadores (agentes que tm de tomar uma deciso) racionais
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interagem entre si, tendo em conta a racionalidade dos seus oponentes (ou parceiros) quando definem a
sua prpria estratgia. O dilema do prisioneiro usado para estudar o problema da cooperao,
enunciado nos seguintes termos: como que funciona a tenso entre o que bom para o indivduo no
curto prazo e o que bom para o grupo no longo prazo?
Uma apresentao clssica do "dilema do prisioneiro" como segue (em inmeras obras de exposio
bsica da teoria dos jogos aparece esta apresentao ou alguma equivalente; uma de fcil leitura Davis
1970). Dois homens suspeitos de cometerem um crime grave em conjunto so presos e colocados em
celas separadas. Interrogados, cada um deles pode confessar ou negar o crime. Se nenhum deles
confessar, no haver forma de provar o crime e os homens s sero condenados por um crime muito
menos grave (um ano de priso para cada um). A confisso confere o direito a um tratamento mais
favorvel, por constituir colaborao com a justia (se ambos confessarem, cinco anos de priso para
cada um). Se apenas um deles confessar, o crime ser considerado provado: o que confessa libertado, o
outro condenado a uma pesada pena de 20 anos. A seguinte matriz traduz a situao.
Do ponto de vista dos dois suspeitos (que so os jogadores), negar cooperar com o outro, confessar
trair. Pode parecer que o melhor resultado para ambos resultaria da cooperao (ambos negam, 1 ano
para cada um). Mas, cada um analisando a sua situao concluir que, qualquer que seja a estratgia do
outro, o melhor para si prprio no cooperar (confessar). Vejamos o raciocnio do Suspeito 1: no caso
do outro negar, se eu negar apanho 1 ano, se eu confessar vou em liberdade; no caso do outro confessar,
se eu negar apanho 20 anos, se eu confessar apanho 5 anos. O raciocnio do Suspeito 2 dar o mesmo
resultado.
O dilema do prisioneiro pode ser posto numa forma mais geral, como exemplificado na seguinte matriz:
Quanto aos resultados obtidos em cada caso, eles so os seguintes: R ("Recompensa" por cooperao
mtua), P ("Punio" por desero mtua), S (porque "Sonso" aquele que coopera quando o outro um
desertor), T (resultado de ceder "Tentao" de desertar quando o outro coopera). A estrutura de
pagamentos tpica do dilema do prisioneiro a seguinte: T > R > P > S. Isto quer dizer vrias coisas: o
pior resultado possvel para um jogador o pagamento a uma vtima de desero que no sabe agir em
conformidade (S); o melhor resultado possvel para um dos jogadores o pagamento a um desertor
individual (T); a estratgia dominante num nico encontro desertar, qualquer que seja a escolha do
oponente; a melhor escolha individual para cada um dos jogadores (desertar) conduz ao pior resultado
colectivo. esta desigualdade nos pagamentos que gera a tenso entre o interesse colectivo e o interesse
individual. Considera-se por vezes que uma segunda condio deve ser respeitada, a saber: R > (S+T)/ 2 ,
isto , a cooperao d melhores resultados do que a alternncia de mtuo acordo entre cooperao e
desero. claro que a estipulao destas condies s faz pleno sentido luz do "pressuposto da
racionalidade", subjacente a este modelo como em geral a todos os modelos da teoria dos jogos: os
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jogadores so plenamente racionais, cada um sabe que o outro assim, ambos so dotados de capacidade
de clculo ilimitada. O estudo da cooperao no quadro da teoria dos jogos assume, geralmente, que o
indivduo racional necessariamente um indivduo egosta (Axelrod 2000).
este instrumento que ocorre a Dennett para considerar o problema da cooperao. Dennett, para quem
"toda a circunstncia na natureza em que algo de parecido com a cooperao surja, requer explicao",
vira-se para este modelo explicativo: " aqui que precisamos da teoria dos jogos, e do seu exemplo
clssico, o Dilema do Prisioneiro" (p. 161). Tratemos, ento, de compreender um pouco melhor o
significado dessa opo. Para isso temos de mobilizar uma verso mais sofisticada do dilema do
prisioneiro: o dilema do prisioneiro reiterado.
Como vimos, a desigualdade T>R>P>S nos pagamentos obtidos pelos jogadores que gera a tenso entre
o interesse colectivo e o interesse individual nas situaes que admitam como modelo o dilema do
prisioneiro. por isso que a soluo do dilema do prisioneiro no quadro da teoria dos jogos s possvel
na verso reiterada: quando os mesmo jogadores repetem as suas jogadas numa srie de encontros
sucessivos, a traio deixa de ser a estratgia dominante j que cada jogador sabe que os encontros se
repetiro e que tem de ter em conta a reaco do oponente e isso despoleta um conluio tcito entre
ambos (Macy 1998: 2.1). em torno desta ideia que se desenvolve algum do trabalho mais conhecido de
Axelrod.
Efectivamente, um dos trabalhos mais influentes na utilizao de tcnicas de simulao para tratar de
fenmenos sociais o de Robert Axelrod, que, nas suas obras The Evolution of Cooperation (1984) e The
Com plexity of Cooperation (1997), procura identificar as condies para a emergncia da cooperao por
mecanismos evolutivos, pela pura interaco de agentes individuais, procurando assim uma resposta
para o problema da ordem social espontnea. O que Axelrod procurava era uma resposta para a questo:
como que o bem-estar do grupo pode prevalecer em situaes em que os interesses individuais podem
minar o interesse colectivo? O seu ponto de partida que uma explicao dessas deve respeitar trs
condies gerais: primeiro, os agentes s adoptam estratgias cooperativas se elas tm sucesso no seu
ambiente; segundo, essas estratgias cooperativas devem ser capazes de enfrentar com sucesso
ambientes em que os participantes aprendem e se multiplicam; terceiro, populaes de agentes
cooperativos devem, uma vez estabelecidas, ser imunes invaso de formas alternativas de
comportamento. Qualquer estratgia cooperativa que no responda a estes critrios no poderia ter-se
imposto num mundo dominado pela evoluo. As suas experincias de simulao, com uma verso
reiterada do dilema do prisioneiro, levaram-no concluso de que a estratgia (entre vrias propostas
por vrios autores) que era a melhor candidata a explicar o sucesso evolutivo da cooperao era a
estratgia de cooperao condicional conhecida pela designao de "Tit-For-Tat", em que o agente se
comporta do seguinte modo: coopera na primeira ronda de qualquer jogo e a partir da repete a jogada
anterior do seu oponente, seja ela qual for (se o outro coopera, eu coopero; se o outro deserta, eu
deserto).
Robert Hoffmann (2000) sintetiza o trabalho de vrios autores que questionam a robustez dos resultados
apresentados por Axelrod. O problema o seguinte: ser que as concluses de Axelrod mostram
caractersticas gerais da evoluo da cooperao ou ser que os seus resultados dependem de forma
significativa dos valores escolhidos para os parmetros das suas simulaes? A dificuldade est em que,
por vezes, embora seja relativamente fcil dar uma interpretao realista a um modelo de simulao na
sua globalidade, pode ser inexequvel dar qualquer interpretao realista para certas variaes dos
parmetros.
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Hoffmann identifica sete parmetros que, de acordo com simulaes realizadas por vrios
investigadores, ilustram este problema. Vejamos, abreviadamente, como os pressupostos que eles
representam podem minar a robustez deste tipo de experincias.
1. Representao do agente. A evoluo da cooperao sensvel aos pressupostos que dizem
respeito racionalidade do agente. Por exemplo, comportamentos envolvendo reciprocidade s
so possveis se o agente tem uma memria onde pode reter informao acerca das rondas
anteriores, mas se a reciprocidade implica clculos muito complexos isso ter custos de
racionalidade que no estaro ao alcance de qualquer agente, sobretudo se quisermos que seja
realista.
2. Populao inicial. Uma vez que o sucesso de uma estratgia depende do comportamento do
opositor, a estrutura da populao, s por si, pode ditar a sorte de certas estratgias. Por exemplo,
as estratgias de cooperao condicional no do resultado numa populao excessivamente
dominada por desertores. Note-se, entretanto, que os efeitos de presso social esto ausentes
deste tipo de simulao.
3. Estrutura da populao. Experincias que abandonam a clusula do anonimato da teoria dos
jogos, usando a identidade dos jogadores para orientar a interaco, mostram que isso pode ter
efeitos sensveis no sucesso relativo da cooperao. o caso, por exemplo, em que os agentes
podem recusar-se a interagir com um determinado oponente, devido expectativa que formaram
acerca do seu comportamento. Esta opo, s por si, pode promover a cooperao, porque os
cooperadores podem recusar interagir com os desertores. De qualquer modo, a natureza do
"dilema do prisioneiro reiterado" no admite o abandono da clusula do anonimato. Outras
experincias relativas estrutura da populao passam, por exemplo, por eliminar os que
sofreram uma desero a partir da ronda em que isso aconteceu, o que pode ser realista para
certas condies de competio (casos de vida ou de morte) mas dificulta a evoluo da
cooperao. Outras experincias, tambm difceis de enquadrar na teoria dos jogos, introduzem
dimenses espaciais (interaces preferencialmente com os vizinhos e imitao dos mais bem
sucedidos nas proximidades).
4. Dinm ica da populao. A "dinmica de replicao" usada por Axelrod para fazer variar a
populao de gerao para gerao, aumentando o peso relativo das estratgias que estavam a dar
melhores resultados, impedia que uma estratgia que se tivesse extinto voltasse a emergir ou que
surgisse qualquer estratgia nova. Tcnicas de evoluo que permitem outros cenrios (por
exemplo, permitindo que "mutaes" apaream na populao a uma certa taxa) podem resultar
em cenrios diferentes, embora o prprio afinamento do parmetro mutao suscite problemas de
mtodo (a mera modulao da taxa de mutao pode dar resultados muito diferentes, sem que
seja claro como dar uma interpretao realista a essa variao). Um dos cenrios que pode resultar
de uma dinmica mais flexvel a invaso de certas populaes por estratgias aparentemente
neutras (comportamentalmente idnticas) mas cuja diferena, quando tiver ocasio de se revelar,
ter efeitos negativos irresistveis. Seja o caso, por exemplo, de uma populao largamente
dominada pela estratgia RETALIAO PERMANENTE (coopera sempre at primeira desero
do oponente, mas, a partir da primeira desero deste, passa a desertar sempre, faa o outro o que
fizer). Se esta populao for invadida por estratgias COOPERA-SEMPRE (mesmo que o outro
deserte), isso pode no se notar durante muitas geraes, enquanto houver um largo predomnio
de cooperadores na populao (porque COOPERA-SEMPRE e RETALIAO PERMANENTE tm
o mesmo comportamento face a oponentes cooperativos). S que, se houver mais tarde uma
invaso de estratgias DESERTA-SEMPRE (mesmo que o outro coopere), a populao sucumbir
rapidamente a esta nova estratgia, porque COOPERA-SEMPRE no capaz de se lhe opor.
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5. Variao dos pagam entos. Experincias mostram que a variao dos pagamentos (por exemplo,
variando o valor de T em relao a P) pode provocar evolues diferentes (por exemplo, menor ou
menor cooperao).
6. Repetio. A repetio (jogos de vrias rondas) pode promover a cooperao, porque permite criar
reputaes. Contudo, a repetio associada a uma memria suficientemente poderosa pode
permitir que os jogadores faam clculos especficos acerca do fim do jogo (o jogador que deserta
na ltima jogada nunca ser penalizado por isso).
7. Rudo. O pressuposto de que os jogadores nunca cometem erros (seja na execuo da sua prpria
estratgia, seja na percepo da estratgia dos outros) pouco realista. O problema que certas
estratgias cooperativas so particularmente vulnerveis a esses erros. Por exemplo, num jogo
entre duas estratgias TIT-FOR-TAT, um nico erro despoletar uma srie de deseres de ambos
os lados. A capacidade para perdoar pode ajudar a remediar esse problema, mas tem de ser
equilibrada para no cair em perfis de comportamento que permitam a explorao.
No entender de Hoffmann, este leque de demonstraes de falta de robustez dos resultados de Axelrod
mostra o seguinte: primeiro, a evoluo da cooperao um fenmeno observvel em circunstncias
muito diversas (ilustradas pela modulao dos vrios parmetros mencionados); segundo, a evoluo
pode conduzir ao sucesso da cooperao com vrios tipos de estratgias de cooperao condicional e no
apenas com a estratgia Tit-for-Tat; terceiro, a desero tambm se pode impor como estratgia de
sucesso nas situaes modeladas pelo dilema dos prisioneiros reiterado. O que parece mais firme nos
resultados de Axelrod que a reciprocidade um factor chave no sucesso das estratgias de cooperao.
O tipo de crticas ao trabalho de Axelrod recenseadas por Hoffmann merece, contudo, uma outra leitura,
que implica levantar os olhos dos detalhes da simulao. Trata-se, em nosso entender, da necessidade de
questionar um uso pouco esclarecido de modelos formais que carecem do realismo mnimo para serem
autorizados como contribuies vlidas para um esclarecimento de problemas da interaco social dos
humanos. Como aponta Ken Binmore (1998), o dilema do prisioneiro repetido, tal como usado por
Axelrod, modela uma situao de interaco entre dois estranhos, sendo que numa sociedade mais
parecida com a sociedade dos humanos temos "jogos de mltiplos jogadores", num "jogo" que comeou
h muito tempo e em que a retaliao por comportamentos no cooperativos no exercida apenas pelos
envolvidos directamente, mas tambm pelos outros. E especifica:
"O jogo mais simples que parece capturar algo da intuio que os divulgadores erradamente
aprenderam a etiquetar com a marca do Tit-for-Tat um modelo de sobreposio de geraes no qual
em qualquer altura esto vivos trs jogadores. Ocasionalmente, um dos jogadores morre e
substitudo imediatamente por um novo jogador. Em cada perodo, dois dos jogadores so escolhidos
aleatoriamente para jogar o dilema dos prisioneiros, enquanto o terceiro jogador observa. H muito
tempo que de algum modo se estabeleceu um equilbrio, que agora requer que cada jogador coopere
sempre. Um jogador que no faa assim verificar que o seu oponente seguinte o punir por desero
- qualquer que seja o oponente."
No fundo, o que Axelrod consegue fazer, com o seu uso do Dilema do Prisioneiro Reiterado, ressuscitar
um debate que j tinha comeado nos alvores da teoria dos jogos, mas tinha sido abafado pelo
predomnio das interpretaes formalistas. Destacamos apenas dois exemplos fornecidos por Alvin Roth
(1995:8-13).
Quando, em 1950 (portanto, poucos anos aps a publicao da obra de von Neumann e de Morgenstern
que marca o nascimento da teoria dos jogos), Melvin Dresher e Merrill Flood realizaram na Rand
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Corporation a primeira experincia da situao que viria a ser depois conhecida como o dilema do
prisioneiro, os participantes eram remunerados pelo seu trabalho recebendo em dinheiro, no final do
exerccio, o resultado acumulado das suas jogadas ao longo de cem rondas. J ohn Nash, o matemtico e
futuro prmio Nobel com uma das contribuies mais importantes para a teoria dos jogos, criticou a
experincia por haver nela demasiada interaco. O defeito da experincia consistia, segundo Nash, no
facto de os jogadores, de facto, estarem num jogo de mltiplas jogadas e no numa sequncia de jogos de
uma nica jogada cada - o resultado de estarem sempre a jogar contra os mesmos era que se criava uma
reputao. A alternativa proposta por Nash era que os jogadores fossem sempre rodando e que nunca
fosse possvel a um jogador saber como tinha jogado nas rondas anteriores o seu actual oponente. Esse
seria apenas um momento do esforo de depurao formalista da economia experimental envolvendo
modelos da teoria dos jogos.
Autores houve que remaram num sentido diferente. Thomas Schelling realizou em 1957 experincias que
mostravam que agentes em situaes econmicas so capazes de coordenao para resolver problemas,
mesmo que isso exija recorrer a factores formalmente alheios situao. Uma dessas experincias
descreve-se de seguida. Um indivduo entra num jogo em que, simultaneamente com dois outros
jogadores, vai tentar ganhar uma certa quantia em dinheiro. Cada um dos trs designado por uma letra.
A jogada, para cada um separadamente e sem comunicar com os demais, consiste em apresentar as letras
que designam os jogadores (A, B, C) numa sequncia qualquer. Se todos propuserem a mesma sequncia,
um prmio de montante x ser distribudo por todos da seguinte maneira: para o jogador cuja letra
aparea na primeira posio, para o jogador cuja letra aparea na segunda posio, para o jogador cuja
letra aparea na terceira posio. Se nem todos propuserem a mesma sequncia, ningum recebe nada.
Obviamente, cada um ganharia o mximo possvel se a lista resultante tivesse cabea o seu prprio
"nome". Contudo, dos 40 indivduos que realizaram a experincia, 33 propuseram a sequncia ABC. Dos
40 , s 12 tinham a letra A. O que est aqui em causa, para Schelling, que os jogadores encontram, fora
da estrutura formal do problema, uma maneira de se coordenarem para alcanar um certo objectivo,
enquanto a teoria dos jogos se empenha, pelo seu formalismo, em ignorar esses factores.
Uma polmica acerca das concepes implicadas neste debate sobre a cooperao, travada entre Michael
Macy e Cristiano Castelfranchi em The Journal of Artificial Societies and Social Sim ulation , ajuda, em
nosso entender, a esclarecer alguns pontos que dizem respeito a problemas mais gerais de interpretao
das cincias do artificial.
O primeiro a tomar a palavra Macy, que toma como objecto da sua crtica a ideia, de Axelrod, de que a
cooperao motivada pela "sombra do futuro": no dilema do prisioneiro reiterado a cooperao surge
porque cada jogador consegue calcular que a sua desero provocar, no futuro, a desero do outro.
Michael Macy (1998) v, como outros, vrios problemas nesse esquema e na teoria dos jogos em geral e,
em consequncia, expe basicamente duas teses que pretendem perfilar-se para uma alternativa.
A primeira tese que os humanos em interaco no so fundamentalmente calculadores racionais. O
"jogador" que tem um modelo no dilema do prisioneiro reiterado um matemtico experimentado na
prpria teoria dos jogos, capaz de previso estratgica baseada em informao completa e na captao
perfeita da estrutura lgica de um problema bem definido. J o "jogador" que encontramos na vida
quotidiana, na generalidade das situaes que a teoria dos jogos tem a pretenso de captar, no funciona
assim. Ns no calculamos para concluir que mais racional cooperar; ns aprendemos, por exposio
repetida a certas situaes, que certos comportamentos de interaco so mais apropriados ao nosso
permanente convvio com outras pessoas. Isto : em geral, ns no deliberamos racionalmente que
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vamos cooperar, antes funcionamos segundo normas sociais, usos e costumes, convenes, rotinas,
rituais, protocolos, regras morais, hbitos e heursticas. Isso quer dizer que a ordem social no emerge da
sombra do futuro, mas das lies do passado. Os insectos sociais (como as abelhas) esto geneticamente
programados para seguirem regras conformes ao interesse do enxame, enquanto os humanos adquirem
essas regras por repetio face experincia. Se as nossas formas de interaco social dependessem
usualmente de deliberao racional, as relaes sociais seriam um emaranhado de respostas
inapropriadas a reaces inesperadas por parte dos outros.
A segunda tese em certa medida uma consequncia da anterior: uma vez que os humanos em
interaco so basicamente repetidores de padres (e no seres em permanente deliberao racional), o
que precisamos para explicar a cooperao um modelo baseado na emergncia. Isto : a "cooperao
emergente" explica como que padres de interaco simples e dependentes de informao acessvel ao
agente de forma puramente local so capazes de gerar solues globais altamente complexas. Essa
"cooperao emergente", assente numa teoria dos jogos evolucionista, s tem de assumir uma populao
de agentes adaptativos mopes regidos por regras - embora d origem a sistemas dinmicos no
susceptveis de compreenso analtica, devido sua no linearidade e s suas propriedades estocsticas.
Como extenso desta tese defende a teoria do "gene egosta" e pretende que ela permite resolver o
problema da explicao do altrusmo: se o altrusmo sempre um sacrifcio, como explic-lo? Se for o
"gene egosta" a controlar o comportamento do seu portador, o altrusmo explicado pelos conceitos de
adaptao inclusiva e altrusmo de parentela: o altrusmo um comportamento ditado pelo gene (e no
pelo indivduo portador); o sacrifcio do indivduo nada interessa ao gene de que ele portador, desde
que esse comportamento melhore as condies de reproduo do gene nos parentes desse portador. Esta
explicao exemplifica, no entender de Macy, as vantagens de um modelo em que o "jogador"
subdeterminado, em vez de ser encarado como um agente intensamente deliberativo nas suas interaces
sociais.
Cristiano Castelfranchi (1998) responde a Macy segundo as seguintes linhas.
Em primeiro lugar, a usual identificao entre "racionalidade" e "egosmo" ocupa um lugar central na
argumentao de Macy. Para essa perspectiva, qualquer cooperao um sacrifcio, uma jogada perigosa.
Contudo, nada na teoria da deciso racional justifica essa identificao, porque essa teoria lida
exclusivamente com a razo instrumental: essa teoria diz respeito aos meios para atingir os fins do
agente, no diz respeito forma de definir os fins e estes podem ser, por exemplo, o bem do grupo ou o
bem de outro agente. O problema que a teoria da deciso racional acaba por ser sistematicamente
contaminada por certas vises da racionalidade econmica, em que os fins do agente so entendidos de
forma restrita como "lucro" (apesar de a "utilidade" no ter que ser, mesmo em termos econmicos,
reduzida ao lucro). Esta ideia da sociabilidade como um mal necessrio, em que os agentes so
fundamentalmente oponentes, uma consequncia indesejvel de uma filosofia utilitarista.
Em segundo lugar, inaceitvel a ideia de que os agentes no podem ser deliberadamente cooperativos:
eles so-no muitas vezes e de forma significativa. Os agentes so, em muitas circunstncias,
deliberadamente cooperativos, por exemplo por terem (ou por acreditarem que tm) objectivos comuns
ou interesses comuns com outros agentes. certo que h cooperao repetitiva (como diz Macy), mas
tambm h cooperao deliberada, tal como h cooperao altrusta sem deixar de haver tambm
cooperao egosta. preciso evitar as taxinomias simplistas: a "ordem social" no sempre cooperativa,
nem "boa".
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Em terceiro lugar, Castelfranchi retira consequncias importantes do facto de reconhecer parcialmente
razo a Macy, quando este assinala que h aspectos emergentes da cooperao e que nem tudo
deliberado. que, se os agentes podem planear, podem antecipar o futuro e isso tem consequncias ao
nvel do seu comportamento, tambm certo que mesmo assim no podem prever todos os efeitos
globais e compostos das suas aces ao nvel colectivo. preciso reconciliar emergncia e cognio,
porque mesmo as aces plenamente intencionais dos agentes tm efeitos colectivos que eles no
poderiam intencionar e, por essa via, h efeitos colectivos emergentes tanto dos aspectos intencionais
como dos aspectos no intencionais da aco de agentes que interagem socialmente de forma deliberada.
Este debate entre Macy e Castelfranchi muito til para compreender o que o tipo de determinismo
assumido por Dennett implica em termos de (dificuldade de) compreenso dos fenmenos sociais
humanos. que Dennett, embora pa