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A Lógica das Ciências Morais de J.S. Mill: elementos para uma teoria da explicação dos fenômenos sociais Jordão Horta Nunes (texto didático para circulação interna) A Lógica das Ciências Morais 1 , livro que encerra o monumental Sistema de Lógica de Stuart Mill, constitui um marco nas tentativas de determinar as características de uma metodologia científica adequada à investigação da natureza humana e das realizações dos homens em sociedade. Consciente da precariedade das ciências psicológicas e sociais com relação à pujança das ciências empíricas naturais no final do séc. XIX, tanto em termos teóricos quanto nas possibilidades de aplicação prática, Mill propõe-se a reconstruir a descrição e caracterização dos métodos aplicáveis à ciência em geral, realizadas nos cinco livros anteriores, em relação ao domínio mais específico da investigação dos fatos morais e sociais. LCM, considerada pelo próprio autor como um apêndice ao Sistema de Lógica, ganha autonomia e gera extensões teóricas em muitos aspectos, vindo a ser considerada obra de referência obrigatória, influenciando as ciências sociais emergentes e em consolidação desde o início do presente século, particularmente a vertente analítica na metodologia das ciências sociais. Stuart Mill, dialogando criticamente com pensadores de sua época, a exemplo de Bentham e Comte, recupera, em LCM, os esforços de Locke e Hume na constituição de uma ciência do homem. Pretendemos aqui reconstituir, em linhas gerais, o percurso de Mill na adequação de sua metodologia geral de investigação da natureza à pesquisa das ações e valores sociais. Tal tarefa exige uma recapitulação dos pressupostos metodológicos de LCM, que abrangem basicamente a constituição e a crítica do raciocínio indutivo por eliminação, fundamentado pela lei da causalidade. Causalidade e leis naturais A lógica, para Mill, consiste na investigação do conhecimento que é produzido por meio de inferências a partir de verdades previamente conhecidas, com objetivo de julgar a suficiência das evidências oferecidas em investigações particulares. A indução, chave do processo inferencial, é analisada por Mill no livro III de SL ("Da indução") e consiste na operação de descobrir e provar proposições gerais, a partir de instâncias individuais observadas. A teoria da indução de Mill depende de uma premissa maior que estabelece uma condição de uniformidade na natureza. Só podemos induzir se considerarmos assegurada a possibilidade de repetição de um evento, sendo mantidas as circunstâncias em que ocorre. A manutenção do princípio de uniformidade como condição fundamental para a indução gera dois problemas lógicos. O primeiro é que qualquer generalização a partir de instâncias 2 singulares, quando exposta na forma de um silogismo, pressupõe uma premissa que não se 1 As referências específicas à Lógicas das Ciências Morais (doravante LCM) são extraídas da tradução de Alexandre Braga Massella (. As referências ao Sistema de Lógica (doravante SL) tomam por base a tradução de João Marcos Coelho feita de textos selecionados do Sistema de Lógica Indutiva e Dedutiva, publicada na coleção Os Pensadores. 2 Mill utiliza o termo "instância", no sentido de ocorrência ou caso experimental de um fenômeno, no mesmo sentido anteriormente empregado por Bacon. O termo correlato "circunstância" designa as condições nas quais o caso experimental ocorre.

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A Lógica das Ciências Morais de J.S. Mill:

elementos para uma teoria da explicação dos fenômenos sociais

Jordão Horta Nunes (texto didático para circulação interna)

A Lógica das Ciências Morais1, livro que encerra o monumental Sistema de Lógica de Stuart Mill, constitui um marco nas tentativas de determinar as características de uma metodologia científica adequada à investigação da natureza humana e das realizações dos homens em sociedade. Consciente da precariedade das ciências psicológicas e sociais com relação à pujança das ciências empíricas naturais no final do séc. XIX, tanto em termos teóricos quanto nas possibilidades de aplicação prática, Mill propõe-se a reconstruir a descrição e caracterização dos métodos aplicáveis à ciência em geral, realizadas nos cinco livros anteriores, em relação ao domínio mais específico da investigação dos fatos morais e sociais. LCM, considerada pelo próprio autor como um apêndice ao Sistema de Lógica, ganha autonomia e gera extensões teóricas em muitos aspectos, vindo a ser considerada obra de referência obrigatória, influenciando as ciências sociais emergentes e em consolidação desde o início do presente século, particularmente a vertente analítica na metodologia das ciências sociais. Stuart Mill, dialogando criticamente com pensadores de sua época, a exemplo de Bentham e Comte, recupera, em LCM, os esforços de Locke e Hume na constituição de uma ciência do homem. Pretendemos aqui reconstituir, em linhas gerais, o percurso de Mill na adequação de sua metodologia geral de investigação da natureza à pesquisa das ações e valores sociais. Tal tarefa exige uma recapitulação dos pressupostos metodológicos de LCM, que abrangem basicamente a constituição e a crítica do raciocínio indutivo por eliminação, fundamentado pela lei da causalidade.

Causalidade e leis naturais

A lógica, para Mill, consiste na investigação do conhecimento que é produzido por meio de inferências a partir de verdades previamente conhecidas, com objetivo de julgar a suficiência das evidências oferecidas em investigações particulares. A indução, chave do processo inferencial, é analisada por Mill no livro III de SL ("Da indução") e consiste na operação de descobrir e provar proposições gerais, a partir de instâncias individuais observadas. A teoria da indução de Mill depende de uma premissa maior que estabelece uma condição de uniformidade na natureza. Só podemos induzir se considerarmos assegurada a possibilidade de repetição de um evento, sendo mantidas as circunstâncias em que ocorre. A manutenção do princípio de uniformidade como condição fundamental para a indução gera dois problemas lógicos. O primeiro é que qualquer generalização a partir de instâncias2 singulares, quando exposta na forma de um silogismo, pressupõe uma premissa que não se

1 As referências específicas à Lógicas das Ciências Morais (doravante LCM) são extraídas da tradução de Alexandre Braga Massella (. As referências ao Sistema de Lógica (doravante SL) tomam por base a tradução de João Marcos Coelho feita de textos selecionados do Sistema de Lógica Indutiva e Dedutiva, publicada na coleção Os Pensadores.2 Mill utiliza o termo "instância", no sentido de ocorrência ou caso experimental de um fenômeno, no mesmo sentido anteriormente empregado por Bacon. O termo correlato "circunstância" designa as condições nas quais o caso experimental ocorre.

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relaciona com o princípio de uniformidade: o que é verdadeiro para o caso particular é também verdadeiro para o caso geral. Em segundo lugar, o princípio de uniformidade não pode ser uma premissa imediata, pois ele é propriamente o resultado de uma generalização tardia. Mill apresenta sua solução ao problema recorrendo a um procedimento que realizamos espontaneamente no senso comum, quando corrigimos generalizações mais restritas por outras mais amplas, com base na observação e na experiência. Existem graus de uniformidade no universo, o que explica o fato de uma instância ser suficiente, em alguns casos, para gerar uma indução completa, enquanto em outros casos milhares de instâncias não são suficientes para a elaboração de uma proposição universal. A ciência vai privilegiar, evidentemente, as uniformidades que podem ser consideradas como certas e universais, a partir das quais é possível erigir outras induções a este grau de certeza (Cf. SL, p. 177) O procedimento de submeter as induções mais fracas a outras mais fortes constitui a própria lógica da prova e o problema fundamental da teoria da indução é reconhecer, dentre as uniformidades detectáveis pela observação comum, aquela que deve permanecer como verdadeira em todas as circunstâncias possíveis. Mill sustenta como verdadeira e postula como lei da natureza, extensiva a toda a experiência humana, a generalização de que todo fato que tem um começo tem também uma causa (SL, p. 180). Tal lei da causalidade, postulada como axioma ao qual devem se submeter todas as induções a partir de instâncias particulares, é fixada e determinada com grande precisão no livro III de SL, como convém a uma noção considerada por Mill como raiz de toda a teoria da indução. Limitaremos nossos comentários aos elementos que consideramos imprescindíveis na caracterização da causalidade.

Existe um relação causal entre dois fenômenos sucessivos quando, ocorrendo o primeiro, invariavelmente acontece o segundo. A invariabilidade na sucessão, que caracteriza a causalidade para Mill, é considerada em termos puramente físicos, prescindindo de qualquer conexão necessária entre a causa e o efeito. A noção de causalidade, assim concebida, refuta o providencialismo e o fatalismo, tendo importantes conseqüências na lógica das ciências morais de Mill, como veremos adiante. Entretanto, existe uma série de dificuldades na investigação das causas; a simples observação constata que mesmo o mais simples dos fenômenos pode ter origem em várias causas, que, por sua vez, estão imersas no conjunto de circunstâncias que envolvem a ocorrência do fenômeno, tornando difícil, se não impossível, a identificação correta das causas. Os métodos de indução por eliminação descritos por Mill possibilitam a exclusão lógica das circunstâncias (juntamente com os elementos) que não apresentam relação causal, embora sejam bastante limitados para os fenômenos mais complexos, como é o caso dos fenômenos sociais.

Mill distingue, na investigação das causas, os efeitos que decorrem de uma concorrência (conjunção) de causas e aqueles que são provenientes de uma pluralidade de causas (disjunção). Nos casos de conjunção a seqüência compreende um conseqüente e a associação de vários antecedentes, onde nenhum dos antecedentes pode ser considerado isoladamente como causa do fenômeno, apesar de que determinadas circunstâncias venham a possibilitar a escolha de um elemento específico como causa. A conjunção de causas pode se apresentar de duas formas, das quais a primeira e mais freqüente é designada por "composição", na qual o efeito conjunto de diversas causas é igual à soma de seus efeitos separados; constitui o modo que representa o caso geral. Mill caracteriza a composição de causas em analogia com a composição vetorial de forças na física, o que permite a compreensão da presença de condições negativas e de casos nos quais as causas não produzem os efeitos esperados,

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mas algumas condições que permitem a ocorrência desses efeitos. A outra forma de concorrência de causas é a "combinação química", termo escolhido por Mill em analogia com as reações químicas, onde as propriedades das substâncias produzidas não correspondem à soma das propriedades das substâncias que reagem. Na "combinação" a ação conjunta das causas altera as leis apresentadas pelas causas quando atuavam em separado e um conjunto novo de efeitos substitui ou se incorpora àqueles que surgem da ação individual das mesmas causas.

A pluralidade de causas ocorre quando um efeito pode ser produzido por diferentes causas ou ser o conseqüente invariável de diferentes conjuntos de antecedentes. Da noção de pluralidade deriva uma conseqüência lógica, cujos desdobramentos dividem os especialistas: se consideramos que um fenômeno pode ser causado por diferentes conjuntos de antecedentes podemos admitir que nenhum destes é necessário; portanto, a causalidade é uma condição suficiente, mas não necessária (Cf. Massela, 1996, p. 79). Poderíamos, perante essa conclusão, relativizar a dimensão ontológica da suposição da pluralidade de causas e guardar sua validade apenas como regra metodológica, exigindo maior rigor do pesquisador para que prossiga em sua investigação até que seja encontrada a verdadeira relação causal, seja por antecedente único ou por conjunção. Outra alternativa seria admitir que a pluralidade acontece realmente em certos fenômenos e considerar a causalidade apenas como condição suficiente nas leis naturais, questionando a teoria indutiva de Mill. Adotamos aqui a posição de Massela, quando afirma que, qualquer que seja a interpretação escolhida, "o que os interessa ressaltar é a possibilidade de extrairmos dela a exigência metodológica, imposta ao investigador, de tentar superar, sempre que possível, conclusões compatíveis com a pluralidade de causas" (p. 81).

A distinção entre concorrência e pluralidade de causas, com os desdobramentos metodológicos que acarreta para a investigação dos fenômenos naturais, embora esclareça as formas de manifestação da causalidade, ainda não elucida as condições nas quais as leis causais devem ascender ao estatuto de leis da natureza. A noção de causalidade como seqüência invariável tem como corolário a afirmação de que todos os eventos que se sucedem invariavelmente, como o dia e a noite, estariam causalmente relacionados; o dia seria causa da noite, e a noite a causa do dia, nesse exemplo. Mill argumenta que a noite seguirá o dia apenas na condição de que o sol nasça no horizonte e que nenhum corpo opaco se interponha entre nós e o sol (Cf. SL, p. 183). Assim, uma seqüência invariável não significa causação, a menos que seja incondicionada, ou seja, que "acreditemos não apenas que o antecedente sempre foi seguido pelo conseqüente, mas que, enquanto durar a presente constituição das coisas, sempre será assim" (SL, p. 183, destaques do autor). A expressão anterior designa, para Mill, uma "lei fundamental da natureza", qualquer que seja seu objeto. Tais leis, referentes a uniformidades incondicionais, permitem deduzir leis derivadas e, portanto, constituir ciências dedutivas. As leis fundamentais e as derivadas compõem um complexo que Mill designou metaforicamente como "rede de regularidades", que constitui o próprio universo da investigação das causas, embora nem todas sejam de interesse específico da ciência. Eleger, ainda que provisoriamente, algumas regularidades como causais em meio a inúmeras outras uniformidades exige o emprego de métodos de indução por eliminação (por observação ou experimentos artificiais) e a possibilidade de relacionar dedutivamente as leis obtidas por seu intermédio.

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Exposição e crítica dos métodos de indução por eliminação

É necessário ressaltar que o raciocínio por eliminação é apenas uma parte da atividade de investigação da natureza, que deve ser necessariamente complementada pela classificação e pela definição, temas desenvolvidos no Livro IV de SL. Além disso, o emprego dos métodos pressupõe hipóteses prévias, pois alguma espécie de indução preliminar é necessária na preferência de um experimento em relação a outros. J.L. Mackie, reconstruindo os métodos de indução por eliminação de Mill, conclui que todos eles apresentam a seguinte estrutura: hipótese3, observação e conclusão. As três etapas são relacionadas proporcional, i.e., quanto menos rigorosa é a hipótese, mais forte deve ser a observação, se desejamos chegar a uma conclusão pertinente (Cf. Mackie, 1988, p. 300). As hipóteses variam em grau de certeza, podendo se estender, desde a suposição de que a causa procurada é apenas uma das possíveis causas (a mais rigorosa) até a suposição de que qualquer das possíveis causas, desde apenas uma até quaisquer conjunções, negações ou disjunções de algumas delas constituem a(s) causa(s) procurada(s) (hipótese menos rigorosa). Quanto à observação, refere-se às instâncias positivas, nas quais se supõe a presença do fenômeno cuja causa ou efeito é analisada e de suas circunstâncias e às instâncias negativas (fenômeno ausente). A conclusão, finalmente, supõe regras de eliminação para cada método; sua força é afetada pelo grau de controle sobre as circunstâncias, maior na experimentação artificial, menor na pura observação, apesar de não haver distinção lógica entre métodos de observação e experimentação. O experimento artificial permite isolar as circunstâncias, o que o torna mais adequado aos métodos indutivos; em fenômenos cuja reprodução artificial é impossível limitada (como fenômenos sociais) resta a observação, partindo do efeito em direção à causa. Porém a conclusão obtida não valerá como prova, pois observação sem experimento (supondo nenhuma ajuda da dedução) pode estabelecer seqüências e coexistências, mas não pode provar causação.

Apresentamos a seguir os cinco métodos indutivos experimentais de Mill, com uma síntese da exposição e da crítica à sua aplicabilidade para cada um deles, levando em conta a concorrência e a pluralidade de causas, além do modo de apreender as ocorrências dos fenômenos nos casos experimentais:

1. Método da Concordância (MC) - De acordo com MC, se duas ou mais instâncias do fenômeno têm somente uma circunstância em comum, a única circunstância na qual todas as instâncias concordam é a causa (ou efeito) do fenômeno sob investigação. Se o objeto de investigação é um fenômeno que admite causas concorrentes, a aplicação dos métodos experimentais pode ser feita segundo o modo direto, que considera a concorrência como uma composição, comparando as instâncias em busca das uniformidades. Pode-se também, dependendo de uma análise do caso, considerar a concorrência como uma "combinação química", aplicando o modo indireto, que examina em separado e experimentalmente cada uma das causas e calculando depois, por dedução, o efeito que produziriam juntas e chegando, a priori,

3 O termo hipótese apresenta aqui um sentido relacionado à função de sugerir variáveis a serem experimentadas na investigação. Entretanto, nas ciências dedutivas ou no estágio dedutivo da investigação, as hipóteses têm a função de auxiliar na procura das leis gerais que servirão de suporte para a dedução das leis derivadas.

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ao efeito complexo. Assim, a "composição física", enquanto modalidade mais freqüente, tende a escapar à aplicação direta dos métodos experimentais, a não ser para fornecer verificações e premissas para deduções, enquanto a "combinação química", embora menos comum, é compatível com estes.

A admissão da pluralidade de causas torna o método incerto, segundo Mill (SL, p. 214), pois não saberíamos se a circunstância comum em que as instâncias concordam é a verdadeira causa, já que pode haver mais de um antecedente. Mackie é mais radical nesse ponto, e sua análise lógica conduz à conclusão de que a condição da pluralidade de causas enfraquece MC (1988, p. 307).

MC admite tanto a observação quanto a experimentação, quanto à forma de obter as ocorrências dos fenômenos, ou instâncias. Por suas características lógicas, é mais adequado à observação, quando a experimentação é impossível, o que parece ser bastante comum, dada a dificuldade de obter artificialmente instâncias similares para comparação. Entretanto, enquanto método de simples observação, como vimos, MC não prova relações causais, confirmando, no máximo, relações invariáveis de sucessão, coexistência ou existência. Assinalando apenas as circunstâncias comuns a todos os casos, MC está limitado à pesquisa de leis empíricas. 2. Método da Diferença (MD) - Quando aplicamos MD, se uma instância em que o fenômeno ocorre e um instância em que não ocorre têm todas as circunstâncias em comum menos uma, ocorrendo esta somente no primeiro, a única circunstância em que os dois casos diferem é o efeito, ou a causa, ou uma parte indispensável da causa do fenômeno. A pluralidade de causas não afeta o MD, mas diante da composição mecânica de causas Mill acredita que o método falha, desta vez não por razões práticas de obtenção das instâncias, mas por questões de ordem lógica, como veremos adiante, mais especificamente, no caso dos fenômenos sociais. A aplicação direta do método experimental em casos complexos permite apenas descobrir que uma regularidade indeterminada, ou seja, que alguma causa está associada a certo evento. Entretanto, Mill está disposto a reconhecer tais regularidades como leis experimentais. Em resumo, MD é um método mais apropriado à experimentação artificial, já que a natureza dificilmente preenche as condições que requer; possibilita também a determinação de leis causais, desde que haja composições mecânicas de causas.3. Método conjunto da concordância e diferença (MCCD)- No caso em que é aplicado, se duas ou mais instâncias em que o fenômeno ocorre têm somente uma circunstância em comum, enquanto duas ou mais instâncias em que não ocorre não têm nada em comum a não ser a ausência daquela circunstância, a única circunstância em que os dois conjuntos de instâncias diferem é o efeito, ou a causa, ou uma parte indispensável da causa do fenômeno. Este método também pode ser chamado, segundo Mill, método indireto de diferença, "e consiste em um duplo emprego do método de concordância, sendo cada prova independente da outra e ao mesmo tempo corroborante dela" (SL, p. 199-200). Constitui um aperfeiçoamento do MD, não sendo afetado, como este, pela pluralidade de causas. Sob um ponto de vista da lógica, MCCD não é afetado pela admissão da concorrência de causas, mas existe uma impossibilidade prática, segundo Mill, de obter as instâncias exigidas pelo método. Embora seja capaz de admitir as hipóteses mais fracas, o método conjunto não apresenta a mesma precisão que MD para determinar regularidades causais, porque o último exige instâncias rigidamente controladas. Por outro lado, para compensar a debilidade de suas suposições MCCD exige controle rígido na fase de observação. É necessário destacar que o método conjunto possibilita uma série de combinações, não só às instâncias positivas ou negativas, mas à possibilidade de graus diversos de

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hipóteses, observações e correspondentes conclusões; Mill desenvolve e comenta apenas algumas dessas possibilidades. A reconstrução lógica de Mackie (op. cit., p. 305-310) explora todas as possibilidades do método, incluindo as variantes complexas, mas seu desenvolvimento foge do escopo deste trabalho.4. Método dos resíduos (MR) - No emprego deste método, quando subtraímos de um fenômeno a parte que sabemos por induções prévias ser o efeito de certos antecedentes, o resíduo do fenômeno será o efeito dos antecedentes remanescentes. Enquanto o método anterior constituía um aperfeiçoamento de MC, o método dos resíduos é considerado por Mill como uma modificação do método da diferença (Cf. SL, p. 200), na qual "a instância negativa não é observada mas construída com base em leis causais já conhecidas" (Mackie, p. 311). MR incorpora, assim, a característica de MD de certeza com relação à determinação das causas, também não sendo afetadopor disjunções causais (pluralidade). Contudo, Massela ressalta que duas condições precisam ser satisfeitas para que assegurar a confiabilidade de MR: "a) os efeitos das causas que serão subtraídas tenham sido obtidos pelo MD; b) exista certeza de que o fator remanescente seja o único antecedente ao qual o fenômeno residual possa ser referido" (op. cit., p. 99-100). Esta última exigência não pode ser contemplada sem a realização de experimentos artificiais para confirmar o verdadeiro antecedente do fenômeno residual ou até que "sua ação, uma vez indicada, possa ser explicada e dedutivamente derivada de leis conhecidas" (SL, p. 201). Ainda uma limitação pode ser acrescida: MR compartilha com MD a debilidade no tratamento da concorrência de causas. Apesar de tais restrições, Mill considera MR como o mais importante método de descoberta na investigação da natureza. Ele admite inclusive a dedução, se esta já foi requerida nas leis anteriores cujo conhecimento é necessário. A dedução, aliás, já é requerida na constituição da instância negativa que é requerida pelo MD, o que exige também um experimento artificial. Por outro lado, apenas a observação é necessária para a constituição da instância positiva.5. Método das variações concomitantes (MVC) - Este é o método apropriado para determinar a lei das causas permanentes, ou dos agentes naturais primitivos, como o sol, a Terra, os planetas e seus diversos elementos, que existem desde o começo da experiência humana (Cf. SL, 185). Todos os fenômenos existentes são feitos imediatos ou remotos das causas primitivas ou de alguma combinação delas. Esses agentes primitivos são impossíveis de ser separados ou isolados; portanto a determinação dos efeitos das causas permanentes de acordo com os três métodos anteriores é impossível. Podemos, no entanto, verificar se as variações dos efeitos são correspondentes às variações de suas possíveis causas, como, por exemplo, se as variações nas posições da lua são seguidas de variações correspondentes de lugar e tempo, na maré alta (SL, p. 203). Assim, utilizando MVC, podemos afirmar que há causação quando um fenômeno que varia de uma certa maneira todas as vezes que um outro varia da mesma maneira, o primeiro é um causa, ou efeito, do segundo, ou a ele está ligado por algum fato de causação. Porém, o processo não é tão simples, pois senão qualquer variação concomitante de fenômenos poderia ser considerada um relação de causação, o que, evidentemente, não é verdadeiro. Para produzir a confirmação é necessário "assegurar-se de que se pode produzir um dos grupos de variações pelo outro" (SL, p. 204). Essa exigência naturalmente torna a produção experimental das instâncias muito problemática, se não impossível.

MVC utiliza os mesmos raciocínios presentes nos quatro métodos anteriores, conforme cada caso, contanto que as instâncias produzam dados relativos às variações nos antecedentes e conseqüentes. A pluralidade de causas só afeta a conclusão caso

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esta seja obtida de acordo com MC. A concorrência de causas, por sua vez, não afeta a certeza da conclusão se for gerada por MD.

A limitação dos métodos de indução por eliminação conduz Mill a propor um método dedutivo que preencha as lacunas que a impossibilidade de aplicação dos métodos experimentais nos fenômenos complexos deixa na investigação das causas. Podemos resumir a crítica de Mill à indução por eliminação nos seguintes termos: a aplicação direta dos métodos é sempre preferível nos fenômenos complexos, quando esta é possível; a experimentação artificial é aconselhável em MR e MD, mas deve ser aplicada a cada uma das causas em separado, o que sugere a sua complementação pela dedução, uma vez que a separação das causas é muitas vezes impossível de ser realizada artificialmente; os métodos experimentais são, portanto, impotentes, em sua maioria, para determinar relações causais, mas são indispensáveis na obtenção de leis empíricas e generalizações aproximadas, que serão articuladas por dedução a leis causais superiores, verificadas e integradas no corpo sistemático de ciências em estágio dedutivo.

O método dedutivo das ciências em geral

Mill concebe o método dedutivo como realizado em três etapas: indução direta, dedução e verificação. "O problema do método dedutivo consiste em determinar a lei de um efeito segundo as leis das diversas tendências de que é o resultado comum" (SL, p. 223). A indução direta, base de todo o processo de investigação, determina as leis das diferentes causas, das quais serão deduzidas as condições do efeito. Os cinco métodos anteriores constituem os instrumentos da indução direta, que exige, como já examinamos, a satisfação de duas condições:

1. o conhecimento das causas: quando a identificação destas não for simples ou óbvia, é necessária a verificação;

2. o estudo em separado de cada causa; quando o isolamento das causas não puder ser realizado o método indutivo conduz à determinação de leis empíricas, ou leis dos fenômenos. Esta condição implica não só uma insuficiência dos métodos indutivos por eliminação para determinar leis causais, mas compromete também a edificação de ciências dedutivas nas áreas de conhecimento que estudam fenômenos que não atendem a esses requisitos.

O estágio dedutivo consiste em, supondo que a indução direta foi realizada de forma satisfatória, determinar, segundo as leis das causas, o efeito produzido por uma combinação dada dessas causas. Essa operação é executada por meio de um cálculo, que pressupõe que o conhecimento das causas tenha atingido um grau de abstração suficiente para a determinação de leis numéricas precisas que regem a produção dos efeitos. O cálculo toma como premissas "os teoremas da ciência dos números em toda a imensa extensão desta ciência" (SL, p. 224). O raciocínio que toma por base uma lei geral para determinar as condições particulares que satisfaçam essa lei depende de que a composição de causas prevaleça como origem dos efeitos do fenômeno estudado, para que exista uma possibilidade de calcular o resultado conjunto das causas. Ainda assim, prevê-se um acúmulo de cálculos matemáticos em casos mais complexos, que ultrapassa as possibilidades humanas, por exemplo, na investigação de fenômenos sociais.

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A etapa de verificação tem a função de comprovar os resultados do procedimento dedutivo, por comparação através da observação direta ou quando possível, por experimentação. A importância da comparação na verificação transmite-se para o próprio processo indutivo: quando, na determinação das leis empíricas, utilizamos MC por comparação de casos, anotando minuciosamente as circunstâncias observadas, a verificação torna-se mais simples e precisa. O papel fundamental da verificação evidencia-se também no caso dos fenômenos complexos, nos quais freqüentemente há suposições ou hipóteses fracas para a escolha de causas ou circunstâncias. A comparação a posteriori dos resultados de deduções precárias a partir de simples leis de fenômenos obtidas na indução direta pela observação direta ou por experimentação pode conduzi-las ao estatuto de leis causais. Na etapa de verificação percebemos como justificada a importância que Mill confere ao métodos indutivos por eliminação enquanto instrumentos de demonstração e também de prova.

A reconstrução anterior já torna possível entender como se produz uma explicação científica, assim como entender o papel que as hipóteses desempenham na explicação. A explicação científica consiste, para Mill, em

vincular uma uniformidade que não é uma lei de causação às leis de causação de que ela resulta, ou uma lei complexa de causação às leis mais simples e mais gerais de que pode ser inferida dedutivamente; pode-se, se não há uma lei conhecida que preencha essa condição, imaginar ou fingir uma que satisfaça a isso; eis como se faz uma hipótese (SL, p. 229).

Portanto, a explicação surge durante o processo dedutivo, e admite, em sua geração, a presença da imaginação e da intuição na formação de hipóteses. É interessante notar que Mill, na afirmação anterior, desvincula a explicação científica da lógica da descoberta, relacionando-a à lógica da prova durante a dedução e, ao mesmo tempo, negando ao conhecimento por analogia (reconhecer o que existe de familiar nos processos que parecem obscuros) qualquer papel explicativo. Essa característica o afasta de alguns expoentes da tradição associacionista inglesa (Hobbes, Locke e Hume), assim como outros da tradição francesa (Condillac, Diderot e La Mettrie), que valorizaram o papel da imaginação e do raciocínio analógico como relacionado à indução. Mill, embora também faça uso de metáforas e analogias em SL(e.g., a metáfora da "rede de causalidades"), sempre as emprega em hipóteses que conectam, dedutivamente, leis de fenômenos ou manifestações empíricas a leis mais gerais que são tidas como verdadeiras, como a própria lei das associações mentais nos indivíduos. As leis explicativas sempre representam maior aproximação em direção à verdade e à incondicionalidade, mantendo sempre uma relação dedutiva com as leis explicadas. Não se deve exigir delas uma extensão maior do que o limite em que funcionam, também, como proposições confirmadoras.

Existem três modos de explicação científica relacionados ao método dedutivo de Mill, já admitindo uma variante deste que comentaremos a seguir, o método hipotético. Aproveitamos a reconstrução que Massela faz dessa classificação (op. cit., p. 108-9) para sintetizar as três modalidades:

1. a lei explicativa de um fenômeno complexo é deduzida a partir da lei de cada uma das causas e da existência de certos agentes em determinadas circunstâncias de tempo e lugar;

2. um fato causado pelo antecedente pode funcionar como intermediário em direção à procura da causa, tendo, por sua vez, como novo antecedente, o efeito como

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conseqüência. Portanto, uma lei explicativa baseada elos intermediários é mais geral e mais certa quanto maior é o número de instâncias que engloba;

3. a lei explicativa constitui a subsunção de uma lei sob outra ou a reunião de várias leis numa mais geral que inclui todas. O tipo de raciocínio empregado aqui é similar ao que efetuamos no método de eliminação por concordância; por isso, a maior generalidade da lei explicativa não está vinculada à certeza, pois qualquer circunstância que frustre a lei parcial atingirá também a lei mais geral.

A natureza dedutiva da explicação proposta por Mill exige a determinação de leis causais naturais, leis primárias às quais se encadearão, por dedução, a leis empíricas ou dos fenômenos, por meio de um processo racional, um cálculo, mas também guiado pela imaginação na produção de hipóteses. Algumas dessas leis primárias devem ser postuladas ou tidas como verdadeiras, pois, caso contrário, incorreríamos num círculo vicioso. Porém, vimos que Mill estabelece sérias críticas aos métodos de indução por eliminação que produzem as leis empíricas e as generalizações, o que, sem dúvida, compromete a eficácia do método dedutivo, que depende da indução direta. Mill, consciente dessas limitações, introduz uma variante ao método dedutivo que denominou método hipotético, flexibilizando significativamente, segundo nos parece, as exigências para a obtenção de leis causais ou primárias. No método hipotético é suprimida a fase indutiva, e as hipóteses, guiadas por exigências específicas, substituem as leis primárias que se tornarão suporte para a dedução. A maioria dessas hipóteses não pode, entretanto, ascender ao grau de leis causais, se devidamente comprovadas pela observação ou pela experiência artificial, pois, segundo Mill, o método hipotético não deve ser considerado como método de prova. Porém, há uma possibilidade considerarmos as hipóteses assim admitidas como verdadeiras leis causais, quando a verificação preenche as condições de uma indução conforme o método da diferença, quando nenhuma lei exceto aquela que nós assumimos pode levar dedutivamente aos mesmos resultados (Cf. Massela, p. 111). Essa possibilidade deve respeitar a condição de que a hipótese admitida seja sobre leis e não sobre causas, porque nas primeiras o âmbito das suposições possíveis é restrito e poderia ser demonstrado que elas não conduzem a resultados iguais.

O fato de Mill evidenciar as dificuldades para uma hipótese se tornar verdadeira, não demonstra, segundo interpretamos, a mudança significativa que constituiu a admissão do método hipotético e a possibilidade de supressão da indução direta na lógica da descoberta. O mérito das hipóteses bem sucedidas não está em sua veracidade, mas em sua eficácia para dar conta dos fatos conhecidos e permitir antecipações e predições de outros fatos (Cf. SL, p. 234). Mill cita como exemplo da hipótese do éter, que, devido à sua impossibilidade de verificação empírica, só pode ser tomada como conjetura, mas não deve ser descartada, pois "a existência do éter repousa sempre na possibilidade de deduzir de suas leis supostas um número considerável de fenômenos da luz" (ibid.) Por outro lado, não se teria certeza de que, se a hipótese fosse considerada falsa, seríamos conduzidos a resultados contrários aos fatos reais. Essa concepção instrumentalista, até mesmo pragmática, do papel da hipótese na investigação dos fenômenos naturais constitui, por um lado, uma limitação no projeto de construir um método fundado numa teoria da indução por eliminação, já que a indução não comparece diretamente no método hipotético. Por outro lado, se não pode ainda ser considerada como admissão da natureza hipotética das leis científicas, indica um progresso e uma renovação permanentes na atividade científica. O método hipotético elimina também a exigência de que as causas sejam

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conhecidas. A causa, no início inacessível, deve ser conhecida mais tarde e a hipótese, sugerindo observações e experiência, encaminha-nos a provas independentes que possam permitir o reconhecimento da existência da causa e da ligação com o efeito. Recupera-se, assim, o efeito ampliativo da indução em outra perspectiva, pois a possibilidade de articular teorias diferentes à procura de uma mesma causa ficapreservada.

As ciências morais e suas leis fundamentais

Mill sustentava, em LCM, que a compreensão dos fenômenos sociais e humanos em geral deve ser realizada com a adequação dos métodos desenvolvidos para a investigação dos fenômenos naturais nos cinco livros anteriores do SL (Cf. LCM, p. 6). Identificamos como um primeiro problema enfrentado por Mill na adequação proposta a questão da necessária submissão das leis que regem as ações humanas às leis da causalidade, entendida como seqüência invariável incondicionada. Mill postula a determinação causal das leis da ação humana afirmando que, sendo conhecidos o caráter e as circunstâncias e motivos relacionados à sua ação, podemos predizer sua conduta com a mesma certeza com que podemos predizer qualquer evento físico (Cf. LCM, p. 7). Reconhecendo que uma acusação de determinismo pode ser dirigida perante sua afirmação (como poderia subsistir o livre-arbítrio se todas as ações são determinadas pelo caráter?), Mill utiliza o argumento já empregado no Livro III para desqualificar a idéia de causalidade como necessidade, termo que é erroneamente concebido no sentido de uma força misteriosa que impele as vontades na direção do efeito requerido pela causa, ou, especificamente, do caráter ou dos motivos em direção às ações correspondentes e previsíveis. A uma causa seguirá incondicionalmente um efeito posterior, mas apenas se nada for feito para impedi-lo. Os homens são capazes de alterar o próprio caráter, que é formado a partir de suas circunstâncias, mas o desejo e a liberdade de mudá-las se encontram entre essas circunstâncias; somos livres e também virtuosos apenas na medida em que conseguimos modificar o próprio caráter e somos conscientes dessa liberdade. Assim Mill articula liberdade, necessidade e moralidade no âmbito das ações humanas regidas pela causalidade.

Quais seriam as leis fundamentais da causalidade nas ciências sociais? Mill afirma que "as leis dos fenômenos da sociedade não são nem podem ser outra coisa do que as ações e paixões dos seres humanos unidos entre si em estado de sociedade. Entretanto os homens, em um estado de sociedade, são ainda homens; suas ações e paixões obedecem às leis da natureza humana individual" (LCM, p. 48-9). A sociedade não é considerada como um entidade independente dos desejos, vontades e consciências individuais, como declararia certamente Durkheim. Ao contrário, os fatos sociais são redutíveis aos fatos individuais, a consciência coletiva depende da consciência individual. A existência da sociedade não altera o comportamento individual em sua natureza. "Nos fenômenos sociais, a Composição de Causas é a lei universal", o que indica que o efeito das causas concorrentes pode ser considerado como a soma das causas agindo separadamente; a pesquisa social deve reconstituir os fatos por meio de uma análise isolada dos diferentes fatores que intervém na ação. Qual é a natureza das leis sociais? Mill esclarece essa questão afirmando que "as ações e sentimentos dos seres humanos no estado social são, sem dúvida, governados inteiramente por leis psicológicas e etológicas" (LCM, p. 65). A

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psicologia fornece as leis elementares da mente e já constitui, segundo considera Mill, uma ciência formada, com os cânones já definidos pelo associacionismo de Locke e Hume. A etologia corresponde a uma ciência a ser constituída, cujas leis são deduzidas a partir das leis gerais psicológicas, e que determina o tipo de caráter produzido, em conformidade com essas leis gerais, por qualquer conjunto de circunstâncias físicas e morais. De acordo com essa definição, a Etologia é a ciência que corresponde à arte da educação no sentido mais amplo do termo, incluindo tanto a formação do caráter nacional ou coletivo como do caráter individual (Cf. LCM, p. 39). A sociologia deve, assim, ser derivada de duas ciências vizinhas: a psicologia, que lhe fornece as leis primárias e a etologia, cujas leis funcionarão como leis intermediárias (axiomata media) da natureza humana e serão deduzidas da psicologia, passando a servir como princípios à sociologia.

A forma de obtenção das leis psicológicas é a indução direta, por observação e experimentação. Podemos facilmente constatar que um objeto, uma vez visto e reconhecido anteriormente, se apresenta à nossa mente sem que necessitemos de sua presença física para provocar sua imagem mental, sua lembrança. Assim, a simples observação pode provar as leis de associação mental, concluindo que em alguns casos as idéias mentais derivam de uma composição de sensações simples. Entretanto, há fenômenos mentais, como a percepção visual, as crenças, vontades, afecções ou mesmo a simples idéia de extensão, que não podem ser reduzidos à composição de causas, pois não conseguimos, através de seus efeitos, determinar quais das inúmeras possíveis causas que influíram. Para investigar os fenômenos psicológicos complexos devemos aplicar sucessivamente os métodos da concordância e da diferença. Em primeiro lugar demonstrar que existe uma associação (que pode ser uma sucessão de seqüência, existência, coexistência ou causal), conectando a ação ou estado mental com uma classe particular de idéias (e.g., as ações ou estados mentais relacionados ao ciúme associadas à idéia de posse em relação ao objeto amado), utilizando MC. Em seguida, supondo provada a associação anterior em todas as variações de ações ou estados caracterizados por essa classe particular de idéias (e.g., o ciúme), procuramos saber por MD se esta classe, quando associada com uma ação anteriormente indiferente, torna essa ação ou estado mental motivo dessa classe particular de idéias (e.g., a idéia de posse do objeto amado motivando ações e estados mentais, relacionados ao ciúme, como desespero, ódio, etc.). Estando provada esta última associação, podemos dizer que a idéia de posse do objeto amado é a causa do ciúme.

A admissão das leis psicológicas enquanto leis da causalidade nas ciências morais conduz a outro problema que é abordado, ainda que superficialmente, por Mill: a relação entre fisiologia e psicologia. Mill estava ciente dos avanços da ciência em seu tempo, admitindo que alguns processos psicológicos, principalmente aqueles não imediatamente conscientes, relacionados aos instintos, possuem relação direta com o cérebro ou os nervos. Entretanto, essas evidências não o fazem sustentar que os processos mentais são derivados das diferenças no sistema orgânico, mas que aspectos fisiológicos influenciam, sem dúvida, fenômenos psicológicos, embora não na mesma proporção do que um fenômeno psicológico influencie outro. Por outro lado, a derivação, em maior ou menor grau, do psicológico pelo orgânico não descarta o fato de que os instintos por exemplo, podem ser, em certa medida, modificados ou inteiramente dominados nos seres humanos, por meio de outras influências mentais e pela educação e, em grau não desprezível, até mesmo em alguns animais domésticos (Cf., LCM, p. 29).

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As leis psicológicas são vistas por Mill como verdades empíricas, tornadas certas pela indução direta e pela introspecção, assim como os axiomas da geometria euclidiana são indutivos (Cf. Whitacker, 1975, p. 482). Apesar de sua concepção associacionista da psicologia ser apenas esboçada em LCM, Mill "claramente transcende o simples hedonismo. Cada homem é imbuído, por meio do treinamento e da experiência, de um caráter –um conjunto de hábito e propósitos arraigados, largamente dissociado dos estímulos de dor ou prazer" (Whitacker., p. 483). Existem, entretanto, leis universais de formação do caráter, apesar da evidência da diversidade de caráter nos indivíduos; tais leis constituem o principal objeto do estudo científico da natureza humana.

As leis do caráter, evidentemente, não podem ser obtidas por indução direta, pois o caráter e as circunstâncias a este associadas são fatos muito complexos, em cuja investigação, como estabelecemos anteriormente, só compete o método dedutivo. Mill apresenta uma série de razões para descartar a possibilidade do emprego dos métodos experimentais indutivos à determinação de leis do caráter, que consideramos supérfluo reproduzir aqui. Podemos, contudo, mencionar duas das principais razões: a impossibilidade, por motivos éticos e práticos, de realizar experimentos artificiais com seres humanos durante muito tempo, como se requer para examinar, por exemplo, as circunstâncias relacionadas à educação; a imprecisão dos resultados obtidos por observação, já que inúmeros casos ficariam fora de seu alcance. Segundo Mill, "as leis da formação do caráter são, em suma, leis derivadas resultantes das leis gerais da mente e, para obtê-las, devemos deduzi-las dessas leis gerais, supondo dado um conjunto qualquer de circunstâncias e considerando então qual será, de acordo com as leis da mente, a influência dessas circunstâncias na formação do caráter" (LCM, p. 39). Embora de natureza hipotética, como todas as leis obtidas por dedução, as leis do caráter permitem prever a produção de um fato sob determinadas condições, i.e., na medida em que os efeitos de determinada causa não sejam contrariados ou anulados por outras circunstâncias. Como afirma Vaysset-Boubien, as leis do caráter já possuem um valor científico (que as leis empíricas do caráter, também freqüentes no senso comum, não apresentam imediatamente), como as leis gerais de que são deduzidas, além de desempenharem importante papel na verificação, controlando as induções parciais, as generalizações inferiores e os resultados da dedução (Cf. Vaysset-Boubien, 1941, p. 67). Já as leis empíricas do caráter dependem, para ser consideradas verdadeiras, da verdade das leis dedutivas do caráter das quais são conseqüência. Elas têm o papel de fornecer a verificação das conclusões da teoria etológica por via das leis dedutivas do caráter.

A etologia é uma ciência que tem finalidades práticas, como todas as ciências morais. Mill explicita o seu utilitarismo quando afirma que a etologia deve fundamentar as regras da Arte correspondente, ou seja, da formação do caráter dos homens:

uma ciência que possui princípios médios desse tipo, arranjados em ordem, não das causas, mas dos efeitos que se deseja produzir ou evitar, está devidamente preparada para ser o fundamento da Arte correspondente. Quando a Etologia estiver assim preparada, a educação consistirá na transformação daqueles princípios em um sistema paralelo de preceitos e na adaptação destes à soma total das circunstâncias existentes em cada caso particular (LCM, p. 43-44).

Convém recordar que a natureza humana individual é a base de todas as ciências morais; há, portanto, uma estrutura filosófica em SL que compreende as

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condições que o utilitarismo requer, como a justificação racional de um equilíbrio dos interesses individuais na busca da felicidade para a maioria.

A caracterização das leis psicológicas como leis primárias causais e das leis etológicas como os axiomata media das ciências morais leva-nos a afirmar que, se existe um campo metodológico específico às ciências sociais no Sistema de Lógica de Mill, ele está reservado à esfera das leis empíricas e à possibilidade de serem admitidas como verdadeiras. Essa hierarquia das leis, concebida essencialmente como hierarquia de causas e efeitos, acarreta alguns problemas e têm sido objeto de críticas por vários comentadores. Whitaker, por exemplo, chama a atenção para o enfoque atomístico que Mill assume quando aborda a "ciência dos homens em sociedade" (Cf. op. cit., p. 483): as propriedades dos seres humanos sociais são derivadas, e podem ser resolvidas pelas leis da natureza do homem individual (ver citação supra, p. 16). Mill, apegando-se à concepção hoje conhecida como individualismo metodológico (Mandelbaum, 1957, p. 213), considera o indivíduo como base para a explicação dos fenômenos sociais.4 Já na etologia, também vinculada dedutivamente a leis de mais alto nível, as leis da mente articuladas a fatos do meio ambiente físico. Nas duas ciências, são necessárias longas cadeias de raciocínios que podem resultar em dispersão, o que exige uma contínua e precisa verificação observacional. Esses argumentos conduzem Whitaker a sustentar que as ciências sociais devem apenas merecer o estatuto de ciências aproximadamente dedutíveis, que omitem considerações de muitas causas secundárias. Essa limitação é reconhecida propriamente por Mill, quando ele admite que, nos casos dos fenômenos sociais complexos, "a multidão de causas é tão grande que desafia nossos limitados poderes de cálculo" (LCM, p. 47). Portanto, parece razoável concordar com Whitaker, quando critica Mill por afirmar que as leis etológicas são reconhecidas não apenas pelo encadeamento dedutivo a uma série de precondições, mas também por serem capazes de predições e certas linhas de pesquisa só progridem na medida em tenham êxito em suas previsões.

Certamente a hierarquia das leis na metodologia das ciências morais defendida por Mill, que conduz o cientista a buscar as leis fundamentais externamente aos próprios fatos sociais, pode ser objeto de outras críticas mais amplas e convincentes do que o detalhe interno, mais específico, que apontamos anteriormente. Contudo, é necessário reconhecer que as críticas mais radicais, como a de Durkheim, envolvem concepções de ciência e causalidade bastante diferentes e a reconstrução desses elementos foge dos propósitos deste trabalho.

Os métodos das ciências sociais

Apesar de evidenciar as limitações que a investigação empírica dos fenômenos sociais comporta, Mill novamente afirma seus princípios utilitaristas, como o fez para as ciências etológicas. As leis sociais, dependentes da psicologia e da etologia a ser constituída, , não conduzem a predições sobre a história da sociedade, mesmo que nosso conhecimento delas venha a se tornar preciso; a incerteza não está nas leis, mas

4 A metodologia de J.S. Mill constituiria um notável exemplo que confirmaria os argumentos de Mandelbaum no sentido de contestar a dicotomia simplista individualismo-holismo. Mill, embora defendendo a natureza individual humana como determinante primária dos estados de sociedade, admite elementos do holismo metodológico, como a analogia organicista e a perspectiva história na determinação da dinâmica social.

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nos dados, que são inumeráveis e variam constantemente. Entretanto, um grau insuficiente para a predição pode ter grande utilidade prática, como influenciar decisões de natureza política ou econômica (Cf. LCM, p. 47-8). Feitas essas considerações, Mill, com o objetivo de mostrar o verdadeiro método da ciência social, decide primeiro mostrar os que não são apropriados: o método químico ou experimental e o modo abstrato ou geométrico de investigação.

Crítica aos métodos de indução por eliminação nas ciências sociais

Mill contesta o procedimento que designa como método químico: utilizar argumentos que extraem conclusão de aplicação geral a partir de uma única instância não analisada ou que, sem qualquer comparação ou eliminação de instâncias, arbitrariamente referem um efeito a alguns de seus antecedentes. Tais argumentos, comuns na prática política e econômica, são geralmente baseados em exemplos históricos do tipo "o que é bom para os Estados Unidos, é bom também para o Brasil". Entretanto, recorrer à história para descobrir as leis dos fenômenos sociais é inevitável, pois, como para os fatos etológicos, a experimentação artificial é impossível. A questão é, portanto, saber se as exigências para uma indução relativa às causas dos efeitos sociais ou às propriedades dos fatores sociais são satisfeitas pela história. Para fixar suas concepções, Mill expõe um objeto de investigação hipotético, a influência sobre a riqueza nacional de uma legislação comercial restritiva, e verifica a possibilidade de aplicação dos quatro métodos experimentais básicos a esse objeto.

O método da diferença supõe a existência de duas instâncias que concordem em todos os detalhes exceto naquele que é objeto de investigação, o que é absurdo nas ciências sociais, nas quais composição de causas é o caso geral e os fenômenos são interdependentes. Duas nações que concordassem em tudo, exceto num aspecto da política tributária constituem um caso de ocorrência impossível, pois a legislação comercial restritiva ou não depende desses outros fatores; se estes são fixados em duas instâncias, o efeito será o mesmo em ambas as instâncias, inviabilizando o experimento. A possibilidade de aplicação do método indireto da diferença (comparação de duas classes de instâncias, numa das quais as instâncias concordam apenas na presença de uma circunstância e, na outra, apenas na ausência desta circunstância) também é negada, pela possibilidade de que a prosperidade econômica de uma nação (como um efeito suposto) ser devida, em parte, a circunstâncias comuns a ela e a uma das nações da mesma classe (que apresentam o mesmo tipo de legislação, e.g., não-restritiva) e, em parte, a circunstâncias que compartilha com a outra classe de nações (que apresentam outro tipo de legislação, e.g., restritiva).

A pluralidade de causas, que Mill admite no caso dos fenômenos sociais, inviabiliza os métodos da concordância e das variações concomitantes. Ainda que consigamos eliminar alguma circunstância com alguma margem de certeza, não podemos inferir que esta não colaborou para o efeito em algumas das próprias instâncias nas quais essa circunstância não foi eliminada.

O método dos resíduos, assinala Mill, não é de pura observação e experimento, pois não conclui através de uma comparação de instâncias, mas da comparação de uma instância com o resultado de uma indução anterior (Cf. LCM, p. 55). A aplicação de RM aos fatos sociais pressupõe que as causas das quais uma parte do efeito procede já são conhecidas; porém, como já foi mostrado, estas não podem ter sidoconhecidas pela experiência específica, mas sim por meio da dedução a partir de princípios da natureza humana. A experiência é consultada apenas com recurso

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suplementar para explicar as causas que produziram um resíduo explicado. Assim, o argumento experimental não é mais do que a verificação de uma conclusão extraídas dessas leis gerais. A inviabilidade de aplicação de qualquer dos métodos experimentais para obter uma indução nas ciências sociais recorrendo à história conduz Mill a examinar o método dedutivo e suas possíveis variantes.

A adequação dos métodos dedutivos às ciências sociais

O método geométrico, diferentemente do método químico criticado anteriormente, era utilizado no meio intelectual à época de Mill, inclusive por pensadores como Bentham, que reconheciam a impossibilidade de estabelecer deduções diretas por meio de métodos experimentais no campo das ciências sociais. Tais pensadores admitiam a geometria como modelo das ciências dedutivas. Mill sustenta que, na concepção geométrica da sociedade cada fenômeno social resulta de uma única força, uma única propriedade da natureza humana, e não de um conflito ou composição de forças, como acontece na mecânica. Hobbes, por exemplo, assumiu que o governo está fundado numa única causa, o medo; tomou essa suposição como um princípio prático que tem como conseqüência necessária a realização de um contrato original e assumiu esse preceito prático como a origem de sua teoria, o que confirma, na interpretação de Mill, uma falácia de petição de princípio. Constatada a inadequação do método geométrico, Mill passa a expor o verdadeiro método que, em conformidade com a prática das ciências físicas mais complexas, procede dedutivamente, mas pela dedução a partir de muitas premissas, considerando cada efeito como o que de fato é, um resultado agregado de muitas causas, que operam por meio de diversos ou dos mesmos fatores mentais ou leis da natureza humana (Cf. LCM, p. 64).

O método adequado à investigação dos fenômenos sociais é o método dedutivo concreto, que infere a lei de cada efeito das leis de causação de que esse efeito depende, considerando todas as causas que influenciam conjuntamente o efeito e compondo suas leis umas com as outras, de acordo com o exemplo mais perfeito da Astronomia, menos perfeito da Filosofia Natural e, com as adaptações requeridas pelo objeto, da Fisiologia (Cf. LCM, p. 65). As dificuldades do método dedutivo concreto não estão na dedução das leis gerais (mentais e etológicas) que supomos estabelecidas, mas na computação dos resultados agregados e na predição de casos, que exigem a composição da influência de todas as causas. A verificação, que consiste em comparar as conclusões do raciocínio com os próprios fenômenos concretos, ou com suas leis empíricas, quando podem ser obtidas, é capaz de resolver a posteriori esses problemas. Assim, "o fundamento da confiança em qualquer ciência dedutiva concreta não é o raciocínio a priori, mas o acordo entre seus resultados e a observação a posteriori" (LCM, p. 66). A necessária confluência entre o raciocínio a priori e a observação pode ser efetuada segundo dois modos no método dedutivo: o direto, quando a dedução conduz às conclusões que são verificadas por métodos experimentais; o inverso, quando as conclusões provêm de qualquer experiência específica e relacionadas, por raciocínios a priori (que compõem, nesse caso, uma verificação real), às leis da natureza psicológicas e etológicas.

O método direto e as ciências particulares: Economia Política e Etologia Política

Mill recorre à idéia de consensus, familiar aos primórdios da fisiologia no século XVIII, que expressa a interdependência de funções e órgãos na estrutura física

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dos homens e dos animais superiores, para explicar a impossibilidade de determinar dedutivamente as verdadeiras causas em fenômenos sociais. Os efeito de uma causa se espalham provocando conseqüências em todo o organismo. A idéia de consensus é aplicada, por analogia, à sociedade, e origina expressões como corpo social e corpo natural. Assim, o método dedutivo direto, que gera leis hipotéticas, só pode ser considerado como meio de obter proposições gerais quando circunscrito a uma classe de fenômenos sociais que, ainda que influenciados pelos demais, estão sob a influência imediata, ao menos, de um pequeno número (Cf. LCM, p. 70). Esse tipo de delimitação acontece também na fisiologia, quando estudamos separadamente, a fisiologia ou a patologia de determinados sistemas, órgãos ou tecidos.

As considerações anteriores abrem a possibilidade de constituição de ciências particulares que estudam fenômenos dependentes de apenas uma classe de circunstâncias, ao menos em primeira instância. É o caso da economia política, cujo móvel é a busca da riqueza, que tem como efeitos as atividades produtivas ou industriais dos homens e os atos humanos que originam a distribuição dos produtos destas operações, na medida em que não são afetados pela força ou modificados pela doação voluntária. Mill argumenta que uma orientação prática para qualquer "estado de sociedade"5 dado pode ser deduzida a partir de proposições gerais, mesmo que sejam provisoriamente neglicenciadas tanto a influência modificadora das causas variadas que a teoria não leva em consideração, como o efeito das mudanças sociais gerais em progresso. Apesar de reconhecer o erro histórico de muitos economistas que tentaram aplicar conclusões extraídas a partir de elementos de um estado social a outro estado de diferente composição, Mill admite não ser difícil transferir a argumentação referente a um caso para outros, recorrendo às demonstrações e introduzindo adequadamente novas premissas:

Alguém que domine, com o grau de perfeição alcançável, as leis que, sob a livre concorrência, determinam a renda, os lucros e os salários recebidos pelos proprietários da terra, pelos capitalistas e pelos trabalhadores numa sociedade em que as três classes são distintas, não terá dificuldade em determinar as leis muito diferentes que regulam a distribuição do produto entre as classes interessadas em qualquer dos estados de cultivo e propriedade agrícola mencionados na citação anterior (LCM, p. 74)

Entre as ciências particulares, dependentes de móveis específicos e subordinadas a uma ciência social geral, está a etologia política, "teoria das causas que determinam o tipo de caráter pertencente a um povo ou a uma época" (LCM, p. 75). Considerada por Mill como a ciência subordinada que está em estágio mais incipiente, apresenta, entretanto, uma importância muito grande na determinação mais segura dos princípios universais da natureza humana, pois o caráter de uma sociedade6 em 5

Um "estado de sociedade" é o estado simultâneo de todos os fatos ou fenômenos sociais mais importantes: grau de conhecimento e cultura existente na comunidade e em suas classes, o estado da indústria, riqueza e sua distribuição, ocupações habituais da comunidade, divisão em classes, crenças comuns, gostos, caráter, grau de desenvolvimento estético, forma de governo, leis e costumes mais importantes. Existe uma correlação natural entre os estados de sociedade e as causas que os produzem, ou seja, existem uniformidades de coexistência entre os vários fenômenos sociais, trata-se de um fato implicado no consensus da várias partes do corpo social. Os estados sociais são como diferentes idades ou condições da estrutura física, como condições de todo o organismo (Cf. LCM, p. 81-2). 6

O caráter social é formado pelas opiniões, sentimentos e hábitos do povo, constitui o poder pelo qual todas as circunstâncias artificiais da sociedade são completamente moldadas: os costumes, evidentemente; as leis, não menos, seja pela influência direta do sentimento público sobre os poderes

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determinado estado é efeito do estado de sociedade anterior, mas também causa do estado que a sucederá. Portanto, a ramificação das ciências particulares está limitada a áreas de conhecimento que não são influenciadas preponderantemente por causas como diversidades de caráter entre diferentes nações ou épocas. Em decorrência disso não pode ser erigida uma ciência política independente de uma ciência geral da sociedade.

Em todas as ciências dedutivas que aplicam o modo direto a verificação é essencial para conferir garantia às leis hipotéticas determinadas, e consiste na comparação com leis empíricas resultantes da experimentação. Porém, no caso das fenômenos sociais complexos não há leis empíricas obtidas pela experimentação, já que é impossível determiná-las, como já vimos, perante a profusão de causas que pode ser responsabilizadas pelo mesmo fenômeno. A verificação direta, no caso das ciências sociais particulares, que se utilizam do modo direto, só pode ser feita comparando a conclusão com o resultado de uma experiência individual. Porém, na maior parte dos casos, a única instância individual adequada para verificar as predições da teoria é a própria instância para a qual as predições foram feitas; a verificação vem então muito tarde para ser de alguma utilidade na orientação prática (Cf. LCM, p. 73). Entretanto, Mill admite a realização de uma verificação indireta, comparando a conclusão obtida para um caso com outras conclusões para outros casos individuais, a partir das mesmas leis. Em suma, para provar que nosso conhecimento do caso particular possibilita predições, devemos mostrar que seria suficiente para explicar o presente e o passado.

O método indireto ou histórico e a ciência geral da sociedade

Mill concebe uma ciência geral da sociedade como aquela que se refere às causas que produzem e aos fenômenos que caracterizam os estados de sociedade em geral. Portanto, o problema fundamental das ciências sociais é encontrar as leis de acordo com as quais um estado de sociedade produz o estado que o sucede e substitui. A linha de sucessão dos estados está relacionada a uma noção específica de progresso? Sim, pois os estados de sociedade são caracterizados pelo caráter social, por sua vez formado pelas circunstâncias; tais circunstâncias determinam o caráter que, por sua vez, graças a incluir entre suas circunstâncias a liberdade moral e a vontade humana para alterá-lo, gera novas circunstâncias. Esse desenvolvimento cíclico constitui o progresso, que deve ser entendido como uma tendência ao aperfeiçoamento. Essa concepção de progresso não se reduz a uma idéia de sucessão entre fatos gerais em perspectiva histórica, uma uniformidade reduzida a lei da natureza, que é capaz de previsões. Esse tipo de lei do progresso constituiria apenas uma lei empírica independente, que não pode ser o objetivo de uma ciência. A sucessão de estados de sociedade que caracteriza o progresso deve depender de leis psicológicas e etológicas e ser verificada pela evidência histórica para que seja transformada de lei empírica a lei científica, oferecendo garantia para predições. A história, portanto, é que permite a vinculação de nossas generalizações com as leis causais das ciências morais e apresenta, à luz de procedimentos adequados, regularidades que configuram leis empíricas da sociedade. O problema da sociologia geral é determiná-las e conectá-las com as leis da natureza humana, por meio de governantes, seja pelo efeito que o estado do sentimento e da opinião nacional têm na determinação da forma de governo e na formação do caráter dos governantes (Cf. LCN, p. 75).

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deduções que mostrem que tais eram as leis derivadas que se deveria naturalmente esperar como conseqüências das leis últimas (Cf. LCM, p. 86). O procedimento anterior constitui uma real verificação no método dedutivo inverso, capaz de corrigir as errôneas e apressadas generalizações que vem sendo realizadas no decorrer da história.

As regularidades históricas são verificáveis através da estatística. Mill considera que o grau singular de regularidade na apresentação dos fenômenos em grande quantidade, evidenciado por meio da estatística, combinado com a extrema irregularidade dos casos que compõe a massa, é "uma feliz verificação a posteriori da lei de causação na sua aplicação à conduta humana" (LCM, p. 101). Realmente, os índices estatísticos vem eliminar, no método indireto, a grande desvantagem que a verificação pela experiência única representava no método direto. Como toda ação do homem social depende das circunstâncias gerais do estado de sociedade (fatores morais, educacionais , econômicos, que incidem sobre a totalidade da população) e das influências especiais do indivíduo (temperamento, parentesco, relações sociais, afecções, etc.), podemos dizer que, num espaço determinado de tempo (como o ciclo de um ano) as circunstâncias gerais praticamente não variam e as influências especiais tem seu escopo de variação por meio de uma média estatística. Se há uniformidade dos resultados considerados no intervalo de tempo podemos efetuar previsões e, ao mesmo tempo, confirmar a teoria geral da causalidade no âmbito das ações humanas.

O uso da estatística por Mill não se confunde com seu emprego como instrumento de generalização indutiva, em procedimentos que hoje designaríamos por projeções estatísticas. Os cálculos estatísticos constituem uma parte do método dedutivo inverso, são instrumentos de verificação, não de descoberta. Podem expressar, contudo, tendências. Ainda a respeito da estatística como confirmadora da explicação causal dos fenômenos sociais, convém assinalar que o argumento de Mill a favor da excepcionalidade do papel que os "grandes homens" desempenham na teoria da uniformidade na história, da tendência ao progresso. Parece-nos que a teoria dos "grandes homens" reproduz a lacuna que existe entre o universo das leis mentais e da natureza individual em relação à articulação entre circunstâncias e fatos que rege o caráter social, ou seja, constitui outro exemplo da problemática hierarquia de leis causais que rege o sistema de lógica das ciências morais. Considerar os esforços de seres privilegiados como responsável por uma aceleração no progresso, que é concebido como progresso intelectual coletivo, é contraditório com a suposição da uniformidade histórica e também com a teoria da causalidade aplicada à sociedade.

A aceitação do método dedutivo inverso como método mais apropriado à ciência social geral evidencia, sem dúvida, a influência que Comte exerceu sobre Mill. Em sua autobiografia, Mill reconhece essa influência:

Em um ponto de vista meramente lógico, a única concepção importante que devo a ele é o Método Dedutivo inverso, como o único plenamente aplicável aos complicados assuntos da História e da Estatística, um processo que difere da forma mais comum do Método Dedutivo no seguinte: ao invés de chegar a suas conclusões por um raciocínio geral e verificá-las pela experiência específica (como é a ordem natural nos ramos dedutivos da ciência física), obtém suas generalizações por um exame da experiência específica, e as verifica certificando se elas derivam de princípios gerais conhecidos. Essa foi uma idéia inteiramente nova para mim quando a encontrei em Comte: se não fosse por ele eu poderia não chegar a ela cedo, ou talvez nunca atingi-la (Autobiography, Chap. V)

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Mill deriva de Comte outras concepções teóricas, como a teoria dos três estados na sucessão natural do conhecimento humano, além da concepção dos métodos das ciências sociais em analogia com os métodos da ciência física. No que se refere a LCM, a contribuição de Comte foi tardia, pois quando Mill leu o Cours de Philosophie Positive já havia concluído o Livro VI, sendo conduzido a realizar alterações substanciais em edições posteriores. Entretanto, devemos ressaltar que a incorporação que Mill faz das teorias de Comte é sempre crítica e talvez devamos considerar que o primeiro complementa aspectos que foram negligenciados pelo segundo. Mill afirma, em sua autobiografia, que sua teoria da indução foi completada após a leitura do Curso de Filosofia Positiva, mas SL contém, além de sua determinação, uma redução do processo indutivo a regras estritas e a um teste científico, como o silogismo o faz com o raciocínio. Mill propõe, em SL, o que Comte não atinge em sua obra, apesar de ser sempre "preciso e profundo em seus métodos de investigação": uma definição exata das condições da prova.

Recorrendo a Comte e inclusive citando um longo trecho do livro IV do Curso de Filosofia Positiva, Mill classifica as leis empíricas da sociedade em dois grupos: as de uniformidade de coexistência, que constituem uma estática social (condições de repouso e equilíbrio e das ações e reações mútuas dos fenômenos em analogia com o mundo físico) e se referem às condições de estabilidade da vida social, ao consensus; as leis de sucessão, que compõem a dinâmica social, (em analogia com a biologia e o mundo orgânico) referente ao progressivo movimento.

A exposição que Mill faz da estática social vale-se freqüentemente da analogiacom o mundo natural, mais especificamente com o mundo orgânico, para ilustrar a interdependência das causas e elementos. O fato de Mill não apresentar uma concepção mecânica dos procedimentos da estática social (o que seria previsível, visto que na sociedade predomina a composição de forças) pode ser interpretado como uma tentativa de explicar que as leis empíricas passíveis de se tornarem verdadeiras não podem ser obtidas exclusivamente através da perspectiva da estática social. Afirmando a idéia de que as previsões bem sucedidas indicam o progresso de uma teoria científica, Mill declara que as previsões da sociologia nos permitirão inferir uma a partir das outras (sujeitas a verificações posteriores pela observação direta) as marcas distintivas de cada modo de existência social, em analogia com o que se faz atualmente na anatomia do corpo físico. Esse ramo da especulação sociológica é a base da teoria do progresso social e pode, por si mesmo, ser imediatamente empregado para substituir a observação direta, que não pode ser constantemente efetuada sobre certos elementos da sociedade. Entretanto, essas relações necessárias entre os diferentes aspectos da sociedade devem sofrer uma apreciação exata dos seus limites de variação, tanto no estado são como no estado mórbido, em analogia com a anatomia do corpo natural. (Cf. LCM, p. 88) A estatística representa, portanto, uma ferramenta indispensável no ramo da estática social, para fixar o escopo da variação dos aspectos sociais. Entretanto, para verificar o grau de dependência entre os elementos sociais (consensus), que varia conforme esses elementos estão direta ou indiretamente conectados, um estudo diacrônico é mais, o que exige a perspectiva da dinâmica social.

Mill finaliza suas considerações sobre a estática social examinando detalhadamente um princípio que considera passível de ser estabelecido por esse ramo da ciência social: a correlação necessária entre a forma de governo existente numa sociedade e o estado contemporâneo de civilização. Segundo Mill, analisando os inúmeros resultados de articulação entre sistemas de governo e condições de

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existência (no início meras leis de fenômenos), é possível constatar que alguns deles resultam das leis naturais da natureza humana com tanta verossimilhança que a consonância dos dois procedimentos eleva a evidência à prova e as generalizações à posição de verdades científicas (Cf. LCM, p. 90). Referências a elementos da história das civilizações, enfocando o início da obediência a um tipo de governo, são relacionadas com a exposição de condições que deveriam ser necessariamente satisfeitas para a submissão à lei e ao governo, todas elas concernentes às leis da natureza humana: sistema de educação, existência de um sentimento de fidelidade ou lealdade, princípio de coesão entre os membros de um mesmo estado ou comunidade. A respeito deste último aspecto, Mill constata que as nações mais poderosas são as que tiveram esse sentimento em mais alto grau, enquanto as mais problemáticas em seu desenvolvimento são aquelas onde as partes de um mesmo estado estão debilmente ligadas umas com as outras (como ocorreu na América do Sul).

Mill apresenta um certo ceticismo quanto à possibilidade de explicar a dinâmica social (sucessões de estados sociais no curso da história), pois é considerável a dificuldade lógica e prática de comparar as causas de um estado social com outro que lhe antecede: o consensus é tão completo na história moderna que, de uma geração para outra, "é o todo que produz o todo, mais do que uma parte uma parte" (LCM, p. 94). Assim, as leis empíricas obtidas por generalização, mesmo que verificadas a priori (método inverso), são impotentes para a investigação na dinâmica social, a não ser que intermediadas por leis imediatas ou derivadas, os axiomata mediada sociologia geral, que aprsentam a mesma função lógica e metodológica que as leis etológicas, como axiomata media das leis da natureza. Essas leis determinam como os estados sociais se sucedem aos outros, em direção ao progresso. Notamos que a diferença de grau entre as leis empíricas sociais, que não podem expressar mais que tendências, e essas leis médias é muito grande. Mill prevê várias etapas intermediárias até que se possa apresentá-las como corolários dos princípios de ordem superior (leis psicológicas e etológicas) e convertê-las finalmente em leis do desenvolvimento social.

A determinação das leis médias, que permite a conexão das tendências aos princípios psicológicos e etológicos ainda não completa o percurso na determinação das leis da ciência social geral, que exige, em sua base, leis empíricas de correspondência entre estados de sociedade simultâneos e estados de sociedade sucessivos, compreendendo os enfoques estático e dinâmico do corpo social. Essa lei de correspondência, devidamente verificada a priori, viria a ser a verdadeira lei científica derivada a respeito do desenvolvimento da humanidade e dos acontecimentos humanos (Cf. LCM, p. 95).

Procurando ilustrar uma possibilidade de aplicação do método dedutivo inverso à sociologia, Mill examina, a partir de evidências históricas, a hipótese do desenvolvimento intelectual humano como determinante em relação ao progresso social. Sob a ótica da estática social, a observação das circunstâncias num dado estado social, à luz de procedimentos estatísticos, evidencia que o estado das faculdades especulativas da humanidade, incluindo a natureza das crenças que o homem alcançou a respeito de si mesmo e do mundo está positivamente relacionado com o estado material, político e moral da comunidade. Sob o enfoque da dinâmica social, a história demonstra que todo avanço material foi precedido por um avanço no conhecimento e quando uma grande mudança social ocorre, sempre tem como precursora uma grande mudança de opiniões e maneiras de pensar, e.g. sistemas religiosos como politeísmo, judaísmo, cristianismo, protestantismo (estado teológico); a filosofia crítica (estado

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metafísico) e ciência positiva em constituição (estado positivo). As evidências anteriores, generalizadas na forma de uma lei de correspondência, conduz à seguinte lei dos fenômenos: a ordem do progresso humano é determinada principalmente pela ordem do progresso das convicções intelectuais da humanidade, i.e., da lei das transformações sucessivas das opiniões humanas (Cf. LCM, p. 97). Transformar essa generalização numa lei científica utilizando o método histórico exige, num primeiro passo, determiná-la como uma lei empírica a partir da história, o que exige a recuperação da história da humanidade até o presente; um segundo passo consiste em converter a lei empírica determinada numa série de axiomas, deduzindo-a a priori das leis fundamentais da natureza humana.

Mill finaliza suas considerações sobre o método da sociologia, ou ciência social geral, ressaltando suas conseqüências práticas. A determinação dos axiomas no processo dedutivo permite não só o conhecimento dos estados de sociedade contemporâneo e anteriores, mas a lei das tendências em direção ao progresso. Por intermédio dessas leis da sociedade a humanidade pode escolher ou desenvolver meios e técnicas apropriados para alcançar o progresso em seus aspectos positivos, assim como influir nas circunstâncias para neutralizar tendências negativas. Essas operações exigem, evidentemente, intervenções na estrutura de poder. Assim, Mill, fiel a seus princípios utilitaristas, concebe a sociologia enquanto ciência dedutiva que constitui um suporte indispensável para a Arte ou prática política, pois todo passo em direção à uma melhoria política implica a remoção das fontes de oposição de interesses e a demolição das desigualdades de privilégios legais entre indivíduos ou classes, devido às quais existe uma grande parte da humanidade cuja felicidade é ainda praticamente descartada (Cf. Mill, Utilitarianism, Chap. III).

Observações finais

As conclusões obtidas em LCM, que consideram o método dedutivo apropriado para os ramos subsidiários das ciências sociais, como a economia e a etologia políticas, e o método dedutivo inverso para a sociologia, ou ciência social geral, deslocam a importância dos métodos de indução por eliminação para a verificação (observação a posteriori), negando ou limitando drasticamente sua utilidade no processo da descoberta e da explicação das causas dos fenômenos sociais. Ainda assim, a indução nos métodos experimentais durante a verificação deve ser sempre monitorada pela dedução, cujos antecedentes são os axiomata media ou os princípios da natureza humana.

A admissão do método hipotético como variante do método dedutivo, suprimindo a etapa de indução direta, já indicava a limitação dos métodos experimentais no estudo de fenômenos mais complexos. Entretanto, a importância da indução fica preservada por sua capacidade de produzir generalizações e leis empíricas, mesmo que essas leis decorram de uma aplicação imperfeita dos métodos experimentais perante as dificuldades da conjunção e disjunção de causais que geralmente determinam os efeitos nos fenômenos sociais. No processo de explicação, a indução aparece no caso da subsunção de uma lei sob outra ou a reunião de várias leis numa mais geral que inclui todas, no qual ocorre um processo de eliminação de circunstâncias similar ao método de concordância.

Acreditamos que uma forma interessante de concluir essa reconstrução seria especular sobre a viabilidade de aplicação do método proposto por Mill para as

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ciências sociais no estágio atual da ciência. Porém, tal tarefa exigiria mais propriamente um trabalho mais abrangente. Podemos, contudo, abordar um aspecto do problema, que consiste numa breve apresentação das críticas que a metodologia das ciências gerais de Mill recebeu. Procuraremos, então, aplicar as questões que julgamos mais importantes ao caso específico das ciências sociais.

Uma primeira objeção feita à metodologia de Mill é que as relações causais podem constituir as principais formas de associação lógica de eventos ou fenômenos, no que se refere ao interesse da ciência. Acreditamos que essa crítica é hoje pertinente, não só nas vertentes metodológicas de fundamentação hermenêutica (onde o argumento se torna óbvio), mas também no interior do próprio positivismo ou de vertentes de fundamentação analítica.

A metodologia das ciências sociais de Mill parece não possibilitar a investigação da ação humana investida da vontade, pois, apesar de seus argumentos afirmando a possibilidade de que o homem altere seu próprio caráter, a explicação dessa mudança deve ser derivada dedutivamente de leis psicológicas, ou seja, o conceito de vontade subordina-se ao das características da personalidade. Segundo Giddens, Mill, assim como, posteriormente, Talcott Parsons, "identificaram o voluntarismo com a 'interiorização de valores' na personalidade e, desde logo, com a motivação psicológica" (1996, p. 30).

A limitação dos recursos lógicos à disposição na época de Mill (sua argumentação utiliza exclusivamente os silogismos da lógica clássica) pode explicar, em parte, sua teoria da indução causalista. O desenvolvimento da lógica relacional, e mais tarde, da lógica modal, possibilitaria, mais tarde, a contestação ou a relativização das teorias causalistas no interior das vertentes analíticas.

Uma segunda objeção recorrente aos métodos de Mill, principalmente aos métodos indutivos por eliminação, é que a exposição e o reconhecimento do modelo hipotético-dedutivo difundido principalmente por Popper tornam os métodos experimentais inseridos no método dedutivo de Mill obsoletos. Mackie argumenta contra essa crítica, afirmando que "não há qualquer incompatibilidade, hostilidade ou diferença de espírito entre esses dois procedimentos" (op. cit., p. 320). Embora os métodos eliminatórios sejam também demonstrativos, o contexto de sua utilização prática torna suas conclusões apenas hipotéticas, como evidenciamos anteriormente. Suas suposições requerem confirmação, já que, na maioria das vezes, os próprios métodos são impossibilitados de prová-las. O princípio de Popper de necessária corroboração das hipóteses por uma série de testes é ilustrado pela combinação dos métodos da concordância e da diferença. Aliás, são precisamente esses dois métodos que apresentam alguma possibilidade de aplicação prática nas ciências sociais. Entretanto, parece-nos que a conclusão de Mackie não valeria para o caso específico da lógica das ciências morais. A investigação dos fenômenos sociais pressupõe algumas premissas básicas que funcionam como suporte para o percurso dedutivo: as leis da natureza, ou seja, as leis mentais ou psicológicas, das quais derivam dedutivamente leis etológicas. Em sua lógica da pesquisa científica, Popper é bem claro na condenação ao psicologismo para a explicação do desenvolvimento científico: "a questão de como uma nova idéia ocorre a um homem –se é um tema musical, um conflito dramático ou uma teoria científica –pode ser de grande interesse para a psicologia empírica; mas é irrelevante para a análise lógica do conhecimento científico" (1968, p. 31). A observação anterior, combinada a outros argumentos presentes no mesmo capítulo ("A eliminação do psicologismo"), conduzem-nos a

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concluir que a dedução de leis sociais a partir de leis psicológicas, ainda que intermediada por leis médias, não seria admitida no método hipotético-dedutivo.

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Referências bibliográficas

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