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A memória coletiva em “Pelo fundo da agulha”
Cláudio Márcio da Silva (UNEMAT)
Resumo: O presente artigo tem como objetivo central discutir o conceito de memória de
Maurice Halbwachs e suas possíveis relações com a obra Pelo fundo da agulha de Antônio
Torres. Como uma obra do Modernismo brasileiro, a narrativa se apresenta de forma
fragmentada, sem formar uma identidade única, mas fomentando uma rede que é tecida por
angústias e buscas. O romance se constrói por lembranças das vivências de outrora, o que
representa a memória do sujeito, envolvendo passado e presente, deixando de lado a linearidade
da narrativa. Enfatizando o estudo desenvolvido por Maurice Halbwachs sobre o caráter de
coletividade da memória, busca-se aplicar seus estudos no romance em questão. O enfoque
desta análise é discutir como algumas tradições, costumes e conhecimentos são mantidos e
cultivados pelo protagonista quando esse relembra de sua mãe, buscando também entender
como as múltiplas facetas da memória atuam no romance moderno e como ela influencia na
construção da identidade das personagens e do próprio romance. A justificativa para a escolha
do tema paira sobre sua contemporaneidade, além da expectativa de contribuir para o âmbito
acadêmico. O método de pesquisa empreendido segue natureza qualitativa, com pesquisa do
tipo bibliográfica.
Palavras-chave: Memória Coletiva, Antônio Torres, Romance, Literatura Brasileira.
Abstract: This paper has as main objective to discuss the concept of memory brought by
Maurice Halbwachs and its possible relations with the book Pelo fundo da agulha written by
Antônio Torres. A Brazilian Modernist book, the narrative presents itself in a fragmented way,
without forming a unique identity, but fostering a network that is woven by anxieties and
searches. The novel is constructed by memories of the experiences of the past, which represents
the memory of the subject, involving past and present, leaving behind the linearity of the
narrative. Emphasizing the study developed by Maurice Halbwachs about the collective
character of memory, it is sought to apply his studies inside the novel. The focus of this analysis
is to discuss how some traditions, customs and knowledge are maintained and cultivated by the
protagonist when he remembers his mother, also trying to understand how the multiple facets
of memory work in the modern novel and how it influences the construction of the identity of
the characters and of the novel itself. The justification for choosing the theme hangs on its
contemporaneity, in addition to the expectation of contributing to the academic field. The
research method followed is qualitative, with bibliographic research.
Keywords: Collective Memory, Antônio Torres, Novel, Brazilian Literature.
Introdução
No século XX, a literatura rompe com as velhas formas de narrar. A mistura entre ficção
e realidade, e o emprego, cada vez mais frequente da não linearidade fragmentou a narrativa,
descentralizando o núcleo temático. A memória impõe ao romance novos modos de narrar.
Assim, procuraremos neste artigo mostrar diferentes formas de memória na narrativa Pelo
fundo da agulha (2006), de Antônio Torres. É por meio da memória que a narrativa se
desenvolve, numa busca incessante pelo que foi vivido, pelo entendimento de fatos e situações
que desencadearam o hoje. Num primeiro momento, por meio dos estudos propostos por
Maurice Halbwachs (1990) sobre a problemática da memória na contemporaneidade,
abriremos um espaço de discussão sobre a memória e seu caráter de coletividade. Num segundo
momento, objetiva-se analisar criticamente essa problemática na narrativa em questão,
observando a sua influência na constituição do romance. A memória individual materializa-se
sobretudo pelas recordações do protagonista Totonhim que embalado pela imagem de sua mãe
já velhinha, mas lúcida o bastante e com uma visão tão apurada que ainda é capaz de enfiar,
sem ajuda dos óculos, a linha de costura pelo fundo da agulha. Por meio dessa imagem,
Totonhim, como se olhasse por esse orifício, relembra várias cenas de sua vida, figuras que só
existem em sua memória. Porém, como afirma Connerton, “a narrativa de uma vida faz parte
de um conjunto de narrativas que se interligam, está incrustada nas histórias dos grupos a partir
dos quais os indivíduos adquirem a sua identidade”. Assim, por meio da lembrança de um
membro da família, uma memória individual, também é transmitida a memória coletiva.
A fim de problematizar a memória, a metodologia usada baseia-se na pesquisa em livros
e artigos dentro da área de conhecimento da literatura, com o intuito de estabelecer apoio
teórico para a análise e interpretação do romance em questão e problematizar o caráter de
coletividade que a memória ganha dentro da obra. As discussões feitas neste trabalho buscam
contribuir para uma problematização do romance brasileiro no tocante à memória,
demonstrando múltiplas facetas desta na literatura brasileira moderna.
Algumas considerações acerca da memória
Nas palavras de Walter Benjamin, a ausência de experiências vem caracterizando a
narrativa e isso vem causando um certo esvaziamento da obra (BENJAMIN, 1936, p. 198),
afetando não apenas seu conteúdo temático, mas sobretudo sua estrutura, tornando-a mais
sucinta e curta. Nesta nova forma de narrar, além da tensão frequente entre as personagens e o
meio, a literatura também se problematiza propondo uma discussão entre o que é ficção e o que
é realidade na trama, e é justamente esta tensão que afeta o modo tradicional de contar uma
estória, fragmentando gêneros como o romance. Aqui entra em cena a memória, e sua
capacidade de misturar realidade e fantasia, percepção e interpretação. Ela possibilita, com a
ajuda de dados emprestado do presente, a reconstrução do passado.
O discurso sobre a memória é muito antigo. Nenhum indivíduo poderia memorizar
todos os títulos que desde a Antiguidade até hoje fazem referência à memória. Considerados
como fundadores das pesquisas sobre o assunto, Henri Bergson, na filosofia, Freud, na
psicanálise e Proust na literatura, trazem grandes contribuições para o tema. Na literatura, a
memória estabelece vínculos desde os tempos remotos, vêm de quando a palavra literatura
ainda nem existia, mas ainda era chamada de poiesis, ou poesia. Remonta a Homero, quando
esta poesia era a base da cultura e da educação grega, uma forma de conservação das práticas
já que a escrita ainda era muito restrita e a poesia tinha um papel fundamental: narrar o passado,
contar a história. A memória, sem dúvida, tem algo a ver não só com o passado, mas também
com a identidade e, assim (indiretamente), com a própria persistência no futuro.
Ela é fonte de interesse de várias áreas, como a história, a antropologia, a neurociência
e a psicologia, por exemplo, mas como tema, seu estudo não se esgota somente com essas
ciências. Seu conceito é amplo e complexo, e apresenta variações ao longo do tempo e da
sociedade a qual integra. Para pensar o romance em questão, utilizaremos preferencialmente
os estudos de Maurice Halbwachs, que traz significativas contribuições para o campo de
estudo.
Com o crescimento das pesquisas no campo da memória, seu estudo também chegou às
artes, sobretudo na narrativa. Especificamente na literatura, a memória aparece nas relações de
lembrar e narrar, apresentando movimento e dinamismo ao se ficcionalizar, assim
universalizando-se. As experiências vividas e as imaginadas fundem-se na arte de narrar a fim
de driblar o cronológico, o efêmero datado, a limitada particularidade. Este jogo traz para a
narrativa o passado e presente.
À primeira vista, quando se fala em memória, pensa-se tratar-se de um fenômeno
individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa. Mas segundo os estudos do teórico
que serve de base para este texto, a memória deve ser entendida como um fenômeno coletivo
e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações,
transformações, mudanças constantes, seja em relação ao espaço, seja em relação ao tempo.
Vários elementos a constituem, individual ou coletivamente, e eles podem traduzir-se em
acontecimentos vividos pessoalmente, ou em grupo:
São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no
imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase
impossível que ela consiga saber se participou ou não. Se formos mais longe,
a esses acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os eventos que
não se situam dentro do espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo. É
perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da
socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação
com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase
que herdada. (POLLAK, 1992, p. 2).
Os acontecimentos e transformações espaciais que marcam tanto uma região quanto um
grupo podem, graças à memória, ser transmitidos ao longo dos séculos com altíssimo grau de
identificação. A memória também pode se constituir por pessoas, personagens e lugares. Esses
elementos, particularmente ligados à lembrança, podem por vez constituir ou modificar a
identidade do sujeito. A identidade está essencialmente fundada pela memória, ela é uma linha
que liga o sujeito ao passado, e não apenas ao passado que ele próprio viveu. Segundo Pollak,
a identidade é formada de três elementos essenciais: pertencimento ao grupo; continuidade
dentro do tempo; finalmente, o sentimento de coerência, ou seja, de que os diferentes elementos
que formam um indivíduo são efetivamente unificados. Para ele, se um desses sentimentos de
unidade se rompem, fenômenos patológicos surgem. Então, “a memória é um elemento
constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela
é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de
uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si”. (POLLAK, 1992, p. 05).
Maurice Halbwachs (1990), sociólogo francês, aborda a questão da memória de um
ponto de vista coletivo. Para ele, a memória nunca é exclusivamente individual, uma tábula
rasa, mas sim composta do que ele chama de “quadros sociais da memória”. Mesmo que se
considere a memória individual, que nunca é isolada ou fechada, ao evocar o passado tem-se a
necessidade de apelar às lembranças dos outros para se reportar a pontos de referência que
existem no mundo exterior e que são fixados pela sociedade. “Mais ainda, o funcionamento da
memória individual não é possível sem esses instrumentos que são as palavras e as ideias, que
o indivíduo não inventou e que emprestou de seu meio” (HALBWACHS, 1990 p. 54). Isso
reforça o pensamento de que a memória é sempre constituída em grupo, condição necessária
já que as lembranças dependem de sua ausência e/ou presença nesse grupo. Durkhein, de quem
Halbwachs era discípulo, já evocava a impossibilidade de se localizar lembranças sem tomar
como referência quadros sociais que ajudam na reconstrução da memória. Apesar de coletiva,
Halbwachs também destacava a presença da memória individual, mas esta rememoração
pessoal está atrelada dentro de malhas sociais de solidariedade múltipla, traduzidas pela
linguagem.
Mas nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos
outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos
envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca
estamos sós. Não precisamos que outros homens estejam lá, que se distingam
materialmente de nós: porque temos sempre conosco e em nós uma
quantidade de pessoas que não se confundem. (HALBWACHS, 1990, p. 26).
Em outras palavras todo indivíduo possui, ou já possuiu, um grupo de referência, com
o qual estabeleceu uma rede de pensamentos. Assim, na construção da memória, recorre-se
também a grupos como a família, a religião e a classe social, materializados não pela presença
física, mas pela possibilidade de reviver os modos de pensamento e a experiência comum desse
grupo. São as relações desses grupos constituem a lembrança, que não se trata de sentimentos
isolados, mas necessita de uma comunidade afetiva sem a qual cai no esquecimento. É o apego
da comunidade, com seus dados e noções partilhadas, que permite lembrar:
[...] desde o momento em que nós e as testemunhas fazíamos parte de um
mesmo grupo e pensávamos em comum sob alguns aspectos, permanecemos
em contato com esse grupo, e continuamos capazes de nos identificar com ele
e de confundir nosso passado com o seu. Poderíamos dizer, também: é preciso
que desde esse momento não tenhamos perdido o hábito nem o poder de
pensar e de nos lembrar como membro do grupo do qual essa testemunha e
nós mesmos fazíamos parte, isto é, colocando-se no seu ponto de vista, e
usando todas as noções que são comuns a seus membros. (HALBWACHS,
1990, p. 29).
Mesmo que a memória coletiva envolva memórias individuais, aquela não se confunde
com esta, uma vez que a coletiva evolui segundo suas leis e “se algumas lembranças individuais
penetram algumas vezes nela, mudam de figura assim que sejam recolocadas num conjunto
que não é mais uma consciência pessoal.” (HALBWACHS, 1990, p. 53/54). Portanto, é
impossível realizar a rememoração e a localização das lembranças dissociadas dos contextos
sociais que servem para auxiliar na reconstrução da memória. Os espaços, os lugares e
sobretudo os grupos que ali habitam facilitam o ativamento da lembrança. Assim, a memória
se constrói a partir do contato dos indivíduos uns com os outros em uma mesma sociedade ou
grupo social. Trata-se de um trabalho de reconstruir o que se foi a partir do que se é, porque as
memórias que guardamos não são imagens exatas do acontecido, mas aquelas que nossa
consciência atual nos apresenta, mas que devido a sutileza e ao fortalecimento que o tempo traz
às relações, banalizam-se passando despercebidas no dia-a-dia.
A coletividade influência até na rememorização e no conhecimento das categorias
cronotópicas de tempo e espaço. No espaço, alguns elementos ativam lembranças contidas na
memória e, sem elementos, talvez essas lembranças caíssem no esquecimento. Até mesmo
objetos têm a capacidade de guardar marcas e lembranças de acontecimentos. “Nosso entorno
material leva nossa marca e a dos outros. Nossa casa, nossos móveis e a maneira segundo a
qual estão dispostos, o arranjo dos cômodos onde vivemos, lembram-nos nossa família e os
amigos que víamos geralmente nesse quadro”. (HALBWACHS, 2007, p. 130). Quando um
grupo está inserido numa parte do espaço, ele a transforma à sua imagem, ao mesmo tempo em
que se sujeita e se adapta às coisas materiais que a ele resistem. Mesmo o tempo é uma
representação coletiva. Novamente tomando Durkhein como base, Halbwachs (1990, p. 90)
observa que um indivíduo isolado poderia ignorar o tempo que se esvai, e se achar incapaz de
medir a duração, mas que a vida em sociedade implica que todos os homens se ajustem aos
tempos e às durações, e conheçam bem as convenções das quais são objeto. O tempo está
dividido da mesma maneira para todos os grupos e membros da sociedade, o diferencial é a
consciência da duração.
Para Ecléa Bosi (1987) a memória seria o lado subjetivo de nosso conhecimento das
coisas, um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento. Analisando a obra de Henri
Bergson, ela alerta que:
A memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo
tempo, interfere no processo “atual” das representações. Pela memória, o
passado não só vem tona das águas presentes, misturando-se com as
percepções imediatas, como também empurra, “desloca” essas últimas,
ocupando o espaço todo da consciência. (BOSI, 1987, p. 47).
Ecléa diz ser importante frisar que para Bergson, o universo das lembranças não se
constitui do mesmo modo que o universo das percepções e das ideias, uma vez que de um lado,
tem-se o par percepção-ideia, nascido no coração de um presente corporal contínuo; de outro,
o fenômeno da lembrança, cujo aparecimento é descrito e explicado por outros meios. O
discurso de Bergson centra-se no como se dá a passagem da percepção das coisas para o nível
da consciência, da lembrança. Para ele, não há percepção que não esteja impregnada de
lembranças.
Aos dados imediatos e presentes dos nossos sentidos nós misturamos milhares
de pormenores da nossa experiência passada. Quase sempre essas lembranças
deslocam nossas percepções reais, das quais retemos então apenas algumas
indicações, meros signos destinados a evocar antigas imagens. (BOSI, 1987,
p. 46).
Essa lembrança é uma forma de conhecimento, uma espécie de escavação ou de busca
voluntária entre os conteúdos da alma.
O mundo em que vivemos há muito está cheio de lugares nos quais estão
presentes imagens que têm a função de trazer alguma coisa à memória.
Algumas dessas imagens, como acontece nos cemitérios, nos lembram
pessoas que não mais existem. Outras, como nos sacrários ou nos cemitérios
de guerra, relacionam a lembrança dos indivíduos à dos grandes eventos ou
das grandes tragédias. Outras ainda, como acontece nos monumentos, nos
remetem ao passado de nossas histórias, à sua continuidade presumível ou
real com o presente. Nos lugares da vida cotidiana, inúmeras imagens nos
convidam a comportamentos, nos sugerem coisas, nos exortam aos deveres,
nos convidam a fazer, nos impõem proibições, nos solicitam de diversas
maneiras. (ROSSI, 201, p. 23).
A memória é busca constante do lembrar, o combate à ameaça do esquecer, é uma
constante luta contra o esquecimento. Extremamente ligada ao ato de viver, uma vez que todos
os grupos humanos possuem memória, ela está sempre evoluindo, deformando-se, vulnerável
a todos os usos e manipulações impostas pelo esquecimento.
Tem um papel de resgate da identidade do sujeito, já que nela há um movimento que
vai do presente em direção ao passado. Assim, a forma como acontece a reconstrução dessas
recordações são importantes não apenas para a reconstituição de fatos, mas também para as
representações e construção de identidade, permitindo a relação do corpo presente com o
passado e, ao mesmo tempo, interferindo no processo atual das representações.
Pelo fundo da agulha
O escritor e jornalista Antônio Torres nasceu no interior da Bahia num lugarejo
anteriormente conhecido como Junco, mas que hoje é denominado de Sátiro Dias. Aos vinte
anos mudou-se para São Paulo e atualmente reside no Rio de Janeiro. Com uma obra expressiva
que abrange onze romances, um livro de contos, um livro para crianças e um livro de crônicas,
o escritor já foi condecorado com importantes prêmios, tanto no Brasil (Prêmio Machado de
Assis e Prêmio Jabuti), como no exterior (Chevalier des Arts et des Lettres - França).
Seu primeiro romance foi Um cão uivando para a Lua (1972), que causou tamanho
impacto que logo na estreia levou o autor a ser considerado pela crítica “a revelação do ano”.
Porém, seu grande reconhecimento veio em 1976, com a publicação de Essa terra, que mais
tarde se transformaria numa trilogia. A narrativa, que se passa na pequena cidade de Junco, a
mesma cidade do autor, aborda a questão do êxodo rural de nordestinos em busca de uma vida
melhor no Sudeste, principalmente São Paulo. O romance dialoga com uma tradição da
literatura brasileira: discutir o nordestino como tema de ficção, principalmente a questão da
migração para grandes centros em busca de melhores condições de vida. Nessa narrativa, feita
em primeira pessoa, o migrante aparece na forma de protagonista dotado de voz, e não
abordado sobre uma perspectiva externa do narrador em terceira pessoa.
Tamanho foi o sucesso de Essa terra, que a história de Totonhim, o protagonista da
narrativa, prossegue em mais dois romances, formando uma trilogia. Em 1997 é publicado O
cachorro e o lobo, que dá continuidade da saga. “E assim se passaram vinte anos, pensarei, ao
chegar lá. Assim se passaram vinte anos sem eu ver estes rostos, sem ouvir estas vozes, sem
sentir o cheiro do alecrim e das flores do mês de maio” (p.17), relembra Totonhim ao regressar
à Junco, por ocasião do aniversário de 80 anos de seu pai. Mesmo desempregado e não
conseguindo a prosperidade esperada em São Paulo, Totonhim consegue representar o papel
de homem bem-sucedido, distribuindo presentes e festejando com seus conterrâneos.
No último romance da trilogia, Pelo fundo da agulha (2006), vencedor do Prêmio
Jabuti, por meio da imagem de sua mãe passando uma linha pelo fundo da agulha, o
protagonista Totonhim, imóvel e deitado numa cama, quase pegando no sono, faz um balanço
da trajetória de sua vida, desde sua saída de Junco, aos vinte anos de idade, até sua vida em São
Paulo – o ingresso no Banco do Brasil, o casamento com a filha do general, sua vida de casado,
de separado e, finalmente, de aposentado. A associação livre da memória une elementos
irremediavelmente separados pela vida.
Esse relato se dá exatamente dez anos depois da sua única viagem de retorno a terra
natal. O protagonista está sozinho em sua primeira noite de aposentado, num quarto de hotel.
Não tem nada para fazer. Aposentou-se, separou-se da mulher e dos filhos, perdeu o melhor
amigo e faz outra viagem de volta a Junco, mas desta vez, totalmente interior. Embalado pela
imagem da mãe velhinha, mas ainda com boa visão para enfiar a linha pelo fundo da agulha,
sem usar óculos, ele repassa várias cenas de sua vida, como se a olhasse por esse orifício. As
figuras só existem na memória de Totonhim.
Essa trilogia de romances do escritor baiano Antônio Torres, como muitos outros livros
da atual literatura brasileira, ficcionaliza representações da pobreza e da marginalidade, dos
excluídos, personagens migrantes, bem como as divagações do personagem Totonhim, que
pela memória, busca a construção de sua identidade. Esses romances narram o complexo
processo de migração de nordestinos para a cidade de São Paulo, bem como a encruzilhada
cultural a que são lançados. As obras são marcadas pela mobilidade e estadias efêmeras que
acabam caracterizando personagens sem raízes.
Elas têm em comum a preocupação com questões importantes, que estão no cerne das
discussões da atual literatura: a mobilidade/deslocamento, questões de identidade,
territorialização, por meio da trajetória do protagonista Totonhim. A migração e o trânsito de
personagens têm marcado de forma acentuada a ficção brasileira contemporânea em romances
e contos. A literatura tem se caracterizado pela intensificação dos atuais processos de
globalização, tematizando os deslocamentos e as mudanças nos espaços urbanos e tantas outras
realidades, elegendo a mobilidade e a pluralidade de vozes como marca textuais.
A memória
Pelo fundo da agulha (2006), de Antônio Torres conta a história do acerto de contas
entre Totonhim e suas memórias de Junco por meio da narração de uma viagem que integra
elementos que foram inevitavelmente separados pela vida. Ela fecha a trilogia do migrante,
ou do suicídio, como também é conhecida. Totonhim retoma diversas passagens de sua vida
em uma construção clara de memórias, como se visse essas imagens justamente pelo fundo
dessa agulha. As figuras que vê existem somente na memória de Totonhim, que conta sua
história em São Paulo.
Nesse sentido, a memória aparece como ponto inicial para a análise de todo o
conteúdo da obra, já que conforme as narrativas se desenrolam, em uma incessante busca
pelo que foi vivenciado, por entender fatos e situações que levaram ao hoje, é possível
reconhecer a ideia de memória que foi anteriormente apresentada com os conceitos de
Halbwachs.
Ao contrário dos dois anteriores, onde o próprio Totonhim contava a história, às vezes
dividindo o relato com outras personagens, neste o enredo narrado por um narrador em terceira
pessoa, por meio do discurso indireto livre que centra-se nas memórias e delírios do
protagonista, conferindo uma ideia de distanciamento do passado. Seu título pode ser associado
ao trabalho de amarração, costura, das partes diversas da memória na confecção da narrativa,
produzindo uma visão abrangente da vida de Totonhim, da infância a velhice. Este romance
inicia-se com Totonhim, dez anos, após a visita ao pai, narrada em O cachorro e o lobo, já
aposentado do banco, abandonado pela família, entrega-se a solidão e deitado na cama, começa
a rememorar sua trajetória de vida, abordando as circunstâncias que o levou àquela situação
presente. Ali, ele traz a tona todo o seu passado, desde sua infância pobre e sofrida em Junco,
até seu abandono na metrópole.
Se em O cachorro e o lobo a figura central é o pai, agora a personagem coloca a mãe
como destaque, lembrando que mesmo louca, velha e internada num asilo, ela ainda possui a
habilidade de passar uma linha pelo fino e estreito buraco de uma agulha. “[...] Como o coentro
e o alecrim. Os cheiros que o faziam lembrar de sua mãe, que sempre chorava, ao cortar uma
cebola. Na última vez em que a viu – e isso fazia muito tempo –, ela se ocupava em enfiar uma
linha pelo fundo de uma agulha, sem óculos. (TORRES, 206, p. 16).” É esse o fato que
desencadeia as lembranças da vida de Totonhim, que se emergem de maneira não cronológica,
mas misturadas a sonhos, devaneios e imaginações, que o levam para fora do mundo racional
a ponto de ele estabelecer um diálogo com mortos. Embalado nessas lembranças, Totonhim
entra em transe, numa espécie de semiconsciência, até que, horas depois, finalmente adormece
e só desperta no dia seguinte, bem otimista.
Ao se reencontrar com a mãe, as lembranças de Totonhim vão girar principalmente em
torno dos eventos mais significativos de sua vida: suas primeiras relações sexuais, juras de
amor para as antigas namoradas, a vinda para São Paulo, amigos que o ajudaram a entender a
complexidade dessa cidade tão grande, o triste fato de seu irmão Nelo ter saído de Junco em
busca das maravilhas e do sucesso da cidade grande, mas que acaba com sua própria vida. Em
Junco, por meio da memória, Totonhim conversa com sua mãe internada em um sanatório e
esse fato o leva a perceber, a tomar consciência que sua vida passou muito rápido, que acabara
como a mãe, o pai e tantos outros habitantes do sertão: só e abandonado. Assim, toma para si
o papel de reconstruir sua trajetória individual e coletiva, contra o esquecimento. Ao
rememorar, repensa suas perdas e seus ganhos com a migração do sertão, imagina como seria
seu retorno, seu contato com a família, sobretudo seu reencontro com a mãe.
Segundo o autor, Pelo fundo da agulha foi “uma reflexão sobre este crepúsculo do
mundo em que vivemos. Um pós-utópico, pós-modernista, pós-tudo”. Por trás dos impasses de
Totonhim estão os impasses de cada um, de toda uma geração e que de repente todos se veem
“jovens, adultos e velhos, numa encruzilhada do tempo, em busca de uma saída para o futuro”.
Com o deslocamento das pessoas e suas vivências, acontece também o dos valores,
comportamentos e condições de vida.
Apesar de se tratar de um narrador onisciente, sua voz não excede o limite de visão da
personagem. Ele só revela ao leitor aquilo que Totonhim conhece e sabe. Só vê e sabe aquilo
que a personagem também vê, sabe, pensa ou lembra, compartilhando a todo momento do
ponto de vista da personagem. Esta forma de narração confere um efeito especial na narrativa,
já que o narrador apresenta-se como se fosse a própria personagem fora de seu corpo, a observa-
la.
Para reconstruir suas memórias, Totonhim apela para um vínculo importante na vida
social e para a construção das relações: o vínculo materno. Antes, envolto no automatismo
imposto pela cidade grande, seu passado era praticamente anulado, a personagem não sentia
necessidade de revisita-lo. Ao resgatar o passado de Totonhim, o narrador seleciona eventos
que ora se apresentam como traumáticos, ora saudosos e até curiosos, distribuídos em
diferentes momentos de sua vida. Ao relembrar a mãe, a força do trauma de vê-la louca e
internada é muito forte e o toma mais do que qualquer outra lembrança, por mais trágica que
ela tenha sido, como o suicídio do irmão. E a imagem da ausência do sorriso na velha perpassa
todas essas lembranças:
Se, ato contínuo, aquela reclamante senhora lhe sorrisse, ao enfiar a linha no
fundo da agulha sem a ajuda de óculos, ele iria achar que tinha ganhado a
viagem.
Por mais que puxasse pela memória, não conseguia se lembrar de tê-la visto
sorrir, uma única vez. (TORRES, 2006, p. 202).
Por meio da leitura dos outros romances que compõem a trilogia, sabe-se que o
protagonista não constrói uma relação tão próxima com sua mãe já que ela não escondia sua
preferência pelo irmão mais velho, Nelo, tido como o salvador: “O exemplo vivo de que a
nossa terra também podia gerar grandes homens [...] (TORRES, 2013, p. 14). Por isso seu
suicídio é tão nefasto e provoca diversas reações em seus entes: seu pai isola-se em sítio e vira
alcóolatra, passando a conversar com a galinhas; suas irmãs fogem para as cidades vizinhas
com os primeiros que aparecem, muitas se submetendo a prostituição, Totonhim foge para São
Paulo, porém, é a mãe que tem o pior de todos os destinos, é nela que a tragédia se projeta com
maior intensidade. A perda do filho mais estimando a faz enlouquecer e cabe a Totonhim a
difícil missão de interna-la em um sanatório no mesmo dia do enterro do irmão.
Que outra coisa poderia ter feito, ao vê-la se bater contra uma parede, a rasgar-
se, unhar-se, por não haver suportado o trágico reencontro com o seu filho
pródigo? Não ele. O outro. O que voltara para se matar. Ela não suportou a
dor pelo final tão infeliz de um destino que lhe parecia glorioso [..]. Ainda se
lembrava da pergunta que ela fazia, enquanto a levava para o hospício:
- Vamos passear? Estamos passeando, não estamos?
Aquilo foi de doer. Fundo. (TORRES, 2006, p. 206).
Aliás, as relações familiares não são algo duradouro na vida das personagens, que
terminam se apresentando como vítimas do mundo globalizado, cujas consequências
envolvem, especialmente esse intenso individualismo. Isso passa a permear todas as relações,
que se tornaram e tornam cada vez mais efêmeras.
Assim, temos aqui uma memória que se faz, que se constrói a partir do contato com o
outro. Mesmo sem a presença física da mãe, sua imagem permite o ativamento das lembranças,
fazendo com que a narrativa se realize. Já idoso, Totonhim se vê no papel de homem de
memória, cuja função é lembrar. Claro que ele quebra o elo com os grupos aos quais pertencia
ao se mudar para São Paulo, mas as memórias de Junco ainda existem, só não contarão com a
ajuda de outros na sua reconstrução. As memórias de Totonhim vão aos poucos construindo a
figura do deslocado, que se apresenta apenas com a memória do passado longínquo do povo
de Junco e do passado dos grupos dentro de São Paulo.
Ao se voltar para o passado, a personagem o faz principalmente retomando os espaços
partilhados com a família em busca de reanimar seu presente e mesmo que se esforce em buscar
lembranças felizes, são poucas as que consegue trazer de volta. Sua memória traz para o
presente imagens dolorosas. Os destinos trágicos compõem a maior parte da memória de
Totonhim, e a da mãe louca o marca de maneira especial.
O que ele escolhe de importante e significativo para ser recontado enquanto referência
só é possível por ser ele um indivíduo socializado, condicionado (no sentido de aprendizado já
internalizado, como lavar pratos ou dirigir um veículo), e isso é delineado pelas lembranças,
pela memória que não são só dele, mas do grupo ao qual pertence, ou pertenceu. Segundo a
teoria de Halbwachs, o que a personagem lembra e o que define suas memórias são em parte
trechos e recordações da memória de seu grupo familiar. A menor alteração do ambiente atinge
a qualidade íntima da memória. Veja esta outra lembrança que Totonhim traz de sua mãe, e
que é recorrente na narrativa:
Do que não conseguia se lembrar: do seu sorriso. Será que nunca tinha visto
a sua mãe sorrir, pelo menos uma vezinha na vida? Também, com tanta
consumição... Uma gravidez atrás da outra. Filhos e mais filhos. Cueiros para
trocar. Panos para lavar. Pratos, panelas e máquinas de costura. Não teria sido
feliz com o homem com quem se casara, o senhor meu pai? Nem com a
condição de mulher parideira, a exigir-lhe duros sacrifícios? Com o que ela
sonhava, enquanto enfiava a linha pelo fundo de uma agulha? Como teria
visto o mundo, olhando-o unicamente através de um minúsculo buraco?
(TORRES, 2006, p. 16).
Ao narrar, observando que sua memória não é capaz de se recordar do sorriso da mãe,
a personagem não conta apenas que a mãe se projetava como alguém infeliz. Ela conta também
que absorveu essa percepção de não demonstração de alegria da mãe como sinal de infelicidade
e insatisfação, de não realização com a experiência que se aflorou naquele momento da
narração e que foi trazida ou por seus pares, amigos, outros entes, enfim, pessoas com as quais
conviveu. Ela evoca uma memória que não é só dela. Por meio dessa lembrança impactante:
uma mulher forte o bastante para criar muitos filhos por meio de seu trabalho como costureira,
força que é ressaltada por elementos simbólicos como agulha, linha e dedal, mas que ao longo
do tempo é anulada pelo sofrimento, primeiro com as dificuldades impostas pelo próprio sertão,
depois pela perda de sua propriedade para um banco e logo depois a decepção e o sofrimento
com o suicídio do primogênito, que faz com que ela perca o vigor, até perder a sanidade e ser
internada em um hospício, a personagem retoma um conhecimento já construído e deseja estar
junto da mãe, para saber como ela via o mundo por meio daquele ínfimo buraco. Ao retomar
as memórias de Junco, ele conversa com a mãe, então internada no sanatório, e nota que a vida
lhe passou muito ligeira.
A narrativa é o retrato da história de um homem que, como tantos outros homens e
mulheres reais, ao se aposentar, se mune de um sentimento de viver em um não-lugar, sem
saber se possui sonhos próprios ou se segue caminhos. Totonhim relembra sua vida por meio
de metáforas e memórias de uma cidade, de um tempo, de uma vida que nem existe mais.
Espaço e tempo que são representados por meio dos pensamentos desse protagonista,
permeado por suas idas e vindas, o que se torna uma forma de representação do próprio
movimento migrante que se encontra em um eterno dilema de habitar dois mundos que se
opõem.
O leitor é colocado diante de uma personagem que se entrega às suas próprias
divagações e incertezas, direcionando suas preocupações temáticas as quais deve orientar-se
para organizar toda a trama, essas preocupações giram sobre aspectos o estrangeiro e a
metrópole, mas também o homem isolado, sem relações familiares, e o sentimento de
estranhamento resultante dessa relação.
Totonhim, de alguma forma, narra com desencanto ao ver a sociedade brasileira dos
últimos anos. A representação dessa memória coletiva ocorre por meio do cidadão cujas
raízes foram fragmentadas, até se perderem totalmente, destituídas cada vez mais de vínculos,
esperanças, alegrias, etc. Todas as personagens se envolvem em situações que não são
capazes de criar vínculos entre pessoas. Por isso o narrador relembra toda a sua vida mas não
consegue chegar efetivamente até os seus, não é capaz de romper com esse abandono e
descaso. Torres cria um querer sem querer, ou ausente de coragem para o enfrentamento de
medos, nesse espaço a angústia se torna lugar comum, implacável e residente em toda a
trajetória humana.
Bibliografia
BENJAMIN, Walter. O narrador. In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. 2. ed., Brasiliense, 1986. [Obras Escolhidas. v. 1]
BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo, T.A. Queiroz, 1979.
HALBWACHS, M. A Memória coletiva. São Paulo, Vértice/Revista dos Tribunais, 1990.
POLLAK, Michel. Memória e Identidade Social. Disponível em
http://reviravoltadesign.com/080929_raiaviva/info/wp-gz/wp
content/uploads/2006/12/memoria_e_identidade_social.pdf. Acesso em 20/08/2017.
ROSSI, Paolo. O passado, a memória, o esquecimento: seis ensaios da história das ideias.
São Paulo: Unesp, 2010.
TORRES, Antonio. Essa terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.