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A metaficção e a carnavalização presentes na obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo,
de José Saramago
Bruna Padilha (UNIOESTE) 1
Tonie Maria Gregory dos Santos (UNIOESTE)2
Resumo: Neste artigo buscar-se-á, à priori, comentar sobre O Evangelho Segundo Jesus
Cristo, de José Saramago, analisando aspectos da metaficção historiográfica e da
carnavalização. Será destacada, além das características da obra, a repercussão perante a
sociedade Portuguesa, sendo sua maioria de cunho Católica, no período em que o texto foi
publicado (1991). Pretende-se durante a análise estabelecer relações da obra de Saramago em
conjunto à obra primária da história contada, a Bíblia levando-se em conta as características
das obras de Saramago a respeito da desmitificação de histórias e personagens. A análise partirá
do pressuposto de detectar trechos dos quais as figuras religiosas da história bíblica sejam
conduzidas por um viés humanizado. Utilizando de teóricos será explicado brevemente no que
consiste a metaficção historiográfica e a carnavalização, para que assim se compreenda de
forma mais explanada os pretextos de determinadas colocações e comparações com
personagens reais e humanos na obra de Saramago, que busca descontruir com dogmas
religiosos relacionados a textos bíblicos.
Palavras-chave: Metaficção historiográfica; Carnavalização; O Evangelho Segundo Jesus
Cristo.
Resumen: En este artículo se buscará, a priori, comentar sobre El Evangelio según Jesucristo,
de José Saramago, analizando aspectos de la metaficción historiográfica y de la
carnavalización. Se destacará, además de las características de la obra, la repercusión ante la
sociedad portuguesa, siendo su mayoría de cuño católico, en el período en que el texto fue
publicado (1991). Se pretende durante el análisis establecer relaciones de la obra de Saramago
en conjunto a la obra primaria de la historia contada, la Biblia tomando en cuenta las
características de las obras de Saramago acerca de la desmitificación de historias y personajes.
El análisis partirá del supuesto de detectar fragmentos de los cuales las figuras religiosas de la
historia bíblica sean conducidas por un sesgo humanizado. Utilizando de teóricos será
explicado brevemente en lo que consiste la metaficción historiográfica y la carnavalización,
para que así se comprenda de forma más explicada los pretextos de determinadas colocaciones
y comparaciones con personajes reales y humanos en la obra de Saramago, que busca
descontruir con dogmas religiosos relacionados los textos bíblicos.
Palabras-clave: Metaficción historiográfica; Carnavalización; El Evangelio Según Jesucristo.
Considerações iniciais
O Evangelho segundo Jesus Cristo é um romance do escritor português José Saramago
reconhecido por valer-se de um viés humanizado ao recontar a história da vida e da passagem
1 Graduada em Letras, com habilitação em língua Espanhola pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
de Jesus na terra. Exemplo disso é que, durante o enredo, se reconhece uma possível relação
carnal da personagem principal com Maria Madalena, uma vez que, conforme disposto no
livro, foi com esta mulher que Jesus "conheceu o amor da carne e nele se reconheceu homem"
(SARAMAGO, 2005, p. 242).
Publicado pela primeira vez no ano de 1991, O Evangelho segundo Jesus Cristo exigiu,
de certa forma, que se repensasse – ou, pelo menos, que se analisasse novamente – os
comportamentos de alguns conhecidos personagens dos dogmas do Cristianismo, como é o
caso de Maria, que, ao ser re-conhecida através dos postulados de Saramago, enseja uma
intertextualidade com a história bíblica.
Atualmente, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a professora Salma
Ferraz, uma estudiosa do escritor português, se baseia no fato de o autor (ainda que ateu
convicto) ter nascido no ocidente cristão explica a utilização frequente de temas religiosos e
sobre a divindade em suas obras, e destes ocuparem um lugar privilegiado nos textos do autor.
Ferraz afirma que “se Deus não existe na vida do Saramago homem, pelo menos está bem
presente na obra do escritor José Saramago” (FERRAZ, 2003, p. 16).
Conhecendo as crenças do autor, ou paradoxalmente a falta delas, há que se abandonar
posicionamentos tradicionais e compreender que, de fato, independentemente dos argumentos
católicos, a obra O Evangelho segundo Jesus Cristo é uma obra crítica, e que os apontamentos
pejorativos direcionados a Saramago não se pautavam em resquícios além do senso comum.
Ao contar os fatos ocorridos na vida de Jesus Cristo, Saramago faz uma reinterpretação
de uma história que é conhecida pela maioria das pessoas, principalmente, no catolicismo. O
autor apresenta personagens, fazendo uma constante desmistificação dos mesmos, mostrando
que eles também possuem falhas e medos, ou seja, deixa transparecer um lado mais humano,
em que os sentimentos estão latentes. Saramago também faz críticas em forma de ironia,
proporcionando ao leitor uma reflexão.
As peculiaridades do autor se fazem presentes no texto. Aquele que conta está ligado
diretamente com a história, não há distanciamento. Isto pode ser percebido pela posição que
assume como ateu. Assim sendo, nota-se que a subjetividade está introduzida em todo
transcorrer da obra.
Quem foi José Saramago?
Na ilha por vezes habitada
Na ilha por vezes habitada do que somos, há
noites,
manhãs e madrugadas em que não
precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e
entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e
apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o
contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a
paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda
do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até
aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem
milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.
- José Saramago -
Antes de adentrar na obra, torna-se relevante apresentar um pouco da biografia do
escritor literário, haja vista que, ela explicará e mostrará a relação da vida pessoal do autor com
o livro publicado. José Saramago nasceu no dia 16 de novembro de 1922, na aldeia de
Azinhaga, província do Ribatejo. No entanto, a família emigrou para Lisboa antes mesmo de
Saramago completar dois anos.
Fonte: Fundação José Saramago
Fonte: Fundação
José Saramago1
Outrora, José Saramago teve seu primeiro emprego como serralheiro mecânico. Depois,
exerceu atividades de funcionário da saúde, tradutor, desenhador, editor e jornalista. Já como
escritor, publicou o seu primeiro livro em 1947, que se caracterizou como um romance,
intitulado Terra do Pecado. Posteriormente, o autor ficou um vasto tempo sem publicar.
Realizou atividades de direção literária e produção em uma editora durante 12 anos.
Além disso, foi crítico literário na revista Seara Nova. Fez parte, ainda, da redação do Jornal
Diário de Lisboa, exercendo a função de comentador político, bem como, coordenador do
suplemento cultural do mesmo jornal.
José Saramago esteve na primeira direção da Associação Portuguesa de Escritores e foi
também presidente da Assembleia Geral da Sociedade Portuguesa de Autores. Em 1975,
assumiu o cargo de diretor-adjunto do jornal Diário de Notícias. No ano seguinte, as suas
atividades foram voltadas exclusivamente ao seu trabalho literário, como tradutor,
primeiramente e, após, como autor.
Em 1988, o escritor casou-se com Pilar del Río. Uma década depois, foi-lhe conferido
o Prêmio Nobel de Literatura. José Saramago faleceu no dia 18 de junho de 2010, deixando ao
público 17 romances, cinco peças teatrais, três contos, três poemas e quatro crônicas. Dentre
estes, os considerados mais relevantes são “O Evangelho segundo Jesus Cristo” (1991), o qual
será trabalhado neste artigo, “Ensaio sobre a cegueira” (1995), “A jangada de pedra” (1986)
e “A viagem do elefante” (2008).
A obra e sua repercussão
A obra é minunciosamente carregada de descrições de lugares, situações, personagens,
enfim, em todo desenrolar da história há marcas dos detalhes que o autor traz. Isto pode ser
observado na passagem:
Por baixo do sol vemos um homem nu atado a um tronco de árvore, cingidos
os rins por um pano que lhe cobre as partes a que chamamos pudendas ou
vergonhosas, e os pés tem-nos assentes no que resta de um ramo lateral
cortado, porém, por maior firmeza, para que não resvalem desse suporte
natural, dois pregos os mantêm, cravados fundo (SARAMAGO, 1991, p. 13).
Pode-se, verificar ainda, que a trajetória de que se fundamenta Cristo, na obra, o torna
um paradoxo aos olhos dos leitores. Isto é, ao mesmo tempo que aparenta ser simples,
demonstra uma maior complexidade e visa esclarecer eventuais dramas do cotidiano da
existência humana. Nesse contexto, o próprio Saramago entende que “as circunstâncias, as
situações concretas em que nos encontramos num determinado momento são as que,
muitíssimas vezes, decidem que se abram uma porta que até então estava fechada”
(SARAMAGO, 1998, p. 41). Há que se reconhecer, portanto, que
Algumas teorias da crítica contemporânea afirmam que uma única leitura
confiável de um livro é uma leitura equivocada, que a existência de um texto
é dada pela cadeia de respostas que evoca e que [...] um texto é apenas um
piquenique onde o autor entra em contato com as palavras e os leitores com
sentido (ECO, 2005, p. 28).
Considera-se, nesse viés, a perspectiva da leitura da Bíblia com vistas à formulação do
entendimento, por parte do autor, o que faz com que texto bíblico e literário sejam aproximados.
Frye (2006), nessa perspectiva, compreende que
Isto levaria a um estudo integrado deste Livro da Bíblia, talvez de toda a
Bíblia, como a que se conhece hoje, tendo como êmulo a pergunta sobre por
que essa Bíblia emergiu com essa forma particular e não outra. Com toda a
miscelânea de seu conteúdo, a Bíblia não parece ter ganho existência através
de uma serie improvável de acasos; conquanto seja o produto final de um
processo editorial muito longo e complexo, esse produto deve ser examinado
à luz de sua própria existência (FRYE, 2006, p. 16).
Insta-nos a compreender que, em consequência deste e de outros motivos apresentados
pelo autor durante a obra, o contexto em que O Evangelho segundo Jesus Cristo foi lançado
careceu de compreensões mais humanizadas, partindo da comparação com o viés da própria
humanização proposta pelo livro. Nesse sentido, O Globo publicou, em 17 de Outubro de 2009,
uma entrevista feita com o romancista, na qual esse afirma que, "no fundo, o problema não é
um Deus que não existe, mas a religião que o proclama. Denuncio as religiões, todas as
religiões, por nocivas à Humanidade. São palavras duras, mas há que dizê-las".
Esse posicionamento do autor, que se reflete integralmente no livro, fez com que a obra
fosse considerada de cunho ofensiva, principalmente pela elite do comando da Igreja Católica
e, por isso, o contexto de publicação é marcado pela perseguição religiosa a que foi submetido
Saramago, em Portugal. Foi a partir das pressões ministradas por parte da Igreja frente ao
governo do Estado que Sousa Lara, o Subsecretário de Estado da Cultura de Portugal, à época,
que o livro foi vetado da lista dos indicados, pela categoria de romances portugueses, ao Prémio
Aristeion3, sob o argumento de que a obra atentava contra a moral cristã.
3 Prémio Europeu de Literatura Aristeion foi criado pela Comissão Europeia em 1990 e atribuído no período de
1990-1999.
Há ainda que se considerar que, devido ao seu processo de formação, Portugal
configura-se como um país predominantemente, e quase que totalmente, católico. Sendo esta
religião seguidora fiel dos “ensinamentos” bíblicos; houve também por parte da população e
de toda a igreja uma conturbação quanto ao viés que Saramago expusera as figuras religiosas
em sua obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo.
Segundo a Fundação José Saramago, a reação do consagrado autor frente à
arbitrariedade do governo português, calcada em pressões do comando religioso, ao ter
considerado que o livro era atentatório, foi a de abandonar Portugal. Ao fazê-lo, Saramago se
mudou para Lanzarote, nas Ilhas Canárias, e este foi o local em que se manteve até a sua morte.
O autor morreu de leucemia crônica em 18 de junho de 2010, aos 87 anos de idade.
Devido ao próprio caráter polêmico que a obra assumiu após o pronunciamento do
Subsecretário de Estado da Cultura de Portugal e da consequente mudança de Saramago de
Portugal, é imaginável a soma de críticas feitas a respeito do livro.
Ainda no âmbito da repercussão que a obra teve, nota-se o posicionamento de Santos e
Salles (2009) a respeito da temática:
Numa primeira leitura, a obra ficcional de Saramago nos causa certo repúdio
ao indagar as verdades fundamentais da fé cristã. Todavia, ao ler seu texto
somos necessariamente levados a acreditar num Deus sádico, tirano, juiz [...];
Acreditamos que ele quer atingir não a religião, por si só, mas as imagens que
a Tradição cristã formou de Deus ao longo dos séculos. Um Deus sacrificial,
dominador que castiga e sente prazer em condenar os homens ao inferno
(SANTOS; SALLES, 2009, p. 4).
Em contra partida, verifica-se que, entre as reações mais expansivas dos católicos,
encontra-se a do arcebispo da cidade de Braga, Dom Eurico Dias de Nogueira, que segundo a
revista Veja de 1992, alguns meses após a publicação, passou a afirmar publicamente que o
escritor, ateu confesso, elaborou uma “delirante vida de Cristo”, com vistas ao prestígio de sua
ideologia e em detrimento dos parâmetros religiosos. Ainda, para o religioso, “a apregoada
beleza literária, a existir nesta obra, longe de atenuante e muito menos dirimente, constitui
circunstância agravante da culpabilidade do réu, seu autor”.
Vale ressaltar que inúmeros críticos ressaltavam o fato de José Saramago ser ateu e que,
segundo eles, por esta causa o autor não deveria ter a ousadia de discutir assuntos da seara
religiosa.
[...] O Evangelho segundo Jesus Cristo teve grande repercussão no mundo da
literatura, da crítica e da religião. Ao assumir a tarefa de escrever sobre uma
história contada há dois mil anos, Saramago conseguiu não ser óbvio e
repetitivo sobre as narrativas religiosas fundantes, apontando para dimensões
profundas da própria religião. Ele pretende questionar o dogma e a tradição
dogmática ao transformar personagens centrais dos textos fundantes em
periféricos e marginais em centrais (SANTOS; SALLES, 2009, p.4 – grifos
dos autores).
Nesse ínterim, vale dar atenção à prerrogativa de que, já que Jesus Cristo é, dentre
inúmeras outras especulações, um personagem de cunho histórico e, historicamente falando,
portanto, não há fontes autorizadas que comprovem as efetivas circunstancias de milagres e
ressureição, exceto pelo relato bíblico, que descreve alguns fatos de sua vida na infância e na
juventude e, em seguida, apresenta-o na fase adulta. Dessa maneira, ainda que haja a fragilidade
com relação às considerações lógicas sobre seus feitos, é inegável que sua “participação
mundana” foi marcante. Ao mesmo tempo, essa participação é marcada de tantas dúvidas que
há a abertura a vários questionamentos.
Metaficção e carnavalização na obra
A metaficção historiográfica, segundo Azevedo (2010) consiste em um método de
elaboração artística, do qual se reconstrói ou se reescreve por meio à outra configuração e
arranjo. Designa-se a um processo de recontagem de um texto, já conhecido historicamente,
por um viés distinto. A autora relata que a metaficção é habitualmente realizada quando há, de
certo modo, a presença da desconfiança em relação à verdade histórica presente na obra
antecedente.
A metaficção patente em O Evangelho Segundo Jesus Cristo está estritamente atrelada
à humanização realizada pelo autor no que concerne a obra originária da história contada, neste
caso a Bíblia Sagrada, a qual é tida como efetiva e autêntica para o consciente coletivo mundial,
sendo o estudo que predomina nas religiões quanto a explicações da eflorescência do mundo e
o funcionamento do mesmo, assim é almejado como texto “sagrado”.
O texto bíblico é o texto norteador de inúmeras religiões, pois, algumas delas, como o
Catolicismo, por exemplo, surge com o intuito de seguir a história (real para os praticantes)
contada na Bíblia. Neste texto, além do “aclarar” a respeito da eclosão do mundo e da
humanidade, se fazem presentes leis as quais devem ser aderidas e praticadas pelos crentes na
história relatada. Dentre essas características da história bíblica, há a presença de personagens
glorificados, como Deus, Jesus Cristo e o Diabo, buscando impor aos leitores posturas do bom
e do mau.
Nesse contexto encontra-se que a principal das críticas realizadas à obra de Saramago,
que interpretou livremente textos sagrados e, ao fazê-lo, assumiu uma linha muito diversa da
esperada pelos dogmas religiosos, desvirtuando os Evangelhos. Esse argumento, todavia, só
encontra fundamento no ponto de vista do Catolicismo, e não no Cristianismo em geral, haja
vista que inclusive os protestantes defendem a interpretação privada dos textos bíblicos e, por
isso, não condenam a obra com base no mesmo ordenamento que dispõem os católicos.
Saramago em sua produção artística buscará aludir na metaficção fatores
desconstrutivos a respeito da religião, humanizando a história propagada, apresentando os
personagens não como seres santificados e inalcançáveis, mas como pessoas comuns, as quais
cometem atos comuns, fálicos. Destaca-se esta ânsia de Saramago em dissertar sobre este tema
por sua desvinculação com qualquer crença religiosa. No trecho a seguir, retirado da obra, é
possível a percepção do modo que Saramago descreve o ato após a crucificação de Jesus,
comparando-o com um fantoche
Maria tentou reduzir os lastimáveis ângulos das pernas de José, que, tendo-
lhe ficado a túnica, ao descerem-no da cruz, um pouco arregaçada, lhe davam
o aspecto grotesco de um fantoche partido nos engonços (SARAMAGO,
1991, p. 98).
Este trecho nos revela a metaficção efetuada na cena, a recontagem da história, não só
nesse trecho, mas ao longo de toda obra, apresentando aspectos contemporâneos, utilizando
comparações e, situando meados as cenas, comentários que empregam palavras e objetos
cotidianos e inexistentes no texto bíblico.
Destaca-se que, do mesmo modo que os textos apresentam (aparentemente) a mesma
história, cada um tem seu objetivo perante os relatos, cada qual possui a sua significação.
Almeida (2005) explana ideias sobre a obra de Saramago surgir como uma
desconstrução em relação ao existencialismo de divindades. O autor coloca ainda que, segundo
o próprio Saramago, a existência do humano já nega a existência de um Deus. Tendo
conhecimento disso, a metaficção presente em toda obra consistem em desmascarar e
desvalorizar os personagens religiosos. Esses preceitos vão se dando ao decorrer da obra, desde
ao relatar a relação afetiva e carnal de Jesus com Maria Madalena ao da presença do Diabo
como personagem humanizado. Maria Madalena é ainda comparada a uma figura feminina
“contemporânea” tendo inclusive os cabelos “louros”, como percebemos no trecho
Mostra os longos cabelos soltos, caídos pelas costas, mas estes têm todo o ar
de serem louros [...]. Com tais razões não pretendemos afirmar que Maria
Madalena tivesse sido, de facto, loura, apenas nos estamos conformando com
a corrente de opinião maioritária que insiste em ver nas louras, tanto as de
natureza como as de tinta, os mais eficazes instrumentos de pecado e perdição
(SARAMAGO, 1991, p. 4-5).
Conforme os exemplos citados anteriormente, destaca-se obviamente, a figura de Jesus
na obra. Este ser que por Saramago é descrito como um humano, contido de problemáticas,
estas que surgem primeiramente ao fato de lhe fazer filho de Deus e por esse Deus, posto como
um imperador perante sociedade judaica, pois as suas vontades eram as que deveriam ser
seguidas e seus feitos eram punitivos.
O retrato de Deus para Saramago é, deste modo, descrito, pois, como um Deus tão
bondoso e misericordioso poderia matar seu próprio filho? Não há como desatrelar as
ressignificações de Saramago quanto aos personagens.
Para desenvolver mais a respeito sobre a figura de Jesus na obra, passemos da
metaficção para a carnavalização, ambas vão de encontro a uma ressignificação da obra, a
metaficção como já vimos de modo mais geral e a carnavalização veremos em relação à figura
de Jesus Cristo.
A carnavalização consiste em uma inversão de valores e poderes provocados pelo
inusitado, pelo ridículo, pelo excepcional, ou mesmo pelo grotesco e cômico, se baseia em
cessar com os princípios ideológicos já postos em algum texto.
Desta forma, apresentamos a figura de Jesus pelo Evangelho como
Jesus, mas ele ainda não pode saber que é este o seu nome, por enquanto não
passa de um pequeno ser natural, como o pinto duma galinha, o cachorro
duma cadela, o cordeiro duma ovelha (SARAMAGO, 1991, p. 49).
Nesta passagem, pode-se notar como Saramago retrata a figura de Jesus agregando-o a
qualquer figura mundana, como um ser qualquer, desprovido das diversas atribuições
santificadas contidas no personagem bíblico. Desta forma, capta-se também algumas das
intenções de Saramago, ao redigir estes termos, como lança dúvidas e questionamentos ao
leitor, transparecendo a sua obra de forma mais real do que a já contada.
Esta desmistificação de Jesus é realizada não somente em relação a sua figura que deixa
de ser santificada, mas também ao seu psíquico, aos pensamentos e ações cometidas pelo
personagem, fatores os quais contribuíram para a humanização deste personagem. A sua
relação com Maria Madalena, por exemplo, é retratada de forma estritamente carnal na obra de
Saramago, forma a qual o “Jesus” da Bíblia não reagiria. Essa relação de Jesus com Maria
Madalena é descrita por Saramago, apresentando Jesus como envolvido e satisfeito com a
situação carnal e afetiva entre os personagens, como no trecho
[...] então sentiu que uma parte do seu corpo, essa, se sumira no corpo dela,
que um anel de fogo o rodeava, indo e vindo, que um estremecimento o
sacudia por dentro, como um peixe agitando-se, e que de súbito se escapava
gritando, impossível, não pode ser, os peixes não gritam, ele, sim, era ele
quem gritava, ao mesmo tempo que Maria, gemendo, deixava descair o seu
corpo sobre o dele, indo beber-lhe da boca o grito, num sôfrego e ansioso
beijo que desencadeou no corpo de Jesus um segundo e interminável frémito
(SARAMAGO, 1991, p. 166-167).
Esta carnavalização do personagem épico de Jesus Cristo é feita por Saramago, sem
censura e pudor, o homem é de fato retratado da forma mais humana possível, mostrando seus
receios, pecados e defeitos. Do mesmo modo em que a figura de Deus aparece como um ser
não tão bondoso como aparentava ser na bíblia e o diabo como não tão fora do comum,
humanizado e real.
Considerações finais
A obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo surge como um pretexto a Saramago para
desconstruir os dogmas religiosos impostos à sociedade durante séculos. Além do Evangelho,
Saramago também apresenta em outras obras como O Ensaio sobre a Cegueira e as
Intermitências da Morte, por exemplo, histórias que serão recontadas pelo seu viés humanitário
e desmistificado.
A metaficção historiográfica e a carnavalização não estão presentes apenas no
Evangelho, porém se dão fortemente e repercutem de tal forma pelo fato da história a ser
desmoralizada há milênios é herdada como real, autêntica e com base neste texto bíblico que
houve o surgimento de inúmeras religiões e segmentos. Desta forma Saramago procura mostrar
que há tempos, o que milhões de pessoas seguem e acreditam, não passa de mais um texto
literário, que pode sim estar agregado a fatos reais, porém que é contado na Bíblia de uma
forma mistificada.
Deve ser levado em consideração, que Saramago teve cuidado com a crença religiosa,
não ofendendo quaisquer crenças. O autor teve sensibilidade uma inteligência absurda, afinal,
reescrever uma das histórias mais bonitas e conhecidas do mundo, não é tarefa simples.
Conclui-se que, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, acima de quaisquer análises e
comparações é uma das obras mais genuinamente “Saramagas”, da qual retrata os pensamentos
do autor de que dizia que nas obras dele, o eu lírico e o narrador era ele mesmo.
Referências
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