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Revista de Filología Roniónica. Anejos ISSN: 0212-999X 2001, ¡[:85-114 ISBN: 84-95215-18-7 A narrativa cabo-verdiana, nacionalidade e nacionalismo ALBERTO CARVALBO Universidade Clássica de Lisboa 1. APRESENTACAO DE CABO VERDE, ILHAS CRIQULAS Um aspecto de muito evidente relevo na literatura cabo-verdiana, e de importante significa~áo cultural, consiste no emprego do portugués como linguagem mediadora na sua escrita de expressáo criativa. E, no entanto, a questáo tende para as práticas comuns, por ser extensível á grande majoria dos países de independéncia recente, nomeadamente africanos, onde o re- curso ás línguas de origem europeia (portugués, francés, inglés) tem por fundamento as vivéncias históricas partilhadas entre colonizados e coloni- zadores. O argumento de justiflca9áo mais aparente assenta no principio da comunicayáo englobante na ordem do na~áo-Estado, por necessídade de instituir um curto-circuito comunicativo sobre as línguas vernáculas, con- tadas por várias dezenas cm muitos deles. Sendo Cabo Verde um país monolingue, com urna lingua-máe crioula, a fun~áo que al incumbe ao portugués desempenhar tem entáo alguma coi- sa de ambiguo, além do mais num ambiente sócio-cultural com caracte- rísticas históricas que reproduzem multo de perto uma parte significativa dos processos que se registam na organiza9áo das sociedades europeias. Por serem ilbas desertas ao tempo do seu descobrimento (cerca de 1460), a formagáo dos agregados sociais encontrava-se por isso livre de quaisquer pressóes de matrizes étnicas autóctones. As formas culturais típicas que nelas se desenvolveram puderam seguir caminhos paralelos, como na Eu- ropa, cm planos de nivel sobrepostos, a de expressáo oral, com urna funyáo envolvente, e a de registo escrito, nomeadamente ao serviyo dos poderes na Administragáo, nas actividades comerciais e na difusáo mis- sionária. 85

A narrativa cabo-verdiana,nacionalidade e nacionalismo · ticas e narrativas e os espayos, tomando-acomo efeito figurativo sobre os trésníveis mais cemuns da representa~áo literária,

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Page 1: A narrativa cabo-verdiana,nacionalidade e nacionalismo · ticas e narrativas e os espayos, tomando-acomo efeito figurativo sobre os trésníveis mais cemuns da representa~áo literária,

Revista de Filología Roniónica. Anejos ISSN:0212-999X2001, ¡[:85-114 ISBN: 84-95215-18-7

A narrativa cabo-verdiana,nacionalidadee nacionalismo

ALBERTO CARVALBOUniversidadeClássicadeLisboa

1. APRESENTACAODE CABO VERDE,ILHAS CRIQULAS

Um aspectodemuito evidenterelevona literaturacabo-verdiana,e deimportantesignifica~áocultural, consisteno empregodo portuguéscomolinguagemmediadorana suaescritade expressáocriativa. E, no entanto,aquestáotendeparaas práticascomuns,por serextensívelágrandemajoriadospaísesde independénciarecente,nomeadamenteafricanos,ondeo re-cursoás línguasde origem europeia(portugués,francés,inglés) tem porfundamentoasvivénciashistóricaspartilhadasentrecolonizadose coloni-zadores.O argumentodejustiflca9áomaisaparenteassentano principio dacomunicayáoenglobantena ordem do na~áo-Estado,por necessídadedeinstituir um curto-circuitocomunicativosobreas línguasvernáculas,con-tadaspor váriasdezenascm muitosdeles.

SendoCaboVerdeum paísmonolingue,comurnalingua-máecrioula,afun~áoqueal incumbeao portuguésdesempenhartem entáoalgumacoi-sade ambiguo,além do mais num ambientesócio-culturalcom caracte-rísticashistóricasquereproduzemmulto de pertoumapartesignificativados processosquese registamna organiza9áodassociedadeseuropeias.Porseremilbasdesertasao tempodo seudescobrimento(cercade 1460),aformagáodosagregadossociaisencontrava-sepor isso livre de quaisquerpressóesde matrizesétnicasautóctones.As formasculturaistípicasquenelasse desenvolverampuderamseguircaminhosparalelos,comona Eu-ropa, cm planosde nivel sobrepostos,a de expressáooral, com urnafunyáo envolvente,e a de registo escrito,nomeadamenteao serviyo dospoderesna Administragáo,nasactividadescomerciaise na difusáo mis-sionária.

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Alberto Caría/ho A narrativo cabo- íerdu¡na. n<hiona/idat/e e nacionalismo

Enquantoa linguagemcrioula se formava,dandovoz ás formasor¡gi-nais de cultura populardc expressáooral e Li personalidadedo homemcabo-verdiano,ficava reservadoá escritacm portuguésa produ~áointelec-tual de cunhoerudito atraídapeloprestigioda esferado poder.Mas,ao con-trário da trajectóriahistórico-culturaleuropeiaquesc encarregoude ¡solare tomarpor completoincomunicáveisestasduasséries,no cenáriocrinuloos espagosda oralidadee da escritapuderammanteasecm posiyáo demutuamentese (ad)miraremnos seusquesitosdcvalor intrínseco.Dalsernormalqueentrecies se verifiquem impulsosinjuntivos,de Hin lado,corn oregistede casoscm queaspopula9óesmanifestamentefestejavamosseusescritorese, do outro, cernosautoresda escritaeruditaa sererncom fre-quéncialevados,por desejode visita Lis fontesmatric¡ais,a cscrcveremcmcriouio e emprcgaremformas literárias, estilos e temáticaspropriasdosmelospopularesde expressáooral.

Encaradaa questñopeloánguloda linguagemmetafórica,pode-sedizerqueeste povo-na~áose aheergasobreurnanarrativacm circuito fechado,compreendendoum muite nítido «incipit» inauguralétnico (a partir deumespaqoanteriorpor completovaziode gentes),unu histáriapreenchidapormedia@ode protagonismoshumanosvarios, e um «excipit»completivoque¡cm asuaexpressáomaisacabadana forma de serdo homenicrioulo ena visño queo faz estarno mundo, O scu protagonismosocial tendeaobedecerassima urnadiegesequeassentana lógicaespecularda recipro-cidade,cabendoávidadas ilhasengendrare condicionarcm profundidadeos motivosdaac9áodasgentese, inversamente,seremtambémcíaspor ¡u-teiro modeladaspeíamemóriaculturaldos homeus.

2. ISOTOPIAS SÓCIO-CULTURAISDOMINANTES

A primeiraconsequénciadestasdeterminantesformativas,de recíprocaprojecyáo,consistena miiito directaidentificagánentreas expresséespoé-ticase narrativaseos espayos,tomando-acomoefeito figurativo sobreostrésníveis maiscemunsda representa~áoliterária,comoreferenteda rea-lidade,comoreferénciatextuale comoumametáforade valoresculturais.Na basede todasestasrepresentayñcs,mesmodasmais abstractase sub-jectivas,encontra-sesemprea dimensáosensorialdasrealidadesfísicas,de-vido á modelayáodo imagináriohumanopeía imponénciado espagogeo-gratico, peíadescontinuidadedo território (um arquipélagode dez ilbasmacaronésias,fazendoconjuntecorn as Canárias.a Madeirae es A~ores)e

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peíaclimatelogiaintertropicalda zonasaariana.Ao défice radical de re-cursosnaturaissoma-seo de bensagrícolasporsecasprolongadas,causadi-rectade um processohistórico de fluxos migratóriosque tornam muitocomum o protagonismoda viagem, significando,ao mesmotempo,aex-perienciahistóricada diáspora,de outrospaíses,de «outrem»,e a despos-sessáode «si-mesmo»,tudoaverbadonumcurrículofeito de necessidades,de contrariedadese decontradi~óesvanas.

Um quadro sumáriode perfil psicológicodo crioulo cabo-verdianodirá que, nele, se contrapñemedesenraizamentodo homememigranteporneeessidadeeconómicae o desejoreactivode se manterfixado no lugarmaternoprotector(ilha tomadaporsímbolomítico de acolhimento).E istode maneiracontraditóriatodavia,porqueá illia (ás ilbasde Cabo Verde)cabetambémserum factorde insulariza9áo,de isolamentee obstáculoá re-layaodefraternatrocaintelectuale de convivénciacomesse«outrem».En-treestesdois mundosergue-sea magestadeabsolutado grandemarque,en-tretanto,a práticada vida transformacm elementode rela9áosobdistintasconfiguragóes.Na suaforma mais comum,emar intervém comoespa~odomésticoóbvio de vivénciae de fragmenta~áoda sociedadena rededecontactosinter-ilbas.No lugar oposto,a suamagnifica9áocompóeo espa~omítico da odisseiatradicional,dos emigranteshaleeirosenvolvidos emfa9anhasheráicas.Entre um e outrodestesextremosemergeo mar-oceanocomo seuvastohorizontedepartidase de chegadas,obstáculoe estradanoestabelecimentodo contactoe relayáocomo grandemundo.

3. PANORÁMICA LITERÁRJA

Em sociedadesde historicidaderecentetoma-sepatenteo papeldeci-sivo da imprensae da escolariza9áena formayáedasliteraturas,represen-tadascm CaboVerdepeíafunda9áodo PreloOficial (em 24/8/1842) e dealgumasEscolasde EnsinoSecundário(entre 1848 e 1866). Acompan-bandoo desenvolvimentoda redeescolar,surgemasinstitui9óesde cultu-ra populare as bibliotecasde vocayáopública,num todoquecontextualizatanto o sistemacomunicativode registeescritocomeapedagogiado gestopeía escritae peía leitura.E sáoos«filhos da terra»,queprotagonizames-tes processos.quemvai dar forma a urna burguesiaque se ilustra comeconscienciaactivade nayáoemergente,sineretizando.cm salutaranacroniade valores.ao mesmotempo urna atitudeestéticade tendénciaelássica(disseminadanos programasdo Semmário-Lyeeu,1866) e urnadinámica

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Alberto Carva/ho A narrativa cabo—verdiana. nacionalidade e nacionalívnto

social de crenyano progresse,sábo impulseoptimistadasideologiaslibe-raisda segundametadedo Séc.xix.

Sáopor issoevidentesas práticasda escritade sentidoestéticodiver-genteentreas últimasdécadasdo Séc.xix e esurgimentoda Modemidadeem meadosda décadade 1930.A peesiaorienta-scparaformase temasque,no essencial,respondempeleideáriofundadordaarteda escritacomoexpressáoconvencional,embelezada,da realidadee, também,como ex-pressáorománticada subjectividadeindividual, por modelagemdo muitodifícil quetidianoda vida. Praticamenteconfinadaao jernalismoqueen-tretantose vai impendo,a prosaincumbe-sede exereiciodas ideiasmo-dernasqueafinama censciénciadoshomensacercadosseusproblemasso-ciais,sob um regimecolonial quenño favorecetanto quantedeviaa débilsituayáoeconómicadas ilhas.

Do ponto de vistahisteriográfico,estascquénciade oito décadas(cer-cade 1850-1930)constitui,comose sugeriu,o tempode institui9áodaes-crita comosistemaestável.basee cendiyáoparao langamentodeumape-dagogiaautóctene,eessencialLi fonnayáodaselitesqueváorepresentar,noplaneintelectualecultural, os valorese ideaisda nayáoemergente.Habi-tualmenteidentificadapeía revista Ciar/dude (n. 1, Maryo de 1936), amodernidadecabo-verdianavai traduzir visivelmenteo amadurecimentocultural e políticodaqueleperíodoanterior,assumido-secomo competénciacultural reerientadaagorade acordocom as dominantesactuaisdo realis-mo. Os testemunhoscerrentesanotam,aesterespeito,o precedenteinspi-radordo modernismobrasileirenordestine.cujastcmáticase motivos re-velavamnítidas afinidadesde ambiénciahistóricacolonial e de geegrafiatropicalde áreasde seca.

Na circunstanciareal de falta de recursostécnicose de meiospráticos,o processoque se tornou regranestaecenomiacultural censistiu,por ornlado, na dinámicades agrupamentosgeracionaise, por cutre,na agre-gayáodesautorescm tomo de órgáoscolectivos,de tipo Revistaou Su-plementode publica~áoperiódica.Umavez fixada a balizainicial deCIa-ridade, podem-serastrear,em cadénciaepocal.es títulos, Certeza (revista,1944),«SuplementeCultural» (da revistaCaboVerde, 1958),Boletim dos

Alunas do Lieeu Gil Eones (1959), «Seló»(suplementodo jornal Noticiasde Cabo Verde, 1962). Depoisde intervaloabrangidopelotempede lutasde «libertayáenacional»,deactividadeliterária dispersa,empenhadacm te-máticasnacionalistas,ressurgea lógicada publicayáoperiódicacernos ti-tulesRaizes(revista, 1977).ponto & virgula (revista, 1986),Fragmentos(revista.1987), Pré-7e.vtos(revista, 1992) alémde váriescutrestítulosde

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Alberto Carvaiho A narrativa cabo-vertí/ana, nacional/Jade e nacionalismo

menorexpressáocultural,em váriasilhas,algunsligadosaorganismosdaAdministra~AoPública.

Uma dasli~óesa extrairdestasucessáogeracionalconsistenaevolu9áodassuasorientaqóesestéticase, assim,iw infonnaqáoquantoá ideologiadesrespectivosautorese aoscaminhosdassuaspoéticaeconteúdos.Con-forme as transformayóesocorridasnostempospolíticos,o aprofundamen-te da consciéncianacionalistae adetermina9áode independéncianacional,as linguagenstendemparaa lógicado compremisse,da afirmayáoautenti-caderae da recusada situa~áocolonial.Nunsautoresde maneiramaisve-ladapelos implícitos deconeta~áo,em outrospetareferénciadirectade de-núncia e de acusaQáo,este processode crescenteagressividadetem porlimiar culminanteadeclaradalinguagemde empenhamentona luta, clan-destinaou refugiadaalgures,militantee quasepanfietáriaapartirdo inicioda décadade 1960.

Sendeemboracomumreconhecer-seapersisténcia,todaviamatizada,do ideáriode afirma9áonacionaldo grupodarevistaClaridadeatéaosanosda Independéncianacional(¡975), nempor issodeixavade se registaredeseaprofundarecultivo de urnapoéticaorientadaparaas práticasliteráriasmais eu menosirredutíveisá representa9áodirectada realidade.A espa-cializayáográficado discurse(sobretudona poesia),a valorizagáodaslin-guagensconotativasefigurativas,a exploraqáedesilogismosda gramáticada frasee desmundosoníricoe insólito, a expansáecosmogónicadesli-mitesdo mundoe a confusáoentreníveis deestruturaQáodostextos,sAo al-gunsdessesprocedimentesdiscursivosnAo realistasque,de maneirairre-gular, se desenvolvematé se tornaremcon-entesapartir da décadade1980.

4. AUTORES EOBRAS

Todasasdominantestemáticas,poéticase narrativas,exploradaspelesautoresdo grupoinicial da Claridade (nomeadamenteJorgeBarbosa,Bal-tasarLepese e seupseudónimoOsvaldoAlcántarae Manuel Lopes)res-pondema parámetrosde escritaquerealizama generalidadedasproble-máticasmaiscomunsdesváriosrealismosactuais,no entantemodeladospeloqueantesdesignámospor lógicaespecuJarda reciprocidade.Seguindoa tendénciadapoesiacontemporáneade intenyáaonAo confessional,apo-éticainstituidapor estegrupo ClaridadeobedecevincadamenteA funyáore-ferencialcomofiguragáodocumentativadosváriosníveisdasrealidadesda

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Alberto Curva/ho A narrativa cabo—verdiana. naúionalhlaJe e nacionalismo

vida quotidiana.Um desseusclementesvalerativoscontinuano entantoaser o discursode representayáede sujeito. «narrador»/autor,tambémeleparteincluidanessasrealidades,refractadopelasvivénciasqueo implicamnos problemasdasHitas em relevesobrea impenénciatelúricado espayeede tempe.

No querespeitaá «narrativacurta»sAe elucidativoses contesde Bal-tasarLopes (Os Trubaihos e os Dias, 1987) e de Manuel Lopes (GaloCantouno Buía, 1984). A narrativana primeirapessoaverbal é, em geral,uma forma cerrentede autebiografiapuramenteficcional, masnAo nostextosde B. Lopesem quea imaginayáoinventivapeucose afasta(delibe-radamente)dasrealidadesdocumentadaspelostextos. A linguagemna pri-meirapessoaverbalcumpreentáoaquio papelde testemunhosvivenciadoscm históriasde toponimiamuitas vezes identificável, recriadaspelo in-vestimentoformalque refractae transfiguraos factos daexperiénciapes-soal, ou cenhecidos,indirectaou directamenteapreendidos.E assimtam-bémna narrativade M. Lepesquesobretudoprocurarepresentar,segundemodelosafins do realismoeuropeuda décadade 1940,euniversorural deagricultoresem crise,movidospeledilemaentreeenraizamentoá terraeoabandonodeJaporcausadassecasperiódicasqueosreduzemá misériae ámorte. Comoanotao próprio autor(M. Lopes),sAo textos sempreempen-hadesna representa9áocempreensivada realidadesocioculturale geopolí-tica do cabo-verdiano,orientagáocm que se integra também,masde ma-neiramuito particular, a obra de António Aurélie Gonyalves,autor decontoque seapresentacm versáointegral.

Mais marcadospeleposicionamenteideológicosAe es contosdasge-ragóesposteriores,por exemple,de Teixeirade Seusa.autor próximodoideário da revistaCerteza,e de Gabriel Mariano.pertencenteao grupode«SuplementoCultural». Tambémnelesas ocorrénciasde ficgáo autobio-gráficase cumpremno sentidodo documentalismetestemunhal.em narra-tivasquepornormaregistamjá algumasposiyñesestéticasde dernarcayñoideológica.Dedicadosao universoda ilha do Fogo, os contosde T. deSeusa(ContraMar e Vento,s.d.)incidemsobretudonadecadénciada bur-guesiatradicionalque se vé substituidapeíaascensáodo grupodesantigosservigaisem regressode umaemigra~áobern sucedidana América. Re-presentarnassimas muta9óesseciaisda vidacriculacerneque indiferentesa situa9Aocolonial,e a despeitodela,no sentidode desprezequesemani-festapele «outro» ao ignorar a suapresenya.Nos contosde O. Mariano(Vida e Moile deJoáo Cabaflime,1989),queprocedemtambémaorastreioda vida criculasobo regimetutelado,sAo já muito violentos escaminhos

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Alberto Carvalho A narrativa cabo-vertíiana, nacional/JaJe e nacionalismo

da críticaá situa9Aocolonial vistana décadade 1950. No contoquedáo ti-tulo ao Iivro, viver em boaordemna cidade,conformeosditamesdo siste-ma colonial, significaa ebediénciaao «destino»,umaforma de vida medi-ocre que merecerepUdio á vista da apologiadas atitudesrebeldesdapersonagemquesemarginalizapor insubmissAoao poderAdministrativo.O recursoao contooral é, nesteautor,outro modomuite hábil de teceracrítica ‘ae sistemaa respeitodetemadamofle generalizadadaspopulayñespeíafeme,situa9áotAo absurdaquesó podeencontrarargumentosexpli-cativosna verdadedaspalavrasde um buce.

Nestadominanterealistase integra tambémo sectorliterário que sepodedesignarporescritadediáspora,praticadaocasionalmentepor váriesautoresresidentesfora de Cabo verde,cultivada por norma por OrlandaAmarilis (Cuis de Sodrété Salamunza,além de eutrostítulos). Anote-sequealgunsautores,comoos citadosM. Lopes,T. de Sousa,O. MarianoeaindaLuís Romane,emboravivendo a maierparteda vida fora de CabeVerde,muito raramentesituamas suashistóriasfera do universodas ilbas.Esteé um tra9osingularde valorsimbólico,maneiraindirectade recentra-mentee retomo,de impulsode resgateda ten-aeda memóriaporcompen-sayáoda auséncia.Num caso como no outro, a distAnciacriada peía si-tuayAo deemigrantepermiteque o olbar autorialsejaenvolventedo todo domundocrioulo, ordenando-ona cadeia lógica de relagóestemáticasqueevocama secae afalta de meiosde vida (e logoaemigragáe),a viva recu-sada dominayAocolonial,asmudanqassociais,o amorá ten-anosespa~osurbanoe agrícolaeo debate,dilemático ou contraditório,da necessidadedepartidaemigrante.E, sobretude isto, ajáaludidaatracyAoda ilba cern asconota~óessimbólicasde espayoacolhedor,materno,protector,mastam-bém do iselamentoeda insularidadequegeramo estadodenostalgiae osentimentoda faltado «outro».Daípoder-sever nastemáticasevasionistasaexpressáopoéticade genuinosentimentoexistencial,lugar e emeio dodiálogoontológicode ondeo homemextrai as condi~óesda afirma9Aode sipara«outrem».

Ora,énestesentidoquese deveentendera escritada diásporapratica-da porO. Amarilis e por outrosautores,comoveremos.Nasmotiva9óesdassuastemáticasentramtambémos ingredientesda etnicidade,da formadi-ferentedo sercrioulo, de apeleda origem,massema forgaimpositivadorecentramentototal, de regressoliterário ao espa~odas ilbas. Comoqueconfirmandoos factosempíricosda vida, asnarrativasilustram a identifi-caCAo própriado cabo-verdiano,complexae fiel As origensmasadaptávelatodosesespagospor flexibiliza9Ao cultural. Com assuastemáticasmuitas

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Alberto Carvaiho A narrativa cabo—vertí/ana, nacional/JaJe e nacionalismo

vezesprotagonizadasno feminino,e nAo raro desencadeadasno meíeur-banoda ten-acabo-verdiana,oscontosexpandem-separaos lugaresexte-rioresde emigrayáo.sineretizando-seno ser«cmsi» original e cm eeutro~<desi mesmo»semquaisquerconfitesde adaptayáo.

Masaoexpandirem-seos centeúdosdestextos,como se acabadeano-tar, por coordenadasde espayequetranscendemo limite físico das ilbascrioulas, mesmoquepor simplesdeambulayáeparaas vastaszonas deimaginAria, sAo tambémas temáticasquefor~ammuitasvezesas frenteirasdo realismoparaincrustaremneleo mundode todasas vivénciassubjecti-vas. Um testernunhodissoé esignificativo alargamente,tanto em quanti-dadecomeem variedade,da narrativa-contodesdesensivelmentea décadade 1980,querde autoresde estreiarecentequerdesconsagradospor unuprodu9Aoanterior.

Considerando,comoacimareferimos,o carácterfuncional(eeconómico)da publicayAecm revistas,é logo cm Raizes (1977,Dir. de Arnaldo Fran9a)que ressurgemos bern conhecidosT. de Seusa.JoAo Rodrigues,Tee-baldeVirgilio, Virgilio Pires,OsvaldoOsórioe JorgeTolentino, um noveautorque tambémcolaboraem ponto & vírgula (1983, Dir. de GermanoAlmeida,LeAe Lopes,Rui Figueiredo)assimcomoo consagradoArménioVieira e algunsdesmaisnovescomeNicolaudeTopeVermelhee,em par-ticular, RomualdoCruz,decertopseudónimodo profíeuoromancistaGer-manoAlmeida.O suplementeliterárie ~<Vozdi Letra»(1986,Coerd.deOs-valdo Osóriee OndinaFerreira)do jornal Vozdi Poyoassinalaa revelayáede FemandoMonteire, devendo-seno entantea Fragmentos(1987,Dir. deJoséLuís Hopffer Almada)e a Pré-Textos(1992,Dir. de Daniel Spínola)omaior surto de escritade novesautores,cerna celabera9Aede FemandoMonteiro,EuclidesRodrigues,JoséVicenteLopes,Bernardode Carvalho,J. BaptistaO. Velbinho Rodrigues,Canabrava,JorgeCarlosSpínela,An-tónio SantosNascimente,Pinga, Rosa de Sanren,Maria JoséPeixote,HugoD. E. Femandes,JorgeSoaresSilva, alémda presen~ado consagradoO. T. Didial.

Com estaenumera9Aoporextensopretendemosque,porfor~a da visi-bilidade desnemes,váriosdelespseudónimes,se torne sensívelo incre-mentoda dinArnicacriativa,mais viva cornoé de normana poesiado quena narrativa.Segundocritérios de qualidade,é claraa falta dematuridadede algumadestaescritaemcasode experiénciamaisincipiente, eu a me-dianaqualidadeda produzidapor autoresjá com obra publicada.Estesfactose o declaradojogecerneusedepescudónimossAo. cm absoluto,aexpressAodirectado enleioapressadepeíaocupa9áodo protagonismono

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Alberto Curva//ro A narrativa cabo- vertí/ana, nacional/Jade e nacionalismo

campecultural-literárioque, comose referiu, semprebeneficioude grandeprestigieno planesocial.

Talvezporisso,semsergrandeo índicepopulacional,a despeitede vá-nos obstáculosA cemunicayáointer-ilbase das difíceis possibilidadesdeediyáee de aquisiyáede livres,por razñeseconómicas,nemassimé peuceexpressiva(proporcionalmente)a produyAo editorial. De acordocem asdominantesde erienta~áepor temase formas,merecemespecialreferéncia,porexemplo,a escritamodeladapeíaescutadasvezesde contotradicional(JoAe Lopes-Filhe,Estória, Estória, 1978), econtede motiva~áenataliciaem línguacrieula(T. V. da Silva, Natal y Kontus,1988),a narrativaufanistada belezada terra (JoáeRodrigues,O.JardimdosRubrosCardeais,1986),aescritapoéticadamemóniadaslibas(Maria MarganidaMascarenhas,. . Le-yantadoda 1/ha, 1988),a narrativaprimorosade fragmentosda realidadeur-bana(IveneAida FernandesRamos,VidasVividas, 1990;Euclidesde Me-nezes,Toti Cudabra,1990),es flagrantesdo quetidianeproblemático(DinaSalústie,MomasEram asNoites, 1994), a evocaQAelírica e nostálgicadamemóriainfantil (FátimaBettenceurt,SenicaremPó, 1994).

A par desteparadigmaestéticomuite geral,endedistintosprocedi-mentesestilísticoscenvergemno sentidodaescritatransparente,mediado-ra de históriasde conteúdoreferencial pleno, por vezesautobiográfico,outros se podemdelimitar, como foi já indicado, em obedienciaa urnacriatividadesobváriesaspectosproblematizantedafun9áorepresentativa.Um exempleem estiloaindapeuceelaboradoconsistena narrativaindicial,de propensáoanalítica,quese movena áreada questionaQAedasubjectivi-dadeperturbada,epor vezesna fronteirailógica do absurdo,do irracionalentre o sonho e e pesadelo(EuclidesRodrigues,Lágrimas de Bronze,1990; Alberto Gomes/Binga,«A Trilha», in Aulil, 1987). Um outro exem-píe inovadoré o queafrontaa erdemdo burlescoligadoaeabsurdo,regidapeía«lógica»do quasedemoníaco,numazonaqueatingeo insólito do des-dobrarnenteontológicopor destruturayáoe eonfusAeentreosprincipaispa-tamaresde significa9Aoda narrativa(FernandoMonteire, Desassossego,1994).

Deis casesde escritade erienta9Aoespecialmentebemdemarcada,deautoresconsagradosem poesiae no romance,devem-sea ArménieVieira eaO. T. Didial (JoAo Várie eTimóteoTio Tiefe, em poesia,todospseudó-nimesde JoAeManuelVarela).A estéticada rupturaqueamboscultivamincideantesde maissobrea categoriadeespa~o,porestilbaQamentodesli-mitesda realidadeempírica,no primeirocaso,e por espansAode aberturauniversalizante,no segunde.Por expansAototalizadoradescontornosde

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A lí,erto Carta/ho A narrativa cal,o- vertí/ana, nwional/Jatíe e nacionalismo

mundode referéncia,num quadro deescritadegranderiquezalexical ere-tórica,e queclaramenteassumefunyóesmanipuladorasdo sentido,éa ló-gica expandidado sebrerealquese ternapredominante.OrajogandocernaconfusAoentrepercep~óesda realidadecernume vivénciasoníricas,eracerneesmagamentoda diacronianumacenafantasiadade presengasana-crónicas,estaescritacemperta-secomepráticadialógicade espayamentosemánticos,fazendoconviver a ironia, a conetayAe,es simbolismose astransposiyóesalegóricas(ArménioVieira, ~<DescriyAode um Pesadele»,inRaizes,1977;0 Eleitodo Sol, 1989).Numaescritatambémextremamentedensae meditadano estilee na exactidáoconceptual,anarrativade O. T.Didial éum campoalargadoendepulsaumafilosofia feitade sagezae decosmopolitismo,de protagonizayaecrieula,muite frequentementenumaforma autobiográficaqueinspirana vidado autor. Da sucessAodosespagese dos lugares,desencentresedassituayóesresultaurn efeito de encadea-mentesmetonímicosquepéemcm cenaa vivénciacosmopolitade ampli-tude universalizante.No limite da busca,umasvezeses seussentidosele-vam-se até ao simbolismo de ressonánciasbíblicas, cutras vezesrecentram-sena erdemsensorialdesafectosou da fruiyAo eróticaou esté-tica.

Tomadascm conjunto, as dominantespoéticasdestesdeisautorescomo que se relacionampor injunyAo, dandoumaforma e um sentidodeplausibilidadeao caráctercrieulequenAo sepodeconfinaraos limites doquotidianeencenadepeía estéticarealista.A vida muite estreitada reali-dadeempíricae a larguezada fantasiaoníricadefinemoposiyóesparadig-máticasendetrabalharnoseixos isotópicesde fundamentayAeespacial(A.Vieira), relacionandoas ilhascem o mundo,e deancoragemtemporal,re-ligando CaboVerdeaepassadomítico daMacaronésia(G. 1. Didial, Con-tosda Maca¡-onésia,1992).

5. UM CASO EXEMPLAR

Sendoemboraum autorda gerayáodosfundadoresda revistaClarida-dc’, António Aurélio Gengalves(Mindele, 5. Vicente,1901-1984)ocupaumespayeliterário particular,em partejustificadopeíasuatormayaouníver-sitária cm CiénciasHistórico-Filosóficase peíaexperiénciade umade-moradaestadiaem Portugal.Com cercade vinte anosde boémialisboeta(1917-1939),grandeconhecederdascerrentesdominantesdas literaturaseuropeiase desmevimentos~spreseneista»e «neo-realista»que sc desen-

Re isla dr FihJagíe, Ranzeiai~ a. Anejas201)111:85-114 94

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Alberto Carvalho A narrativa cabo-vertí/ana. nacinnalitíatíe e nacionalismo

volveramem Portugal,oscaminhosda suaescntanuncase identifieamcernasor¡entayóesrealistasdessucessivosgruposseusconterránees.

De entreas principais característicasquedistinguema suaobra,exclu-sívamentecm presa,ressaltamantesde maisosmevimentosde umarelayáodialécticacentradana persenagern,a análisequevisa a definiyAo do seuperfil individual e acaracterizagAedo espayourbanoem queelase integra.Daíquesejamacidadede Mindelo (líha de 5. Vicente)e a personagemfe-minina es elementosdominantesna grandemaicriadas suasnarrativascurtas,relacionadosnumtodo de íntimasconexñes,de factosobjectivosquesose explicampor compreensAeda subjectividadepessoala que se ligam.Narraroscasosda vida é percorrerosseusmeandros,recomponde-Ihesesnexoscm forma de historiaentendidacomeproblemahumano,masnumadilig6ncia distintada «clínicanaturalista»e da ~<análisepsicológica»,pornecessidadede interligar escompertamentossocializadose emundodasrespectivassubjectividades.NAo raroapredominAnciade estileconsistenaindagayAosubtil do pormenor,do indicio, do trayo de carácter,do sintema,na oscilayAoentreo facte e o motivo implícito unidos por umacadeiadenexosporvezesédeixadacm aberto,ficandoentregueA argUciado desti-natárioelucidaro sentidofinal da história.

A novela«No enterrode nháCandinhaSena»(in Noite de Vento,Lis-boa,Caminho, 1998)censtituium exemplesatisfatórioda estéticade autor,assimcaracterizada,semdeixarde equacienaralgunsdos vectoressemán-ticosmaisexpressivosdo mundohumanocrioulo, tal comeantesforam de-finidos. Os grandescixos da composiyAo,num discursode forma autobio-gráfica, partem do joge entreo tempoe e espayoparaa encenayAodeduasvidasque se encontram,se cendicionam,se separamduranteo perío-do de emigrayAoe sereencontramnumfim queé, também,um recomeye.

No planefigurativo da acyAe,ahistória obedeceaeritual de um óbito edo respectivefuneralquese precessasegundoospreceitosdo catolicismo.Entreas váriastemáticasqueaí se entretecemdestacam-se,no planedie-gético,a figurayáo espacialdo trajecte demarcadaebsessivamentepelo(tempede) sol castigador,adimensáosocial e simbólicade óbitoe acom-plexarelayAoentreeprotagonistae avelha senheralevadaa enterrar.Emvez de partirdo relatedosfactosparaeseucomentáriointerpretativo,e tex-to póecm mevimenteejogo entre a narragao/reportageme a suspensAoparaencaixesde retomoaopassado.E o quedelesemergesAo sériesde da-dossobreas relayóesantigas,pessoais.entreo protagonistaquandomenino,órfRo de máe,enháCandinhaquematernalmenteo pretegia,sobrea his-tóriada deambulaqáointer-ilhas,o matrimónioporconveniénciaeconom-

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Alberto Carvalho A narrati la cabo— vertí/ana, nacional/doc/e e nacionalivnw

ca, a emigrayAode protagonistae o retornodo grandeinundeá pequenezacoihedorada ilba.

Além dequesignificaem si mesmo,o funeral é tambémo contextoderepresentayAoda cidadeapreendidana totalidadevolumétricadassuassig-nificayóes.Por um lado,elaé constituidaporum quotidianede tipo euro-peu,cernbalizasqueespecificamas diferengascrieulas,tais como o for-malismo de óbito, o cómico de situayóese de falas e a necessidadedoparecersocial. Mas,por outro lado,cíarepresentatambémeespagehuma-no quetem por lastroepassadeoculto dasvidasapenasvisíveis, aqui sig-nificado peíahistóriaembrechadana diegese.O enterrocomefim de urnavida funciona, manifestamente,como motivo pararecuperaro passadedesdeos seusinicios, sendotambémevidenteque,cm vez deesclarecedo-ras, as rernemorayñcsnarrativase asrecordayéeslíricasmais adensamdoque iluminama ambiguarelayAo entreapersonagem/narradere a defunta.

E é nestareiayáeentrea descriyAo do funeral,no tempopresente,e aevecayAoda vida antiga,assimmotivada,quese enlayae tipo derealismocultivado por A. A. Gonyalves.O enterro da velba senhorae a relayAoambiguaqueapersonagem/narrador(nAo) mantémcernelaentramnaer-demdo real, ao mesmotempoquecompñemo significantede urnasubjee-tividade aindanAo pacificada.Se,por urn lado, a evecayáoforneceinfer-mayñesámemórianarrativa,porcutrelado,cía fica prisioneirarecerdayáolírica, da lembranyaemocionalde acolhimentoquenháCandinhaconcediaá personagem-menino,cenfundindovoluntariamentea ternuramaternale oensinode desejoeróticode seduyAeamorosa.Semprelembradano períodode emigrayAo, estamAe substitutaé a figura aprisienante.duplamentesim-bólica,de ilha e de mulheraquese permanecefiel e quepelarizatanto eentusiasmede regressocomoa decepyAodc a encontrarjáveiha.

A narrayAo do seuenterro,a cvocayAe dos faciesde passadee a des-críyAe dosafectesquees ligeu constituementAo,cm conjunto,o discursodacatarseverbalizanteendeedizera tidelidadeao fantasmainfantil é ainaneirade libertaro hememparao inicio de umanovareiayAo amorosa,parase ligara entramulber,ájovemCelina.e cerncia reiniciarurnavida nevana líha.

6. 0 TEXTO:O ENTERRO DE NI-JA CANDINI-IA SENA

«Foi ontern,á noite, queeusoubeda mofle denháCandinhaSena.En-contrei-mena praya com o Hipólito Almeida e demosalgumasveltas.Logo aesprimeirespassos,elepareue perguntou-mede repente:

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Alberto Can:alho A narrativa cabo-verdianc¿, nacionalidade e nacionalismo

—Voc~ sabequemorrennháCandinhaSena?En tambémestacarano melo da prayaerespondisemgrandesurpresa,

comose estivessepreparadoparareceberaquelanoticia:—Nhá CandinhaSena?Coitada!Mo, nAo sabia.—Morrenalporvolta das3 herasda tarde—confirmono Hipólito—.

Em casado Abel Ferreira.Ficámescaladospor um momento;depois,endisse:—Coitadade nhá Candinha!Ainda nAo me tinham dho nada.Pobre

senhera!Ela estavajá muñovelha.Entile, o Hipólito desabafou:—Ah, sim! Muño velha.E, depois,muito acabada,sempredoente...Já,

já eratempede da ir descansar.NAo dissemosmais nadasobreestamorte e recomegámesa passear.

Maseu fiquei urn bocadoa lembrar-mede oháCandinhaSena,dostemposem queeneraum pirralbinhedeoite paranoveanos.

O enterrede nháCandinhafei marcadoparaas 10 herasda manhá.Também,quediabode ideia! O Abel Ferreira,lá agentedela,nAo podiatercombinadoestaceisaparaurnahoramaisapropriada?AqueJeAbel! Aque-le Abel!.., Queméque se lembrade marcarum enterroa urnahoracomeesta’?Ir pararlá paraa ChA do Cemitério,comum soldestesa cair. Horadecalor... Quasetodaa genteno trabalho...Do mea lado,en tinha queir, ás IIhoras,ver aquelaslatasde tinta tic Monte.AssimnAo épossível.Tenhoqueser apressado,se as quisertirar por um prego conveniente.Negocinhocomoestequerserdespachadodepressa;se a genteo deixaparaamanhá,énegócioperdido. Faz-metranstorno,palavra! Estou a ver queo cortejenAo teráquaseninguém.Paciéncia!QuenAo aparegam;masen é que nAopessofaltar.

A casado Abel Ferreirafica no Alto de Celarine.Aí pelasproximi-dadesda Fornede Cónego—já acalorado,com o casacoaberto,paradeixara brisaquedeseedo Mente Verde secar-mea camisaalagada—,encontrel-mecerno Norberto Santos.Tambémvelho conhecimentederibA Candinha.Abordámo-nos;elequis saberse ia ao enterro.Disse-lhequesim.

—Bern. Entáo,vamosjuntos.Bu, também,vou.Aliás, faltava-nos¡mi nadinhaparacliegar.De carninho,fornospales-

trande.Imediatamente,eNorbertoestranhona horafixada.—Edigo-tecerntodaa franqueza:éque sonumapessoacomeson,que

nAo gostade faltar. Senáo,en náotenavindo. Tive de largar um servigo.NAo, o Abel escelhenurnahoramuito imprópria.

9-? Revista de Fila/agio Ron,dníea. Anejas2001.11: 85-414

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A/be,to Carvalbo A ,a,raííí’a íabo-veríliana, nacional/JaJe e nacionalismo

——PobrenbACandinha!Lá se foi. Tenhoa impresáede que,se nAo fes-sc adoenyadosseusúltimos anos,a sin vida inteira tenasido urnavida fe-lit E aquelesegundocasamentotambém...

—Teusrazáo.Casamentoqueeta nAo deviater feito. Quefelicidadepo-diacíaesperardo Xalino?Cernasuavida no estrangeiro,semprelonge...E, principalmente,a familia! Quegente! Perderamtudo, andampor ai.Masn~oseernendaram.Falampelescotovelos,a suamaiorpreoeupagáoédarnasvistas,semprecernasmesmasleviandades...1-lá urnaque parecees-capar:é a maria. Mas,vé tú, foi esta,justamente,queesrragoue casamentodc nháCandinha.Lembras-te?O Abel équeé o herdeiro.

—Sim, masvamosaver seo Abel saberáaproveitara heren~a.Aque-le é eutrodesorientado.

Tínhamoschegadoaealtinho endeestáa casade Abel. As persianascstavamfechadas,masa penade entradatinha os deisbatentesescancara-des.Gente de luto eníravae sala.De pé, ladeandoa porta, cm magetedegarotose de mulberesdo poyo pasmavamparaosvisitantese espreiíavamparadentro. De quandocm quando,erguia-scchoro; mas, aindaassim,reinavacm silénciorelativo,quecontrasíavacernaguisahabitualnascasasdestaten-aendese choraurndefunto.

O Norbertoentrou. Eu deixcí-meficar fora, cern urn olhardistraídoparao cenáriede terracinzentaeestéril,paraocasariotérreodo Alto, quetrepavasemurn planopeloentalbepracticadona encosta,quese esboroavacm cascalheiradebaixodo sol. Uma cinta de penhascose montesdescia,nurnaendulagáoinfindável de corcovasvermeihas,desdeeMonte Verdeaté lá paraes ladosde SAo Pedro.Ae funde, apanhava-secm trechodabafa,num repeusode mandrionaaospésdo Monte da Cara.E, sernquecudessepor isso,esquecí-mea lembraros primeiresprincipios de meucon-hecimentocernnháCandinha.

1-lA tanto tempo...NI=ACandinhaeraurnamulatamuñoescura,quasepretapode dizer-se,de cabelosnAo muño crespos,sempreescondidos,porque,emberanAo fessemuiherde poyo, usousemprelenyo.Tinhaesta-tura regular.No entanto.comoeranutridae forte, pareciabaixa.

NAo me lembroberndo roste;cerno tempo, apageu-se-meda memóriae desenhoexactodassuasfeiyóesporaquelaépoca,masde trescoisasnun-ca me esqueci.Desolbos - pretes,sorridentese desmaismeiges.por cerio,quetenhoconhecidocm minha vida. Ficou-mc,também,a Iembranyadesseusbrages.Envolviarn-mee sobreeleseu nuncamecansavade rolar—no

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Albeito Carva/ho A narrativa cabo-vertííana, nacional,Jade e nacionalismo

meioderisos—aminhacabeya;conservoaindaaimpressAodasuapelefina,moma...Além disse,basta-mepensarnelaparaescutarnovamenteo temdasuavez. Recorde-meque,por vezes,estremeciaaeouvi-la.Erguia,entáe,orostoepunha-mea elharcm siléncioparaeta,comenumasurpresaencan-tada. Era umavez, como ás vezesse encentra—maspoucas—,cm quenosparecedistinguir um timbremaisprofundo, velado e quente,vibrandoacompanhadode outrasnotasmaisaltas. Nhá Candinhatinha urnavozqueeraumaverdadeiramúsicaeumacariciaparaesmeusnervosdecrianya.

Quandoa doenyase Ihe agraveu já nasúltimas—passeudefinitiva-menteparacasado Abel Ferreira,seusobrinho,e lá merreu.Mas,até ável-hice,morousemprenumacasinhaa peucespassosda nessa.Eraandarumbecadinho,subir umarampazinhae, aefunde,do ladoesquerde,encontra-va-sea suamoradia,apenascem a pertadc entradae umajanela. A penadavapara urnapequenavarandaenvidrayada,guarnecidade trepadeiras,caixetescomtúlipas,queestabeleciacemunicayáocernumasalinhadevi-sitas,desembocavanumquintalejeendeo sol eracedocomocedasvisitasíntimas,de todososdias,que,ondechcgam,instalam-se,tagarelam,fais-cam e nuncadAo sinaí de quereremretirar-se.Lá haviacadeirasdeyerga,urnacadeirade baleuyee eradescansandonestaou assemadaájanelaqueeu encontravanháCandinha,A tarde,quandotinha licenyaparaswr a ca-briolar comeNhano,comePiteha,cerneDjindja de nháMaria Arcánge-la... cernamariolagemda minharua.

A distáncia,perdidode meiedoseutros,espreitavao aparecimentedaminha amiga.Fui sempreumacriangaretraída;bastavaacurtaseparayáedeum diaparame despertaratimidez.Chegadoásuapena,aminhavontadeseriaentrarporah dentronumalufadae lanyar-metodocm festanosseusbrayos.Era assimqueeu via fazera algunsdesmeuscamaradascompes-seasda suaamizade.O seudesembarayoeraeergulhodasfamilias e faziao encantode estranhos.Em todasasconversas,comigepresente,eracedegabarem-nos;achavam-lhesurnagraya inesgotável,apontavarn-nescomemodelos.No íntimo, eu admirava-oscomea privilegiadose desejavasercomo eles;masum waváointerior abatiainevitavelmenteesmeusimpulses.Por isso,ia deixandopassaro tempee fingia quetomavapartenastraqui-nices.A verdadeé quenAo fazia senAeesperá-la.Ela via-me—es nessosellios cruzavam-se-——,e chamava-me.Outrasvezesdemerava-se.Eu, entáo,a peucoe peuco,subtilmente...aproximava-meda casade nháCandinha.Deslizavaao longo daparedee surgiaA pertaa sorrir-meacanhadamente.

Nessasoeasi~es,encontrava-ana varandinhaenvidrayada,repensandona suacadeirade balouyo.Na quietudevesperaldo quartinhe,somentese

Revista e/cFi/ale.gía Ram6nie.a. Anejos2001.1!: X5-I 1499

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Alberto Caí-va/ho A na;-rativa cabo—vertí/ana, nacionalitíatíe e nacionalismo

distinguiao rangerde soalhoe e tiquetaquedassuasbotinaspeusandenochAo e impelindedecementea cadeira.A eabeyacaídanumaalmofada,per-passavanurn cismar...e, de cadavez, umaréstiade sol,já semforya,pou-saya,aureolava-lheo restoe depoisfugia.

Ela serna-mee, commAo, acenavaparaque rne chegasse.1Am instantedepeis,afofava-meno ninho desseusbragese segredava-mena suavoz deroía aeprimeiro arroxearda alva:

Vem aqui, homem.Dias há nAo te vi. Porqué?JánAo me queres?

Ah!... JánAo és aquelemeuamiguinhe?Assim é quetu és?Também,ce-migo é queestás.JánAo gestede ti, já nAo és um rapazinhobonito. Porqueé quenAo viesteentem?Estive Li tua espera...tu nAo apareceste.Nilo sabeso queperdeste.Guardei-teurnacoisasabe.Mas deixaste-mesematuavi-sita... cemi-a.Vés quenAo é bomseringrato?

Eu nAo Ihe davaresposta.Calava-me—o rosto entreabertonumsonso—e inclinavaa cabeyasobreo seuombre,a sentir-metAo berncomonAo sabe-ria dizer.NháCandinhaconservava-mepresoe eseumurmUriopreseguia:

——-NAo éverdade,cuviste?Tu nAo és aindatejo, new ingrato.Feie, in-grato, o meuCristiane?E mentira.Masdiz: queres-mecheio?Sim?Diz ou-tra vez quesim. Entile, vaisver aquelaceisasabe.

Levantava-see, á volta, traziaescondidona mAo um pequenofrasco.Assentava-se,enlayava-me,peusava-meosdedosfrescossobreas pálpebrasedizia-me:

—Fechaeselbese abrea boca.Eu ebedecia;daí a nadinha,um bembom,umapastilhade hortelA-pi-

mentacomeyavaa desfazer-se-mesobrea língua. Eu seltavaumagarga-Ihadadeprazer.Nhá Candinhabalbuciava,a bocamuito ao pé do mcu eu-vide:

—E tu, agora,queé quemedás?—Voltava-meparaela; nhA Candinhaabrayava-mecomternuramaisfunda.

Isto sAo coisasde há tanto tempo,tanto tempo...A Jernbranyade nhñCandinha,entáo,tem um encantequeme trespassa.E a mesmaceisaqueseme levassemparaumaatmosferacondensadaoutrorae quejá nAo é destemundoem quevivo.

Ouviu-seum tilintar de campainhae, dai a nadachegouo padredeso-brepelizbranca,barreteeo livre dasoragñesentreosdedos.A frente—am-bosdeepavermelha—caminhavaum rapazelatrazendea cruzalyadae, aolado,o meninode cero,transportandoa caldeirinhade águabentae o his-

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Alberto Carvalbo A narrativa cabo-vertí/ana, nacional/JaJe e nacionalismo

sope,sacudiacompassadamentea campainhaqueretinia e se repetiacernetimbrede umavez de crianga,soltandona estagnayiodo aro seupregioar-gentinoemonótono.

Váriescavalheirosdepreto, vindosde interior, forampostar-sea mela-rampa,áesperaquesaisseo caixáo.Aproximei-mee, no mesmoinstante,surgiuaurnaesquinao CarImbosdo Alto de Miramar, grisalhe,a idadeapesar-Ihenascostasabauladas,cernafisionomiaséria,e rosteavanyadeumpeuce,o ciharparadoe atentode quemobservacontinuamente.Vestiadebrancoe traziaum chapéu-de-solna milo.

—O infalivel Carlinhos—disseeAníbal Duartecernasuavoz sono-ra . Nuncavi aquelehomemfaltar aum enterre.

O Norbertolembrou,son-indo-secernorgulho:—Eu, também,nuncafalte. Só se nAo puder.—Masé queeCarlinhos—contesteuo Aníbal— (é umacoisaextra-

erdinária)nuncadeixeuescaparum enterre.Ninguém se lembra...Largatudoparaacompanharurn modoao cemitérie.

O Márie Dias interveioe cernpletou:—NAo há dúvida.Ele é trabalhador...Isseé cedo.A almada Secieda-

de é ele.Mas nAo Ihe falem num funeralquandoevirem cernqualquerecu-payáe.Aquilo é sagrado:primeiro,o funeral.Disse-meo manoempregadona Sociedade,queele traz semprena algibeiraum gravatapretaparao quederevier.

Cadaum cern a suamania—filesefou e Aníbal—. Assim é quesaoas coisasdestemundo:eu, entile, souexactamenteo centrário.E umararidadeir a urnacasade defunte.Custa-me.Tenho eque se chamaurnaaversáoportodasestascoisasde mofle. Estascerimónias:visitasdepésa-mes,choro,esteambiente...Ah, eu nAo queroternadacem amofle.

O Márie Dias,cernasuacostumadagarotice,bateucomasmáesumacontraa outra,sacudiu-asno ar, no gestedequemafasta,comoPilates,res-ponsabilidadese relaqóesindesejáveise galhofeu:

—NAo és só tu. Bu, também,nAo quero saberde nadacernela.Todosaehai-ama saidacernpiadaeninguémdo grupo se conservou

sério. Alguns riram-sealto, outros retiverama gargalhadanum freuxocomprimido.O próprio Aníbal Duarteacompanhouo riso e, porfim, ex-pl¡cou:

—Vá lá, a fraseescapou-mesemqueeu desseporisso.Estáclarequenenhurnde nóstem motives(pelemenosqueeu saiba...)paraquerersaberde algumaceisacem a mofle, felizmente.É isto que eu quedadizer emais qualquercoisa.Ao contráriodo CarImbosdo Alto de Miramar, eu

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Alberto Carta/ho A narrativa cabo—vertí/ana. nacionalitíatíe e nacionalismo

quenadizerquea mim, entáo,íne repugnamtodasestascerimónia,ente-rros,visitasde pésames...todaa trapaihadaque. habitualmente,acompanhaa mene.Dia de enterroeu de pésamesé dia quepassenervoso,mal im-pressionado.Porqué?Nilo sei. Irrita-me.Acho odiosoesteambiente.Tam-bém,evito-o emais queposse.A nAo serque seja o casode unu pessoarnuto amiga.Quantoao resto,tudeo quesejatratardeceisasdosmortes...deixo aecuidadoda minhamulber.Lá nisse,elaentende-semeihorde queeu. Heje estoucáporquenAo podiadeixarde vir: nháCandinhaeraconhe-cimentomuito antigode minhagente,o Abel...

1Am choro alto, umavozeariabruscae aflita levantou-seinterrempendo-o e, quasesemintervalo,ecortejofúnebreapareceuá poda.Á frentedeto-desaponteuo caixáe,suspensopor quatroamigosquetranspunhama so-leira cautelosamente,procurandocom o pé incertono ar o primeiredegrauda saida.Atrás, um grupo de criadas,de mulberesde poyo chorava.agi-tando lenyes.

—Adeus,nháCandinha!6. nháCandinha,nuncamaispereia suaca-deir’aá portaparacia se assentar!Nhá Candinha,6, nháCandinha!

As janelas abriram-see senherasapareceram,agitandolenyos tam-bém,cernoselhesvermeihose lágrimascorrendo.

Cemeyámosa descidanurna fila negra. Dados os primeirespassos,euvmosum seluyaralto comeum clamer. vibrante, saldede funde daalma,e comoventecomoumader inconsoláveldc crianya.Comeyoucernum soluyarcentide,querebentavacm pequenasexplosñesirreprimiveis,maslogo seguidaspor cutrasque se precipitavamtuínultuosamentee, de-peis,se arrastounumaqueixalonga,fundae delirantequeme fezestremecere pósna atmosferabanaldaquelamanhámindelensede calora freménciade urnagrandeder. Veltei-meparaver quemdirigia a nháCandinhaadeustAo sentidoedistinguium vulte demulber veltande-see afastando-sedaja-nela,no qualeu reconheciamana.a cunhadaquetanto amarguroualgunsdesansde nháCandinha.

—Agera?Paraqueé tude iste?Hipócrita! —resmungeuaemeu ladoeNorberto.

Seguíamos,agera,peía Fontede Deuter.Adiante,o padreavanyavaagrandespassadas;a campainhado sacristáezitotilintava cern oseutirnbre desúplica infantil e, atrás,es hernensda carroyapuxavampele vario, es-foryande-sepor acempanhá-los.O ranchodasserviyaisseguia-lhesnapeu-gada.O nossogrupomarchavaseparado.

A caixeirade um botequim,mulata,gorda,cernasancasmuflo largas,estacaraá perlae via passaro entelTo com es seusolhosgrandese magea-

Revistes e/e Fi/olee5 íes Ñame/ce ¡ea. Anejas

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Alberto Caiva/ho A narrativa cabo-vertí/ana, nacional/Jatít e nacionalismo

des,murmurandoequerquefesse,certamentepalavrasde desgoste.Entilo,o Norbertopós-sealembrar:

Ah, Maria JUlia! Ah, e teu tempo.Esteua ver-te...Foi um descor-pinhosmaisbemfeitesde Silo Vicente.E aquelequartinho?Sóaquelahm-peza,aquelacamasempretilo bemesticadinha...Tudo passa.Ah, mundo!

O Márie Dias enviesou-lheum olhartrocista.—Norberto,estouaachar-tea chorarmuito...Eparaa gentedesconfiar

quenilo eraslá mal recebide?Eu intervim:

Norberto?Norberto nilo é fegode palha. VocesnAo sabemo quequeredizer. Em temposouvi estafrase a umapessoa...—O Norberto,avanyandocomo lembojá a abaular-se,teve um riso queihe rolou nagar-gantacomourfl gege.

Nilo se podiacom o calor,um calerdemanháde trovoada.Urnanuvemlargae negrapairavabaixo, cebrira o Sol, filtrava-Ihe o foge e pareciaderramarvaporardentesobreas nossascabeyas.ONorbertodesabetoaraocasacepretede fazendagrossae, depoisde tercontempladoacamisamol-hadapelo suorde um e de outro ladode peito, sacudiu-lheas abasá ma-neiradeduasgrandesventarolas.

—Moyo, ó quecalor!Insuportável!—concerdoueAníbal.

—Também,algumde vocés—perguntouo Mário— seriacapazde meexplicarpor que motivo o Abel se lembroude marcareenterrodestapobresenherapara uma horatAo imprópria?Olhem quehá cadamaduro! Semcontarquemuita gentenAo podeaparecer.Seucapaz de apostarqueelequis queesteenterrofosseeque se estávende:ua meíadúziade gatos.

Alguém mostroucuriosidadede saberquaiseramosquechegariamaocemitero.

—NAo sei —disseeAníbal— nem me interessa.Eu veusóatéá igrejaepensoquebasta.Odeverfica cumprido.É quenAo sepodecemumaso-alheiradestas.E o pior aindanAo é iste. Apanha-se,agera,estesol; á tarde,cerno tempoirregularquetem feito estesúltimos dias,cemeyaa cair aque-la humidade.O meusitio, entáe,é terrível. Nestasalturas,meto-me,geral-mente,na camalogo depoisdo jantar,agasaiheo peitocernalgodáoiodade,calafetoas janelas.Mas nilo há meio deevitar estasmalditascenstipayóes.E, depeis,cemigo, é aquelaconstantepreocupagiede queumagripe épenaabertaparaqualquerceisade cuidado.

Estávarnespertoda pracinhae da igreja.O Norbertopós-seacalcularaidadedenháCandinha.

103 Resisos ele Filo/agfa Románica. Anejas200111: 85~II4

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Alberto Carvalbo A narrativa cabo-vertí/ana, nacionalitíaJe e nacionalismo

—Ela deviater...esperalá: elacasou-seno anocm quemorreuo JeAoRosinha.Háquantetempoissefoi? Lembras-teMário?

O Mário, um peuceadiante,terceua cabeyaa mostrareson-ísoqueIhefranziaes lábiesem bice e nAo perdeumaisestaocasiilede galhofar:

—NAo pessolembrar-me...Nilo soudessetempo.O caixAo entrouna igreja e, ládentro,comeyarama entoarecantochAe

do oficie desmodos.Os homens,quasetodos,ticaramforadebaixode umaeu outrabelasombra,ou espalhadespelasesquinas,ocupandoo intervalocem um peucode palestra,abrigadosá sombraestreitaque, naqueleme-mente,aindaerapossívelaproveitar.Buprocureium lugar isoladodo cutreladoda praya.

Que idadetenanháCandinha?...Bu, também,nAo sei. Apenasme re-cerdoque,naqueletempe,já a mamAtinha morrido. Nhá Candinhaferaasuagrandeamiga.Amou-a,quandoviva, comdedicayAoincansávelecomo respeitoquese tem por umairmA maisvelha ou por quemnosmereceu,de urna vez parasempre,grandeadmirayáe.Nuncateve filbes. Por isse,quandoa mamA desapareceu,nháCandinhamelancelicamentetransferiusobremim agrandeamizadequetiverapeíamertaquerida.

Se aconteciaencontrá-lacernvisitas, apreseníava-mee dizia inultobem demim. Gabava-mecorno um menino muite meigo,muito bern, pun-ha-sea contaresmimosqueeu Ihe fazia. Falavadesmeusestudos:queomeuprofessorerae Sr. GuilbenneAraUjo, o qual apresentavatAo bonsalu-nese eraquem sabiamais análisecm SAo Vicente,exceptuandoepadreCleofas.Maso padreCleofaserahomemda suaanálisegramatical(e Sr.GuilhermeAraUjo erafedecm análiselógica) e nuncafizera vidade ensi-nar. Além disso, o padreCleofasandavamuite desgesteso.Mudara-separae LameirAo e vivia cadavez maís esquecidedes antigesestudos.Pois,nháCandinhaasseguravaqueo Sr. GuilhermeAraUjo estavamuito sa-tisfeito comigoe garantíaque, se eu nAo mudasse(porque,sim, ás vezes,semagentesabernemcorno nemporqué,as criangasse transfermam)paraeano,já fariao rneu primeiroexame.

Depois—nuncafaltava lá vinha um episódieda vida da mamA. daamizadedasduas...De urnavez cm queamamAa tinhamandadochamarápressa,porqueeu adoecerade repente,e fora encontrá-lanumaapoquen-tayAo... De outra, cm queambasesperaramlengamente,peíanoite fera.esmaridosque, por motive que já nAo me lembra,nAo regressavarn...Dequandocorrerama suacasa,porquea mamAtinha pieradoe estavaa me-rrer... Os olheseneveavarn-se-lhede lágrimase terminavasemprecomestaspalavras:

Re vis,c, dr ri¡alc,gíe, Ramáni~ a. Anejos2(X)! 11:85-114 104

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Alberto Carva/ho A narrativa cabo-verJiana, nacional/JaJe e nacionalismo

—N6’Senhor! Oh, Deus,por queé quenoshás-detirar sempretAodepressaaspessoasquesáoassim?Vocésvejam: quantoa mim, nilo sepassaum dia emqueeu nAo diga: nAo, amigacomoaquelanAo deviamo-n-er.

As visitassuspiravam:—Oh, é deveras,nháCandinha.Vecé tem razAo. Pessoascorno nhá

AugustanAo deviammorrer.Elasdeviamficar connoseotodoo tempodanessavida,paranosdaremmaisum becadinhede satisfayAenestemundo.Porque,bastaqueninguérn,atéá horade suamofle, chegouao pé de nháAugustaqeunAo saisseda suabandamaiscontente.Masqueéquevecésquerem?O mundoéassim:aquelasé quevAo maisdepressa.

De urnavez, passeialgunsdiassemver nháCandinha.A suapedaan-davacerrada;nilo podia saberse elaestarianavarandinha,nemavia A ja-nela.Urnatarde,por firn, subiaeua ruadistraidamente,quandolevanteiosolhose dei eomela... NAo estavasó, comeeraseucostume:encostavaoombroa um homem,queeu desconhecia,apoiado,também,aoparapeitodajanela. Claramente,a idadejá Ihe arnadurecia.Tinhao rostemulato sobre-compride,a pele tostada,as feiyóesfinas, masbem vincadas.Trazia umchapéude fazendagressa,comeessesqueeu via usaraosemigrantesqueregressavamda Américaou da Inglaterra.

Nitá Candinharecebeu-mecerno carinhode sempre.Depoisde algu-masexpansóes,disse-meum peucemaisbaixe:

CumprimentanháXalino—e, veltando-separao companheire,es-clarcceu-o—:Esteé um grandeamiguinhequeeu tenho.Filho de nháAu-gusta(e coma expressAosubitamentegrave,osolhossemicerrados,um mo-vimente da cabega),minha maier amiga, mulher de nhó Raimundo.Lembras-te,nAo éverdade?

Bu sentiaeselhosdo desconhecidopeusadescm mirn, comum parecerque se me figurou sérioe indiferente.Ele responeusimplesmente:

—Ah, esteéo filho da Augustae do Raimundo?Ah, sim! Como,he-mem, lembro-mee muite bern.Ah, sim... Estáum rapazote.

Afastei-mecernumaimpressAo,queme eradesconhecida,de mal-es-tar; desconfiavaqueaquelehomem,cerneseuar estrangeire,chegaradelenge parame separarda minha amiga.Nhá Candinhatinha-secasado,cm segundasnUpcias,porprocuragáo,cemeXalino de nháJéjé,homemdomar queresidia habitualmentena Américado Norte e viera,naquelaoca-siAe, até SAo Vicente.Seubemais tardequeelanAo fol feliz cemesteca-samento,porque nAo tinham génios iguais e, principalmente,por causadas intrigas dasirmAs do Xalino.O cefoé queo Xalino peucose demorou,

105 Peresteide Filah&g/a Raerán/ea. Anejos200111:85-114

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Alberto Caí-va/ho A narrativa cabo—vc’rtíianc¡, nacional/clac/e e nacionalisnio

reembarcouparaaAmérica,por lá morreunilo se passoumuite e —coisacuriosa—raramente,depois,euvi mencionareseuneme.

Fui crescende.Meu pai, cern e seu génie irrequiete,era dessesdequemscdiz quenilo sabemaquecerum lugar.De repente,requercuqueedesligassemda vidade funcienáriopúblico paraseguira vidade comércio.Entre a gentenessaamiga,nAo heuveninguérnque nilo estranhassetAo im-prudenteresoluyAo.Comeé que,já cernasuacarreiratAo adiantada,nhóRaimundotrecavao seuempregecenopor umavidaqueelenAo cenhecia?Maseleestavaconvencidissimedo éxito desseusplanes;nAo heuvecon-selhoqueedemovessee lá seguiua suaaventura.Meu pai eraurn hememcondescentepor via deregra; masDeuso defendesse,quandeurnaideaseIhe insinuava,primeiro devagare, depois, se Ihe encasquetavano cére-bre: nemediaboconseguiaarrancar-Iha.

A suanevaprefissáoobrigava-oadeslecar-sede ilha parailha e sem-pre e acompanheicm tais mudanyas.De quandocm quando.perém,per-mitia-mequevisse passarurnasfériascm SAo Vicente: nháCandinhaeradasprimeiraspessoasqueeu saíaa procurarcernalveroge.Perduravaanossaamizade;nilo esmoreceraaquelecententamentofundo quevibravaquandenosvíames.Agora o nessotemamaisgostosode conversayóescon-sistiacm lembrarceisasantigas,cenas,já apagadas,frasesqueeu tivera,meiguicesquedescebrira...todo um teseurodeamizadequejáexistiasónamernóriade nósambos,imagensressuscitadasdo passado,novamentebril-hantesde vida, impregnadasde um perfume.cuja melancoliaeu cemeyavaa aprendera cenhecer.

Nestemeie-tempe,meupal faleceu.deixando-nossemumabasesériaparacontinuarmosa vida: uns móveis(quejá dc herdara),restosde iner-cadenasde vendadifícil ou nadarendosa...e peucemais. A ele mesmo,acenteceucuvirmos-Ihefrequentemente:

—NAo nascicern vecayáepararico. Meus filhos, quem veje a estemundosópm combatarcontrao destino...—Cernapontada unhade indi-cadorvoltadaparafora, royavao qucixe,num gestede mAo descreyendoum arcoe desviando-se,por fim, no vago. cernequalpretendiafazer-nescempreendera inutilidadeda luta contraestaentidade,desconhecida,masirresistível.E terminava.son-indo-sccomdesalento:—Antesreinarcontraa mare.

Coitado,trabalheumuite. Falteu-lheurnaerientayáosegurae firmezade pulso.Mas,estáclaro. dissoele nAo teveculpa.

Bu e minhasirmAs acolbeino-nesacasade pessoade familia que,mm-bém,mal pediacernavida. A necessidadeobrigava-meimperiosamentea

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A Iberio Carga/ho A narrativa cabo-vertí/ana, nacional/JaJe e nacionalismo

descobrirum empregee, por aquelaépoca,e trabaihenAo abundavaem SAoVicente.Chegeuaminhavez de deixaraten-ade CabeVerdeparair lengeprocurarvida.

Dei muita volta por estemundo,muita ondame balouyeuno seumo-vimento,eraalterosoe ameayador,erapossante,lento e amigo,passeiporendecenuncaesperarapóro pé. NAo fui feliz, palavra.Porqué?Porfalta demexer-me,por falta de meteracabeyaem todosesburacosendedeseen-fiassequeestariaescondidoo rernédieparaa minhamásede- nAo fol, cerncerteza.Sofri calorde derretere passeifrie de lascara pele.Esquadrinheicidadesde todasas espécies:enormese pequenas,feias,bonitas,pacatasoufebris...mas,qualhistória!Bu eradaquelesquedAo a volta ao mundoe re-gressamcom as mAos vazias.Saciei-mede ver eutrospassar-meá frente,ajuntarcabedais,conquistare seuquinhAo de fe[icidade, maseu?...Tínhanascidoparaser exploradopeíacadelada vida. Tenho a quemsair: nísto(comecm muitasoutrascoisas)seudigno filhe demeupai.

Quandoa caiporame perseguirade mais,quandoaamargurase amen-toavaem meupeitocomea querersufocar-ee eu perguntavaa mim mesmocontraquemme haviade atirar,queteimavacm cebrira minhavida de má-sombra,pensavanumacasinhaquedeixaranumailha quaseignoradadomundo...pensavaem minhaterra.Muita vezme lembreide nháCandinha;e bastavaa sualembranyaparadesfazernegrurase me trazerdo fundodesanos,comeum calmantedivino, a poesiadaminhainfAncia e e frescordasprimeirasimpressoes.

Mas ecaixáoavanyoudo fundoda igrejae apareceuLi podano melo doacempanhamentetodo de negro. A carretaredeunevarnente.A calyadaescaldava;ecortejo,resignado,retemoua marcha—cabeyase costascur-vadasdebaixeda soalbeira—atravessandoeLargo do Madeirale descendepeíaRua do Coco fora. Felizmente,alguns autemóveisaparecerame amaiorpartedesque se reselverarna chegarao cemitériepuderaineneafuar-se neles,cenvicadespelesdonesamigos.Passoupor mim o Filipe Ameri-canoa guiareseu.Nilo levavamais ninguém,aponteiacabeyaLi portinhola.

—6 diabo, tu vaissezinhe,Filipe? Somossó trés.CabemosLi vontadelá dentro.Podemosentrar?

O Filipe volteeacabeqa,centempleeos legaresvazioscomcm recelono olhare inten-ogou:

—Vecésviram eJosezinhoBrito? Ele nAo estáporcá?Foi elequemepedieparatrazero autemóvel...Paraelee paraosfillios.

107 Reciera de FiIaIagía Raoeánir:a Anejos2(11)1.11:85-114

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Alberto Carvallío A narrat/vc¡ cabo—vertíianc,. ,¡ac./onczlitíatíe e nacioncilisnio

-—NAo faz mal. Ainda nAo e vi. Aliás, euconheyeo Josezinho,tanto oumelherdo quetu. Sel queele ézangado.MasnAo tenhasmedo:se elere-clamarecano,salmos.

Juntode rnim, avanyavamdebaixode um chapéu-de-solo CarImbosdoAlto de Miramar e o Norberto,a desfiarum longo segredo.ChameLes.ONorbertoaindaquis terminara suacenfidéncia:

—Pois.olhe, Sr. Carlinhes,se hA alguérna quemele nAo devia fazerurnacosiadestassouce. Porque,olhequeaquelehememme devefavores.NAo é de peuco.Masdeixá-le - o Carlinliestinha um sorrisede distraídabenevelénciano roste.ONorbertocaleu-see instalámo-nes.

A peucadistAncia,quaseá entradada ChA de Cemitério, abria-seumcorte no casarioe a vistaescapava-sepor emavastidáede espay’oaberte,encentravaumapentada Bela-Vista,seguiae vale da PedraRoladacernmanchasde verdepobre que lutavarn por amenizara austeridadecrueldapaisagemde linhasnuas,vestidascor de burel. Ae funde,o MenteVerdetinha o portede um blecemagníficoerigido peía mAo da naturezaparanosdar urnaimpressAode distAncia,de altivez, de eternidade.Urnaaragemen-tree pelas vidrayasdescidase atravessoue cane,deliciosa,inesperada,comese,depeisde correr porentrecamadasde ar quente,tivesseconser-vadoaaderávelfrescuradasaltitudes.Entño,eCarlinhesrecestee-secon-soladamentee disse:

—Homens! Bu nAo seubequemorreua muiherdo Tijinha. Senáe,tenavindeao seuenterre.Disseram-mequeeleestáabatido.

ONorbertocontestouevasivamente:—E natural.Companheirade longos anos...Mas sabe:o Tijinha está

naquelaidadecm quea genteparecequeestápor tudo. Bu nAo o aclieas-sim comedizem. Estátriste.

Desnossoslugaresabrangíamesagoratodaa ChA do Cemitério,compa-rávela urnaplacavermelba,pelada,interrempidano seecurtodesenrelarpc-las colinasda Ribeirade JuliAo, de cm lado,edo cutre,pelo marazul comouna tina de cobalto contornadapeloareal da praiada Galé. Os maciyosdeverduradaRibeirade JuliAe, distinguiamo-loscomeatravésde unacarnadade cintamuitefina. A gentede préstitoavanyavacomocm bandodizimadode caminheirosfugindo a zonastorturadaspor secasmortais.Cern a rever-berayAoda atmosfera,a planicieeoscontornosdesmontespalpitavamnumritmo rápido,constante,quedeixavaavista fatigada.Juntoda cruz,afigurado padrecaminhavaaossaltinhos,cernese fossepessoaatacadadc vertigem.

Constantemente,eautomóvelesban-avacontraa caudado corteje.Ospeñes,eraestugavamo passoeradeixavam-scpararextenuadospelosol, O

Revista e/e Filalogía Rarnánie ce. AnejOs=l)0111:85—114 los

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Alberto Carvalbo A narrativa cabo-vertí/ana, nacional/JaJe e nacionalismo

carromoderava,entile, amarcha,para,depois,sever novamenteobrigadoa acelerar.O Filipe voltou paranósumacara enfastiada.

—E a coisamaischataquepodehaver:acempanharum enterroaestahora. Nuncase sabecomoéqueecarrohá-deir.

De repente,eNorbertogritou:—Lá estáeJosezinhe!Josezinhe!Ó Josezinhe!—Onde?—quis sabero Filipe.Efectivamente,numaaberta,via-seeJesezinho.Lá ia ele,metidocon-

sigo, atirandoosbrayese mastigandoo eternocigarrode cotomuñepisadoe encrestadode nicotina.NAo euviu.

—Deixa-o—disseo Filipe—. Também,já estamosquaseao pé decemitério.

No mesmomomento,porém,o Josezinhevolteeaeabe~apor acasoeavisteeo automóveldo Filipe cernpassageiros.Apreximeu-semal en-sombrado.Semcumprimentar,perguntenao Filipe:

—Vecétem aí lugarparamirn e paraosmeestilbes?A respestaafirmativa,veltou-see seguiesemmaispalavra.—O JosezinhenAo f¡cou satisfeitopor termosaproveitadoeautomóvel

sema sualícenga—comenteiparaosoutros.O Carimbosteve o eu sorrisebenévolo.—Sim...eleé sempreo mesmo.Chegara-seá retundazinhada portado cemitério;semperdade tempo,

algunsamigostranspodaramecaixáeparajunto do coval. la-meadiantando,maseNorberto,quefez-ao último a sairdo automóvel,vinha irritado cernas maneirasdo Josezinhe.

—Pois,ó Cristiane,eu nAo sabiaqueerastAo bern fisionirnista. Efec-tivamente,vistebemna caradaqeelepedayode idiota.Há-desersempreemesmo.Eu, tambérn,nilo me importocomas seascoisas.Se elejulga queme ralo,estámulto enganado.

EntrAmos. O párocojA tinha encomendadoe corpo e passoupor nósapressadamente,seguidodesmeninosde corode sebrepeliz.De pé, sobremontñesde ten-adesdeis ladodo covalescancarade,quatrohemensbai-xararn lentamenteo caixAe. O choredasmulhereselevou-sede nove. Oscoveires,entilo, comeyarama tapara coyacompazadas,que resseavamlAem baixecernum ruido profundo.Nhá Candinhaia ficar debaixodelasparasempre.

Todosnoscurvámesa deixarcair sobrea sepulturao punhadode ten-asacramental.Nisto, demoscerno ManuelDóia queacabavade chegares-baferido.Abria osbrayose interpelava-nosnumasurpresa:

¡09 Ree/sea ele Filología Romeásis u. Anejos2001)1:115-114

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Alberto Carva/ho A narrc¡ti la caí,o—vertíic¡na í¡acioncílicíacle e nac/ona/¡smc)

—O meninos!...Mas quepena! Bu nAo seubede nada.Nhá Candinhamerreuontem.Enterradaboje a estahora..,tAo imprópria! Eu nAo seube.Quaseninguérnsabe.

Como,cerna pressade acabar,ninguémIhe desseatenyio,ernudeceu.Persignou-se,abaixou-separaapanharumapitadade ten-aquedeixoucairsobreo covalja fechadoe foi cennesceapí~esentarsentimentosaeAristidesFerreiraquerepresentavaa familia. OAristides, um rapaznove,despertis-ta, bem langade,recebeuospésamescernelegAnciadesprendida,cemasuacarajuvenil que, mesmoquandoséria,pareciasorrir.

Ao pertAo, osautemóveislargavamcerngranderuido de motores,sol-tandoa fumayaesbranquiyadadostubosdeescapee levantandocerna re-dagemurna largapocira de terra vermelha.Os proprietárioscenvidavamamigos,de longe,comacenosegritos.Vi-am-secestasferradasdc pretedo-brando-sc,enquanteas cabeyasentravamno interior descarros.

Atrasci-me;todososcarrospartirame já nilo encontreiLugar. Regres-sareí apé. Talvezsejamelber.Nhá Candinhajá nosficou no siléncioe noabandonedo camposanto.Querodizer-Iheeúltimo adeusdemeradamente.Fareia caminhadaesfiandoe Ultime novelodasminhasrecordayñes.pen-sandeneladeznoradarnente.Pobie merta,agera.quandoé que veltarei apensarneja?É a nessacondiyáodemertais,nhñCandinha,Li qualvecéjá setinhasubmetidecerna indiferenyadesquerenunciararnatudo antesqueamofle es tornassc:ver a nossavidatornar-senumpontoquesevai apagan-do, peucea peuco,até se esvairde todo nessasubstAnciacinzenta,pegajo-sa - o passado.

Comeé queveltei a estaterra depoisde tantosanosdevida no estran-geiro?E fácil dc explicar. De dia paradia, semquecu dessepor isso,a nos-talgia foi-rne tomandocontado espirite. De repente,a sertemudeudecara,vieram unstempinhosmaisfolgadose entrou-mepeíaportadentrourndi-nheirinhoqueurnapesseajápodiasentirnasmáes.De principio, disseconmigo:«Caramba,Cristiane,agerasim, parecequea vida estáa quererendireitar-se.Aproveitaa maré,moyo!»Mas,depois,umavoz —nAo sei dcquem—,segredeu-me:«Hornem,nem tudena vidabAo-desertristezas.Aolargo o cora~áo,Estásbugedatua terrahA muitosanos.NAo qucirasseres-cravoa existénciainteira. Precisas,também,descansarum peuco.Vai lá verse atua ilha estáno lugar em queadeixaste.»

Depoisde nos habituarmosdurantemuitesanosáquclesmeies.é quesevé como a nossaterra é pequena.Ah! sim: pequenina,deveras.E pobre.

Revista e/e’ Fi/a/agfa Roniánic u. Anclas200111:115-114 110

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Alberto Carvalbo A narrativa cabo-verJiana nacional/tíaJo e nacionalismo

também.Estáclaro,eu sabiaequetinha deixado.Apesardissó,nAo se cal-culacomeestranheiestapequenez,estapobreza,estapasmacewa.NAo an-davaem mim: desadaptado,faltava-meo espayoe e ar.

Mas estemal-estar—igual a todos que sAo provocadospelas limi-tayñesde quenos desacostumamos(senhores!...olhem quea nossaen-grenagemé difícil de cempreender!)—eraacompanhadodaquelacuriosaimpressAede confianya,detranquilidade,queas coisasmuite familiaresou-trera nos vAe dandoeomo tempo.Reconhecemo-lasa peucoe peuce.Ocedo,meuscaros,éque,passadoeprimeirocheque,comecelasentirumencostomais fofo, umaespéciede conforto queme envelvia e retinha,comosealguémme segredasse:«Deixa-teestar.»

Apesardisso,nAo decidirademorar-me.ParanAo estara aborrecer-me, de brayos cruzados,sem fazernada,abri urna lojeca. NAo julguemquesejaagorapor aíurnagrandecoisa.Muite pelocontrárie:éum buracolá paraa Rua da Canecadinha,cernprateleirassalpintadasde castanho,chelasde tudo—garrafasde bebidas,latasde conservasde todaa espécie,artigosde mercearia...—,como o balcAonegrodespingosde petróleo,deazeite,caídosna venda,aepassardasvasilhasparaas garrafastrazidaspe-las criadase pelasrapariguinhasdes arrederes:de Monte, da Salina,daPontade Praia,atravancadade sacosde legumes,de bidñesde óleo, decor-dagenstrazidasdebordee transpodandoconsigoecheiroa convése a altomar. Negoceiocemtudoquantome vempararás miles: femecimentosdeatacadistas,mantimentostransportadosdaseutrasilhaspor badiosde San-tiago,negociantesde SantoAntáo, de SáeNicolau,do Fege;todosesob-jectese todaa trapaihadaqueosnegociantesdebordo, oscontrabandistasda Pentade Praia,cemtudeo queagentee aondaturva e marullientadabaíame engolfamparadentrodo meuestabelecimento.

Fu bernsel... eu bemsei quemultesjá tém criticado:—Bolas! NAo valiaapena!Viajar tanto e vir acabarnumatascadaRua

da Canecadinha.Tristedestino!SAo sempreosmeninosde SAo Vicentecomas suaseternasmaniasde

grandeza.Mas,ó moyos,ealemaboca! E a vida! O mundoé urnabolamaséprecisequese note: roía semsabermoscomo.O sitio da minhaloja é demuite movimento:vai Ji tercomo tudeisto acabará.Tenheum palpitedequea tasquinhade Silo Vicenteme deixarámaisresultadodo quetodasasminhasjornadaspeloestrangeiro!Claro: nAo tenheintenyAode acabarosmeusdiasno Rabode Salina;estoujá a ver a inaugurayiedo meuestabe-lecimentede um diana Ruade Lisboaou na pracinha.O futuro há-deseprenunciar.

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Alberto Carva/ho A narrativa cubo-vertí/ana nacic>naliJatíe e nacionalismo

Em resume:vai-sevivendo.Deixemoscorreremarfim...E sabernquemais?Resolvi nAo sairdaqui. Lá por endeestivehá muita ceisagrandeebonita: já asvi. Jáestousatisfeite.Blasqueesperernpormim. Por enquan-te, parece-meque adquiri e direite de desfiar uns dias - semgrandeza.mascome coraqAeatrabaiharsempressas,no seulugar.

Urnadasprimeiraspessoasporquernperguntei,depoisde chegado,folnhfi Candinha.

—Estáaindapor cá—responderam-me--—.Ultimamente,passeubas-tante incomodada...Uns tempes,vive só na suaantigacasinha.Depois.quandese senteaborrecida,eAbel FerreiravembuscA-lae cia distrai-senacompanhiades meninosdo Abel. Lembras-tequeuhá Candinhagostousemprede erianyas.

E a pessoaquemeinformavacontinuonno divagarde urnarecorda~áode acaso:

—ágorahá peuco,cia teve por aí umas questóescerno JosezinhoBrite.

—-CernJosezinheBrito? Masquetem nháCandinhacerneJosezinhe?—Oh gente.tambémnAo fei nenhumagrandeceisa.Continuamcome

seutratamentoantigo, a Bugénia,a mulherde Jesezinhe,estásemprecmcasade nháCandinha...Eu, até,nAo sei dizerbernquequestAefoi essa.OJesezinheé abusado,teve sempreaquelevelbo feitie de querermandar.NAo é mA pessoa...mas1cmessedefeite.Crejo quefoi o queme centaram:lembras-teda Guidinha,filha do GregórioSena.sobrinhadenbáCandinha,cia, coitada,foi infeliz. Coisasda vida... nAo se pertou bern.O Josezinhoaindaéparentede nbáCandinha.sobrinhede Xalino. Acheu quecia nAodeviarecebera Guidinha,depeisde estater e fliho. Mas nháCandinhare-cusou-seafechar-Ihea porta.Por isse,tiveramurnaszangas...¡rocasdepa-lavras...NAo foi maisnada.

Desciaeu peíaminhavelha rua abaixe,cm urnadasminhasprírneirastardesdc SAo Vicente,quandoreavisteinháCandinha.Urnacriadaajudavaum vulte miudinhode velhaa descervagarosamenteo dcgrauda portadecasínhade outrostempes.A velhinhaassenteu-senumacadeirade yergacolocadano passeio,paratomaresol da tarde.Aproximel-meejámedin-gia paraela, paraabrayarde alma enternecidaa doceamiga.cuja recor-dayáonuncame deixara...Havia tantosanos!...Maspedodela,esbr-ayoscaíram-me.

Era nhá Candinhaqueah estavaassentada?Aquelamurniazinhadcres-te parado,queme fitava cerna indiferengade quemdhaparaevazio? Unípenteaderbrancocaia-lhedesombressópelee esso.Uní lencinho,brance,

Resistesde Ji/alalía Románica. Anejas200! II: 115-114

II?

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Alberto Carvalho A narrativa cabo-vertí/ana naciona/itíaJe e nacionalismo

tapava-Iheos cabelos.As máesescurase magríssimasestavampeusadassobreo regayo,imóveiscornodeislequesfechadosao abandono.

Tudoisso eranad.O queme imobilizou foi o olharvazie,gelado,olhardc almaparalisada,a quemjA poucacoisadestemundointeressva.O aromaadorávelevoiar-see evasodecristal finoperderala.vores,embaciara-se,jAnAo quebravaa luz cm coresirisadas.

DesconfieiquecíanAo me recenheceriase eu parasseparaa cumpri-mentare passeiadiante.De conversa,cm casa,comuniqueias minhasim-pressoes:

—Vi heje.átarde,nháCandinha,quandopassavapeíasuapoda.Nilo acumprimentei,comrecciodequeelanAo se lernbrssede mim. Envelhcceutanto! NAo esperavaencontrá-latAo acabada.

—Oh, sim! —respenderam-me—.JánAo é amesma.E, depeis,está,estátAo desmemoriada!Caiu multo, nAo hA dúvida. Mas tambéní,nháCandinhanAo é nenhumacrianya.Pensaquantesanosestivestefora. Osanosváepassande...

É verdade.NAo se pensanisso.Em minh-a cabegatonta,eu vinhaes-perandoencentrá-laa mesmapessoa.Disparate!Sim!... Falta de pensar.Masé curioso,nAo é verdade?

Depois daquelatarde,quantasvezestenteivenceraminhahesitayáe,ajoelliar-meaospésdenháCandinha,tomar-iheas mAesde essaturafragi-líssima, perguntar-Ihese nAo sc lembravade mim, aviventar-iheremi-niscénciascemum carinheinfinito comequemreanimaum fegequeseex-tingue sufocadopeíacinza. dizer-Ihe e quea su-a lembranyatinha sidoparamim duranteaminh-aauséncia...e eutrastantasme senti detido,inca-pazdevencer~tqueleelhar,quese tinha fechadoparaas luzesdestemundo!

Por fim, evitavacuidadosamentepassarpelasirnediayñesda su-acasa,acessadopor uní recciesingulardequeda, um dia, me reconhecessee mechamassecern a su-a voz de espectroque tivcsseficado a espaihara mn-quietayAenumaestrada...

Em casado Abel Ferreira,custou-mea distinguí-lo, no mcio da suagente—muiher,cunliada, filhos—, na sal-a escura,de janelascuidadosa-mentecerradas.Br-a quaseneeessárioadivinharna sombravultosimóveisesilenciosossobrecadeiras.Bu esperavauma daquelasmanifestayóeses-paihafatosasdo Abel, mas,felizmente,o hememnAo se manifestou.Saiparaa ru-a cernurnasensayAoirreprimívelde alivie, livre, restituidoenfim~tmim mesmoe á minh-a vida. O lenyo passandepeíatesta,pelerestoe in-

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Alberto Carvalbo A ,íarrativa cabo—verclianc,, nc,c’ionc¡litíacle e nc¡cionalismc>

troduzido entreo colarinhee o pesceyoa enxugaro suer:meuscaros,meie-diae meia,aindanAo silo horasde afreuxaro calor; lá para tarde,leva o seutempo.Eu aentrarcm casamete-medebaixodo chuveiro,mudode farpela,ponho-mecm mangasde camisa.

Esperem:andando,andando,reparequeestouLi pertada Celina. Belapequena,podemcrer. Alta, cerno viyo inconfundíveldamocidadee certamaneirade fitar —apupila sorridentemeio escondidapeíapálpebraabai-xada. Claro: tem a su-a cremca. Solicitarnente,já me téní dado infor-mayñes quenAo pedi.Os boatosdanyam-lhea su-a ronda ení terne.Masse formesa dartrela...Peucasese-ap-aminteirarnente.Qual é a mulherquenAo temasu-a crónica?Bsteufazendoa minhavida; precisede unamuiher:estaservía-me...Bati.

Aqui tensurnavisita. De passagem.Mas nAo digasquevenhoespiar-te peucasvezes.Comevai cerpinho?Garrado?- Palestramosuní nadinha.Ela, rindo-seeesquivando-se.Espeda...Veremos.

JA chegueinovamenetáminhii ma. Custeu,caramba!Urnaauténticaes-tafadeira.O Hipólito Almeida,que—é curioso—fei queníme deua noti-cia do falecimentode nháCandinha,iaa atravessara minharua,viu-me edirigiu-seao meuencentro.

—Vecévemda casadoAbel? Eu vou lá agora.Ah!... Nilo estiveparair aeenterre.Nem podia.Bstavadeserviye.Por quediache,tambéní,foraníescoiherumahoratAo imprópria?

Mais unspassos:a casade nháCandinha.Muda. A mofle seleu-lheapena,ajanela,comesócíasabeselar,cema su-a mAo fria, fria e parasem-pre. Mas ládentro,na var-andaenvidrayad,a última flechadc sol agoniza,espectrode eurocoladoá paredequevai perdende~i cer devagar,a peucoepeuce...Com um ruido leve, vinde do outre mundo,o seálherange,nháCandinhaimpeledocementea cadeirade balouyo.De cadavez, a flechadesol contorna-Ihe cabeyanumaauréoladesmaiada.

—Dias há nAo te vi... Ah. já nAo és~íquclemcuamiguinho?Por queéque nAo vieste entcm?Estive ñ tu-a espera...Mas diz: queres-mecheio?...Abre aboca,fechaoseihos...—A voz dc nháCandinhanummurmurio.

Uní riso de crianyaretine,cernaquel-apurezaqueapenasse consenteLivid-ano seudespontar- mascerne timbre comoquelongínque.apagado,porquehA tantosanos...hA tantosanos...».

(ANTÓNIO AuRÉLIo GON~’.ALVES. in Noitede Vento,Caminhe.Lisboa, 1998)

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