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Tese conducente à obtenção do grau de Mestre em Antropologia Cultural
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Cláudia Sofia Santiago Ribeiro Vaz
AAffiinnaall,, qquueemm ssoouu??
A identidade de crianças de origem cabo-verdiana em espaço escolar
Tese conducente à obtenção do grau de Mestre em
Antropologia Cultural
Orientador: Professor Doutor Carlos Diogo Moreira
Universidade Técnica de Lisboa Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas
Lisboa, 2001
ÍNDICE
Prólogo
PREFÁCIO ......................................................................................................... 9
1. Tema e Contextualização do Estudo ........................................................ 14
1.1 Tema ................................................................................................... 14
1.2 Objecto de estudo ............................................................................... 18
1.3 Problema e hipótese de pesquisa ....................................................... 25
2. A “Raça” e a Identidade: Construções Sociais da Realidade .................. 27
2.1 O conceito de “Raça” .......................................................................... 27
2.2 O conceito de “Identidade” .................................................................. 31
3. Métodos e Técnicas .................................................................................. 43
3.1 Pesquisa Bibliográfica ......................................................................... 43
3.2 Pesquisa Etnográfica .......................................................................... 45
3.2.1 Fase Exploratória .......................................................................... 47
3.2.2 A Recolha dos Dados ................................................................... 56
3.3 Tratamento Estatístico dos Dados ...................................................... 62
4. Organização do Trabalho ......................................................................... 64
Parte I. Cabo Verde: Uma terra, muitos homens, um destino .......................... 65
Capítulo 1. Cabo Verde: Terra amada, terra madrasta ................................. 66
Capítulo 2. Hora di Bai .................................................................................. 76
Capítulo 3. Os cabo-verdianos em Portugal ................................................. 87
PARTE II. Os Alunos e a Escola Básica nº5 de Santa Marta de Corroios ..... 100
Capítulo 4. Caracterização dos alunos ....................................................... 102
Capítulo 5. Uma escola Intercultural? ......................................................... 110
PARTE III. Percepções do “Eu” num Espaço Escolar .................................... 117
Capítulo 6. Origem e Nacionalidade ........................................................... 120
Capítulo 7. "Raça" ...................................................................................... 123
Capítulo 8. Redes de amizade .................................................................... 139
Conclusão: Afinal, quem sou eu? ................................................................... 141
BIBLIOGRAFIA .............................................................................................. 144
ANEXOS (outro volume)
ÍNDICE de FIGURAS, QUADROS e GRÁFICOS
Figuras
Figura 1. Primordialismo ou Instrumentalismo? .......................................................... 40
Figura 2. Identidade cultural cabo-verdiana ................................................................ 68
Figura 3. Percurso migratório ...................................................................................... 77
Figura 4. Modelo de “atracção-repulsão” .................................................................... 78
Figura 5. “Cabo Verde” imaginado (nunca visitado) por um aluno de origem cabo-
verdiana. ........................................................................................................... 122
Figura 6. Autoretrato das alunas T. e D. .................................................................. 124
Figura 7. Árvore genealógica e auto-retrato. ............................................................. 125
Figura 8 Desenho da autoria de D., 10 anos de idade, origem santomense. ............ 129
Figura 9. Desenho da autoria de D., 10 anos de idade, origem cabo-verdiana ......... 130
Figura 10. Desenho da autoria de T. ......................................................................... 131
Figura 11. Desenho da autoria de P., 9 anos de idade, origem cabo-verdiana. ........ 133
Figura 12. Desenho da autoria de S., 8 anos de idade, origem cabo-verdiana ......... 134
Figura 13. Desenhos da autoria de P., 9 anos de idade, origem cabo-verdiana e de L.,
10 anos de idade, angolana (de origem santomense). ...................................... 137
Quadros
Quadro 1. A imigração entre 1991 e o final de 1998 ................................................... 17
Quadro 2. Categorias apresentadas aos alunos sob a forma lúdica ........................... 57
Quadro 3. Principais movimentos migratórios cabo-verdianos ................................... 84
Quadro 4. Estimativa do número de cabo-verdianos residentes no estrangeiro .......... 85
Quadro 5. Distribuição regional dos cabo-verdianos que residem em Portugal, pelas
NUTS 2 ............................................................................................................... 88
Quadro 6. Os 20 maiores bairros de cabo-verdianos nos distritos de Lisboa e de
Setúbal ................................................................................................................ 90
Quadro 7. População do Bairro de Santa Marta de Corroios por País de origem ........ 92
Quadro 8. Distribuição etária da população portuguesa e da população cabo-verdiana
a residirem Portugal. ........................................................................................... 93
Quadro 9. Situação profissional dos cabo-verdianos com mais de 14 anos ................ 95
Quadro 10. Habilitações escolares da Comunidade Cabo-verdiana residente em
Portugal por grupos etários (%) .......................................................................... 96
Quadro 11. Repartição da população cabo-verdiana por estado civil e sexo .............. 97
Quadro 12. Famílias clássicas, segundo a sua dimensão e pessoas nas famílias ...... 97
Gráficos
Gráfico 1. Pirâmide etária da população portuguesa e da população cabo- verdiana a
residir em Portugal. ............................................................................................. 94
Gráfico 2. Distribuição dos alunos por sexo e idade ................................................. 104
Gráfico 3. Idade e nacionalidade dos alunos que frequentaram o 3º ano da Escola nº5
de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97. .................................... 106
Gráfico 4. Relação entre a idade dos alunos que frequentaram o 3º ano da Escola nº5
de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a nacionalidade dos seus
pais ................................................................................................................... 106
Gráfico 5. Relação entre a idade dos alunos que frequentaram o 3º ano da Escola nº5
de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a nacionalidade das suas
mães ................................................................................................................. 107
Gráfico 6. Relação entre a idade/nacionalidade dos alunos que frequentaram o 3º ano
da Escola nº5 de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a
nacionalidade dos pais (mãe/pai) dos alunos .................................................... 107
Gráfico 7. Idade e nacionalidade dos alunos que frequentaram o 4º ano da Escola nº5
de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97. .................................... 108
Gráfico 8. Relação entre idade dos alunos que frequentaram o 4º ano da Escola nº5 de
Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a nacionalidade dos seus
pais. .................................................................................................................. 108
Gráfico 9. Relação entre idade dos alunos que frequentaram o 4º ano da Escola nº5 de
Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a nacionalidade das suas
mães. ................................................................................................................ 109
Gráfico 10. Relação entre a idade/nacionalidade dos alunos que frequentaram o 4º
ano da Escola nº5 de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a
nacionalidade dos pais (mãe/pai) dos alunos .................................................... 109
Aos meus filhos Diogo e Duarte
Afinal, quem sou eu?
7
Prólogo
Este trabalho não é de ontem. É um trabalho de hoje, não obstante já ter sido
realizado há algum (pouco) tempo.
Trata de forma original aquilo que somos, não propriamente «o mais fundo de
nós mesmos» (como se no «fundo» de cada pessoa apenas houvesse uma
pertença, uma «verdade profunda», «uma essência»), mas das nossas
trajectórias individuais, das nossas preferências, sensibilidades pessoais,
afinidades, enfim, da nossa vida.
A identidade de qualquer pessoa está constituída por uma infinidade de
elementos que evidentemente não se limitam aos que figuram nos registos
oficiais, ao “documento de identidade”. Elementos constitutivos que se
combinam de forma particular (aí reside a riqueza de cada um, aquilo que faz
que todo o ser humano seja singularmente insubstituível) e incessante: “os
homens são mais filhos do seu tempo do que de seus pais”, dizia Marc Bloch.
A verdade, porém, é que é tremendamente habitual pedir aos nossos
contemporâneos que «afirmem a sua identidade», que resgatem do «fundo» de
si mesmos essa suposta pertença fundamental.
Percebe-se, assim, que os que querem assumir uma identidade mais ampla se
sintam, com frequência, marginalizados.
Esse «exame de identidade» faz-se desde cedo. Logo na primeira infância,
voluntariamente ou não, os próximos modelam-no, conformam-no, inculcam
crenças de família, ritos, atitudes, convenções, língua materna e, claro,
aspirações, temores, preconceitos, rancores junto com sentimentos de
pertença e de não pertença. E logo de seguida, na escola e na rua, produzem
feridas no amor próprio, feridas que estão presentes em cada fase da vida na
atitude para com as pertenças e respectiva hierarquia.
Afinal, quem sou eu?
8
Os jovens do nosso País, com diferentes raízes étnicas e culturais que tornam
mais criativo o tecido cultural nacional, em vez de viverem plenamente essa
experiência enriquecedora e funda e de se sentirem estimulados a afirmar toda
a sua diversidade, vivem, pelo contrário, na perplexidade do «afinal quem sou
eu?».
Por todos os motivos – pela situação actual do País, da Europa, do mundo –
este é um livro que interessa ler.
As eventuais falhas de juventude (e há-as sempre pois cada dia que passa
somos sempre menos jovens e não faríamos nada já exactamente da mesma
maneira que fizemos, como a autora aliás reconhece) são largamente
ultrapassadas pela pertinência e actualidade do tema. Não podemos também
esquecer que além do prazer que esta investigação seguramente deu à sua
autora, o objectivo principal era a obtenção de um grau universitário (o de
Mestre), o qual é fundamentalmente um research degree. E neste sentido, ao
interesse da problemática estudada, vem somar-se a competência e qualidade
no manuseio da utensilagem da metodologia científica, a qual ficou já no tempo
das provas públicas, totalmente demonstrada.
Carlos Diogo Moreira
Afinal, quem sou eu?
9
Prefácio
Este livro trata a questão da identidade das crianças de origem cabo-verdiana
em espaço escolar. Ainda que os dados empíricos tenham sido recolhidos
durante o Ano Lectivo de 1996/97, a temática abordada em Afinal quem sou
eu?, assim como as conclusões a que cheguei, mantém-se actuais.
Há muito que deixou de fazer sentido pensar a sociedade portuguesa para os
portugueses de origem: a confluência de gentes e culturas tem favorecido o
surgir de novas formas de “ser português” e de viver em Portugal.
A escola, enquanto instituição privilegiada de transmissão de conhecimentos,
tem a responsabilidade de integrar e valorizar a diferença nos seus curricula.
Só assim “Narciso pode deixar de achar feio tudo o que não é espelho”1.
Os instrumentos que utilizei para recolher a informação pretendida são um
exemplo de como é possível trabalhar a diversidade na diversidade com
crianças em espaço de aula.
É importante ter presente que estes instrumentos foram pensados para aquela
situação. É assim que deve olhar para eles.
Outro aspecto interessante deste livro é o de conter algumas páginas relativas
ao percurso percorrido. Ainda que não existam fórmulas mágicas, ainda que
não apresente nenhuma tipologia de “Como fazer”, tenho o cuidado de expor e
assumir as alegrias e os sucessos mas também os receios, as dificuldades, os
obstáculos e as estratégias utilizados.
A verdade é que sempre existiu uma certa mística em torno do trabalho de
campo, também designado de método etnográfico (método privilegiado neste
trabalho). O antropólogo não se apresenta simplesmente: “Sou o vosso
1 Referência a Caetano Veloso em Sampa
Afinal, quem sou eu?
10
antropólogo… quando é que posso observá-los, entrevistá-los, entrar em
vossas casas e sentar-me às vossas mesas?”. O trabalho de campo não é
nada que se aprenda a fazer sem fazer. É por isso que a troca de experiências
é tão importante.
Para finalizar e como diria Bordieu, este trabalho, à semelhança de qualquer
outro, deve ser visto como uma tomada de decisões no campo das
possibilidades. Certamente que hoje a minha abordagem e o meu desempenho
seriam outros… o que nem é estranho nem invalida o que foi feito.
Cláudia Vaz
Afinal, quem sou eu?
11
Agradecimentos
Este trabalho é fruto da interacção de “dois olhares”: a construção que os
outros fazem de uma realidade que é a sua e a minha interpretação dessa
mesma realidade.
O meu propósito foi o de averiguar de que forma é que as crianças com
ascendência cabo-verdiana percepcionam o seu “eu” face ao “nós” e o “nós”
face aos “outros”, face ao seu negativo.
Mas se o real do adulto não é o real dos adultos, mais dificilmente o real da
criança corresponderá ao real do adulto. Era imperioso transpor também esta
fronteira geracional.
É por esta razão que optei por técnicas que me possibilitassem uma efectiva
aproximação ao mundo infantil. Qual é a criança que não gosta de ouvir e
contar histórias, desenhar ou jogar?
Aquilo que escrevo, ainda que possa ser entendido como ficção, não é produto
da minha imaginação. É antes uma interpretação de variadíssimos “textos”, que
mais não são que o fruto de múltiplos itinerários de vida.
Este trabalho, embora escrito na primeira pessoa do singular, é o resultado de
uma convergência de vidas, de opiniões e de conversas. Do germinar da ideia
à presente fase, muitas alegrias e dissabores foram confessados e
compartilhados, muitas palavras professadas, muitas reflexões induzidas.
Tenho agora a oportunidade de, publicamente, agradecer a todos aqueles que,
de alguma forma, participaram nesta encruzilhada.
Um agradecimento muito especial aos meus pais (em especial à minha mãe,
por ser como é), aos meus irmãos (sobretudo à “sempre prestável” Mónica), ao
Afinal, quem sou eu?
12
meu marido (pelo apoio e compreensão incondicionais), à minha avó Beatriz
(apesar da sua avançada idade ajudou-me numa altura em que tudo parecia
ser muito complicado, quando o meu filho nasceu) e à minha sogra (uma
grande amiga, que em muito facilitou o meu papel de mãe e de dona de casa).
Não julgue o leitor que eu poderia ou deveria ter-me escusado a estes
agradecimentos. Tenho a perfeita consciência de que sem estas pessoas, sem
a minha família, não o teria conseguido. Foi uma grande conjugação de
esforços e, também por isso, estar-lhes-ei sempre grata.
Agradeço igualmente à Câmara Municipal do Seixal que, na figura da Drª Maria
João e do então Vereador da Cultura (Exmo Sr. Alfredo Monteiro), sempre me
apoiou.
A todos os professores, pessoal auxiliar e, muito especialmente, às “minhas
crianças” da Escola Básica nº5 de Santa Marta de Corroios.
Aos meus amigos de Cabo Verde, sobretudo ao José2 e à sua família (que
estão sempre no meu coração).
Um agradecimento muito especial à Drª Elsa Peralta pelas intermináveis
conversas, leituras atentas e observações preciosas.
À Drª Helena Rodrigues e à Profª Ana Maria Amaro por me terem ouvido e
apoiado em momentos menos simpáticos.
À Profª (e amiga) Celeste Quintino pela sua disponibilidade e, sobretudo, pela
sua sinceridade.
Ao Prof. Pereira Neto por me ter dispensado de algumas aulas para que eu
finalizasse a dissertação.
2 Por forma a salvaguardar o anonimato dos meus informadores e do meu objecto de estudo,
apresento-os equanto personagens etnográficas.
Afinal, quem sou eu?
13
Ao Prof. Carlos Diogo Moreira, meu Mestre e orientador, pelo seu espírito
crítico.
A todos, muito obrigada.
Afinal, quem sou eu?
14
INTRODUÇÃO
1. Tema e Contextualização do Estudo
1.1 Tema
O tema desta dissertação é a identidade das crianças cabo-verdianas que
frequentaram o 3º e o 4º Ano da Escola Básica nº5 de Santa Marta de Corroios
no ano lectivo de 96/97.
A eleição do tema propriamente dito, deve-se a razões de várias ordens: i)
actualidade e urgência dos fenómenos vinculados ao contacto de culturas; ii)
possibilidade de acesso às fontes; iii) elevada representatividade da minoria
cabo-verdiana no espaço português; iv) curiosidade científica.
Relativamente a este último aspecto, razões de curiosidade científica, não
posso deixar de fazer uma breve referência à influência que exerceu sobre mim
a seguinte declaração de Bogardus:
"Pensava que era americano. Tinha ideais americanos, lutaria pela América,
venerava Washington e Lincoln. Depois, no liceu, descobri que me chamavam
"Jap", tratavam-me mal e punham-me de lado. Afirmei que não conhecia o
Japão, não sabia falar a língua nem conhecia heróis ou a história do Japão.
Contudo, diziam-me constantemente que eu não era americano e não podia
votar. Sinto-me profundamente triste. Não sou japonês e não me é permitido
ser americano. Pode dizer-me, ao fim de contas, aquilo que sou?" (Bogdan et
al. 1994:28).
Em muito poucas linhas, o autor consegue transmitir toda a problemática
inerente à identidade da descendência dos migrantes. Afinal de contas, com
quem é que se identificam? Com o país de origem de seus pais e avós? Com
Afinal, quem sou eu?
15
o país que os acolheu? Com ambos os espaços e culturas? Com uma nova
cultura, uma cultura inventada? Sentir-se-ão «filhos de nenhures»? Afinal de
contas, quem são estas pessoas?
A minha abordagem assenta no pressuposto de que a identidade e a cultura
são alvo de contínuas negociações e manipulações. À luz do modelo
construcionista veremos que estas crianças de origem e/ou nacionalidade
cabo-verdianas inventam e reinventam a sua identidade.
É sobretudo a partir do Século XVIII, com o impulso do Iluminismo, que o
estudo do Outro, passa a constituir uma prática corrente. O selvagem, aquele
que não tem nem rei nem roque, é agora integrado numa tipologia evolutiva
das sociedades. Olhando para o homem primitivo, o civilizado vê-se como num
espelho. "É sempre o outro que, pelas diferenças que lhe reconheço, me
permite construir uma imagem de mim próprio. É ele a testemunha
indispensável, invariavelmente convidada, dos meus actos, do meu papel, do
meu estatuto e da minha existência. No momento que desaparece do meu
horizonte é também a minha própria imagem que se desvanece, como se ele a
transportasse na sua fuga” (Gomes da Silva, 1989:55).
A este respeito, Sokefeld (1999) afirma que a imagem do europeu tem
constituído o ponto de partida para a caracterização do Outro, geralmente
descrito enquanto o seu oposto, ou seja, desintegrado, dependente, incapaz de
se colocar à parte dos outros (sociocentrismo), incapaz de distinguir o indivíduo
do seu papel ou status e inapto a perseguir os seus próprios objectivos
(independentes do grupo ou comunidade).
Neste âmbito, a imagem do Outro não é mais que a inversão da nossa própria
imagem. “O tratamento do outro não é senão uma maneira indirecta ou
negativa de pensar o mesmo, o idêntico” (Augé, 1999:23).
Afinal, quem sou eu?
16
Sendo a heterogeneidade de gentes e culturas uma das principais
características do tecido social europeu nesta transição do milénio, não é de
admirar a tenacidade da reflexão sobre a diferença e semelhança.
Vejamos o que se passou após a Segunda Guerra Mundial. A Europa tinha
urgência de mão-de-obra estrangeira que auxiliasse a sua reconstrução, pelo
que a década de 50 assistiu a um acentuado movimento migratório.
Tradicionalmente os países do sul europeu caracterizavam-se por serem
países emissores de trabalhadores, enquanto que os principais estados
industrializados do centro e norte do continente constituíam os principais
países receptores (Rocha-Trindade, 1995).
Portugal, desde a referida década, tem vindo a participar neste movimento de
migração para os países europeus. Muito típico deste período foi o fluxo
migratório dos portugueses para França que atingiu níveis anuais nunca dantes
alcançados (em 1962 seriam cerca de 50 mil; em 1968, apenas quatro anos
volvidos, já seriam cerca de 300 mil e, em 1972, já se encontravam em França
cerca de 700 mil portugueses)3.
Na década seguinte, sobretudo como consequência da Guerra em África, o
nosso país tem urgência de mão-de-obra. É então que os cabo-verdianos
começam a afluir a Portugal. De país de emigrantes, passamos a fazer parte
do bloco de países receptores de mão-de-obra.
Como se pode observar pela leitura do gráfico nº1 (página seguinte), Portugal
tem, de facto, participado neste movimento de confluência de pluralidades.
Repare que segundo os dados do SEF, a percentagem de africanos
legalizados em Portugal é bastante superior ao dos outros migrantes
(efectivamente, 44% dos migrantes legalizados em Portugal são originários dos
PALOP).
3 Sobre a questão da imigração portuguesa em França na década de 60, ver Barata (1974).
Afinal, quem sou eu?
17
Para além das razões já apontadas para esta convergência de “vidas tão
distintas”, convém ainda referir o regresso de emigrantes, o retorno de
residentes das ex-colónias, a adesão de Portugal à União Europeia
(nomeadamente com a abolição de fronteiras), a instabilidade no Brasil e a
queda do bloco soviético4.
Gráfico 1 A população migrante em Portugal
Fonte: SEF, Divisão de Planeamento, Dez. 1998
É importante referir que os estudos em meio urbano beneficiam da
consciencialização generalizada de que os bairros e as suas gentes são parte
integrante de um sistema amplo e complexo. É nesta acepção que Pujadas
sustenta que “nem a complexidade dos processos culturais estudados nem a
complexidade epistemológica da Antropologia permitem uma prática
antropológica baseada exclusivamente em reconstruções miniaturistas de
universos isolados” 5(Pujadas, 1996:251).
4 Relativamente a estes dois últimos motivos, é um facto que o número de migrantes brasileiros
e dos Países de Leste em Portugal tem vindo a aumentar consideravelmente.
5 Foram os trabalhos levados a cabo por autores como Wilson, Mitchell, Epstein, Powdermaker,
Mangin, Harries-Jones, entre outros investigadores da Universidade de Manchester, que
Europeus (CEE/EU)
Europeus (outros)
Africanos (PALOP)
Africanos (outros)
América (EUA e
Canadá)América Latina
(Hispânica)América Latina (Brasil)
Ásia
Oceânia
Afinal, quem sou eu?
18
Esta forma de entender a sociedade de informação em que vivemos,
simultaneamente flexível e difusa (Castells, 1996) tem propiciado a emergência
de unidades de análise distintas, nomeadamente as classes sociais (média e
alta), os novos actores sociais (elites económicas, refugiados, mão de obra
procedente dos países tecnologicamente menos desenvolvidos, turistas, etc), a
identidade com as suas constantes redefinições e a organização social em
torno da noção de redes6.
Assim, a questão da identidade, entendida enquanto uma estratégia de
sobrevivência num meio social mutável e dinâmico, constitui um aspecto
central da análise antropológica.
1.2 Objecto de estudo
Como já foi mencionado, este trabalho incide sobre a identidade das crianças
cabo-verdianas que frequentaram a Escola Básica nº5 de Santa Marta de
Corroios no Ano Lectivo de 1996/97.
A escolha de uma escola, enquanto espaço de investigação, deve-se a uma
razão muito concreta: a escola, sendo um espaço pluri-rácico e pluri-étnico,
reflecte a nossa realidade social, na medida em que ela própria se define
enquanto um espaço de confluência de culturas. "A escola é o microcosmos da
sociedade, reflecte por isso os movimentos e características da sociedade"
(Pinto, 1993:12).
Todas as sociedades desenvolvem um conjunto de códigos de comunicação
específicos, construídos a partir de experiências históricas concretas. Na
medida em que estes esquemas culturais básicos não se perpetuam por si
possibilitaram uma nova abordagem do Outro, promovendo o desenvolvimento de uma nova área da antropologia designada por Antropologia Urbana. 6 Sobre a Antropologia em espaço urbano (dos trabalhos pioneiros à actualidade), veja Pujadas
(1996).
Afinal, quem sou eu?
19
mesmos, a continuidade de um sistema social depende da sua capacidade de
transmitir todo um conjunto de valores, hábitos e normas de uma determinada
geração à seguinte.
Ruth Benedict, Margaret Mead e Kardiner são alguns dos antropólogos da
Escola da Cultura e Personalidade que se propuseram verificar a influência das
diferentes técnicas de enculturação na configuração da personalidade das
crianças em sociedades distintas.
“Na verdade, foi o trabalho desta pesquisadora (Mead) e de seus discípulos
que trouxe a criança para dentro dos limites da reflexão antropológica,
conjugada com os estudos psicológicos sobre personalidade, tão efervescentes
e comuns nessa época. Não foi por mero acaso que, para além da produção
científica marcadamente antropológica, Mead escreveu artigos para o
Handbook of Child Psychology (1931) e para o Manual of Child Psychology
(1954). (...) Consegue, entre outras coisas, e com base em extensa etnografia,
demonstrar que conhecer profundamente o período da infância numa
sociedade é fundamental para se conhecer a etapa seguinte – a adolescência
– e o funcionamento geral da sociedade” (Nunes, 1999:39).
É sabido que uma das funções da família é a enculturação. No entanto, face à
complexificação das sociedades industrializadas, esta função básica tem sido
atribuída a instituições especializadas que assumem a tarefa de ministrar os
conhecimentos socialmente significativos.
Sociólogos como Durkheim, Parsons (1959) e Dreeben (1968) interessaram-se
pela relação entre a escola e a sociedade, considerando positiva a coincidência
de objectivos entre ambas.
É de salientar que até à década de 70 a maioria dos trabalhos realizados nesta
área centram o seu interesse nos resultados dos processos de reprodução
social. Só a partir dos trabalhos de Young é que os investigadores passam dos
modelos macro para os modelos micro (“etnografia de aula”). Hoje, em virtude
Afinal, quem sou eu?
20
da convivência de singularidades, o tema dos conflitos interétnicos tem
suplantado o tema clássico da cultura7.
De facto, até aos anos 50, altura em que se assiste à democratização do
ensino, a escola foi concebida como um espaço no qual os alunos poderiam
revelar as suas capacidades. Era-lhes então exigido que assimilassem as
mesmas regras e valores, ou seja, o nível de exigência era o mesmo para
todos os alunos, independentemente da sua origem sociocultural. Não foi por
acaso que nesta época proliferaram variadíssimos estudos concernentes à
inteligência e à sua relação com o sucesso escolar8.
No entanto, os testes de inteligência criados traduziam a cultura ocidental das
classes sociais média e alta. Consequentemente, todas aquelas crianças que
não fossem brancas e que pertencessem a classes desfavorecidas, facilmente
seriam consideradas intelectualmente inferiores e destituídas de quaisquer
capacidades intelectuais.
A constatação das desigualdades no êxito escolar não vem comprometer o
projecto de uma escola igualitária: o darwinismo social explica cientificamente a
razão das diferenças que não são mais que o reflexo da assimetria de dons e
talentos entre crianças e entre grupos sociais.
“A escola surge assim, desde o seu início, como lugar de eleição para o debate
ancestral sobre a natureza da desigualdade entre os homens: a educação é
determinante nas desigualdades sociais e a escola pode combatê-las; os
homens não nascem iguais e a educação não pode fazer superar essas
desigualdades” (Valentim, 1997:26).
Nos anos 60, a vasta produção de trabalhos científicos, designadamente na
área da antropologia, da sociologia, da psicologia e da biologia, vem acentuar a
necessidade de estabelecer fronteiras entre natureza e cultura, ou seja, entre
7 Sobre a Antropologia da Educação, veja-se Juliano, 1996.
8Sobre a evolução da Escola e das políticas educativas veja-se Valentim (1997)
Afinal, quem sou eu?
21
hereditariedade e meio. A Escola, enquanto instituição responsável pela
transmissão de conhecimentos, não pode ficar alheia a estes novos saberes.
Os trabalhos sobre as “reservas de talentos”, jovens de origem social modesta
que, apesar de demonstrarem grandes capacidades intelectuais, não
prosseguiam os seus estudos, integram um outro corpo de pesquisas levado a
cabo nesta época da “grande aposta” no capital humano (partia-se do
pressuposto de que os países que melhor explorassem essa reserva de
talentos teriam maiores probabilidades de sucesso económico).
Nesta época, vão então ser realizados grandes estudos com o objectivo de
quantificar as taxas de insucesso escolar e conhecer as razões que lhe podiam
estar subjacentes. Estas análises, sobretudo as que tiveram lugar nos Estados
Unidos da América e na Grã-Bretanha, foram incisivas no incremento das
políticas educativas.
O Relatório de Coleman, realizado em 1965 no seguimento de um pedido feito
pelo Congresso Americano, é uma referência obrigatória na história da
educação escolar.
As principais conclusões deste estudo, o qual compreendeu mais de 600 000
alunos frequentando mais de 4000 escolas de 11 regiões, dos 1º, 3º, 6º, 9º e
12º anos de escolaridade, são as seguintes: a escolaridade tende a manter ou
mesmo a acentuar as assimetrias entre diferentes grupos sociais e verifica-se
uma maior variância intra-escola do que interescolas («a escola não faz a
diferença»).
As principais críticas tecidas a propósito deste estudo e de outros similares
(nomeadamente, o Relatório de Plowden, 1967), são, por um lado, o ter
observado a escola como uma mera “caixa negra” de entradas e saídas e, por
outro, o ter-se baseado na análise de um único indicador de sucesso (o
domínio da língua).
Afinal, quem sou eu?
22
É neste contexto que se vão desenvolver as teorias sobre a privação cultural,
as quais explicam as desigualdades no sucesso escolar com base na influência
do meio sociocultural no qual a criança é enculturada.
Debatendo-se contra as ideias vigentes na época de que o Q.I é um atributo
herdado e imutável (mas não refutando a hipótese de que a desigualdade está
associada à classe social), Bernstein destaca, precisamente, a importância das
capacidades linguísticas: crianças de origens sociais diversas desenvolvem
códigos e discursos diferentes no começo da sua vida, que vão afectar as suas
experiências escolares posteriores.
Este autor afirma que entre a escola e a comunidade a que pertencem alguns
alunos pode existir uma descontinuidade cultural, baseada em dois sistemas de
comunicação em tudo diferentes: o da família / comunidade e o da escola e
então procede à distinção entre código restrito e código elaborado. Um código
restrito é um tipo de discurso inerente a uma comunidade de classe baixa,
sendo a forma de comunicar mais apropriada para a discussão de ideias
práticas do que de ideias abstractas (como o código elaborado).
“Um código restrito aparece sempre que a forma de relação social se baseia
em identificações e numa larga gama de expectativas intimamente partilhadas,
em pressupostos comuns. Ele emerge, pois, numa cultura ou sub-cultura que
privilegia o nós sobre o eu. (...) O uso de um código restrito cria a solidariedade
social em detrimento da elaboração verbal da experiência individual e essa
integração social aponta para a solidariedade mecânica” (Domingos, 1985:65).
Deste modelo decorre, quase que automaticamente, uma lógica de intervenção
educativa: se as diferenças no sucesso escolar se devem a desigualdades no
acesso à cultura e ao código linguístico próprio da escola, e não a uma
característica geneticamente herdada, então é possível elaborar estratégias
educativas que compensem ou mesmo anulem essas discrepâncias
socioculturais.
Afinal, quem sou eu?
23
É este o raciocínio que está na base do desenvolvimento de políticas de
educação compensatória. No entanto, o “dar mais do mesmo” às crianças com
lacunas socioculturais acabou por revelar-se infrutífero: os alunos que
apresentavam dificuldades e que, por isso, eram submetidos a um maior
número de horas de aulas, não apresentavam, na maioria dos casos, melhorias
significativas.
Estes resultados devem-se essencialmente ao facto de que, a partir do
momento em que os alunos que são objecto destas “terapias” têm uma auto-
imagem negativa, as horas a mais de ensino dificilmente poderão reverter este
sentimento e, consequentemente, esta situação.
A educação compensatória é apontada por Verne (1987) como uma espécie de
momento zero da educação intercultural. Assim, num primeiro momento e face
à resistência dos grupos minoritários em adoptar a língua do país receptor, foi
implementada uma educação bilingue. Um segundo momento seria já
caracterizado pelo reconhecimento da especificidade dessas culturas visando a
sua preservação (a este momento corresponde a designação de multicultural).
Finalmente, numa terceira fase, valoriza-se a diferença. Estamos, então, na
presença de uma política educativa intercultural.
Comum a todas estas fases é a consciencialização da coexistência de diversas
tradições culturais num mesmo território. A divergência manifesta-se na forma
de olhar essa diferença, traduzindo-se em políticas educativas díspares.
Se num primeiro momento a pluralidade auferiu visibilidade, num segundo
momento havia que demonstrar o respeito por essa diversidade e a vontade de
construir uma sociedade mais comunicativa. No entanto, este discurso
concebido para superar o «etnocentrismo da tribo branca» funcionou, em nome
de um «fundamentalismo cultural», para legitimar práticas segregadoras
(Juliano, 1996:283). A inserção dos “filhos da diáspora” no sistema educativo,
assim como a valorização das suas especificidades, não passa pela simples
transmissão da cultura de origem.
Afinal, quem sou eu?
24
A política educativa intercultural surge, então, associada ao sonho de uma
escola em perfeita consonância com o hibridismo característico das sociedades
actuais.
De acordo com Camillieri (1993) são duas as condições necessárias para que
se verifique o interculturalismo: i) não se proceder a uma hierarquização de
culturas e costumes, mas atribuir-lhes uma mesma legitimidade; ii) aceitação
do mínimo de representações e valores comuns que permitam a emergência
de um grupo.
Por forma a clarificar esta segunda condição, o autor acima citado apresenta o
seguinte caso passado numa sala de aula:
"Um professor apercebeu-se de que uma aluna inuit tinha por hábito copiar os
trabalhos dos seus colegas. No entanto, resolveu não intervir, julgando que a
atitude da aluna estava conforme à cultura do seu grupo: a prática do
comunitarismo" (Camillieri, 1993:37).
Levanta-se, então, a seguinte questão: "E se houvesse um verdadeiro conflito
de valores importantes, como proceder?"
À pergunta: "Deve a escola, enquanto instituição social de um grupo
maioritário, atender e fomentar os traços culturais próprios dos membros de
grupos minoritários?", Sierra (1992:30-31) responde que a escola, ainda que
promova a cultura da maioria, não deveria impedir a devida consideração das
outras culturas minoritárias no curriculum que veícula.
A escola deveria atender cuidadosamente às diferenças culturais dos seus
alunos, não só por razões axiológicas ou sociais, mas porque, não o fazendo,
estará seguramente a pôr em causa o êxito educativo de muitas crianças de
grupos minoritários: "Sentados nos mesmos bancos, na mesma aula, diante do
Afinal, quem sou eu?
25
mesmo quadro e do mesmo professor, os alunos, todavia não estão num plano
de igualdade" (Valérien, 1990).
1.3 Problema e hipótese de pesquisa
O meu problema de pesquisa foi, então, formulado do seguinte modo: de que
forma é que as crianças com ascendência cabo-verdiana se percepcionam?,
ou melhor, qual é efectivamente a importância que estas crianças atribuem às
variáveis “raça” e etnia na formação da sua identidade ?
A hipótese central deste trabalho é a de que a “raça” e a etnia são variáveis
primaciais na percepção da identidade das crianças cabo-verdianas que
frequentam a Escola nº5 de Santa Marta de Corroios. A confluência de
singularidades nesse espaço vem acentuar as diferenças. A sua identidade
resulta deste jogo contínuo de negociações entre o "eu" e o "nós" e entre o
"nós" e o "outro".
Neste trabalho são dois os “olhares” privilegiados: o das crianças e o meu, uma
antropóloga “condenada a vaguear para sempre entre duas modalidades de
percepção do mundo” (Gomes da Silva, 1994:50).
A interpretação que faço dessa realidade é, então, uma construção derivada da
percepção do outro, o que não significa que aquilo que descrevo seja o outro. É
neste sentido que Geertz afirma que “as descrições da cultura dos berberes,
judeus e franceses devem ser compreendidas em termos das construções que
nós imaginamos que os berberes, judeus e franceses fazem da realidade, a
fórmula que usam para definirem o seu mundo. Agora essas descrições, só por
si, não são os berberes, os judeus ou os franceses. (...) são construções
antropológicas” (Geertz,1993:15).
Mas, antes de mais, há que proceder à reflexão dos conceitos-chave deste
trabalho, nomeadamente, “raça” e identidade étnica.
Afinal, quem sou eu?
26
Afinal, quem sou eu?
27
2. A “Raça” e a Identidade: Construções Sociais da Realidade
2.1 O conceito de “Raça”
Antes de mais, importa referir que, neste trabalho, o conceito de “raça” é
meramente utilizado enquanto uma variável sociológica (à semelhança de
outras variáveis como idade, sexo e género).
“Apesar das inconsistências que se poderão apontar às análises que se
fundamentam no conceito de raça e das falácias que derivam do seu estatuto
analítico, os dados empíricos parecem revelar que a raça é uma variável
sociológica pertinente” (Quintino, 1999:55).
Também Valentim afirma que, “(...) apesar de o conceito de raça ser
desprovido de sentido em termos biológicos quando aplicado à espécie
humana, o seu papel, quer nos processos identitários, quer nos processos de
discriminação e exclusão, pode justificar a sua utilização, como tem vindo a ser
defendido, particularmente por autores anglo-saxónicos. (...) é claramente uma
construção social, um facto sociológico, uma representação social (...)”
(Valentim, 1997:91).
Blakemore et al. (1996) chamam a atenção para a circunstância de, muitas
vezes, se utilizarem indiscriminadamente os conceitos de “raça” e “etnicidade”.
No entanto, estes dois termos não dizem respeito ao mesmo fenómeno: o
primeiro baseia-se na percepção da diferença física, sendo apenas um
reducionismo biológico, ao passo que o segundo traduz a percepção de um
elemento cultural e identitário.
Também Cornell et al. (1997), entendem o conceito de “raça” enquanto uma
construção social: quer a designação daquilo que constitui uma “raça”, quer a
forma como reconhecemos as diferenças “raciais”, são determinadas
culturalmente, ou seja, ao atribuirmos um sentido a uma série de
características físicas, estamos a criar as “raças”.
Afinal, quem sou eu?
28
Ainda no século XIX, a noção de “raça” reflectia a percepção da diferença
biológica, cultural e intelectual do Outro. Com base neste conceito, as
populações eram catalogadas em diferentes “raças” ou “stocks”
(nomeadamente, Caucasóide, Mongolóide e Negróide) e, de acordo com essa
catalogação, eram consideradas intelectual e culturalmente superiores /
inferiores. Verifica-se, então, uma tendência para hierarquizar a sociedade
humana com base no fenótipo.
Nessa época, a maioria dos povos não europeus eram considerados
«bárbaros» e «primitiva». "As diferenças entre os humanos pareciam tão
extremas que a humanidade (e modernidade) dalguns grupos de seres vivos
mal era crível. A sua diversidade causava tanto espanto e provocava tanto
abanar de cabeças incrédulas como a presença de montanhas com os cumes
cobertos de neve no equador africano. O espectro total da aparência e do
comportamento humanos era como um enorme continente em que apenas uma
das costas parecia familiar à maior parte dos europeus" (Shipman, 1996:18).
Influenciados pela obra "A Origem das Espécies" de Darwin (publicada em
1859), os cientistas do século XIX acreditavam que, da mesma forma que era
possível seleccionar determinadas características em animais e plantas por
forma a produzir espécimes superiores, também entre os seres humanos seria
praticável proceder à criação de uma casta de homens e mulheres dotados.
Neste âmbito, surgem inúmeros trabalhos científicos publicados com o
objectivo de reforçar esta ideia da transmissibilidade genética da inteligência,
tais como “O Génio Hereditário”, de Galton (1869), "A Família Jukes", da
autoria de Dugdale (1877) e "A Família Kallikak: Estudo sobre a
Hereditariedade da Imbecilidade", de Goddard.
Preocupados com o facto de a taxa de natalidade entre as classes mais baixas
ser mais elevada que entre as classes superiores, os intelectuais do final do
século XIX e princípios do século XX temiam estar a presenciar um «suicídio
Afinal, quem sou eu?
29
racial». É neste clima que floresce e se desenvolve a política eugénica que
conduziria, em última análise, ao aperfeiçoamento da humanidade.
De facto, "(...) esta palavra (raça) foi durante muito tempo erroneamente
utilizada para explicar inúmeros aspectos da vida social, tendo sido
especialmente aplicada a colectividades nacionais, religiosas, geográficas ou
culturais. Assim, foram classificadas como sendo raças alguns povos, como os
Ingleses, Franceses e Portugueses, classificação essa que também chegou a
ser aplicada a grupos religiosos como os Muçulmanos e os Judeus (...)" (Neto,
1963:5).
Hoje, o conceito de raça não é entendido enquanto sinónimo de identidade
étnica ou nacional9. Ainda segundo o autor acima citado, "duma maneira geral,
pode dizer-se que ficou reconhecido que não se pode estabelecer uma
classificação sobre caracteres puramente físicos e fisiológicos; que não pode
provar-se que os grupos humanos diferem uns dos outros por traços
psicologicamente inatos (...)" (Neto, 1963:8) e, como já foi referido, é evidente
que este conceito se limita a traduzir a percepção de diferenças biológicas sem
qualquer implicação de outra natureza.
É, pois, neste sentido que, ao longo do trabalho, faço menção a crianças
brancas e a crianças negras, ou seja, crianças que apresentam uma
baixa/elevada concentração de melanina, respectivamente.
Apesar das óbvias dificuldades inerentes à utilização deste conceito,
interessava-me saber de que forma estas crianças percepcionam a sua cor da
pele, ou seja, se elas se vêem enquanto brancas/negras e qual a importância
desta variável para a sua identidade. É por esta razão que não hesitei em
classificá-las desta forma.
9 É importante referir que os conceitos de identidade étnica e nacionalismo, embora relacionados, não
traduzem a mesma realidade (ainda que em grego o termo ethnos signifique nação). São sobretudo as questões da soberania e da auto-determinação que os distinguem (ver Cornell et al. 1997).
Afinal, quem sou eu?
30
Para além destas duas categorias (branco/negro), utilizo ainda uma terceira, a
de mestiço. A este respeito, é importante tecer algumas considerações. À
priori, a minha ideia foi a de, através da mera observação visual, classificar
individualmente as crianças enquanto brancas ou negras. No entanto, durante
uma sessão de trabalho e antes de aplicar os respectivos testes, apercebi-me
de que três das “minhas” oitenta crianças não se consideravam nem brancas
nem negras, mas sim mestiças. Atendendo a que privilegio a abordagem emic,
optei por ter em atenção também esta variável.
A este propósito, Les Back (1996) chama a atenção para a complexidade da
categorização social. Um dos temas emergentes em algumas das entrevistas
que realizou a mais de 200 jovens de diversas origens e com idades
compreendidas entre os 11 e os 25 anos e tendo em conta o ponto de vista do
observador, é o de que a negritude não é exclusivamente definida em termos
fenotípicos, mas sim em termos de sentimento de pertença a um dado grupo.
Alguns dos jovens por si entrevistados afirmam que, apesar de a sua pele ser
branca, não se percepcionam enquanto brancos mas sim enquanto negros: a
sua maneira de andar, de falar, de vestir, a música que ouvem, são
características da cultura negra.
O reconhecimento de um grupo com base no fenótipo é um dos critérios que
permite o reconhecimento de uma minoria10. Os outros critérios que definem
uma minoria são: critério da territorialidade ou língua e religião; critério
económico e político e critério cultural (ver Quintino, 1999).
Um outro conceito-chave deste trabalho de investigação é o conceito
antropológico de identidade.
10
Neste trabalho, quando me refiro aos cabo-verdianos enquanto uma minoria, não o faço com base na mera constatação da sua inferioridade numérica, mas sim, com base "no resultado de uma relação de poder que se estabelece entre a sociedade receptora (dominante) e comunidade imigrante (dominada)" (Saint-Maurice, 1997:2), ou seja, numa posição de desvantagem económica, política, cultural, social, educacional, etc, deste grupo face à restante população
Afinal, quem sou eu?
31
2.2 O conceito de “Identidade”
A ideia de identidade é intrínseca à própria natureza humana: não há nenhum
momento em que não pensemos em nós em termos de semelhanças e
diferenças em relação aos outros. A própria percepção que temos do nosso ser
é espelhada pela percepção que os outros têm de nós.
O «Bilhete de Identidade» é um cartão que permite a identificação de um
indivíduo com base numa série de índices, nomeadamente o nome completo, a
data e lugar de nascimento, a assinatura, a fotografia, certos traços físicos
(como a altura) e a impressão digital.
No entanto, a identidade de uma pessoa não se limita a estes elementos que
figuram nos registos oficiais. "Existe, claro, para a maior parte das pessoas, a
tradição religiosa; a uma nacionalidade, por vezes a duas; a um grupo étnico
ou linguístico; a uma família mais ou menos alargada; a uma profissão; a uma
instituição; a um determinado meio social... Mas a lista é bem mais extensa,
virtualmente ilimitada; pode sentir-se uma pertença mais ou menos forte a uma
província, a uma aldeia, a um bairro, a um clã, a uma equipa desportiva ou
profissional, a um grupo de amigos, a uma empresa, a um partido, a uma
associação, a uma comunidade de pessoas que partilham as mesmas paixões,
as mesmas preferências sexuais, as mesmas diminuições físicas, ou que se
acham confrontadas com os mesmos problemas" (Maalouf, 1999:18-19).
De uma forma genérica, dizemos que um indivíduo se identifica com outro
indivíduo ou grupo a partir do momento em que percepciona nesse indivíduo ou
grupo a(s) mesma(s) característica(s) que vê em si e que não observa nos
outros. “Enunciar a minha identidade em termos relacionais é admitir que
recolho de outrem uma parte fundamental de mim mesmo: apenas existo na
medida em que arrebato a outrem o fundamento da minha existência” (Gomes
da Silva, 1994:97).
Afinal, quem sou eu?
32
Forsythe (1989), num trabalho sobre a identidade dos alemães, refere que
estes atribuem aos estrangeiros certas características opostas às que atribuem
a si próprios. Assim, o ser alemão é associado à estabilidade e permanência,
enquanto que os estrangeiros à efemeridade. Fisicamente, o alemão é, por
definição, branco, loiro e de olhos azuis; o estrangeiro é escuro e, quanto mais
escuro for, mais estrangeiro parece aos olhos dos alemães. Os alemães são,
por definição, cristãos; os estrangeiros, como é o caso dos turcos, são
muçulmanos. O ser alemão está associado à confiança; os estrangeiros estão
associados àquilo que não é familiar. Os alemães vêem-se como ordeiros,
enquanto os estrangeiros são tidos como desorganizados, como tendo falta de
vontade em aprender os bons costumes ocidentais.
A antinomia é, de facto, uma das características do conceito de identidade:
identificamo-nos com aqueles que têm as mesmas características que nós, por
oposição àqueles que partilham características distintas (reais ou imaginárias),
por oposição aos outros.
Esta identificação com um grupo implica, por um lado, que haja semelhanças
entre os membros do grupo e, por outro, que o grupo se defina em função de
um referente. Assim, “um grupo, para sê-lo, é necessário que os seus membros
tenham consciência do nós, por demarcação ao eles, ao exterior" (Saint-
Maurice, 1997:7).
A identidade é, igualmente, um processo múltiplo, não exclusivo, na medida em
que podemos identificar-nos simultaneamente com vários grupos (com base
em diversos elementos).
Inclusive, há indivíduos que poderão identificar-se com mais de um grupo tendo
como referência uma mesma categoria. Por exemplo, um imigrante poderá
identificar-se, simultaneamente, com o país de origem e com o país de
acolhimento.
Afinal, quem sou eu?
33
Maalouf (1999), ao desenvolver esta questão das identidades compósitas,
começa por apresentar um caso paradigmático: o seu.
"Desde que deixei o Líbano, em 1976, para me instalar em França,
perguntaram-me inúmeras vezes, com as melhores das intenções do mundo,
se me sinto «mais francês» ou «mais libanês». Respondo invariavelmente:
«Um e outro!» Não por um qualquer desejo de equilíbrio ou equidade, mas
porque, se respondesse de outro modo, estaria a mentir. Aquilo que faz que eu
seja eu e não outrem, é o facto de me encontrar na ombreira de dois países, de
duas ou três línguas, de várias tradições culturais. É isso precisamente o que
define a minha identidade. Tornar-me-ia mais autêntico se amputasse uma
parte de mim mesmo?
Aos que me fazem a pergunta, explico pois, pacientemente, que nasci no
Líbano, aí vivi até aos 27 anos, que o árabe é a minha língua materna, que foi
na tradução árabe que descobri Dumas, Dickens e As Viagens de Gulliver, e
que foi na minha aldeia das montanhas, a aldeia dos meus antepassados, que
conheci as primeiras alegrias de menino e ouvi certas histórias em que me iria
inspirar, mais tarde, para os meus romances. Como poderia esquecê-lo? como
poderia alguma vez desligar-me dessa realidade? Mas, por outro lado, vivo há
vinte anos em França, bebo a sua água e o seu vinho, as minhas mãos
acariciam todos os dias as suas velhas pedras e escrevo os meus livros em
francês. Nunca poderia senti-la como uma terra estrangeira" (Maalouf, 1999:9-
10).
Outra característica deste conceito é o ser flexível, ou seja, a nossa identidade
é moldada pela situação e pelo contexto em que nos encontramos. Sokefeld
(1999) afirma que a imagem pessoal desenvolvida e manifestada em
determinadas situações não pode permanecer sempre a mesma. A identidade
tem de se adaptar às diversas redes em que o indivíduo participa.
Afinal, quem sou eu?
34
Desde já importa referir que identidade e etnicidade não são conceitos
congéneres. Como vimos, a identidade é um fenómeno inerente ao ser humano
e, a partir do momento em que o homem é um ser cultural, a identidade é um
atributo de todas as sociedades humanas. O mesmo não se passa com a
etnicidade.
Só a partir do momento em que, por um qualquer motivo (geralmente de ordem
política ou económica), os grupos étnicos passam a utilizar estrategicamente
alguns dos seus elementos identitários, é que o fenómeno da etnicidade
emerge.
Pode afirmar-se que a etnicidade decorre de uma tomada de consciência de
que a ostentação de determinados emblemas étnicos (centrados na cultura, na
religião, na história, na língua, no território, etc) pode ser vantajosa para o
grupo em questão (Anthias, 1992; Carita et al., 1993; Machado, 1994; Nagel,
1994; Moreira, 1996; Jenkins,1997; Cornell et al., 1998; Bun et al., s/d;
Almeida, 2000).
O conceito de identidade étnica também não deve ser confundido com o
conceito de cultura. O sentimento de pertença a um grupo étnico específico
não se resume ao sentimento de partilha de uma mesma cultura.
Como Bakalian demonstra no trabalho que realizou sobre os descendentes dos
imigrantes arménios a residirem nos Estados Unidos (Cornell et al., 1998 e
Nagel, 1994), ainda que as práticas culturais características do país de origem
estejam a perder visibilidade, o sentimento identitário não o está, ou seja, uma
coisa é o ser arménio, outra é o sentir-se arménio.
Também Nagel (1994) conclui que identidade étnica e cultura não são
sinónimos. Por forma a ilustrar esta ideia, a autora emprega a imagem do
carrinho de compras. Assim, podemos pensar na construção das fronteiras
étnicas como determinantes da forma do carro (tamanho, número de rodas,
Afinal, quem sou eu?
35
materiais utilizados, etc), enquanto que a cultura do grupo é composta pelas
coisas que colocamos no carro - arte, música, vestuário, religião, normas,
crenças, símbolos, mitos e costumes.
À semelhança da identidade, também a cultura dos grupos é caracterizada pela
mutabilidade e dinamismo. A cultura não se resume a um legado histórico,
transmitido de geração em geração. Ainda segundo a autora acima citada, a
cultura não é um carro de compras que vem até nós já cheio de bens. Pelo
contrário, nós construímos a cultura ao escolhermos e apanharmos os vários
itens das prateleiras do passado e do presente.
A identidade étnica permite responder à pergunta "Quem somos nós?", ao
passo que a cultura permite responder à questão "O que somos nós?". É com a
construção da cultura que os grupos étnicos enchem o carrinho de compras
(reinventando o passado e inventando o presente).
Cornell et al.(1998) afirmam, ironicamente, que se a principal característica de
um grupo étnico é a partilha de características culturais e sociais, então os
advogados, as famílias dos militares, os estudantes universitários, os cidadãos
suiços, os prisioneiros e muitos outros grupos, como a minoria chinesa na
Malásia ou os curdos do Iraque podem ser considerados grupos étnicos.
Para Blakemore et al. (1996), o sentimento de partilha de uma identidade
étnica comum é composto por um se não por todos os seguintes elementos.: i)
pertença real, simbólica ou mesmo circunstancial a uma mesma nação e a um
mesmo território; ii) partilha de uma mesma língua; iii) partilha de uma mesma
religião; iv) consciência de uma cultura distinta.
Um conceito intrínseco ao de identidade étnica é o de fronteira étnica, o qual
determina quem pertence e não pertence ao grupo.
Ainda segundo os autores acima citados, a identidade étnica não é imposta,
uma vez que, de uma maneira geral, as pessoas têm alguma ideia sobre quem
Afinal, quem sou eu?
36
são ou em que medida pertencem a uma comunidade11. Assim sendo, a
identidade étnica é entendida enquanto um recurso, uma estratégia de
sobrevivência. Tapper (1989), chega mesmo a dizer que é essencialmente
negociável e sujeita a manipulações estratégicas. Também Les Back (1996)
entende a etnicidade enquanto objecto de negociação por parte dos actores
intervenientes.
Sollors (1989) declara que as fórmulas da "originalidade" e "autenticidade" no
discurso étnico não passam de uma herança do romantismo europeu. Este
autor define a etnicidade como uma estratégia partilhada para além de
determinadas fronteiras físicas.
Nagel (1994) e Bun et al. (s.d) afirmam que os grupos étnicos emergiram tão
fortemente porque a etnicidade trouxe vantagens estratégicas aos seus
membros. Neste sentido, a etnicidade surge enquanto produto de uma escolha
racional: é o indivíduo quem decide quando e como expressar a sua etnicidade
(certamente só o fará quando o uso emblemático da linguagem, vestuário,
cultura e/ou costumes característicos do seu grupo jogam a seu favor).
Jasinskaja-Lahti et al. (1999) sustentam que, geralmente, o indivíduo passa por
experiências significativas (que podem incluir discriminação e preconceito por
parte do grupo maioritário) que o levam a tomar consciência da sua etnicidade.
Para Saylor et al. (1999), o grau de consciência de pertença a um grupo étnico
está directamente relacionado com a passagem do indivíduo por várias fases,
nomeadamente:
i) "Fase do pré-encontro": os indivíduos não examinam a sua identidade étnica
e deduzem as suas atitudes sem questionar a família e comunidade.
11
A pertença a uma comunidade pode ser real ou imaginária. Anderson refere-se aos grupos étnicos enquanto "comunidades imaginadas" uma vez que todos os que se percepcionam ou são percepcionados como pertencendo a esse grupo experienciam um sentimento de partilha comum. No entanto, nem todos os membros podem interagir de modo a formarem uma comunidade real (Anthias, 1992).
Afinal, quem sou eu?
37
ii) "Fase do encontro com racismo e sociedade": como referiram Jasinskaja-
Lahti et al. (1999), é do contacto com o outro que o indivíduo vai percepcionar a
sua semelhança e a sua diferença.
iii) "Fase de imersão-emersão": o indivíduo, consciente da sua diferença, tende
a unir-se ao semelhante. Desta forma, sente necessidade em participar na
cultura do grupo étnico e em explorar o significado de pertença a esse grupo.
iv) "Fase de interiorização/compromisso": os indivíduos exploram e
estabelecem um compromisso com as suas identidades étnicas (pelo que
demonstram uma maior auto-estima, um maior domínio e um maior número de
interacções sociais que aqueles que não assumem esse compromisso).
É neste sentido que Fischer (1991) sustenta que o etnicismo não é algo que
passe espontaneamente de geração em geração; algo que possa ser
aprendido e ensinado. A etnicidade é reinventada e reinterpretada em cada
geração, por cada indivíduo. É dinamismo puro; algo que não pode ser
reprimido nem reconduzido.
Ainda a este propósito, Moreira (1996:9) defende que, "antes vistos como
sobrevivências ou retenções culturais, os grupos étnicos são entendidos como
formas de vida social capazes de se renovarem e de se transformarem".
A nova geração não assimila, através do processo de enculturação, todos
aqueles valores que lhe são transmitidos pela geração anterior. As suas
necessidades, desejos e sonhos, não são os mesmos de seus pais, pelo que o
seu sentimento de pertença étnica também não será o mesmo.
Blackmore et al. (1996), compartilham da opinião de que, de uma geração
para outra, se verificam sempre algumas continuidades, como por exemplo, o
sentimento de desvantagem racial ou a comunhão de determinados atributos,
como a linguagem, a alimentação, ou mesmo a religião. Mas também existem
Afinal, quem sou eu?
38
sempre consideráveis diferenças se não mesmo descontinuidades entre as
diferentes gerações.
A propósito deste conflito geracional, Ghail apresenta o seguinte testemunho
de uma jovem negra, de nome Hameeda: "Eles (pais) querem que retenhas os
seus valores como se fossem os teus próprios valores (...), mas eles sabem
que tu não vais viver a mesma vida que eles e sabem que não te podem
obrigar a isso (...)"(Ghail, 1995:178).
Skármeta também não fica insensível a esta questão e, a certa altura, na sua
obra12, diz-nos que "(...) se as suas vidas (pais) estavam suspensas até ao
momento em que se reencontrassem com a pátria libertada, as dos seus filhos
tinham outra urgência: aprendiam o idioma anfitrião na escola, apaixonava-os a
rua, as suas jovens almas entravam em contacto com as de pessoas da sua
mesma idade e compartilhavam com ênfase adolescente os ídolos do cinema e
da canção, a televisão, os locais de dança e os bares, os cafés universitários,
(...) os livros e as piadas" (Skármeta,1996:13).
É importante reforçar a ideia de que não basta ser percepcionado pelos outros
como pertencendo a um determinado grupo étnico. É preciso que nós nos
percepcionemos enquanto tal, que nós nos identifiquemos, ou seja, que
encontremos semelhanças com esse grupo e que essas semelhanças nos
distingam dos demais.
O conceito de identidade tem sido apresentado enquanto uma construção
social, ou seja, enquanto um modelo que coloca a ênfase no carácter dinâmico
e flexível dos vários elementos que compõem a etnicidade. Estes elementos
(fronteiras étnicas, cultura e identidades) são negociados, produzidos e
definidos através da interacção social inter e intra comunidades étnicas13.
12
Este livro trata a história de um rapaz chileno de 14 anos, que, por vários motivos, foi compelido a partir para a Alemanha com a sua família, em busca de uma vida melhor. 13
Sobre este tema veja Nagel (1994)
Afinal, quem sou eu?
39
Ao afirmar que a identidade é uma construção social, não estou, de forma
alguma, a menosprezar o papel da história e a importância do passado na
formação deste elemento.
A identidade de um indivíduo ou de um grupo é o resultado das interacções
sociais que se estabelecem hoje e que se estabeleceram ontem, por outras
palavras, é o produto das vivências do presente e das experiências do
passado.
Mas, como explicar este fenómeno da preservação da cultura e identidade dos
grupos étnicos? Surgem, então, dois polos de análise: o paradigma
primordialista e o paradigma circunstancialista ou instrumental.
O primordialismo baseia-se na ideia de que a etnicidade é fixa, cumulativa e
estável, resistindo a todas as tentativas de penetração cultural, diluição ou
absorção por parte da cultura dominante. A etnicidade surge como o resultado
de uma herança inviolável transmitida de geração em geração.
De acordo com esta visão, "o homem é visto como um leopardo que não pode
alterar as suas manchas étnicas" (McKay, 1982:398).
Para os instrumentalistas, a etnicidade é efémera, variável, circunstancial e
manipulável.
Os membros dos grupos étnicos não estão unidos apenas por partilharem uma
mesma cultura. Os grupos étnicos são, sobretudo, grupos de interesses: o ser
humano é entendido enquanto um agente activo que apresenta e ostenta os
seus emblemas étnicos de forma selectiva e estratégica, ou seja, os indivíduos
ostentam a sua identidade étnica de acordo com as vantagens que daí possam
advir.
Estes dois pontos de vista, diametralmente opostos, suscitam uma série de
questões: Se a etnicidade é primordial, como explicar o surgimento de novas
Afinal, quem sou eu?
40
identidades entre a descendência dos migrantes? Se a etnicidade é
circunstancial, como justificar a preservação e continuidade de determinadas
práticas culturais entre as gerações mais novas? Como poderíamos
compreender a identidade dos filhos dos migrantes cabo-verdianos se, por um
lado, lhes negássemos a capacidade (e necessidade) de reconstrução e
reinvenção identitária e, por outro, ignorássemos a ligação que mantêm com
uma terra que nunca viram e com uma cultura originária de um outro espaço?
Na verdade, não existe ninguém que possa tornar-se apenas uma coisa ou
outra. Por exemplo, quando um cabo-verdiano vem viver para Portugal, nem se
tornará absolutamente português nem permanecerá completamente cabo-
verdiano, intocado pela experiência de viver noutro espaço (ver Cohn-Bendit,
1992).
É por esta razão que, à semelhança de autores como Nagel (1994), Anthias
(1992), Lepstein (1978) e Cornell et al. (1998), adiro ao modelo que concilia
estes dois pontos de vista, o qual pode ser graficamente resumido da seguinte
forma:
Figura 1. Primordialismo Instrumentalismo
País de origem País receptor História História Cultura Cultura Língua Língua Território Território Religião Religião
Os migrantes, sobretudo os seus descendentes, ao percepcionarem o “outro”, vão consciencializar-se da diferença. A sua identidade, construída e reconstruída, resulta de uma acção consciente e não-consciente assim como da percepção do “outro” sobre o “nós”.
Afinal, quem sou eu?
41
A dimensão social é inerente à noção de identidade étnica, uma vez que
resulta da díade “nós / outros”.
Em relação à questão da identidade social e à imagem de autores como
Hurtado et al. (1994) e Verkuyten (1992), baseei-me na teoria da Identidade
Social de Tajfel, a qual constitui uma base teórica de grande interesse para as
questões relativas à formação da identidade, persistência e mudança (na
medida em que enfatiza a causalidade da categorização social e da
comparação social). É por esta razão que é considerada um instrumento
valioso para a compreensão da mudança da identidade social dos imigrantes
como resultado de viverem num novo País.
Tajfel defende que são três os processos psico-sociais que estão na base da
formação da identidade social; são eles:
i) Categorização social: nacionalidade, língua, raça, etnicidade ou qualquer
outra característica social ou psicológica que tenha significado em contextos
sociais particulares, podem estar na base da categorização social e, portanto,
na base da criação da identidade social;
ii) Comparação social: é natural que, assim que se identifiquem com um grupo,
tendam a compará-lo com outro ou outros grupos ("o sentimento do eu
necessita, antes de mais, da presença do outro para desenvolver-se: O outro é
o companheiro permanente do eu na vida psíquica", Sedano, 1997:106);
iii) Aspectos cognitivos e emotivos: tentativa de alcançar um sentido positivo de
distinção (Hurtado et al., 1994).
Relativamente à categorização social, a primeira questão a ser colocada não é
"Quem são os colegas de que mais gostas?", mas sim, "Quem sou eu?", na
Afinal, quem sou eu?
42
medida em que aquilo que realmente interessa é o modo como nos
percepcionamos e definimos e não aquilo que sentimos em relação aos outros.
Este modelo de identificação enfatiza o papel da categorização social enquanto
processo cognitivo (ver Verkuyten,1992).
O autor acima citado chama a atenção para o facto de que, tradicionalmente, a
identidade étnica dos adolescentes era medida com o recurso a técnicas de
"escolha forçada", nomeadamente com o recurso a bonecos, desenhos ou a
questionários com respostas condicionadas.
Um estudo clássico é o "Doll Test", desenvolvido por Clark e Clark nos anos 30
e 40. Basicamente, o que se pretendia era analisar a identificação racial e a
preferência racial de crianças brancas e negras, com idades compreendidas
entre os 3 e os 6 anos.
Para tal, procedeu-se da seguinte forma: os investigadores apresentaram
quatro bonecos ao objecto de estudo, idênticos em todos os aspectos excepto
no que concerne às variáveis sexo, cor da pele e cabelo. Dos dois bonecos, um
possuía pele castanha e cabelo preto, o outro pele branca e cabelo loiro. As
mesmas características podiam ser encontradas nas duas bonecas. Às
crianças foi-lhes sugerido que escolhessem um dos quatro bonecos e o
entregassem ao pesquisador, mediante as seguintes questões: Dá-me o
boneco com o qual (1) gostasses de brincar e que: (2) é bonito e simpático, (3)
tem mau aspecto, (4) tem uma cor bonita, (5) se assemelha a uma criança de
cor, (6) se assemelha a uma criança negra, (7) mais se parece contigo.
Com esta última questão, os autores pretendiam medir a identificação racial
das crianças; com as quatro primeiras procuravam obter dados relativos à sua
preferência racial e com as restantes perguntas (5, 6 e 7) sobre a consciência
racial.
Clark e Clark concluíram que, apesar de todas as crianças brancas se
identificarem com a sua própria raça e preferirem os da sua raça, muitas
Afinal, quem sou eu?
43
crianças negras não se percepcionavam enquanto negras e, muitas vezes,
mostraram preferência pela cor branca (sobre o tema veja Gopaul-McNicol,
1995 e Chin, 1999).
Contudo, a real validade destes testes tem sido discutida, uma vez que esta
abordagem não contempla o facto de a identidade étnica não ter de ser um
aspecto psicológico saliente em situações sociais particulares, podendo ser
irreal o assumir que a etnicidade é um critério relevante na auto-definição.
Apesar de a etnicidade não ter de ser um aspecto psicológico de primacial
importância em todas as situações, teremos a oportunidade de verificar que,
para estas crianças de origem cabo-verdiana, a pertença étnica constitui um
evidente elemento identitário.
3. Métodos e Técnicas
3.1 Pesquisa Bibliográfica
A pesquisa bibliográfica é uma etapa importante de toda a produção científica.
Para este trabalho considerei indispensável proceder a uma recolha
bibliográfica e documental em duas áreas geográficas distintas: Portugal e
Cabo Verde (por forma a apreender o "nosso olhar" sobre o outro e o "olhar do
outro" sobre ele próprio).
Em terreno português, comecei por consultar obras de carácter geral sobre os
cabo-verdianos, disponíveis em Instituições como Biblioteca do Museu
Nacional de Etnologia, Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Informação e
Documentação Amilcar Cabral (CIDAC) e Biblioteca Nacional.
Nas Bibliotecas do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, da
Universidade Aberta e do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da
Empresa (ISCTE), consultei obras de carácter geral (relativas sobretudo à
Afinal, quem sou eu?
44
metodologia e aos cabo-verdianos) e obras de carácter específico (que tratam
as temáticas da identidade, migrações, etnicidade, "filhos da diáspora" e
relações interétnicas).
Consultei ainda o Recenseamento Geral da População de 1991 disponível no
Instituto Nacional de Estatística.
Na medida em que o meu objecto de estudo é constituído por crianças, senti
necessidade de me dirigir a instituições como o Centro de Documentação do
Secretariado Coordenador de Programas de Educação Multicultural, a OIKOS,
o Departamento Cultural da Câmara do Seixal e o Departamento Cultural da
Câmara Municipal da Amadora com os seguintes objectivos: i) recolher
material pedagógico que facilitasse o meu relacionamento com os "nativos" e
que permitisse a recolha dos dados desejados e ii) tomar conhecimento de
alguns dos trabalhos que estão a ser realizados junto da população cabo-
verdiana.
Os meus primeiros contactos físicos com a população cabo-verdiana tiveram
lugar na Associação Cabo-verdiana de Lisboa e na Associação do Alto dos
Moinhos. Nestas instituições tive igualmente oportunidade de proceder à
consulta e aquisição de algumas obras (sobre Cabo Verde e sobre os cabo-
verdianos).
Em Cabo Verde, "meu lugar recôndito do planeta", dirigi-me à Rádio
Educativa14 e ao Instituto Pedagógico onde consultei livros e revistas relativos à
identidade, cultura e educação cabo-verdianas. No Instituto Pedagógico tive
ainda acesso a material audio-visual sobre experiências-piloto que estão a ser
14
A Rádio Educativa surgiu em 1980 com o objectivo de dar a conhecer o Sistema Educativo em Cabo Verde e, em 1984, passou a dar primazia ao ensino à distância via rádio (procurando desta forma chegar ao mundo rural). Em 1988, apesar do seu sucesso estrondoso, verificou-se o abandono do ensino à distância, passando a privilegiar-se a recolha de opiniões relativas à reforma curricular. Já em 1966, e com o apoio de um subsídio para os PALOP, voltou-se para o ensino à distância, via rádio e televisão. Têm tido igualmente a seu cargo a divulgação e a redacção do "Boletim Educação".
Afinal, quem sou eu?
45
realizadas com alguns alunos do 1º e 3º Ano (no seguimento da reforma
curricular).
Tive ainda a oportunidade de contactar a Embaixada de Portugal em Cabo
Verde, a Câmara Municipal da Praia e o Estabelecimento para o Ensino
Superior.
Esta fase da investigação proporcionou-me um conhecimento dos principais
temas abordados por outros investigadores que se interessam pelo estudo dos
cabo-verdianos (em Portugal e no país de origem), assim como uma maior
familiaridade com o tema.
Não pude deixar de ficar impressionada com o volume de publicações
referentes a esta temática. No entanto, não me deixei dominar pela falácia de
que já se escreveu tudo sobre determinado assunto. Certamente que não
sendo um assunto inovador, não é, de forma alguma, um assunto esgotado
(assim como não existe nenhum tema sobre o qual ainda não se tenha dito
algo, também não existe um tema sobre o qual já se tenha dito tudo).
É importante referir que, por uma questão de gestão de recursos, optei por não
proceder ao recenseamento de todas as obras relativas aos cabo-verdianos,
limitando-me sobretudo à temática da educação.
3.2 Pesquisa Etnográfica
À semelhança de Barley, podemos interrogar-nos: "Porque quereremos nós
realizar trabalho de campo?" (Barley, 1983:7). A este propósito, Jenkins afirma
que o antropólogo reclama a sua autoridade relativa ao conhecimento do
objecto de estudo na medida em que afirma: Eu sei porque eu estive lá
(Jenkins, 1997:4).
Afinal, quem sou eu?
46
Ainda segundo o mesmo autor, o trabalho de campo é um rito de passagem
profissional, um ritual de iniciação. Sem essa "experiência de alguma forma
traumática a nível pessoal" (Jenkins, 1997:5), o antropólogo não será
reconhecido pelos outros antropólogos enquanto um membro do grupo.
Este é um trabalho de carácter qualitativo, na medida em que considero que a
observação participante ou etnografia, "como é hoje cada vez mais designada"
(Moreira, 1994:93), é a técnica mais adequada, sendo a única a permitir que o
investigador observe o que as pessoas realmente fazem (Gans, 1999).
Eder et al. (1999) referem algumas das vantagens do método etnográfico,
nomeadamente o seu carácter flexível e auto-correctivo: contrariamente à
pesquisa experimental ou quasi-experimental, na pesquisa etnográfica as
questões iniciais podem ser reformuladas e reestruturadas. Esta característica
não implica, de forma alguma, a inexistência de um esquema analítico inicial. O
que se procura é estabelecer um equilíbrio entre a estrutura orientada pelo
problema e hipótese de pesquisa e a flexibilidade, em vista a compreender o
ponto de vista do nativo.
A natureza flexível deste método possibilitou-me a concretização dos objectivos
iniciais. O contacto directo e contínuo com o objecto de estudo permitiu-me
reestruturar conceitos prévios e desenvolver novas ideias sobre os fenómenos
com os quais me ia deparando.
"O objectivo último (da pesquisa etnográfica) é conhecer uma cultura como se
realmente se tivesse nascido nela. Mas, na medida em que conhecer é
compreender, só se conhece um grupo humano e a sua cultura adoptando os
seus próprios pontos de vista" (Moreira, 1994:108).
Afinal, quem sou eu?
47
3.2.1 Fase Exploratória
O sucesso de uma investigação não se resume ao acesso às fontes
documentais. É igualmente importante que o pesquisador negoceie o acesso
às instituições directamente relacionadas.
Estando interessada em realizar o trabalho de campo numa escola do ensino
básico no Concelho do Seixal (facilidade no acesso físico e representatividade
do concelho), comecei por marcar uma entrevista com o Vereador da Cultura,
Educação e Desporto da Câmara Municipal do Seixal, com o objectivo de
apresentar o projecto de pesquisa e de, assim, suscitar o interesse da
autarquia e consequente apoio.
Felizmente as minhas perspectivas concretizaram-se: o projecto suscitou a
atenção do Vereador o qual delegou num dos responsáveis pela área
educativa a tarefa de me auxiliar e acompanhar em tudo o que fosse
necessário.
Assim, depois de alguns encontros, chegámos à conclusão de que a escola
ideal para a realização do trabalho seria a Escola Básica nº5 de Santa Marta
de Corroios, na medida em que reúne uma série de condições importantes, tais
como: i) presença significativa de crianças de origem africana (sobretudo cabo-
verdiana); ii) professores receptivos; iii) inexistência de um projecto similar a
funcionar; iv) Bairro de Santa Marta de Corroios sujeito ao Plano Especial de
Realojamento - PER (o que certamente provocará alterações no modo de viver
dos seus habitantes).
Era agora necessário dirigir-me ao espaço de estudo seleccionado e despertar
o interesse dos professores para o projecto.
Também neste momento foi importante o apoio da Câmara Municipal do Seixal,
na medida em que um dos funcionários teve a amabilidade de me conduzir à
Escola de Santa Marta, apresentando-me oficialmente enquanto investigadora
Afinal, quem sou eu?
48
a desenvolver um trabalho com interesse quer para a Instituição em causa quer
para a própria Autarquia.
O resultado foi o melhor possível: os professores prontificaram-se a apoiar esta
iniciativa. Ficou então estipulado que eu iria trabalhar com todos os alunos do
3º e 4º Anos15. Para isso os professores dispensariam cerca de 1H30m (uma
vez por semana) das suas aulas para esse fim.
Ultrapassados estes dois obstáculos (Câmara e Escola), havia ainda que
conseguir autorização da Direcção Regional de Educação de Lisboa (DREL).
Foi então enviada uma carta a apresentar a minha intenção acompanhada de
uma cópia do meu projecto de investigação e de um documento comprovativo
do interesse da Instituição Escolar pelo desenvolvimento do projecto.
Negociado o acesso às instituições, estava na altura de "fazer as malas" e
partir para o terreno.
Antes de dar início à fase de recolha de dados, considerei importante dedicar
algum tempo à exploração do terreno e do objecto de estudo, por forma a
facilitar a minha adaptação a uma realidade que me era totalmente
desconhecida.
Assim, entre Março e Junho de 1996, visitei regularmente a Escola em
questão. Neste período imperaram as conversas informais (com alunos,
auxiliares e professores) e a observação participante.
Lidar com crianças com idades compreendidas entre os 7 e os 14 anos de
idade não é tarefa fácil. De início, tudo me era estranho: a linguagem que
utilizam, as brincadeiras, as estratégias de obtenção daquilo que pretendem, a
percepção dos espaços, etc.
15
Foram estes os alunos seleccionados na medida em que já sabem ler e escrever, assim como expressar as suas ideias e opiniões (o que dificilmente sucede com alunos mais novos).
Afinal, quem sou eu?
49
Sabendo que “as crianças possuem quadros analíticos e padrões específicos
com os quais interpretam e caracterizam os adultos e que se consideram
diferentes destes em muitos aspectos, construindo um mundo para si à parte
destes, (...) parece pouco razoável que o investigador ambicione que as
crianças o vejam como igual” (Saramago, 1999:24).
Assim, nesta fase exploratória, adoptei uma postura corsariana (Corsaro,
1997), ou seja, limitei-me a entrar em zonas de brincadeiras e a esperar que as
crianças reagissem à minha presença.
Esta minha “intromissão” inicial converteu-se em motivo de alegria e satisfação
pelo facto de um adulto querer partilhar da sua realidade.
À semelhança do sucedido com Corsaro (1997), as crianças passaram a ver-
me como “uma criança grande”, como uma "companheira de brincadeira". Se,
por um lado, esta situação contribuiu para que ganhasse a confiança das
crianças, por outro, distanciou-me do papel de professor e do natural respeito
que por ele têm: em certas ocasiões, só na presença do respectivo professor é
que as crianças executavam as tarefas que lhes haviam sido propostas.
Eder et al. (1999) referem que este tipo de situações são vulgares, uma vez
que os etnógrafos que têm por objecto de estudo crianças e jovens, tendem a
evitar valer-se dos papéis de autoridade inerentes à sua condição de adultos.
Inclusive, esta prática acaba por se tornar vantajosa, uma vez que: i) reduz o
desequilíbrio de poder que se verifica entre adultos e crianças (as crianças
tendem a confiar nestes adultos) e ii) permite uma recolha de dados mais
autênticos.
Assim, o que parecia constituir um aspecto negativo acabou por tornar-se uma
vantagem. E a verdade é que as crianças acabaram por realizar trabalhos
extremamente interessantes e ricos em conteúdo como teremos oportunidade
de o constatar.
Afinal, quem sou eu?
50
Apesar deste estudo se centrar no espaço Escola nº5 de Santa Marta de
Corroios, acabei por sentir necessidade de conhecer um outro espaço: o Bairro
que dá o nome à escola, onde reside a maioria das crianças cabo-verdianas
que frequentam a escola. Só assim poderia comparar o comportamento das
crianças no espaço público e no espaço privado.
A abordagem ao bairro foi outra das dificuldades com que me defrontei. Qual a
melhor forma de entrar num bairro degradado, onde todos os indivíduos são
observados com desconfiança, sobretudo os estranhos? Esta é uma das
questões para a qual não existe uma solução óbvia nem fácil.
Inicialmente optei por me deslocar ao local na companhia de entrevistadores
que se encontravam a realizar inquéritos para a Santa Casa da Misericórdia.
No entanto, este primeiro contacto revelou-se infrutífero, na medida em que
proporcionou um conhecimento da área mas não das pessoas e do seu modo
de viver e sentir as coisas.
Conversando com uma funcionária da escola, esta ofereceu-se para me
introduzir no bairro, uma vez que, sendo cabo-verdiana, tem família e amigos a
residirem nesse espaço.
Desta forma, tive a oportunidade de conversar e conhecer várias pessoas do
bairro e, sobretudo, de observar as "minhas" crianças no seu quotidiano.
Conhecida a escola e o bairro, considerei ainda pertinente deslocar-me a Cabo
Verde, na tentativa de alcançar um melhor entendimento de uma cultura que
não é a minha e de poder então afirmar: "eu sei porque eu estive lá".
Aliás, este método de pesquisa, designado por método comparativo, "(...) tem
sido considerado um instrumento essencial de análise nas ciências sociais. É
através do estudo do significado das semelhanças e diferenças entre os
fenómenos que sobretudo se tem progredido" (Barata, 1990:184).
Afinal, quem sou eu?
51
Por forma a minimizar o síndroma de "um antropólogo em Marte" (Sacks,
1996), foi, então, levada a cabo uma série de medidas necessárias a uma
estadia em terreno exótico.
Uma das preocupações da prática antropológica prende-se com o uso do
idioma local (inclusive, este é um dos elementos a ser considerado na equação
pessoal do investigador). A língua é o veículo que possibilita a passagem de
conhecimentos de geração em geração e o entendimento entre os vários
membros da sociedade.
Não sendo a comunicação entre portugueses e cabo-verdianos difícil de
estabelecer, não pude, no entanto, deixar de considerar as vantagens inerentes
à aprendizagem do crioulo cabo-verdiano: maior facilidade na comunicação e,
consequentemente, menor margem de erro na tradução de termos mais
específicos e de difícil compreensão.
Na medida em que os cursos de crioulo já iam em fase adiantada
(nomeadamente na Associação Regresso das Caravelas, a funcionar na
Universidade Católica de Lisboa), não me restou outra alternativa que a de
encontrar alguém disposto a auxiliar-me neste processo.
Mas onde poderia encontrar essa pessoa? Desloquei-me à Associação Cabo-
verdiana em Lisboa, onde acabei por conhecer um badiû16, de nome José, que
veio a revelar-se, para além de um informador qualificado, um importante elo
de ligação com as gentes da cidade da Praia (se tivesse origem cabo-verdiana,
certamente que atribuiria este encontro ocasional à força do Destino).
A aprendizagem do crioulo não foi tarefa fácil, mas aprendi algumas frases e
vocábulos básicos o suficiente para o estabelecimento de uma conversa
informal.
16
Termo pelo qual os cabo-verdianos de Santiago são conhecidos. Já os cabo-verdianos das ilhas de Barlavento (sobretudo de S. Vicente), são chamados de sampajudo.
Afinal, quem sou eu?
52
Nesta fase considerei também pertinente contactar com a Embaixada de Cabo
Verde em Portugal, visando os seguintes objectivos: a) dar a conhecer a
investigação que estava a ser levada a cabo e b) obter nomes de informadores
qualificados em Cabo Verde. Este contacto veio a revelar-se bastante frutuoso.
Parti então para Cabo Verde onde permaneci por um período de apenas três
semanas (por questões de custos), repartido da seguinte forma: duas semanas
na Cidade da Praia (a maioria dos cabo-verdianos residentes em Portugal são
badiûs), quatro dias no Mindelo (S. Vicente) e dois no Paúl (Santo Antão)17.
Numa escala que compreenda um intervalo que vai do mais simples ao mais
complexo, posso afirmar que, em Cabo Verde, a tarefa mais simples consistiu
na deslocação às várias Instituições que poderiam fornecer informações e
dados preciosos para o prosseguimento do trabalho. A tarefa mais complexa,
ainda que a mais interessante, consistiu na entrada na comunidade.
No entanto, não posso deixar de afirmar (por muito que me sinta tentada a
fazê-lo) que a minha abordagem foi em muito facilitada em consequência dos
contactos previamente estabelecidos com José, o qual, ainda em Portugal, me
deu o endereço da sua família que se encontra a residir na cidade da Praia,
mais especificamente no Bairro da Achadinha.
No primeiro dia em que contactei a família de José, fiquei a conhecer esse
mesmo Bairro (na verdadeira acepção da palavra): a D. Joana, mãe de José,
apresentou-me, orgulhosamente, a todos os amigos e conhecidos de seu filho.
A partir desse momento, passei a sentir-me parte da família (ver Anexo 1:8-11).
Apesar de sentir que estava a "tornar-me nativa" (sabendo no entanto que
nunca poderia vir realmente a sê-lo), permaneci sempre, ou procurei
permanecer, de "olhar distanciado", por forma a não comprometer a qualidade
17
Não pude deixar de observar a rivalidade entre habitantes das diversas ilhas. Na Ilha do Sal, já havia sido alertada para esta situação por um motorista de táxi conhecido por James, o qual, ao referir-se ao badiû fê-lo de forma depreciativa, afirmando que é parecido ao nigeriano. Quando querem ofender alguém, apelidam-na de badiû (ver Anexo 1: 3).
Afinal, quem sou eu?
53
dos dados obtidos. "O ideal do etnólogo consiste em estar bastante distanciado
para compreender o sistema como sistema e bastante participante para vivê-lo
como indivíduo" (Augé, 1999:38).
A propósito da objectividade nas ciências sociais, Gans (1999) refere que a
partir do momento em que um investigador não tem a capacidade de se
distanciar do seu objecto de estudo, ou de permitir que este mantenha a
mesma distância, as regras da fidedignidade e validade dos dados qualitativos
são postas em causa (reduzindo a confiança que outros cientistas e leitores
terão na obra).
Na verdade, a pesquisa etnográfica supõe uma relação estreita entre
observador e observados. Para que o investigador conheça o seu objecto de
estudo, é necessário que o compreenda, ou seja, que tenha a capacidade de
se colocar no lugar do Outro.
É por esta razão que, sempre que me encontrava em contacto com os cabo-
verdianos, procurei agir com naturalidade e participar nas suas actividades.
Inclusive, cheguei a assistir a uma missa que se realizou num Domingo (22 de
Setembro de 1996), na Capela da Achadinha (ver Anexo 1:18-19).
Nesse mesmo dia a família de José levou-me a conhecer uma pequena
povoação, Água di Gato. Durante o percurso parámos várias vezes para que os
homens saíssem do carro e visitassem alguns amigos. Entretanto, como não
podia deixar de ser, bebiam pelo menos um copo de grogue18. Foi nesta
viagem que aprendi e compreendi uma palavra em crioulo que caracteriza
muito bem o kauberdiano: essa palavra é fadjado19. Foi também nesse dia que
me foi permitido invadir a esfera masculina e provar um pouco de grogue (as
outras mulheres estavam todas num outro espaço) (ver Anexo 1:21-24).
18
Bebida típica de Cabo Verde, consistindo em aguardente de cana-de-açúcar. 19
Uma pessoa fadjada é aquela que oferece tudo aquilo que possui aos seus amigos, sem exigir nada
em troca - assenta no princípio da reciprocidade.
Afinal, quem sou eu?
54
Ao recordar esta experiência, não posso deixar de concordar com Eder et al.
(1999) quando afirmam que um dos privilégios mais importantes do etnógrafo
é, precisamente, o de ter a oportunidade de observar o dia-a-dia do objecto de
estudo. Esta prerrogativa deve ser encarada como um "presente valioso", uma
vez que os etnógrafos não têm o direito de participar nestas actividades (têm
sim a possibilidade de poder fazer parte delas).
No entanto, deparei-me com outras situações em que não sabía como
comportar-me. Ainda em Portugal fui alertada para não comer gelados de água
e, sobretudo, para ter especial cuidado com a água corrente. Mas, num dos
dias em que fui ao Bairro da Achadinha, o pai de José fez questão de comprar
um desses gelados (de calabaceira) para que não me fosse embora sem
provar uma especialidade de Cabo Verde. Como é que se sentiriam se
recusasse a sua oferta? Optei por aceitá-la, ainda que com alguma relutância
(se adoecesse, qual seria o meu destino?) (ver Anexo 1:12).
Na obra "As Três Sereias", Wallace, através da personagem Maud Hayden
(antropóloga), trata muito bem esta questão. Assim,
"À questão colocada por Claire - (...) Como nunca participei numa coisa destas,
como devo comportar-me?, Maud responde: - De facto, suponho que existem
alguns pontos de referência que uma pessoa inexperiente neste campo deve
ter sempre bem presentes. Não te deves mostrar melindrada, superior ou
condescendente. Tens de te adaptar ao ambiente e à nova situação social.
Tens de dar a impressão de que tudo te agrada (...) Sempre que possível, se
fores convidada para participar numa festa, numa tarefa, num acto recreativo,
tenta imitá-los. É tudo questão de grau" (Wallace, 1988:64).
É neste sentido que Moreira afirma que o antropólogo, ao realizar um trabalho
de investigação, "sofre um processo de socialização em que pessoalmente se
vê envolvido" (Moreira, 1993:15). É importante que este profissional tenha a
capacidade de se adaptar a um ambiente que não é o seu, caso contrário,
dificilmente conseguirá desenvolver a sua pesquisa. De facto, em que medida
Afinal, quem sou eu?
55
uma pessoa desadaptada consegue obter a confiança dos outros? Todos
conhecemos o ditado: Em Roma sê romano.
Um outro factor que condicionou o sucesso da investigação prende-se com
variáveis sociológicas, nomeadamente a idade (faixa etária dos 20), o sexo
(feminino), a raça (branca) e a nacionalidade (portuguesa).
A certa altura, constatei que, na minha presença, a D. Joana tinha o cuidado de
cumprimentar todos os vizinhos pelos quais ia passando. Em tom de gracejo,
cheguei a afirmar que parecia o Presidente da Câmara da Praia, ao que me
respondeu:
"Se eu não proceder assim, vão dizer que estou armada em fina, porque tenho
uma amiga portuguesa." (ver Anexo 1:13-14)
Ainda em Cabo Verde (e sobretudo na Praia), optei pelo registo malinowskiano,
ou seja, recorri ao famoso diário de campo. Na medida em que o meu objectivo
era o de compreender uma cultura diferente não me limitando ao saber
livresco, considerei que seria importante registar tudo aquilo que me parecesse
pertinente: percursos de vida, opiniões, sentimentos, informações, etc. Para tal,
assim que chegava ao quarto da pousada onde me encontrava alojada,
dedicava algum do meu tempo a esta actividade (há muito que aprendi que não
devemos confiar totalmente na nossa memória por muito boa que ela seja, ou
que aparente ser).
Para além do registo escrito dos dados, a "raison d`être do observador no
terreno" (Moreira, 1994:129), também procedi ao registo visual, sobretudo
através da fotografia. Esta tarefa foi levada a cabo por um amigo que chegou à
Cidade da Praia uma semana mais tarde e cuja estadia teve uma duração de
duas semanas.
É ainda importante referir que esta viagem não se resume a um somatório de
pequenos sucessos. Infelizmente, alguns objectivos não consegui inteiramente
Afinal, quem sou eu?
56
alcançar, nomeadamente o contacto com escolas do ensino básico
(professores e alunos). Cheguei mesmo a levar algum material escolar para
distribuir por essas crianças (cadernos, lápis, lapiseiras, canetas, apara-lápis,
papel de lustro, plasticina, balões, etc). Porém o que sucedeu é que,
contrariamente às informações que me haviam sido dadas pela Embaixada de
Cabo Verde em Portugal, o Ano Lectivo naquele país não tem início na mesma
altura que em Portugal, mas sim mais tarde.
Pretendia aplicar, nas escolas, alguns testes, sobretudo o TST (sobre o qual
falarei mais adiante) e trazer desenhos feitos por essas crianças (para poder
compará-los com o material conseguido em Portugal), mas a verdade é que
não me foi possível. Contudo, o importante é que tal facto não me
desencorajou, e acabei por concretizar todos os outros objectivos a que de
início me propus.
3.2.2 A Recolha dos Dados
De regresso a Portugal, iniciei o trabalho na Escola de Santa Marta de
Corroios.
Procurando averiguar como é que as crianças de nacionalidade e/ou origem
cabo-verdiana se definem e até que ponto é que a percepção que têm de si é
influenciada pelo exterior, ou seja, pela relação que estabelecem com os seus
colegas, utilizei várias técnicas, entre as quais destaco um teste baseado no
modelo do conhecido TST.
O "Twenty Statements Test" tem por objectivo que os sujeitos se identifiquem
espontaneamente. No entanto, por uma questão de concentração de
informação e à semelhança de autores como Verkuyten (1992) e Hurtado et al.
(1994), optei por seleccionar previamente uma série de categorias (observadas
na fase exploratória).
Afinal, quem sou eu?
57
Este teste foi aplicado a todas as crianças sob a forma lúdica. Assim, no início
da aula forneci a cada aluno um conjunto de 13 cartões. Em todos os cartões
era visível uma determinada categoria (veja o quadro nº1). Depois de todos os
alunos terem observado com atenção os cartões que se encontravam em sua
posse, foi-lhes pedido que seleccionassem quatro, em ordem decrescente, por
forma a responderem à questão: "Quem Sou Eu?".
Quadro 1. Categorias apresentadas aos alunos sob a forma lúdica (das 13 categorias tiveram de seleccionar apenas 4).
Género Rapaz /Rapariga (1)
Idade Criança (2)
Nacionalidade Cabo-verdiano(a) (3)
Angolano(a) (4)
Santomenese (5)
Português(a) (6)
"Raça" Branca (7)
Negra (8)
Preta (9)
Mestiça (10)
Estatuto sócio-
económico
Rico(a) (11)
Nem pobre nem rico(a) (12)
Pobre (13)
É importante referir que das cinco variáveis seleccionadas (nomeadamente
género, idade, nacionalidade, “raça” e estatuto sócio-económico), o meu
interesse simplesmente recaiu, desde o início, sobre a nacionalidade (que
corresponde às categorias cabo-verdiana, santomenese, portuguesa e
angolana) e a “raça” (relativa às categorias branca, negra, preta e mestiça). No
entanto, considerei que, face às características do meu universo de estudo e à
índole desta temática, não deveria ser tão explícita. Daí, o ter previamente
estabelecido que as categorias a seleccionar pelos alunos seriam treze e não
oito.
Afinal, quem sou eu?
58
Não obstante e depois de ter verificado que estas duas categorias são
importantes para transcrever a forma como estas crianças se percepcionam,
irei, na Parte III desta dissertação, desenvolver apenas a questão da
nacionalidade / origem e da “raça”.
Os alunos desenvolveram outros trabalhos (sempre de forma lúdica), os quais,
para além de servirem de apoio ao teste mencionado, visaram suscitar o
debate sobre a tríade "eu"/ "nós" / o "outro" e promover o respeito e tolerância
pela diferença. No fundo, procurei proporcionar-lhes um ambiente intercultural.
Para estes trabalhos baseei-me em métodos projectivos20 utilizados sobretudo
pela Psicologia.
"Psicologicamente, projecção é um processo pelo qual um indivíduo (1) atribui
certos pensamentos, atitudes, emoções ou características a objectos do
ambiente que o rodeia; (2) atribui as próprias necessidades a outros indivíduos
do seu meio; ou (3) extrai inferências incorrectas duma experiência. A
projecção não é reconhecida como sendo de origem pessoal, o que tem como
resultado que o conteúdo do processo é vivido como uma percepção do
exterior e de origem externa" (Freeman, 1962:668).
Este método destina-se a suscitar respostas que revelarão a «estrutura da
personalidade», os sentimentos, valores, motivos, modos característicos de
ajustamento e «complexos do indivíduo». Desta forma, o indivíduo acaba por
revelar dimensões que de outra forma (principalmente, através de
questionários) não se manifestariam. É importante referir que as respostas
obtidas não podem ser classificadas de correctas ou incorrectas, uma vez que
não passam de interpretações e criações do sujeito (ver Freeman, 1962).
20
É importante referir que, à semelhança do TST, não utilizei estes testes na sua forma original. As adaptações que lhes introduzi, permitir-me-iam obter melhores resultados.
Afinal, quem sou eu?
59
De entre os diversos testes projectivos, utilizei a narração e conclusão de
histórias, o desenho e pintura e o jogo.
Narração e conclusão de histórias
"Meninos de todas as cores", "O patinho feio", "Fada branca, fada negra" e "Os
bons amigos" são algumas das histórias com que trabalhei, tendo sido
seleccionadas de acordo com os objectivos do meu trabalho (ver Anexo
3:37)21.
Depois de as ler ou de sugerir aos alunos que as lessem (tarefa que
executaram sempre com agrado), passávamos à sua interpretação (mediante a
realização de fichas concebidas para o efeito) e, por vezes, à sua reprodução
por escrito (de forma individual).
À semelhança do que disse em relação às categorias seleccionadas para o
TST (pág. 54) a elaboração e utilização deste material foram orientadas no
sentido de apreender a importância da nacionalidade / origem (etnia) e da
“raça” na identidade destas crianças. No entanto e apesar de ter considerado
igualmente impróprio que as questões que integram as fichas de leitura
coincidissem apenas com estes temas, a análise que faço dos dados
recolhidos por esta via incide, somente, em uma ou duas questões (por
exemplo, no texto “Meninos de todas as cores”, a única pergunta que
realmente me interessava era, por razões óbvias, a 8: “Com qual dos meninos
te identificas e porquê?).
Noutras ocasiões, pedi-lhes que inventassem histórias ou situações relativas a
determinados personagens (reais ou não).
21
A maioria das histórias com que trabalhei retirei-as de uma maleta pedagógica adquirida na OIKOS.
Afinal, quem sou eu?
60
Desenho e pintura
Na grande maioria das sessões de trabalho, senão em todas, foi pedido aos
alunos que fizessem um desenho. Razões não faltavam: ilustração de uma
história, desenvolvimento de um tema (livre ou não), etc.
Para além do prazer que a maioria das crianças sente em executar esta tarefa,
o principal critério que me levou a privilegiar esta técnica prende-se com o
pressuposto de que "cada desenho é o reflexo da personalidade que o criou"
(Di Leo, 1991:33), pelo que esta seria uma das formas do meu objecto de
estudo reflectir um olhar sobre si próprio.
A primeira actividade que propus aos alunos foi a realização do seu auto-
retrato (ver Anexo 4.1:65). Para isso teriam de escrever um breve texto sobre si
e teriam de desenhar a sua imagem numa folha de papel. Mesmo depois de
lhes ter explicado que um auto-retrato deve possibilitar a identificação imediata
do indivíduo, os resultados não deixaram de ser curiosos (verificando-se o
mesmo com o desenho que fizeram da sua família, subordinado ao tema "A
minha árvore genealógica”, como veremos mais adiante).
No seguimento deste, um outro trabalho merece especial atenção. Após a
leitura do texto "Fada branca, fada negra", cuja heroína da história é a Josefina,
a única fada negra a viver no país das fadas brancas, pedi-lhes que
procedessem à sua interpretação e ilustração. Observei então que muitos
alunos retrataram a Josefina à semelhança de todas as outras fadas, ou seja,
retrataram-na como sendo uma fada branca (ver Anexo 4.3:100).
Com base no texto "Meninos de todas as cores", propus-lhes uma actividade
especial: um trabalho em grupo.
Não foi uma tarefa fácil, uma vez que nem os alunos nem a própria sala de
aula estavam preparados para a sua execução. Mas, finda a tarefa, os
Afinal, quem sou eu?
61
trabalhos conseguidos compensam todas as dificuldades (inclusive, alguns
desentendimentos pessoais).
Jogo
Como já tive oportunidade de referir, estas actividades foram apresentadas às
crianças de uma forma lúdica. "O jogo revela-se fecundo como técnica
projectiva no estudo de aspectos menos evidentes da personalidade. Porque
inestruturado, dá oportunidade de actuação à fantasia e à imaginação e lugar à
originalidade de expressão. (...) A actividade lúdica (...) proporciona um escape
para o afrouxamento de tensões emotivas e para o comportamento manifesto
ou simbólico de expressão de necessidades, desejos, anseios de experiência e
de atitudes, sem receio de censura ou punição" (Freeman, 1962:745).
Durante o meu trabalho no terreno, tive a oportunidade de conceber e de pôr
em prática um jogo que denominei de "Nós e os Outros" 22. Este jogo é
constituído por um mapa mundi e por várias peças que representam crianças
de todo o mundo: de várias "raças", com peças de vestuário distintas,
brinquedos distintos e com histórias de vida diferentes (reflectindo a
diversidade cultural do mundo dos nossos dias). Teve a duração de cinco
sessões, correspondendo cada uma a um continente, sobre o qual eram
contadas histórias que dessem a conhecer essa realidade. No fim de cada
sessão, os alunos tinham de fazer um desenho e uma composição sobre o que
haviam aprendido na aula.
Para a obtenção da informação necessária, recorri ainda a uma outra técnica:
conversas sobre diversos temas, tais como "O racismo", "A amizade", "Direitos
da criança", "A vida no futuro" e "O respeito pelos outros".
A partir destes temas, foi-lhes pedido que fizessem um desenho, inventassem
uma história ou completassem uma ficha.
22
Este jogo é inspirado num outro, da autoria da OIKOS, denominado “O nosso mundo”.
Afinal, quem sou eu?
62
3.3 Tratamento Estatístico dos Dados
Os dados que obtive no bairro, à semelhança dos recolhidos em Cabo Verde,
prestam-se apenas a uma análise qualitativa. O mesmo não se verifica em
relação aos dados conseguidos no espaço escolar; para os analisar utilizei
métodos qualitativos e métodos quantitativos (estatisticamente manipuláveis).
O instrumento utilizado na análise quantitativa dos dados foi o SPSS (Statistical
Package for Social Sciences).
A aplicação do TST e de outros testes permitiu a obtenção de uma série de
variáveis que descrevem a identidade das crianças. Todas estas variáveis são
formadas por várias categorias, pelo que são variáveis categorizáveis ou
covariáveis. Devido à própria natureza da hipótese de pesquisa e do universo,
as categorias utilizadas, definidas de acordo com o critério em causa, são
qualitativas.
Note-se que a idade que usualmente não é considerada uma variável
categorizada devido ao grande "leque" de valores que pode assumir, neste
caso é, já que as crianças têm obviamente idades que oscilam numa pequena
escala de valores. No Anexo 5 é apresentada uma lista das variáveis incluídas
no estudo e as respectivas categorias de resposta.
Para a análise de variáveis categorizadas são necessários métodos estatísticos
que diferem dos usuais, já que se estudam pequenas escalas de valores. Um
aspecto interessante é o de determinar se as variáveis são independentes
entre si, ou seja, se os indivíduos que respondem de uma determinada forma a
uma pergunta têm mais tendência para responder de um determinado modo a
uma outra questão. Para tal constroem-se tabelas de contigência que são
tabelas que organizam as respostas pelas categorias de duas ou mais
variáveis e, a partir destas, aplicam-se testes de independência entre as
variáveis.
Afinal, quem sou eu?
63
O teste do qui-quadrado (teste Q) é o teste mais utilizado para testar a
independência de duas variáveis, desde que em todas as células da tabela a
frequência esperada seja 1 em pelo menos 80% das células. No caso de a
amostra ser pequena, utiliza-se o teste exacto de fisher (teste E). Ambos os
testes têm como hipótese a independência das variáveis e a regra dos testes
consiste em rejeitar essa hipótese se o nível de significância p for 0,05 (5%).
Se assim for, diz-se que as variáveis são dependentes, que estão associadas.
É ainda importante referir que, para além dos testes de associação entre
variáveis, procedeu-se igualmente a uma análise descritiva dos dados, onde,
para cada variável, se obteve a distribuição absoluta (número de respostas
para cada categoria) e a distribuição relativa (percentagem de respostas de
cada categoria em relação ao total de repostas obtidas), que nos dão uma ideia
da dispersão das respostas. Note-se que algumas categorias denotadas por:
"não fez o exercício" ou "não sabe", são consideradas "desconhecido"
("missing values"), não sendo por isso consideradas na distribuição relativa.
Para a descrição dos dados foram utilizadas as medidas de localização: média,
mediana e moda. Com o valor da mediana sabemos que metade dos alunos
responderam abaixo ou igual a esse valor (ou seja, divide a amostra ao meio).
A moda representa a resposta mais vezes obtida. No caso das covariáveis, a
mediana e a moda são medidas mais correctas que a média. Por exemplo, no
caso da variável amigos (Anexo 5) cujos valores de resposta possíveis são 1, 2
e 3, a média é 2,373, ou seja, um valor não inteiro que não corresponde a
nenhuma das respostas, enquanto que a mediana é 3, ou seja, metade dos
alunos tiveram respostas menores ou igual a 3 (houve poucas respostas 1 e 2).
A moda dos amigos é 3, pelo que essa corresponde à maioria das respostas
obtidas.
Afinal, quem sou eu?
64
4. Organização do Trabalho
O trabalho está organizado em três partes. Na primeira, sob o título “Cabo
Verde: Uma terra, muitos homens, um destino”, procuro dar a conhecer a
maneira de ser e de estar do “cabo-verdiano de Cabo Verde” (capítulo 1), os
motivos da partida (capítulo 2) e as principais características deste grupo em
Portugal, nomeadamente, quantos são, quem são, onde residem e o que fazem
(capítulo 3).
A caracterização do objecto de estudo (capítulo 4), assim como do trabalho que
está a ser desenvolvido na Escola Básica nº5 de Santa Marta de Corroios
(capítulo 5), dão forma à segunda parte.
Finalmente, na terceira parte, “Percepções do eu em espaço escolar”, são
analisados os trabalhos realizados pelos alunos. O objectivo principal é o de
verificar a importância das categorias “etnia” (capítulo 6) e “raça” (capítulo 7) na
identidade dos alunos. O último capítulo, intimamente relacionado com os dois
anteriores, trata a questão das redes de amizade (até que ponto a escolha dos
amigos está condicionada pela sua etnia e/ou pela sua “raça”?).
Afinal, quem sou eu?
65
PARTE I
CABO VERDE:
UMA TERRA, MUITOS HOMENS, UM DESTINO
Parte I. Cabo Verde: Uma terra, muitos homens, um destino
Afinal, quem sou eu?
66
Capítulo 1. Cabo Verde: Terra amada, terra madrasta
Cabo Verde é um território insular de origem vulcânica. Com uma área de 4033
Km2, é constituído por dois grupos de ilhas e alguns ilhéus: o grupo de
Barlavento inclui as ilhas de Santo Antão, S. Vicente, Santa Luzia (desabitada),
S. Nicolau, Sal e Boavista e o de Sotavento é composto pelas ilhas de
Santiago, Maio, Fogo e Brava.
Uma fraca e irregular precipitação anual, estiagens cíclicas, solos pobres e
estéreis23, lestadas24 frequentes e chuvas torrenciais (ainda que raras) são
alguns dos elementos naturais que têm marcado o destino dos filhos de Cabo
Verde.
Desde 1460, aquando da sua descoberta por navegadores portugueses ou ao
serviço do rei de Portugal25, que o país tem sido assolado por períodos de
seca, de fome e de epidemias.
O cabo-verdiano, desde o início condenado ao fracasso, continua,
desesperadamente, a lutar contra o seu destino: o de uma vida dura, difícil e de
miséria. Veiga não hiperboliza quando afirma que "o ilhéu existe, pois, porque
resiste" (Veiga, 1995:19).
23
O progressivo aumento da população e do gado impulsionou, por um lado, o corte desregrado de árvores e arbustos (para a construção de casas, confecção de mobiliário e lenha) e, por outro, em períodos de carência de pastos, as cabras, com o seu apetite voraz, podiam ser avistadas a destruir o que ainda restava de cobertura vegetal. Ainda hoje, é vê-las a comer trapos, jornais, cartão, pontas de cigarros, papel, etc. Estes dois factores, a progressiva destruição da vegetação e o uso indevido dos pastos pela sobrecarga de animais, em especial da cabra, têm facilitado o processo de erosão do solo (Carreira, 1977:36). 24
Ar seco do Nordeste, carregado de poeira e muito prejudicial para as culturas. 25
É possível que outros povos, nomeadamente povos da costa africana (Jalofos, Sereres e Lebús), já tivessem tomado contacto com o arquipélago. No entanto, é inegável que "Quando o descobridor chegou à primeira ilha / nem homens nus / nem mulheres nuas / espreitando / inocentes e medrosos / detrás da vegetação" (do poema "Prelúdio", de Jorge Barbosa). Sobre este tema veja Carreira, 1977; Filho, 1983.
Afinal, quem sou eu?
67
O Homem crioulo nasce do contacto entre europeus e escravos africanos
trazidos da costa da Guiné (Banhuns, Brâmes, Cassangas, Jabundos, Arriatas,
Balantas e tantos outros). É por este motivo que se torna difícil, se não
impossível, tratar a questão do povo cabo-verdiano sem aludir ao fenómeno da
crioulização. Esta zentz26 é o resultado da interacção de pessoas e culturas
diferentes.
"nossa ´stória é primeiro de seca de seca desde o princípio mas antes vínhamos de longe nus e escravos agora da terra para onde nos traziam as ilhas áridas vazias que construíamos"
É neste contexto que Saint-Maurice esclarece que estamos perante “uma
sociedade essencialmente crioula (...) em que o elemento "mestiço" explicita
uma cultura-síntese emergente do cruzamento afro-europeu que era ao mesmo
tempo um caldeamento de etnias, de culturas e, por último, mas não menos
importante, de grupos sociais (...) "(Saint-Maurice, 1997:38).
Refira-se que, na ocupação do território, também participaram mestiços já
nascidos no arquipélago e escravos libertos.
Ainda que a cultura cabo-verdiana esteja em constante reinvenção e
construção, não se limitando ao somatório de duas culturas tão díspares
quanto a europeia e a africana, é incontestável que o cabo-verdiano não é
somente Cabo Verde: ele é Europa e é África.
Podem assim ser identificados alguns elementos culturais que têm persistido e
resistido a esta simbiose (Saint-Maurice, 1997).
26
Tradução: Gente.
Afinal, quem sou eu?
68
Apesar das especificidades inerentes a cada ilha, é, pois, possível falar de uma
identidade cultural cabo-verdiana (esquematicamente apresentada no gráfico
seguinte).
Figura 2. Identidade cultural cabo-verdiana
CULTURA CABO-VERDIANA
CULTURA AFRICANA CULTURA EUROPEIA
Tabanca27; Funco28; Batuque29; Modo de construir Cola-sanjon30; cidades e vilas; Pilão31; Formas de vestir; Práticas mágico- Instrumentos Feiticistas; musicais; Etc. Monogamia de direito; etc.
Fonte: Saint-Maurice (1997:40)
São vários os autores que têm reflectido sobre este tema tão pertinente.
Segundo Gonçalves, "os factores dominantes na modelação da alma cabo-
verdiana são: a insularidade, a paisagem, a estiagem, os tipos de actividades -
todos eles conformando o cabo-verdiano como um lugar comum de feições
contraditórias: um homem profundamente marcado e, todavia, sonhando
infindavelmente com as paragens por onde Deus passou e fez multiplicar
27
Sistema de ajuda mútua 28
Residência dos pobres e desfavorecidos (em oposição ao sobrado, à residência dos grandes morgados e detentores do poder económico 29
Tantã ritmado ao jeito africano 30
Dança tradicional do S. João ou Santo Antão 31
Espécie de almofariz. “Rudimentarmente consiste num tronco cilíndrico escavado num dos topos, de modo a servir de recipiente onde se lançam os cereais. (...)encontram-se vários modelos e tamanhos (...), feitos em madeira dura ou pedra, consoante os locais e fins a que se destinam” (Filho, 1997:215). O pau de pilão ´´e o complemento do pilão.
Afinal, quem sou eu?
69
abundância; esperando e redimindo-se das próprias esperanças; alegre por
natureza e triste por imposição dos acontecimentos; activo e fatalista" (Filho,
1983:30).
Veiga considera que a sociedade crioula “está assente sobre um triângulo em
que na base se encontra o milho, num dos lados o mar, no outro a música e
como mediatriz o crioulo” (Veiga, 1995:31).
Um dos elementos mais importantes da identidade cultural cabo-verdiana é,
sem dúvida alguma, o crioulo de Cabo Verde. Segundo Barbosa, “designam-
se por crioulas ou mais simplesmente crioulos, as línguas que resultaram da
mútua interferência entre dois ou mais idiomas, um deles europeu e o outro ou
outros não europeus, nomeadamente africanos ou asiáticos” (Barbosa,
1969:113).
O crioulo cabo-verdiano nasce precisamente da necessidade de entendimento
entre os vários intervenientes no processo de povoamento do território (não só
entre portugueses e africanos mas também entre os africanos de diferentes
etnias).
Mariano (1991), ao referir-se às bases da crioulidade, menciona o ruralismo
que, no fundo, traduz o ciclo do milho, a mestiçagem e a insularidade.
Também Saint-Maurice (1997) incide sobre esta problemática. Para a autora, a
identidade cultural cabo-verdiana estrutura-se a partir de um eixo básico – o
processo de miscigenação. No entanto, chama a atenção para a pertinência de
dois outros elementos que são a insularidade e as condições naturais
adversas.
Todos estes autores citam o mar como um dos factores que mais contribui na
formação da identidade cabo-verdiana. De facto, nenhum cabo-verdiano é
indiferente à imensidão do mar que cerca a sua ilha; se, por um lado, são
invadidos por um sentimento de evasão, expresso pelo desejo de partida rumo
Afinal, quem sou eu?
70
a uma vida condigna, por outro, sentem-se tristes com a possibilidade de terem
de deixar a sua família, os seus amigos e a terra onde nasceram.
Jorge Barbosa expressa esta dualidade de sentimentos no seguinte poema:
“Navio aonde vais deitado sobre o mar? Aonde vais levado pelo vento? Que rumo é o teu navio do mar largo? Aquele país talvez onde a vida é uma grande promessa é um grande deslumbramento! Leva-me contigo navio. Mas torna-me a trazer!”
No entanto, são muitos os que partem e poucos os que voltam.
Apesar das agruras da vida, a morabeza32 e a hospitalidade, também fazem
parte da maneira de ser do cabo-verdiano que considera a partilha, assente no
princípio da reciprocidade, uma obrigação.
A crença em Deus é outro atributo do ilhéu; só assim se compreende que,
apesar das adversidades, continuem a acreditar que melhores dias virão: a
chuva há-de cair, o milho há-de crescer, a sua mesa será farta, os seus filhos
crescerão fortes....
É de realçar que a ideia que os cabo-verdianos têm de Deus tende a ser uma
ideia negativa: afinal de contas é Ele o responsável pelo seu triste fado.
32
Amorabilidade, afectividade.
Afinal, quem sou eu?
71
Vamos agora analisar a alimentação do cabo-verdiano pois o tipo de
alimentação de um grupo certamente que contribui para um maior
conhecimento desse mesmo grupo. O estudo das suas carências e
excedentes, seus gostos e receitas, ou aspectos ligados ao simbólico,
constituem características singulares da respectiva cultura (Filho, 1997).
O milho, o cuscus33, a cachupa34, o fonguinho35, a camoca36, a batata doce, o
rolão37, a carne de porco, a cabra e frutas diversas (papaias, bananas, mangas
e goiabas) constituem a base de alimentação do cabo-verdiano.
Em Cabo Verde, “comer milho é sinónimo de comer” (Filho, 1997). A
importância deste cereal, assim como da cabra (animal de “ao pé da porta”), é
tão grande que Oliveira et al. chegam mesmo a afirmar que “sem o milho e sem
a cabra não teria sido possível o povoamento das ilhas. O milho e a cabra
deram-se as mãos, permitindo a eclosão e evolução de uma cultura dentro do
mundo de influência portuguesa. (...)Tanto o milho como a cabra se
notabilizaram pela sua ubiquidade, resistência e capacidade de adaptação aos
mais desvairados climas e terrenos. Em todos os paralelos e em todas as
latitudes conseguem sobreviver, o que não acontece com outros cereais e
outras espécies leiteiras” (Filho, 1997:228).
Não deixa de ser curioso estabelecer um paralelo entre os “filhos de Cabo
Verde” e estes dois elementos: à semelhança do milho e da cabra, também o
cabo-verdiano tem aprendido a resistir e a sobreviver num meio que lhe é
hostil, conforme se pode ler no poema “Flagelados do Vento Leste” , de Ovídio
Martins (CIDAC, 1996),
33
Espécie de pão de farinha de milho 34
Prato constituído por milho cochido (sem farelo), feijão, mandioca, batata vulgar e doce, hortaliças, chouriço, carnes variadas, abóbora e inhame. Muitas vezes, as classes mais pobres vêem-se reduzidas a milho, feijão, água e sal (“cachupa de água e sal”) 35
Preparado a partir de uma massa feita com farinha de milho e bananas maduras. 36
Quando moído, o “milho ihado” (pipoca), transforma-se em camoca, farinha utilizada para pudim e para misturar no leite ou no café. 37
Peixe.
Afinal, quem sou eu?
72
(...) Somos os flagelados do Vento Leste O mar transmitiu-nos a sua perseverança Aprendemos com o vento a bailar na desgraça As cabras ensinaram-nos a comer pedras para não perecermos (...) Teimosamente continuamos de pé num desafio aos homens e aos deuses (...)
A forma como a família38 cabo-verdiana está estruturada é mais um dos muitos
exemplos ilustrativos da adaptação deste povo ao meio envolvente.
Segundo Furtado (1995), são duas as características da família cabo-verdiana:
i) Ainda que no essencial seja uma família de tipo nuclear39, muitas vezes o
que se verifica é que, sob um mesmo tecto, residem várias gerações, ou seja,
muitas vezes estamos perante famílias extensas ou alargadas. Isto significa
que as decisões e respectivas consequências no seio familiar são assumidas
muitas vezes pelos avós, pelos tios e até pelos padrinhos dos filhos.
ii) Forte incidência de mulheres chefes de famílias, portanto com
responsabilidades familiares. Trata-se, na maioria das vezes, de mães
solteiras, esposas de emigrantes e viúvas (mais de 1/3 destas mulheres têm
menos de 40 anos).
38
Para os cabo-verdianos, os laços biológicos, os laços de sangue, são os mais fortes e importantes. Por exemplo, “o primo pode ser considerado mais da família que a própria companheira, porque o “primo é de sangue, mulher muda” (França, 1992:62). Um aluno de Antropologia do ISCSP, com nacionalidade e naturalidade cabo-verdiana, numa conversa informal, confessou-me que a grande maioria dos seus amigos cabo-verdianos considera a mãe importante pelo facto de os ter dado à luz, ou seja, valorizam o papel biológico desempenhado pela sua mãe relativamente ao papel social. 39
A família nuclear compreende o casal e os seus filhos.
Afinal, quem sou eu?
73
Estes dois aspectos estão directamente relacionados com o fenómeno
migratório: a constante necessidade de deslocação para outras ilhas ou para
outros países em “busca de um sonho” .
Rios (1989) faz referência a outras duas características da família cabo-
verdiana: a existência de uma «certa poligamia40» não declarada mas
socialmente aceite e o djuntamon41, ou seja, os laços de solidariedade que se
desenvolvem entre os vários membros da família e entre estes e os vizinhos e
amigos (nomeadamente no trabalho do campo).
Num jantar com um amigo cabo-verdiano, nascido na Brava mas a trabalhar na
Praia, foi-me confidenciado que longe de ser uma prática invulgar, a poligamia
ocorre com alguma frequência. Na sua ilha, por exemplo, tem duas primas a
viver maritalmente com o mesmo homem, sem que a situação seja motivo de
embaraço (é sabido que o homem dorme com as suas mulheres em dias
alternados).
Relativamente à atitude do cabo-verdiano no que respeita ao casamento,
também França conclui que “(...) o homem frequentemente mantém relações
conjugais simultaneamente com várias mulheres e (...) esta situação pode
variar de ilha para ilha e de acordo com a prosperidade do homem. Este
acasala-se ainda jovem e pode ter filhos de várias mulheres, que são
considerados “legítimos” e perfilhados com todos os direitos” (França,
1992:62).
No entanto, esta “tendência” de o homem cabo-verdiano ter, na mesma altura,
mais de uma mulher nem sempre é encarada pelas “patroas” de forma branda.
40
Quando o casamento envolve um homem e uma mulher estamos perante um caso de monogamia, quando envolve mais de um homem e de uma mulher, estamos perante uma situação de poligamia. Segundo Barata, "a poligamia pode surgir sob três formas: a) a forma em que um homem casa com duas ou mais mulheres e que se designa por poligenia; b) a forma em que uma mulher casa com dois ou mais homens e que se designa por poliandria; c) e o casamento de grupo em que duas ou mais mulheres mantêm uma união com dois ou mais homens" (Barata, 1975:20). 41
Expressão que significa "juntar as mãos".
Afinal, quem sou eu?
74
Durante a minha curta permanência na cidade da Praia, tive a oportunidade de
presenciar duas “guerras” entre mulheres. O motivo era o mesmo de sempre: a
infidelidade masculina.
Numa das ocasiões encontrava-me eu no Plateau quando, a certa altura, me
deparei com um aglomerado de pessoas junto ao mercado. Parei para ver o
que se estava a passar. O quadro era o seguinte: duas peixeiras, aos gritos
uma com a outra e de faca na mão, rodeadas por uma pequena multidão de
gente que se limitava a rir e a comentar o sucedido. Ao perguntar a um senhor
que ali se encontrava o que é que estava a suceder, respondeu-me com um
grande sorriso: “É guerra! Uma delas descobriu que a outra anda com o seu
homem e estão a acertar contas”. Pelo que pude aperceber-me, situações
destas são comuns em Cabo Verde.
Em todo o caso convém notar que é com grande saudosismo que me recordo
da maneira de ser e estar do “cabo-verdiano de Cabo Verde”. É impossível
ficar indiferente à gentileza e ao carinho com que tratam todo aquele a quem
chamam de “amigo”, e eu tive esse privilégio. Foi uma dádiva que me
concederam, uma das maiores que já tive... Por mais que o tempo passe,
continuo a acreditar que tudo o que lhes dei foi insignificante comparado com
tudo aquilo que me proporcionaram.
O seguinte poema de Manuel Lopes42, sem qualquer exagero, deixa
transparecer o modo de ser e estar do cabo-verdiano.
Estrangeiro Meu café está fervendo no bule – o bule é feito de folha de latão. Quando passares pela minha porta entra e vem tomar do meu café. Sente-lhe o cheiro, estrangeiro, foi colhido no chão, caído de maduro e seu nome é café de rato. Deita-lhe mel de cana do meu regadio come camoca de milho torrado, ou milho aliado, que hás-de gostar come queijo alvo da minha cabra luzidia, sempre amarrada à porta
42
Um dos fundadores do Movimento Claridade, que teve início em 1936.
Afinal, quem sou eu?
75
come do meu cuscus quente, mais grosseiro e mais gostoso do que o teu queque fino – pilado de madrugada, naquele bater de pilão que já conheces e que é a voz do meu quintal o cuscus é feito do milho de minha merada semeado com amor e colhido com amor – terás a manteiga da minha vaca fumarás do tabaco colhido na minha horta diante do terreiro comerás papaias e bananas e mangas e goiabas. Olha a mangueira sempre verde (verde mangueira à beira do caminho fresca sombra, maduros cachos para a sede e a fome de quem passa). Chuva caiu no ano passado – Deus seja louvado – no tambanque tenho milho para cachupa para fonguinho, para camoca e para rolão tenho batata doce a assar na cinza do fogareiro tenho toucinho e carne de porco que matei porque o ano foi de boas águas Graças a Nossenhor Jesus chuva caiu no ano passado. Vem estrangeiro! Quando deixares a minha choupana e chegares à curva do caminho pára um instante e olha para trás 2. quero a alegria estampada no teu rosto, estrangeiro, para que o meu contentamento seja completo. Quero ver a alegria no teu rosto porque a tua é a minha assegurada. Vira depois a cara e segue a tua jornada. “Sejam connosco a paz e o pão...” É essa a minha única oração...
É surpreendente como, apesar de tantas e tantas contrariedades (seca, fome,
isolamento, pobreza do solo, entre outros), o cabo-verdiano continua a
acreditar que, “depois da tempestade vem sempre a bonança”. É este
pensamento que lhe dá afinco para continuar a lutar por dias melhores. Só
assim se compreende que continue a afirmar que existem alternativas à
existência que Deus lhe reservou.
É por esta razão que sempre sonhou, sonha e há-de sonhar com outras terras.
Afinal, quem sou eu?
76
Capítulo 2. Hora di Bai43
“O cabo-verdiano é o eterno emigrante que busca em terra estranha aquilo que a sua lhe nega sistematicamente.” (Carreira, 1977:39)
O termo migração pode ser definido como a passagem de um indivíduo ou
grupo de um espaço geográfico para outro, com mudança de residência. Esta
jornada não se caracteriza, pelo menos no imaginário do(s) interveniente(s),
pela perenidade (a ideia de retorno está sempre, ou quase sempre, presente).
Do instante em que a ideia da partida começa a germinar na mente do
indivíduo até à fase em que este se decide, efectivamente, a chamar também
de sua uma outra terra, há um longo itinerário a percorrer.
Primeiramente, há que decidir se a partida é, de facto, a melhor opção face à
situação presente e face às perspectivas futuras. Depois de ponderar os prós e
contras e de concluir que a evasão é a solução mais digna, há que tomar as
medidas necessárias, por forma a materializar essa intenção (desde a
obtenção da documentação, à escolha do meio de transporte).
Após a viagem, este visionário vai certamente procurar reunir as condições
propiciatórias a uma vida condigna, que passam, por exemplo, pela procura
ou iniciação no novo emprego, pela instalação e acomodação na recente
residência e pelo fortalecimento das suas relações com os outros.
Já inserido no novo país e depois de, eventualmente, ter chamado a família
para junto de si, há que tomar uma nova decisão: ficar permanentemente ou
regressar à sua casa primeira. Caso opte pelo regresso, é provável que haja
43
Tradução: Hora da partida
Afinal, quem sou eu?
77
um período de familiarização com uma realidade que lhe era natural e que,
com a sua ausência, deixou de o ser.
Em jeito de síntese, o percurso migratório pode, então, ser esquematizado da
seguinte forma:
Figura 3. Percurso migratório
(Ficar)
Decisão
Partir
Reinserção PAÍS DE ORIGEM Preparativos
de partida
Regresso Viagem
Primeira
PAÍS DE DESTINO instalação
Fixação definitiva Inserção
Decisão
Fonte: Rocha-Trindade (1995:38)
Afinal, quem sou eu?
78
A teoria clássica das migrações, alicerçada no modelo de atracção-repulsão
(push-pull model), sustenta que são vários os factores que “empurram” os
indivíduos da sua terra de origem, mobilizando-os para outros espaços. Esta
deslocação visa, por um lado, a maximização dos bens e, por outro, a
minimização das condições desfavoráveis (pensamento inerente ao Homo
oeconomicus).
Escassez de terra, desemprego, baixos salários, seca, fome e explosão
demográfica são os principais factores de repulsão considerados na hora da
partida. Os factores de atracção, que incidem nas vantagens inerentes à vida
urbana, surgem como a alternativa mais racional a uma vida supostamente
estagnada, sem qualquer esperança de um futuro melhor.
Duas das mais importantes conclusões apuradas por Ravenstein, o principal
precursor deste modelo, são: i) o desenvolvimento do comércio e da tecnologia
conduzem, invariavelmente, à intensificação dos movimentos migratórios e ii)
os factores de ordem económica são os que mais peso têm para os homens na
hora de decidir se a partida da terra de origem é ou não a melhor alternativa
(todos os indivíduos aspiram a aumentar os seus bens materiais).
De uma forma genérica, este modelo centra a sua atenção em factores ligados
ao meio de partida e de chegada, não deixando, no entanto, de ter em
consideração outras variáveis que também interferem na decisão de migrar.
Assim,
Figura 4. Modelo de “atracção-repulsão”
Local de origem Local de destino
repulsão atracção
Variáveis intervenientes
factores factores
Fonte: Jackson (1986:15)
Afinal, quem sou eu?
79
Everett Lee, meio século mais tarde, reestrutura o modelo das migrações de
Ravenstein. A principal diferença incide na definição das “variáveis
intervenientes” enquanto “obstáculos intervenientes”, designadamente a
distância de um local para outro, as barreiras físicas, as leis imigratórias e os
custos dos transportes de pessoas e bens.
O modelo de atracção-repulsão está directamente relacionado com as teorias
do mercado de trabalho, centradas nas propostas teóricas do modelo de
equilíbrio. Este paradigma enfatiza “a existência de uma força de trabalho
«livre» que se desloca «espontaneamente» entre sociedades de tipo
capitalista, mercê de um cálculo económico racional e individual” (Rocha-
Trindade, 1995:81), ou seja, face a uma situação de desequilíbrio, o indivíduo
tende a migrar para um lugar onde a oferta de trabalho e a remuneração pelo
mesmo sejam superiores, sejam mais vantajosas.
De forma a ultrapassar estas abordagens muito localizadas, Wallerstein
defendeu a hipótese de se encarar a questão da migração como parte
integrante de um sistema-mundo. Assim, a assimetria entre países
desenvolvidos (centro) e países em vias de desenvolvimento (periferia)
resultaria na eterna dependência dos segundos em relação aos primeiros. A
migração irrompe como uma resposta a esta disparidade.
Em tais circunstâncias quer o país de origem quer o país de destino legislariam
de modo a minimizar possíveis conflitos de interesses.
Comum a todas estas abordagens é a contemplação dos migrantes enquanto
instrumentos de mudança e não enquanto sujeitos activos.
Como afirma Jackson (1986), a decisão de migrar é semelhante à decisão de
casar: desde que estejam reunidas as condições para o fazer, a última palavra,
é sempre do indivíduo. No entanto, todas as decisões que envolvam escolhas
Afinal, quem sou eu?
80
caracterizam-se pela incerteza. Será que ela aceita? E se não aceitar? Devo
partir? Ou devo ficar?
É por esta razão que há autores que justificam a questão da migração
invocando as teorias da mudança social, pois trata-se, sem dúvida, de um
processo fomentador de mudanças quer a nível individual, quer para os países
de origem e receptor.
Rocha-Trindade (1995) chama a atenção para a importância da introdução do
conceito de redes sociais no âmbito das teorias das migrações. Esta noção de
rede social permite analisar os laços que se estabelecem entre os vários
actores sociais.
É neste contexto que Rémy (1988) desenvolve os conceitos de “espaço
território” e “espaço rede”. O conceito de espaço território é caracterizado
segundo relações de contiguidade e vizinhança. Já o conceito de espaço rede
está estruturado segundo uma lógica que une lugares distantes através da
mobilidade de mercadorias, pessoas e informações, promovendo, desta forma,
a manutenção dos laços entre aqueles que partiram e aqueles que ficaram,
entre o país receptor e o país de origem.
“Ao ligarem migrantes e não migrantes no espaço e no tempo, as redes sociais
dão origem a teias complexas de relações interpessoais que permitem
conceptualizar as migrações como um produto social. Quer haja ou não
migrações e qualquer que seja a sua direcção, composição ou persistência,
estas são condicionadas por estruturas económicas, sociais e políticas
inerentes à história das sociedades emissora e receptora. Estas estruturas são
transportadas e influenciam, através das relações e dos papéis sociais, os
indivíduos e os grupos” (Rocha-Trindade, 1995:91).
Afinal, quem sou eu?
81
A migração é um fenómeno bastante antigo nas ilhas de Cabo Verde. Desde o
século XVII que os seus habitantes se acostumaram a ver os seus pais,
irmãos, tios, avós, primos e amigos a partir para outras paragens. Desde então,
o sonho que os acompanha, ainda que modesto, tem sido sempre o mesmo: o
sonho de uma vida digna.
São várias as razões que induzem os cabo-verdianos a prosseguir a sua
existência noutras terras. Carreira (1977) identifica, sobretudo, causas de
ordem económica e causas de ordem histórica.
No que concerne às primeiras, destaca a deficiente estrutura socioeconómica,
as secas e fomes constantes (consequentes da escassez de chuva), a pressão
demográfica, a desigual distribuição das terras e, mais recentemente, a
importância que assume o volume de divisas resultante das remessas dos que
partiram. A influência exercida entre os insulares pelos migrantes pioneiros e
sua descendência é o primacial motivo de carácter histórico.
Ainda que não empregue, de forma explícita, o conceito de rede social ao
referir-se ao entusiasmo e apoio que os primeiros migrantes exerceram sobre
os ilhéus, está tacitamente a fazê-lo.
França (1992:41), adoptando o modelo de atracção-repulsão de Ravenstein,
agrupa os motivos que terão condicionado os cursos migratórios do seguinte
modo:
Repulsão
Economia débil da população;
Elevado crescimento demográfico;
Frequentes e prolongadas crises de falta de chuvas, com consequências
catastróficas.
Atracção
Necessidade de mão-de-obra barata e dócil de países em desenvolvimento;
Afinal, quem sou eu?
82
Oferta de melhores condições de vida aos que trabalham naqueles países;
Espírito de aventura (facilitado pela pressão demográfica).
Comunicação
O peso da tradição (emigração histórica);
Informações veiculadas pelos emigrantes de toma-viagem e através da
correspondência;
A melhoria do nível económico com que o emigrante se apresenta no regresso
à terra (aquisição de “bens de prestígio”);
Actuais facilidades de transporte.
Salvo as migrações para São Tomé e Príncipe e Angola, organizadas e
impostas pelo Governo Português até 1974, os movimentos para os restantes
países do mundo têm sido de ordem individual ou familiar, ou seja, têm sido o
fruto da espontaneidade dos actores sociais intervenientes.
A primeira corrente migratória cabo-verdiana, datando do final do século XVII
ou princípios do século XVIII, ter-se-á dirigido para os E.U.A., para onde
partiram como marinheiros a bordo de baleeiras que, com frequência,
passavam pelo arquipélago.
Carreira (1977) está convicto de que estes precursores teriam ido em
pequenos grupos, em reduzido número, e apenas homens. Só depois de
instalados e adaptados à nova realidade, teriam chamado para junto de si as
mulheres e filhos (geralmente por carta).
Ainda hoje, o quadro de apoios à deslocação dos cabo-verdianos para Portugal
é diferenciado segundo o sexo. “No caso dos homens, o suporte financeiro
assenta em recursos situados no país de origem (próprios ou dos familiares
residentes em Cabo Verde), enquanto as mulheres apresentam uma maior
dependência (embora não dominante) relativamente aos familiares já
instalados em Portugal. Esta evidência aponta para um modelo típico das
migrações laborais clássicas, com um movimento em dois tempos: numa
Afinal, quem sou eu?
83
primeira fase imigram os indivíduos do sexo masculino que procuram inserir-se
no mercado de trabalho e encontrar um local de residência; na segunda fase
ocorre o reagrupamento familiar, com a chegada das mulheres e,
eventualmente, das crianças” (Gomes, 1999:45).
A forma como o cabo-verdiano conceptualiza a família, também contribui para
esta circunstância. Dada a importância que atribui aos laços biológicos, sente-
se responsável e solidário com todos os membros da sua família,
independentemente do lugar onde se encontrem a residir. Inclusive, todo
aquele que não preste auxílio aos parentes é apontado pela sociedade como
tendo um mau carácter, uma má índole.
No entanto, não estamos perante um fenómeno exclusivamente cabo-verdiano.
Muitos outros migrantes, designadamente os portugueses, passaram (e
continuam a passar) por uma situação afim: “Os volumosos efectivos de
homens jovens, que antes compunham larga parte das correntes migratórias,
são agora substituídos por mulheres e crianças. As correntes tornaram-se
assim substancialmente correntes de manutenção. Perderam o ímpeto de
expansão que antes as caracterizava. São agora alimentadas sobretudo pelo
processo de junção de famílias” (Barata, 1974:4).
Apesar de acalentarem o mito do eterno retorno, muitos destes primeiros
migrantes, na altura devida, acabaram por decidir-se pela permanência
efectiva. A extraordinária oferta de trabalho e as generosas remunerações
mensais, em comparação com o que aufeririam no seu país, certamente
contribuíram para esta determinação.
Relativamente aos movimentos migratórios cabo-verdianos, do século XX,
Carreira (1977) identifica três fases. São elas:
Afinal, quem sou eu?
84
Quadro 2. Principais movimentos migratórios cabo-verdianos
FASE DATA e
TOTAIS
CARACTERÍSTICAS
1ª 1900-1920
T= 27.765
(indivíduos)
Marcada pela migração espontânea orientada para os E.U. É
de salientar a influência exercida pelos precursores deste
movimento (informação veiculada, apoio económico e
psicológico, etc.)
2ª 1927-1945
T= 10.120
(indivíduos)
Nesta fase, são duas as tendências migratórias: i) uma baixa
sensível da média anual de saídas (em consequência do
surto de fome ocorrido entre 1921-22 e da depressão
económica mundial de 1929-33); ii) um nítido desvio da
tradicional corrente migratória rumo aos E.U., provocado, em
parte, pelas leis americanas de 1919, 1924 e 1938,
impeditivas da entrada. Destinos alternativos: Dacar e Guiné.
3ª 1946-1973
T= 6.804
(indivíduos)
(Valores
relativos a
1946-52)
Fase do grande êxodo, marcada pela espectacular viragem
de orientação dos destinos dos cabo-verdianos. Por razões
circunstanciais e conjunturais, passam a rumar para os países
europeus: primeiro para a Holanda e, poucos anos volvidos,
para Portugal, França, Luxemburgo, Itália, Suiça, etc.
Esta tradição de partir, bastante enraizada nas gentes de Cabo Verde, continua
a perdurar (o contrário também não seria viável, por razões óbvias). Em 1985,
o Emigrason de 5 de Julho estimava os cabo-verdianos residentes no
estrangeiro entre 405 000 e 420 000 (veja o quadro nº3, página seguinte). “Em
1993, o Bundeskanzleramt da Áustria apresentava o valor de 482 500 como
estimativa máxima para o número de indivíduos com pelo menos um ancestral
cabo-verdiano a viverem no exterior, no final de 80 (aproximadamente 300 000
no continente americano, um pouco mais de 100 000 na Europa e cerca de
76000 em África). Actualmente, será de admitir um valor aproximado dos
500000 para o número de cabo-verdianos a residir fora de Cabo Verde”
(Gomes, 1999:21).
Afinal, quem sou eu?
85
Quadro 3. Estimativa do número de cabo-verdianos residentes no estrangeiro
AMÉRICA
EUA
Brasil
Argentina
255 000
250 000
3 000
2 000
ÁFRICA
Angola
Senegal
São Tomé
Guiné-Bissau
Moçambique
Gabão
67 900 a 76 200
35 000 a 40 000
22 000 a 25 000
8 000
2 000
700 a 1000
200
EUROPA
Portugal
Holanda
Itália
França
Luxemburgo
Espanha
Suiça
Bélgica
Suécia
RFA
Noruega
82 700 a 88 200
50 000
10 000
8 000 a 10 000
7 000 a 9 000
3 000
1 500 a 2 000
1 000 a 2 000
800
700
500
200
TOTAL 405 600 a 419 400
Fonte: Saint-Maurice (1997:47)
Os efeitos da diáspora são bem visíveis “na paisagem humana e física de
quase todas as ilhas” (França, 1992:42), reflectindo-se “não só no tecido social
que a todo o momento se reconstrói, como na própria cultura. Os contributos
culturais das sociedades de imigração (para as sociedades de emigração)
Afinal, quem sou eu?
86
reflectem-se nas formas de estar, de vestir, nas práticas de sociabilidade, no
consumo, na concepção e utilização do espaço, enfim, até mesmo nos valores
que por vezes se antagonizam com os sustentados pelos que nunca partiram.”
(Saint-Maurice, 1997:48-49).
Afinal, quem sou eu?
87
Capítulo 3. Os cabo-verdianos em Portugal
Os cabo-verdianos em Portugal estão enredados numa teia complexa de
relações interpessoais, perceptível pela densidade de contactos com núcleos
de conterrâneos em países terceiros (com destaque para a França, a Holanda,
os EUA, a Itália e a Espanha).
Tudo indica tratar-se de uma comunidade transnacional, “(...) que tem em
Portugal uma plataforma de rotação, quer para a partida para outros locais,
sobretudo para a Europa, quer para a chegada de indivíduos que já tiveram
experiências migratórias em países terceiros” (Gomes, 1999:47).
“É com base nestas idas e vindas e nas redes de trocas e relações que as
comunidades no exterior estabelecem com as suas terras de origem que surge
na literatura da especialidade o conceito de transmigrante” (Quintino, 1999:21).
Esta elevada mobilidade, associada à inexistência de um controlo real das
entradas de estrangeiros, explica, em certa medida, a dificuldade das fontes
estatísticas oficiais, designadamente do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras
(SEF) e do Instituto Nacional de Estatística (INE), em obter dados escrupulosos
sobre a população cabo-verdiana a residir na “cauda da Europa”.
A diversidade do universo em questão constitui um outro entrave: a
comunidade cabo-verdiana é a soma dos cabo-verdianos residentes, dos
portugueses de naturalidade cabo-verdiana, dos portugueses nascidos em
Portugal mas com origem cabo-verdiana (descendentes) e dos cabo-verdianos
com outras nacionalidades (por exemplo, de outros PALOP).
A informação estatística que apresento neste trabalho, concernente à
população cabo-verdiana a residir em Portugal, por questões de ordem prática,
deriva dos elementos disponíveis no XIII Recenseamento Geral da População
Afinal, quem sou eu?
88
e III Recenseamento da Habitação de 1991 pelo INE e no IECCV (Inquérito do
Estudo da Comunidade Cabo-verdiana) de 199844.
Já foi mencionado que, mais que uma mera tendência natural, a atracção dos
migrantes para espaços geográficos específicos é uma estratégia de
concentração sociocultural. Como se pode observar pelo quadro nº4, os cabo-
verdianos vêm confirmar esta prática: de um total de 15.714 indivíduos, são
cerca de 14.153 os que residem (ou residiam) em Lisboa e Vale do Tejo.45
Quadro 4. Distribuição regional dos cabo-verdianos que residem em Portugal, pelas NUTS 2
CABO-VERDIANOS DIANOS
N %
Norte 259 1,7
Centro 242 1,5
Lisboa e Vale do Tejo 14.153 90,1
Alentejo 196 1,3
Algarve 766 4,9
Madeira 14 0,1
Açores 84 0,5
Total 15.714 100,1
Fonte: INE, Censo de 1991
Os primeiros bairros cabo-verdianos (na verdadeira acepção do termo), que
surgiram ainda na década de 70, foram o da Venda Nova e o da Pedreira dos
Húngaros. “Eram zonas desgraçadas, que não prestavam, indesejáveis. Mas
44
Apesar da enorme discrepância entre os valores revelados por estas Instituição e os apresentados por outras fontes, as ilações são semelhantes. Sobre este tema veja os estudos desenvolvidos por Gomes (1999) e Bastos et al. (1999) (ambos confrontam os dados recolhidos e publicados por diversas fontes, designadamente INE, SEF, IECCV, Entreculturas, STAPE, entre outros). 45
45
Gomes (1999:59) declara que, em 1999, o contingente de população cabo-verdiana deveria situar-se, com elevada garantia, entre 79.000 e 85.000 indivíduos (consistindo em 83.000 o valor médio). Baseando-se nestes dados, demonstra, igualmente, que 90% desta população está concentrada nos distritos de Lisboa e Setúbal. Bastos et al. (1999:36), com dados relativos a 1998, verifica a mesma tendência.
Afinal, quem sou eu?
89
eram as possíveis. Eram indispensáveis e não foi fácil consegui-lo. Na Venda
Nova, por exemplo, houve grandes guerras entre cabo-verdianos e ciganos que
não queriam deixar instalar os novos migrantes. A afirmação foi feita à custa de
muitos conflitos, com mútuas agressões e incêndios. Depois, estes espaços
começaram a ficar pequenos e muitos outros bairros foram sendo construídos.
Os maiores são na Amadora (Alto da Cova da Moura, Bairro de Santa
Filomena, Venda Nova) e em Oeiras (Pedreira dos Húngaros, Alto de Santa
Catarina)” (Rocha et al., 1993:32).
Vicente (1998), num estudo realizado no bairro do Alto da Cova da Moura,
apurou, por um lado, que a falta de espaço, de higiene e de segurança são os
principais factores que actuam ao nível da insatisfação dos moradores e, por
outro lado, a constrição dos laços de amizade, de solidariedade e das redes de
suporte informais operam como factores geradores de satisfação.
Como se pode verificar pela leitura do quadro nº5 (página seguinte), existem,
para além destes, muitos outros espaços de “terra trazida” de Cabo Verde,
nomeadamente Azinhaga dos Besouros, Estação Militar do Alto da Damaia,
Bairro 6 de Maio, Fontaínhas, Alto dos Barronhos, Alto da Loba, Quinta da
Serra, Via Longa (Icesa), Marianas, Estrêla d`África, Quinta da Vitória e Portas
de Benfica. Na margem Sul do Tejo (distrito de Setúbal), temos a Bela Vista
(Amarelo), a Quinta da Princesa e Santa Marta de Corroios.
Visitei alguns destes aglomerados, mas o de Santa Marta de Corroios, por
razões óbvias, foi o único que esquadrinhei. Trata-se um bairro degradado,
com 172 barracas46, na sua maior parte construídas em tijolo e cimento,
inacabadas e sem rebouco, encontrando-se em condições precárias. Não
existe rede de esgotos, a água para consumo é fornecida por três “bicas” de
utilização colectiva e a energia eléctrica é fornecida por um único contador.
46
Dados relativos a 1995 (fornecidos pela Câmara Municipal do Seixal).
Afinal, quem sou eu?
90
O bairro é constituído por 247 famílias, na sua maioria oriundas dos PALOP,
com especial incidência para os santomenses e cabo-verdianos (veja
novamente o quadro nº6).
Quadro 5. Os 20 maiores bairros de cabo-verdianos nos distritos de Lisboa e de
Setúbal
Bairro Habitação Freguesia Concelho Africanos Cabo-verdianos
%
Alto de Sª Catarina B Linda-a-velha
Oeiras 2.670 2.520 94,4%
Azinhaga dos Besouros
B Brandoa Amadora 2.772 2.429 87,6
Alto da Cova da Moura
D Buraca e Damaia
Amadora 3.170 2.340 73,8
Est. Militar do Alto da Maia
D Reboleira Amadora 2.162 2.126 98,3
Pedreira dos Húngaros
B Linda-a-velha
Oeiras 2.026 1.681 83,0
Bela Vista (Amarelo)
S S.Sebastião Setúbal 2.200 1.500 68,2
Bairro 6 de Maio B Falagueira/ V. Nova
Amadora 1.365 1.325 97,1
Fontaínhas B Falagueira/ V. Nova
Amadora 1.356 1.308 96,5
Alto dos Barronhos B Carnaxide Oeiras 1.400 1.275 91,1
Alto da Loba S Paço de Arcos
Oeiras 1.330 1.211 91,1
Santa Filomena B Mina Amadora 1.473 1.210 82,1
Quinta da Serra BD Prior Velho Loures 3.100 1.200 38,7
Via Longa (Icesa) S Via Longa V.F. Xira 2.175 1.125 51,7
Marianas B Carcavelos Cascais 1.690 945 55,9
Estrêla d`África B Falagueira/ V. Nova
Amadora 905 840 92,8
Quinta da Vitória D Portela Loures 1.540 750 48,7
Santa Marta de Corroios
D Corroios Seixal 860 720 83,7
Portas de Benfica BD Venda Nova
Amadora 688 674 98,0
Quinta da Princesa S Amora Seixal 895 670 74,9
Quinta dos Cravos B Marvila Lisboa 735 665 90,5
Legenda: B – Predominantemente barracas; D – Casas abarracadas ou habitações degradadas, de renda baixa; S – Habitações de renda social.
Fonte: Bastos et al., 1999:44
Afinal, quem sou eu?
91
A naturalidade da população residente mostra o elevado grau de confluência
de culturas (veja o quadro nº6, pág. 89). No entanto, o relacionamento entre os
vários grupos não se tem processado da melhor forma. Segundo a Câmara
Municipal do Seixal, este bairro encontra-se dividido em duas zonas distintas: a
zona branca e a zona negra o que tem dificultado o relacionamento inter-étnico
dos seus habitantes47.
Para além destas características, comuns a qualquer outro bairro de casas
abarracadas, podemos ver mulheres a cutchir o milho no pilão e a separá-lo no
balaio48, alguns bancos à porta das casas, crianças pacientemente à espera
que acabem de lhes fazer as tranças, gente a jogar às cartas... podem ouvir-se
muitos risos, música a sair das habitações em alto som (nem sempre cabo-
verdiana) e muitas palavras (senão todas) em crioulo.
Depois de conhecer e conviver com diversos residentes (sobretudo mulheres e
crianças), dei-me conta de que, também aqui, os cabo-verdianos são fadjado.49
47
Das várias vezes que visitei o bairro, não me apercebi desta fronteira entre brancos e negros. 48
Complemento do pilão. “Trata-se de um cesto pouco fundo, de diâmetro variável (35 a 40cm), feito de fibras de folhas de palmeira, tiras de carriço e bordadura de varas, presas com cordas de bananeira ou piteira” (Filho, 1997:219) . 49
Esta descrição corresponde à forma como vejo estes bairros. A minha familiaridade com o espaço e com as pessoas, aliada à importância que atribuo aos elementos tipicamente cabo-verdianos, não me induzem a dar relevo a aspectos como a falta de saneamento básico ou a criminalidade. No entanto, é óbvio que ninguém entra num destes bairros sem que tenha um objectivo muito específico e, sobretudo, sem que tenha pelo menos um informador qualificado (por forma a que quando for interpelado possa responder que anda à procura de fulano X). Só assim é possível circular por estes caminhos com relativa segurança. Confesso que apreciei bastante percorrer Santa Marta de Corroios e ouvir, com alguma frequência, chamarem-me pelo nome, especialmente as “minhas” crianças.
Afinal, quem sou eu?
92
Quadro 6. População do Bairro de Santa Marta de Corroios por País de origem50
País de Origem Nº %
Portugal 223 31,5
São Tomé 215 30,4
Cabo Verde 203 28,7
Angola 37 5,2
Guiné 25 3,5
Moçambique 1 0,1
Não referido 4 0,6
TOTAL 708 100
Fonte: Projecto de Intervenção em Santa Marta de Corroios (Candidatura ao II QCA, Subprograma INTEGRAR, S.C.M. Seixal). Ano 1995.
A estrutura etária da população cabo-verdiana caracteriza-se pela sua
jovialidade (cerca de 72,5% tem idade igual ou inferior a 44 anos, contra uma
média de 57% da população portuguesa) e pela predominância de indivíduos
em idade activa (o índice da população em idade activa é de 89%, contra uma
média de 67% da população portuguesa).
É ainda de salientar a debilidade dos índices de juventude (7,6%, contra um
valor médio de 20%) e de velhice (3% contra um valor médio de 14%)51.
50
Depois de ler atentamente este projecto, fiquei convencida de que os dados apresentados são referentes à nacionalidade e não à origem dos residentes.
Afinal, quem sou eu?
93
Esta estrutura corrobora o argumento de que a migração cabo-verdiana insere-
se no modelo típico das migrações laborais clássicas (alegórico ascendente
masculino das vagas migratórias). Como se pode observar pelo quadro nº7 e
pela respectiva pirâmide etária (página seguinte), “é uma estrutura típica de
uma população imigrante cujo móbil de emigração assenta em razões
económicas, mais concretamente na procura de emprego que lhes permita
obter um nível mínimo de subsistência” (Saint-Maurice, 1997:63).
Quadro 7. Distribuição etária da população portuguesa e da população cabo-verdiana a residirem Portugal.
Grupo etário Pop, portuguesa Pop, cabo-verdiana
0-4 544.309 156
5-9 646.161 392
10-14 781.933 650
15-19 845.588 1.251
20-24 765.248 1.588
25-29 726.628 1.902
30-34 694.606 2.773
35-39 661.076 2.686
40-44 634.519 1.199
45-49 569.623 765
50-54 559.346 812
55-59 562.041 576
60-64 533.325 428
65-69 470.049 220
70-74 344.747 129
75-79 271.089 93
80-84 165.553 64
85 91.306 30
Total 9.867.147 15.714
Fonte: INE, Censo de 1991
51
O Índice de Juventude refere-se à população com idade compreendida entre os 0 14; o
Índice de Velhice à população com 65 anos; o Índice de População em Idade Activa agrupa
os indivíduos entre os 15 64 anos (não nos podemos esquecer de que estes valores concernem à população com nacionalidade cabo-verdiana a residir em Portugal e não à população portuguesa com ascendência caboverdiana.
Afinal, quem sou eu?
94
Gráfico2. Pirâmide etária da população portuguesa e da população cabo-
verdiana a residir em Portugal.
0200.000400.000600.000800.0001.000.000 0 500 1000 1500 2000 2500 3000
0-4
5-9
10-14
15-19
20-24
25-29
30-34
35-39
40-44
45-49
50-54
55-59
60-64
65-69
70-74
75-79
80-84
/85
Pop. Portuguesa Pop. Cabo Verdiana a residir em Portugal
Fonte: INE, Censo de 1991
Na generalidade, trata-se de uma mão-de-obra desqualificada e com um baixo
nível de escolaridade, o que explica a elevada concentração no sector da
construção civil, indústrias e serviços de limpeza, conforme se pode constatar
da análise dos quadros nº8 e 9 (páginas seguintes).
Afinal, quem sou eu?
95
Quadro 8. Situação profissional dos cabo-verdianos com mais de 14 anos
1991 Efectivos
N %
Activos 10.113 64,4
Patrões e por conta próp. 1.033 10,2
Por conta de outrém 8.966 88,7
Outros 114 1,1
0/1 (Profissões científicas,
técnicas, artísticas, etc.)
98 1,0
2 (Directores e quadros
superiores administativos)
109 1,1
3 (Pessoal administrativo e
similares)
127 1,3
4 (Pessoal de comércio e
vendedores)
142 1,4
5 (Serviços de segurança,
domésticos e similares)
775 7,7
6 (Agricultores, trabs.
Agrícolas, pescadores, etc.)
130 1,3
7/ 9 (Trabs. Das indústrias e
condutores de máquinas)
8.732 86,3
Não-activos 5.601 35,6
Domésticas 1.899 33,9
Estudantes 1.264 22,6
Reformados 548 9,8
Outros 1.890 33,7
Total 15.714 100,0
Fonte: INE, Censos 1991
Afinal, quem sou eu?
96
Quadro 9. Habilitações escolares da Comunidade Cabo-verdiana residente em Portugal por grupos etários (%)
15 15-24 25-34 35-64 64 Total
Analfabetos 0,2 0,6 1,8 15,9 56,1 7,8
Sabe ler e escrever 0,2 1,4 8,5 21,4 24,3 10,6
Ensino primário 19,2 5,3 23,4 37,6 10,3 22,5
Ciclo preparatório 45,5 15,9 20,0 10,7 3,7 18,1
3º ciclo / unificado 35,5 9,1 7,0 2,9 1,9 9,3
Freq. ensino superior 0,0 31,6 9,4 2,6 0,0 11,9
Ensino secundário 0,0 18,7 9,5 2,7 0,9 8,3
Curso médio 0,0 2,9 3,8 2,7 0,9 2,6
Freq. ensino superior 0,0 13,7 11,3 0,8 0,0 6,5
Ensino superior 0,0 0,7 5,1 2,4 1,9 2,2
Mestrado 0,0 0,0 0,0 0,3 0,0 0,1
Doutoramento 0,0 0,0 0,1 0,1 0,0 0,1
Total de respostas 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
10 anos 57,9 0,0 0,0 0,0 0,0 14,8
NR no total dos inquéritos 3,6 6,1 1,3 1,3 3,6 3,3
Fonte: IECCV (Inquérito do Estudo da Comunidade Cabo-verdiana), 1998. n=5147 in Gomes, 1999:111
Gomes (1999) analisa a estrutura da família cabo-verdiana a residir em
Portugal a partir de três situações distintas, designadamente o estado civil dos
inquiridos, o tipo de agregados familiares em que residem e os laços que
mantêm com os familiares no exterior (com relevo para os residentes em Cabo
Verde).
Em relação ao estado civil dos inquiridos e de acordo com as informações
fornecidas pelo IECCV (quadro nº10), o número de indivíduos solteiros supera
Afinal, quem sou eu?
97
a percentagem dos casados e dos que vivem em união de facto. Esta situação
está concordante com a jovialidade característica da comunidade cabo-
verdiana.
Quadro 10. Repartição da população cabo-verdiana por estado civil e sexo
Estado civil HM H M
Solteiro 2921 1528 1393
Casado 1428 747 681
União de facto 529 265 264
Separado/divorciado 137 52 85
Viúvo 86 21 65
Total 5101 2613 2488
Fonte: IECCV (Inquérito do Estudo da Comunidade Cabo-verdiana), 1998. n=5147 in Gomes, 1999:111
No que concerne ao tipo de agregados familiares em que residem e consoante
os valores apresentados no quadro nº11 (página seguinte), é perceptível que a
dimensão da família clássica cabo-verdiana é ligeiramente superior à dimensão
da família portuguesa52.
Também a observação deste quadro revela uma estrutura própria de uma
população migrante: a maioria das famílias cabo-verdianas é constituída por 1
ou por 4 ou mais indivíduos.
Quadro 11. Famílias clássicas, segundo a sua dimensão e pessoas nas famílias
52
De acordo com dados de 1995, fornecidos por Cláudio Furtado, na obra A Mulher Caboverdiana, o tamanho médio da família cabo-verdiana, em Cabo Verde, é de 4.2 indivíduos.
Afinal, quem sou eu?
98
Dimensão das famílias
(nº pessoas)
Total de famílias (pop.
Portuguesa)
% Total de famílias com representante de nacionalidade
cabo-verdiana
%
1 435.864 13,8 1110 17,6
2 797.770 25,3 689 10,9
3 748.123 23,8 937 14,8
4 682.036 21,7 1121 17,7
5 276.056 8,8 949 15,0
6 115.953 3,7 638 10,1
7 48.147 1,5 383 6,1
8 22.018 0,7 221 3,5
9 10.489 0,3 130 2,1
10 10.947 0,3 143 2,3
TOTAL 3.147.403 100 6321 100
Pessoas nas famílias
9.808.961
25573
100
Dimensão média da família
3,1 4,0
Fonte: INE, Censos 1991
São várias as razões para que “em igualdade de circunstâncias (estrutura
etária), os padrões familiares dos cabo-verdianos sejam relativamente mais
extensos do que os da sociedade de acolhimento: o superior índice de
fecundidade (maior número de filhos por mulher), provável na comunidade
cabo-verdiana (...); a maior dificuldade, por razões económicas, de constituição
de agregados independentes por parte dos jovens (o que retarda a saída da
residência familiar e a fragmentação dos agregados); e o apoio à família
alargada, no âmbito das redes migratórias” (Gomes, 1999:82).
Longe da família, dos amigos e da terra onde nasceu, o migrante sente
necessidade de se integrar numa rede (ou em várias) que atenue essa
ausência. A rede social, reflexo de um reinforço da identidade étnica, influi para
além de quaisquer fronteiras físicas
Em relação aos laços que a população cabo-verdiana mantém com outros
núcleos de conterrâneos, geralmente são perpetuados por intermédio de
Afinal, quem sou eu?
99
cartas, do envio de dinheiro e outros bens (bolachas, panos, roupa, perfumes,
medicamentos, etc.), telefone, visitas esporádicas, associações, etc.
Afinal, quem sou eu?
100
PARTE II
OS ALUNOS E A ESCOLA BÁSICA Nº5 DE SANTA
MARTA DE CORROIOS
PARTE II. Os Alunos e a Escola Básica nº5 de Santa Marta de
Corroios
Afinal, quem sou eu?
101
Afinal, quem sou eu?
102
Capítulo 4. Caracterização dos alunos
A leitura do gráfico nº4 ao gráfico nº11 (da página 103 à 106), prova que a
composição deste microcosmos reflecte, efectivamente, os movimentos e
características da sociedade portuguesa.
Uma primeira observação prende-se com um dos fenómenos que caracteriza o
tecido social português: a pluralidade de singularidades. A partir do momento
em que 55% do universo de estudo apresenta uma ascendência africana,
torna-se também inelutável a heterogeneidade deste espaço.
De facto, apenas 45% dos alunos abordados afirmaram que os seus pais são
portugueses. Os restantes declararam uma origem africana (sobretudo cabo-
verdiana, santomense e angolana).
Muito cedo me dei conta de que a maioria dos alunos portugueses com origem
africana (não os de nacionalidade africana) é sensível a esta temática: de todas
as vezes que o assunto surgiu as suas atitudes e respostas reflectiram um zelo
desmedido.
Numa das primeiras incursões à Escola nº5 de Santa Marta de Corroios,
procurei, desde logo, averiguar a nacionalidade e origem dos alunos em
estudo. Alguns deles, perante a minha hesitação quanto à sua nacionalidade,
rapidamente respondiam: "Eu não! Eu não sou cabo-verdiano! Eu sou
português!". De seguida, inquiridos a respeito da nacionalidade dos pais,
retorquiam: "Ah, eles são cabo-verdianos. Mas eu, sou português".
Um outro fenómeno que confirma a representatividade deste microcosmo está
subjacente a alguns valores, aparentemente paradoxais, apresentados nos
gráficos.
Afinal, quem sou eu?
103
Sabendo que a população são-tomense a residir em Portugal é numericamente
bastante inferior à população cabo-verdiana53, parece ilógico que 10% dos
alunos tenha nacionalidade são-tomense e que apenas 6% sejam cabo-
verdianos.
No entanto, se atentarmos mais uma vez para a nacionalidade dos pais dos
alunos, vemos que cerca de 30% são cabo-verdianos e que apenas 21% são
são-tomenses.
Esta situação é facilmente explicada se nos recordarmos de que, desde a
década de 60, milhares de cabo-verdianos têm deixado a sua terra rumo a
Portugal. Muitos desses primeiros migrantes, com ou sem intenção, acabaram
por ficar, inserindo-se a nível instrumental numa nova sociedade. Estes alunos
são os seus descendentes.
Relativamente à distribuição da população por sexos, poucas são as
considerações a tecer, uma vez que estamos perante uma população
equilibrada. Observando o gráfico nº3 (página seguinte), vemos que 54% dos
alunos são do sexo masculino e 46% são do sexo feminino.
O cruzamento desta variável com todas as outras que foram analisadas (ver
anexo 5) demonstra que não houve nenhum condicionamento dos resultados
com base no sexo.
53
Segundo o XIII Recenseamento Geral da População de 1991, existem pouco mais de 2000 santomenses a residir em Portugal (contra os 15.714 cabo-verdianos estimados pela mesma fonte e para o mesmo ano).
Afinal, quem sou eu?
104
Gráfico 3. Distribuição dos alunos por sexo e idade
(Pirâmide etária)
É importante referir que a grande maioria dos alunos de origem africana e
alguns alunos de nacionalidade e origem portuguesa habitam (ou habitavam)
no Bairro de Santa Marta de Corroios.
Esta contingência tem implicações directas no seu comportamento. Por
exemplo, muitas destas crianças têm uma sobrecarga de tarefas extra-
escolares (cuidar dos irmão mais novos, levá-los à creche, lida da casa ou de
outros pequenos estabelecimentos, etc.), que tanto podem ser executadas
antes como depois das aulas (as aulas têm início às 8 horas e terminam às 18
horas).
É por estas razões (entre outras) que, infelizmente, nem têm disponibilidade
nem disposição para efectuar os trabalhos de casa, nem estão com a devida
atenção a tudo o que o professor lhes está a ensinar (ou a tentar ensinar) na
sala de aula.
Num trabalho sobre o insucesso escolar das crianças cabo-verdianas, Moniz,
também ela cabo-verdiana, acentua que estas crianças, sobretudo as
Afinal, quem sou eu?
105
raparigas, demonstram uma maturidade precoce no que concerne a
responsabilidades do foro doméstico: “ter uma rapariga em casa é motivo de
satisfação para quem trabalha, pois, ao chegar, espera encontrar tudo feito,
desde casa arrumada até refeições confeccionadas. Se tiver uma criança
pequena, e a rapariga tiver os seus 10 anos, não precisa recorrer a ajudas
suplementares, pois esta fica encarregue de tudo. (...) +Isto liga-se a uma
tradição muito antiga em que se casava muito cedo, e a ideia de prepará-las
quanto antes para esse efeito, mantém-se” (Moniz, 1997:15).
Também Aguiar (1997)54 defende que as crianças que residem em “bairros
cabo-verdianos” exteriorizam atitudes e comportamentos que tendem a
dificultar a sua inserção no ensino básico.
Para além destes problemas, resultantes da circunstância de crescerem num
espaço segregado (caracterizado por uma cultura muito própria e diferente da
cultura dominante), não podemos ignorar que a maioria destas crianças
apresenta um défice de saúde, alimentação e condições de higiene (para além
do tão falado défice de língua ou do défice de material escolar).
É então natural que, quando solicitados a responderem à questão "Quem sou
eu?"55, tenham declarado, antes de mais, “Somos crianças” (ver Anexo 5 /
gráfico 1), ou seja, “independentemente de termos de efectuar uma série de
tarefas, nós também temos o direito a comportarmo-nos enquanto crianças;
afinal, é isso que nós somos”. Curiosamente, as crianças portuguesas brancas
à mesma pergunta responderam “Somos portuguesas” (a categoria “criança”
surge como 4ª escolha).
54
Este estudo, realizado na Escola Básica nº2 da Damaia (Lisboa), incidiu igualmente sobre crianças que frequentavam o 3º e 4º anos. Tendo como grupo alvo 12 crianças, algumas a residir no bairro 6 de Maio e no bairro Estrela d`África, a autora propõe-se a verificar a hipótese de que a segregação residencial influencia o comportamento das crianças das minorias étnicas dificultando a sua inserção na escola. 55
Esta questão metodológica, foi explicada nas páginas 53-54.
Afinal, quem sou eu?
106
Nacionalidade dos Alunos do 3º ano
1
23
6
31
1
1
1
1
1
0
5
10
15
20
25
30
7 8 9 10 11 12 13 14
Idade
Nú
mero
de a
lun
os
O
A
ST
CV
P
Gráfico 4. Idade e nacionalidade dos alunos que frequentaram o 3º ano da Escola nº5 de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97.
Gráfico 5. Relação entre a idade dos alunos que frequentaram o 3º ano da Escola nº5 de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a nacionalidade dos seus pais
Afinal, quem sou eu?
107
Gráfico 6. Relação entre a idade dos alunos que frequentaram o 3º ano da Escola nº5 de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a nacionalidade das
suas mães
Gráfico 7. Relação entre a idade/nacionalidade dos alunos que frequentaram o 3º ano da Escola nº5 de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a
nacionalidade dos pais (mãe/pai) dos alunos
34
19
19
1
11
11
3
7
5
14
110
10
20
30
40
50
60
70
80
Nú
me
ro d
e P
es
so
as
P CV ST A O
Nacionalidade
Nacionalidade dos Alunos e Pais do 3º ano
Maes
Pais
Alunos
Nacionalidade das Maes dos Alunos do 3º ano
7 8 9 10 11 12 13 141
15
2 1
5
3 3
3
1
1
2
1 1
0
5
10
15
20
25
30
35
1 2 3 4 5 6 7 8
Idade
Nú
me
ro d
e m
ae
s
A
ST
CV
P
Idade
Afinal, quem sou eu?
108
Gráfico 8. Idade e nacionalidade dos alunos que frequentaram o 4º ano da Escola nº5 de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97.
Gráfico 9. Relação entre idade dos alunos que frequentaram o 4º ano da Escola nº5 de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a nacionalidade dos
seus pais.
Nacionalidade dos Alunos do 4º ano
1
17
45
1 1
2
1
1
2
1
1
1
2
1
0
5
10
15
20
25
7 8 9 10 11 12 13 14
Idade
Nú
mero
de a
lun
os A
ST
CV
P
Nacionalidade dos Pais dos Alunos do 4º ano
1
13
12
4
2
4
1 1
5
2
2
1
1
10
5
10
15
20
25
7 8 9 10 11 12 13 14Idade
Nú
mero
de p
ais
A
ST
CV
P
Afinal, quem sou eu?
109
Gráfico 10. Relação entre idade dos alunos que frequentaram o 4º ano da Escola nº5 de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a nacionalidade das
suas mães.
Gráfico 11. Relação entre a idade/nacionalidade dos alunos que frequentaram o 4º ano da Escola nº5 de Santa Marta de Corroios no ano lectivo de 1996/97 e a
nacionalidade dos pais (mãe/pai) dos alunos
Nacionalidade das Maes dos Alunos do 4º ano
1
12
13
4
2
3
1 1
6
2
2
1
1
10
5
10
15
20
25
7 8 9 10 11 12 13 14Idade
Nú
mero
de m
aes
A
ST
CV
P
Afinal, quem sou eu?
110
Capítulo 5. Uma escola Intercultural?
Apesar do esforço por parte dos professores, penso que o esforço que está a
ser desenvolvido na Escola nº5 de Santa Marta de Corroios no sentido de dar a
conhecer e valorizar o Outro, ou seja, no sentido de dar “vida e alma” aos
projectos interculturais, ainda não é o suficiente.
Esta iniciativa, à semelhança de tantas outras, está a desenvolver, em relação
às crianças de origem africana, “manifestações folclóricas
descontextualizadas”, o que é qualificado por Torres (1994:149-151) da
seguinte forma:
1- “Trivialização”: consideram-se apenas os aspectos mais evidentes da
realidade, como por exemplo, hábitos alimentares, indumentária,
manifestações festivas, folclore, etc.
2- “Tratamento da informação como recordações ou dados exóticos”:
contrariamente ao que se verifica relativamente aos valores e
conhecimentos da cultura dominante, que são acompanhados e
ilustrados por toda uma gama de materiais didácticos, desde livros a
material informático, apenas uma minoria (quando existe uma minoria)
da informação respeitante às minoria étnicas é veiculada com o recurso
a meios similares.
3- “Desconexão das situações de diversidade da vida quotidiana nas
aulas”: “O Dia de...”, é uma prática corrente das escolas que
desenvolvem, ou pretendem desenvolver, projectos interculturais. No
entanto, este acto estimula a que se fale de determinados
acontecimentos apenas uma vez por ano (e nem sempre
contextualizados da melhor forma)56.
56
Também Machado faz referência a esta prática comum: “As mensagens multiculturais seriam então emitidas na convicção, não questionada, de que essa pertença é algo que vai por si, relativamente imutável e contida dentro das suas próprias fronteiras, dando azo a representações estereotipadas e folclorizantes da chamada “cultura de origem” das crianças
Afinal, quem sou eu?
111
4- “Estereotipização”: Infelizmente, recorre-se com alguma frequência a
estereótipos do tipo “os cabo-verdianos são agressivos e andam com
facas”, “os ciganos são ladrões”, “os africanos vivem miseravelmente”,
etc. Ao invés de esclarecer uma situação, está a acentuar-se e a
revitalizar a discriminação dos migrantes e sua descendência.
5- “Tergiversação”: Muitas vezes a história dos povos é apresentada de
forma a justificar a opressão “natural” de algumas sociedades.
6- “Paternalismo”: Assenta na crença da superioridade de uns povos sobre
outros, nomeadamente dos europeus sobre os africanos. Não raras
vezes, o ocidental é apresentado como o salvador dos nativos, dos
indígenas...”se não fosse o homem branco, certamente os africanos
ainda se encontrariam num estado primitivo”. Nestas sessões, são
usuais palavras como “donativos”, “sacrifício”, “caridade”, “pena” para
com os povos dos países subdesenvolvidos.
Apesar do empenho desta instituição e da própria Câmara Municipal do Seixal,
é por todos estes motivos que, ao longo do trabalho me refiro à Escola de
Santa Marta de Corroios enquanto um espaço pluricultural e não intercultural.
Esta escola ainda não conseguiu destacar-se no quadro geral das acções
educativas interculturais que estão a ser desenvolvidas um pouco por todo o
País. As actividade com vista a promover o diálogo entre nós e os outros não
passaram de “curriculum tipo turista” (Torres, 1994): encenação de uma dança
africana; realização, uma vez por ano, do almoço constituído por alimentos e
pratos africanos (cuscus, cachupa, etc); narração de experiências pessoais
sobre Cabo Verde, mais concretamente sobre a Boavista (esta escola é
(associando-se a “cultura cabo-verdiana”, por exemplo, a certas práticas culinárias ou a certos tipos de música) (Machado, 1994:125-126).
Afinal, quem sou eu?
112
geminada com uma escola desta ilha, pelo que o intercâmbio de professores
constitui uma das prerrogativas) e pouco mais57.
Também Cortesão et al. (1991) são de opinião de que a educação intercultural
no nosso país não é praticada. Chegam mesmo a afirmar que, enquanto a
escola e os currícula não tiverem em conta a cultura, as necessidades e os
interesses dos grupos minoritários, a educação intercultural não passará de
uma intenção, de uma utopia.
Parafraseando Moscovici (1992), se o nosso aparelho cognitivo funciona como
uma orquestra, a escola só reconhece o funcionamento de um instrumento a
solo. Ou seja, a expressão “diálogo entre-culturas” não abdica da transmissão
unidimensional das normas e conhecimentos da «tribo branca». As formas de
cultura étnica não têm lugar neste Universo.
Ainda a este propósito, Wells (1975) defende que os alunos negros, porto-
riquenhos, mexicanos e de outras minorias, que estudam em escolas
americanas, demonstram uma maior aptidão e interesse por um ensino que
reflicta o recurso a metodologias de carácter prático (não incidindo
exclusivamente em livros e gramáticas).
Ao ingressarem neste mundo (o mundo escolar, o veículo da socialização
formal), uma das primeiras regras que as crianças cabo-verdianas rapidamente
aprendem é a de que, dentro do edifício escolar, a língua oficial é a portuguesa.
Quanto ao crioulo, sua língua de sempre, há que evitá-lo (apenas no recreio,
espaço profano, é que podemos ouvi-las a comunicar em crioulo).
Durante a minha permanência neste espaço, apercebi-me de que a utilização
do crioulo por estas crianças, para além de uma necessidade, é sobretudo um
acto de afirmação face ao Outro. "A aprendizagem de uma língua é mais que
57
É importante deixar claro que não sou contra este tipo de actividades, considero-as é insuficientes face aos objectivos da educação intercultural. No entanto, na impossibilidade de se realizarem outras actividades mais incisivas é óbvio que estas são sempre preferíveis a nenhumas.
Afinal, quem sou eu?
113
uma simples sequência de exercícios escolares. É a ligação entre o indivíduo e
aqueles que falam a mesma língua" (Duyckaerts,1994:31), por oposição aos
que não a entendem, por oposição ao Outro.
Esta é uma das causas que explica as dificuldades acrescidas que estas
crianças sentem ao longo da sua formação escolar: se sempre falaram em
crioulo, e se pensam em crioulo, é nesta língua que, instintivamente, tendem a
expressar-se na escrita. Assim, se pronunciam «tera», ao invés de «terra», é
«tera» que escrevem e lêem.
Numa das sessões de trabalho na escola, um aluno de nacionalidade
portuguesa, mas de origem cabo-verdiana, escreveu incorrectamente a palavra
«terra» (tendo escrito «tera») durante a elaboração de uma composição. A
reacção de uma colega sua que se apercebeu do sucedido, foi a de começar a
rir-se e a chamar a atenção de todos os outros: “- Já viram? O António não
sabe escrever «terra»! É mesmo burro!”. Após estas observações, todos os
outros começaram a rir-se. Quanto ao António, deu sinais de estar muito aflito
e envergonhado.
Perante esta situação, que certamente não sucederia se a política educativa
intercultural que se quer introduzir estivesse a actuar, a minha reacção foi a de
chamar a atenção para a circunstância de que, se o António havia errado é
porque havia escrito a palavra «terra» em crioulo, e isso só havia sido possível
porque ele dominava duas e não apenas uma língua, como a maioria dos seus
colegas. Perante este comentário, a situação rapidamente se inverteu e
António, agora orgulhoso, voltou-se para a sua classe e disse: “ – Estão a ver?
Eu sei duas línguas e vocês só sabem uma.”
A questão da língua é fulcral (ainda que não seja a única) para compreender
algumas das dificuldades que as crianças de origem cabo-verdiana
efectivamente sentem ao ingressarem numa escola que veicula um ensino
homogéneo e que não tem em conta a especificidade dos alunos que
compõem as salas.
Afinal, quem sou eu?
114
É o que sucede com aqueles alunos de origem cabo-verdiana que residem em
Santa Marta: em casa e no bairro comunicam de uma forma e na escola é-lhes
exigido que falem de outra completamente diferente, para a qual nem estão e
nem foram preparados.
“O código linguístico da língua materna de uma criança cabo-verdiana é
diferente daquele que é utilizado na escola. Estas crianças ao entrarem para a
escola não apresentam qualquer atraso no desenvolvimento linguístico dentro
das regras e padrões do crioulo, mas revelam dificuldades quando são
confrontadas com determinadas situações que apelam à comunicação em
língua portuguesa (...)” (Gomes, 1996:15).
Moniz (1997) refere que, se por um lado há autores que defendem que seria
positivo que as crianças cabo-verdianas falassem somente o português e não o
crioulo, por outro lado há estudos que revelam que as crianças de origem
estrangeira que dominam bem a sua língua (neste caso o crioulo) têm
apresentado resultados escolares bastante razoáveis.
Face aos êxitos escolares dos filhos de migrantes, os apologistas desta teoria
aconselham as mães estrangeiras a, durante os primeiros anos de vida dos
seus filhos, estabelecerem conversas apenas na língua materna. “Isto porque a
criança necessita de adquirir uma riqueza de linguagem que só é possível se
as mães comunicarem numa língua que lhes é familiar, caso contrário,
adquirem simplesmente uma linguagem pobre que lhes vai dificultar o
desenvolvimento psíquico e a capacidade de aprendizagem” (Moniz, 1997:17).
No caso do português e do crioulo cabo-verdiano, o “segregacionismo
linguístico”, sobretudo nos primeiros anos da sua vida, não é a melhor solução
para as crianças de origem cabo-verdiana.
Afinal, quem sou eu?
115
Independentemente da sua origem, devem aprender a escrever e a falar
correctamente o português, caso contrário, dificilmente conseguirão inserir-se
(a nível instrumental) 58nesta sociedade.
O problema não está no crioulo, mas sim nos currícula que a escola, enquanto
instituição responsável pela transmissão de conhecimentos e valores
coadunados com os interesse da sociedade, veicula. As políticas e acções
educativas não deveriam aspirar a metamorfosear os alunos cabo-verdianos
naquilo que eles não são, nem poderão ser. Devem, sim, procurar devolver-
lhes a auto-estima necessária para que acreditem que vale a pena investir na
sua educação (nomeadamente, através da valorização da sua língua de origem
assim como da sua cultura).
Este é, de facto, um problema. As crianças cabo-verdianas não se sentem
motivadas a conseguir um aproveitamento escolar acima da média. Se, por um
lado, os professores não demonstram confiança em relação a esses alunos,
não acreditando que tenham capacidade para alcançar melhores resultados,
por outro lado, os próprios pais, voltados para investimentos imediatos
(trabalhar e receber o ordenado no fim do mês), não os estimulam nesse
sentido.
É também verdade que a superlotação das classes não facilita o trabalho do
professor. É muito difícil, por vezes impossível, atender às dificuldades e às
especificidades dos alunos.
Na Escola de Santa Marta de Corroios, à semelhança do que se passa um
pouco por todo o País, sobretudo nos locais de maior concentração de grupos
étnicos, não há vencedores neste projecto: os professores sentem-se
insatisfeitos por não conseguirem melhores resultados dos seus alunos e por
terem de estar constantemente a chamar-lhes a atenção (ora pela falta de
58
A inserção dos cabo-verdianos em Portugal verifica-se apenas a nível instrumental e não cultural: os elementos culturais não se desvanecem com facilidade. Há valores que o tempo modifica mas não apaga.
Afinal, quem sou eu?
116
modos59 ora pela lentidão com que aprendem); os alunos com origem africana
mostram-se desinteressados e desmotivados (aprendem matérias com pouca
utilidade prática e sem nenhum significado, descontextualizadas); os pais não
se sentem compensados pelo esforço.
À pergunta: “Porque é que alguns cabo-verdianos conseguem ser bem
sucedidos na escola, mesmo sendo vítimas de todas as dificuldades apontadas
pelo insucesso escolar dos mesmos?”, Moniz alega que “a resposta, entre
muitas outras, pode estar no espírito de insatisfação e na procura incessante
do novo e do diferente, que tem sido demonstrada pela história da migração
cabo-verdiana” (Moniz, 1997:22).
59
Também Milzer (1998:165) refere que as crianças pertencentes a minorias étnicas têm “dificuldade em comportarem-se correctamente na sala, por exemplo, não sabem sentar-se”.
Afinal, quem sou eu?
117
PARTE III
PERCEPÇÕES DO "EU" EM ESPAÇO ESCOLAR
PARTE III. Percepções do “Eu” num Espaço Escolar
Afinal, quem sou eu?
118
Afinal, quem sou eu?
119
"O imaginário infantil está mediatizado pelo que
vê, ouve e sente”.
(Iturra, 1997)
“Mais que uma questão de interiorização, a
socialização é também um processo de
apropriação, reinvenção e reprodução.”
(Saramago, 1999:15)
Hurtado et al. (1994) afirmam que, da mesma forma que pensamos em nós
enquanto seres dotados de uma personalidade única, também pensamos em
nós em termos de categorias sociais e grupos.
A este propósito, Foeman et al. (1999) referem-se à necessidade que todos
sentimos em nos incluir e em incluir os outros em categorias exclusivas. No
entanto, esta pretensão nem sempre é conseguida. Por exemplo, como
considerar uma criança que é filha de um negro com uma branca? Essa
criança é branca ou negra? Similarmente, como considerar uma criança que é
portuguesa mas cujos pais são cabo-verdianos? Essa criança é portuguesa ou
cabo-verdiana?
De facto, a categorização social, assim como a consciência de pertença a uma
determinada categoria, nem sempre são óbvias. É neste contexto que Mattoso
refere "a anedota que se conta do rei D. Luís quando, já bem adiantado o
século XIX, perguntava do seu iate a uns pescadores com quem se cruzou, se
eram portugueses. A resposta foi bem clara: «Nós outros? Não, meu Senhor!
Nós somos da Póvoa do Varzim!" (Mattoso, 1998:15).
Com base nos dados quantitativos e qualitativos obtidos, procurarei traduzir a
visão das crianças da Escola Nº5 de Santa Marta de Corroios, especificando o
caso das crianças de origem cabo-verdiana, e demonstrar quais os elementos
identitários que as caracterizam e que, necessariamente, as opõem a outros
grupos.
Quem são, então, estas crianças de origem cabo-verdiana?
Afinal, quem sou eu?
120
Capítulo 6. Origem e Nacionalidade
Ao analisar as respostas dos alunos ao TST, verifiquei que a nacionalidade
constitui um elemento identitário pertinente. Foram muitos os alunos que
responderam: "Sou português", "Sou cabo-verdiano", "Sou santomense" ou
ainda "Sou angolano" (ver Anexo 5 / quadro 2, gráfico 1).
Não deixa de ser curioso que perante a interrogação "Quem sou eu?", algumas
crianças de nacionalidade portuguesa mas de origem cabo-verdiana, se
tenham identificado enquanto cabo-verdianas, o que me leva a inferir que,
apesar de já terem nascido em território português e de nunca terem ido a
Cabo Verde, vêem-se e sentem-se cabo-verdianas.
É o caso de Serafim, português, filho de pai cabo-verdiano e mãe são-tomense
(9 anos de idade) que responde "Sou negro, sou cabo-verdiano, sou português
e sou criança"; de Bela, aluna portuguesa, origem cabo-verdiana (10 anos de
idade) que se identifica como portuguesa, preta e cabo-verdiana, ou ainda de
Rodrigo, criança portuguesa, origem cabo-verdiana (com 9 anos de idade) que
se afirma, antes de mais, como um cabo-verdiano.
Vanessa, uma aluna de nacionalidade portuguesa mas filha de pais cabo-
verdianos e com 10 anos de idade, na sua auto-descrição, afirma: "Tenho
cabelos pretos, olhos castanhos, sou cabo-verdiana". Um outro aluno, com 10
anos de idade, filho de pai cabo-verdiano e de mãe portuguesa, declara: "Eu
sou o Augusto, sou baixo, sou cabo-verdiano, tenho os olhos castanhos e os
meus cabelos são pretos".
Também Saint-Maurice (1997) refere que, apesar de 92% dos indivíduos por si
inquiridos afirmarem que se sentem cabo-verdianos, apenas 72% o são na
Afinal, quem sou eu?
121
realidade (recordando Bakalian, podemos afirmar que uma coisa é o ser cabo-
verdiano, outra é o sentir-se cabo-verdiano)60.
Não deixa de ser oportuno mencionar que os alunos que sentem necessidade
em afirmar que são cabo-verdianos, mesmo não o sendo realmente, têm 9 ou
mais anos de idade. Segundo autores como Jasinskaja-Lahti et al. (1999) e
Saylor et al. (1999), é, então, natural que estejam conscientes da sua
diferença em relação aos outros portugueses e da sua similaridade com outros
cabo-verdianos (aqueles com quem lidam e convivem diariamente).
Estas crianças demonstram que a identidade, entendida enquanto um
sentimento de pertença a um “nós” por oposição aos “outros”, não é um dado
adquirido mas sim uma estratégia de sobrevivência manipulável.
Independentemente de mostrarem preferência por um prato com bife, batata
frita e ketchup ou por um hamburguer de uma multinacional a uma boa
cachupa, de distinguirem a música rap das mornas (ou de qualquer outra
melodia da sua terra de origem), da sua forma de vestir (típica da juventude
norte-americana: números grandes de t-shirts, sweat-shirts, e calças de ganga
e ainda ténis e boné de marca) e de afirmarem, com muita frequência, que são
portugueses, quando submetidos ao TST, ou seja, quando inquiridos sobre
quem realmente são, respondem que são cabo-verdianos.
Mas, o que é que significa para estas crianças o ser cabo-verdiano? A tradução
que faço do que me foi dado a observar, é a de que, para estas crianças o ser
cabo-verdiano está associado à consciência de partilha de uma mesma língua
e consciência de pertença (real ou imaginária) a um território comum: todos
falam crioulo (e têm orgulho por isso) e todos sentem uma afinidade pela terra
dos seus pais (independentemente de a conhecerem ou não). A este propósito,
veja a figura que se segue (página seguinte).
60
Luís de França, no capítulo V da obra “Comunidade Cabo-verdiana em Portugal” (1992) também trata esta questão do ser e do sentir
Afinal, quem sou eu?
122
Quanto ao grau de consciência étnica61 a maioria das crianças, pelos menos as
mais velhas (entre os 9 e os 13 anos), estará na “fase do encontro com racismo
e sociedade”, ou seja, estes portugueses de origem cabo-verdiana têm a
percepção das suas semelhanças e diferenças em relação ao grupo dominante
(nas relações sociais que estas crianças estabelecem, a noção de “fronteira
étnica” está bem patente).
No entanto, e apesar de alguns afirmarem que têm orgulho na sua
ascendência, penso que nenhum deles explora o significado de pertença a
esse grupo ou estabelece um compromisso com a sua identidade étnica.
Figura 5. “Cabo Verde” imaginado (nunca visitado) por um aluno de origem cabo-verdiana.
Teremos ainda oportunidade de verificar que estes alunos associam as
categorias etnia e “raça”.
61
Sobre este assunto, reveja as páginas 33-34.
Afinal, quem sou eu?
123
Capítulo 7. "Raça"
Na apresentação dos dados, foi-me possível verificar que a maioria dos alunos
que, na 1ª opção, se percepciona em termos de nacionalidade, identifica-se, na
2ª opção, em termos de “raça”, tendo sido frequentes respostas como "Sou
português(a) e sou branco(a)"; "Sou português(a) e sou negro(a)"; "Sou cabo-
verdiano(a) e sou negro(a)" ou ainda "Sou cabo-verdiano(a) e sou preto(o)" (ver
Anexo 5).
No início desta pesquisa, sobretudo depois de ter conversado com N´ganga (no
Congresso de Estudantes Africanos, 1996) e de ter lido a sua obra "Preto no
Branco - a regra e a excepção" (1995)62, deparei-me com uma dúvida em
relação à categoria «Raça»: Estas crianças identificar-se-iam enquanto negras
ou enquanto pretas?
Apesar de vários alunos afirmarem, informalmente, que são negros, porque
pertencem à raça negra e que o preto não é mais que uma cor, por exemplo,
de uma camisola ou de um carro, a verdade é que ao responderem à pergunta
"Quem sou eu?", cerca de metade dos alunos negros respondeu que é preto
(ver Anexo 5 / quadro 2, 4, 6, 8).
Apurei igualmente que na maioria dos trabalhos da autoria das crianças
negras, a palavra "preto" surge com muita frequência.
Esta identificação poderá estar relacionada com o facto de estas crianças
ouvirem mais vezes a designação "preto", quer por parte de outras crianças
quer por parte de alguns adultos.
62
Nesta obra, o autor considera preferível a denominação de "preto" à de "negro": "Agora, o branco já não teme o preto, isto já acabou. Enfim... Agora, só tem pudor, receio, medo de pronunciar a palavra «preto» em frente do preto, e quando o faz ou empalidece, ou dispara uma série de explicações ou, ainda, exalta-se consigo próprio até à flor dos cabelos. Por sua vez, o preto tem pânico, medo, pavor de escutar a palavra «preto»; quando a escuta, gostava de desaparecer, fugir, evaporar-se, receia ser identificado com ela. Não sou preto, sou negro, diz orgulhosamente, sem perceber que não disse rigorosamente nada. Porquê tantos problemas por causa de uma palavra?" (N´ganga, 1995:13).
Afinal, quem sou eu?
124
Ainda que a «Nacionalidade» e a «Raça» tenham sido duas das categorias
mais apontadas por estas crianças, quando lhes sugeri que fizessem o seu
auto-retrato, o qual deveria permitir a sua identificação, averiguei que,
contrariamente aos alunos brancos, a grande maioria dos alunos negros
apropriou-se da categoria oposta (ver Anexo 5 / gráfico 2).
Uma aluna são-tomense, apesar de assegurar: "(...) E eu tenho os olhos pretos
e cabelos pretos", no seu auto-retrato desenhou-se como tendo os cabelos
castanhos claros, maçãs do rosto cor-de-rosa e a pele clara. Ao observar este
auto-retrato, interpelei-a acerca da real possibilidade de, caso não a
conhecesse, a conseguir identificar a partir daquele mesmo desenho. A aluna
pareceu não compreender a minha dúvida. Era óbvio que eu iria identificá-la.
Este caso é semelhante ao de Clotilde, uma outra aluna de nacionalidade
portuguesa, mas de origem cabo-verdiana, que assevera: "Eu sou preta, tenho
olhos castanhos, cabelos castanhos e pequenos (...)". No entanto, como se
pode observar, o seu auto-retrato não corresponde a esta descrição.
Figura 6. Auto-retrato das alunas Felismina e Clotilde a) Felismina, aluna com 9 anos de idade e nacionalidade são-tomense b) Clotilde, aluna com 10 anos de idade, nacionalidade portuguesa e origem cabo-verdiana
Afinal, quem sou eu?
125
São, de facto, muitos os casos de alunos de origem e nacionalidade africana
que, apesar de se descreverem como: "Eu sou preto"; "Eu sou um bocado
preta, os meus olhos são castanhos, o meu cabelo é preto"; "Eu sou mulato";
"Eu sou castanho"; "Eu sou baixinho e tenho os olhos castanhos, cabelos
pretos, nariz preto e ouvidos pretos" ou "Eu sou o Daniel, tenho cabelo preto,
os meus olhos são castanhos e a minha cor é negra", elaboram auto-retratos
reveladores da apropriação da categoria oposta (ver Anexo 4.1).
Inclusive, num outro exercício em que lhes foi sugerido que desenhassem a
árvore genealógica da sua família, a grande maioria dos negros, mesmo
aqueles que haviam realizado um auto-retrato sem apropriação da categoria
oposta, representou os vários elementos como brancos (repare no seguinte
exemplo)63.
Figura 7. Árvore genealógica e auto-retrato. A autoria é de Anabela, aluna com 10 anos de idade, nacionalidade são-tomense. Repare que a aluna não teve o mesmo cuidado na execução dos dois exercícios.
63 Houve apenas uma aluna, Mónica, 9 anos de idade, origem cabo-verdiana que, apesar de
ter realizado um auto-retrato considerado incorrecto, representou correctamente a sua família (veja o Anexo 4.5).
Afinal, quem sou eu?
126
Poderão ser duas as causas para estes casos: i) estes alunos não passaram
por situações que os levassem a consciencializarem-se da sua identidade
racial, pelo que, para estas crianças, é mais importante a sua condição de
crianças que a cor que têm; ou ii) estão a representar-se como gostariam de
ser e não como realmente são, representam o seu eu ideal 64(no entanto,
quando questionados se, caso tivessem o poder de mudar a sua cor o fariam, a
esmagadora maioria dos alunos respondeu negativamente).
Gopaul-McNicol (1995), realizou um estudo nas Índias Ocidentais com 302
crianças da pré-escolar, com idades compreendidas entre os 3 e os 5 anos,
pertencentes a várias classes socio-económicas e com vários tons de pele (do
mais escuro ao mais claro).
Neste estudo, e à semelhança de Clark e Clark, recorreu ao "Doll Test". Para
além desta técnica, 34 dessas crianças foram submetidas às mesmas questões
através do método de múltipla escolha.
Os resultados desta investigação indicam que a atmosfera em que as crianças
vivem, os valores que passam para eles na escola e nos media vão influenciar
a sua percepção.
Assim, a preferência demonstrada pela boneca branca (geralmente associada
aos aspectos positivos, nomeadamente a mais simpática, a mais bonita, aquela
que gostariam de ser, etc) quer por crianças brancas quer por crianças negras,
pode ser explicada com base em quatro factores. São eles:
i) Percepção da supremacia branca (reminiscências de um passado colonial).
64
“Ao desenhar, a criança parece projectar um desejo ou, talvez, uma tentativa de possuir o objecto; se na realidade não o obtém, pelo menos tem uma imagem do mesmo” (Di Leo, 1991:44).
Afinal, quem sou eu?
127
ii) Percepção de que o professor tem preferência pelos alunos brancos (em
privado, alguns admitiram ao autor serem mais atentos e cuidadosos com
crianças brancas, não deixando de demonstrar o seu favoritismo).
iii) Percepção de que o poder económico está nas mãos dos brancos, pelo que
a única forma de ter um bom emprego, ganhar bastante dinheiro e morar numa
casa grande é aspirando a ser branco.
iv) Percepção de que a televisão é racista, ou seja, é quase exclusivamente
branca.
A propósito da influência dos media na percepção da questão racial, quando
consultei os alunos da Escola de Santa Marta de Corroios se já tinham ouvido
falar em racismo e, no caso da resposta ser positiva, através de que meios
(como hipóteses de resposta tinham casa, escola, rua e televisão), a maioria
dos alunos referiu que ouvira falar em racismo na televisão (veja Anexo 5 /
gráfico 17).
No entanto, ainda que já tenham ouvido falar, muitos não souberam explicar o
que é:
"O racismo é uma coisa muito má e eu não gosto do racismo". (António, 9 anos
de idade, origem cabo-verdiana)
"O racismo é feio e nem Deus nem Jesus fizeram o racismo. O racismo não
devia existir".
"O racismo para mim são as drogas, não gostar dos filhos e ser muito mau"
(Rodrigo, 9 anos de idade, origem cabo-verdiana)
"O racismo é uma coisa que não se deve fazer, pelo menos na rua" (Afonso, 8
anos de idade, origem são-tomense)
Afinal, quem sou eu?
128
"Olá amigos, já ouviram falar em racismo? Cuidado, nunca se metam com eles
e nunca vão para dentro dos carros; se eles vos chamarem não vão que eles
fazem mal, é por isso que não devemos provocá-los" (Odete, 8 anos de idade,
portuguesa).
"O racismo é quando uns não gostam dos outros e quando uma pessoa é feia e
outra é bonita e a bonita começa a gozar. Isto eu acho que é um racismo".
(Alina, 12 anos de idade, são-tomense)
Observei igualmente que vários alunos negros definem o racismo enquanto o
ódio dos brancos em relação aos negros, ou seja, enquanto um fenómeno
unilateral. Estes são alguns dos casos:
"Se estou com uma amiga branca e outra da sua cor crítica, é racismo (...) Eu
não sou racista porque não se deve ser racista. Eu não gosto quando me
chamam de preta, eu fico magoada" (Felismina, 9 anos de idade, são-
tomense).
"O racismo é uma coisa muito feia, porque às vezes aparece o skinhead e o
preto está a andar na rua e ele chega lá e às vezes dá-lhe uma facada ou uma
cacetada e ele pode morrer (...)" (Ruca, 10 anos de idade, origem cabo-
verdiana).
"Gorete era uma menina que morava no país dos brancos e um dia ela teve um
sonho e sonhou que no país dos brancos estavam a matar todos os pretos. No
outro dia Gorete ficou muito assustada e foi para a terra dela e viveu muito feliz
para sempre." (Sofia, 10 anos de idade, origem cabo-verdiana)
"A pessoa racista é aquela que não gosta de pretos. (...) Os brancos são finos."
(Clara, 10 anos de idade, cabo-verdiana)
"Eu acho que existem pessoas racistas, porque os brancos são racistas."
(Princesa, 8 anos de idade, origem cabo-verdiana)
Afinal, quem sou eu?
129
"Tem algumas pessoas que são brancas e que não gostam das pretas."
(Mónica, 9 anos de idade, origem cabo-verdiana)
"Há pessoas brancas que me chamam preto e eu não sou preto. (...) Quando
vou ao Lidl comprar coisas para a minha mãe um homem que se chama Pedro
chama-me preto" (Serafim, 9 anos de idade, nacionalidade portuguesa, filho de
pai cabo-verdiano e de mãe são-tomense).
"Porque algumas pretas estão bem vestidas, os brancos ficam com inveja, é
isso que é racismo" (Pinto, 11 anos de idade, cabo-verdiano).
Figura 8 Desenho da autoria de Trindade, 10 anos de idade, são-tomense.
Afinal, quem sou eu?
130
Figura 9. Desenho da autoria de Clotilde, 10 anos de idade, origem cabo-verdiana
Outras crianças entendem o racismo como o ódio entre pessoas de diferentes
nacionalidades, nomeadamente enquanto o ódio que sentem os são-tomenses
pelos cabo-verdianos (e vice-versa).
"O meu irmão gosta de uma menina, só que os pais dela não gostam do meu
irmão. A menina gosta dele e ele gosta dela só que eles são de S. Tomé e o
meu irmão é cabo-verdiano e eles não gostam dele. Eles são racistas."
(Mónica, 9 anos de idade, origem cabo-verdiana)
"Racismo para mim é: alguns cabo-verdianos não se dão com os de S. Tomé e
às vezes podem matar-se" (Bela, 9 anos de idade, origem cabo-verdiana).
Um caso curioso é o de Princesa, 8 anos de idade, portuguesa mas de origem
cabo-verdiana que escreve um pequeno texto sobre a existência de racismo no
seio da sua própria família, causado precisamente pela diferença de
tonalidades entre os vários membros. Vejamos,
Afinal, quem sou eu?
131
Figura 10. Desenho da autoria de Princesa. Neste pode ler-se: "Um dia eu briguei com a minha irmã e ela chamou-me racista. Ela chamou-me racista porque eu sou morena e ela é negra e elas dizem que eu sou branca e eu não gosto."
Constatei igualmente que alguns alunos aproveitam a oportunidade de
escrever um texto sobre o racismo para expressar a sua opinião sobre
determinados colegas (na maioria dos casos, o alvo dos comentários encontra-
se sentado mesmo ao lado destes pequenos críticos).
"As pessoas que não gostam umas das outras são racistas. As pessoas que
chamam nomes às outras são racistas. As pessoas brancas que detestam os
pretos são racistas. As pessoas que acusam os outros são racistas. Eu
conheço uma pessoa que diz as coisas que eu digo e que vai falar às outras,
isso quer dizer racismo. Eu conheço uma pessoa que diz coisinhas de outra
pessoa, isso quer dizer racismo." ( Beatriz, 9 anos de idade, portuguesa)
"Eu conheço uma pessoa que é racista só porque eu não lhe mostrei uma coisa
e mostrei a outra colega e ela chamou-me cusca. Mas só que eu sou amiga
Afinal, quem sou eu?
132
dela. Ela é racista porque não fala comigo." (Matilde, 9 anos de idade,
santomense)
"Aqui na sala há uma pessoa que é racista e foi grosseira comigo e ela disse-
me coisas que eu não gostei e um dia uma educadora da creche veio cá à
escola e essa certa pessoa disse que ela era feia." (Camila, 9 anos de idade,
portuguesa)
"O racismo é uma coisa que não devia existir. O meu colega inventou uma
canção racista e esse meu colega chama-se Bonifácio. Essa canção diz
matamos o branco para comer com pão." (Piedade, 7 anos de idade,
portuguesa)
Há ainda alunos que demonstram a sua incompreensão pela persistência deste
fenómeno:
"Para mim o racismo é uma coisa feia. Nós somos iguais, então para que há
tanto racismo no mundo? Vamos lá a ser amigos e deixar o racismo esgotar-
se." (Vanessa, 11 anos de idade, origem cabo-verdiana)
"As pessoas que são racistas não deviam ser porque elas não gostam das
pessoas brancas. Cá na minha escola não há racistas porque são todos
amigos. A cor não interessa porque os brancos quando vão para a praia
também ficam queimados." (Cátia, 8 anos de idade, portuguesa)
"As pessoas não devem ser racistas porque o sangue é o mesmo só a cor é
que não é, mas cada um é como é, sempre diferente dos outros. Devemos ser
todos amigos porque Deus fez-nos a todos." (Neves, 14 anos de idade,
português, filho de pai santomense e mãe angolana)
"Há pessoas brancas que não gostam de pretos, mas as cores não interessam,
interessa é que sejamos todos amigos uns dos outros." (Pinto, 11 anos de
idade, cabo-verdiano)
Afinal, quem sou eu?
133
"Eu identifico-me com todas as pessoas do mundo porque somos todos iguais."
(Cristiano, 8 anos de idade, origem são-tomense)
Através de um outro exercício em que lhes foi pedido que desenhassem o seu
super-herói, apurei que apenas três crianças (Feliciana, 13 anos de idade,
cabo-verdiana; Bernardo, 9 anos de idade, português; Inês, 9 anos de idade,
portuguesa, mãe angolana e pai são-tomense) mencionam um herói negro e,
curiosamente, esse herói é o Michael Jackson (que tanta controvérsia tem
causado)65.
As restantes 77 crianças referiram-se a super-heróis brancos: personagens do
Dragon-Ball, Navegantes da Lua, Jesus Cristo, Princesa Starla, palhaço
Batatinha, rato Mickey, três porquinhos, Super-homem, Ágata, etc (veja alguns
exemplos no Anexo 4.5).
Mesmo quando lhes foi dada a interpretar a história da "Fada Branca, Fada
Negra", em que a heroína é uma fada negra, na ilustração da história foram
muitos os alunos que representaram essa fada como sendo branca, conforme
se pode observar nas seguintes ilustrações:
Figura 11. Desenho da autoria de António, 9 anos de idade, origem cabo-verdiana.
65
Bispo, um aluno com 9 anos de idade e de origem cabo-verdiana refere que "Michael Jackson é um racismo porque não gosta da cor dele".
Afinal, quem sou eu?
134
Figura 12. Desenho da autoria de Guerreiro, 8 anos de idade, origem cabo-verdiana
Se examinarmos a programação infantil, rapidamente nos apercebemos que
não é transmitido nenhum desenho animado nem nenhuma série em que o
herói seja negro. Será então de estranhar o comportamento destes alunos?
Será que, com esta atitude, estão a expressar um sentimento de auto-rejeição?
É interessante referir que foram vários os alunos brancos que também não
representaram correctamente a fada negra. Inclusive, quando foram indicados
para que fizessem o desenho da sua sala de aula, não houve nenhuma criança
que revelasse quais os alunos brancos e quais os alunos negros (tendo-se
limitado a desenhar crianças e, em alguns casos, a desenhar a professora e a
mim)66 (veja o Anexo 4.5).
66
Houve apenas uma aluna (Beatriz, 9 anos de idade, portuguesa), que ao ilustrar o tema da amizade desenhou-se a si e às suas amigas e duas delas são negras, como se pode ver em anexo.
Afinal, quem sou eu?
135
Perante estes dados, será que também podemos afirmar que estes alunos
brancos estão a expressar um sentimento de rejeição pelos negros?
Ainda em relação ao auto-retrato, também houve casos, embora menos
frequentes, em que os alunos realizaram um auto-retrato que revela a
apropriação da categoria “negro”, mas que na descrição que fazem de si não
tecem nenhum comentário relativo à nacionalidade ou à “raça”.
Outros alunos, para além de se representarem como “negros” e de na sua
descrição também mencionarem a “raça”, ainda sentem a necessidade de
explicitar a sua satisfação por serem como são: "Eu sou (...) negra, tenho os
cabelos castanhos escuros, (...) tenho os olhos castanhos e gosto da minha
cor" (Anabela, aluna angolana, 10 anos); "Eu sou o Trindade, tenho cabelo
preto, olhos castanhos escuros (...) eu sou castanho e gosto da minha cor"
(aluno são-tomense, 10 anos), ou "Eu sou mulata e tenho os cabelos curtos (...)
Eu tenho os olhos pretos. Eu gosto muito da minha cor e da minha cara"
(Feliciana, aluna cabo-verdiana, 13 anos).
É interessante constatar dois aspectos comuns a todos estes relatos: i) todos
os alunos têm 10 ou mais anos (o que está de acordo com os resultados
apresentados no Anexo 5 / gráfico 7) e ii) nasceram em países africanos (se,
nos seus países, não sentiram necessidade de se percepcionarem em termos
da categoria raça, é natural que, chegando a Portugal, as experiências por que
passaram os tenham levado a construir a sua identidade racial).
Robinson et al. (1995), num estudo sobre os adolescentes afro-americanos e a
cor da pele, verificaram que existe uma relação causal entre satisfação com a
cor da pele e uma auto-estima positiva.
Também Saint-Maurice declara que "a afirmação de uma pertença de forma
orgulhosa e sobrevalorizada traduz-se em segurança e auto-estima, reguladora
Afinal, quem sou eu?
136
do quotidiano onde se processam trocas simbólicas com o próprio grupo e os
outros grupos de referência" (Saint-Maurice, 1997:146).
À questão colocada por Gopaul-McNicol (1995) sobre a possível existência de
uma correlação entre a escolha da boneca e a auto-estima das crianças, Chin
(1999) relembra que Clark e Clark comungavam da opinião de que as crianças
negras que mostrassem preferência pelas bonecas brancas, sofriam de
sentimentos de auto-rejeição (as crianças apercebiam-se de que a sociedade
denegria e desvalorizava os negros, logo, o seu desejo era terem nascido
brancas).
No entanto, o que se tem verificado é que, independentemente do esforço
desenvolvido pelas indústrias de brinquedos (já existem bonecas com vários
tons de pele, do mais claro ao mais escuro, com traços faciais e corporais
característicos dos afro-americanos), são poucas as crianças negras que têm
bonecas negras, ou seja, na sua maioria, as crianças negras têm bonecas
brancas.
Numa das fotografias apresentadas no trabalho de Chin (1999), podemos
observar uma menina, com uma boneca e o seu irmão. A primeira coisa que se
pode notar é que essa menina é negra e a sua boneca é branca. No entanto a
menina e a boneca usam o cabelo de forma muito idêntica (penteado
característico dos africanos). A autora chama a atenção para o facto de que,
em Newhallville, cidade onde realizou a sua pesquisa, este é um caso habitual.
Chin defende que estas raparigas são a prova de que a raça é uma construção
social: nem sempre é a cor da boneca que as leva a identificarem-se com elas.
Ao fazerem as suas bonecas brancas viverem no mundo negro, as crianças
estão a reconfigurar as fronteiras raciais, as quais os produtores de brinquedos
julgaram imutáveis.
Ainda que não tenha tido a oportunidade de ver as bonecas das crianças de
nacionalidade e origem cabo-verdiana que frequentam a Escola de Santa
Afinal, quem sou eu?
137
Marta de Corroios, observei que a maioria destas crianças usa penteados
característicos dos africanos. Inclusive, numa das actividades realizadas no fim
do ano, nomeadamente a dança africana protagonizada quer por alunos de
origem africana, quer por alunos de origem portuguesa, todas as participantes
ostentaram estes penteados.
Reparei também que num desenho que lhes foi dado a completar,
representando uma menina africana, foram vários os alunos que lhe
acrescentaram miçangas no cabelo (conforme se vê nas seguintes imagens).
Veja no Anexo 4.5 (Outros) a mesma boneca trabalhada por Alice, 8 anos de
idade, portuguesa.
Figura 13. Desenhos da autoria de Sofia, 9 anos de idade, origem cabo-verdiana e de Anabela, 10 anos de idade, angolana (de origem são-tomense).
Averiguei ainda que, independentemente da categoria apropriada pelos alunos
na realização do seu auto-retrato, quando questionados directamente com qual
das crianças do texto "Meninos de todas as cores" se identificam e porquê,
66,2% escolheram a personagem com base na variável cor da pele (ver Anexo
Afinal, quem sou eu?
138
3 / Ficha de leitura do texto “Meninos de todas as cores”, pergunta 8; Anexo 5,
gráfico 9). São comuns frases como: "Eu identifico-me com o Carlos porque é
negro como eu", "Eu identifico-me com o Miguel porque é branco como eu" ou
ainda "Eu pareço-me mais com o Ali-Bábá porque é castanho como eu".
No entanto, como pudemos observar, ainda foram vários os alunos que se
identificaram com base em outras variáveis.
Curiosamente, houve um aluno (Gustavo, 8 anos de idade, português), que
respondeu identificar-se com o Carlos (menino negro) porque "tem o queixo
comprido como eu". César, 9 anos de idade, angolano, afirmou identificar-se
com "o menino branco porque ele é português". Uma outra aluna referiu que
"Eu pareço-me com a Flôr de Lótus porque eu gosto de usar totós e tenho a
boca pequena como ela".
Perante estas evidências, sou levada a afirmar que, à semelhança do que Chin
observou, também para estas crianças a raça não passa de uma construção
social, uma vez que não é, necessariamente, a cor que as leva a identificarem-
se com as personagens do texto nem a representarem-se a si e aos outros.
Afinal, quem sou eu?
139
Capítulo 8. Redes de amizade
A propósito das redes de amizade, Denscombe et al. (1995), realizaram um
estudo que relaciona as variáveis raça e amizade numa escola primária (de
Leicester). A investigação realizada pressupunha que, a partir dos quatro anos
de idade, os alunos têm consciência da questão racial e esta consciência
acaba por resultar numa preferência pelo grupo étnico a que pertence o/a
aluno/a.
No entanto, os professores não se mostraram impressionados com esta
hipótese, alegando que a experiência que tinham com as crianças lhes permitia
afirmar que, na escola primária, não existe nenhum tipo de influência racial na
selecção de amizades e que, ainda que por vezes manifestem alguns
preconceitos ouvidos em casa, os alunos não tinham em conta, em absoluto, a
cor da pele quando se tratava de fazer amizades.
Neste estudo, Denscombe et al. (1995) concluíram que os resultados vão
contra a ortodoxia da preferência étnica nas aulas da escola primária (talvez
como consequência da dimensão da amostra e das técnicas privilegiadas na
recolha de dados, nomeadamente o teste sociométrico).
Relativamente à pesquisa levada a cabo na Escola nº5 de Santa Marta de
Corroios, procurei igualmente estabelecer uma relação entre as variáveis raça
e amizade. Não obstante ter concluído que 40% das crianças tem amigos
preferenciais da mesma raça (ver Anexo 5 / gráfico 16), a minha permanência
no terreno não me permite afirmar que existe, de facto, uma relação entre a
construção da rede de amizades e a variável “raça”, ou seja, à semelhança de
Descombe et al. (1986), não possuo dados concretos que justifiquem a
existência de uma consciência racial que condicione a escolha dos amigos.
É pertinente relembrar que, se por um lado, a maioria destas crianças de
origem africana habita no Bairro de Santa Marta de Corroios, por outro, a
maioria das crianças brancas passa metade do seu dia (manhã ou tarde) no
Afinal, quem sou eu?
140
infantário da Fábrica Kansas, onde trabalham os seus pais. Não será, então,
natural que, quando interrogadas quanto aos seus amigos preferidos, as
crianças refiram aqueles com quem passam mais tempo e com os quais
certamente se identificam?
Através da observação directa o que me foi possível constatar é que estas
crianças conversam e brincam indiscriminadamente umas com as outras, sem
quaisquer preconceitos.
Também Carvalho et al., autores de um trabalho de investigação sobre jogos e
brincadeiras infantis praticados por crianças numa escola básica do Porto,
afirmam que, no espaço escolar, nunca registaram práticas de racismo ou
xenofobia: "O grupo de jogo é formado segundo critérios bastante diferentes
dos de grupo cultural de pertença. Parece-nos, assim, que a formação dos
grupos de jogo está bastante orientada por outros critérios. Situa-se na
pertença a uma turma, grau de parentesco e, nalguns jogos e brincadeiras, no
género e na idade” (Carvalho et al., 1994:23)
Não é de estranhar que as crianças de origem portuguesa não convidem os
seus amigos portugueses brancos (e vice-versa) para as suas festas de
aniversário ou simplesmente para passarem uma tarde juntas. Afinal, o único
elo de ligação entre estas crianças, que vivem em dois mundos distintos, é a
escola.
O importante seria criar mais “lugares antropológicos” nos quais estas crianças
tivessem de se cruzar com maior frequência, por forma a minimizar o peso da
“característica silenciosa”67 (Saramago, 1999) destes grupos sociais.
67
“Um grupo social silencioso revela-se incapaz de expressar de forma perceptível as suas necessidades e aspirações enquanto grupo social distinto. Por outro lado, o grupo dominante revela-se incapaz de criar oportunidades para que tal suceda” (Saramago, 1999:19).
Afinal, quem sou eu?
141
Conclusão: Afinal, quem sou eu?
No início parti do pressuposto de que a “raça” e a etnia são variáveis primaciais
na percepção da identidade das crianças com ascendência cabo-verdiana em
espaço pluricultural. Não podia estar mais equivocada. Do que me foi dado a
observar, a “raça” e a etnia são percepcionadas por estas crianças mas não
são sublimadas relativamente a outras variáveis.
No fundo, a minha pressuposição incide na falácia de que os filhos dos
migrantes, mesmo que não o saibam, são perpetuadores incondicionais da
cultura de seus pais: é com essa cultura que se identificam e com é com ela
que se sentem bem.
Mas, de facto, a sua história não é a mesma. “Desde logo, os jovens e crianças
descendentes de imigrantes não são imigrantes eles mesmos. Não têm um
trajecto imigrante e a maior parte nem sequer conhece o país de origem dos
seus pais. Nasceram e/ou foram socializados no quadro da sociedade de
acolhimento, onde sofreram a influência poderosa de contextos como a escola,
mas também dos media, da cidade ou das suas redes de sociabilidade juvenis.
A sua cultura é, inevitavelmente, produto disso mesmo, por maior que seja a
importância da família e por mais que ela constitua um espaço fechado de
reprodução da cultura de origem” (Machado, 1994:121).
Mesmo tendo, eventualmente, condicionado algumas respostas, sou levada a
afirmar que estas crianças têm a percepção da presença de uma fronteira
étnica e rácica, ou seja, têm a percepção da semelhança do “eu” face ao “nós”
e da diferença do “nós” em relação ao “outro”. No entanto, o significado da
pertença a esse grupo não é ainda explorado, não é manipulado com o
objectivo de obtenção de qualquer tipo de vantagem. Ao contrário da
identidade étnica, a etnicidade não está presente68.
68
Milzer (1998) realizou um trabalho de investigação sobre identidades culturais em contexto escolar. Apesar de nos basearmos em metodologias idênticas , as conclusões a que chegamos são diametralmente opostas. A autora afirma que para as crianças com que conviveu “e apesar da sua pequena idade (6-7 anos), a suaraça e todos os atributos a si associados, são uma
Afinal, quem sou eu?
142
A apreensão de Verkuyten (1992)69 relativamente a estes testes não é
infundada: também neste caso a identidade étnica acabou por não se revelar
um critério insigne na auto-definição.
Concordo com Gopaul-McNicol (1995) quando defende que a vontade de uma
criança em assumir uma “raça” ou uma etnia está condicionada pela sua
experiência de vida.
Se a escola e os media, influentes agentes de socialização, continuam a insistir
em veicular “ideias de brancos com vista a tornar os negros psicologicamente
brancos” (Peres, 1999:161), será de estranhar que estas crianças não atribuam
primacial valor à sua cor de pele ou à sua origem, que não idolatrem super-
heróis negros, ou que não se preocupem em representar correctamente a cor
dos seus amigos ou de um qualquer personagem de um texto?
Se observarmos com atenção o Anexo 5 (informação estatística
complementar), verificamos que muitas crianças brancas também não
retrataram correctamente a heroína da história “Fada branca, fada negra”; a
maioria identificou-se com o personagem do texto “Meninos de todas as cores”
por ele ser branco; à pergunta “Quem sou eu?, um número considerável
seleccionou as categorias “branco” e “português”; e o seu super-herói é,
igualmente, alguma personagem da série Dragon-ball (na altura tão em voga),
etc.
Mais do que um hipotético sentimento de auto-rejeição da cultura cabo-
verdiana ou da “raça” negra, a opção por elementos tipicamente brancos é uma
consequência natural da contínua imposição da cultura da «tribo branca».
realidade da qual já estão bem conscientes, esboçando uma percepção clara da circunscrição em que o seu tom de pele coloca a comunidade em que vivem, as suas famílias e a si próprias” (Milzer, 1998:64). Chega mesmo a declarar que “as crianças mais velhas já demonstram um forte sentido de identidade étnica” (p.201) e que “a raça é um factor de grande peso na vida das crianças (pp.203). É pertinte referir que a autora trabalhou apenas com 12 crianças. 69
Sobre este assunto reveja a página 39.
Afinal, quem sou eu?
143
Quando um aluno negro percepciona que o seu professor tem um nítido
favoritismo pelos seus colegas brancos e que está conivente com a teoria da
cultura como «erva daninha» (Peres, 1999:171), é crível que comece a
alimentar sentimentos de rejeição face à sua cultura de origem (o que
certamente irá reflectir-se numa auto-estima negativa).
Em jeito de síntese, considero que as variáveis “raça” e etnia (esta associada,
sobretudo, à comunhão de uma mesma língua e à persistência no seu
imaginário de um terriório comum) são, de facto, elementos identitários das
crianças com ascendência cabo-verdiana. Elas percepcionam-se enquanto
cabo-verdianas e negras. Mas também são crianças, irmãs/irmãos, filhas/filhos,
pobres, citadinas, portuguesas, residentes do bairro de Santa Marta e
alunas/alunos, entre tantas outras coisas. A lista é infindável.
Creio que existe uma estreita relação entre estas deduções e a idade dos
alunos. Não nos podemos esquecer de que o objecto de estudo são crianças
com uma média de 9 anos de idade, pelo que seria interessante estudar a
mesma questão entre os adolescentes.
Propus-me a interpretar parte da realidade do Outro, ou aquilo que ele entende
ser a sua realidade, o que não significa que aquilo que escrevo seja esse
Outro. Não tenho a pretensão de alvitrar verdades absolutas e universais. Este
trabalho é antes o reflexo de uma série de decisões e reflexões teóricas face a
um realidade particular. Estivessem reunidas outras condições e os resultados
certamente teriam sido outros que não estes.
Afinal, quem sou eu?
144
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