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1 Diante do Outro cheio de perguntas Uma coletânea de escritos sobre a pesquisa aplicada a pesquisa participante a pesquisa-ação-participante e a pesquisa militante Carlos Rodrigues Brandão

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Diante do Outro cheio de perguntas

Uma coletânea de escritos sobre a pesquisa aplicada a pesquisa

participante a pesquisa-ação-participante e a

pesquisa militante

Carlos Rodrigues Brandão

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Vivendo se aprende: mas o que se aprende mais, é só a fazer outras maiores perguntas.

João Guimarães RosaGrande sertão: veredas

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Índice

1.Diante de um outro cheio de perguntas

2de um olhar ao outrodo pensar sobre o outro ao pensar com o outro

3.Aplicada, solidária, participante, militante

4.Vinte anos depois

5.Andando em boa e difícil companhia

Livros lidos, consultados e sugeridos

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1. Diante de um outro cheio de perguntas

O Acontecimento mais importante em uma relação de pesquisa é também o mais secreto, o mais silenciado, o menos confessado, posto às claras. Ele é uma espécie de acordo entre duas ou mais de duas pessoas situadas em uma ou em outra margem do fluir de uma pesquisa. E qual é este acordo não dito, mas rigorosamente observado de um lado e do outro? Ele pode ser enunciado do lado de quem realiza a pesquisa (quem a pensou, quem a projetou, quem a leva a realizar-se, quem pergunta e espera respostas, quem a partir dos seus “dados” deverá escrever, produzir divulgar, publicar algo: um relatório, um artigo, um livro ou o que seja) da seguinte maneira:

“você que está diante de mim e responde às perguntas que eu faço (eu um inventário, um questionário, uma entrevista aberta ou fechada, etc.) ou que age, atua, realiza uma performance diante de mim que o observo, registro, fotografo, gravo, etc., você jamais conhecerá na íntegra o resultado do trabalho e pesquisa de que participa como meu objeto de, ou mesmo sujeito de minha pesquisa. E, se acaso, vier a ter algum acesso aos meus “resultados”, não os compreenderá, pois tratarei de transformar o que vi, registrei, gravei em uma linguagem para ser compreendida por meus pares e para ser incompreendida por você e os seus. E justamente o segredo de meu trabalho será transformar algo de sua cultura e compreensão em algo de minha cultura e compreensão, incompreensíveis por você mesmo quando possivelmente acessados. Eu simplesmente não posso e não devo realizar algo que, sendo uma pesquisa científica a partir de você, venha a ser algo que você, tal como é, sabe, pensa e vive agora, possa conhecer, compreender e interpretar”.

Do outro lado do acontecer da pesquisa, aquele que se dispôs a atuar, representar ou simplesmente responder a perguntas estabelecerá em silêncio: Entre meus atos e minhas falas diante de você ou para você poderei “passar”, ou deverei transmitir apenas fragmentos do que sou, de como penso, de como ajo em cada situação, ou, no plural, de como somos, os de meu mundo, minha comunidade, minha cultura, como cremos, como pensamos, como agimos, como atuamos diante desta ou daquela situação. Você me perguntará fragmentos e eu responderei com gestos e/ou falas de fragmentos. Ou porque não alcanço a totalidade do que você deseja, ou simplesmente porque não é nem possível, nem junto ou razoável que eu transmita a você algum “todo de mim” ou “de nós”, estenderei a você apenas parcelas médias, pequenas ou mínimas de nossos saberes, sentidos, significados, sensibilidades, sociabilidades. Pensando

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desvendar nossos segredos você está apenas tocando uma parte pequenina deles. E será apenas sob a condição de jamais traduzir para você tudo o que é a gramática de nós e nossas vidas, que eu posso dialogar com você, dar-me a ver e responder às suas perguntas.

Muitas coisas hoje em dia me causam espanto nisso a que damos o estranho nome de “vida intelectual”, sobretudo quando os seus cenários são os da academia, os da universidade ou de centros de estudos semelhantes. Uma delas me espanta mais ainda: a maneira grosseira e arbitrária como as pessoas e os seus pensamentos são incluídos ou excluídos dos textos e das falas. Paulo Freire, tão presente aqui entre nós nestes dias, é simples e arbitrariamente riscado de departamentos, de seminários e de livros. Não é que os que não comungam com as suas ideias ou não gostem dele o convoquem ao texto para fazerem ali a sua crítica. Ele é silenciado. É apagado. Não se menciona nem o seu pensamento e nem a sua existência. Nós também, leitores e herdeiros de Paulo, fazemos isto. E procedemos assim muitas vezes. Também no exercício do diálogo com outros procedemos por um semelhante processo de inclusões e exclusões. Acreditamos mesmo que somente poderemos estabelecer uma conversação proveitosa com quem lemos e a quem ouvimos na medida em que nos restringimos a círculos de outros próximos, entre os semelhantes e os cúmplices de ideias e de propostas com quem nos acostumamos a gerar pequenas confrarias, umas de longa vida, outras efêmeras, como boa parte das ideias que afinal defendemos.

Penso em uma reversão bastante grande deste estado de coisas do pensamento e das ideias. A respeito delas temas uma difundida compreensão possessiva, e a expressão "as minhas ideias” costuma traduzir mais uma posse do que “eu tenho dentro de mim e é meu, minha propriedade intelectual”, do que mais algo que eu partilho com outros e que, por isso mesmo, é algo compreensível, tem sentido e também algum valor.

Em algum dos seus escritos Martin Heidegger diz mais ou menos isto Entendemos quando fazemos parte do que nos é dito. Quero pensar alto esta frase simples e sábia, de diferentes maneiras próximas. Por exemplo: compreendemos quando nossos pensamentos fazem parte do que é compreendido; compreendemos algo quando passamos a fazer parte do círculo dos que compreendem aqui; compreendemos quando participamos do círculo onde circula o compreendido; compreendemos quando podemos passar a partilhar a construção de uma compreensão; compreendemos quando partilhamos com outros um círculo de busca de uma compreensão.

Centrar o diálogo na busca do diferente e até mesmo do divergente. Buscar os significados daquilo que por poder ser multiplamente compreendido, pode justamente ser dialogado. Buscar convergências de sentidos e de saberes diversos

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onde havia antes a ilusão de alguma verdade que, por se pretender absoluta e definitiva, é também não-partilhável. Ouvi de um amigo a seguinte ideia de Santo Agostinho: a verdade não é minha e nem sua, para que possa ser sua e minha.

Há toda uma maratona de livros a respeito de metodologia do diálogo e das relações terapêuticas e didáticas centradas-no-outro. Mas não bem disto que eu falo aqui. Falo de um aprendizado do reconhecer que em uma grande medida convivemos com as “nossas ideias” como se elas valessem por serem as “minhas ideias”. Um individualismo doentio invadiu de tal maneira os meios em que nos relacionamos em busca de saberes e de sentidos de vida, que em alguns momentos tudo parece ser um debate cujo único proveito é a defesa de pontos de vista e a demonstração da excelência de um pensamento original. Bem sabemos o valor destes embates, acadêmicos ou não. No entanto o empobrecimento deles e de nossa vida de pensamento não está neles, mas na passagem deles, de momentos de encontros de pessoas através de suas ideias, em busca de algo bom, belo e verdadeiro que possa ser partilhado diferencialmente (mas não desigualmente) por todas, para confrontos entre ideias através de pessoas. Confrontos onde uma vez mais a lógica da guerra ou a da competição do mundo dos negócios tendem a tornar-se o ponto de referência.

Penso que ao lado das teorias e descobertas a respeito dos infinitos alcances da mente humana, associados à abertura incomensurável a que nos desafiam os paradigmas emergentes, holísticos, não-dualistas, integrativos e transdisciplinares, deveriam corresponder a não apenas uma nova ética, mas a novas sensibilidades a respeito da responsabilidade que partilhamos enquanto criadores de saberes e de sentidos de vida e de destino.

A mesma coisa que os cientistas e epistemólogos descobrem e dizem a respeito da urgência de novas intercomunicações entre os campos do saber; a respeito da complexidade da mente e do conhecimento a respeito de qualquer plano da realidade – da arquitetura dos sentimentos de uma criança à arquitetura dos movimentos do universo –; a respeito da urgência de novas ousadas interações entre os diferentes saberes, reintegrando as artes, as espiritualidades, as filosofias nos cenários dos cientistas; a respeito, finalmente da relatividade de todo o que há e se pensa e da fragilidade e do efêmero de nossas construções teóricas sobre tudo e qualquer coisa, deveria valer também para nós mesmos, tomados em nossa individualidade e na dimensão das pequenas comunidades de pensamento e de trabalho criativo em que nos reunimos.

Todo o saber que é nosso apenas passa por nós por um momento. E, francamente, a excelência de “meu último texto” nunca deveria ser medida por algum ilusório e passageiro lugar de destaque no mundo das produções científicas. Ela deveria ser pensada em termos do possível bem que venha a fazer a alguém.

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Em termos puramente intelectuais, criei boas ideias em um texto se elas ajudam outras pessoas a irem além do que pensei, depois de me haverem lido. Como um professor procuro pensar sempre que não me realizo quando escrevo as palavras que os outros não conseguem pensar ... e às vezes compreender. Ao contrário, devo viver as minhas aulas e criar os meus escritos para que os meus alunos e outras pessoas aprendam comigo, por um momento, a irem entre elas além de mim. Infeliz de quem nunca quer ser superado, pois eu sou superado quando participei do que facultou a outras pessoas o levarem a experiência da vida humana para um pouco mais a frente do lugar onde eu e minha geração conseguimos chegar.

Ao nos situarmos equidistantes de todas as tantas dimensões através das quais sentimos, pensamos e criamos algo em comum, aprendemos a ver o saber de nossas ciências como uma fonte de conhecimentos entre outras. Nem a única confiável e nem sequer a melhor ou a mais definitiva. A mim me espanta que entre nós, antropólogos, possamos por anos e anos praticar as várias escolhas teóricas e empíricas de nossas escolhas sem nunca lermos trabalhos de psicólogos sociais. Do mesmo modo como precisei esperar quase quarenta anos depois de formado em Psicologia para vir a saber que dentro dela existe algo chamado: Psicologia da Libertação. Que o reconhecimento de nossos mútuos desconhecimentos pelo menos nos ajude a compreender que o que pensamos é indispensável, mesmo quando seja desconhecido. E também que, se tantos outros saberes nos são desconhecidos, é porque talvez estejamos encerrados demais no que já conhecemos.

Por outro lado, por antiquada e romântica que esta proposta possa parecer em tempos em que valores empresariais e utilitários crescem em seu poder de domínio sobre nossas cabeças, acho que, por isso mesmo, devemos repensar o lugar de origem e de destino dos saberes que criamos em nossas comunidades aprendentes e que colocamos à volta da mesa em encontros como este. Ainda penso que devemos aprender e ensinar as matemáticas não para formar contadores e financistas, mas como um preparo da mente para o exercício da filosofia. E ainda creio que devemos aprender gramática não para “falar e escrever bem” apenas, mas para aprendermos a nos maravilhar com a poesia escrita em tantas línguas, ao longo de todos os tempos.

O diálogo se perde onde o saber é instrumental e a sua avaliação tende ser cada vez mais utilitária. Pois em nome do que é útil e apenas isto, na se deve perder muito tempo em buscar consensos onde antes existem divergências. Mas quando o valor do saber está centrado no sentido da pessoa e na busca de infinitas alternativas de compreensão (nunca de apenas solução) dos mistérios e dilemas da experiência humana, então as divergências se tornam diferenças e os

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consensos sabem que nunca irão esgota-las ou transforma-las em sínteses proveitosas.

E a mesma coisa que as etnociências desvelam a respeito da pluralidade de concepções outras a respeito de tudo, provenientes de outras culturas, poderia ser aplicada também ao caso de cada pessoa. Cada ser à nossa frente não é apenas a pessoa do rosto de um Outro. Ela é, também, uma fonte original de saber. Ela carrega dentro de si e procura dizer entre palavras e gestos o saber de suas próprias vivências. E esta qualidade de conhecimentos, de memórias e de sensibilidades não pode ser nem medida e nem avaliada. No seu sentido mais simplório e também no mais profundo, ela é única e verdadeira. Posto diante de mim, o rosto vivo de um outro qualquer revela um saber menos formalmente importante do que o de Sócrates. Mas quando este alguém me diz o que sabe, as suas palavras não são, ali, nem menos sábias e nem menos verdadeiras. Porque são suas, e porque um rosto que olha o meu me diz o que a sua pessoa fala. Penso que esta certeza é o fundamento do diálogo. E não ter tempo para ouvir quem me fala, porque aparentemente não me parece alguém “digno de nota”, para ouvir apenas aqueles a quem me disponho a ler, talvez seja o gesto do esquecimento das melhores lições que eu poderia aprender.

De um outro destes escritos de agenda, sem citações precisas, anotei uma ideia de uma pessoa a respeito de quem também não sei quase nada. O que Schlegel escreveu é isto.

A razão é uma e em todos é a mesma; entretanto cada pessoa possui a sua própria natureza e o seu próprio amor, do mesmo modo como também trás dentro de si a sua própria poesia.

Diante de um outro, o seu rosto, a sua dor. A imagem de um outro, uma pessoa. Mesmo sem a dor e o sofrimento, o que é estar colocado frente a um outro, e passar por ele com a indiferença moderada de quem sabe que precisa estar informado, sem necessariamente estar envolvido. Que o outro, distante ou próximo, por um momento venha a mim sem estar comigo, e sem me obrigar a outros gestos além destes: ver, perceber, saber, compreender, estar informado.

Bem mais do que o noticiário e do que a revista, a pesquisa abarca e dramatiza este dilema. De algum modo podemos imaginar que boa parte do que ela é, e boa parte do que fazemos ao vivê-la, tem a ver com a maneira como aprendemos a lidar com este dilema. Em algumas situações e com fundamentos situados em boas ideias, a investigação científica pode esquecer que, mesmo entre pessoas, ela é apenas uma sequência prevista de atos técnicos conduzidos por uma teoria sobre algo, e levada com critério e rigor a um teste empírico.

Sim. Mas de algum tempo para cá e com o desenvolvimento de alternativas de investigação científica que mais do que qualitativas (o teor e valor dos dados), são interativas (a qualidade da relação que gera o dado) e francamente

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intersubjetivas (reciprocidades entre pessoas-sujeitos postas em relação), começamos a aprender que a pesquisa não é uma experiência, a não ser quando muito redutiva e muito objetivamente experimental. Ela é. Ante de mais nada, um acontecimento.

Vou pesquisar algo junto a alguém. Tenho uma teoria (um ponto de partida); tenho um objetivo (um ponto de chegada); tenho um método (um caminho entre uma coisa e a outra). Mas eles me trouxeram “aqui”. E agora estou aqui e estou diante de alguém: um outro e, comigo, um nós. Diante dele, ou diante de você. Estou (estamos) ali (aqui), situados de um lado e do outro de meus propósitos, do meu tempo disponível, de minhas perguntas, meu roteiro de entrevistas, meu questionário, meu gravador minha máquina de fotografias, de minha filmadora, até. Por um momento, regido pelo dever de fazer algo produtivo com “isso tudo”, eu me iludo ao pensar que o acontecimento da pesquisa começa quando eu sair “daqui”. Quando longe de você a quem eu lancei minhas perguntas, entrevistei, gravei e fotografei, e me despedi, eu volto a um lugar de origem e ordeno os meus dados (a alquimia antes da mágica) e, depois, escrevo o meu texto (a mágica depois da alquimia).

Mas não. Pois a verdade pode estar no exato inverso. Antes e depois, quando estou de novo sozinho e estudo, planejo, revejo, ordeno e escrevo, talvez esteja então vivendo a sequência prevista dos momentos da pesquisa como uma experiência. Mas diante de um outro, quem quer que ele seja, eu só posso estar vivendo um acontecimento. Aqui e agora a minha pesquisa é, por um momento que seja, nossa. E por ser uma forma de reciprocidade entre nós dois, entre você e eu, acontece como um encontro.

Tudo mais antecede ou sucede este momento único em que duas pessoas se olham, se falam, se sentem e se pensam, e imaginam que se entendem, intertrocando entre elas gestos do rosto, do corpo e do espírito. E de um lado e do outro do que torna uma pesquisa viável e confiável, elas trocam entre palavras e silêncios, os seus seres, sentidos, sensibilidades, saberes e significados. Isto que à vezes reduzimos à categoria de “dados”. Mais ou menos como os turistas que vão munidos de máquinas digitais a um lugar único. E ali estão por dez minutos. E fotografam como quem só sabe ver através da máquina. E voltam dali com centenas de micro-imagens ávidas da tela de um computador. E retornam à casa sem haverem parado com vagar uma vez para viverem a aventura do ver com os próprios olhos. Ver, simplesmente, por um breve momento mágico a maravilha da cena que se abre ali, real, “ao vivo e a cores” diante de seus olhos.

Toda a pesquisa quando envolve de um lado uma pessoa e, do outro, não uma pedra ou um animal, mas uma outra pessoa, enfrenta o dilema de transformar um encontro em uma experiência, ao invés de transformar um encontro em uma relação. Entre duas pessoas genuínas que não se querem encontrar como

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personagens de cenas escritas por outros para eles representarem um diante do outro, o único encontro realmente humano em sua plenitude é a relação. É a interação entre dois seres em que o outro não possui utilidade alguma para mim, na mesma medida em que em nada sou útil ou proveitoso para ele, a não ser na condição de sermos, em nós mesmos e um para o outro, apenas a pessoa que somos e que fazemos interagir com uma outra pessoa.

Em termos absolutos – porque depois deveremos descer ao que pode ser relativo entre eles – o oposto da relação em uma situação de encontro entre pessoas, não é propriamente o domínio ou a coação, mas a experiência. Pois eu deixo de me relacionar livre e intersubjetivamente com um outro de algum modo colocado diante de mim, quando o experimento, quando o experiencio. Quando eu o testo – e a mim mesmo - para saber, segundo os meus interesses, qual o teor de utilidade dele para comigo, logo, para mim, em meu proveito. Mesmo que de alguma maneira este proveito próprio seja estendido também a ele. Não é apenas porque o domino e por um momento defino o seu destino que eu o transformo em um objeto-para-mim, ao invés de conviver com ele como um sujeito-sem-si-mesmo, em uma interação intersubjetiva, uma relação entre dois sujeitos livres um para o outro. Eu lido com um sujeito tornado para mim um meu-objeto quando de algum modo estabeleço como fundamento de nosso encontro uma utilidade dele e nele, para mim.Deixemos por um momento que Martin Buber, a quem estou lendo agora para escrever isto, nos fale com as suas próprias palavras.

O experimentador não participa do mundo: a experiência se realiza “nele”, mas não entre ele e o mundo.O mundo não toma parte da experiência.Ele se deixa experienciar, mas ele nada tem a ver com isso, ele nada faz com isso e nada disso o atinge....O mundo como experiência diz respeito à palavra-princípio EU-ISSO. A palavra-princípio EU-TU fundamenta o mundo da relação1.Eu não experiencio o homem a quem digo TU. Eu entro em relação com ele no santuário da palavra-princípio. Somente quando saio daí posso experienciá-lo novamente. A experiência é o distanciamento do TU.

1 . Martin Buber, Eu e Tu, página 6. O livro essencial de Buber foi publicado originalmente pela Editora Centauro, de São Paulo. Tenho comigo a 5ª edição revista, mas misteriosamente sem indicação de data. O livro foi traduzido e é antecedido de uma longa e importante introdução, por Newton Aquiles von Zuben. Martin Buber foi nos anos sessenta uma leitura fundamental, inclusive em Paulo Freire. Possui vários outros livros traduzidos para o Português, sobretudo pela Editora Perspectiva.

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A relação pode perdurar mesmo quando o homem a quem digo TU não o percebe em sua experiência, pois o TU é mais do que aquilo de que o ISSO possa estar ciente. O TU é mais operante e acontece-lhe mais do que aquilo que o ISSO possa saber. Aí não há lugar para fraudes: aqui se encontra o berço da verdadeira vida2.

Em que e como em um lugar sem fraudes “se encontra o berço da verdadeira vida”? Recuemos alguns passos para acompanhar as ideias de Martin Buber. No mistério da vida e dos mundos que os homens criam e em que vivem e se relacionam, existem duas palavras fundadoras de todas as interações possíveis. Elas não são palavras simples, como “eu” ou “tu”, ou “você”. Elas são pares de palavras e existem somente como e enquanto um par: EU-TU (que Buber sempre grafa com maiúsculas) ou EU-VOCÊ versus EU-ISSO (idem).

No acontecimento, ao mesmo tempo humano e social do encontro entre pessoas, o oposto do TU, como meia-palavra dirigida a uma pessoa, não é ELE, mas é ISSO, outra meia palavra. Pois o TU traduz a pessoa de um outro posta em relação comigo em um encontro intersubjetivo. Um encontro vivido como uma relação EU-TU, porque nada o motiva a não ser a vivência de um outro diante de mim, em sua plena subjetividade. Qualquer intenção de proveito, qualquer medida do outro, por pequena que seja, como uma utilidade para mim, expulsa-o de sua plenitude de sujeito em nossa relação. Torna-o um ISSO, como uma coisa em um acontecimento relacional regido pelo interesse e pela utilidade. Exila-o do TU ao ISSO, na mesma media em que EU mesmo também me exilo do TU, sujeito de mim mesmo, e retorno a ele – o meu outro objetivado - como um outro ISSO. Como um outro sujeito-objeto submetido ao primado do proveito, em lugar da gratuidade. O acontecimento humano de um encontro entre pessoas, realizado como uma relação torna-se, em suas inúmeras e diferentes medidas, o acontecer de uma experiência.

Toda a pesquisa envolve uma ou mais experiências, pois o que justifica a pesquisa é o seu proveito. É o teor demonstrável de sua utilidade. Boa parte do que escrevemos em um projeto de pesquisa destina-se a demonstrar que partimos de ideias plausíveis, confiáveis e, se possível, inovadoras em alguma medida. Outra boa parte destina-se a demonstrar que não apenas partirmos de “boas ideias”, mas estamos preparados para realiza-las como alguma forma de prática, através de uma também confiável metodologia. E uma outra boa parte destina-se a demonstrar que, além de tudo (ou no começo de tudo), o que pretendemos realizar, construir ou descobri é também útil. E a importância crescente que os órgãos de fomento à pesquisa e os seus avaliadores têm atribuído à

2 . Buber, op. Cit. página 10.

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“aplicabilidade” e à “utilidade” de uma pesquisa ajuda a tornar evidente o domínio do valor instrumental sobre qualquer outra coisa.

Toda a pesquisa aspira a ser útil, mesmo aquela que um poeta realiza antes de começar a escrever o seu novo livro de poemas. Mesmo a “pesquisa pura” de algum modo sonha ser também “aplicada”. Toda a investigação científica deve servir a algo, deve ser útil. Deve tornar-se objeto de proveito: da ciência, ou de uma ciência; de uma teoria científica (com ou contra as “outras”.); de uma escola ou confraria de cientistas (vide Bourdieu e Kuhn, entre outros); de um par de pessoas chamado eu-e-meu-orientador; de mim mesmo, quando através dela aumento os meu saber, melhor a qualidade de minhas aulas, ou sou promovido de “mestre” a “doutor”; de uma fábrica de remédios, de uma empresa multinacional interessada em proliferação de armas químicas para a agricultura; de uma macro-empresa de armas de guerra; de uma organização não governamental devotada a causas ambientalistas; de uma comunidade de pescadores; de um movimento popular; de... E normalmente esses e outros destinatários dos proveitos e das utilidades das pesquisas, das tecnologias e ciências que as abrigam e originam, ora se excluem, ora se contrapõem, ora se somam.

Sabemos que a progressiva passagem nas ciências humanas e sociais, do domínio das abordagens e estilos mais impessoais, objetivos e quantitativos, para os mais interativos, intersubjetivos e qualitativos, tem a ver não apenas com questões teóricas, políticas, técnicas e metodológicas, embora em alguns livros sobre o assunto esta pareçam ser as únicas ou as principais dimensões nas mudanças que ocorreram e seguem acontecendo. Por debaixo de todas elas existe uma questão que é propriamente ética e, mais do que apenas ética, é humanamente afetiva e afetivamente relacional. E sem temor de dúvidas, ela é a mais importante entre todas, e deveria ser aquela em nome da qual todas as outras razões – inclusive as estratégias e as financeiras – seriam pensadas e equacionadas.

A pesquisa entre-nós (EU-e-TU), logo, a investigação interativa (entre duas pessoas) e intersubjetiva (entre duas pessoas que se colocam uma para a outra como sujeitos de si mesmos, de suas vidas, suas ideias, memórias e destinos), e eu aqui e ali se disfarça de ser apenas metodologicamente “qualitativa”, devolve a mim e a você a confiança em nós. Já não são mais os instrumentos neutros e objetivos de uma experiência mensurável, o que se interpõe entre nós, mas somos nós e nossos atributos de ser, viver, sentir e pensar o que temos para viver a busca da relação que gera uma outra qualidade de sentidos, saberes e significados. E não porque ela é teórica ou tecnicamente mais aberta e sensível, mas porque ela resulta da dissolução de um par EU-ISSO, que coloca diante um do outro um eu sujeito versus um tu ou você tornado um isso, como meu objeto de minha experiência, em um par EU-TU, que se abre a um encontro de nós dois,

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sujeitos um para o outro ao buscarem construir em um momento de uma pesquisa, uma autêntica relação. O acontecer de uma relação plena ou, pelo menos, a sua maior aproximação possível.

Quando pensamos porque toda a pesquisa realizada em campos como a educação, a psicologia, a antropologia, a sociologia, a ação social, é sempre limitada e nos oferece somente frações precárias e parciais de conhecimento sobre o que quer que seja (e este “qualquer” quase sempre é uma pessoa, são pessoas, famílias, grupos sociais, sistemas de saberes e de símbolos de vidas pessoais ou sociais), atribuímos a isto razões de novos metodológicas, teóricas, lógicas e epistemológicas. Elas sempre nos ajudam a compreender o teor de nossos próprios limites do pensar e do saber derivados do trabalho científico. E as crescentes novas críticas provenientes dos precursores de paradigmas emergentes no campo das ciências e das práticas sociais, multiplicam a consciência de estamos sempre às voltas com fragmentos de com compreensões e interpretações científicas efêmeras e limitadas. Com explicações científicas de campos da realidade que valem apenas em sua vocação de se disporem ao diálogo com outras diversas e divergentes visões. A menos que se seja prepotente ou fundamentalista o bastante para se que apenas por parecerem consistentes e bem fundamentados, as “minhas” (as da confraria do saber à qual aderi por algum tempo ou há muito tempo) são as únicas válidas, ou são as mais acertadas.

Mas podemos agregar a todas as explicações propriamente científicas a respeito de nossas próprias falhas e lacunas uma outra. Uma outra explicação que justamente por ser menos científica poderia ser mais explicativa aqui. Ela é de novo humana e relacional, quase ontológica, e outra vez é em Martin Buber que eu me apoio para trazê-la a este momento de nosso diálogo. Não conseguimos apreender mais do que frações parcelares das pessoas, grupos humanos, comunidades ou culturas que estudamos em parte porque o âmbito em que elas e eles se movem é sempre muito mais amplo do que o círculo de compreensões de nossos modelos e sistemas de explicação. Nunca abarcamos mais do que alguma parte da casca que envolve a realidade do ser, do viver, do sentir, do lembrar, do pensar e do agir de uma pessoa porque quase nunca conseguimos nos relacionar com ela como uma pessoa. Aquele a quem estendemos apenas o interesse de nosso saber pelo saber dele, e a quem, por mais respeitosos e pessoais que sejamos, sempre de algum modo objetivamos em nome de nossos proveitos e interesses, não nos pode oferecer mais do que a sua pálida e fracionada face de objeto. Todo o ser de uma experiência sujeito-objeto, que não alcança ser ou que se nega a ser uma relação entre subjetividades, apenas pode revelar, entre um e outro no acontecer da pesquisa, e entre quem “conduziu a pesquisa” e quem será depois convidado a ser um seu interlocutor, mais do que fragmentos e exterioridades. Relatos transformados em relatórios, onde palavras como:

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“produto”, “produtos esperados”, “resultado obtidos”, objetivamente revelam a submissão do trabalho científico ao ideário do utilitário dos negócios e de seus proveitos. Você já reparou como verbos tais como: “criar”, “descobrir”, “inventar”, “interpretar”, “dialogar”, e outros de igual teor vão sendo substituídos por equivalentes como: “produzir”, “desconstruir”, “inventariar”, “sistematizar”, “debater”?

Pois de uma experiência em que me aproprio de um outro segundos os moldes de meus projetos e proveitos, só posso obter a imagem devolvida por um outro a mim mesmo, e em que acabo vendo e lendo a figura de meu próprio rosto no espelho que ele volta a mim, como a me dizer que isso é tudo o que resta de quem não soube ver e ver-se na difícil transparência única do olhar de um outro. Eis o dilema: entre EU e um outro, um TU, é tudo ou nada. E não se trata apenas de perguntar pragmática, política e eticamente a quem se destina o proveito do produto de uma pesquisa. Trata-se de perguntar ética e afetivamente como deve acontecer o momento humano único em que de um, lado e do outro pessoas vivem o processo da pesquisa.

Que experiência pode-se então ter do TU?Nenhuma, pois não se pode experienciá-lo.O que então se sabe a respeito do TU?Somente tudo, pois, não se sabe, a seu respeito, a nada de parcial3.

Mas, apesar de assim ser, daqui em diante tudo o que estivermos dialogando tem a ver com o desafio de vivermos a criação de saberes confiáveis, proveitosos e solidários através de situações de pesquisa que o tempo todo estejam procurando o equilíbrio possível entre a experiência necessária ao avanço do conhecimento científico e a relação indispensável a torná-lo não apenas algo útil e confiável como um produto do saber (não raro a serviço de algum poder) mas alguma coisa humanamente significativa e proveitosa, como uma criação do espírito humano e de sua capacidade – sempre precária, mas sempre aperfeiçoável - de compartir e partilhar tudo o que ele cria através da relação generosa e gratuita entre sujeitos, em lugar de apropriar-se e privatizar o que ele produz através de experiências em que você precisa ser tornado um meu objeto, para que eu possa saber algo a seu respeito.

As ideias tomadas até aqui são de propósito radicais e segui-las ao pé da letra talvez torne inviável o próprio trabalho do pesquisar. Tomei a questão do relacionamento interativo na criação de conhecimentos e o acontecer do encontro, entre os polos “buberianos” da relação ou da experiência entre pessoas como o seu maior desafio. Também muito a propósito e de uma maneira que poderá a 3 . Martin Buber, op. cit. página 12.

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muitos ter parecido descabida, quis começar convocando pedra e animais a que viessem nos dizer, mas pela voz de interlocutores humanos os mais respeitáveis no mundo das ciências, como até nas conexões entre nós e elas (pedras) e eles (animais) questões de reciprocidades e de respeitos até pouco tempo atrás impensáveis, hoje em dia tornam-se não só nada descabidas, como até mesmo o anúncio do que há de vir a nós, dentro de fora do mundo das ciências de agora em diante.

No âmbito da pesquisa humana e social vários caminhos têm sido buscados ontem e hoje. Aquilo a que aprendi a emprestar o nome amplo e vago de pesquisa participante é apenas um entre outros. Um entre tantos e somente válido como um caminho que antes de chegar ao seu destino (se é que isto existe), atravessa outros e converge com outros.

Da experiência ao encontro

Retornemos alguns passos. Em algumas situações e com fundamentos situados muitas vezes em boas ideias, a investigação científica pode pensar-se como algo que mesmo quando vivido entre pessoas, é apenas uma sequência prevista e rigorosa de atos técnicos, conduzidos por uma teoria sobre algo, e levada com critério e rigor a um teste empírico.

De algum tempo para cá, presenciamos o surgimento e a multiplicação de alternativas de investigação científica que são qualitativas, devido ao teor e o valor dos dados, e são interativas, devido à qualidade da relação que gera os dados. E elas desejam ser francamente intersubjetivas, devido às reciprocidades entre pessoas-sujeitos colocadas face-e-face em relação. E assim, recordo, começamos a aprender que a pesquisa não é uma experiência, a não ser quando muito redutiva e muito objetivamente experimental. Ela é, antes de tudo, o acontecimento de um encontro.

Vou investigar algo junto a alguém. Tenho uma teoria (um ponto de partida); possuo um objetivo (um ponto de chegada); estabeleço um método (um caminho entre uma coisa e a outra). Mas tudo “isso” me trouxe “aqui”. E agora estou aqui e diante de alguém: um Outro que cria comigo, um Nós, um entre-Nós. Diante dele estou “aqui”. Estamos situados de um lado e do outro de meus propósitos, do meu tempo disponível, de minhas perguntas, de meu roteiro de entrevistas, de meu questionário, de meu gravador, de minha máquina de fotografias, de minha filmadora, até. Algo que na diferença entre as investigações científicas tradicionais e as diferentes pesquisas com diferentes vocações de envolvimento, compromisso, participação, aspira pluralizar pronomes e intensões, e tornar o “meu”, um “nosso”.

Por um momento, regido pelo dever de fazer algo produtivo com “isso tudo”, eu me iludo ao pensar que o acontecimento da pesquisa começa quando eu sair

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“daqui”. Quando, concluída a pesquisa, eu ordeno e guardo os meus “dados e fatos da pesquisa”, e volto ao meu mundo. Quando longe dos outros a quem eu lancei as minhas perguntas, entrevistei, gravei e fotografei, e me despedi, eu retorno a um lugar de origem e trabalho os meus dados (a alquimia antes da mágica) e, depois, escrevo o meu texto (a mágica depois da alquimia).

Mas não. Pois a verdade pode estar no exato oposto. Antes e depois, quando estou de novo sozinho e estudo, planejo, revejo, ordeno e escrevo, talvez esteja então vivendo a sequência prevista dos momentos da pesquisa como uma experiência. Mas diante de um Outro, quem quer que ele seja, eu só posso estar vivendo um acontecimento. Aqui e agora a minha pesquisa é, por um momento que seja, nossa. E por ser uma forma de reciprocidade entre nós dois, entre você e eu, aqui acontece um encontro.

Tudo mais antecede ou sucede este momento único em que duas pessoas se olham, se falam, se sentem e se pensam. E, diante uma da outra, pessoas em relação imaginam que se entendem, intertrocando entre elas gestos do rosto, do corpo e do espírito. E de um lado e do outro do que pode ser uma pesquisa viável e confiável, elas reciprocamente intertrocam os seus seres, sentidos, sensibilidades, saberes e significados, entre palavras e silêncios. Isto que à vezes reduzimos à categoria de “dados”.

Toda a pesquisa, quando envolve de um lado uma pessoa e, do outro, não uma pedra ou um animal, mas uma outra pessoa, enfrenta o dilema de transformar um encontro em uma experiência, ao invés de transformar uma experiência em encontro, e um encontro em uma relação.

Entre duas pessoas genuínas que não se querem encontrar como personagens de cenas escritas por outros, para eles representarem um diante do outro, o único encontro realmente humano em sua plenitude é a relação. É a interação entre dois seres em que, nas felizes situações extremas, o Outro não possui utilidade alguma para mim, na mesma medida em que em nada sou útil ou proveitoso para ele, a não ser na condição de sermos, em nós mesmos e um para o outro, apenas a pessoa que somos, e os atores do que entre nós fazemos interagir diante de um “outro a meu lado”.

Em termos absolutos o oposto da relação em uma situação de encontro entre pessoas, não é propriamente o domínio ou a coação, mas a experiência. Pois nela eu deixo de me relacionar livre e intersubjetivamente com um outro, de algum modo colocado diante de mim, quando eu o experimento, quando o experiencio. Quando eu o testo – e a mim mesmo - para saber, segundo os meus interesses, qual o teor de utilidade dele para comigo; logo, para mim e em meu proveito. Mesmo que este proveito próprio seja estendido também a ele.

Não é apenas porque o domino e por um momento defino o seu destino, que eu o transformo em um objeto-para-mim, ao invés de conviver com ele como um

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sujeito-sem-si-mesmo, em uma interação intersubjetiva, com o desenho de uma relação entre dois sujeitos livres um para o outro. Eu lido com um sujeito tornado para mim um meu-objeto quando de algum modo estabeleço como fundamento de nosso encontro uma utilidade dele e nele, para mim.

Toda a pesquisa envolve uma ou mais experiências, pois o que justifica a pesquisa é o seu proveito, e é o teor demonstrável de sua utilidade. Boa parte do que escrevemos em um projeto de pesquisa destina-se a demonstrar que partimos de ideias plausíveis, confiáveis e, se possível, inovadoras em alguma medida. Outra boa parte destina-se a demonstrar que não apenas partirmos de “boas ideias”, mas estamos preparados para realizá-las como alguma forma de prática, através de uma também confiável metodologia. E uma outra boa parte destina-se a demonstrar que, além de tudo (ou no começo de tudo), o que pretendemos realizar, construir ou descobrir é também útil. A importância crescente que os órgãos de fomento à pesquisa e os seus avaliadores têm atribuído à “aplicabilidade” e à “utilidade” de uma pesquisa ajuda a tornar evidente o domínio do valor instrumental sobre qualquer outra coisa. E bem sabemos que por baixo do pano, uma fração não desprezível de toda a investigação científica de nosso tempo é dirigida – muitas vezes às ocultas – mais produção de agrotóxicos e armas do que à criação de reais benefícios para pessoas, comunidades humanas e o próprio Planeta Terra.

Assim, de um modo ou de outros toda a pesquisa aspira a ser útil, e mesmo a “pesquisa pura” em alguma medida sonha ser também “aplicada”. Toda a investigação científica deve servir a algo; deve ser útil. Deve tornar-se objeto de proveito da ciência, ou de uma ciência; de uma teoria científica (com ou contra as outras); de uma escola ou confraria de cientistas; de um par de pessoas chamado eu-e-meu-orientador; de mim mesmo, quando através dela aumento o meu saber, melhoro a qualidade de minhas aulas, ou sou promovido de “mestre” a “doutor”.

Em suas diferentes vocações, investigações cientificas aspiram servir a uma fábrica de remédios, a uma empresa multinacional interessada em proliferação de armas químicas para a agricultura; a uma multinacional fabricante de armas de guerra; a uma organização não-governamental devotada a causas ambientalistas; a uma comunidade de pescadores artesanais; à criação de uma nova educação; a um movimento popular, etc. E normalmente esses e outros destinatários dos proveitos e das utilidades das pesquisas, das tecnologias e ciências que as abrigam e originam, ora se excluem, ora se contrapõem, ora se somam.

Sabemos que a progressiva passagem nas ciências humanas e sociais do domínio das abordagens e estilos mais impessoais, objetivos e quantitativos, para os mais interativos, intersubjetivos e qualitativos, tem a ver não apenas com questões teóricas, políticas, técnicas e metodológicas.

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Por debaixo de qualquer vocação de pesquisa existe uma questão que é propriamente ética e, mais do que apenas ética, é humanamente afetiva e afetivamente relacional. E por certo ela é a mais importante entre todas, e deveria ser aquela em nome da qual todas as outras razões – inclusive as estratégias e as financeiras – deveriam ser pensadas e equacionadas.

Seu ponto mais extremo em termos do que quero chamar aqui “uma humanização personalizante da pesquisa, é o que estarei denominando de investigação entre-nós. Uma modalidade de pesquisa vivida como um encontro interativo, pois ela acontece entre duas pessoas; e intersubjetivo, pois ocorre através de duas pessoas que se colocam uma para a outra como sujeitos de si-mesmos, de suas vidas, de suas ideias, de e de seus destinos. E o que aqui e ali se disfarça de ser apenas metodologicamente “qualitativa”, devolve a mim e a você a confiança em nós. Já não são mais os instrumentos neutros e objetivos de uma experiência mensurável, o que se interpõe entre nós, mas somos nós e os nossos atributos de ser, de viver, de sentir e de pensar, aquilo que temos para vivermos a busca da relação que gera uma outra qualidade de sentidos, de saberes e de significados.

Quando pensamos porque toda a pesquisa realizada em campos como a educação, a psicologia, a antropologia, a sociologia, a ação social, é sempre limitada e nos oferece apenas frações precárias e parciais de conhecimento sobre o que quer que seja (e este “qualquer” quase sempre é uma pessoa, são pessoas, famílias, grupos sociais, sistemas de saberes e de símbolos de vidas pessoais ou sociais), atribuímos a isto razões de novos metodológicas, teóricas, lógicas e epistemológicas.

Elas nos ajudam a desvelar e compreender o teor de nossos próprios limites do pensar e do saber derivados do trabalho científico. E as crescentes novas críticas provenientes dos precursores de paradigmas emergentes no campo das ciências e das práticas sociais, tornam evidente a consciência de que estamos sempre às voltas com fragmentos de com compreensões e interpretações científicas efêmeras e limitadas. E, no entanto, deveríamos estar dirigidos a buscar e gerar interpretações científicas entre campos da realidade que cabem apenas em sua vocação, destinadas a se abrirem e disporem ao diálogo com outras diversas e divergentes visões.

A menos que alguém seja muito prepotente ou fundamentalista o bastante para que apenas sejam reconhecidas como consistentes e fundamentadas as “minhas descobertas”, ou as da confraria do saber à qual aderi por algum ou muito tempo, todo o trabalho em busca não tanto de verdades únicas, mas de descobertas em diálogo, tende a partir do suposto de que tudo o que realizo vale como algo aberto a ser compreendido de várias e até divergentes maneiras.

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Ora, podemos agregar a todas as explicações propriamente científicas a respeito de nossas próprias falhas e lacunas uma outra compreensão. E por ela ser justamente a menos científica, poderia ser mais explicativa aqui. Ela é de novo humana e relacional. É quase ontológica, e outra vez é em Martin Buber que eu me apoio para trazê-la a este momento de nosso diálogo. Tenho procurado desenvolver aqui a ideia de que em tudo o que praticamos como uma investigação científica não logramos apreender mais do que frações parcelares a respeito das pessoas, dos grupos humanos, das comunidades ou das culturas que estudamos. Vimos já que em boa parte isto se deve ao fato de que o âmbito em que elas se movem é sempre muito mais amplo do que o círculo de compreensões de nossos modelos e sistemas de explicação.

Nunca abarcamos mais do que alguma parte da casca que envolve a realidade do ser, do viver, do sentir, do lembrar, do pensar e do agir de uma pessoa, porque quase nunca conseguimos nos relacionar com ela como uma pessoa. Aquele a quem estendemos apenas o interesse de nosso saber pelo saber dele, e a quem, por mais respeitosos e pessoais que sejamos, sempre de algum modo é funcionalmente objetivado por nós em nome de nossos proveitos e interesses.

E além de ele – como sujeito individual ou coletivo – não saber por si-mesmo tudo o que desejamos que ele saiba, para nós sabermos através dele, o que encontramos diante de nós é um alguém de um modo ou de outro envolvido de suas boas razões em uma posição de defesa diante de nós. Se você reluta em abrir-se a uma pessoa que se aproxima com perguntas em nome de algum motivo que é mais dela do que seu, imagine como deveria ser colocara a pessoa “de uma outra cultura”, de uma outra sociedade, de uma outra classe social, etc. diante de você.

Por motivos epistemológicos, relacionais, afetivos, culturais, aquela pessoa que eu investigo não pode me ofertar mais do que a sua pálida e fracionada face de “objeto”. Recordo que em antropologia costumamos dizer que um “informante” nos oferece narrativas de narrativas de narrativas... que em nosso trabalho de transcrição, transformamos em juma outra qualidade de narrativa entre narrativas, como lembrei linhas acima. Mesmo que ao informe que afinal redigimos demos nome de “artigo científico” ou de “uma tese”.

Todo o ser de uma experiência sujeito-objeto, que não alcança ser ou que se nega a ser uma relação entre subjetividades, apenas pode revelar acontecer da pesquisa, mais do que alguns fragmentos e exterioridades desigualmente vividos e pensados entre quem conduziu a pesquisa e quem foi convidado ou convocado a ser um seu interlocutor.

Pois de uma experiência em que Eu me aproprio de um Outro segundo os moldes de meus projetos e proveitos, só posso obter uma pálida e desconfiada

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imagem devolvida por um Outro a mim mesmo. Uma imagem movida entre gestos e palavras. Um código de um consenso entre nós, que quando eu transformo, através da alquimia de meus sistemas de pensamento, em um “saber sobre o Outro, que os meus pares devem compreender e que o Outro diante de mim não deverá compreender. Um relato de relatos, como fragmentos e exterioridades, em que acabo vendo e lendo a figura de meu próprio rosto no espelho que o meu “outro pesquisado” volta a mim, como a me dizer que isso é tudo o que resta de quem não soube ver e ver-se na difícil transparência única do olhar de um Outro.

Eis o dilema: em sua dimensão mais assumidamente radical, entre Eu e um Outro, tudo se passa em termos de tudo ou nada. E não se trata apenas de perguntar, pragmática, política e eticamente, a quem se destina o proveito do produto de uma pesquisa. Trata-se de perguntar, ética e afetivamente, como deve acontecer o momento humano único em que de um lado e do outro algumas pessoas vivem o processo de uma relação humana chamada “pesquisa”.

No entanto, apesar de assim ser, tudo o que estivermos dialogando tem a ver com o desafio de vivermos a criação de saberes confiáveis, proveitosos e solidários através de situações de pesquisa que o tempo todo almejam estar procurando o equilíbrio possível entre a experiência necessária ao avanço do conhecimento científico, e a relação indispensável a torná-lo não apenas algo útil e confiável como um produto do saber, mas alguma coisa humanamente significativa e proveitosa, como uma criação do espírito humano e de sua capacidade – sempre precária, mas sempre aperfeiçoável - de compartir e partilhar tudo o que ele cria através da relação generosa e gratuita entre sujeitos lado a lado, mesmo quando em posições ora diferentes, ora desiguais. Uma ação de partilha da criação de saberes, em lugar de ser um apropriar-se e privatizar o que o Outro cria e imperfeitamente me oferta através de experiências em que alguém precisa ser tornado um meu objeto, para que eu possa saber algo a seu respeito.

As ideias tomadas até aqui são de propósito radicais, e segui-las ao pé da letra talvez torne inviável o próprio trabalho do pesquisar. Tomei a questão do relacionamento interativo na criação de conhecimentos e o acontecer do encontro, entre os polos da relação ou da experiência entre pessoas como o seu maior desafio.

No âmbito da pesquisa humana e social vários caminhos têm sido buscados ontem e hoje. Aquilo a que aprendi a emprestar o nome amplo e vago de pesquisa participante é apenas um entre outros. Um entre tantos, e somente válido como um caminho que antes de chegar ao seu destino (se é que isto existe), atravessa outros, partilha entre outros e converge à difícil criação de saberes que entre diálogos lado a lado deixam de ser “meus” ou “deles”, para serem “nossos”.

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De uma pesquisa de que eles participam a uma pesquisa que participa com e para eles

Em suas diferentes modalidades e ao longo de sua breve história – sobretudo na América Latina – a investigação-ação-participativa busca estabelecer uma interação Eu-Outro através da qual este Outro-que-não-Eu participe do todo ou de momentos do acontecer da pesquisa, entre o projeto que se escreve e o relatório que se edita. E através da qual tanto o processo quanto o “produto” da pesquisa sejam partilhadamente processados, produzidos, dados-a-ver (a ler) e compreensíveis e interpretáveis por mim e pelo outro, desde o ponto de vista e da vivência de culturas de cada um.

Nas diferentes modalidades de pesquisas acadêmicas – mesmo as mais qualitativa e interativas – o acontecer do diálogo é quase sempre uma estratégia, uma atitude derivada de uma metodologia de pesquisa, realizada através de observação participante, de questionários (sobretudo os mais “abertos”, de entrevistas (“abertas ou fechadas”), de narrativas de histórias de vida, de escuta atenta de “memória social”, destinada a fazer de um outro um sujeito performático, um informante, um narrador, um confidente-para-mim e não – ou parcial e raramente – para ele-mesmo. Ele age e eu vejo, percebo e registro. Ele me oferta a sua narrativa e eu a transformo em uma minha-narrativa. Isto é, em um discurso-outro, que agrega valor acadêmico e científico justamente por causa desta alquimia em que o saber de quem é a fonte de meu saber torna-se traduzível e compreensível pelos meus outros – os que me lerão e, em nossos termos, dialogarão comigo, e não mais pelo outro, o autor de uma sua-narrativa que eu transformei em minha. Mesmo quando o meu texto final está carregado de passagens de suas “falas naturais”, que em meu texto somente ganham valor quando a seguir reinterpretadas por mim.

Na investigação-ação-participativa, entre diferentes variantes de finalidades, abordagens e destinações, supõe-se que o acontecer do diálogo, como uma inter-troca entre sujeitos diferentes-igualados é fundador da relação que se estabelece. Em princípio não se utiliza o diálogo como uma metodologia ou uma prática objetiva de trabalho de pesquisa. Vive-se uma relação dialógica como princípio gerador da relação entre eu-e-o-outro autores, atores e emissores de saberes diferentes, mas não desiguais. O outro não sabe menos do que eu; sabe diferente. Sendo o princípio fundador da relação, o diálogo entre diferentes-igualados é também o guia do processo do acontecer da relação de pesquisa e é ainda a sua destinação final. Eu não dialogo com um outro para “extrair” dele os seus saberes, os seus sentidos de vida, os seus significados de mundo, as suas sensibilidades e

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as suas sociabilidades (suas formas de habitar os seus mundos, compartir sua vida social e criar formas de um existir coletivo) destinados a se tornarem uma narrativa científica minha. Eu estabeleço um diálogo como inter-troca de saberes diversos e equivalentes como valor em suas diferenças, para partilhar com ele, em um primeiro momento, um com-saber, no interior de um ensinar-aprendendo e aprender-ensinado que extrapola a própria pesquisa (que é sempre e afortunadamente finita) e deve (ou deveria se continuar) em outras relações anteriores, contemporâneas e posteriores à pesquisa.

O processo e o “produto final” (se é que neste caso ele existe) de uma pesquisa participante não resultam de e nem um para-eles e nem um para-mim. resultam em algo fluido e diferenciadamente partilhável: um entre-nós.

Entre as suas muitas diferenças, o propósito de uma investigação científica no campo das “humanas e sociais” é transformar diferentes narrativas em um discurso único (minha escrita, meu artigo, minha dissertação, meu livro, minha tese e, se possível “minha descoberta”). Como já lembrado aqui mais de uma vez, um discurso competente desde o ponto de vista “dos que partilham comigo o meu conhecimento” e tão mais academicamente considerado quanto mais distante do alcance de saberes daquelas/es que aportaram as suas narrativas e/ou performances, como “dados de campo”, para a sua realização. O que se escreve é para ser ouvido, lido e compreendido “pelos meus”, mesmo que entre “eles” estejam aqueles que não compreendam inteiramente, não aceitem em parte ou recusem no seu todo o “meu texto”.

Supõe-se que à exceção de algumas situações diferenciadas e não-usuais, o efeito de uma investigação acadêmica está destinado a de alguma maneira produzir modificações significativas (qualquer que seja a sua dimensão) em meus mundos (minha legitimidade acadêmico-científica, minha carreira, meus pares, minha instituição, minha nação, a minha linha, vertente ou corrente teórica em meu campo de saber, minha sociedade, o “avanço da ciência, o progresso...). Claro, algumas investigações de teor mais presente-e-crítico poderão estar dirigidas ao embasamento e ao reforço de compreensões só em favor de críticas– mais ou menos abrangentes - de teor político com vistas a transformações sociais de teor político.

Supõe-se que, mesmo quando imperfeita e incompletamente realizada, uma investigação-ação-participativa almeja, com a ativa participação “deles”, realizar alguma dimensão de empoderamento de suas forças, de emancipação diante da colonização de poderes hegemônicos, de transformações, enfim. Transformações descolonizadoras de suas mentes, de seus imaginários (ideologias inclusive), de seus símbolos, saberes, sentidos e significados – preservadas as suas “tradições patrimoniais” – suas vidas pessoais e coletivas, seus destinos, suas comunidades e/ou sociedades abrangentes, suas histórias.

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Neste sentido investigações deste tipo têm sido praticadas tanto junto a comunidades bastante tradicionais e não “mobilizadas” segundo os nossos termos, mas nem sempre segundo o “deles”, quanto junto a movimentos sociais populares, frentes de lutas populares, suas organizações locais, regionais ou mesmo nacionais (camponeses, povos da floresta, quilombolas, indígenas), enfim instâncias de mobilização “desde as bases” de práticas contra-hegemônicas dirigidas algum campo e/ou dimensão de emancipação social.

Fora algumas pessoas, grupos ou mesmo equipes de profissionais científico-acadêmicos inconformado, no amplo campo “normal” das ciências-científicas o que importa em primeiro lugar é lograr “produzir ciência confiável e competente a respeito de nós-mesmos e/ou “deles”. Se sobre nós-mesmos (como, por exemplo: “opções religiosas e representações da vida após morte entre estudantes pós-graduados de medicina em Passo Fundo”) cessada a investigação e divulgados os seus resultados, é provável que vários dos “objetos” ou “sujeitos da pesquisa” tenham acesso a ela e diferenciadamente sejam capazes de compreender a sua retórica.

De outra parte, cessada a interação devida a uma pesquisa de campo junto a “eles, ou “os outros”, quase sempre cessa também a relação interativa com “eles” e o seu mundo e o investigador retorna à plenitude dos relacionamentos “com os meus”. Pode ser que em algum caso haja de parte da pessoa ou da equipe de uma pesquisa junto a “eles”, alguma forma de retorno, como no levar a uma comunidade popular exemplares do artigo escrito. No entanto, fora exceções, esta relação quase sempre é mais cerimonial e simbólica do que efetivamente comunicativa ou mesmo pedagógica.

Escrevo aqui alguns dilemas que vivo pessoalmente entre um pesquisador da antropologia e um praticante da investigação-ação-participante. Supõe-se que de um lado e do outro vivemos dilemas e perguntas que partem de inconformidades. Partem do estranhamento, ou mesmo da consciência do absurdo legitimado de que pesquisas centradas em uma dualidade-polaridade pré-estabelecida não refletem um lapso, uma falta, uma inadequação, um problema humano complexo, mais do que apenas um pequeno dilema metodológico a ser metodologicamente reduzido ou, se possível, superado. Elas estão – por melhores que sejam as suas intensões de origem e derivadas – de uma contradição, ou mesmo de um absurdo de teor humano, relacional, interativo, social.

Alguns investigadores e criadores de narrativas a que damos o nome genérico de “relatório de pesquisa” envolvem-se com perguntas que podemos distribuir em um dilema epistemológico, que tem a ver com o conhecimento; um dilema ético que tem a ver com valores nas relações entre pessoas; um dilema estético, que tem a ver com inevitáveis reduções quando se passa de uma

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linguagem a uma outra; um dilema político, que tem a ver com a dimensão de poder que existe – e não raro se oculta – em todo o saber.

O dilema epistemológico. Assim como diante de um psicólogo cada pessoa é criadora e senhora única de seus sentimentos, de seus saberes, de seus mistérios e segredos, assim também, e em um plano mais amplo, diversificado e complexo, quando atravessamos fronteiras entre culturas estamos colocados diante do fato de que em profundidade cada cultura é um complexo próprio, complexo e intraduzível, em sua plenitude, por outro qualquer sistema de saberes. Culturas podem dialogar, mas sem nunca reduzirem-se a outras culturas, e sem poderem ser, desde dentro para fora, conhecidas, compreendidas e interpretadas por outros sistemas culturais. A “tua ciência” sabe algo de mim. No entanto mal me conhece e em muito pouco me desvela e compreende.

Esta é uma questão pouco importante quando uma investigação reduz à camada superficial do que pode ser coletado e conhecido através de dados exteriores. Mas é uma questão central quando uma pesquisa mergulha seja na interioridade da vida cotidiana, seja em seus sistemas de ritos, de crenças, de mitos e assim por diante. de uma questão entre a ética entre pessoas e a politica entre grupos humanos, há ainda outros dilemas. Pelos mais diversos caminhos, descobrimos que possivelmente as culturas são bem mais intraduzíveis do que imaginamos.

Quatro dilemas e as suas perguntas

O dilema epistemológicoDescobrimos que não devendo ser consideradas como hierarquicamente

desiguais, as culturas são e devem permanecer originalmente diferentes. E não apenas em suas diversas superfícies. Diferentes umas das outras porque são criadas, consagradas e partilhadas através de lógicas próprias. E justamente porque não são nem redutíveis umas às outras, elas são dialógicas. É através do que nelas não se transforma na “minha cultura”, na minha teoria, na minha narrativa, em seu todo ou em suas partes, que elas podem dialogar comigo. A não ser como resultado de uma má política que embase uma ilusória pedagogia, culturas outras podem ser ilusória e superficialmente “convertidas”, “civilizadas”, “transformadas”. Sequer os seus autores/atores podem ser “conscientizados” por mim de fora para dentro, de cima para baixo (se é que isso existe) e de um centro para uma periferia (idem). De dentro para fora e de acordo com suas estruturas, lógicas, símbolos, saberes e afetos é que tanto uma pessoa quanto uma comunidade e a sua cultura podem se compreender, se criticar e se transformar.

O dilema ético

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As perguntas que a cada dia mais nós nos fazemos é esta: “que direito temos nós de irmos aos outros, investiga-los a partir de nossos parâmetros e interesses, apropriamo-nos de seus saberes, sensibilidades, sentidos, significados, para antes, durante e depois traduzir o que deles nos veio em nossa linguagem, segundo códigos de nossos saberes de ciência, e para os utilizar em nosso proveito pessoal ou coletivo?

O que nos desafia é que tomamos consciência de que não se trata de apenas fazer do “outro a meu lado” um parceiro de estudos e investigações, cujos proveitos e produtos seguem sendo total ou predominantemente meus. Qual o sentido humano em praticarmos algo que mesmo quando “participado por eles” em alguns momentos, ainda é pensado, projetado, processado e interpretado por nós e para nós? Na busca de respostas a este milenar dilema, eis que estamos na fronteira de algo em que nos desafia a converter os sujeitos emissários de uma investigação não mais “sobre” ou “para, mas “com”, também os co-destinatários de tudo o que se projeta, processa e partilha.

E esses “eles” são pessoas, grupos humanos, comunidades, classes, movimentos junto a quem nós nos comprometemos a partilhar ações sociais emancipadoras, a começar pelas que envolvem modalidades de criação partilhada de saberes. Quando saberemos criar saberes de partilha que “eles”, tanto ou melhor do que “nós” saibam ler, conhecer, compreender, interpretar e utilizar em seu proveito o resultado do que, juntos e através de nossas diferenças, vivemos como uma investigação cientifica?

O dilema estéticoEle poderá a alguns olhares parecer o menos importante. E, no entanto,

como os outros, é essencial. Um dos maiores desqualificadores de algumas pesquisas que pretendem “ir a fundo” em algo, é que ao traduzirem, aqui e ali, em um “documento escrito”, momentos do que é vivo, expressivo, dramático, artístico mesmo, o que fazemos é empobrecer de maneira extrema o que vimos e ouvimos. É o que acontece – e eu vivi pessoalmente este “drama” várias vezes – quando nos obrigamos a escrever sobre algo que diante de nós foi dramaticamente vivido com e como poesia, canto, dança, atuações expressivamente performáticas.

Não raro, quando buscamos conhecer algo da “alma do povo”, tratamos de criar procedimentos através dos quais um “velho sábio camponês” é obrigado a traduzir-se aos nossos termos, para fazer-se compreensível para nós. Para nós, bem mais do que para ele. E ele nos obedece e fala. E depois buscando o mais possível “fazer-se como nós”. E então tudo o que obtemos de um sábio indígena, de um supremo poeta camponês, de uma misteriosa e eficiente parteira de uma comunidade quilombola, de um criador magistral de literatura de cordel, são

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pálidos fragmentos empobrecidos diante para poderem virar “dados” ou “falas” úteis como respostas a nossas perguntas.

Algumas vezes acreditamos que uma das tarefas mais importantes para quem não apenas “pesquisa do povo”, mas pretende ser um militante envolvido em suas causas, é a de: “dar voz ao povo”. Pode até ser. Mas em dimensões que nos escapam quando partilhamos apenas a capa exterior de suas vidas e culturas, entre indígenas da Amazônia e camponeses de Goiás, há por toda a parte uma criatividade de “vozes”, entre as artes populares, as ciências populares e as ações de resistência e de insurgência populares que apenas ainda não aprendemos a escutar e compreender.

O dilema políticoTodo o saber oculta o desvela uma dimensão de poder. Desde um ponto de vista ético questionamos o nos apropriarmos, em nosso

proveito, de algo que nos é revelado por quem sequer conhece os termos e o destino de algo de que participou como uma pesquisa. Para além de um dilema ético há um outro. E ele reside no fato de que em alguma dimensão, o que resultado uma investigação pode devolvido à sua comunidade de origem como um saber apropriado; pode ser devolvido a ela como uma ação derivada e a seu favor; pode ser algo neutro e distante; e pode ser usado contra ela. Praticamente todas as investigações de vocação social de que participei ou a respeito das quais tomei conhecimento, dividiam-se entre o desejo de um serviço direto ao repertório legítimo de saberes de uma ciência, e uma essencial ou derivada vocação de “serviço ao povo”, “à comunidade investigada”, “a um movimento social-popular” e assim por diante.

Em cenários muito presentes, quando as próprias universidades latino-americanas se vêm invadidas de uma colonização mercadológica crescente, a escolha de “de qual lado estou” diante dos estudos que realizo, das aulas que partilho e das pesquisas que coordeno deixa de ser uma opção derivada e adjetiva e passa a ser, ética e politicamente, uma atitude ética e politica.

Se tomarmos de empréstimo a Boaventura de Souza Santos uma de suas oposições mais conhecidas, estaremos diante de ações sociais de vocação política (pesquisas cientificas entre elas) que ou se dirigem a uma regulação do sistema mundo desigual, opressivo, injusto, colonizador, e ações sociais de vocação política dirigidas à emancipação descolonizadora e humanamente insurgentes frente a e transformadoras do sistema mundo opressivo.

Ao redor da mesa, quem? Como?

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Tomo aqui o exemplo de encontros, simpósios e congressos de que tenho participado no Brasil e em outros países da América Latina. Passo a passo estamos aprendendo a deixamos de gerar e participar de encontros “entre nós” e “sobre eles”, em reuniões de cientistas, pensadores do social, e de praticantes de políticas de insurgência que, no entanto, se reúnem para falar a respeito “deles” num sempre fechado e excludente circuito de “entre-nós”. Mesas redondas em que quando um líder de comunidade camponesa, quilombola ou indígena é convocado, a ele se destinava a “ponta da mesa” e a última fala. Após os intérpretes credenciados de uma “realidade” a ser pensada para constituir-se como a base de uma ação a ser destinada, ao “outro”, costuma-se dar a palavra para que um camponês, um líder sindical, um xamã indígena, uma mulher quilombola nos ofereça um depoimento de vidas cuja recepção entusiástica de parte de quem depois de pé aplaudia, na maior parte das vezes apenas ocultava a diferença entre o que ao final do “evento” iria para os anais de reflexões e depoimentos, e quem seria lembrado como a face “popular e pitoresca” do que se viveu “ali”.

Vemos que agora não deve e nem pode ser assim. Tanto em reuniões “no mundo deles” quanto naquelas em que os trazemos para “os nossos mundos”, cada vez mais aprendemos a passar de reuniões entre-nós-sobre-eles, para reuniões-entre-nós-e-eles, quando elas profeticamente não chegam a ser reuniões-entre-eles-e-nós, tendentes a serem reuniões-entre-eles-conosco. Vivi e tenho vivido, sobretudo em regiões do Nordeste, do Centro-Oeste e da Amazônia, no Brasil dos últimos anos, pequenas reuniões e imensos simpósios com uma clara presença ativa e progressivamente igualitária “deles” e “entre-eles-e-nós”. Encontros crescentemente paritários em que representantes dos movimentos populares e das comunidades tradicionais; aquelas sem deixarem de serem, étnica, vocacional e culturalmente “tradicionais”, se assumem agora como comunidades-em-movimento. Os documentos finais ou são a partilha de saberes e projetos entre-nós-e-eles, ou são manifestos deles, com o nosso aval solidário e comprometido.

A esse esperançoso horizonte devemos adicionar o fato de que, de maneira também local, regional, nacional e universal, reconhecemos cada vez mais que “eles”, individual e coletivamente “chegaram para ficar”. Na antropologia praticada no Sul, no Leste, no “mundo periférico”, assim como nas comunidades de índios, camponeses, sertanejos, quilombolas, operários e artesãos, chegam até centros insurgentes de estudo e universidades homens e mulheres que até a pouco construíam os seus prédios e se iam embora quando eles ficavam prontos. Chegam primeiro aos poucos e com a timidez de quem foi convidado a uma ceia “em casa alheia”. Chegam depois aos bandos, ocupam lugares que dividem conosco a vida e os saberes de uma academia cujos saberes o crescimento de suas presenças haverá de transformar. E nos ensinam quando assumem serem

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diante de nós os senhores de seus saberes, a partir do que aprendem com os nossos saberes.

E se no começo dedicavam-se timidamente a procurar investigar, compreender e interpretar para eles, entre eles e sobre eles, o que antes vinha “deles-para-nós”, agora juntam-se aos pensadores críticos de “nós-mesmos” e de nossos mundos. E, em um novo, fecundo e inesperado diálogo, eis que nos chegam do campo, das periferias das cidades e da floresta para nos ajudarem a, afinal, pensarmos quem nós somos.

No passado de forma vertical, consagrada e imposta, “civilizado” era um bom qualificador, e “primitivo” ou “selvagem” eram expressões desqualificadoras. Agora as relações simbólicas e identitárias se invertem. Desconfiamos de nós mesmos e tememos as nossas ciências, as nossas pedagogias, os nossos tecnológicos meios de comunicação. E os olhamos como os outros antes ocultos e silenciados sábios de outros saberes junto aos quais talvez devamos nos debruçar para aprender o como passar da competição à cooperação; da agricultura devastadora da monocultura às agroecologias tradicionais e comunitárias; das economias da posse e da ganância às do dom e da partilha. Enfim, de tudo aquilo que desiguala pessoas, oprime povos e devasta o Planeta.

Finalizo este capítulo com uma memória. Na mesma noite em que o “Congresso Nacional do Brasil” declarava a primeira mulher presidente eleita do País legalmente impedida de prosseguir em seu cargo, ao final de um Colóquio Internacional de Povos e Comunidades Tradicionais, celebrado na cidade de Montes Claros, em um município de Minas Gerais onde geoecologicamente o “cerrado” dos sertões faz fronteira com a “caatinga” do Nordeste, saímos em passeata pelas ruas do centro da cidade.

Sairíamos de qualquer maneira, independentemente do que se tramava em Brasília, pois era parte da programação da “clausura do colóquio” uma “Caminhada dos Mártires”. E, de fato, não foi nem com as bandeiras verde-amarelas do Brasil e nem com as vermelhas do Partido dos Trabalhadores que saímos às ruas. Algumas pessoas de nosso fervoroso cortejo portavam pequenos estandartes com a imagem de mulheres e de homens; lideranças indígenas, quilombolas, camponesas que ao longo dos anos haviam sido assassinadas. A cada instante alguém gritava um nome e várias vozes repetiam um “presente!”, completado com a fala de alguém que memorava de quem se tratava.

Convocado pela Universidade Estadual de Montes Claros e por uma universidade alemã em convênio com a UNIMONTES, na verdade o sentido de “internacional” do nosso colóquio poderia ser pensado de uma outra maneira. Raros, bem raros eram os alemães e os suíços presentes. Por outro lado, em um evento tradicionalmente acadêmico em que pessoas entre “graduandas” e “pós-doutoras” se reúnem para falar sobre “os outros” - no nosso caso os viventes e resistentes

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habitantes das diversas comunidades tradicionais - foram eles e elas, mulheres e homens vindos de aldeias indígenas, de comunidades quilombolas e camponesas, de franjas de barranqueiros-pescadores de beira-rio ou mesmo de praias do litoral do Brasil, que vieram de seus lugares de origem a Montes Claros. E entre-nós tomavam a palavra e nos diziam em suas maneiras próprias de pensar e falar tudo o eu por séculos lhes foi imposto silenciar.

E, bem mais do que eu havia vivido, entre muitos anos atrás e os últimos meses, os homens e as mulheres “das comunidades tradicionais” não vieram nos ouvir. Não vieram sequer como os representantes “de nossas culturas tradicionais ou indígenas”, a quem cabe a última fala em algumas mesas redondas. Vieram nos falar e nos ouvir. Nos intervalos nem sempre fáceis que separam “quem compreende mas não sente, e quem sente, mas não compreende”, segundo Antônio Gramsci, alguns indígenas Xacriabá e de outras etnias, ao lado de quilombolas e camponeses dos sertões e outros cantos do País vieram dialogar face-a-face conosco. E até mesmo os horários previstos no programa, assim como os tempos de fala dados a cada quem tiveram que ser alterados. Pois para um índio ou um camponês “dar a palavra” e dizer que a pessoa “tem dez minutos para falar” oscila entre o incompreensível e o ofensivo. Em minha mesa redonda mesmo a moça indígena que me antecedeu pintou de vermelho os nossos rostos, estendeu a nós e a todos as bênçãos da Terra e dos bons espíritos, e nos falou por mais de uma hora e terminando a sua fala entre uma prece, um protesto e um poema.

Vivemos agora a experiência de em um mesmo lugar e em momentos sequentes, estabelecermos um diálogo vivo e nem sempre fácil entre “nós” e “eles”. Desarmados de nossas teorias, entre “dialéticas” e “interpretativas”, e armados de suas duras vidas, “eles” chegam não apenas para serem secundaria – e não raro “pitorescamente” ouvidos – mas para nos dizerem que a respeito “deles” é a partir das palavras deles que a essência do que se dialoga deve ser levada em frente.

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de um olhar ao outrodo pensar sobre o outro ao pensar com o outro

Se me fosse desafiado indicar um livro ou uma narrativa absolutamente exemplar a respeito dos dilemas, descaminhos e desafios que nos últimos anos têm nos obrigado a formular mais perguntas a nós mesmos sobre o que o que andamos pensando e fazendo como investigadores de pessoas, culturas e sociedades, do que a “eles”, a respeito de suas vidas, imaginários, persistências e lutas, eu lembraria não um livro teórico sobre a observação participante dos antropólogos, ou sobre a pesquisa participante de educadores e militantes. Indicaria um livro: Contos, de escritor norte-americano Jack London4. E dentre todos os contos do livro escolheria um: Ao sul da fenda. Escrito muito antes de toda a polêmica pós-moderna sobre ciência e pesquisa chegar, ele parece ter sido escrito como uma antecipação extrema, radical mesmo, do que pensamos, vivemos e problematizamos.

A trama do conto nos leva à cidade de São Francisco, ao tempo da difícil formação dos primeiros sindicatos de operários das fábricas da região. Em uma cidade dividida social e simbolicamente entre um “sul” e o “norte” de uma fenda ao mesmo tempo geológica, geográfica e social, Freddie Drummond é um dos raros homens que transita com frequência de um de seus polos para o outro. Ele é um professor do Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia. É um pesquisador de campo extremamente ativo, e em nome de suas pesquisas com frequência atravessa a “fenda”, passando do lado rico e acadêmico para o pobre e operário como se um habitante fora dos dois lados.

... e foi nessa qualidade que, transpondo a fenda, viveu seis meses no gueto do trabalho para escrever O operário não especializado, obra apreciada por todos e considerada uma importante contribuição para a história do progresso e uma réplica à literatura do descontentamento, no sentido em que representava um exemplo perfeito da ortodoxia, do ponto de vista político e econômico. (página 104).

Sendo um intelectual reconhecido e um rigoroso e persistente pesquisador de campo, Freddie foi além dos seus colegas de ofício e aprendeu a fazer-se operário e trabalhar na linha de frente das fábricas cujo cotidiano o motivava para mais uma investigação. Para mais um livro sobre os operários e contra eles. No entanto, como um pesquisador:

Conforme afirmava no prefácio de seu segundo livro, O operário, tentava sinceramente entender os trabalhadores, e o único meio de chegar a tanto era misturar-se com eles, sentar-se à sua mesa,

4 . O livro foi publicado em Português, pela Editora Expressão Popular, de São Paulo. Tenho comigo um exemplar da 2ª edição, de 2009.

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dormir na mesma cama, participar de suas distrações, pensar e sentir como eles . (Página 105).

E depois da colhida (acadêmica, nunca operária) de seu segundo livros veio um terceiro. E um quarto. E rigorosas e sensíveis pesquisas que misturavam a sua vida disfarçada com a vida real dos operários, objetos de suas investigações, descobriu com o tempo que pouco a pouco sentia mais prazer em estar na “Fenda do Sul” do que da “do Norte”. Sendo um crítico fervoroso do “ser operário”, com o tempo começou a gostar de sentir-se um operário e viver com e entre eles. Tanto foi que acabou Freddie por criar para ser, enquanto no “Sul da Fenda”, um outro operário. E à sua pessoa e figura deu num nome: Bill Totts. E aconteceu que...

... Bill Totts sentia-se tão bem em sua nova pele, era um operário tão perfeito e um habitante tão autêntico do Sul da fenda, que sentia solidariedade por sua classe, como é comum nas pessoas de sua espécie e o ódio que dedicava aos fura-greves era até maior do que a média do que sentiam os sindicalistas sinceros. (página 107).

E se assim aconteceu antes, mais ainda começou a acontecer quando Bill conheceu e começou a descobrir que primeiro admiravam muito e, depois, amava uma líder operária e sindicalista. Sindicalista: Mary Candon.

Mas quando “ao Norte da fenda” havia Freddie, que inclusive começara a reunir material para um livro novo: as mulheres e o trabalho. E havia Catherine Van Vorst. Acadêmica como ele, letrada e quase bonita ela acabou por ser a noiva que pelo menos quando ao Norte da fenda ele pensava que poderia amar. Tanto que o casamento estava marcado para duas semanas mais a frente.

E foi quando aconteceu o que me esquivo de narrar para que quem me leia, leia também Jack London. No entanto, antes de deixarmos Freddie e Bill, Mary e Catherine, que eu ao menos antecipe que no entrevero de um enfrentamento entre policiais da ordem pública e operários mobilizados, preso em seu carro e ao lado da noiva, Freddie assistia a uma árdua luta entre policiais e operários. E, sem poder mover em qualquer direção o seu automóvel, preso entre os dois lados do conflito, até quando pode Freddie comungou com Catherine um sentimento que a noiva-doutora expressou com uma frase curta (e, de resto, extremamente repetida ao longo da história humana): que bando de selvagens!

Até quando de dentro de Freddie emergiu Bill. E não mais o sociólogo que pesquisa operários, mas o operário que aprendeu a se pensar, e à sua classe, para além do operário. Não narrada com detalhes a cena espetacular, não custa encerrar esta metáfora revelando o seu final.

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Nos anos seguintes, não houve aulas de Freddie Drummond na Universidade da Califórnia, e não foi publicado nenhum livro seu sobre economia social.Mas, ao mesmo tempo, surgia um novo dirigente sindical, chamado William Totts. Foi ele que se casou com Mary Condon, presidente do Sindicato Internacional da Trabalhadoras em Luvas; foi ele quem organizou a famosa greve dos cozinheiros e empregados de restaurantes e, antes de obter uma vitória definitiva, ajudou a formar vinte sindicatos mais ou menos associados. Entre os quais os de desempenadores de aves e o dos empregados de agências funerárias. (página 119).

Deixemos o conto. Uma outra narrativa nos espera.Bem sabemos que o que está por debaixo da polêmica inacabável entre a

objetividade-neutralidade quantitativa e a subjetividade-interatividade5 qualitativa é algo mais do que uma questão apenas epistemológica. Deixando de lado outros aspectos importantes que envolvem os pontos de vista “de um lado e do outro”, procurei aqui pensar na fronteira. Procurei ressaltar como e quando uma abordagem pode servir-se da outra e fecundar-se, fecundando-a. Deixei bem clara a minha escolha ao descrever brevemente a trajetória de minhas dúvidas, ainda não resolvidas inteiramente, e de minhas certezas sempre revisitadas e revistas. De todos os aspectos que envolvem esta e outras polêmicas, inclusive aquela que coloca de um lado os praticantes de estilos interativo-qualitativos de observação participante, mas desconfiam ainda do todo ou de partes dos estilos interativo-qualitativo-solidários da pesquisa participante, escolhi apenas alguns para trazer a esta nossa mesa de diálogo.

Um deles é a necessidade de uma revisão abrangente e corajosa de modos e modelos de trabalho na busca científico-pedagógica de conhecimentos, frente aos desafios de novos modelos de pensamento, de consciência de sentimento, de criação de novos imaginários e de novos significados (político-pedagógicos, inclusive) orientadores de nossas interações conosco mesmos, com os nossos outros, com a vida e com o próprio universo - a começar por nossa Casa-Nave Gaia, o Planeta Terra, a começar pela rua onde eu moro em Gravataí ou Alvorada. E, finalmente, e como um desaguadouro de tudo o que veio antes, uma recriação dos fundamentos de uma nova ação social de valor político capaz de semear e fazer frutificar entre nós “um outro mundo possível”.

5 . Que me seja permitido criar aqui esta bela e indispensável palavra: interatividade como um oposto à palavra corrente nos livros de métodos e técnicas de pesquisa experimental: neutralidade. Eu nem creio que interatividade seja uma palavra que não existe. Talvez ainda não esteja nos dicionários. Mas, como em tudo na vida, e nas pesquisas, a imaginação humana pode e deve sempre anteceder à norma e aos preceitos da norma culta e oficial. Milhares de palavras dos livros de João Guimarães Rosa não estão (ou não estavam) dicionarizadas. Ele as criou e toda a língua com que nos comunicamos ficou tão mais rica de imagens e de sons e de sentidos.

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Aos trancos e barrancos, mas a caminho, em um mundo que sonhou se justo e fraterno, igualitário e não-excludente, socialista e feliz quando um “Novo Milênio” surgisse e que é tão ou mais injusto, violento e desigual do que o de outros tempos, de qualquer modo estamos na aurora de uma era em que nos vemos frente ao desafio de reaprender a sentir, a pensar, a interagir e a criar o nosso próprio mundo. Velhos esquemas e sistemas de pensamento e de pesquisa cientifica vão sendo cada vez mais postos em questão. Vão cada vez mais dando menos respostas às perguntas verdadeiramente essenciais. Talvez alguns deles sobrevivam por muito tempo porque é sobre as suas bases que se ergue ainda de uma ciência e uma tecnologia úteis e submissas a projetos políticos e econômicos que tornam mercadoria todas as coisas, inclusive seres humanos como você e eu, e que ainda aportam armas sofisticadas aos exércitos e riquezas inúteis, mas cobiçadas, aos cofres do capital.

Estamos vendo diante de nossos olhos e de nossas escolhas de pensamentos e de ações, o enfrentamento agora não mais disfarçável entre modelos não apenas diferentes, mas divergentes e opostos em questões essenciais. E a primeira pergunta que devemos falar aos que defendem que, tal como a arte, a ciência não deve ter opção de imaginários e de ideologias, é sobre qual tipo de visão de mundo, de imaginário de presente e de que ideologia de criação do futuro eles estão pensando o que pensam e dizendo o que dizem. Uma outra pergunta deveria ser dirigida a todas e todos nós. Não estaremos deixando o alcance de nossos olhos e de nossas mentes confinado em um campo muito restrito da vida social, frente a tudo o que está diante de nós? Ao pensarmos, por exemplo, quais deveriam ser as nossas escolhas de projetos de educação e de propostas de pesquisas que a tornem mais crítica e mais fecunda, não estaremos presos ainda a ideias e modelos muito estreitos e em boa medida já ultrapassados? Não seria este o momento de nos abrirmos sem receios – mas com toda a cautela e todo o rigor devidos a quem se lança a pesquisar qualquer coisa – a novos olhares, a novos sentimentos, a novos sentidos e a novas interações entre tudo isto e tudo o mais?

É na busca de respostas – nunca individuais, sempre solidárias, coletivas, fruto de diálogos, de encontros entre semelhantes, diferentes e divergentes 6 - a estas e a outras perguntas que eu me interrogo sempre a respeito da outra questão sumariamente proposta aqui: de quem lugar social eu penso o que penso e falo o que eu falo antes, durante e depois de uma pesquisa? Uma pesquisa como as que estarão sendo apresentadas e refletidas ou sugeridas nas páginas seguintes.6 . Nenhuma de nós é melhor e nem mais inteligente do que todas nós”, é uma frase de Marilyn Fergunson - uma

ativista norte americana com pelo menos um livro em Português: a conspiração aquariana - que um dia me foi contada por Fábio Brotto, um educador criador entre nós dos jogos cooperativos. Quem sabe a mesma citação está em seu novo livro? Fábio Otuzzi Brotto, jogos cooperativos – o jogo e o esporte como um exercício de convivência, Editora Projeto Cooperação, Santos, 2001.

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E o outro ponto relevante aqui, vimos, é a crítica colocada frente à invenção da ideia de uma reducionista neutralidade-objetiva como estilo e vocação da ciência. Uma crítica feita a partir da evidência de que todas e todos nós, cientistas sociais “puros” ou não, educadores, participantes ativistas de alguma causa social, étnica, política ou o que seja, sentimos, falamos e interagimos com pessoas e com símbolos e significados que de um modo ou de outro representam sempre escolhas, postos de vista, imaginários e ideologias. E, qualquer que seja a nossa orientação teórico-metodológica, pesquisamos alguma dimensão da “realidade” e escrevemos algo desde as nossas investigações, sempre situados em algum tempo-lugar social. Nunca se fala ou se escreve “fora do Planeta” e “para além do Mundo”. Será fácil ver que voltarei a este ponto nos capítulos seguintes.

Um terceiro ponto é o menos visível nos livros antigos e mesmo nos livros mais atuais a respeito de pesquisas qualitativas e de pesquisas na educação. Os modelos quantitativos nos condicionam a ver “casos” (como “aluno indisciplinado”, objetos (como “os atores sociais do sexo feminino em Belém Velho”), “números” (como “os 38% que responderam afirmativamente ao item B”) e “categorias” (como as classes sociais “A”, “B”, “C”, “D” e “E” das pesquisas dos jornais) onde, na verdade, existem e estão: pessoas. Onde há seres que são mulheres e homens, adultos, idosos, crianças, adolescentes e jovens. Pessoas cujas histórias vividas são quase sempre bastante mais humanas, profundas e sofridas do que as nossas histórias de vida conseguem captar.

E bem sabemos também que mais à esquerda dos métodos e das ideologias, de vez em quando um olhar utópico e político enxerga menos a pessoa porque também vê, mesmo depois de trabalhar com “métodos qualitativos”, a “classe social”, o “representante de classe” ou o “grau de consciência”. E, quantas vezes, depois de uma série de entrevistas que revelam tanto da intimidade de cada pessoa, reduzimos um depoimento de vida (a consciência de uma pessoa) a uma fala típica (o conhecimento sobre uma classe ou categoria social), e reduzidos a fala a um frase padrão (a informação) desligada de seu contexto e distante da pessoa que disse aquilo, dizendo tantas outras coisas mais.

Aqueles a quem nos dirigimos são pessoas (como um homem solteiro e recém-chegado à comunidade, uma mulher casada e mãe de sete filhos, uma menina que estuda e também trabalha, um jovem que não sabe se é melhor seguir na escola ou “cair na rua” de uma vez), São pares de pessoas (como um casal), famílias nucleares (o casal e mais dois filhos), são grupos domésticos (a família nuclear sozinha, ou acrescida de um “pai da esposa” ou de uma “mãe do marido), são parentelas, redes de parentesco (a interação socioafetiva e genética de famílias nucleares interconectadas entre parentes consanguíneos e afins), são grupos de idade (como as “turmas” de meninos ou de meninas, na escola ou na delícia de uma manhã clara de sol num sábado sem aulas), são grupos de

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interesse (como quando os homens da comunidade fundam um “time de futebol”), são equipes de trabalhos (como a de uma “turma de operários da construção civil”), são, coletivamente, instituições sociais (como a paróquia católica, a igreja pentecostal, a associação de amigos da Restinga ou a associação de pais e mestres de uma escola), as diferentes unidades individuais ou coletivas que compõem e configuram, entre fios e tons diferentes, a urdidura do cotidiano daquilo a que damos o nome de “tecido social”.

Mas, de qualquer modo, sempre conjuntos interativos “de” e “entre” pessoas. Sujeitos sociais, identidades étnicas ou também sociais, atores culturais (qualquer um, qualquer pessoas, e não apenas os “criadores populares de cultura”). Seres através de quem uma cultura ou uma fração diferencial de uma cultura é realizada e dada a ser vista... e investigada.

Descobrimos primeiro o sujeito e a subjetividade, na educação e na pesquisa de/sobre a educação. Estamos aprendendo agora a lidar com a inteireza do sujeito desta “subjetividade”. Estamos aprendendo a perder o temor de sermos menos confiáveis por estarmos sendo mais pessoais no modo como trabalhamos, inclusive quando investigamos isto ou aquilo. Mas é justamente no encontro o mais profundo e verdadeiro possível entre dois sujeitos da história, duas atoras sociais do cotidiano, uma professora e um estudante de sua “turma de alunos”, duas pessoas humanas, enfim, que a relação mais humanamente objetiva acontece.

Quando no encontro entre eu-e-você existe em alguma medida uma intenção de amor ou, se quisermos, de aceitação do outro em-si-mesmo e tal como ele é, então é quando em sua maior transparência o eu do outro aparece em mim e para mim. O outro é, inicialmente, um semelhante a mim: fala a seu modo a minha língua, participa a seu modo de minha própria cultura, crê a seu modo no mesmo Deus que eu; e toma no cair da tarde de uma quinta feira o mesmo chimarrão que eu. Por isto ele me atrai de início. Porque mesmo quando um distante (uma mãe-de-família da comunidade de minha escola) ela me é alguém próximo, um semelhante. Interajo aceitando o outro em meu afeto não porque ele é a minha imagem, o que seria um desejo narcísico de me ver nos outros a quem amo. Eu o aceito de maneira incondicional pelo que nele encontro de ressonância em mim. Por isso também Paulo Freire dizia sem cessar que somos todos aprendentes-ensinantes uns dos outros.

Mas eu aceito a seguir em sua diferença de mim. Na imensa maior parte dos “casos” com quem nos encontramos em uma pesquisa de comunidade, estamos diante de pessoas que não sendo nós e sendo de algum modo como nós, são também a medida visível e, em boa medida, lastimável, de nossa diferença. Não moramos no mesmo bairro e nem as nossas roupas são exatamente iguais. Nossos salários podem até não ser muito desiguais, mas os nossos modos de vida cotidiana são. E é nas chamadas “diferenças culturais” que nos acostumamos a

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ver o que nos torna - em uma sociedade dual e excludente como a nossa – desiguais. Falamos a mesma língua, mas não do mesmo modo e é provável que a biblioteca de minha casa tenha mais livros do que as de todas s casas da comunidade de acolhida de minha escola.

Mas é precisamente aí que nos vemos de gente para uma questão que, quando não resolvida, é o nosso dilema, e que, quando resolvida através de uma escolha amorosa (porque não?) e consciente (claro!) tornar-se a nossa própria vocação. E qual é esta questão? De saída podemos imaginar que não é a mesma questão que enfrenta uma professora de classe média (será a “B” ou a “C”?) que leciona m uma “escola particular de classe média” e convive com alunas e alunos que são como os seus filhos. Quem são as filhas e os filhos das amigas e que partilham a rua, o bairro, o clube, a igreja, o chimarrão e a escolha cultura de “tradições gaúchas”. O que temos pela rente é o fato de que apenas com uma motivação de aceitação plena e incondicional da pessoa do outro, meu/minha diferente/desigual, eu sou capaz de compreendê-la. De sentir com ele, mesmo que não sinta como ele. De saber colocar-me desde o seu ponto de vista, aceitando-o no como é, como vive e como pensa e diz a mim de seu ser, de sua vida e de seus sentimentos e pensamentos.

Pois é no intervalo entre o reconhecimento da similitude e da diferença entre eu-e-ele que o diálogo torna-se possível. Mesmo quando é o diálogo da meia-hora de uma entrevista de pesquisa. No entanto, entre este “ele” da comunidade de acolhida e eu existe um dado de desigualdade sociocultural não desejada, mas real, que transforma uma diferença entre pessoas em uma desigualdade entre sujeitos de categorias sociais desigualadas. E a própria maneira como uma “conversa” entre “ele-e-eu” em uma pesquisa transcorre deixa isto bem claro.

Realizo a minha parte de uma investigação da/na comunidade porque ela é parte de meu trabalho. Mas eu participo dela para além da responsabilidade funcional porque quero acreditar que também ela é um instrumento a mais no trabalho solidário da aventura dos encontros entre pessoas vistas e vividas, de um lado e do outro, como seres a quem toca reduzir e destruir as desigualdades sociais para que não reste mais entre elas nada mais do que as desejadas diferenças de destino ou de escolhas. As diferenças culturais despojadas de qualquer valor de hierarquia, as diferenças étnicas outras.

Aprendi em meus vários encontros com educadoras e educadores do Sul (de sala-de-aula ou não, mas principalmente com as de sala-de-aula) o quanto esta questão do desafio entre um trabalho de pesquisa sócioantropológica fiel e objetiva, e uma vivência também através de uma pesquisa profundamente interativa, intersubjetiva e pessoal está viva e pouco resolvida. Tudo isto porque na maioria dos casos havia sempre uma intenção de tornar o trabalho de conhecimento da vida cotidiana da comunidade de acolhida da escola algo que

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traduza a vida diária e, não apenas, os indicadores das condições sociais de vida. Tudo isso, também, porque tornar o trabalho de pesquisa da comunidade algo tão participante quanto possível tem sido sempre um desafio.

Procurando partir de situações concretas e de experiências que foram e seguem sendo vividas, meu propósito é o refletir dilemas e propor alternativas. Não se encontrará aqui método de pesquisa algum com o rosto de uma receita. Em alguns casos elas são úteis sim, e o aprendizado seguro e confiável de técnicas de trabalho científico bem fundamentado teoricamente é uma obrigação de todas as pessoas – pesquisadores de carreira ou não – que se lançam em alguma experiência de ”pesquisa da realidade”. E, ao contrário do que imaginam alguns, se isto ale para as pesquisas acadêmicas, vale por igual, ou mais ainda, para as investigações onde, como ou sem uma participação direta de pessoas da comunidade pesquisada, existe uma intenção de tornar a comunidade e suas pessoas os primeiros destinatários e os praticantes ativos dos frutos, diretos ou indiretos da pesquisa.

3.Aplicada, solidária, participante

Pouca gente que faz da pesquisa cientifica uma parte importante de sua vida é tão solitária quanto o antropólogo. Desde as distantes fotografias de Bronislaw Malinowski e de Francis Boas, a imagem que se tem dele é sempre a de uma pessoa branca, sozinha dos seus e solitária entre os “primitivos” que foi investigar em alguma ilha da Papua Melanésia ou num canto escondido da Floresta Amazônica. Mudaram os tempos e os lugares, mudaram os temas e as cenas das pesquisas, mas a imagem de um “pesquisador de campo”, sozinho do começo ao fim, ainda retrata o “ofício do etnólogo”. Mesmo quando participam juntos de uma “equipe de pesquisa” - e eu me vi entre elas várias e inesquecíveis vezes 7 - na prática do trabalho de campo cada um vive a sua experiência. Cada um “fica na sua”. De fato não é usual uma observação participante coletiva e nem uma entrevista. Menos fácil ainda é praticar uma “análise estrutural da narrativa” ou proceder a uma “descrição densa de um ritual” entre três ou quatro pessoas. “Conviver com o outro que investigo” parece ser obrigatoriamente uma interação dual: ele e eu. Como na casa de caboclo da música sertaneja: “um é pouco, dois é bom, três é demais”. Nem sempre, na verdade.7 . O volume 4 de nossa série será uma viagem a relatos de “pesquisas de campo” bem ao estilo da Antropologia,

indo do mais absoluto pesquisador solitário ao mais investigador solidário, participante de/em equipes. Em um momento estarei tomando uma pesquisa concreta e procurando estabelecer, passo a passo, os procedimentos metodológicos, os problemas enfrentados, os erros cometidos, os acertos encontrados e os resultados obtidos. Ele deverá ter como nome: Ir, conviver, voltar, escrever – a pesquisa de campo.

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Na direção oposta da solitária observação participante nada deveria ser mais solidário e coletivo do que a pesquisa participante. Em mais de um dos capítulos deste Saber com o Outro procurei descrever como a pesquisa participante estende aos outros situados fora da equipe de profissionais (ou aprendizes) acadêmicos das ciências eruditas, o poder e a vocação de partilhares a construção de conhecimentos sobre eles mesmos, sua comunidade e o seu mundo. Falo agora pela minha experiência e através de depoimentos de vários outros diferentes “pesquisadores participantes” do Brasil e da América Latina. Vivemos sempre um dilema: quando mais uma investigação tende a ser participante tanto mais ela acaba precisando ser quantitativa. No volume seguinte de nossa série: O Meio Grito e outros escritos sobre a pesquisa participante, estarei descrevendo com detalhes experiências de que participei, entre Goiás e o Rio Grande do Sul, e que foram predominantemente quantitativas. Ou que, no limite, dividiram-se entre o rigor da quantidade estatística e a densidade da qualidade discursiva. Tudo leva a crer que uma objetivação-quantificável permite traçar objetivos claros e operativos. Uma entrevista é arte-ciência de uma única pessoa e mesmo construí-la de forma mais objetiva (as “entrevistas fechadas”) deságua em uma interpretação bastante individualizada. Mas um bom questionário pode ser “bolado”, criado, testado, aplicado, quantificado, ordenado e analisado em volta da mesa, entre algumas ou mesmo várias pessoas.

Lembro-me de que nas duas mais completas experiências de pesquisa-ação-participante de que fui um dos integrantes, foi justamente esta objetivação-quantificável o que permitiu um “entendimento” da participação. Sociólogos, antropólogos, educadoras, agentes de pastoral, mulheres e homens lavradores de pequenas comunidades rurais de Goiás puderam criar algo juntos porque dispunham de critérios objetivamente uniformizantes enquanto possibilidade de compreensão. Era diante de números dispostos em tabelas e gráficos rigorosos. Depois de dias e noites dedicados a lidar com os “números do questionário” antes do advento do computador, tínhamos diante de nós uma realidade vivida transformada em uma objetiva realidade pesquisada, ao redor da qual, agora sim, podíamos aportar as falas de nossas vivências semelhantes e diversas, e produzir uma “boa análise”.

Este foi sempre um desafio. Algumas vezes foram tentadas, com relativo sucesso, investigações de estilo participativo envolvendo histórias de vida e reconstruções da história social de movimentos populares ou de comunidades, com procedimentos bastante mais qualitativos e intersubjetivos. Muito embora esta questão nem sempre seja bem discutida em artigos e livros sobre a pesquisa participante e suas derivadas, ela está sempre presente. E poderia ser sintetizada nesta pergunta: como tornar participantes as abordagens qualitativas? Dita ao contrário a pergunta também faz sentido: como tornar as abordagens qualitativas

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também participantes? Também incorporáveis como métodos e técnicas confiáveis e criativas em diferentes estilos de investigações participativas?

Um livro de tradução bastante recente para o Português e incorporado a uma coleção dirigida a educadores procura fazer mais do que trazer alguma resposta de “aproximação”, de “adaptação”. René Barbier, um dos mais conhecidos teóricos e praticantes da pesquisa–ação de “linha francesa” (mas existem linhas “nacionais” aqui?) tenta criar um estilo profundamente intersubjetivo, interativo, dialógico e afetivamente qualitativo em sua proposta de uma múltipla pesquisa-ação existencial, integral, pessoal e comunitária8. Depois de apresentar a história recente e os fundamentos da pesquisa-ação conhecida, ele estabelece no capítulo 2 uma: “nova pesquisa-ação e seu questionamento epistemológico”. Ora, este questionamento é feito em termos de uma crítica amorosa a um sociologismo objetivante da relação entre sujeitos envolvidos de um lado e de outro na prática da pesquisa-ação. Mas uma crítica em nome do quê? De uma subjetivação pessoalizante da relação entre um lado e o outro; de uma aproximação entre modelos mais sociológicos e exteriorizantes e estilos mais psicosociólogicos, centrados na escuta sensível do outro, no diálogo desprovido do poder e na construção partilhada de sentido.

Chama a atenção, de uma maneira próxima ao olhar de outros cientistas sociais e educadores, Barbier passa a trabalhar no intervalo entre as tradições científicas consagradas e os novos modelos emergentes de pensamento e pesquisa. Como incorpora ao saber acadêmico as ideias de um Krishnamurti e uma substância teórica relevante, provinda de diversos sistemas de sentido orientais. Tal como tenho procurado enfatizar seguidamente aqui, o próprio critério de confiabilidade filosófica e científica de uma investigação não está apenas e principalmente no fundamento teórico, no emprego de métodos e na qualidade do produto final. Está bem mais no todo de seu processo de realização. E o que avalia este processo não é o rigor do método, mas a qualidade da interação entre as pessoas envolvidas na partilha de um trabalho face-a-face de criação de sentidos, inclusive através do uso de métodos científicos. Ao estabelecer os termos de sua pesquisa-ação existencial René Barbier fala o seguinte:

Um pesquisador em pesquisa-ação existencial é, portanto, necessariamente implicado dessa maneira no cerne de um Eu/Tu buberiano (Martin Buber, 1969) que estimula toda a sua presença para o outro. Nada é mais exigente do que uma atividade de pesquisa assim definida. Ela exclui toda a forma de diletantismo ou de brilho espetacular. Ela pertence ao registro do secreto e do íntimo. Ela enfatiza uma reciprocidade de olhar para a essência do “rosto” de cada um no centro de uma vivência sensível de

8 . O livro se chama: A pesquisa-ação é o terceiro da série pesquisa em educação, da Editora Plano, de Brasília. Foi publicado em 2002.

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proximidade (Lévinas, 1974). Onde é possível formar-se nesse tipo de pesquisa, na universidade e alhures? Que tipo de educação tem a não-competência e que tipo de instituição propomos a nossos jovens para que eles possam cumprir um tal destino9.

Barbier faz a pergunta e procura respostas. Mas eu quero sugerir aqui algumas outras, talvez um pouco mais aplicáveis ao cotidiano de nossos dilemas de pessoas dedicadas à educação de crianças, jovens e adultos que um dia descobrem, como Roland Barthes, que há um momento da vida “em que se ensina o que não se sabe” e, então, ou se repete o que se soube, ou se aprende a pesquisar.

1°. Toda a pesquisa de realização solitária pode ser também um trabalho destinado a ser posto “em volta da mesa”, a ser partilhado. A servir a algo mais do que um novo título ou um novo artigo dirigido ao círculo restrito dos que “são como eu e pensam como eu”. Nas ciências sociais e nas ciências humanas – aquelas de onde partem e a que se destinam todas - no dizer do mesmo Boaventura de Souza Santos com quem nos encontramos em outros capítulos – mesmo a “pesquisa pura”, a não-aplicável, é sempre passível de ser aplicada. E a abertura do sentido social de sua “aplicabilidade” deve ser medida pela ampliação generosa do círculo de pessoas convocadas a dialogarem entre elas através do que o escrito da pesquisa tem a dizer. Convenhamos, a não ser em raros e justificáveis casos de exceção, toda a pesquisa que gera conhecimentos intencionalmente dirigidos a confrarias muito restritas de interlocutores, é uma atividade científica negadora da razão de ser humana da própria ciência. Ela subordina a criação de saber à reprodução de círculos de poder a partir do saber que gera.

2°. Mesmo quando possamos acreditar (e devemos acreditar, passo a passo) que o horizonte da pesquisa solitária é a pesquisa em equipe e o horizonte da pesquisa em equipe é a pesquisa participante, isto é, a investigação estendida do grupo pesquisador à comunidade constituída por este grupo e mais os das pessoas investigadas, podemos pensar que o sentido de valor de uma investigação não está somente no envolvimento social de seus realizadores, mas no sentido

9 . Barbier, op. Cit. Página 102. Ele cita dois pensadores judeus cujas ideias – inclusive as da/sobre a educação – merecem ser lidas e relidas. Um deles é Martin Buber e o livro é o Eu e Tu, traduzido e publicado pela Editora Centauro, de São Paulo. Tenho comigo a 5ª edição, sem indicação de data. A excelente introdução de Newton Aquiles Von Zuben é datada de fevereiro de 1977. Buber tem escritos de rara importância para educadores. Três deles foram publicados pela Editora Perspectiva, de São Paulo. Do diálogo e do dialógico, de 1982, Sobre a comunidade, de 1987, com um importante artigo: a educação para a comunidade, e Socialismo utópico, com a segunda edição em 1986. Alguns livros de Emmanuel Lévinas estão em Português e merecem ser lidos. Ver: Totalidade e infinito, da Edições 70, de Lisboa, com data de 1988, Entre nós, da VOZES, de Petrópolis, em 1997, e O humanismo do outro homem, também da VOZES, em 1993.

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de serviço e proveito dado ao processo do trabalho e aos seus produtos10. Uma forma de uma investigação ser participante está no “quem”-“como”-“porque”-“para quê” participa dela. Uma outra forma está na resposta a como uma pesquisa participa da vida e das possibilidades de transformação social da vida dos que dela participam como investigados, ou como pesquisados-pesquisadores.

3°. A palavra “transformação” não é aqui uma metáfora e nem uma ilusão. No campo de da educação pesquisa alguma é diletante, embora muitas possam ser prazerosas e gratificantes. Não se trata de pregar um utilitarismo pragmático, o que conspira de frente com a própria ideia ao mesmo tempo clássica e “emergente” do trabalho científico. Trata-se de pensar que tal como a própria educação, a pesquisa associada a ela existe porque é sempre possível pensar que pessoas, grupos humanos, corpus de ideias, culturas, comunidades, sociedades, nações, povos e a humanidade podem ir além de onde estão, podemos ser melhores, mais justos, mais fraternos e menos perversos e excludentes do que são. Podem, de dentro para fora, e devem ser dimensões transformáveis da realidade. Todo conhecimento autenticamente novo é renovador. Todo o conhecimento renovador é contestador. Todo o conhecimento contestador é uma porta aberta à transformação. Isto vale para a pesquisa que procura criar um meio de melhor de ensinar crianças não-videntes a aprenderem a ler e escrever. Vale para a investigação que pretende criticar “tudo que já se pensou sobre a educação até hoje” e propor um novo sistema de ideias. Um sistema falso, se for permanente, e verdadeiro, se for efêmero, que logo a seguir deverá ser oportunamente objeto de crítica, de transformação ou de superação.

4°. O pensamento lógico é uma forma entre outras de criação do que gosto de chamar “os esses da experiência humana”: saberes, sentidos, significados, sensibilidades e sociabilidades. Entendo por sociabilidade, aqui, não apenas o aprender a viver de maneira ajustada em um mundo social, mas vir a saber como partilhar do processo ativo e

10 . Sem poder citar os dados completos de origem, lembro que encontrei uma vez em um pôster de um simpósio sobre pesquisa em educação esta sentença atribuída a Jean Piaget: “eu não creio na pesquisa solitária, acredito na pesquisa solitária”. No entanto, o que pensar desta outra ideias de Gaston Bachelard,: A ciência do solitário é qualitativa. A ciência socializada é quantitativa. Está na página 297 do A formação do espírito científico, já citado aqui. Lembro que este é um dos problemas de maior tamanho na pesquisa participante. Em minhas próprias experiências sempre vivenciei a teoria e a prática deste dilema. Minhas melhores pesquisas antropológicas e intensamente qualitativas e interpretativas foram trabalho solitários ou foram pesquisas partilhadas e consorciadas, nos termos da pequena classificação que estabeleci em outra passagem deste livro. As pesquisa participantes foram sempre de estilo “quali-quanti” e o momento de suas escritas foi sempre envolvido em uma discussão partilhada antecedente, e em um trabalho de redigir bastante individual.

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crítico de criação de mundos sociais. O pensamento lógico é uma forma excelente disto, mas não é a única. A imaginação, o sonho, o devaneio são outras, e há mais. Em nosso campo de trabalho o pensamento derivado da pesquisa científica é uma forma entre outras de produção de conhecimento confiável e transformador/transformável de diferentes dimensões da realidade. Existem outras formas investigação confiável do mistério do humano, da vida, da vida social (educação incluída) e do universo. As diferentes artes recobrem outras dimensões. As diversas filosofias também e é urgente recoloca-las no seu lugar fundador de sistemas de compreensão do real, de crítica do conhecimento e de orientação do destino humano (ética e política incluídas). Vale o mesmo para as diversas espiritualidades, religiões e outros sistemas de sentido. Vale também para o caso das incontáveis tradições populares que são bem mais do que o “folclore do mês de agosto”.

5°. Sempre foi, mas de agora em diante será mais e mais ainda, um empobrecimento muito grande e indevido a recusa em pensar a ciência e a pesquisa como um alargamento crescente do olhar e da compreensão. Uma abertura a novas e inevitáveis integrações transdisciplinares entre ciências e campos diversos de uma mesma ciência. Uma abertura a antigas e novas interações entre o conhecimento científico e os saberes dos outros sistemas de sentido mencionados no item acima. Uma abertura novas indeterminações, a partir da compreensão de que não há mais uma matemática, mas matemáticas; de que não há uma “física definitiva”, mas diferentes olhares dialógicos e transitórios entre diferentes compreensões “físicas” do universo, quantos mais teorias sociológicas, psicológicas e pedagógicas. Daqui a diante o valor de uma ciência não está na quantidade de saber exclusivo que ela produz e acumula, mas na qualidade dialógica dos saberes relativos que ela cria em confronta com outros saberes relativos. Se algo é bem e definitivamente conhecido, então não é uma boa forma de conhecimento.

6°. Métodos são pontes, não são formas. São caminhos de dupla mão que convergem a uma mesma múltipla praça simbólica de convergências, diferenças e divergências. Não há teorias únicas e sequer “melhores”, muito embora haja provisoriamente uma teoria através da qual pessoas e equipes de pessoas possam ver e pensar melhor. Métodos e técnicas “quantitativos” ou “qualitativos” podem ser mais bem compreendidos através das palavras que tenho preferido usar

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aqui: estilos, estratégias, alternativas, vocações, escolhas. É o complexo conjunto das perguntas que vão do “o quê” ao “para que fins” o que determina (sempre de maneira relativa, pois outros podem pensar e fazer o contrário) qual o “método” a ser utilizado, em que circunstâncias. Pesquisas individuais podem ser francamente qualitativas e pesquisas-ação podem ser totalmente quantitativas.

7°. No caso das diferentes possibilidades de investigação no campo da educação, podemos partir do princípio evidente de que “muita coisa importante” sobre o que desejamos saber está não apenas na “realidade objetiva do real de suas vidas”, mas nas representações sociais, nos imaginários, nos devaneios e nas práticas culturais com que pessoas, famílias, grupos comunitários, grupos sociais, comunidades, classes, etnias, sociedades constroem e transformam sem cessar o seu: quem somos, como nos imaginamos, quem desejamos ser, como vivemos, como queremos viver, em que mundo estamos, em qual mundo queremos estar, e assim por diante. Assim senso, as diferentes abordagens intersubjetivas, qualitativas e participantes são modalidades de abertura de uma escuta sensível a estas dimensões do pensado e do vivido cotidiano.

8°. Roger Barbier e outros (eu incluído) talvez tenham mais razões do que imaginamos. Uma das questões mais desafiadoras da relação pesquisa-docência está nas respostas a esta pergunta: “como transformar o trabalho de criar saberes através da pesquisa em uma atividade de partilha ativa e solidária do processo de criação, do produto-saber deste processo e do aprendizado que os seus participantes-praticantes adquirem e integram não apenas em suas mentes-mensuráveis (sobretudo no “dia da prova), mas no todo de suas pessoas? Esta pergunta remete a uma outra: “de que maneiras tornar este processo de transformação do próprio sentido da pesquisa no trabalho docente, um instrumento a mais na trajetória de transformações de pessoas e de mundos sociais a que a educação deve, sem sua medida e através de suas diferenças, servir?

Ao redor da mesa, quem? Como?

Passo a passo estamos aprendendo a deixamos de gerar e participar de encontros “entre nós” e “sobre eles”, em reuniões de cientistas, pensadores do

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social, e de praticantes de políticas de insurgência que, no entanto, se reúnem para falar a respeito “deles” num sempre fechado e excludente circuito de “entre-nós”. Mesas redondas em que quando um líder de comunidade camponesa, quilombola ou indígena é convocado, a ele se destinava a “ponta da mesa” e a última fala. Após os intérpretes credenciados de uma “realidade” a ser pensada para constituir-se como a base de uma ação a ser destinada, ao “outro”, costuma-se dar a palavra para que um camponês, um líder sindical, um xamã indígena, uma mulher quilombola nos ofereça um depoimento de vidas cuja recepção entusiástica de parte de quem depois de pé aplaudia, na maior parte das vezes apenas ocultava a diferença entre o que ao final do “evento” iria para os anais de reflexões e depoimentos, e quem seria lembrado como a face “popular e pitoresca” do que se viveu “ali”.

Vemos que agora não deve e nem pode ser assim. Tanto em reuniões “no mundo deles” quanto naquelas em que os trazemos para “os nossos mundos”, cada vez mais aprendemos a passar de reuniões entre-nós-sobre-eles, para reuniões-entre-nós-e-eles, quando elas profeticamente não chegam a ser reuniões-entre-eles-e-nós, tendentes a serem reuniões-entre-eles-conosco. Vivi e tenho vivido, sobretudo em regiões do Nordeste, do Centro-Oeste e da Amazônia, no Brasil dos últimos anos, pequenas reuniões e imensos simpósios com uma clara presença ativa e progressivamente igualitária “deles” e “entre-eles-e-nós”. Encontros crescentemente paritários em que representantes dos movimentos populares e das comunidade tradicionais; aquelas sem deixarem de ser étnica, vocacional e culturalmente “tradicionais”, se assumem agora como comunidades-em-movimento. Os documentos finais ou são a partilha de saberes e projetos entre-nós-e-eles, ou são manifestos deles, com o nosso aval solidário e comprometido.

A esse esperançoso horizonte devemos adicionar o fato de que, de maneira também local, regional, nacional e universal, reconhecemos cada vez mais que “eles”, individual e coletivamente “chegaram para ficar”. Na antropologia praticada no Sul, no Leste, no “mundo periférico”, assim como nas comunidades de índios, camponeses, sertanejos, quilombolas, operários e artesãos, chegam até centros insurgentes de estudo e universidades homens e mulheres que até a pouco construíam os seus prédios e se iam embora quando eles ficavam prontos. Chegam primeiro aos poucos e com a timidez de quem foi convidado a uma ceia “em casa alheia”. Chegam depois aos bandos, ocupam lugares que dividem conosco a vida e os saberes de uma academia cujos saberes o crescimento de suas presenças haverá de transformar. E nos ensinam quando assumem serem diante de nós os senhores de seus saberes, a partir do que aprendem com os nossos saberes.

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E se no começo dedicavam-se timidamente a procurar investigar, compreender e interpretar para eles, entre eles e sobre eles, o que antes vinha “deles-para-nós”, agora juntam-se aos pensadores críticos de “nós-mesmos” e de nossos mundos. E, em um novo, fecundo e inesperado diálogo, eis que nos chegam do campo, das periferias das cidades e da floresta para nos ajudarem a, afinal, pensarmos quem nós somos.

No passado de forma vertical, consagrada e imposta, “civilizado” era um bom qualificador, e “primitivo” ou “selvagem” eram expressões desqualificadoras. Agora as relações simbólicas e identitárias se invertem. Desconfiamos de nós mesmos e tememos as nossas ciências, as nossas pedagogias, os nossos tecnológicos meios de comunicação. E os olhamos como os outros antes ocultos e silenciados sábios de outros saberes junto aos quais talvez devamos nos debruçar para aprender o como passar da competição à cooperação; da agricultura devastadora da monocultura às agroecologias tradicionais e comunitárias; das economias da posse e da ganância às do dom e da partilha. Enfim, de tudo aquilo que desiguala pessoas, oprime povos e devasta o Planeta.

Finalizo este capítulo com uma memória. Na mesma noite em que o “Congresso Nacional do Brasil” declarava a primeira mulher presidente eleita do País legalmente impedida de prosseguir em seu cargo, ao final de um Colóquio Internacional de Povos e Comunidades Tradicionais, celebrado na cidade de Montes Claros, em um município de Minas Gerais onde geoecologicamente o “cerrado” dos sertões faz fronteira com a “caatinga” do Nordeste, saímos em passeata pelas ruas do centro da cidade.

Sairíamos de qualquer maneira, independentemente do que se tramava em Brasília, pois era parte da programação da “clausura do colóquio” uma “Caminhada dos Mártires”. E, de fato, não foi nem com as bandeiras verde-amarelas do Brasil e nem com as vermelhas do Partido dos Trabalhadores que saímos às ruas. Algumas pessoas de nosso fervoroso cortejo portavam pequenos estandartes com a imagem de mulheres e de homens; lideranças indígenas, quilombolas, camponesas que ao longo dos anos haviam sido assassinadas. A cada instante alguém gritava um nome e várias vozes repetiam um “presente!”, completado com a fala de alguém que memorava de quem se tratava.

Convocado pela Universidade Estadual de Montes Claros e por uma universidade alemã em convênio com a UNIMONTES, na verdade o sentido de “internacional” do nosso colóquio poderia ser pensado de uma outra maneira. Raros, bem raros eram os alemães e os suíços presentes. Por outro lado, em um evento tradicionalmente acadêmico em que pessoas entre “graduandas” e “pós-doutoras” se reúnem para falar sobre “os outros” - no nosso caso os viventes e resistente habitantes das diversas comunidades tradicionais - foram eles e elas, mulheres e homens vindos de aldeias indígenas, de comunidades quilombolas e camponesas, de

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franjas de barranqueiros-pescadores de beira-rio ou mesmo de praias do litoral do Brasil, que vieram de seus lugares de origem a Montes Claros. E entre-nós tomavam a palavra e nos diziam em suas maneiras próprias de pensar e falar tudo o eu por séculos lhes foi imposto silenciar.

E, bem mais do que eu havia vivido, entre muitos anos atrás e os últimos meses, os homens e as mulheres “das comunidades tradicionais” não vieram nos ouvir. Não vieram sequer como os representantes “de nossas culturas tradicionais ou indígenas”, a quem cabe a última fala em algumas mesas redondas. Vieram nos falar e nos ouvir. Nos intervalos nem sempre fáceis que separam “quem compreende mas não sente, e quem sente, mas não compreende”, segundo Antônio Gramsci, alguns indígenas Xacriabá e de outras etnias, ao lado de quilombolas e camponeses dos sertões e outros cantos do País vieram dialogar face-a-face conosco. E até mesmo os horários previstos no programa, assim como os tempos de fala dados a cada quem tiveram que ser alterados. Pois para um índio ou um camponês “dar a palavra” e dizer que a pessoa “tem dez minutos para falar” oscila entre o incompreensível e o ofensivo. Em minha mesa redonda mesmo a moça indígena que me antecedeu pintou de vermelho os nossos rostos, estendeu a nós e a todos as bênçãos da Terra e dos bons espíritos, e nos falou por mais de uma hora e terminando a sua fala entre uma prece, um protesto e um poema.

Vivemos agora a experiência de em um mesmo lugar e em momentos sequentes, estabelecermos um diálogo vivo e nem sempre fácil entre “nós” e “eles”. Desarmados de nossas teorias, entre “dialéticas” e “interpretativas”, e armados de suas duras vidas, “eles” chegam não apenas para serem secundaria – e não raro “pitorescamente” ouvidos – mas para nos dizerem que a respeito “deles” é a partir das palavras deles que a essência do que se dialoga deve ser levada em frente.

4.Vinte anos depois

Há alguma relação entre a ciência e a virtude? Há alguma razão de peso para substituirmos o conhecimento vulgar que temos da natureza e da vida e que partilhamos com os homens e mulheres de nossa sociedade pelo conhecimento científico produzido por poucos e inacessível à maioria? Contribuirá a ciência para diminuir o fosso crescente na nossa sociedade entre o que se é e o que se aparenta ser, pó saber dizer e o saber fazer, entre a teoria e a prática?11

11 . Está na página 7 do livro . Lembro que Boaventura recorda que Rousseau responde com um “não” às perguntas que ele mesmo formula.

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De um diálogo entre Jean-Jacques Rousseau e Boaventura de Souza Santos

Outros e eu, vindos de tão longe no tempo

Acredito ser o mais velho dentre os participantes desta Conferência. Se não for, estarei entre os mais velhos e serei, com eles, alguém que terá vivido a experiência de presenciar e de participar de boa parte daquilo que aqui nos reúne neste junho de 2017. Faz uns dez anos acostumei-me a participar de eventos como este, quando as pessoas que me ouvem esperam de mim mais as minhas memórias do que houve do que as minhas ideias sobre o que há agora.

Já era um jovem a caminho da Universidade quando Fidel Castro e seus companheiros reinventaram Cuba. Poderia ter sido um colega de estudos de Che Guevara, ou um professor de Antropologia do jovem Camilo Torres. Atravessei, primeiro como um estudante, e depois como um professor e um militante da educação popular, os 22 anos da ditadura militar do Brasil. Sofri com companheiros de meu País, da Argentina, do Chile e do Uruguai os governos militares de suas nações.

Quando na Nicarágua, depois de uma revolução sangrenta e gloriosa, os sandinistas tomaram o poder, estive lá junto com Paulo Freire e outras companheiras e companheiros em um inesquecível encontro de presença e apoio aos sandinistas, em Managua.

Em 1985 participei com Paulo Freire e outras pessoas do Conselho Latino-americano de Educação de Adultos, a grande Conferência Internacional de Educação de Adultos, em Buenos Aires.

Na ocasião vivi em Buenos Aires um longo diálogo com Orlando Fals-Borda a respeito da investigação-ação-participativa, de que resultou um livro editado no Uruguai12.

Relembro que anos mais tarde participei aqui mesmo nesta cidade inesquecível, Cartagena de Índias, de uma Conferência como esta. Entre Buenos Aires, Punta de Tralca em um Chile ainda sob a ditadura militar, Fusagasugá, aqui na Colômbia, Guanajuato, no México e Alajuela, na Costa Rica, perdi a conta das ocasiões em que vindos de muitos recantos da América Latina e de alguns lugares de outros continentes, nós nos reuníamos para pensarmos juntos algo de que não nos sentíamos apenas participantes, mas co-criadores: a educação popular e a pesquisa-ação-participativa.

Entre meio e final dos anos 60, eu aprendia e depois ensinava outras pessoas a passarem dos inocentes “diagnósticos de comunidades”, - as pesquisas prévias de projetos de Desenvolvimento e Organização de Comunidades, aos 12 . Investigación Participativa, diálogo entre Orlando Fals Borda e Carlos Rodrigues Brandão. Coordenação de

Ricardo Cetrullo. Instituto del Hombre. Montevidéu.

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“Estudos de Área”, do Movimento de Educação de Base, do Brasil. Um esquecido precursor do que anos mais tarde começamos a chamar de: autodiagnostico, pesquisa participantes, pesquisa-ação-participativa.

Entre finais dos nos 70 e começos dos anos 80 participei da edição de livros coletivos e dos esforços coletivos para formar pessoas mais jovens do que nós para aprenderem a lidar com os embriões daquilo que hoje, tantos anos depois, nos reúne aqui.

Além de Paulo Freire e Orlando Fals-Borda, quero lembrar aqui pessoas como Marcela Gajardo, Ricardo Cetrulo, Ivandro da Costa Sales, Guy le Botterf, Pedro Demo, Victor Bonilla, Felix Cadena, Adriana Puigrós, Tom de Wit, Pablo Latapi, Fancisco Vio Grossi, Budd Hall, Marcos Arruda, João Francisco de Souza, Osmar Fávero, Oscar Jara, Michel Tiollent, Danilo Streck, Vera Giannoten. Citando-os, desejo trazer aqui a lembrança de tantas outras pessoas “daqueles primeiros anos” e também os que vieram anos mais tarde somar conosco as linhas de frente de nossas esperanças, lutas, ações e horizontes.

Alguns anos mais tarde fomos felizes em acolher educadores-militantes bem mais jovens e que viriam aportar – como se verá bem nesta conferência – novas palavras, ideais e esperanças ao que começamos a desenhar há uns cinquenta anos atrás. Creio que dentre todos os “jovens” três estarão presentes aqui. Lembrando os seus nomes quero recordar todos os outros: Lola Cendales, Alfonso Torres Carillo e Marco Raúl Mejia. Éramos então e somos até hoje uma pequena comunidade latino-americana de praticantes da educação popular e de iniciantes do que veio a ser a pesquisa-ação-participativa.

Devo chamar a atenção para o fato de que, na maioria dos casos, em muito pouco dialogávamos com tradições europeias e norte-americanas dedicadas de algum modo à investigação-ação-participativa. Chama a atenção que na mesma época em que cientistas sociais acadêmicos estreitavam laços, entre o diálogo e a subserviência com seus pares do “Norte do Mundo”, a partir do próprio exemplo de Orlando Fals-Borda, nós, educadores populares e praticantes da IAP emergíamos juntas e juntos, nos descobríamos, nos ouvíamos e nos líamos. E começamos então uma nova e fecunda experiência de “descoberta (aí sim!) da América.

A simples ortografia dos nomes lembrando linhas acima revela as pessoas que vindas “do norte do mundo” somaram-se a nós desde os anos 60. E provém deles, ao meu juízo, a contribuição teórica e proposicional mais fecunda, pelo menos educadores, pesquisadores e/ou militantes da África e da América Latina.

Assim é que decidi trazer para este evento não mais uma longa e sinuosa reflexão sobre as relações entre a educação popular e a pesquisa-ação-comunicativa, com foco sobre questões entre a epistemologia e uma sociologia da participação insurgente. Mais do que em outras ocasiões, estarei fundamentando

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o que aqui escrevi e leio a vocês mais na memória do que vivi, dialoguei e aprendi ao longo desses anos todos, do que em ideias provenientes de livros e artigos.

Entre o Norte e o Sul do Mundo: vocações convergentes, diferentes ou divergentes?

Voltemos no tempo entre três e cinco décadas. Se por um momento ousarmos ver e compreender o que houve ao redor do que nos reúne aqui, poderemos lembrar que entre a aurora dos anos sessenta e a meia-vida dos oitenta, a América Latina e a África geraram boa parte do que até hoje ecoa em nossas memórias, em nossos escritos e em nossas ações.

Moçambique, Angola, Cuba, Nicarágua, o Nordeste do Brasil e as terras altas do Peru e da Colômbia – para recordarmos apenas um pouco de nossa cartografia insurgente – geramos como ideias e ideologias e colocamos em prática: a descolonização de nações africanas; uma primeira revolução de vocação socialista na América Latina, em Cuba; as seguidas frentes de levantes dos movimentos populares no campo e na cidade, como o MST, no Brasil; a criação de uma notável insurgência étnica e popular em Chiapas, no México; o crescimento de organizações de vocação étnica e as frentes de luta de povos indígenas de todo o Continente; as novas constituições pluriétnicas e culturais, como no Equador e na Bolívia; a visibilidade e a expansão entre nós de novos modos arcaicos de ser, viver, pensar e compartir a vida, como na vocação de Sumak Kansay. E, no que nos toca aqui de mais perto: a educação popular, o teatro do oprimido, a teologia da libertação, a investigação-ação-participativa.

Se das ideias-ações lembradas linhas acima destacarmos dentre todas as duas vocações que nos são mais próximas, veremos que a educação popular e a investigação-ação-participativa irmanam-se e interagem em uma mesma pluri e convergente vocação: reinventar o saber, o ensinar e o aprender; recriar o conhecer e o compreender, partilhar o conhecido e o compreendido entre diálogos desde um mesmo lugar social: o povo, o outro posto à margem, os oprimidos, as classes populares.

Em uma e outra a mesma busca de inserir educação-e-pesquisa em seus colonizados campos de culturas, e pensar tais culturas como política. E política no sentido de partilha na criação insurgente e emancipadora dos mundos sociais em que vivemos13.

13. E se a categoria social “povo” for algo a ser dialogado aqui entre nós, quero que a minha compreensão de quem ele - ou nós – seja – ou sejamos – venha não de uma teoria sociológica, mas de uma bela triste metáfora escrita há anos por Octávio Paz. Certa feita Octávio Paz estava em um quarto de hotel. Em um dado momento ele ouviu um barulho alto no quarto ao lado. Alguém teria por certo derrubado algo pesado. Perguntou de seu lado da parede o que houve e quem estava ali. Recebeu do lado de lá da parede esta resposta de uma voz feminina, provavelmente de uma camareira: “no es nadie, señor, soy solo yo”. Diante desde fato Octávio Paz pensou o termo “nadificar”, e o seu derivado “nadificar-se”. Li isto diretamente em um livro de Octávio Paz, em uma biblioteca da cidade de Pátzcuaro, no México, onde vivi e estudei antes, no ano de 1966. Não tomei na ocasião nota do livro e da página.

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E, para lembrarmos uma outra vez tanto Paulo quanto Orlando, eu gostaria de definir a IAP como um diálogo ao redor do conhecimento e da consciência através do qual o sujeito social povo “aprende a dizer a sua palavra”, na mesma medida em que aprende e nos ensina a repensar com ele quem nós somos. Aprende, ainda, a tomar em suas mais a sua pessoa e o seu destino, e transformar sua mente, sua vida e sua sociedade através de progressivas ações insurgentes, transformadoras e emancipadoras.

De lá para cá o que nos oprime, coloniza, desenraiza e aliena (para trazer aqui uma palavra viva nos anos sessenta) mudou muito pouco. E talvez com a mundialização globalizante do capital neoliberal o “mal do mundo” tenha estreitado sobre nós, no “Sul do Mundo”, um estado de neocolonização ainda mais perverso do que o que povoou algumas de nossas nações, como o Brasil, quando sob uma ditadura militar.

No entanto, se algo houve entre a insurgência e a esperança, talvez em boa medida tenha a ver com a criação de imaginários e ações coletivas de vocação insubmissa, insurgente e inovadora como a que nos reúne aqui: a investigação-ação-participativa.

E é sobre ela que uma primeira interrogação deverá nos ocupar aqui. Em territórios do saber e da ação vizinhos e interativos, como a educação popular, o teatro do oprimido, a teologia da libertação (e suas derivadas) ocorre algo que não acontece de igual maneira com a IAP. Elas tendem a ser universalmente reconhecidas como originárias da América Latina. Sabemos que o mesmo não ocorre, pelo menos de uma maneira tão próxima e dialógica, com respeito à investigação-ação-participativa.

Desde os primeiros anos até agora, uma vertente originalmente europeia quase não dialoga com a vertente –americana. E em alguns escritos relevantes sequer é reconhecida uma IAP latino-americana. Lembro aqui de passagem esta estranha omissão de parte a parte, porque acredito haver entre um lado e outro do Oceano Atlântico um “desconhecimento do outro” justamente ali onde o “outro” deveria ser toda a razão do meu saber, de minha ciência e de minha pesquisa.

Que me seja permitido, neste breve exercício de estranhamento retomar a alguns escritos essenciais de anos passados para recordar fatos que nos deveriam levar a pensar se uma postura francamente dialógica e acolhedora do outro não está ausente entre nós e os nossos “outros próximos”.

Pois povo tem sido que, entre outros silenciamentos, aprendeu a nadificar-se. E podemos estender o diálogo entre o pensador mexicano e uma camareira de hotel a nós mesmos. Também a nós, seres da América Latina e do mal-chamado “Terceiro Mundo” por séculos fomos ensinados a calar a nossa voz e repetir as palavra de poder e saber vindas do Norte do Mundo. Desde lá bradavam: “democracia”, “progresso”, “desenvolvimento”, e nós repetíamos aqui: “autocracia”, “pobreza”, “desenraizamento”.

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Quando Marcela Gajardo escreveu o seu Pesquisa participante na América Latina, editado em 1986, entre os trinta e nove títulos citados na bibliografia apenas dois estão em francês (Suíça e Canadá) e dois em Inglês, sendo um deles escrito originalmente em Português por Paulo Freire. Outros autores de origem europeia ou norte-americana citados pertencem à tradição latino-americana, ou estão em constante contato com ela.

Há um número bastante maior de citações bibliográficas em Refletindo a Pesquisa participante, de Maria Ozanira da Silva e Silva, editado o Brasil em 1991. Ora, entre as suas cento e sete citações de livros e artigos, apenas duas delas aparecem, uma em inglês, e uma outra em francês. Outros autores da Índia, da Europa ou da América do Norte comparecem com textos em Espanhol ou em Português, apresentados em simpósios e congressos latino-americanos.

Do outro lado do oceano Atlântico, lembro que a bibliografia dos doze artigos de Participatory Research and Evaluation - experiences in research as a process of liberation, coordenado por Walter Fernandes e Rajesh Tandon, e publicado em Nova Delhi em 1981, consta de cinquenta e um títulos. Todos eles estão em Inglês, inclusive os de Paulo Freire e Orlando Fals Borda. Embora seja a publicação de um também país de Terceiro Mundo, e o seu subtítulo junto com a abordagem da maioria dos autores sugira a convergência com um ponto de vista bastante familiar à tradição latino-americana, um diálogo entre ela e a Índia parece realizado ainda apenas em uma pequena parte. À exceção de Orlando Fals-Borda e Paulo Freire, somente Francisco Vio Grossi comparece, representando a tradição latino-americana, entre todos os artigos do livro.

Entre livros mais recentes e traduzidos para o Português e, imagino, o Espanhol, ressalto A pesquisa-ação de René Barbier, que foi editado no Brasil em 2002. Nele nenhum educador e investigador latino-americano é lembrado, inclusive no primeiro capítulo do livro: a história da pesquisa-ação14”.

Apenas na página 35 há uma referência de passagem à tradição latino-americana.

Na América Latina, a sociologia radical uniu-se ao militantismo revolucionário com Camilo Torres, Luís Costa Pinto, Florestan Fernandes, Orlando Fals Borda, e, do mesmo modo, com a pedagogia dos oprimidos de Paulo Freire, em Educação Popular15.

Dos sessenta e sete livros e artigos relacionados na bibliografia o final, não há referências aos educadores e cientistas latino-americanos citados na página 35, e apenas Nelly Stromquist, com um artigo em Francês, recorda a presença de nossa tradição.

14 . René Barbier, a pesquisa ação, pg. 31. 15 . Está na página 51 do livro citado

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Em um livro que aparece no Brasil em 2005 com este nome As microssociologias, George Lapassade exagera no apagamento vindo de René Barbier, ao ignorar por completo a existência de uma consolidada e aguerrida tradição latino-americana na IAP. No Capítulo VI. Pesquisa Ação, este titulo é atribuído ao antropólogo J. Colier, de 1946, e nenhuma referência é feita a qualquer iniciativa latino-americana. Na bibliografia do livro nenhum escrito de origem latino-americana comparece; sequer os que foram traduzidos para o Inglês e o Francês.

Estou com a esperança de que uma Conferência pan-americana como esta aponte para a correção deste desconhecimento de parte a parte e estabeleça entre nós um diálogo que por certo seria de imenso proveito para acima e abaixo do Equador cultural que nos separa16.

E acredito que desde um ponto de vista latino-americanos, quatro palavras do título desta conferência devem ser aceitos apenas depois de situados fora de uma tradição colonizadora. Se tomarmos a proposta: La participación y la democratización del conocimiento: nuevas convergência para la reconciliación, saibamos estabelecer que participação implica uma ativa a todos, a partir das raízes dos povos das Américas. Concordemos que democratização somente deverá valer se em termos propostos em escritos recentes de Boaventura de Souza Santos: “democracia de alta-intensidade, isto é, uma democracia criada, como dizem os hispano-hablantes: “desde la periferia hacia el centro y desde abajo hacia arriba”. Por outro lado, convergência vale apenas enquanto uma interação que parta do direito a todas as diferenças plausíveis, ao lado de nenhuma desigualdade social ou cultural. Finalmente reconciliação – uma perigosa palavra não raro apropriada justamente pelos que mais nos colonizam - valerá apenas quando significar um encontro entre colonizados livres do jugo da colonização, e colonizadores liberados do poder de colonizar. Lembro aqui Paulo Freire, quando em uma de suas lições mais sábias lembrava que caberá ao oprimido, ao libertar-se de sua condição de dominado, libertar também o opressor de sua condição de dominador. Qualquer outra ação de reconciliação apenas aprimora a vocação perversa de regulação do sistema-mundo sob regência do capital, e não a vocação de uma emancipação humanizadora.

Pessoas e coletividades desiguais mutuamente se conflitam e enfrentam. Apenas podem se reconciliar as coletividades e as pessoas socialmente igualadas em seus direitos e deveres, em nome da construção de vidas e sociedades igualitárias, inclusivas, livres e justas. A reconciliação não é uma dádiva de quem oprime e coloniza. É uma oferta de quem se livra de ser subalterno, a quem foi por

16 . Ao falarem “equador cultural” e pensar a oposição consagrada Norte/Sul, lembro Paulo Freire. Mais em conversas do que em escritos, ele gostava de nos dizer que estava na hora de aprendermos a “sulear”, ao invés de repetidamente “nortear”. E recordo o mapa-múndi de um artista uruguaio, em que a Antártida está no topo do desenho e o mundo está “de cabeça para baixo”. Ou “para cima”. Ou para posição alguma.

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ele libertado de ser opressor. Uma coisa é a “reconciliação” que seguidamente nossos governos latino-americanos oferecem a nossos povos indígenas, negros e camponeses. Outra coisa é a reconciliação que através de Nelson Mandela os negros libertadores da África do Sul ofereceram aos brancos, libertados por eles do seu poder de desigualar e colonizar.

Saltando de uma necessária “linha do tempo” para os dias de agora, ao pensarmos em que “estado de sociedade” estamos inseridos agora, podemos acreditar que compartimos territórios geográficos, sociais e simbólicos submetidos a uma diferenciada, mas sempre imposta, presente e ativa colonização.

No campo do poder simbólico – ciência, pesquisa, educação e mídia incluídas – na gestão de símbolos, saberes, significados, sentidos, sensibilidades, e sociabilidades vivenciamos uma persistente situação de colonização que torna opaco, liminar ou desfigurado, justamente aquilo em que deveria fundar-se coletivamente um imaginário contra-hegemônico de insurgência, ruptura, emancipação e transformação de pessoas, de coletividades (étnicas incluídas) e de sociedades, e mais as ações sociais fundadoras de tal imaginário e dele decorrentes.

Dialogo agora com Boaventura de Souza Santos. Podemos imaginar que mais do que em décadas passadas, vivemos hoje tempos em que duas vertentes de “gestão do presente” se aproximam e enfrentam em nossos territórios e horizontes. Uma, a das ideias e ações de vocação reguladora do sistema-mundo atual.

Ela comporta e faz interagirem pessoas, grupos e instituições diferenciadamente empenhadas em gerir, aperfeiçoar, regular, recriar, reciclar a hegemonia de poder de estado + mundo do mercado que nos submete e coloniza. Políticas públicas de cultura e educação de nossas nações, representam variada e moderadamente esta vertente. Um livro de marketing do estilo: “seja empreendedor e vença na vida”, representa o padrão mais extremo desta vertente.

Em uma direção entre divergente e oposta, está situada a vertente de pensamento e ação vocacionada a práticas contra-hegemônicas de insurgência e de emancipação do sistema-mundo,

Este deverá ser o momento de lembrarmos que em pouco mais de meio século o Terceiro Mundo gerou e expandiu propostas e práticas de mobilização popular que iriam configurar os contextos dos diferentes modelos de conhecimento e de ação social, de que as diversas modalidades da IAP serão uma resposta em meio a outras tantas.

O potencial de mobilização ativa e participativa dessa estratégia de descolonização da África do Sul e de outras nações africanas, inaugura um procedimento social de resistência política cujo poder de transformação de pessoas, grupos humanos e nações, merece uma lembrança bem maior do que as

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inocentes e formais propostas de investigação e gestão de ações sociais ao estilo de Kurt Lewin, e outras de vocação e valor semelhantes.

Entre os anos 60 e 70 diversos grupos étnicos e populares de libertação política recriaram diferentes estratégias de guerra de guerrilhas, como uma outra resposta à colonização europeia. Experiências de ação política descolonizadora deste tipo, em uma certa medida realizam o oposto dos sonhos de Gandhi. Mas elas resultaram em libertação política, e não devemos esquecer que, em seu bojo, pela primeira vez a África elaborou e exportou à Europa uma sociologia da descolonização, cuja influência no pensamento social de nossa atualidade não será pequena.

Ao longo deste mesmo tempo e um pouco mais tarde, também a América Latina cria, consolida e difunde por todo o continente e, depois, em direção ao Norte e a Leste, as primeiras ideias e propostas de ações sociais de vocação emancipatória que fundamentam e instrumentalizam a educação popular, a teologia da libertação, os movimentos sociais populares e, mais adiante, a pesquisa participante.

Ao nos perguntarmos sobre os reais contextos de origem da pesquisa participante no Terceiro Mundo e, de maneira especial, na América Latina, poderíamos deixar em segundo plano por um momento as questões epistemológicas de cientistas da Europa e dos Estados Unidos da América do Norte.

E deveríamos então evocar a realidade social concreta de experiências nossas ou próximas a nós, como: a ação não-violenta, a resistência étnica e popular à colonização, os movimentos populares, a educação popular, a teologia da libertação e a investigação-ação-participativa.

Lembremos que é na esteira do pensamento e da ação de pessoas como o Mahatma Gandhi, Franz Fanon, Paulo Freire, Camilo Torres, Gustavo Gutierrez, João Bosco Pinto, Leonardo Boff e Orlando Fals Borda, que em pelo menos três continentes o Terceiro Mundo difundiu algumas alternativas práticas de participação popular como formas originais e contestatórias, diante das diferentes propostas de desenvolvimento social agenciadas desde a Europa e desde os Estados Unidos da América do Norte, vistas, no mais das vezes, como novas versões de antigas práticas sociais de vocação neo-colonizadora.

Alguns estudiosos da história cultural da América Latina lembram mesmo que entre os anos 60 e 80, por uma primeira vez pensadores e ativistas sociais situados entre a Argentina e o México exportam individual e coletivamente para o outro lado do Rio Grande e do Atlântico teorias e metodologias de ações fundadoras das iniciativas insurgentes de pensamento e ação lembradas acima.

Um olhar preso demais ao que acontece no interior do mundo científico-pedagógico-acadêmico, e menos sensível ao que estava e está se passando entre

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as suas margens ou fronteiras, em amplas áreas da Ásia e da Oceania, da África e da América Latina, nos condiz a relativizar demais alguns fatos que foram e seguem sendo os mais relevantes, e até mesmo decisivos, na criação de momentos e de contextos que tornaram inevitável o surgimento da pesquisa-ação-participativa.

Qualquer que seja o nome originalmente dado às diversas propostas de alternativas participativas na investigação social com vocação insurgente e popular, existem evidentes sinais convergentes entre nós. Lembro uma vez mais que as diferentes propostas e experiências que nos aproximam aqui surgem mais ou menos ao mesmo tempo entre as décadas dos anos 60 e 80 em poucos lugares do Continente, mas em pouco tempo elas se difundem por toda a parte.

Elas são geradas no interior, ou em regiões de fronteira de/entre diferentes unidades de ação social que atuam de preferencialmente junto a grupos, comunidades, movimentos e outras unidades sociais de vida e de ação popular. A associação com a educação popular estará presente na imensa maioria dos casos.

Elas herdam e reelaboram diferentes fundamentos teóricos e diversos estilos de construção de modelos de conhecimento social através da pesquisa científica. Não existe na realidade um modelo único ou uma metodologia científica própria a todas as abordagens da pesquisa-ação-participativa. Uma de suas virtudes é a unidade de sua vocação insurgente e transformadora aliada a uma pluralidade de enfoques e metodologias específicas.

Reconhecendo-se como alternativas de projetos de enlace e mútuo compromisso de ações sociais de vocação popular, envolvendo sempre pessoas e agências sociais “eruditas” (como um sociólogo, um educador de carreira ou uma Ong de direitos humanos e “populares” (como um indígena tarasco, um operário sindicalizado argentino, um camponês semialfabetizado do Centro-Oeste do Brasil, ou o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) elas se abrem a diferentes possibilidades de relacionamentos entre os dois polos de atores sociais envolvidos, interativos e participantes.

As pesquisas-ação-participativas atribuem aos agentes-populares diferentes posições na gestão de esferas de poder ao longo do processo da pesquisa, assim como na gestão dos processos de ação social no interior da qual a IAP tende a ser concebida como um instrumento, um método de ação científica, ou um momento de um trabalho popular de dimensão pedagógica e política, quase sempre mais amplo e de maior continuidade do que a própria pesquisa.

Via de regra, as diferentes alternativas da pesquisa participante surgem em intervalos entre a contribuição teórica e metodológica vinda da Europa e dos Estados Unidos da América do Norte, e a criação ou recriação original de sistemas africanos, asiáticos e latino-americanos de pensamentos e de práticas sociais. Não é raro que uma abordagem que se auto identifica como “dialética” empregue na

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prática procedimentos formais e quantitativos próprios a abordagens metodológicas de cunho neopositivista.

No âmbito da América Latina e de outras regiões do Terceiro Mundo, a expansão de movimentos sociais populares dará às diferentes alternativas de ação social transformadora uma nova e, às vezes, radical conotação. Uma múltipla releitura de teorias e de procedimentos de ação social popular desenhará o rosto da identidade dos estilos participativos de investigação social.

Entre acontecimentos que vão do âmbito de uma pequena escola rural a processos de mobilização social em escala nacional, na aurora dos anos sessenta ocorreu por toda a parte um florescimento notável de experiências interativas e sociais. Novas propostas onde ideias e projetos contidos em conceitos como “ação” e “participação” são entretecidos com outras palavras, de que: “crítica”, “criatividade”, “mudança”, “desenvolvimento”, “transformação”, “revolução” são bons exemplos.

Em uma esfera crescentemente mundial, a ONU e suas agências especializadas, como a UNESCO, patrocinam e incentivam alternativas fundadas em novas alianças e enlaces para a criação de formas renovadoras de ação social, cuja fronteira mais limitada é a de um programa de melhoria setorial de condições comunitárias de saúde, e cuja fronteira mais aberta deveria estar situada em projetos de um desenvolvimento socioeconômico multi-setorial dentro de uma escala regional ou mesmo nacional.

Para realizar projetos de “organização social”, de “mobilização popular” e de “mudança” ou “transformação”, são necessárias novas modalidades de produção sistemática de conhecimentos sobre a “realidade local”. As décadas dos anos cinquenta e sessenta assistiram a chegada e a rápida difusão de novos modelos de investigação social. Antigos modelos de ciência social aplicada foram então recriados, e novos modelos foram também elaborados e postos em prática. Sobretudo no Terceiro Mundo pesquisadores e promotores sociais de diversas orientações teóricas, ideológicas, metodológicas e técnicas participaram de diferentes projetos de investigação da “realidade local” com foco sobre a mensuração de indicadores de “qualidade de vida”. Eu mesmo participei de alguns deles.

Um traço comum situado entre intervalos à direita e à esquerda das inúmeras iniciativas de associação entre pesquisa e ação social, constitui-se em uma motivação a tornar as investigações em comunidades populares algo mais do que um mero instrumento de coleta de dados. Aposta-se em fazer tornar o trabalho científico de pesquisa de dados uma atividade também pedagógica e, de certo modo, também assumidamente política. Sendo mais ativa e mais participativa, a investigação social deveria fazer-se mais sensível a ouvir as vozes dos destinatários pessoais ou coletivos dos programas de ação social. Deveria fazer-se

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capaz, também, de “dar a voz” e deixar que de fato “falem” com as suas vozes as mulheres e os homens que em repetidas investigações anteriores acabavam reduzidos à norma dos números e ao anonimato do silêncio das tabelas.

Penso que a pesquisa-ação-participativa surge no bojo desses acontecimentos, e quase sempre acontece a margem das universidades e de seu universo científico, embora parte de seus principais teóricos e praticantes provenha delas e nelas trabalhem. Apenas alguns anos mais tarde, e entre conhecidas resistências, algumas teorias e práticas da pesquisa participante ingressam no mundo universitário latino-americano e, de modo geral, mais através do trabalho de alguns estudantes e professores, também ativistas de causas sociais, do que pelo de docentes e pesquisadores cientificamente competentes e zelosos de suas carreiras.

Na maioria dos casos as diferentes experiências latino-americanas de pesquisa-ação-participativa surgem no interior e a serviços de diferentes modalidades de movimentos sociais, étnicos e/ou culturais populares. Em vários momentos, dos anos 70 até agora, a pesquisa-ação-participativa é praticada no âmbito e como um instrumento de ação de trabalhos de educação popular. Seus autores dos primeiros tempos foram, e muitos deles seguem sendo hoje, o que até o presente denominamos de militantes da educação popular.

No mesmo sentido em que reconhecemos um “movimento latino-americano de educação popular”, não parece ter havido entre nós um “movimento de pesquisa participante”, pois os seus instauradores e seguidores se reconheciam e, creio, seguem se identificando como agentes assessores ou participantes diretos – entre educadores e cientistas sociais – de alguma modalidade de a de movimento popular.

Ontem como agora vários pensadores e praticantes da IAP foram e seguem sendo ativistas sociais de orientação marxista, ou militantes cristãos inseridos em comunidades eclesiais de base e difusores da teologia da libertação. No caso brasileiro, a pesquisa participante está associada, de forma indireta aos processos de ação política e pedagógica que deram origem, por exemplo, ao Partido dos Trabalhadores (PT) e ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), cuja proximidade constante com a educação popular e com as comunidades eclesiais de base originadas da teologia da libertação é bastante reconhecida.

Assim, a pesquisa participante apresenta-se como uma alternativa de “ação participante” em pelo menos duas dimensões.

A primeira: agentes sociais populares são considerados mais do que apenas beneficiários passivos dos efeitos diretos e indiretos da pesquisa e da promoção social dela decorrente ou a ela associada. Homens e mulheres de comunidades populares são vistos como sujeitos cuja presença ativa e crítica atribui sentido à

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pesquisa-ação-participativa. Ou seja, uma pesquisa é “participante” não porque atores sociais populares participam como coadjuvantes dela, mais porque ela se projeta, realiza desdobra através da participação ativa e crescente de tais atores.

A segunda: em outra direção, a própria investigação social realizada como uma IAP deve estar integrada em trajetórias de organização popular e, assim, deverá participar de amplos processos de ação social com uma crescente e irreversível vocação popular. Uma articulação de ações de que a pesquisa-ação-participativa é um entre outros instrumentos dedicados a ações emancipatórias. Um instrumento científico, político e pedagógico de produção partilhada de conhecimento social e, também, um múltiplo e importante momento da própria ação popular.

Uma alternativa de investigação social é “participante” porque ela própria se inscreve no fluxo das ações sociais populares. Estamos em uma estrada de mão dupla: de um lado a participação popular no processo da investigação. De outro, a participação da pesquisa no correr das ações populares.

E uma participação compreendida em um duplo sentido. Pois sempre se entendeu que, como um meio de realização da educação popular, a pesquisa participa da ação social também como uma prática pessoal e coletiva de valor pedagógico.

Isto acontece na medida em que sempre algo novo e essencial se aprende através de experiências práticas de diálogo e de reciprocidade na construção do conhecimento. E, como uma forma de educação com um valor também político, na medida em que entre a esfera de um pequeno grupo até a de uma ampla comunidade, a de uma esfera corporada de trabalho popular ou mesmo a de toda uma nação, espera-se que sempre alguma coisa se transforme em termos de humanização das estruturas e dos processos de gestão da vida social.

Assim - reitero o eu lembrei acima - a pesquisa é “participante” não apenas porque uma proporção crescente de sujeitos populares participa de seu processo. A pesquisa é “participante” porque, como uma alternativa solidária de criação de conhecimento social, ela se inscreve e participa de processos relevantes de uma ação social transformadora de vocação popular e emancipatória.

Este será o caminho pelo qual deveremos levar em conta que a pesquisa-ação-participativa deverá ser pensada como uma experiência de ação social com um valor em si mesma, ou como uma atuação agenciada e com um teor apenas instrumental e dirigido a resolver algum “problema comunitário”.

Desde os seus tempos de origem na tradição latino-americana, a pesquisa participante raramente foi compreendida como algo destinado a apenas realizar alguma melhoria setorial das condições locais ou regionais de comunidades populares. Em quase todas as suas formas mais difundidas ela foi e, em boa

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medida, segue sendo pensada como um instrumento de trabalho a serviço de práticas populares de valor político e de uma múltipla e variada vocação transformadora.

No plano mais amplo em que uma IAP se insere, não se pretende melhorar ou desenvolver alguns aspectos precários da vida social, embora este possa ser o motivo de sua realização em um primeiro momento. O que se pretende-se é o criar alternativas populares de transformação das estruturas sociais que tornam tal “vida” exigente de ser sempre “melhorada”.

Diferenças, divergências, convergências

Ora, eu sou um antropólogo e um professor universitário e, desde mais tempo, um militante da educação popular. Fui e continuo sendo um praticante da observação participante dos antropólogos, assim como da pesquisa participante dos educadores populares. E costumo dizer e escrever que entre uma vocação de investigação e a outra há um salto em direção à qualidade de interação entre atores sociais que não deve ser esquecido.

Na pesquisa quantitativa de tradição neo-positivista um dos seus fundamentos – nem sempre claramente declarados – é uma essencial desconfiança “em mim mesmo”. Eu não sou pessoalmente confiável e, assim, devo forçosamente cercar-me de instrumentos que me “objetivizem”’ e me tornem, na medida do possível, um “sujeito neutro”.

Na prática da observação participante, assim como em boa parte das abordagens qualitativas, eu descubro que afinal eu sou pessoalmente confiável. Posso viver o que investigo entre interações “pessoa-a-pessoa” porque posso confiar em mim mesmo, e não apenas nos instrumentos que coloco entre eu e os meus “objetos de pesquisa”. Confio em meus olhos, em minha escuta, em minha memória, em minhas palavras e nas dos outros, meus interlocutores. Posso confiar neles “para mim” e para efeitos dos processos e produtos de um trabalho científico que eu controlo, interpreto e uso em meu favor.

Na pesquisa-ação-participativa eu salto uma última fronteira, e parto de um duplo reconhecimento de confiança. Confio tanto em mim mesmo quanto no meu outro. Naquela pessoa que eu transformo de “objeto de minha pesquisa” em “co-sujeito de nossa investigação”. Devo confiar nele, tal como na observação participante eu confio em mim. Devo interagir com ele na qualidade de meu interlocutor; como aquele que no dizer de si-mesmo desenha para mim os cenários de vida e destino que pretendo com ele, em seu nome e a seu favor, conhecer e interpretar.

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Assim, devo criar com ele um contexto de trabalho a ser partilhado como um processo de construção do saber, e como um produto de saber conhecido e posto em prática através de ações sociais de que ele é (ou deveria ser) o protagonista e, eu sou (ou deveria ser) o ator coadjuvante.

Acredito que meu conhecimento de um “estado das artes” a respeito da universalidade da IAP seja bastante imperfeito. Nunca me preocupei em realizar qualquer tipo de investigação nesse campo. No entanto, quero sugerir aqui que um mutuo desconhecimento provavelmente deve-se também ao fato de que entre uma tradição cultural e a outra existem não apenas silêncios e desconhecimentos, mas substantivas diferenças que quase em alguns ponto aproximam-se de divergências ou mesmo de oposições.

Assim, lembrando Karl Marx e Kurt Lewin, recordamos entre esses ancestrais fundadores do que veio ser a IAP, que uma tradição europeia pendeu mais para Kurt Lewin, enquanto a tradição latino-americana pendeu bem mais para Karl Marx17. Se nos voltarmos para o que fundamenta e, creio eu, segue pretendendo realizar a IAP na América Latina, entre as suas origens e o momento presente, podemos elencar o seguinte:

A IAP não existe em-mesma como uma prática social isolada. Ela se realiza como um momento de processos de ações de vocação insurgente, transformadora e popular. Assim, o seu acontecer, entre projetos, processos e produtos, destina-se a produzir conhecimentos dirigidos a tais ações emancipadoras18.

A IAP é substantivamente definida por critérios de vocação pedagógico-política, bem mais do que por critérios apenas científicos e/ou metodológicos. Ela não é uma outra alternativa de investigação que se diferencia de outras porque convoca “objetos de pesquisa” a se converterem em “sujeitos de pesquisa”, e sujeitos de pesquisa em “coautores e coatores” de todo o acontecer da investigação. Além de ser “isto” a investigação-ação-participativa se assume como uma ação política através da criação solidária e motivada de saberes, sentidos e significados. E esta deve estabelecer a diferença entre uma “pesquisa consorciada”, em que a pessoa-povo participa

17 . Esta interpretação não é apenas minha. Em mais de um documentos Orlando Fals-Borda critica a teoria e a prática de Kurt Lewin, socialmente aceitáveis, mas politicamente ineficazes. Assim, em um momento de seu artigo já mencionado aqui: Aspectos teóricos da pesquisa participante, ele afirma: “O que se entende por pesquisa participante? Antes de tudo, não se trata do tipo conservador de pesquisa planejado por Kurt Lewin, ou as propostas respeitadas de reforma social e a campanha contra a pobreza nos anos 60. Refere-se a uma “pesquisa da ação voltadas para as necessidades básicas do indivíduo” (Huynh, 1979). Está na página 43 do livro Pesquisa Participante”. Os grifos são de Fals-Borda.

18 . Entre décadas e pessoas, quero lembrar que sempre que falar em “emancipação” estarei recordando tanto a tradição que nos vem de Orlando Fals-Borda, Paulo Freire e outros e outras educadoras vindas dos anos 60 e da tradição original da educação popular, quanto a oposição crítica e fecunda que Boaventura de Souza Santos estabelece entre ações de “regulação do sistema” e ações de “emancipação frente ao sistema”.

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adjetivalmente de algo que do projeto ao processo está situado fora de seu universo de pensamento e ação, e uma efetiva “pesquisa participativa”, em que as relações se invertem: é a investigação aquela que participa de um momento de todo um processo popular e contra-hegemônico de saberes e de ações.

A dimensão pedagógica da IAP está fundada em que as pessoas que dela participam não apenas pesquisam, investigam e criam conhecimentos. Toda ela pretende ser um acontecer essencialmente dialógico em que quem participa aprende, educa-se, toma consciência. Ela é uma pedagogia igualitária entre diferenças, e francamente dialógica, através de uma investigação social entre dialogantes.

A dimensão política da IAP está em que entre todas as direções possível ela opta por um clara vocação: é uma ação popular, insurgente, anti-colonizadora e transformadora. Ela não se dirige a ser um instrumento mais no processo cultural de aprimorar pessoas, grupos e comunidades populares para as ajustarem melhor aos mundos sociais em que elas e nós vivemos, sob a colonização hegemônica do capital. Em direção oposta a IAP aspira transformar pessoas que aprendam a transformar o mundo em que vivem.

Em sua realização mais completa e fecunda, as pessoas do povo não “participam” apenas de um momento de uma IAP Elas fazem com que a investigação venha participar de um momento de suas ações sócio-pedagógicas contra-hegemônicas e insurgentes. Ao participarem da IAP elas devem dela se apropriar para torná-la uma alternativa a mais entre as suas ações coletivas de resistência, insurgência, luta e transformação.

Se ousarmos atualizar a nossa compreensão a este respeito, podemos pensar com Boaventura de Souza Santos que a IAP é participante porque ela participa ativamente, através da ação de seus sujeitos, de processos de emancipação do sistema e, não, de processos de mera regulação do sistema. Em nome da construção de um “outro mundo possível” a IAP está mais para uma contestadora sociologia do conflito do que para uma apaziguadora sociologia do consenso.

Ao ampliarmos um pouco mais este primeiro olhar vindo desde as origens latino-americanas da IAP, deveremos nos encontrar com as ideias que elenco abaixo.

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No exercício da IAP devemos partir da realidade concreta da vida cotidiana dos próprios participantes individuais e coletivos do processo, em suas diferentes dimensões e interações. A vida real, as experiências reais, as interpretações dadas a estas vidas e experiências, tais como são vividas e pensadas pelas pessoas com quem interatuamos. Na IAP as pessoas do povo não nos oferecem “dados” que em seguida submetemos às nossas “considerações científicas”. Elas partilham conosco uma mesma e diferenciada construção de saberes partilhados entre autores-atores vocacionalmente igualados e culturalmente diferenciados.

Neste sentido acredito que a IAP parte do suposto de que eu não dialogo com uma outra pessoa quando nós entramos e saímos de nosso diálogo com os mesmos saberes e as mesmas ideias de antes. Dialogamos quando criamos juntos novos saberes que, sendo “nossos” como uma partilha, não são nem “meus” e nem “deles”, como uma posse.

Os processos e as estruturas, as organizações e os diferentes sujeitos sociais participantes devem ser contextualizados em sua dimensão histórica, e nos termos de uma “história que seja sua” e, não, a “história de outros sobre eles”. Pois é o acontecer de momentos da vida, vividos no fluxo de uma história concreta, real e sempre presentificada, que se realiza a integração orgânica de acontecimentos entre aquilo que se investiga, descreve, interpreta e socializa como compreensões sobre as dimensões e interações daquilo que chamamos: uma realidade social19.

A relação tradicional e padrão do tipo: sujeito-objeto entre investigador-educador e os grupos populares, deve ser progressivamente convertida em uma relação do tipo sujeito-sujeito, a partir do suposto de que todas as pessoas e todas as culturas são fontes originais de saber. Deve partir, também, da consciência de que é desde a interação entre os diferentes conhecimentos que uma forma partilhável de compreensão da realidade social poderá ser construída através do exercício de uma IAP. O conhecimento científico e o popular articulam-se criticamente em um outro conhecimento compartido, novo, inovador e transformador.

Devemos partir sempre da busca de unidade entre a teoria e a prática, e devemos procurar construir e reconstruir uma teoria a partir de uma

19 . Nesta direção, recomendo com ênfase a leitura atenta do livro de Alfonso Torres Carrillo, Hacer história desde Abajo y desde el Sur. O livro foi publicado pela Ediciones Desde Abajo, de Bogotá, em 2014. Sob a aparência de um “manual de uso”, o livro de Alfonso Torres é um excelente estudo sobre a tradição da história popular no mundo e, de maneira especial, da América Latina, acompanhado de fecundas proposições metodológicas de uma Reconstrução coletiva da história.

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sequência de práticas refletidas criticamente, e emancipadoramente realizadas como ação social. A IAP deve ser pensada como um momento dinâmico de um processo de ação social comunitária de vocação politicamente contra-insurgente. Ela se insere no fluxo desta ação e deve ser exercida como algo integrado e, também, dinâmico.

As questões e os desafios surgidos ao longo de ações sociais definem a necessidade e o estilo de procedimentos de pesquisa participante. O processo e os resultados de uma pesquisa interferem nas práticas sociais e, de novo, o seu curso levanta a necessidade e o momento da realização de novas investigações participativas. A participação popular comunitária deve se dar, preferencialmente, através de todo o processo de investigação-educação-ação. De uma maneira crescente, de uma para outra experiência, as equipes responsáveis pela realização de pesquisas participativas devem incorporar e integrar agentes assessores e agentes populares.

O ideal será que em momentos posteriores exista uma participação culturalmente diferenciada, mas social e politicamente equivalente e igualada, mesmo que realizada do começo ao fim entre pessoas e grupos provenientes de tradições culturais diferentes quanto aos conteúdos e aos processos de criação social de conhecimentos.

O compromisso social, político e ideológico do praticante da IAP é com a comunidade; é com pessoas e grupos humanos populares; e é com as suas causas e frentes insurgentes de causas e de lutas sociais. Mesmo em uma investigação ligada a um trabalho setorial e provisório, o propósito de uma ação social de vocação popular é o acesso a posições de crescente autonomia entre os seus sujeitos na gestão do conhecimento e das ações sociais dele derivadas. É, também, a progressiva integração de dimensões de conhecimento parcelar da vida social, em planos mais dialeticamente interligados e interdependentes.

Deve-se reconhecer e deve-se aprender a lidar com o caráter político e ideológico de toda e qualquer atividade científica e pedagógica. A pesquisa participante deve ser praticada como um ato de compromisso de presença e de participação claro e assumido.

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Não existe neutralidade científica em pesquisa alguma e, menos ainda, em investigações vinculadas a projetos de ação social. No entanto, realizar um trabalho de partilha na produção social de conhecimentos, não significa o direito a pré-ideologizar partidariamente os pressupostos da investigação e a aplicação de seus resultados. No que nos toca de mais perto, a investigação-ação-participativa pode ser compreendida como um momento de uma ação de educação popular. Uma ação realizada junto com e a serviço de comunidades, grupos e movimentos sociais populares. É através do constante diálogo de parte a parte que um consenso sempre dinâmico e modificável deve ir sendo também construído. Uma verdadeira pesquisa participante cria solidariamente, mas nunca impõe partidariamente conhecimentos e valores.

A investigação, a educação e a ação social convertem-se em momentos metodológicos de um único processo dirigido à transformação social. Mesmo quando a pesquisa sirva a uma ação social local e limitada com o seu foco sobre uma questão específica da vida social, é o seu todo o que está em questão.

Alguns estudiosos do humano e do social costumam opor um “lado da vida” a um “lado do mercado”. Quero me filiar a este modo de compreender as coisas. Uma das vocações mais essenciais de nossas culturas patrimoniais e das mais diversas tradições científicas de povos indígenas, quilombolas, camponeses e outros, é o vinculo de seus saberes, sentidos e significados com a vida. Com o correr cotidiano da vida de pessoas, famílias, comunidades, povos, e com um “sentido de elos entre as diferentes escalas da Vida no Planeta Terra”.

Não é ao acaso que em dias de agora nós nos voltamos a sabedorias que tanto nos vem do Oriente quanto a Amazônia ou dos Andes, para aprendermos com “eles” algo que nos ajude a destruir menos as fontes de nossas vidas e da existência de todos os seres que conosco compartem este mesmo Planeta. Nós, acadêmicos ocidentais, produzimos teorias sobre a vida. Eles produzem sabedorias sobre como viver a vida.

Saibamos aprender a nos calar, a ouvi-los e, então, saibamos estender a eles e a nós um fraterno diálogo entre saberes, sentidos de vida e sentimentos de partilha.

Que esta contribuição ao nosso encontro nesta Conferência seja concluída com palavras de outros tempos, mas ainda vivamente atuais, vindas de Orlando Fals-Borda. Ele também estará falando a nós desde a Vida.

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Noten que esta corriente “de abajo”, que se há olvidado y despreciado es la que habla siempre de la vida, del sentimento, del goce, de la cotidianidad. No están preocupados de si son capaces de hacer volar um cohete a la luna o no; les importa más si haya agua, si hay salud, si hay comida, si hay paz: eso es lo que les preocupa. Observen, entonces, las diferencias em las prioridades que tiene el científico de “arriba” y el outro “de abajo”, el de la ciência popular.Por todo lo dicho, si com la IAP se logra que eventualmente haya um encuentro de esos dos conocimientos: el de la ciência tecnológica que nos está llevando a destrucción mundial, y el de la ciência del Pueblo, que enfatiza otros aspectos valorativos, allí, de esse encuentro pude surgir, efetivamente, um nuevo caminho20.

Palavras de Orlando Fals-Borda em 1985.

20 . Está nas páginas 21 e 22 do livro Investigación Participativa, no curso da entrevista concedida por Fals-Borda a Ricardo Cetrulo, em Buenos Aires, em julho de 1985.

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5.Educação popular e pesquisa participante

Depois de tantos outros escritos e encontros antecedente a este escrito e este Encontro aqui no Rio Grande do Sul, eu quero dar à minha contribuição um assumido tom bastante mais pessoal. Assim sendo, eu trouxe para esta nossa mesa redonda algumas ideias muito simples e, tal como adiantei, ideias que brotam de palavras inicialmente biográficas. Assim, este escrito para um Encontro entre praticantes de uma modalidade de pesquisa a que de modo genérico e amplo estarei dando aqui o nome de pesquisa participante, começa com algumas páginas dedicadas a pensar as diferenças entre as pesquisas que pratiquei e pratico ainda, e a partir da qual procuro pensar mais a possibilidade da interação entre modelos diversos de investigação social, dirigidas a um mesmo horizonte, ou ao menos a horizontes próximos, até onde se sonha chegar por caminhos diferentes, paralelos às vezes, mas em nada divergentes. Em um segundo (e demorado, confesso) momento, reflito uma questão que nos tem acompanhado há cerca de cinquenta anos. O fato de que a partir de algo que de um momento em diante veio a se chama educação popular, nós “estamos aí”, atravessamos décadas – inclusive as duas dos “anos de fogo” da ditadura militar – criamos instrumentos de ação social através da educação, e um deles, a meu ver, é justamente a pesquisa participante. Várias e vários de nós são também profissionais de órgãos governamentais e estão envolvidos com políticas públicas. Outros e outras somos professores universitários de carreira. E sabemos bem que tanto a educação popular quanto a pesquisa participante oscilam entre serem liminarmente acolhidos pela academia, e ocuparem lugares sociais situados à sua margem. Algo que algumas vezes é lamentado por uns, como mais uma das exclusões ou manobras de opacidade tão típicas das confrarias acadêmicas. Algo que em outras ocasiões é visto por outro como o próprio atestado de valor da educação popular e da pesquisa participante. Afinal, à diferença da teoria estruturalista na antropologia ou a teoria dos quanta na física, educadores populares não trabalham em nome e através da academia e nem servem a ela. Servem justamente àqueles a quem ano após ano, em imensa maioria, a universidade deixa “do lado de fora”.

Finalmente, em um terceiro momento apresento alguns dilemas que, vindo da origem da educação popular e da pesquisa participante, ainda nos acompanham... e talvez agora mais do que nunca. Ao invés de tratar as questões que trago aqui de forma afirmativa e defendendo pontos de vista, prefiro trazer

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lembranças de anos pioneiros e, a seguir, completar cada sequência de “lembranças de ontem”, com “perguntas para agora”. Sei que as minhas perguntas serão poucas e talvez parciais. Espero que as suas respostas corrijam os meus limites.

Entre academia e o movimento, entre o antropólogo e o educador popular

Trago memórias do eu vivi e logrei realizar, ora a sós, ora com alguns, ora com muito. Elas me vêm das duas faces, ou duas vocações de minhas vivências nestes longos últimos anos. Um destas faces é a da academia. Ela envolve a minha vida como professor e como pesquisador de universidades aqui no Brasil, desde um agosto de 1967. A outra face vem de vivências até mesmo anteriores a 1967, e recorda algumas práticas de acompanhamento direto ou indireto de ações entre a cultura e a educação, realizadas por diferentes tipos de movimentos sociais. Há tempos na vida de quem escreve, leciona e participa de ações sociais, em que se fala sobre os outros através de um eu, ou de um nós. Mas vem a seguir um tempo em que se escreve também sobre um eu, ou um nós, através dos outros. Que uma direção não conspire contra a outra.

Assim sendo, meu depoimento pendula entre o antropólogo do mundo universitário e o educador popular que até agora não encontrou outro nome para o que pratica e sobre o que escreve, desde pelo menos o começo dos anos sessenta. Devo lembrar que em meu caso, o envolvimento com a militância estudantil e social através do “movimento estudantil”, através de meu “engajamento” na Juventude Universitária Católica, desde um março de 1961 e, depois, a partir de meu envolvimento com a cultura popular e, através dela, com a educação popular, a partir de meu vínculo com o Movimento de Educação de Base, antecedem de onze anos o tempo em que academicamente comecei a me converter em um antropólogo, por meio de um mestrado na Universidade de Brasília, quando já era então um professor de universidades.

Quero falar de algumas ausências no eu praticamos e no que nos reúne aqui. Quero falar de um certo de desconhecimento ou de um des-reconhecimento. Falo, portanto, sobre estranhos silêncios que povoam boa parte do que habita em nossas ideias e práticas. Falo a respeito do que tenho ao mesmo tempo vivido e experimentado. Assim, bem à diferença de outros escritos de diversos autores latino-americanos sobre nosso tema, este meu escrito não detalha uma experiência única, nem uma sequência uniforme e convergente de experiências. E ele também não pensa alguma questão teórica ou metodológica essencial.

Recordo de início fatos mais e menos conhecidos. Coordenei dois livros sobre a pesquisa participantes. Ajudei Danilo Streck a editar um outro, vários anos depois e, portanto, bastante mais atual. Relaciono-os na bibliografia ao final. Logrei

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publicar aqui ou ali alguns artigos em outros livros ou revistas. Participei de um inesquecível debate sobre a pesquisa participante com Orlando Fals Borda. As perguntas a nós dirigidas por pessoas do Instituto del Hombre, de Montevidéu saíram publicadas em um pequeno livro jamais traduzido para o Português.

De outra parte, como vários e várias dentre nós aqui, orientei estudantes pós-graduados que a custo lograram meu convencer – ou não – que mesmo servindo com prioridade às suas carreiras à academia suas pesquisas seriam substantivamente... participantes. Participei de um exagerado número de bancas exame de dissertações e teses cujos autores buscavam no item dedicado à metodologia a provar que suas abordagens interativas, metodológicas e, em alguns casos, atém mesmo políticas, seriam alguma modalidade de uma pesquisa participante.

Estranho que o que escrevi com maior fervor e mais diretamente a serviço de grupos e de movimentos populares, como resultado de ações de pesquisa de fato participantes, não sobre, não recebeu a minha assinatura. E nem deveria. Tantos anos mais tarde e depois da morte de alguns de seus integrantes mais ativos, um médico e um camponês, este é um bom momento de nomeá-las.

A primeira experiência foi a redação da “versão para agentes de pastoral” da conhecida pesquisa: “O Meio Grito”. Relatório que alguns anos mais tarde compôs o conjunto de experiências concretas do livro Pesquisa Participante, o primeiro sobre nosso tema que coordenei. A segunda experiência de partilha solidária e, depois, de escrita solitária, foi bastante mais longa e trabalhosa. Depois de meses de trabalho envolvendo inúmeras pessoas das “equipes de pastoral” da Diocese de Goiás, alguns assessores “de fora” (José de Souza Martins foi um deles, eu, um outro) e um grande número de lideranças camponesas de Goiás, coube a mim a redação dos oito “cadernos” ao longo dos quais dividimos todos os dados da longa e trabalhosa pesquisa participante. O resultado, distribuído entre as comunidades da Diocese, entre movimentos camponeses da região, e entre agentes de pastoral da Diocese de Goiás, jamais foi publicado em algum livro de perfil mais acadêmico.

Devo dizer que faz anos que convivo, entre a solidão dos estudos, os diálogos de sala de aulas, e alguns momentos de trabalho com agentes diretos ou indiretos de ações sociais de vocação popular e minhas próprias experiências de pesquisas de campo, com três modalidades do que, na que na falta de um nome mais adequado estarei chamando aqui de: investigação social. Penso hoje que ao longo de minha vida de pesquisas, essas três vertentes saídas de uma mesma estrada, dialogaram bastante entre elas. E mais em cenários fora da academia do que entre os de dentro dela. Cada uma em seu momento, cada uma com sua vocação e cada uma para a sua finalidade, elas ora apenas se tocam, sem conflitos graves, ora até se complementam fecundando umas às outras.

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Devo chamar – talvez mais metafórica do que cientificamente - a primeira variante de: pesquisa solitária. Seu praticante não único, mas por certo o mais visível hoje em dia, é entre nós, o antropólogo. Quem leia o primeiro capítulo do célebre Os argonautas do Pacífico Ocidental, de Bronislaw Malinowski, haverá de encontrar ali uma de suas mais pioneiras e completas descrições.

A solidão de pesquisa de que falo aqui em nada se confunde com aquela do filósofo, que em seus momentos estar a sós, longe de “todo o mundo”, pensa o Mundo. Como um pesquisador de campo, as minhas pesquisas solitárias – como as de praticamente gerações de antropólogos - foram vividas como longos ou breves períodos de convivência com as pessoas das comunidades populares, quase sempre rurais, ou das pequenas confrarias de rituais religiosos, cujos passos e preces acompanhei pelo menos desde 1972. Os Deuses do povo, A partilha da vida e O trabalho de saber, são três livros que bem traduzem esta solitária vocação. (Não os citarei na bibliografia ao final, reservada apenas aos livros que de fato prestaram algum serviço a este texto).

A segunda modalidade de pesquisas em que me vejo envolvido desde muitos anos, eu a vejo também sendo praticada por inúmeros outros investigadores desde a universidade. Na verdade, me alegra saber que em tempos de um crescendo colonizador de um individualismo produtivista em nossas universidades, por toda a parte surgem e se multiplicam equipes corporadas de pesquisas, envolvendo de professores a estudantes de graduação.

Trocando da primeira modalidade apenas uma letra da segunda palavra, quero chamá-la aqui de pesquisa solidária. O nome não é propriamente acadêmico e, pelo menos em meu caso, tanto o nome quanto a prática do que ele sugere vieram de experiências vividas junto a movimentos sociais.

As diferenças entre as duas serão talvez pequena a um primeiro olhar. A distância da qualidade de interações e relacionamentos é, no entanto, ampla e substantiva. Nesta segunda modalidade, a elaboração de um projeto, o trabalho de campo, os momentos de estudos teóricos, assim como boa parte das tomadas de decisão para a realização da pesquisa, desdobram sequências de trocas realizadas dentro de e através de uma equipe de pesquisadores. Nos casos que vivi nas três últimas universidades públicas em que trabalhei, tendo como foco unificador de um eixo comum, o trabalho corporado se faz de tal modo que participante da equipe responde por um projeto pessoal, em diálogo com uma proposta coletiva de busca e criação de saberes através da pesquisa de campo.

Desde os meus últimos anos como docente e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas, entre 1993 e 1997, e desde os anos sequentes em que sigo trabalhando como professor e pesquisador visitante junto à Universidade Estadual de Montes Claros e, agora, junto à Universidade Federal de Uberlândia, todas as minhas experiências de investigações antropológicas de campo têm sido

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realizadas como um entre outros integrantes de equipes que envolveram, e seguem envolvendo estudantes de graduação, mestrado e doutorado, além de outros professores.

A partir de uma problemática e de um amplo território geo-cultural que nos seja comum, cada participante da equipe realiza um trabalho pessoal do começo ao final da pesquisa comum. Ele define, projeta, coloca ao redor da mesa, dialoga e realiza a sua pesquisa de campo como um momento de um projeto coletivo. Desde a definição e a elaboração de uma proposta até a escrita de um relatório de síntese final - até onde este procedimento é possível dentro de cenários acadêmicos - todas as ações que configuram uma pesquisa científica são convividos entre todos os participantes.

Ao longo de períodos que variam de um mínimo de dois anos e um máximo de quase quatro, sucessivas reuniões envolvem: a) a apresentação e a troca solidária de ideias a respeito do todo do projeto e do andamento de cada pesquisa pessoal; b) as leituras e os estudos que coletivizam o esforço de cada integrante em aprofundar os seus conhecimentos; c) a tomada de decisões que implicam procedimentos individuais e coletivos durante o acontecer da pesquisa; d) a realização de trabalhos concretos de campo; e) a apresentação e a avaliação coletiva (e, não raro, orientada por um dos professores participantes) dos relatórios pessoais; f) a elaboração de um relatório final de síntese de todo o projeto. Apenas esta última atividade é realizada por mim. E, quando pronto o relatório de síntese, ele é enviado para a apreciação dos outros integrantes da equipe.

Concluído o relatório final ele é juntado a todos os relatórios pessoais e todo o material é enviado para agências de financiamento (CNPq, FAPEMIG). No caso de duas pesquisas realizadas ainda na UNICAMP (e como a minha quase despedida de lá), relatórios pessoais sofreram destinos diversos e ficaram a cargo de seus realizadores. Alguns geraram livros e, outros, artigos em revistas ou capítulos em livros. No caso das pesquisas realizadas a partir de 2005, e já através da UNIMONTES e da UFU, ao lado de iniciativas individuais, sobretudo de estudantes, visando a publicação de seus trabalhos como artigos de revistas, logramos publicar um livro coletivo com nossos relatórios de pesquisas, temos outro livro já aprovado pelo pela Editora da Universidade Federal de Uberlândia e mais um outro encaminhado para publicação. Como um dos trabalhos essenciais de uma das pesquisas coletiva, estamos elaborando um documento (um livro-álbum) a ser ”devolvido” às comunidades junto às quais estivemos investigando ou que foram visitadas por nós durante uma viagem de barca ao longo das comunidades ilheiras e ribeirinhas do rio São Francisco em seu “trajeto mineiro”.

Estamos em plenos trabalhos de realização de um projeto de longo curso, derivado de nossas pesquisas antecedentes e ele mesmo convertido em uma “pesquisa sem final previsto”. Trata-se da criação em Montes Claros de um Museu

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da Pessoa do Sertão, para o qual contamos com auxílios do CNPq e da FAPEMIG. À diferença de outros “museus da pessoa”, é nosso propósito criarmos um acervo interativo não apenas sobre sujeitos poupares dos sertões de Minas Gerais, mas algo destinado a usufruto deles e das comunidades populares envolvidas.

Finalmente, a terceira modalidade de pesquisas com que estive envolvido é a que mais importa aqui. Devo, no entanto, chegar à pesquisa participante confessando que depois de anos de um intenso envolvimento com a sua prática direta, nos últimos anos tenho estado hoje bem mais ocupado em pensá-la e escrever sobre ela. Dedico-me agora a transmitir em sala-de-aulas, em orientações a estudantes pós-graduandos, ou em minicursos aqui e ali, algumas ideias e práticas vividas e partilhadas. E lamento bastante estar agora mais distanciado de equipes e comunidades envolvidas de forma direta e ativa na prática de algum a modalidade do eu chamarei aqui de pesquisa participante.

Escrevi aqui e ali, entre artigos e capítulos de livros, e repito de viva voz (como agora) com frequência que, a meu ver, para além de sutis e não raro defensivas oposições teóricas e/ou metodológicas em nome de alguma modalidade ou vertente de pesquisa social, o que em sua dimensão mais humana e interativa as distingue terá por certo ver mais com modos e graus de confiança e da qualidade da interação entre eu e um outro, do que com preceitos e procedimentos metodológicos rigidamente científicos.

Fossem todos os de nossos campos de estudos ardorosos defensores de um fundamentalismo cientificista de estilo neopositivista, e a antropologia, a história, e outras ciências do humano, da cultura e da sociedade, não teriam podido se constituir e desenvolver ao ponto em que chegamos em todas elas e através de todas elas.

Gosto de pensar que no fundo o que separa de fato abordagens quantitativas e rigidamente controladas e/ou “neutras” das abordagens diversificamente qualitativas, é que nas primeiras eu desconfio de mim-mesmo e do outro. E por isto eu me armo não apenas de instrumentos “objetivos”, mas de procedimentos e relações regidas pela formalidade impessoal, para que eu mesmo me proteja de minha perigosa subjetividade. Claro, isto não vale para todos os casos, e quero fazer justiça a procedimentos de pesquisa que não apenas reclamam, mas quase que somente podem se valer de métodos e técnicas que têm na estatística e em questionários pré-testados, os seus melhores meios de “coleta de dados. Acontece que no mundo das pesquisas que lidam com o imponderável da pessoa humana, nem tudo são... casos.

De outra parte, a experiência da vocação qualitativa me obriga – aquém e além dos métodos e das técnicas de pesquisa – a confiar em mim mesmo. Em sua prática não sou e nem me assumo como um alguém que para ser objetivo precisa ser “controlado”. Posso afinal ser eu mesmo e é a partir desta “interativa

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pessoalidade” que eu me relaciono com “objetos de pesquisa” convertidos em “sujeitos de diálogos na pesquisa”. Posso falar livremente com o outro e ouvi-lo com liberdade. Posso “me tocar” e conviver com pessoas, famílias, grupos corporados, comunidades compartindo com eles e elas mais do que apenas os seus ”dados” ou, para além deles, com os seus “discursos”. Uma experiência antes neutra e ilusoriamente impessoal transforma-se na relação entre duas pessoas que, através de quem são e do com expressam o seu próprio ser, podem intertrocar saberes e vivências.

A pesquisa participante me obriga a um difícil salto além. Se o passo dado entre o quantitativo e o qualitativo ainda me desloca de um lugar a outro no interior do quintal da academia, o salto entre o qualitativo e o participante me atira para além dela. Mesmo que de algum modo depois eu retorne a ela. Repito, a diferença entre a neutralidade positivista e a interatividade antropológica (para ficarmos apenas em um campo que me é mais próximo) me transporta da confiança no método e nos instrumentos de pesquisa (de quem eu mesmo me torno um outro “instrumento”) à confiança em mim-mesmo como instrumento humanizado da minha pesquisa. Ora, a pesquisa participante tem a sua objetiva substância na extensão de um ato primário de confiança. Agora, eu que antes confiava em mim diante do outro, confio no outro diante de mim. E não mais como um fiel e confiável doador de si-mesmo para mim, entre dados, discursos, histórias e memórias, mas como um coparticipante da criação solidária de saberes.

Ora, em um ousado passo além, a pesquisa participante me obriga a passar de uma gratificante epistemologia do puro saber (que tipo de saber estou produzindo? Com base em que teoria? Através de que procedimentos metodológicos?) para um neo-pragmatismo que apenas se justifica porque, agora, antes de uma investigação do social servir antes a mim ou ao mundo acadêmico de minha origem e destino, ela serve ao sujeito-outro e ao mundo de vida desde onde ele se dispõe a me aceitar como parceiro de uma pesquisa participante.

Pendulando em meus “primeiros anos”, entre modalidades quase extremas na experiência da pesquisa qualitativa e presencial junto a pessoas, famílias, pequenos grupos sociais e comunidades populares, quase sempre rurais, e um praticante de objetivo-quantitativas investigações que me obrigavam a complexos cálculos de estatística inferencial, desde o imediato final de minha formação graduada em psicologia até o começo de minha vida docente, ainda como psicólogo, quero retomar o que disse no começo desta conversa por escrito.

Sobretudo no diálogo entre a pesquisa solitária (a da observação participante a sós na comunidade), a pesquisa solidária (a da observação participante em situações de equipe com múltiplas vivências em diversas comunidades) e a pesquisa participante, vivi e vivo agora diversas, fecundas e desafiadoras experiências de investigação como antropólogo e como educador popular. E a

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interação entre as três modalidades desenhadas aqui, penso que ao mesmo tempo em que se fertilizam mutuamente, me livram de vir a ser um cientista social e um educador “de modelo único”.

Assim, como um resumo antecipado do que trouxe para este nosso encontro, devo dizer que boa parte do que poderão parecer críticas aos modos como vejo ao meu redor, por escrito e “ao vivo e a cores” como alguma modalidade de pesquisa participante, representa apenas um encontro e um diálogo de confrontos entre a observação participante do antropólogo e a pesquisa participante do educador popular.

Alguns silêncios próximos e distantes

Quero dedicar este tópico a socializar um estranhamento que, creio, demonstra como até mesmo nós, “praticantes do participante”, nos “des-participamos”, nos estranhamos e nos ignoramos. Por mera e simples “ignorância” mesmo (tornar o outro opaco ou deslocado) ou por má-fé pura e simples?

Assim devo começar aqui com a lembrança de alguns reconhecimentos vindos de longe, ao lado de alguns estranhos esquecimentos bastante próximos de nós. Acredito que no interior do, e através do circulo de ideias e de práticas que nos interessam mais de perto aqui, fora momentos e situações passageiras e excepcionais, ou à exceção de algumas dimensões da vida e da festa em que nós, os latino-americanos, nos tornamos visíveis “do outro lado do mundo” - como na música, na literatura, nas artimanhas sábias e heroicas de sobrevivência, na resistência ou lutas populares ou, ainda, no carnaval e no futebol - apenas em raros círculos acadêmicos e, em maior escala, em diferentes círculos de ativistas e de militantes situados acima da Equador e a oeste do Japão, alguém nos olha, lê e estuda com atenção. E, até onde posso relembrar minhas leituras de textos científicos, pedagógicos e militantes do “primeiro mundo”, e de suas bibliografias, em apenas poucas áreas fomos e seguimos sendo reconhecidos, procurados e estudados.

Quando tomo a minha área de pesquisas, a antropologia, e folheio livros e revistas especializadas escritas em inglês, francês ou outras línguas “ao norte do Equador” , encontro raras referências a respeito do que se pensa, fala ou escreve aqui na América Latina. Mesmo quando um antropólogo norte-americano estuda o “Nordeste do Brasil” ou “a Amazônia”, na imensa maior parte dos casos, autores situados “abaixo do Equador” são lembrados bem mais pelos dados que aportam como “nativos do lugar”, do que por suas reflexões e teorias pessoais. Apenas aos poucos e através de casos isolados e raros, antropólogos autores das chamadas (por eles e por nós “antropologias periféricas”) são com frequência alguma

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referência entre as “antropologias centrais” (Inglaterra, EUA, França e, secundariamente, alguns outros países da Europa).

Assim onde estariam os “cenários de escritos” em que somos lembrados e lidos? Quais aqueles que trazem à Bolívia, ao México ou ao Brasil estudiosos e ativistas que não chegam à América Latina para conhecer de perto o que fazem os “nativos que escrevem”, mas para dialogar conosco de igual para igual, como acredito que esteja acontecendo agora, aqui mesmo neste nosso Encontro? Ora, entre Paulo Freire, Orlando Fals-Borda, Gustavo Gutierrez, Leonardo Boff e outras pessoas, nós nos tornamos coletiva e persistentemente visíveis ao “primeiro mundo” justamente nos campos em que nossos centros universitários de saber – pelo menos os representados pelo Brasil – mais nos inviabilizam. Eles seriam: a educação popular, a teologia da libertação, a pesquisa participante e, numa dimensão mais ativa, popular e mobilizada, o repertório de iniciativas de ações e frentes de luta dos movimentos populares, entre as comunidades eclesiais de base e o MST.

De fato, creio que nenhum educador latino-americano foi mais traduzido para além do Espanhol do que Paulo Freire. Provavelmente nenhum teólogo mais do que Gustavo Gutierrez e Leonardo Boff. E, mesmo chegando à Europa por alguma porta dos fundos, talvez tenha sido preciso esperar os primeiros escritos e as primeiras experiências de campo ligadas à pesquisa participante, para que a questão da investigação social e de seus usos não apenas acadêmicos e assumidamente colocados a serviço de causas populares, tenha provocado aproximações, diálogos, traduções, encontros e fóruns internacionais como este que nos reúne aqui em Porto Alegre.

Posso trazer aqui de novo um exemplo pessoal que bem testemunha o que afirmo. Em 1989 fui convidado pelo Latin American Studies Centre da Universidade de Cambridge como “visiting scholar” por dois meses (de inverno, infelizmente). Na mesma ocasião o teólogo Gustavo Gutierrez foi convidado pela mesma universidade, como “visiting professor”. Ele foi convidado por quatro meses para responder por todo um curso sobre a teologia da libertação, enquanto coube a mim uma apenas modesta apresentação de um “paper” em uma quinta-feira dedicada a seminários. Mais do que isto, enquanto o meu único seminário foi realizado diante de uma quinzena de estudantes inscritos pra esta atividade escolar, e mais o professor coordenador, os seminários de Gustavo ocupavam uma das grandes salas especiais de uma das mais importantes unidades de Cambridge, e mesmo sem contar imagino que eram semanalmente assistidas por mais de cento e cinquenta pessoas das mais variadas áreas acadêmicas. O convite feito a Gustavo Gutierrez representou vários dois graus acadêmicos acima do meu, tendo eu sido convidado como antropólogo da religião e, ele, como um representante da teologia da libertação. O único momento em que o antropólogo

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estudioso-de e o teólogo envolvido-com nos encontramos em pé de igualdade, foi a noite em que ambos fomos, em uma capela medieval e diante de um corpo docente solenemente becados, incorporados ao corpo do “Fellows of Saint Edmund’s College”. Isto após havermos proferido um juramento igualmente solene de fidelidade à ciência, a deus e à rainha da Inglaterra.

Deixemos aqui a parte por agora a teologia da libertação - sem esquecer suas derivadas, como a filosofia da libertação de Enrique Dussel e também a psicologia da libertação, pouco divulgada no Brasil, mas forte e fecunda em outros países do continente - e voltemos o nosso olhar às duas outras formas de pensamento e ação social de vocação popular com que trabalhamos e que nos reúnem aqui. Se observarmos os dois cenários de teorias-e-ações – ora convergentes, ora divergentes – em que nos vemos envolvidos desde a aurora dos anos sessenta, podemos testemunhar um cenário mais ou menos como procuro descrever a seguir.

Aqui mesmo e entre nós na América Latina, sobretudo após o esgotamento dos governos militares e de suas inevitáveis ditaduras culturais, presenciamos desde os anos setenta um número muito grande e crescente, em alguns momentos, de encontros, simpósios, fóruns e reuniões assemelhadas, desde o nível mais comunitariamente local, até o mais latino-americanamente internacional, envolvendo as modalidades de ideias e ações sociais lembradas acima. O que nos reúne aqui é bem um exemplo disto.

É evidente que aqueles que desde a Europa e os EUA demonstraram desde a década dos anos sessenta um vivo interesse pela educação popular e, depois, por seus desdobramentos, houve e há agora bem mais cientistas sociais e/ou educadores ativistas, do que aqueles que poderíamos considerar como “acadêmicos puros”. No entanto, repito, é também evidente e facilmente demonstrável que entre os dessas regiões ao Norte do Mundo houve, e possivelmente segue havendo uma acolhida da educação popular no interior das universidades bastante maior do que aqui entre nós. Pelo menos aqui entre nós no Brasil.

Em nosso país a educação popular e a pesquisa participante envolvem hoje em dia diversas variantes de teorias, de projetos e programas concretos de trabalhos direcionados a alguma forma de ação política através da cultura e/ou de uma ação cultural através da educação. De formas bastante diferentes, mas dentro de uma diferença convergente. Em diferentes cenários e fronteiras nos chegam declarações de que desde pequenas ONGs ambientalistas até governos municipais ou mesmo estaduais (como foi o caso aqui mesmo do Rio Grande do Sul), de que “aqui se pratica, como iniciativa de um pequeno grupo de alfabetizadores ou como uma ampla política pública, alguma modalidade de educação popular. De outra parte, assim como no campo de uma igreja

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progressista a teologia da libertação e as suas derivadas seguem representando algo desde cujos horizontes de avanço é impensável recuar, assim também a educação popular nos aparece como um passo que, uma vez dado, não deve submeter-se a movimentos de retorno. Lembro que Paulo Freire declarou certa feita a Moacir Gadotti e à sua equipe, frente à primeira proposta de criação do Instituto Paulo Freire, que como educadores populares devemos estudá-lo, mas não devemos repeti-lo e, menos ainda, não nos cabe recuar dos avanços que vivemos juntos a partir também de suas ideias pioneiras.

Relembro que tanto a educação popular quanto a pesquisa participante (que sempre entendi como um dos momentos e recursos da educação que sonhamos praticar) mobilizam ainda e continuamente uma polissemia e uma quantidade grande encontros como este. Por conta própria ou associadas a outras e novas modalidades de empoderamento popular, cinquenta anos depois a educação popular e a pesquisa participante seguem desafiando a criação de novas ideias e de outras práticas, assim como a produção de novos artigos e livros, entre um fecundo diálogo teórico e a narrativa de diferentes experiências.

Se, em tempos de “modernidade líquida” e de um crescendo vertiginoso do poder colonizador da hegemonia social e simbólica do capital, um certo teor de radicalidade popularmente mobilizadora, politicamente empoderadora e socialmente transformadora pareça haver arrefecido entre nós, presenciamos um inevitável e desejável alargamento de ideias e ações delas e delas derivadas, em diferentes direções. Um olhar atento a outros contextos de teorias, propostas e ações, pensadas e praticadas desde pelo menos os anos setenta-oitenta, tal como a educação para a paz, a educação e direitos humanos, a educação ambiental, a economia solidária, as diferentes ações ambientalistas, e, no seu mais fecundo extremo, as ações diretas de antigos e de novos movimentos sociais populares, haverá de revelar que em quase todos os seus círculos de pensadores e praticantes é bastante raro o pensar e propor ideias e ações sem que de um modo ou de outro elas retomem assinatura ou a herança do que foi e segue sendo alguma das variantes da educação popular.

Este reconhecimento de neo-modalidades de ação social de tradição e vocação “libertadora” - para retornarmos a uma palavra cara a Paulo Freire - desdobra-se em uma ou em algumas das alternativas seguintes): a) elas se reconhecem como uma modalidade atual de educação popular; b) elas incorporam algo da essência e do proceder herdado da tradição da educação popular; c) elas se veem em “situação de fronteira direta” com a educação popular, na mesma medida em que se colocam em posição contrária a tudo aquilo que há muitos anos Paulo Freire escolheu denominar “educação bancária” e tudo aquilo a que ela serve, ou que dela deriva, d) elas incorporam alguma alternativa de pesquisa participante como seu procedimento de pesquisa de uma realidade social.

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Ao longo destas duas últimas décadas, sou testemunha de que essas e outras modalidades de ação social humanizadora e ambientalista, via de regra são assumidas e praticadas em uma fecunda vizinhança com a educação popular. Ou então, em seus protocolos de ação elas se assumem em uma interação estreita e ativa com a educação popular. Assim, expressões como educação ambiental popular, ou educação popular ambiental, ao lado de várias outras, são frequentes entre nós.

De alguma maneira, em um amplo contexto em que nos movemos, o não associar qualquer uma destas e de outras vocações de ação social com alguma variante da educação popular, tende a sugerir um quase atestado de uma modalidade de ação educativa revisionista ou fracamente conservadora. Em pelo menos três encontros a respeito de uma nova pedagogia social de que participei, uma herança direta da educação popular tendeu a ser sempre reconhecida e ressaltada. Relembro aqui também alguns encontros nacionais internacionais associados a novos paradigmas na educação e a uma sempre fugidia transdisciplinaridade, em que sempre pelo menos algumas vozes se alçavam para restabelecer uma inevitável interação entre “tudo isto que surge no horizonte” e a herança ainda e sempre presente da educação popular.

Devemos reconhecer agora que algo de algum modo equivalente e, por outro lado, bastante diverso, ocorre em nosso universo universitário. Creio que posso trazer uma vez mais o meu próprio testemunho como um ponto de partida do que escrevo aqui. Ao contrário do que imaginam algumas pessoas que leem apenas a “metade de educador” do que escrevo, apenas em alguns momentos de minha carreira de professor lecionei em faculdades de educação, primeiro em Brasília e, depois, em Goiânia, desde um agosto de 1967. Logo a seguir assumi a docência em institutos de filosofia e ciências humanas, primeiro na Universidade Federal de Goiás, depois na Universidade Estadual de Campinas, em que lecionei por vinte e três anos. Hoje sou professor-visitante do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Uberlândia. Durante todo este período procurei dar continuidade a um trabalho militante junto a grupos de assessoria a movimentos populares, iniciados entre 1961 e 1963.

Em todos os meus contextos universitários são ignoradas ou colocadas em uma distante penumbra próxima a uma fronteira entre o liminar e o marginal todas as minhas atividades de assessoria prática a movimentos populares, bem como as de escrita de livros, capítulos de livros e artigos publicados minoritariamente em revistas acadêmicas e bem mais em revistas associadas a ações sociais. Educação popular é algo ignorado, enquanto a pesquisa participante não raro me foi declarada como uma curiosa aventura marginal, que talvez leve a extremos indevidos a boa tradição antropológica da observação participante. Livros e artigos meus nos dois campos que nos reúnem aqui são com frequência lidos, estudados

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e colocados nas bibliografias de dissertações, artigos e teses de estudantes. Raramente são lembrados entre professores de educação, a começar pelos das universidades onde lecionei e sigo lecionando e coordenando equipes de pesquisa. Desde pelo menos 1976 participei de vários cursos de “métodos e técnicas de pesquisa em antropologia” na UNICAMP, e não me lembro de sequer um item dedicado à pesquisa participante em qualquer um deles. Confesso que por cumplicidade com a “minha tribo”, nem nos meus cursos, embora eu tenha orientado sucessivas levas de pós-graduandos que assumiam trabalhar no campo com alguma variante da pesquisa participante. Finalmente, o certificado que provavelmente receberei por minha participação neste nosso Encontro terá um mínimo valor, ou valor nenhum para o meu “Currículo Lattes”, de acordo com o pensar e avaliar de meus pares da academia,

De outra parte, é provável que raros – se é que houve algum – dentre meus parceiros de trajetórias de educação popular e de pesquisa participante tenha lido, dentre os livros que escrevi como antropólogo como os que lembrei acima e outros mais, dedicados a rituais de negros católicos, a camponeses tradicionais, suas vidas, seus imaginários e suas festas votivas. Justamente aquele “outro lado” que de um modo ou de outro deu sequência ascendente à minha carreira docente e me atribuiu um pouco do que entre nós (ou eles) costuma-se chamar de “respeitabilidade acadêmica”.

Assim sendo, fora trabalhos que leio para aprender ou que examino, para estar presente em mais uma das intermináveis bancas de exame de mestrado ou de doutorado, no interior do exclusivo (e algo tribal) campo da antropologia, uma variedade fértil e fecunda de estudos – entre artigos, dissertações e teses, sobretudo no campo da educação e/ou de outras modalidades fronteiriças de ação social, enfatiza alguma pertença, interação ou diálogo com a educação popular. E, bem diverso do que ocorre entre nós, cientistas sociais e de modo especial, antropólogos, não são raras as afirmações de que algum estilo de pesquisa participante foi a substância ou pelo menos uma abordagem auxiliar da “metodologia de pesquisa”.

Entre o que declaram os estudantes e, com raras exceções, silenciam os professores, creio não exagerar ao pensar que, no que toca a criação de documentos escritos de teor assumidamente acadêmico próximos aos temas deste Encontro: a) quanto maior o grau do estudo, escrito ou curso oferecido na/através da universidade, menor o investimento declarado na educação popular e/ou na pesquisa participante, o que significa que há mais trabalhos monográficos de graduação e dissertação de mestrado do que teses de doutorado e trabalhos de pós-doutorado que abordem a educação popular e que ou enfoquem a pesquisa participante ou declarem que a estão empregando como uma alternativa de produção de conhecimento; b) quanto mais oficialmente “importante” e “rico em

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produções indexáveis” seja um centro acadêmico de estudos e pesquisas, menor a incidência de sua vizinhança com a pesquisa participante; c) de novo, com raras e conhecidas exceções, quanto mais academicamente consagrado for um educador ou um cientista social, maior será o seu distanciamento da educação popular e da pesquisa participante.

A menos que eu me engane, à exceção de um pequeno curso de Mestrado em Educação Popular na Universidade Federal da Paraíba, não existem cursos oficiais a ela dedicados nas universidades brasileiras. Também até onde conheço o que vejo acontecer ao meu redor, posso ao mesmo suspeitar que são raras as ofertas de cursos ou disciplinas que as enfoquem com relevância.

A Pontifícia Universidade Católica de São Paulo criou uma Cátedra Paulo Freire. Lembro de novo o já sabido. Este educador brasileiro recebeu o título de doutor honoris causa por quarenta e nove universidades de todo o mundo. Talvez não encontre paralelo em qualquer outro educador da atualidade, a quantidade de estudos realizados desde os anos sessenta até hoje a respeito de suas ideias e da derivação delas em incontáveis experiências de educação popular espalhadas também pelos cinco continentes. No entanto, relembro que o silêncio a respeito de seu nome e de sua obra em inúmeras faculdades de educação do Brasil é mais do que visível (ou audível). Seu nome povoa um número muito grande de centros acadêmicos criados por estudantes universitários brasileiros. Mas a sua lembrança em cursos de pós-graduação em pedagogia é reduzida e decrescente.

Em 2001, uma das mais conhecidas editoras do País, a VOZES, de Petrópolis, publicou uma obra em três volumes a respeito da história da educação no Brasil. Histórias e memórias da educação no Brasil dedica o volume 1 aos séculos XVI ao XVII. Dedica o volume 2 ao século XIX. E reserva o volume 3 ao século XX. Neste último volume há vinte e sete capítulos escritos por diferentes pesquisadores e especialistas brasileiros em educação. Não encontrei nele há um único capítulo dedicado à educação popular e ao que ela deflagrou no Brasil e, depois, ao longo da América Latina, a partir de 1961. Os livros de Paulo Freire aparecem no conjunto de todas as bibliografias ao final dos capítulos, menos de cinco vezes, entre centenas de autores citados, alguns exageradas vezes. No capítulo dedicado à “alfabetização no Brasil” há uma vaga lembrança ao seu trabalho em um pequeno parágrafo, quando é sumariamente lembrado que Paulo Freire criou no Nordeste um método de alfabetização de adultos.

Se estas imagens e memórias são pelo menos em parte verdadeiras, creio que devemos assumir seus motivos e suas consequências de forma consciente e serena. Defenderei adiante a ideia de que justamente esta liminaridade frente ao “oficial” e ao “acadêmico” - que volta e meia nos reconhecem e até honram, desde que estejamos à distância e na penumbra – configura com relativa fidelidade a

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própria turbulenta e não-colonizada identidade de quem somos e do que pensamos, escrevemos e praticamos.

E os nossos não casos únicos. Há vários outros momentos e vários outros cenários sociais em que teorias, propostas e práticas de ação social de marcada presença social, sobretudo no âmbito dos movimentos sociais e populares, tornaram-se e tornam-se ainda - desde o seu primeiro acontecer, até momentos bastante posteriores - algo ignorado, opaco ou francamente marginal em âmbitos e círculos acadêmicos.

Não é apenas aqui e agora que militantes, movimentos e frentes de luta popular encontram pela frente dois horizontes no mundo universitário. O primeiro é o deslocamento do que se pensa e pratica para um território liminar, entre o academicamente assessório, o pitoresco e o quase-ilegítimo, como algo que mereça atenção científica. O segundo é uma sutil colonização do “popular”, que desde um olhar cientificista deixa de ser uma dimensão da sociedade desigual que clama por ações de mudanças (inclusive as nossas), e passa a ser, mesmo entre os críticos mais argutos desta mesma sociedade, um crítico problema e um urgente ”objeto de pesquisa cientifica”, apenas. Não devemos esquecer que foi através da acolhida de sua equipe no pequeno Serviço de Extensão Cultural da então Universidade do Recife, que Paulo Freire pode dar início ao seu “sistema de educação”.

Que não nos espante o fato de que boa parte das teses que geram doutores em educação, são fecundos estudos científicos e rigorosos sobre o que algum não-doutor criou - entre Comenius, Maria Montessori, Rudolf Steiner e Paulo Freire (que nunca se doutorou) - como inovações pedagógicas relevantes. As regras da excelência científica e acadêmica entre nós chegaram a tal ponto, que se uma educadora criar, depois de longos anos de experiência “no chão da escola”, um excelente novo procedimento de alfabetização de crianças, certamente receberá muito menos “pontuação” em nossos esquemas oficiais de “produtividade acadêmica”, do que a jovem estudante de mestrado que ao cabe de três meses lograr escrever um artigo científico descrevendo o “método de alfabetização” criado pela velha professora. Desde que se competente artigo encontre guarida em alguma revista bem colocada nos esquemas ranquicisados de avaliação de competência científica.

Vocês verão ao final das linhas que nos esperam, que embora eu projete um distanciamento de nosso olhar, um exercício de comparação entre o que vivemos abaixo do Equador, e o que viveram e vivem pessoas “como nós”, acima dele, será de algum modo proveitoso. Em primeiro lugar para saber com alguma maior certeza que “não estamos sozinhos”. Segundo, e mais relevante, para que se reforce a tese de que a verdadeira oposição que nos separa não é entre o “científico-acadêmico consagrado” e o indevidamente marginal, mas entre o que

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um (bastante acadêmico) antropólogo sul-africano, de formação inglesa, Victor Turner, chamou em alguns de seus livros, de uma oposição entre a estrutura e a communitas. E observem que ele reservou para quem somos um solene e sonoro nome em Latim.

Entre algumas linhas e parágrafos, viajemos do Brasil e da América Latina para a Inglaterra e a Europa. Retornaremos de com algo que talvez nos ajude a universalizar algo que estenda no espaço, mas não no tempo, algo que a um olhar centrado sobre nos mesmos poderá parecer mais um “vício latino-americano”. Sim, porque agora nos convido a que nos desloquemos no espaço, entre um continente e outro. Mas não no tempo. Porque aportaremos na Inglaterra justamente nos mesmos anos setenta, em que boa parte de nossa longa história recomeça. Falo dos estudos culturais originados na Inglaterra de antes e de ontem. Estarei fazendo aqui referência um livro não de ingleses, mas de dois autores franceses que justamente buscam tornar conhecida na França (que ainda quase a ignora) a fecunda experiência inglesa e popular dos estudos culturais. Seus autores são Armand Mattelart e Érik Neveu. E o livro tem este nome: Introdução aos estudos culturais. Deixo de lado a fascinante história das origens deste “movimento”, ainda no século XIX, e me retenho em tempos que fazem parte também de nossas histórias de vida. Do passado mais remoto retenho apenas parte do parágrafo que inicia o livro.

Durante o século XIX, uma tradição de pensamento conhecida pelo nome de “Culture and Society” emerge na Grã-Bretanha, impulsionada pelas figuras intelectuais do humanismo romântico. Para além de suas divisões ideológicas, essas figuras têm em comum o fato de denunciarem os estragos da “vida mecanizada”, como efeito da “civilização moderna”. (2004: 19 – grifos dos autores)

Na página 26, um dos “pais fundadores” do movimento, Matthew Arnold, vai ser apresentado como “inventor de uma filosofia da educação”, o que torna evidente como desde os sues primórdios, este movimento puramente intelectual ainda já via na educação do povo um caminho substantivo para a salvação de nada amenos do que uma identidade e mesmo uma “alma nacional”. E, com um sentido próximo ao que vai desembarcar aqui no Brasil no começo do século XX, entre os nossos “educadores pioneiros”, a associação entre “popular” e “educação” está escrita na página 27, no título de um livro de autor inglês, mas sobre a França: The Popular Education of France, resultante de uma viagem realizada em 1859, quando éramos ainda um império escravagista, prestes a ser re-colonizado justamente pela Inglaterra.

Ora, já em anos bem próximos aos do advento dos movimentos de cultura popular no Brasil, e quando já o eu viriam a ser programas de educação popular

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entre operários ingleses e a experiência – entre a academia e a militância – dos estudos culturais, uma mesma oposição que está na origem de nossa educação popular, é vida, em uma outra língua e em outros contextos “do lado de lá”. Já então militantes culturais educadores populares, estão ao mesmo tempo no interior e nas áreas entre a fronteira legítima e a margem liminar do mundo acadêmico. Tal como nós, alguns se alternam entre educadores populares e professores-investigadores de carreira. E se dividem.

A predominância acadêmica da corrente leavisiana não deve, porém, atenuar o debate travado na imprensa pelo educadores que atuam na formação de adultos dos meios populares (Highways, Tutor’s Bulletin) sobre as visões contraditórias da pedagogia a adotar (Steele, 1997). Dele participam autores como George Orwell, Harol Laski ou Herbert Read. Quem, da “massa” ou da “classe”, privilegiar na escolha do perfil dos professores? A primeira opção tem a simpatia dos partidários de uma modernização da educação popular preferentemente vinculada ao estilo universitário e centrada nas artes e nas letras. A outra linha, mais apoiada em realidades regionais, valoriza as tradições puritanas do movimento operário e milita em favor de uma abordagem sociológica em sentido amplo, apoiando-se na economia, na filosofia e na política, e buscando mobilizar as pessoas mais avançadas da classe operária para formar quadros. O tema de uma democracia de trabalhadores contra uma aristocracia de letrados é recorrente no debate. (2006: 39, a palavra “leavisiana” é referente a Frank Raymond Leavis, apresentado no livro como um “representante da pequena burguesia emergente que chega, pela primeira vez, ao santo dos santos da aristocracia universitária de Oxbridge” (pg. 36).

Poucos anos depois do tempo em que a experiência multifacetada entre nós do movimento de cultura popular toma, entre Paulo Freire, Henrique da Lima Vaz, Ernani Maria Fiori e Augusto Boal, entre tantas e tantos outros, a opção pelo povo e, de maneira mais explícita, pelas classes e movimentos populares, na Inglaterra (e mal sabíamos então) de forma semelhante Os estudos culturais participam desse questionamento, mas na trilha de Morris, optam de modo decisivo por uma abordagem via classes populares (2006: 40).

Um livro mais tarde traduzido tardiamente em Portugal para nossa língua, e escrito doze anos antes de Pedagogia do Oprimido, tornou-se algo equivalente ao livro de Paulo Freire, entre militantes ingleses dos estudos culturais e de seus desdobramentos em ações sociais de teor educativo. Em Português ele tomou este nome: As utilizações da cultura – aspectos da vida cultural da classe trabalhadora e até hoje é bem mais lido por antropólogos dedicados a pesquisas de culturas e modos de vida populares do que por militantes da educação popular.

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A história inglesa dos estudos culturais prossegue e, como a nossa (mas sem uma ditadura militar a enfrentar) ela é fecunda e fascinante. Já bem nos anos sessenta e como herança da anterior “década que não acabou” a “dos anos sessenta”, os estudos culturais interagem entre adesões e conflitos com a New Left. Recomendo a leitura do pequeno livro que aqui nos acompanha e mais outros, a começar pelo de Hoggart, e me atenho agora ao que importa à trilha de pensamento que seguimos aqui. De forma bastante semelhante àquelas que nos “enquadraram” e seguem sendo um dilema para “outros-e-nós” desde os “anos de fogo pós-64” e até hoje, a relação entre uma vocação acadêmica no trato do popular versus uma vocação popular no trato do acadêmico, existiu também por lá. Retomo nosso livro.

No campo acadêmico, duas formas de marginalidade marcam as figuras fundadoras dos estudos culturais. Trata-se do caso de Willians e de Hoggart – e até mesmo de Hall -, de uma origem popular que faz deles personagens deslocados no mundo universitário britânico. Em Hall e Thompson, intervém uma dimensão cosmopolita, uma experiência da diversidade das culturas (também presente na trajetória de Benedict e Perry Anderson, outras figuras da New Left) que, por ser menos excepcional no tempo do Império Britânico, marca contudo um perfil específico de intelectuais, e suscita uma forma de sensibilidade às diferenças culturais. Essas trajetórias sociais atípicas ou impróprias se chocam com a dimensão socialmente restrita do sistema universitário britânico e condenam desde logo os intrusos à “escolha” de posições externas (a educação de adultos no meio operário) a esse sistema ou situadas em sua periferia. Os fundadores frequentemente se veem destinados a estabelecimentos pequenos ou recentes (Warwick), a instituições estabelecidas à margem das universidades (em Birmingham), a componentes “extraterritoriais” do mundo universitário (extra-mural departments) Open University, equivalente melhorado do Centro Nacional de Ensino à Distância na França. (2006: 52 – grifos dos autores. O primeiro autor citado é o historiador marxista Raymond Willians).

Sem o status de “nação periférica” e sem vinte e dois anos de ditaduras militares, que teve nos “expurgos de professores e estudantes universitários uma de suas práticas nefastas, eis que encontramos na Inglaterra de nossos mesmos anos setenta-oitenta, boa parte das controvérsias e dos pequenos e grandes conflitos “entre nós e sobre nós mesmos” com que convivemos aqui na América Latina, e que roubam pelo menos algumas noites de sono tanto “deles lá”, quando de “nós aqui”. Em duas direções que convergem – entre alianças e conflitos – em alguma vocação de “compromisso com o povo”, observamos entre nós e eles semelhantes oposições convergentes. Lá como aqui alguns acadêmicos de

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carreira voltam-se como pesquisadores a um conhecimento mais comprometido da “vida e das culturas das classes populares”.

Lá como aqui, educadores populares em algum momento ingressam no mundo acadêmico e, divididos entre as duas margens do “rio da história” (ou “três margens”, segundo João Guimarães Rosa), pendulam (como eu), entre os deveres acadêmicos e os compromissos de militância popular. Lá como aqui alguns educadores logram atravessar as duas margens e transitar entre diferentes territórios a partir e desde o interior de alguma instância da estrutura e da vida universitária. Seus projetos de ação social nascem, florescem e morrem “lá”. Outros armam barracas em uma margem e na outra e atravessam seguidamente as águas do rio que as separam. Outros abandonam a universidade para se dedicarem exclusivamente a alguma causa popular. Conheço algumas pessoas, entre amigos próximos e distantes. Outros, mesmo podendo, ou por não poderem, jamais ingressam na academia como docentes e/ou pesquisadores, mesmo depois de saídos de algum de seus cursos como graduados ou mesmo pós-graduados.

Não é um exagero retornar uma vez mais à pessoa e à vocação de Paulo Freire para desenhar opções e interações a partir do que foi a longa fração mais conhecida da vida de um educador popular. Paulo Freire abandonou antes de começar uma carreira de advogado. Foi professor de “chão de escola” quando jovem, e não de pedagogia, mas de Língua Portuguesa. Trabalhou nove anos no SESI, no Recife, e foi lá que aprendeu os fundamentos do que mais tarde seriam os círculos de cultura. Ingressou na universidade pela porta dos fundos, naqueles tempos chamada: Serviço de Extensão Cultural (pai de nossas sempre heroicas e críticas pro-reitorias de extensão universitária, a quem em geral toca o que sobra dos recursos financeiros de quase todas as nossas universidades, justamente porque elas saltam dos muros da universidade para as obscuras periferias. Justamente porque elas tratam de colocar em prática junto ao povo, o que em cenários mais científicos e curricularmente relevantes, se estuda em teoria, ou através de anticépticas “pesquisas de campo” (a começar pelas minhas). Depois das “quarenta horas de Angicos” (cinquenta anos em 2013), ele e sua equipes estavam em vias de iniciar uma grande “campanha nacional de alfabetização” no Brasil, quando o 31 de março colocou tanques nas ruas e militantes do povo e educadores na cadeia.

O exílio o manteve anos a fio junto a experiências de educação popular, e o diálogo então com povos e intelectuais africanos foi muito marcante em sua vida. De volta ao Brasil Paulo ingressou na UNICAMP e por anos fomos “companheiros de trabalho” (e de livros e viagens). Suas recordações da vida acadêmica em Campinas foram poucas e pobres. O que não aconteceu quando começou a lecionar na PUC de São Paulo. Lá, à distância de uma universidade “de ponta”, ele pode enfim mergulhar em algo com que sempre sonhou: a associação entre a vida

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de educador popular e a do professor universitário. No entanto, até o fim de sua vida, sua atividade como secretário de educação do município de São Paulo e como criador do MOVA-São Paulo. Mais do que tudo, as incontáveis viagens que fez, sobretudo quando para viajava estar junto a experiências de movimentos populares, foram sempre a face mais motivada e rememorada em sua vida.

Fechemos este breve intervalo em que viajamos entre duas margens não de um rio, mas de um oceano, com uma última citação de Introdução aos estudos culturais. Será emblemático que o ano evocado no parágrafo abaixo é justamente: 1964. Será significativo que as mesmas artimanhas de que tenhamos que lançar mão se repitam no país que por anos a fio colonizou o mundo e se reconhecia com o seu centro culturalmente mais civilizado. Com o que franceses e alemães nunca concordaram. E vários povos tribais de todo o mundo também.

O estabelecimento do CCCS se fará lentamente, Expresso por Hoggart em uma conferência de 1964, o projeto do Centro é claro. Ele faz apelo explícito à herança de Leavis. Quer utilizar os métodos e os instrumentos da crítica textual e literária, deslocando sua aplicação das obras clássicas e legítimas para os produtos da cultura de massa e para o universo das práticas culturais populares. Mas, mesmo vinculado à universidade, o Centro está desde o início marcado pela marginalidade institucional vivida pela geração dos pais fundadores. Os recursos financeiros da equipe são tão limitados que Hoggart precisa solicitar o mecenato da editora Penguin para alguns investimentos e para a contratação de Stuart Hall, que o sucederá em 1968. (2006: 56)

Esta e outras passagens do livro que nos acompanha são mais do que eloquentes em demonstrar, com dados e fatos, que uma posição sempre liminar e pauperizada dos projetos de ação social desde e através da academia foram, e provavelmente seguem sendo em quase todos os cenários das mais diferentes nações, mais a regra do que a exceção. E quando chegam a ser a regra, quase sempre algo ela se estabelece de maneira efervescente e efêmera. Que a difícil contratação de ninguém menos do que Stuart Hall (hoje leitura essencial entre antropólogos e educadores multiculturais) nos recorde um outro ingresso problemático, desta vez aqui entre nós. E com esta outra lembrança convoco de novo Paulo Freire. Quando em 1980 ele retorna com a família ao Brasil, de imediato é proposta a sua contratação como “professor titular” da Faculdade de Educação da UNICAMP. Uma então “universidade-ilha em plena ditadura, e que antes de Paulo já havia contratado vários “intelectuais de esquerda”, inclusive alguns retornados de exílio. Ora, em um primeiro momento o seu ingresso é colocado em questão por um parecer do Conselho Universitário. Afinal, na UNICAMP o “doutor” estava naqueles tempos situado no nível MS-3, o exato meio da carreira acadêmica. E Paulo estava sendo proposto para o nível MS-6, o nível

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acadêmico do “professor titular”, situado acima do “professor adjunto” e do “professor livre-docente”. Um novo parecer é solicitado ao professor (MS-6) Rubem Alves. Baseado no repetido fato de que outros docentes foram contratados no último patamar da hierarquia docente da UNICAMP, desde que atestado o seu “notório saber”, Rubem Alves redige um notável parecer. Ele corajosamente defende que não cabe à UNICAMP avaliar se o “professor Paulo Freire” (um “não-doutor acadêmico”, não esquecer) deve ou não ingressar em seus quadros como “professor titular”. Caberia a Paulo Freire avaliar se a Universidade Estadual de Campinas seria digna de receber em seu quadro de docentes uma pessoa como ele. Sua contratação foi aprovada por unanimidade em uma reunião seguinte do mesmo Conselho Universitário.

Ora, de toda esta longa viagem, desejo me aproximar de uma opinião que para alguns poderá parecer “coisa do passado”. Entretanto, a meu ver não é e estamos longe disto. Justamente porque agora, mais do que antes, tanto a educação popular quando a pesquisa participante vivem, em-e-entre as suas diferentes alternativas de realização, talvez o momento de maiores dilemas de identidade e vocação. Vivas e ativas em toda a América Latina, estas invenções inovadoras e mesmo revolucionárias de trabalho “junto ao povo” – com ele, a seu serviço e não mais para ele a para servir-se dele, imagino – correm a meu ver dois perigo imediatos e graves.

O primeiro: o virem a ser colocadas mais do que nunca à margem de estruturas e instituições capazes de acolher suas teorias e práticas e capaz de se constituírem com o “chão de suas práticas”. O segundo: em direção oposta, virem a ser – como aconteceu antes com tantas e tão reiteradas iniciativas antes radicais e, depois, progressivamente digeríveis inclusive por agências do mundo dos poderes e símbolos do mercado de capital.

Não temo a primeira ameaça. Ao contrário, defendi sempre que a educação popular, a pesquisa participante e também outras alternativas de ações sociais vocacionadas a processos de empoderamento popular humanizador, como a teologia da libertação e suas derivadas, assim como, e substantivamente, as próprias unidades e movimentos populares de organização e frente de lutas, surgem, articulam-se, crescem e evoluem em contextos de ideias, projetos e ações situados sempre à margem das estruturas oficiais e/ou empresariais de gestão do poder. Inclusive e principalmente do poder simbólico, campo de presença e processo da própria educação.

Se pudermos por um momento retornar ao pensamento antes lembrado aqui de Victor Turner, ousarei lembrar que justamente face às estruturas estruturadas (Bourdieu) de que a universidade é um bom exemplo, a educação popular e a pesquisa participante não apenas surgem, mas florescem como uma das alternativas contestatórias do estabelecido, bem típicas de uma communitas. Ou

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seja, surgem como algo novo, renovador, contestador e questionador. Algo frente ao que tanto um poder público, como uma secretaria municipal de educação, quando uma instituição governamental de ensino, pesquisa e extensão, como uma universidade, podem atuar de três maneiras: 1ª. ilegitimando e/ou buscando esvaziar ou mesmo destruir o novo; 2ª; acolhendo-o e o incorporando em algum espaço liminar tolerável, em uma área qualquer de fronteira entre a academia e “o resto do mundo”; 3ª. incorporando-o a alguma de suas esferas de estrutura legítima, através de uma apressada ou progressiva colonização domesticadora de suas ideias, teorias, propostas e práticas originais, para enfim atribuir a algo tornado legítimo, o status de um representante a mais da ordem de uma academia, de uma sociedade ou mesmo de uma nação.

Assim invés de estranhar que em porta alguma de nossas faculdades de educação existam sequer pequenas placas com estas duas palavras: “educação popular”, prefiro acreditar que o que torna fecundas e confiáveis nossas experiências de ação social e de busca participativa de conhecimento sobre a dimensão popular da vida social, que justamente constituem a substância da educação popular e da pesquisa participante, é a sua exata liminaridade em círculos acadêmicos e em territórios culturais “de alto nível”. Existir entre espaços de exclusão e em fronteiras liminares, é exatamente o que torna as vocações de trabalho social de teor político que nos aproximam neste Encontro e fora dele. Estamos aqui porque permanece em nós, ativa, uma energia inaugural, assim como uma vocação de presença e pertença que muito tem variado ao longo cinco décadas, mas que preserva íntegro, acredito, a substância de sua esperança original. Que esta palavra entre a poesia e a fé não pareça aqui algo ingênuo e indevido. Pois o que resta a nós, depois de tanta luta e tantas perdas, senão a certeza de que esperançosamente não apenas ainda cremo no eu acreditamos, mas ainda atuamos como agimos porque temos a esperança de que cada gesto nosso carrega – como entre as mãos de Paulo Freire e tantas e tantos outros que já se foram, tem um valor de testemunho de presente e um teor de confiança não no “que virá”, mas do que junto àqueles a quem nos colocamos a serviço, saberemos ainda um dia construir. Estivéssemos, como educadores populares, entre os círculos da academia, e talvez já tivéssemos passado da esfera das teorias vigentes para as que fazem parte da história da educação.

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5.Andando em boa e difícil companhia

Dizer que a participação direta, a ingerência dos grupos populares no processo da pesquisa altera a “pureza” dos resultados implica na defesa da redução daqueles grupos a puros objetos da ação pesquisadora de, em conseqüência, os únicos sujeitos são os pesquisadores profissionais. Na perspectiva libertadora em me situo, pelo contrário, a pesquisa, como ato de conhecimento, tem como sujeitos cognoscentes, de um lado, os pesquisadores profissionais;

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de outro os grupos populares e, como objeto a ser desvelado, a realidade concreta.

Paulo Freire

Anotação liminar

Paulo e Boaventura foram pessoas com quem convivi. Paulo por quase uma década, Boaventura, até agora por menos de uma semana.

Antes de conhecê-lo e tê-lo como amigo e companheiro, fui um leitor dos primeiros trabalhos de Paulo Freire. Eu era então um jovem estudante de psicologia e já uma pessoa envolvida com os movimentos sociais e a educação popular. De volta de seu exílio Paulo Freire foi trabalhar na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. Nos encontramos, partilhamos aulas, encontros e viagens. Convivemos fecundos anos, e mais do que o educador criador de ideias que permanecem vivas e ativas entre nós, tantos anos depois, guardo de Paulo a imagem e a memória de uma cuja vida de todos os dias traduzia bem o melhor de suas ideias ditas ou escritas.

Li muito do que Boaventura de Souza Santos escreveu. Nós nos cruzamos entre a pressa dos dias e as multidões de dois Fóruns Sociais Mundiais em Porto Alegre. Mas somente anos depois viemos a compartir momentos de trabalho e instante de fraterna e inesperada amizade. Foi durante os inesquecíveis dias de uma “Conferência ARNA, em Cartagena de Índias, na Colômbia. Durante uma semana nos reunimos, pessoas vindas desde a Índia à Argentina, para pensarmos a ação social e o lugar do que chamamos de pesquisa-ação-participativa nela.

Comparti com Boaventura uma solene mesa redonda e mais alguns momentos em que, como bem menos pessoas diante de nós e mais pessoas ao redor de um círculo, pudemos compartir tanto ideias quanto esperanças.

Este escrito é posterior a quando Paulo nos havia deixado, e é muito anterior a quando Boaventura e eu pensávamos juntos como o mundo deverá ser, caminhando pelas ruas tortuosas e encantadoras de Cartagena de Índias, na frente do Mar Caribe.

Como um começo de conversa

Teremos percebido a sutil inteligência com que Paulo Freire realiza o deslocamento da relação sujeito-objeto na construção do conhecimento? Para mim esta pequena passagem que escolhi como epígrafe deste escrito é um dos momentos de criação mais fecunda da alternativa participante no exercício da pesquisa. Ele se coloca desde um ponto de vista diferente dos praticados pela ciência da norma culta. Vejamos como. Ele não “coloca” como sujeitos de criação

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e de decisão de projetos de conhecimento de uma realidade social os investigadores de competência acadêmica e/ou científica e, como objetos da pesquisa as pessoas situadas “do outro lado”, isto é, aquelas e aqueles através de cujas informações dadas em respostas a questionários ou entrevistas uma suposta realidade social pode ser conhecida.

Ele convida para o lado dos sujeitos da pesquisa todas as pessoas de algum modo envolvidas em um processo comum, solidário, de construção de novos conhecimentos sobre o “real”, e deixa como objeto do conhecimento – logo, da investigação – apenas este próprio “real”. A realidade social de um modo de vida, de uma condição peculiar de sujeito social (como as mulheres moradoras na Restinga, em Porto Alegre) a ser investigada para ser um pouco ou bem mais conhecida, no seu todo (“as condições sociais da vida cotidiana aqui”) ou em uma parte delimitada (“a situação atual de saúde e alimentação das crianças daqui”).

Uma nova e inovadora interação na construção social do conhecimento humano sobre a realidade da vida é estabelecida. De um lado está um nós de sujeito ampliado: eles e nós, pessoas de conhecimento em busca de novos saberes através da prática da pesquisa. De outro lado está a realidade social, objeto da ser conhecido por nós que a compartimos e que diferencialmente a vivemos, cada um a seu tempo, cada um a seu modo. E é esta diferença de modos pessoais e culturais de ser, de viver, de sentir e de pensar, onde antes a ciência “neutra” constituía uma desigualdade, o que torna possível o diálogo científico. Um diálogo não mais à procura da verdade e, menos ainda, de uma verdade absoluta. Um diálogo frágil e confiável, múltiplo e, portanto, capaz de chegar a alguma unidade. Uma interlocução contínua, se possível (e temos que descobrir como fazê-la possível) em busca de sentidos e de significados partilháveis. Novos e confiáveis significados na interpretação solidária de uma realidade de vida social. Significados que justamente por não serem, de um modo definitivo, cientificamente objetivos, podem ser objetivamente compartidos e levados a um trabalho pedagógico cuja proposta não é a de apenas descrever, compreender e contemplar um uma fração da realidade da vida, mas é a de interpreta-la para aprender a saber como transforma-la.

Mesmo antes de uma decisão política de uma “perspectiva libertadora”, paira uma questão humana. Não somos todas e todos, “de um lado ou do outro”, seres humanos dotados de capacidades diferenciais, mas não necessariamente desiguais de sentir, de pensar, de fazer perguntas e de buscar inteligentemente as respostas? Não são “eles”, o “nós” pessoal e coletivo das mulheres e dos homens que “são daqui”, que “vieram para aqui”, “que vivem aqui” e que a seu modo e segundo os seus estilos de vida, sentem, pensam e criam sistemas culturais de sentimento-pensamento sobre “como se vive aqui”? Então em nome de que princípio epistemológico (sempre pretensamente neutro, sempre socialmente

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motivado) ou de que decisão de poder científico, em um momento de produção de conhecimento sobre “como se vive aqui e o que determina a maneira como aqui se vive assim”, os que “são de fora” se constituem como sujeitos, na mesma medida em que pré-estabelecem como objetos da pesquisa e do conhecimento, os que “são daqui e vivem aqui”?

Tem mais. Não é através “deles” – da percepção que possuem e que nos comunicam na interação da pesquisa – que uma realidade comunitária vai ser conhecida através de uma pesquisa? Não são eles os detentores primários e primeiros do saber e do sentir através dos quais um conhecimento-sobre-a-realidade-social pretende ser obtido cientificamente? Então não seriam eles os portadores do conhecimento original e essencial para a construção deste próprio saber? Perguntas na aparência fácil, mas de uma difícil resposta clara e convincente até hoje. E por muito tempo. E para sempre, quem sabe?

Desde os antigos escritos e manifestos dos movimentos de cultura popular dos anos sessenta, temos solidariamente defendido a ideia de que as peculiaridades de/entre culturas, entre pessoas e entre povos não traduzem maneiras desiguais e hierárquicas de ser, de viver e de pensar. Algo que até hoje algumas pessoas distribuem em uma escala que vai “deles”, os selvagens, os primitivos, os populares, até “nós”, os civilizados, os eruditos e os praticantes de um modo de vida e de uma cultura “superiores”. A quem? A que?

Assim foi que, formado e treinado em diferentes momentos e situações para ser ora um rigoroso psicólogo praticante de pesquisas experimentais, objetivas e quantitativas, ora um educador e antropólogo praticante de estilos de pesquisas de campo pessoais e qualitativas, eu aprendi o que raramente encontro em livros que defendem uma ou a outra das duas margens de um mesmo rio. Ainda que você escolha caminhar todo o tempo por uma delas, nunca deixe de observar o que se passa na outra Dialogue sempre com os que estão “lá”. Vá aprender e praticar com eles – mas não exatamente como eles, se for o caso – quando isto criticamente lhe parecer adequado.

E assim foi que tendo sido também treinado durante longos anos para ser um confiável investigador acadêmico, coordenador de programas de pós-graduação e orientador de doutorandos, e para ousar participar também de experiências de pesquisa entre professores e professoras de escolas da rede pública, entre participantes de movimentos sociais e militantes de movimentos populares, aprendi o que uma vez mais raramente encontro em algum livro. Aprendi que o que me apresentam como um sistema de pesquisa é uma escolha entre outras e só faz sentido se colocado no diálogo com as outras escolhas. Aprendi que também aqui uma escolha teórica (o que pensar? Dentro de que fundamentos e articulações de conceitos pensar? Dentro de que sistema ou entre que sistemas pensar? metodológica (de que maneira pensar? Como criar modos e meio de tornar

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consistente e sistemática a minha busca de conhecimento através de um modo de pensar? Que passos seguir?) e político-pedagógica (com quem, para quem e em nome do que pensar e buscar conhecimentos através de pesquisas? Desde que lugar social pensar e a que projeto de pessoa, sociedade, vida e mundo pensar?) é sempre relativa e sempre aperfeiçoável. Nunca é definitiva (até quando vai durar o “construtivismo”? O que virá, ou está vindo, ou já veio por aí, ao lado dele ou depois dele?) e é algo que serve não para me dar a ilusória confiança de quem acha que tendo encontrado um modelo de praticar ciência-e-pesquisa prático e bem fundamentado, pode fechar-se nele e praticá-lo sem vivê-lo como um caminho único na busca pessoal ou solidária de conhecimento através da ciência. Pois aqui como em toda a parte, um caminho só presta se desaguar em outros e, bem sabemos (ou desconfiamos) tal como no belo conto de João Guimarães Rosa, o rio das ciências humanas pode ter até mesmo um “terceira margem”.

Aprendi a fazer as minhas escolhas. Aprendi a respeitar as outras, mesmo quando não concordo com elas. Às vezes, principalmente por isso mesmo. Descobri que onde todo o mundo está pensando a mesma coisa é sinal de que ninguém deve estar pensando coisa alguma. Descobri que quando nos obrigamos a caminhar por um mesmo caminho para chegarmos a um mesmo lugar, não chegamos a parte alguma. Gosto de imaginar tanto a ciência como a educação como uma dessas praças de nossas cidades. Uma praça onde nos reunimos vindos de várias ruas, chegados por vários rumos. E de onde saímos e voltamos para onde viemos, ou para um novo lugar, através da escolha de uma entre as várias ruas que chegam e saem da praça. Se não me engano era Karl Popper quem dizia algo mais ou menos assim: “a ciência avança quando erra”. Claro, quando ela sempre acerta ou pensa que está sempre acertando, ela se fecha em seus acertos e eles se tornam os seus grandes erros. Pois todo o afeto que não transforma e não se transforma em algo para além de si mesmo, perde a sua força e o seu sentido. Do mesmo modo como as ideias e os sistemas de ideias ou de processos confiáveis de busca de novas ideias - isto é, de pesquisa, científica ou não – que consagra o lugar social desde onde fala e que se fecha na reiteração de si-mesmo, acaba dedicando a maior parte da energia de seus praticantes em reforçar as descobertas e as ideias já realizadas, ao invés de ir em busca de novas. Ao invés de colocar-se com humildade diante de outras escolhas de pesquisa e de pensamento, para perguntar por quais caminhos e em nome de que fundamentos e aventuras da mente eles andaram por onde andaram e descobriram o que encontraram.

Vi no rosto de alguns amigos doutores algumas caras fechadas, quando disse a eles que considerava a pesquisa participante e suas variáveis um fascinante e muito sério sinal de novos tempos. Uma alternativa que tornaria bastante mais fecundo e verdadeiro o nosso trabalho acadêmico, a começar por

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dar um toque de crítica radical ao mal estar que vivemos sempre (a não ser quem pensa em títulos e convive com certezas, ao invés de pensar nos outros e conviver com as suas dúvidas) dentro da Universidade, quando de anos e anos de um tão intenso trabalho de leituras, de armação de projetos e de pesquisas de laboratório ou de campo, “produzimos” um brilhante artigo que alguns companheiros de oficio leem, entre curiosos e desconfiados, e que as gerações futuras tratarão de esquecer.

Mas vi no espelho de olhos amigos caras mais fechadas ainda, quando disse (e foram muitas vezes) a pessoas militantes da educação popular e da pesquisa participante que não acredito que ambas sejam modelos definitivos de coisa alguma. Pois se forem a consagração estabilizante e exclusiva de si-mesmas elas estarão negando o projeto a quem sonham servir. Quando disse de público que a meu ver a pesquisa participante é uma excelente nova alternativa múltipla de abertura epistemológica, metodológica, pedagógica e política. É um complexo sistema de pensamentos e de procedimentos que entra no círculo de diálogos com outras, já existentes nele ou ainda por vir. Mas que ela não é um novo modelo de trabalho científico que possa pretender por de lado os outros, pelo simples fato de tornar mais humanos os seus propósitos e mais assumidamente políticos os seus processos e o destino de seu trabalho.

Nunca consegui encontrar na pesquisa participante um sistema de prática científica que viesse a substituir os outros. Pois tal como “os outros”, ela só serve se puder ser, através do campo de sua escolha, uma abertura ao diálogo com o outro21. A simples maneira como de uma ideia original surgida já, segundo alguns, de duas vertentes, acabou por produzir várias alternativas diferentes de trabalho participativo, com vários nomes e várias ênfases, bem demonstra que a proposta da pesquisa participante nunca foi a de um paradigma exclusivo ou de uma nova teoria científica com o poder de se sobrepor a outras e ocupar de maneira definitiva (isso existe?) o seu lugar. Ao contrário, quando a encontramos mais criativa e mais consequente, é quando ela está associada a outros modelos de teoria e metodologia da pesquisa científica. Aliás, a sua forma “pura” é tão raramente encontrável que eu chego mesmo a perguntar se ela existe.

E foi assim que ao longo destes anos todos – leia-se algo entre 1962 e 2002, com quarenta anos de vivências, portanto – eu me vi praticando caminhos ora de um lado, ora do outro das duas margens de um rio de três. Ou mais? Fiz minhas escolhas e não sei se para sempre. Às vezes espero que sim, às vezes desejo que não. Assim, passei do aprendiz de psicólogo experimental “hard” a um antropólogo social “light”. Passei de usuário rigoroso de métodos científicos objetivo-

21 . Em algum dia do ano de 1985 o Instituto Del Hombre do Uruguai realizou uma experiência de diálogo entre eu Orlando Fals Borda. Ali se poderá ver de maneira clara como duas posições bastante desiguais em alguns pontos, sobre um mesmo tema, podem ser colocadas em diálogo. No capítulo X desde livro transcrevo a minha contribuição e dou indicações precisas sobre a de Orlando.

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quantitativos a um praticante, com outros estilos de rigor, de modos interativo-qualitativos de pesquisa. Divido-me até hoje entre o professor-pesquisador-orientador da universidade e o participante de equipes de trabalhos de alguma “causa popular” ou de práticas de educação escolar geradas por administrações públicas de vocação participativa e popular.

Em um mesmo ano, como este 2002 que nos reúne, oriento mestrandos e doutorandos em suas pesquisas acadêmicas e, não raro, bastante solitárias. (Pois alguns pós-graduandos extremados chegam mesmo a acreditar que o mundo é uma imensa comunidade universal que começa neles e acaba no orientador). Realizo eu mesmo pesquisas teóricas (como as que me custaram algumas passagens deste capítulo e de outros deste livro) e pesquisas de campo com o rigor e o saber da ciência que eu pratico, a antropologia social, e da academia de onde não consegui e nem desejo sair por agora. Algumas são trabalhos de uma deliciosa e desconfiável solidão. Mas mesmo nelas a presença de pessoas e de comunidades de pessoas com quem estou sempre em diálogo é mais do que evidente. Outras foram e seguem sendo experiências de partilha de pesquisas envolvendo uma ampla equipe de pessoas da universidade, de estudantes graduandos a professores pós-doutores22.

Sigo trabalhando, ora como pesquisador direto, ora como assessor de pesquisas, seja em situações como as do/no Rio Grande do Sul, que em maioria

22 . Entre 1992 e 1994 participei da coordenação e de projetos de pesquisas de uma ampla proposta de estudos teóricos e “de campo” através do Aldebarã – observatório a olho nu e do meu Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. Durante três anos estudantes, professores e equipes de estudantes e professores investigaram temas ligados ao que chamamos uma “lógica da natureza” e uma “ética do ambiente” junto a comunidades de pescadores do litoral e a comunidades de lavradores do interior do Estado de São Paulo. O projeto homem, saber e natureza foi generosamente aprovado pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo e resultou em cerca de 24 relatórios finais de diferentes estilos de trabalho de pesquisa, em maioria centrados em modelos qualitativos da antropologia e da sociologia. Ao longo de um inesquecível tempo de pesquisas e de diálogos, algumas (uns) participantes passaram de graduandos a mestrandos, de mestrando a mestres e de doutorandos a doutores. Alguns trabalhos foram publicados ou se converteram em dissertações ou teses acadêmicas. De minha parte convivi com duas estudantes de antropologia dias de pesquisa de campo na Serra da Mantiqueira. Iara e Lílian trabalharam visões de mulheres a respeito da vida cotidiana e das relações sociedade-ambiente. Ingressaram ambas em estrados e são hoje professoras e mestres, uma em antropologia e a outra em sociologia. De minha pesquisa resultou um livro publicado pela Editora da UNICAMP em 1999 e que veio a ter o nome de o afeto da terra. Os acontecimentos interativos e metodológicos de nossa pesquisa deverão compor o volume três desta série de livros.

De outra parte, estou agora participando de um projeto solidário-acadêmico semelhante. Somos no presente momento uma equipe de professores e estudantes de graduação e pós-graduação reunidos no Laboratório de educação e políticas ambientais, do Departamento de Ciências Florestais da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, da Universidade de São Paulo. Estamos elaborando um amplo projeto de educação ambiental envolvendo atividades interligadas e interativas (esperamos) de: pesquisa teórica, pesquisa documental, pesquisa de campo, cursos de especialização, cursos comunitários, oficinas de aprendizagem de práticas ambientais, elaboração de material didático para escolas da rede pública de São Paulo. Haverá momentos de pesquisa “pura”, de pesquisa “aplicada”, de pesquisa “participante”. Há uma preocupação muito grande de que a proposta seja, no seu todo, um campo de diálogo por pelo menos quatro anos. Um diálogo igualitário não apenas entre nós, educandos e de educadores da universidade, mas entre nós e as diferentes categorias de atores sociais comunitários em nome de quem a própria proposta está sendo elaborada. O fato de que nosso projeto venha a ser um entre outros de um imenso e rigoroso programa de pesquisas envolvendo mais de 500 investigadores, sobretudo das áreas das ciências da vida (entre a biologia e a ecologia) não invalida uma abordagem mais aberta, mais assumidamente difusa e, portanto, mais imprevisível. O grande projeto que nos abriga tem por nome: BIOTA – Programa de Pesquisas sobre a Biodiversidade no Estado de São Paulo.

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compõem o tema dos capítulos seguintes, seja junto a algum tipo de movimento popular. Transito da pesquisa acadêmica à pesquisa participante sem receios de ser confiável e sem medo de ser feliz. Sei muito bem quais os limites, quais os propósitos e quais os alcances de cada uma das experiências de investigação de que participo. Em geral isto é dito com clareza na introdução de um relatório de investigação e, assim, o leitor atento fica sabendo quando lê um tipo de texto ou um outro.

De igual maneira transito há anos de momentos quantitativos a momentos qualitativos em pesquisas sequentes ou dentro de uma mesma pesquisa. Sejam elas “participantes” ou não, há vezes em que tudo o que se pretende saber e compreender pode vir de vivências diretas (observação participante), do depoimento dito face-a-face por um tipo de alguém, como as mulheres mães de alunos da escola do bairro (entrevista aberta ou fechada, história de vida) ou de um censo necessário (a quantificação de dados básicos a respeito de condições de vida ou mesmo da opinião que pessoas têm sobre isto ou aquilo).

Há situações em que uma investigação lida com a “qualidade do que se vive e fala”. Há momentos em que ela lida com a “quantidade de quem vive e diz”. Há momentos em que a primeira alternativa se completa com os recursos da segunda. Há momentos em que a relação é oposta, e o foco sobre a primeira alternativa se complementa da contribuição da segunda. Assim é que na prática, mais além da oposição “quantitativo” versus “qualitativo”, podemos lidar também com diferentes estilos “quali-quanti”. Pierre Bourdieu, o notável etnólogo-sociólogo francês que acaba de nos deixar, deixou antes importantes trabalhos em que associa as duas abordagens para produzir a “sua leitura de uma realidade”. Recomendo a leitura atenta de seus trabalhos de pesquisa de campo ou de pesquisa documental, alguns deles publicados em português.

Em minha experiência lidei com pelos menos as quatro seguintes alternativas de trabalho científico: a) pesquisas quanti/quanti – aquelas em que todo o procedimento metodológico está fundado sobre modelos experimentais ou de observação sistemática de uma dimensão do real, através de procedimentos quantitativos e de processamentos estatísticos (descritivos e/ou inferenciais) dos dados; b) pesquisa quanti/quali – aquelas em que os procedimentos quantitativos e os dados derivados são constitutivos das análises feitas, sendo complementados com dados de teor qualitativo; d) pesquisas quali-quanti – aquelas em que, ao contrário, os procedimentos e os dados essenciais são francamente qualitativos e se complementam (não raro em anexos ao texto) de dados quantitativos; d) pesquisas quali-quali – aquelas em que a totalidade dos procedimentos e dos dados de campo ou de documentos é de natureza qualitativa23.

23 . Uma das pesquisas de campo de que tenho melhores recordações observou desde os primeiros momentos até a elaboração final dos relatórios, que desaguaram em dois livros, a articulação entre procedimentos quantitativos (leitura e cópia de censos de IBGE e outras instituições, aplicação de questionários) e qualitativos

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Breve intervalo: uma experiência nos confins de Goiás

Posso dar um bom exemplo, e como ele recobre uma das experiências mais difíceis e mais complexas de pesquisa participante, dentre as que conheço e as que vivi, ele pode ter um duplo valor. Falo do que vivi junto a agentes de pastoral e agentes de base da Diocese de Goiás. Do final dos anos sessenta até bem entrados os oitenta, ela foi um dos cenários de vida e de militância cristã onde então se vivia uma das resistências mais bem realizadas aos exercícios de controle do Governo Militar. A Diocese de Goiás fazia parte de um círculo de frentes cristãs de compromisso com causas populares desde onde nasceram as comunidades eclesiais de base e a própria teologia da libertação. Pois bem, antes mesmo de se falar em orçamento participativo e em pesquisa participante, era prática constante ali a realização de assembleias anuais, onde todas e todos juntos debatiam as questões sociais, pensavam juntos formas de ação pastoral e decretavam os rumos da “Diocese”. Participei de várias delas e aprendi ali, nas manhãs e tardes quentes da Cidade de Goiás, na beira do rio Vermelho (onde muito anos antes o bandeirante Anhanguera enganou os indígenas Goya em busca de ouro) mais do que em quase os livros sobre cidadania e participação.

Uma das práticas comuns então era a da realização de pequenas e grandes pesquisas, ora bem locais, ora envolvendo todo o território da Diocese, cerca de treze municípios goianos. Pois bem, em 1984 resolvemos realizar uma ampla investigação sobre “as condições de vida do povo de Goiás”24. Entre assessores convidados (eu era um deles), agentes de pastoral e representantes, homens e mulheres (mais mulheres do que homens) das várias comunidades rurais e das “pontas de rua” (nome dado às periferias das cidades da região), levantamos a proposta, discutimos os termos, definimos os procedimentos e, passo a passo,

(observação participante direta, entrevistas individuais ou grupais, registros de situações de trabalho ou rituais). Em ambos os casos eu acredito que trabalho com uma escolha de tipo quali-quanti. Em a partilha da vida (Editora Cabral, Taubaté, 1995) os dados censitários e outros dados de coleta quantitativa são tão pouco relevantes que acabaram ocupando apenas algumas notas de rodapé. Todo o procedimento do olhar, do desejo, do pensamento e da metodologia é abertamente qualitativo. E eu procedo, a partir deles, a uma interpretação de modos de ser, de viver e de sentir-e-pensar bem dentro dos estilos costumeiros de antropologia social. Mas já em o trabalho de saber – cultura camponesa e escola rural (Editora Sulina, Porto Alegre, 1999 – edição revisitada) os enfoques e os dados de análise e de interpretação se equivalem. Ao lado do recurso a censos estatístico, uma equipe de moças do lugar (então estudantes de magistério e todas elas professoras hoje em dia) aplicou questionários cujos dados foram, em alguns momentos, tão importantes quanto os de minhas entrevistas e observações antropológicas diretas.

24 . Diz assim o segundo parágrafo do caderno 1 da série de oito cadernos populares que tomaram o nome de: condições de vida e situação de trabalho do Povo de Goiás, publicados como relatório de nossa investigação participativa: Já em 1983, durante a nossa Avaliação Diocesana, constatávamos a necessidade de conhecer melhor a realidade socioeconômica, política e cultural-religiosa da nossa Diocesana Já aí se falou na possibilidade de uma nova “Pesquisa Diocesana”, como havíamos feito em 1970 . (página 3). De fato, já em 1970 uma pesquisa semi-participante, pioneira, havia sido realizada. Vivi a ventura de haver participado na assessoria de ambas. O livro dois desta série de estudos sobre experiências diversas da pesquisa deverá descrever cm detalhes e apresentar longas passagens de pesquisas participantes em Goiás. Uma delas, a mais ampla e relevante, é justamente esta de que falo agora.

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estabelecemos uma amostragem e elaboramos um amplo questionário sobre a realidade e as visões pessoais da realidade da vida cotidiana de pessoas e de famílias “do campo e da cidade”.

Lembro-me de haver sido “voto vencido” e de democraticamente haver aceitado um modelo de investigação bem distante do que sonhara. Minha sugestão era a de uma pesquisa bastante mais subjetiva e mais qualitativa. Os próprios agentes de pastoral elaborariam textos de vivências e de memórias. Pessoas individuais ou em grupos seriam entrevistadas de maneira aberta e quem quisesse escreveria depoimentos sobre sua vida. Histórias de vida seriam então um material precioso. Foi argumentado (e eu acho que no fim das contas eles tinham razão) que para uma pesquisa de amplo fôlego, em que se queria “cobrir” a diferenciada realidade da vida de inúmeras comunidades populares de vários municípios goianos “entre o rio Vermelho e o Araguaia”, melhor seria uma pesquisa mais uni-dirigida, mais uniformemente controlável e com preceitos de objetividade e de controle de dados mais confiáveis. Assim foi.

As perguntas dos pouco mais de mil questionários que uma grande equipe de pessoas treinadas aplicou, eram algumas abertas e, outras, fechadas. Tabulados os questionários, um pouco “a mão”, entre duplas de investigadores locais, um pouco com a ajuda de computadores (mas naquele tempo confiávamos mais em nós no que eles... continuo confiando) depois de muitos dias de trabalho, ordenamos os dados obtidos. Nossos “dados de campo” foram confrontados com “dados censitários” obtidos sobretudo junto ao IBGE. Quando todo o “material da pesquisa” ficou ordenado e pronto para a “análise dos dados”, tínhamos em mãos e diante dos olhos: a) tabelas e gráficos de dados censitários do IBGE e, eventualmente, de outras instituições; b) tabelas e gráficos dos dados quantificáveis de nossos questionários: d) repertórios organizados de “falas” e de “depoimentos” pessoais. Voltamos a nos reunir mais de uma vez. Discutimos os nossos “achados” e encarregamos a uma pequena equipe dirigida por mim a elaboração de um documento final. Ele tomou a forma de oito pequenos cadernos, um para cada tema da pesquisa (de vida religiosa e comunitária a educação) e exemplares foram devolvidos a pessoas e a comunidades participantes, os primeiros destinatários do trabalho feito a várias mãos.

O tratamento dos “itens fechados” deu ensejo a inúmeros quadros e gráficos sobre os quais procedemos a uma “análise quantitativa”. O tratamento dos “itens abertos” deu ensejo a uma leitura mais subjetiva e mais passível de interpretações, não menos relevantes e rigorosas por não serem expressas como porcentagens. Na verdade, cada caderno tinha a sua contribuição enriquecida justamente pela integração entre os dois “momentos”, o quantitativo e o qualitativo ao longo de todo o percurso de nossas reflexões.

Eis um exemplo entre tantos.

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Fiquemos por aqui sobre o assunto. O que resta e pensar alto e por escrito daqui em diante levará as minhas confidências e observações a um outro plano de reflexão e de profundidade das ideias. E como me sinto pouco preparado para seguir pensando tão “por conta própria”, convoquei algumas pessoas com quem aprendi no passado e sigo aprendendo hoje em dia a que nos acompanhem.

De Paulo e Boaventura - da ciência moderna à ciência pós-moderna e dela ao saber emancipador

Tudo o que se classifica depende do alcance do olhar de quem classifica. Podemos pensar através de ver a “olho nu”, como um microscópio, um binóculo ou um poderoso telescópio. Em um capítulo que nos espera adiante procuro estender a ideias de pesquisa para fora do alcance do campo das ciências legítimas como, por exemplo, aquelas que dividem cenários e departamentos nas universidades. Assim, ao invés de limitar o olhar a ver a pesquisa científica, considero todas as modalidades de pensamento e de ações criadoras de conhecimento, sentido e significado como formas legítimas de investigação.

De uma maneira semelhante quero pensar aqui uma classificação-de-oficina a respeito dos novos paradigmas ou dos paradigmas emergentes com um olhar um pouco mais ousado e abrangente do que aquele que limita a percepção do que está acontecendo de novo na aventura humana do pensar e do criar sistemas de compreensão sistemática da realidade ao puro e simples campo das ciências. Faço isto para situar Boaventura de Souza Santos, que nos espera algumas linhas abaixo.

Reconheço uma tendência de teoria e de prática de pesquisa dos paradigmas emergentes no interior de um campo definidamente científico e, de maneira mais especializada, dentro da esfera das ciências da natureza, de que a Física e a Biologia seriam os exemplos mais visíveis. Ilya Prigogine, cujos livros são citados com frequência entre nós, seria um bom porta-voz desta tendência. A palavra transdisciplinar possui na fronteira entre a ciência e a educação, aqui, uma força especial25.

Reconheço a seguir talvez a tendência mais divulgada e mais discutida. Ela tem um pé na tradição inovadora das ciências da natureza e, o outro, no deságio da interação entre a ciência ocidental e as tradições de ciência, filosofia e espiritualidade orientais. De maneira algo diversa do que acontece no caso da primeira tendência, existe aqui o reconhecimento de que não é apenas de dentro da longa crise dos sistemas ocidentais de pensamento científico, e dos desafios de integração entre campos de ciências, ao lado de uma reconstrução epistemológica

25 . Aqui no Brasil um dos maiores difusores do pensamento desta tendência é o matemático e educador Ubiratan D’Ambrósio. Ele tem vários artigos em diferentes livros e revistas, e um livro de autor: Transdisciplinaridade, publicado em 1997 pela Palas Atena, de São Paulo.

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radical - onde uma certa subjetivação das relações teóricas e operativas da investigação possui um lugar de importância – que o surto inovador dos novos paradigmas deve ser buscado. Ele estaria também em uma inevitável abertura dos modelos oficiais-ocidentais ao diálogo com sistemas de imaginário e de pensamento das tradições orientais e, no limite, dos povos indígenas. Fritjov Capra é o difusor mais reconhecido desta tendência. Mais próximo dos estudos sobre a pessoa humana, a vertente californiana da Psicologia Transpessoal deve ser lembrada26.

Uma terceira tendência é a que nos toca de mais perto aqui. Paulo Freire estaria situado nela. Edgar Morin seria um seu representante mais moderado e Boaventura de Souza Santos um representante mais crítico. Ela se deferência das duas antecedentes por estar mais associada a uma compreensão totalizante do mundo, da vida, da pessoa, da sociedade e, nela, da educação, a partir das ciências sociais. Veremos logo adiante Boaventura de Souza Santos invertendo o eixo clássico das relações, e defendendo a ideia de que no adventos dos paradigmas emergentes são as ciências da natureza que toma das sociais os fundamento de sua lógica e de suas futuras orientações de pesquisa. De outra parte, sobretudo em A crítica da razão indolente – contra o desperdício da experiência e em Pela mão de Alice – o social e o político na pós-modernidade, Boaventura irá pensar a novidade nos modelos de prática da ciência em direção a uma humanização de teor político da atividade do pensamento científico27.

Finalmente, e ainda que isto possa causar estranhamento em algumas pessoas, podemos reconhecer uma tendência situada na fronteira entre as ciências acadêmicas (como a Astronomia), os sistemas reconhecidos pelos seus praticantes como alternativas científico-filosóficas (como a Astronomia) e sistemas religiosos e/ou espirituais de compreensão da realidade, de significação da vida e de orientação ética do das ações humanas.

O que têm a dizer e a inovar, em síntese, sobretudo as duas tendências centrais dos paradigmas emergentes? Em que as suas ideias de crítica aos sistemas “tradicionais” de pensamento e as suas propostas podem aportar algo ao trabalho do educador que também investiga28?

26 . Alguns dos seus livros, inclusive com artigos de Capra estão traduzidos para o Português. Assim, recomendo a leitura de duas coletâneas organizadas por Roger Walsh e Fraces Vaughan, ambas editadas pela Cultrix, de São Paulo. Um dos livros é: Caminhos além do Ego – dimensões transpessoais em Psicologia , de 1997. O outro é: Caminhos além do Ego – uma visão transpessoal, de 1999. Um dos mais conhecidos interlocutores desta linha é Stanislav Grof. Ele tem em Português o livro: O Jogo Cósmico –explorações das fronteiras da consciência humana, publicado pela Editora Atheneu, de São Paulo, em 1999. Existe também uma “linha francesa”, ou “franco-brasileira” (os termos são meus) representada no Brasil pelo pessoal reunido na UNIPAZ – Universidade da Paz, de Brasília, coo Pierre Weil e Roberto Crema.

27 . Ambos os livros foram publicados pela Cortez Editora, de São Paulo. O primeiro em 1995 e, o segundo, em 2001.

28 . Um dos trabalhos mais completos e mais oportunos sobre este tema, com o seu foco sobre a educação, é o livro de Maria Cândida Moraes: O paradigma educacional emergente, publicado pela Papirus de Campinas em 1997. Tenho comigo a 6ª edição, de 2000. Sugiro que se preste atenção à maneira como ela trás o

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Começo com um pequeno recuo ao passado próximo. Outros virão. Algum tempo antes de começarem a ser tão difundidas palavras como holismo e transdisciplinaridade, com todo o conjunto das diferentes ideias e dos diferentes paradigmas científicos emergentes, um padre e paleontólogo francês – Pierre Teilhard de Chardin – colocava-se ao lado dos físicos outros cientistas de seu tempo, para pensar a singularidade da subjetividade humana na construção do conhecimento.

Subjetivamente, para começar, somos inevitavelmente centro de perspectiva em relação a nós mesmos. Terá sido ingenuidade, provavelmente necessária, da Ciência nascente, imaginar que podia observar os fenômenos em si, como se eles se desenrolassem independentemente de nós mesmos. Instintivamente físicos e naturalistas operaram de início como se o seu olhar mergulhasse do alto sobre um Mundo que a sua consciência podia penetrar sem por ele ser marcada ou sem modifica-lo. Começam agora a se dar conta de que as suas mais objetivas observações estão todas impregnadas de convenções escolhidas de partida e também de formas ou hábitos de pensamento desenvolvidos no decorrer da evolução histórica da Pesquisa. Tendo chegado ao ponto extremo de suas análises, eles já não sabem se a estrutura que atingiram é a essência da Matéria que estudam ou antes o reflexo do seu próprio pensamento. E, presos na própria armadilha, simultaneamente se dão conta de que, por contragolpe de suas descobertas, eles mesmos se encontram envolvidos, corpo e alma, na rede de relações que pretendiam lançar de fora sobre as coisas. Metamorfismo e endomorfismo, diria um geólogo. Objeto e sujeito se unem e se transformam mutuamente no ato do conhecimento. Quer queira, quer não, a partir de então o Homem se reencontra e se olha a si mesmo em tudo o que vê29

Isto com relação às ciências da natureza, aos campos do saber científico dirigidos às estrelas, aos átomos e às florestas30. O que pensar das ciências da pessoas humana e das sociedades e culturas que criamos para viver uma experiência única de espécie de ser vivo. E o que deverá nos espantar entre as linhas e páginas que nos esperam adiante, é ideia de que a tal ponto esta

pensamento de Paulo Freire para um tipo de discussão onde outros vários autores o deixam na sombra do esquecimento.

29 . Está na página 26 de O fenômeno humano, o livro mais traduzido e mais conhecido de Teilhard de Chardin. Em Português está provavelmente uma das melhores traduções, a de José Luiz Archanjo, que acrescentou ao texto uma série enorme e muito proveitosa de notas e observações. O livro é da Cultrix, de São Paulo e a edição que tenho em mãos é a de 1995.

30 . Não sei onde, porque me foi dito “de orelha”, em um Encontro, Leon Bloy lembra mais ou menos a mesma coisa de uma maneira mais poética: se podemos ver a Via Láctea, é porque de alguma maneira nós a temos no coração.

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subjetividade singular da mente humana é fundadora de toda a compreensão sobre todas as coisas, que talvez estejamos vivendo um momento de mudança radical em todos os planos do saber: as ciências humanas e as sociais tendem daqui em diante a tornar-se o modelo de teoria e pesquisa das ciências naturais. Avancemos um pouco mais nisto.

Ora, um dos cientistas mais lembrados quase se fala sobre os paradigmas emergentes, é Ilya Prigogine, um bioquímico laureado com o Prêmio Nobel em sua área de estudos. Com o peso de toda a sua longa experiência consagrada como um rigoroso investigador da vida no laboratório, Prigogine veio a somar-se à teia de pensadores e cientistas de todo o mundo animados em colocar sob o olhar crítico as motivações, os caminhos, os propósitos, métodos e trabalho e aplicações práticas de resultados da ciência ocidental hegemônica, aquela mesma a que Boaventura de Souza Santos, nas esqueçamos, chama de ciência moderna. Em um dos momentos mais fortes de seus estudos, escrevendo junto com Isabele Stengers, Ilya Prigogine diz estas palavras:

A ciência clássica, a ciência mítica de um mundo simples e passivo, está prestes a morrer, liquidada não pela crítica filosófica nem pela resignação empirista, mas sim por seu próprio desenvolvimento (...) Julgamos que a ciência hodierna escapa ao mito newtoniano por haver concluído teoricamente pela impossibilidade de reduzir a natureza à simplicidade oculta de uma realidade governada por leis universais. A ciência de hoje não pode mais dar-se ao direito de negar a pertinência e o interesse de outros pontos de vista e, em particular, de recusar compreender os das ciências humanas, da filosofia e da arte31.

Por toda a parte, para onde quer que nos virássemos, eu e meus companheiros nos vimos de um momento para o outro cercados de palavras e de brados de alerta a respeito do esgotamento dos padrões de pensamentos e de criação científica através da pesquisa, segundos os modelos cientificistas/quantitativistas que nos haviam acompanhado até então. Desde o começo dos anos sessenta aprendemos com pessoas aqui do Brasil, da América Latina e de outros quadrantes do mundo, a realizar uma severa crítica a respeito dos fundamentos de teoria e empiria dos estilos dominantes de criação de conhecimentos por meio da investigação científica. Não queríamos mais nos enganar. Sabíamos bem da boa inocência ou da má consciência contidas nos princípios de neutralidade-objetividade de ciências afinal orientandas segundo interesses e para utilidades econômicas, políticas e de outros círculos sociais bem

31. Está na página 41 do livro: A nova aliança – metamorfose da ciência, publicado em 1984 pela Editora da Universidade de Brasília.

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distantes de um valor humano que tomávamos como o sentido de todo o nosso trabalho.

Em Ilya Prigogine e em outros severos críticos da ciência moderna, encontramos uma análise que nos ajudou a rever o nosso próprio olhar e a partir em busca de uma outra orientação para nossos estudos e nossas pesquisas. Mas em vários destes autores faltava uma espécie de crítica da crítica da ciência. Isto é, toda a avaliação do esgotamento de modelos consagrados, vigentes e hegemônicos de nossas ciências, limitava-se a uma crítica epistemológica. Traduzo: uma crítica severa dos fundamentos lógicos do pensamento científico em si-mesmo, tal como vimos em momentos do capítulo anterior.

No entanto, o surgimento de novos modelos de “educação do olhar” e de elaboração de compreensões a respeito da realidade não deve obrigar quem investiga a um descompromisso com a seriedade de sua ações e com o rigor de suas estratégias de pensamento científico. Veremos o tempo aqui e em outros momentos deste livro, que justamente ao descobrirmos da presença inevitável de sujeitos e de intersubjetividades de um lado e do outro do trabalho de construção de novos saberes através do trabalho de alguma ciência, ou de uma conexão entre várias, nos veremos também obrigados a estabelecer critérios de confiabilidade em todo o procedimento de investigação. O limite do conhecimento humano é ilimitado. As possibilidades de fazer ciência não estão – bem o sabemos agora – no se chegar a verdades absolutas, definitivas e não transformáveis, mas o se abrir campo a novas perguntas. Seus propósitos devem ser os de compreender melhor integrações da realidade de modo a poder formular mais a fundo e de maneira mais interativa e complexa (Edgar Morin) os seus próprios problemas. Seus desafios ao real através da realidade subjetiva de mentes e corações humanos em diálogo com a mundo, a vida e entre eles. O mesmo Karl Popper, que em algum dos seus escritos lembra que a ciência avança quando erra, e quando se volta com um sentido mais e mais aguçado e critico sobre si mesma, movida com humildade e perseverança e através do reconhecimento de suas falhas, de seus “buracos brancos”, em uma outra passagem lembrará isto.

A ciência jamais persegue o objetivo ilusório de tornar finais ou mesmo prováveis suas respostas. Ela avança, antes, rumo a um objetivo remoto e, não obstante, atingível: o de sempre descobrir problemas novos, mais profundos e mais gerais, e de sujeitar suas respostas, sempre provisórias, a testes sempre renovados e sempre mais rigorosos32.

Voltemos ao lugar de onde saímos. Também no campo do humano estamos empenhados agora em realizarmos juntos, ao redor de todo o Mundo, a nossa 32. Está na página 308 do livro: Conhecimento Objetivo, publicado em 1975, Itatiaia/EDUSP, de São Paulo.

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outra “revolução de Copérnico”. Um exemplo bem próximo é quando através de experiências inovadoras de cultura popular, constituímos este “popular” não apenas como o “objeto de nossos estudos”, mas como o “sujeito do destino de nossos/deles estudos e ações”. Então é quando, começamos a praticar a crítica política da crítica epistemológica. Descobrimos que não basta corrigir desvios teóricos da ciência para que ela reencontre a sua vocação. Era também necessário recolocar o todo do conhecimento criado por mentes humanas através da ciência e de várias outras modalidades de pensamento e compreensão de nós mesmos, da vida e do mundo em que vivemos, dentro do campo da vida social e das relações de interesse e de poder que a constituem, que a legitimam e que, portanto, estabelecem os critérios de verdade e de utilidade do próprio conhecimento científico.

Boaventura de Souza Santos, anos mais tarde, veio a clarear bastante esta escolha crítica. Ao lado da crítica científica da ciência, ele procede a uma crítica social da crítica e isto representa um avanço muito grande. Deixo que ele nos fale.

A situação de bifurcação, ou seja, o ponto crítico em que a mínima flutuação de energia Pode conduzir a um novo estado, representa a potencialidade do sistema em ser atraído para um novo estado de menor entropia. Deste modo a irreversibilidade no nos sistemas abertos significa que estes são produtos da sua história.A importância desta teoria está na nova concepção da matéria e da natureza que propõe, uma concepção dificilmente compaginável com a que herdamos da física clássica. Em vez da eternidade, história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetração, a espontaneidade e a auto-organização; em vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez, a criatividade e o acidente33.

Nas páginas de onde recolhi o parágrafo acima, Boaventura de Souza Santos, um cientista social português com experiência de vivência e pes1quisa junto a comunidades populares no Brasil, está relacionando alguns pontos de crítica à “ciência clássica”, e está preparando o terreno para falar a respeito de um “paradigma emergente” no capítulo seguinte, seis páginas e meia adiante. Ele apresenta ideias trazidas de Ilya Prigogine, um físico químico e, por enquanto, é a respeito das ciências naturais que reflete. Se o acompanho neste voo de viagem que nos parece afastar por um momento de nossas questões, tenho algumas razões. Uma delas pode parecer surpreendente para quem não esteja ainda familiarizado com nosso companheiro de viagem, e com outros pensadores e militantes sociais e políticos da Europa e das três Américas que se avizinham dele, 33 . Boaventura de Souza Santos, Um discurso sobre a ciência, 2001 (12ª edição) Edições Afrontamento, Porto,

página 28.

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de algum modo, na construção de ideias sobre a vocação das ciências e de suas pesquisas. Mas desde já antecipo que o ponto que na verdade deverá concentrar mais a nossa atenção aqui é o que aparece do meio para o fim desta parte desse capítulo. Será quanto, então, em um outro livro ele fará a crítica do lugar social desde onde a ciência pesquisa, pensa e fala, para então propor ideias que a meu ver tornam tão mais atual a alternativa da pesquisa participante.

Vejamos. Ao contrário do que se acreditou durante muito tempo, nos dias de agora não são as ciências sociais as que procuram imitar as teorias duras e supostamente inabaláveis (mas sempre provisórias) e os métodos dirigidos à criação objetiva de certezas, hoje cada vez mais reconhecidas como incertas e igualmente efêmeras.

A tendência é oposta, e desde o reconhecimento de que não há “coisa objetivamente vista” que não tenha sido de um modo ou de outro experimentada, assim como não existe experiência que, ao ser realizada por um ou uma equipe de sujeitos humanos não contenha a própria subjetividade como um princípio científico não fortuito e inoportuno, mas fundador e criador da própria possibilidade do conhecimento objetivo, as ciências do universo e da vida aprendem a pensar e a pensar-se cada vez mais como as da pessoa, da sociedade e da cultura. Não lembro agora em que passagem de O Tao da Física, Fritjof Capra cita a John Wheeler afirmando que o envolvimento pessoal do sujeito observador no experimento que realiza é o dado de maior importância na teoria quântica. E isto o levou a sugerir a substituição da palavra “observador”, no contexto do trabalho científico do físico, pela palavra: “participante” (sic)34. Não seria estranho lembrarmos também que ao correr por fora dos cânones cientificistas nas ciências sociais, os pesquisadores de campo criadores da moderna antropologia social cunham a expressão: “observação participante”. Alguns anos mais tarde, entre educadores, antropólogos e outros cientistas sociais, as pessoas envolvidas com o estarem participando de maneira ativa e direta nos processos sociais de teor político dos acontecimentos de que eram, também, investigadores, foram descobrindo que a passagem do “observador” ao “participante” não poderia deixar de ser feita. E é bom lembrar que antes de haver surgido entre nós a pesquisa participante, já muitas e muitos de nós estávamos às voltas com vários estilos de participações pesquisantes, aqui e do outro lado do Atlântico. Ora, a respeito do que nos veio dizer Boaventura de Souza Santos há ainda algo mais. Vejamos:

Em resumo, à medida que as ciências naturais se aproximam das ciências sociais estas aproximam-se das humanidades. O sujeito que a ciência moderna lançara na diáspora do conhecimento

34 . Devo esta lembrança a uma de minhas alunas de um curso de “leituras da Natureza, no Mestrado em Antropologia Social” no segundo semestre de 2001. Foi Maria Claudia Nogueira quem lembrou a citação de Capra.

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irracional, regressa investido da tarefa de fazer erguer sobre si uma nova ordem científica35.

E uma nova ordem mundial, dizíamos nós “naqueles tempos”, ou seja, tudo o que, aqui, pode ser pensando como entre os anos sessenta e os oitenta. E essas são duas outras razões irmãs-gêmeas – pois acreditamos que não se pode pensar de outra maneira sem se conceber também um viver em um outro mundo, aqui e em algum tempo, não tão distante, se possível. Que desde os primeiros parágrafos do que escrevo a suposição fundamentada de Boaventura de Souza Santos recorde os termos em que as propostas de pesquisa aqui apresentadas e descritas foram definidas por pessoas como Paulo Freire e Orlando Fals Borda. Uma pesquisa que sirva a ciência que se abra como um diálogo que sirva ao encontro entre pessoas humanas que se reúnem através de suas diferenças para criarem saberes que façam definhar e desaparecer de seus mundos as desigualdades que até então e até agora tornam suspeitamente legítimo chamar a algumas pessoas “povo” e, a outras: “intelectual”.

Há mais duas outras razões. Em uma delas Boaventura se une aos que parecem questionar o “fim da história”, seja como um fio de processos, atos, sentidos e produtos da ação social realizada em um ou ente algumas culturas, seja como um modo de criar conhecimentos científicos confiáveis a respeito de nós mesmos: quem somos, de onde viemos, o que fazemos e criamos, para onde parecemos estar tendendo. Mas diferente dos que defendem em termos sociais a presença da história como fato, como feito e como fala entre pessoas e entre grupos humanos, nosso autor trás depoimentos de cientistas da natureza para lembrar aos cientistas da sociedade globalizada que os físicos e os biólogos dos novos paradigmas descobrem a história presente nos mistérios da vida e do universo. Pois do átomo e seus componentes ao universo e seus seres, o que se passa em uma mínima partícula infinitesimal é um ”conhecimento” não inteiramente previsível e que, quando se explica, é por causa e através de sua história. Uma mínima e instantânea história. Mas uma história, enfim. Se o mesmo acontece com o curso de um elétron e com a partícula de uma célula, porque imaginar que conosco não haverá de ser e seguir sendo assim? Até mesmo porque, como seres senhores de gestos reflexivos e não apenas reflexos, somos mis imprevisíveis do que eles. E onde há liberdade e imprevisão, bem sabemos que há acontecimentos e, logo, há história, histórias, estórias. A vida cotidiana e o fio de sentidos dados a ela e ao que ela tece através de nós.

Finalmente, Boaventura recorda como as próprias ciências da natureza completam e invertem as regras com Émile Durkheim nos indicava considerar os fatos sociais como coisas. Pois agora dizem os físicos e os biólogos, não há

35 . Boaventura de Souza Santos, op. Cit. Pg. 43.

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“coisas” que exista ou que se conheçam a não ser como, dentro e através de campos de relações onde elas existem e ganham as usas razões de ser. Entre a física atômica, a ecologia, a psicologia e a antropologia, tudo o que há para ser experimentado e compreendido são interações, integrações e indeterminações. E bem mais entre nós do que entre os físicos Onde há coisas, há causas, onde há causas há relações, onde há relações há sentidos, onde há sentidos há finalidades, onde há finalidades há história. E pela porta da frente dos laboratórios a “causa final” de Aristóteles retorna à ciências com mais força de esclarecimento do que as “causas materiais” do mecanicismo. Os budistas também sabiam disso alguns séculos antes de Sócrates e de Cristo. Eis um universo todo de novo invertido, isto é, recolocado afinal em uma posição mais compreensível ao olhar e ao pensamento de pessoas tal como seres humanos são agora. E se assim será com as ciências da vida e da matéria – pelo menos entre os que creem no destino próximo delas nos termos aqui sugeridos por Boaventura de Souza Santos, entre rigor e poesia - o que dizer das ciências que a cada dia recriamos para nos pensar a nós mesmos e aos mundos sociais que geramos?

Não virá longe o dia em que a física das partículas nos fale do jogo entre as partículas, ou a biologia nos fale do teatro molecular ou a astrofísica do texto celestial, ou ainda a química da biografia das reacções químicas. Cada uma destas analogias desvela uma ponta do mundo. A nudez total, que será sempre a de quem se vê no que vê, resultará das configurações de analogias que soubermos imaginar: afinal, o jogo pressupõe um palco, um palco exercita-se como um texto e o texto é a autobiografia do seu autor. Jogo, palco, texto ou biografia, o mundo é comunicação e por isso a lógica existencial da ciência pós-moderna é promover a “situação comunicativa”, tal como Habermas a concebe36.

Pelo menos por agora podemos deixar na espera estas ideias tão certeiras e tão surpreendentes. Confesso que até ler Boaventura e outros de seu tempo, não havia ousado pensar por aí. Não sei ainda se estou de acordo com todas as conclusões a que ele chega, mas quero, antes de finalmente trazer ao nosso diálogo a reflexão mais próxima da pesquisa participante, deixar aqui por escrito a síntese delas.

Bem a contramão dos que preferem dar ao paradigma emergente nomes mais pós-modernos e mais complexos, entre “holísticos” e “transdisciplinares” – nomes d cujas faces sérias e atuais não devemos desconfiar de modo algum - Boaventura de Souza Santos escolhe: paradigma de um conhecimento prudente par uma vida decente37. O longo nome quer traduzir as duas dimensões de 36 . Boaventura dos Santos, op. Cit. Pg. 4537 . Está na página 37 de um discurso sobre as ciências. As minhas reflexões seguintes tomam as de

Boaventura entre as páginas 37 e 58.

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qualquer vocação do saber científico originado de qualquer modalidade de investigação sobre qualquer dimensão do real. Que ele seja uma forma de conhecimento que atribua um verdadeiro sentido humano à revolução científica que bate às nossas portas. Pois ele será o conhecimento de uma transformação de modelos e sistemas de pensamento bem diferente da que ocorreu no século XVI e, com as ciências sociais, no século XIX. Pois ele acontece dentro de uma sociedade universal já revolucionada pelos diferentes saberes da própria ciência. Assim sendo, não se trata mais de uma “revolução científica” mas de uma escala de revolução também social através do que se transforma no universo das ciências.

A responsabilidade social de teor político do paradigma emergente faz com que um conhecimento prudente e reconstruído, passo a passo, dentro e ao longo de novos sistemas de integração solidária entre ciências situadas nos mais diversos campos do saber; de interação entre as ciências e outros campos humanos do conhecimento, inclusive os das tradições orientais, as dos povos tribais e as do senso comum, e de uma abertura à indeterminação e ao reconhecimento da fragilidade e do efêmero de qualquer construção de sistemas também científicos de compreensão do real, deságue em ele se reconhecer como responsável pela qualidade da vida social, por uma vida decente entre todas as pessoas e todos os povos.

Daí que.

1º. Todo o conhecimento científico-natural é científico-social. Não tem mais sentido a separação arbitrária entre ciências da natureza, da

vida, da pessoa da sociedade. Todas são momentos de integração de complexos transdisciplinares de conhecimentos. De saberes e sistemas interativos de saberes que apenas operam em planos específicos de um real, ele mesmo a ser tomado como uma totalidade indivisa de estruturas, processos e integrações. As ciências da natureza aprendem a compreender a lógica do universo segundo padrões de referência não muito diferentes daqueles com que outras percebem e interpretam o fenômeno da vida, da pessoa humana e da vida social. Guardadas as características próprias dos conteúdos dos processos, há uma mesma complexa e multivariada lógica de realização de acontecimentos que atravessa as estrelas, as flores e as pessoas humanas.

Eu me encantei com uma frase que por me haver chegado em uma “citação de citação”, não pode ser citada aqui de maneira precisa. Sei apenas que seu autor é George Wald, e ele diz isto:

A matéria atingiu o ponto em que começa a se conhecer.

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O homem é a maneira de uma estrela saber sobre estrelas.

E na mesma medida em que as diferentes ciências interagem e se aproximam da lógica e dos dilemas das ciências sociais, estas se aproximam das humanidades. Pois o sujeito humano que a ciência moderna (a que estamos tratando de superar agora com os novos paradigmas) “lançara na diáspora do conhecimento irracional”, retorna de lá com a missão de reconstruir a partir de si mesmo e de sua condição toda uma nova ordem científica. E todo um outro novo mundo possível.

A concepção humanística das ciências sociais enquanto agente catalizador da progressiva fusão das ciências naturais e ciências sociais coloca a pessoa, enquanto autor e sujeito do mundo, no centro do conhecimento, mas, ao contrário das humanidades tradicionais, coloca o que hoje designamos por natureza no centro da pessoa. Não há natureza humana porque toda natureza é humana. É pois necessário descobrir categorias de inteligibilidade globais, conceitos quentes que derretam as fronteiras m que a ciência moderna dividiu e encerrou a humanidade38.

2º. Todo o conhecimento é local e total

Onde a ciência moderna vê planos hierarquizados do/dentro do real, o paradigma emergente percebe planos integrados e interativos de um mesmo todo. Assim como as diferenças entre os campos de conhecimento deixam de ser departamentalizados para serem desafiados a um diálogo entre diferenças de não-desigualdades, assim também as distinções entre o local e o total deixam de existir.

Todo o conhecimento referente a uma pessoa torna toda a espécie humana mais transparente para si-mesma. Todo o conhecimento a respeito de como se vive em uma periferia de Porto Alegre nos ajuda a compreender: “aquelas pessoas e famílias daquela comunidade”, as comunidades de periferia de Porto Alegre, a vida e o pensamento sobre a vida em Porto Alegre, idem para o Rio Grande do Sul, para o Brasil, a América Latina, o “Terceiro Mundo”, o “mundo atual”, ao mistério da humanidade. Dependendo da coragem de compreensão com que nos lançamos a investigar e buscar compreender o que “descobrimos do real”,

38 . Op. Cit. Página 45.

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podemos estender o alcance de nosso olhar, de nosso coração (um excelente instrumento de interpretação da vida e de nós mesmos) e de nossa mente.

Um outro autor poderia fertilizar esta compreensão, inclusive por trazer a ela a palavra “dialética”, no seu mais puro sentido marxiano. Ele nos lembrará que uma totalidade, um todo real e, portanto, de algum modo compreensível pela mente humana, não é todas as partes, ou todos os fatos, mas a integração de/entre eles no todo da totalidade que mais a sua interconexão do que a soma de cada um cria e conforma. Seu nome é Karel Kosic e ele diz isto em seu: Dialética do concreto39.

Totalidade não significa todos os fatos. Totalidade significa: realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes de fatos, conjuntos de fatos) pode ser racionalmente compreendido. Acumular todos os fatos não significa, ainda, a totalidade. Os fatos são conhecimento de realidade se são compreendidos como fatos de um todo dialético – isto é, se são átomos imutáveis, indivisíveis e indemonstráveis, de cuja reunião a realidade sai reconstituída – se são entendidos como partes estruturais do todo.

Assim, as pequenas parcelas locais de algo que procuramos compreender

em uma rua à volta de nossa escola, como o que pensam as pessoas sobre a vida que vivem, está conectado com fatos naturais-sociais de seu próprio âmbito (aquelas pessoas, aquela rua, aquele bairro) e de círculos cada vez mais abrangentes de âmbitos de interações criadoras de totalidades e recriadas pela dinâmica das totalidades de que participam. Em direção oposta e convergente, todo o conhecimento que de algum modo torna mais compreensível a origem do universo, o mistério da vida, a lógica dos mitos humanos, a estrutura de controle operada pelo G-8 sobre todos os povos do mundo na “sociedade neoliberal globalizada”, serve a traçarmos planos mais agudos e profundos de compreensão de quem somos e como vivemos em uma comunidade de periferia em Porto Alegre.

Os ambientalistas cunharam a fórmula já bastante conhecida: pensar globalmente, agir localmente. Para não serem confundidos com os operadores da “nova ordem econômica globalizada”, alguns preferem trocar o globalmente por planetariamente. De qualquer maneira a fórmula tradicional tem sido repensada assim: pensar e agir local e globalmente. O que de algum modo se aproxima da proposta de Boaventura de Souza Santos.

3º. Todo o conhecimento é autoconhecimento

39 . Publicado em Português pela Paz e Terra, do Rio de Janeiro, em 1976. Está na página 35.

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A ciência moderna consagrou o homem enquanto sujeito epistêmico mas expulsou-o – tal como a Deus – enquanto sujeito empírico. Um conhecimento objectivo, factual e rigoroso não tolerava a interferência dos valores humanos ou religiosos. Foi nesta base que se constituiu a distinção dicotômica sujeito/objecto40.

A separação entre sujeito que pesquisa e objeto pesquisado é uma construção da ciência de uma era. E mesmo nesta era não era um modelo absoluto. De tudo o que Boaventura fala sobre esta questão importa retornar a algo que aqui e ali fui esboçando nas linhas anteriores. Toda a distinção entre diferentes que tende a se tornar uma oposição entre desiguais tendo hoje em dia a ser posta em questão, seja na ciência, seja na educação, seja em uma política humanista de vocação cidadã.

Em nome de uma objetividade que, vimos já mais de uma vez, as próprias ciências exatas tratam de colocar em questão e rever, as ciências sociais de vocação mais mecânica operavam três reduções: a) a separação absoluta entre sujeito de conhecimento o objeto (pessoal ou social) do conhecimento; b) a desconsideração da subjetividade, da interioridade, dos fatores não redutíveis ao comportamento ou aos processos passíveis de manipulação experimental ou de redução do fato ao dado, do dado ao número e do número à fórmula; c) a desqualificação do biográfico e do pessoal (o depoimento pessoal, a história de vida, a história de uma família, de uma comunidade), como um individual universalizável.

É bem isto mesmo o que os novos olhares de nossas ciências procuram revisitar. Vimos que mesmo entre as ciências da vida e do universo, a individualidade, o acontecimento e a história gerada pela sucessão de acontecimentos, a interação quase inter-subjetiva entre elementos, entre partículas, são fatos e são fatores tão relevantes – e em algumas situações até mais – do que a observação controlada e atenta de amplas regularidades objetivas. Temos acompanhado o interesse crescente em estudos que partem de biografias ou de experiências absolutamente pessoais no cotidiano. A importância hoje em dia dada às histórias de vida bem revela a descoberta de que “toda a antropologia é uma biografia” , como costumam dizer, há muito tempo, alguns antropólogos. Uma auto ou uma alter-biografia, ou a interação entre as duas. Vidas que ao se revelarem em sua preciosa pessoalidade, criam cenários de transparência na compreensão mais profunda e mais humanamente inteligível de grupos humanos, de identidades sociais, de modos e escolhas de modos de vida, de ethos de um povo, de uma gente, de uma etnia. Vidas que são, em um número

40 . Op. Cit. Página 50.

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crescente de investigações, as vidas de estudantes e as de professoras, contadas em inúmeros novos artigos e teses.

4º. Todo o conhecimento científico visa constituir-se em senso comum

Uma temerária hipótese, sem a menor dúvida. Mas não outra coisa o que Paulo Freire e quantas e quantos de nós acreditamos pela vida afora. Ela em nada tem a ver com uma “folclorização” do conhecimento humano, a começar pelo científico. Em uma direção, não se trata de desqualificar o saber acadêmico e suas variantes em nome de uma espécie de poli-saber-do-povo, erigido como um conhecimento original, um saber de raízes, logo, o mais legítimo. Este seria o caminho de se sair de um fundamentalismo – o da ciência culta que se erige como o único confiável – para um outro: o de um populismo epistemológico cujos maus frutos são bastante conhecidos. Em uma outra direção, não se trata de uma estratégia de banalização do conhecimento científico para que ele venha a ser “de todos” no seu processo de construção e nos seus produtos de realização.

O caminho é outro. Ele começa na convicção de que tal como o ar, a terra e a água, se o

conhecimento é, mais do que uma conquista de poucos, um bem de todos e para todos, então ele deve ser objeto de toda a partilha possível. Toda a posse privilegiada do dom do saber através da pesquisa destinada à realização da vida e da pessoa humana, é em si mesma arbitrária, injusta e reforçadora da desigualdade entre pessoas, entre grupos humanos e entre povos da Terra. Tão importante quanto saber como criar conhecimentos oportunos e humanizadores, é saber como ampliar o círculo dos seus criadores, dos seus participantes e dos seus beneficiários diretos. Da mesma maneira como tantas e tantos companheiros de destino têm pensado a questão da partilha dos bens da terra através de uma economia solidária tão divergente quanto possível do modelo globalizado e vigente de produção, posse e circulação dos bens da Terra e dos poderes entre os povos, assim também precisamos criar de todas as formas possíveis verdadeiras experiências de ciência solidária, de pedagogia solidária - de que a Pedagogia do Oprimido freireana pode ser um excelente fundamento, ainda hoje - associada a outras práticas sociais solidárias da vida cotidiana e da história humana.

Numa esfera de pensamento muito próxima a de Paulo Freire, Boaventura de Souza Santos lembra que “a ciência moderna produz conhecimentos e desconhecimentos. Se faz do cientista um ignorante especializado, faz do cidadão comum um ignorante generalizado41.

Vocês lembram a oposição “ciência moderna” (a dos paradigmas dualistas, mecanicistas, objetivistas, exclusivistas e excludentes) do sistema hegemônico do

41 . Boaventura de Souza Santos, obra citada, página 55.

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pensar científico versus a “ciência pós-moderna”, a dos paradigmas emergentes em Boaventura? Pois bem, a oposição entre uma e outra a lembrar aqui está no ponto em que a primeira considera como objetivo, verdadeiro e confiável apenas o seu, desqualificando as outras como formas imperfeitas de prática da ciência, ou como sistemas de produção de conhecimento sequer científicas (crenças populares, crendices, repertórios de mitos, etc.). Enquanto a segunda sabe (ou desconfia cada vez mais) que sistema algum de criação social de saberes é em si mesmo confiável. Sabe que a resolução dos grandes problemas do conhecimento e da vida humana virá da prática especializada, isolada e autorreferente de campos restritos da ciência, mas de uma franca abertura em três direções já lembradas linhas acima: a integração transdisciplinar entre campos, tendências, sistemas diferentes de conhecimento científico; a interação fecunda e não hierárquica entre ciências acadêmicas e outros campos e domínios do saber e da sensibilidade humana, da filosofia às artes e delas às místicas e espiritualidades de todos os tempos, de todos os povos; a conexão entre as formas cultas de saber e as múltiplas alternativas do senso comum, de uma comunidade indígena da Amazônia à de uma comunidade de pescadores patrimoniais de São José do Norte (terra gaúcha de minha mãe e minha avó), dela a qualquer comunidade cultural de periferia de Porto Alegre e delas à comunidades de uma das várias categorias de seus educadores: a das professoras e dos professores das escolas da rede pública de educação.

Assim sendo, é o intervalo entre e, não, o lugar único, o cenário dialógico da possibilidade de um novo conhecimento. Ele está na crescente capacidade de humana de criação de pontos de interconexão entre. De interações vividas nas grandes praças públicas de um saber polissêmico, complexo e aberto às diferenças. Praças até onde cheguem e de onde partam as mais diversas ruas e avenidas dos diferentes modos de percepção e de compreensão da pessoa humana, da vida e do universo. E o polo-raiz deste saber interativo e dialógico é o senso-comum. Ele não é somente o “saber do povo”, em um sentido antropológico. Ele é o saber-que-está-em-toda-a-parte. Ele é o conhecimento diretamente brotado da experiência direta da vida e da comunicação entre as pessoas em busca de sentidos e de significados para esta própria experiência.

Ao contrário (da “ciência moderna” – CRB), a ciência pós-moderna sabe que nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma, racional; só a configuração de todas elas é racional. Tenta, pois, dialogar com outras formas de conhecimento deixando-se penetrar por elas, A mais importante de todas é o conhecimento do senso comum, o conhecimento vulgar e prático com que no cotidiano orientamos as nossas acções e damos sentido à nossa vida. A ciência moderna construiu-se contra o senso comum que considerou ilusório e falso. A

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ciência pós-moderna procura reabilitar o senso comum por reconhecer nesta forma de conhecimento algumas virtualidades para enriquecer a nossa relação com o mundo. É certo que o conhecimento do senso comum tende à ser um conhecimento mistificado e mistificador mas, apesar disso e apesar de ser conservador, tem uma dimensão tem uma dimensão utópica e libertadora que pode ser ampliada através do diálogo com o conhecimento científico. Essa dimensão aflora em algumas das características do conhecimento do senso comum42.

As palavras de Boaventura começando em: “é certo que o conhecimento do senso comum ...” são a fala atual de consensos e escritos de Paulo Freire e dos movimentos de cultura popular dos anos sessenta. Poder estabelecer um diálogo entre a nossa ciência erudita e comprometida, com as culturas populares e o seu senso comum, era a própria razão de ser a educação popular que buscávamos criar e por em prática.

Da parte ao todo, da coisa à relação, do lugar do mercado ao da comunidade

Sempre se fala de algum lugar social. Nunca se fala de um local situado fora do mundo da vida cotidiana. Pelo menos nesta vida. Estamos todas e todos em um mesmo mundo e nos falamos, entre nós e outros, dele e de algum lugar situado nele. Este lugar pode ser Porto Alegre, Passo Fundo, São José dos Ausentes, Nova York, Havana ou Jerusalém. Mas pode ser também o lugar sociocultural do mercado de bens, o lugar sociocultural do poder de estado (ou de um estado de poder) ou o lugar sociocultural da comunidade. E quando este falar-desde-um-lugar-social é um dizer de dentro de um “órgão público”, a escolha do sentido do lugar de origem (de que ponto de vista em falo quando pesquiso ou educo como um profissional da “rede pública de educação de Caxias do Sul”) e a escolha do sentido do lugar de destino? Ou seja, a relação crítica: em nome de quem, para quem como destinatário e a serviço de quem eu falo quando investigo uma realidade social como um educador do sistema oficial de educação do Rio Grande do Sul?

Tenho três alternativas. Apresento-as de maneira sumária, sem , sem comentários, e abro caminho para a volta de Boaventura de Souza Santos ao nosso diálogo.

Primeira alternativa: trabalhando em uma instituição do poder de estado (= serviço público) realizo minhas atividades profissionais, nas quais reconheço, ou não, um trabalho pedagógico e científico de teor também político, em nome deste poder de estado. Ele é o destinatário preferencial de minha atividade. Ela se dirige

42 . Op. cit. páginas 55 e 56.

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à qualificação e ao fortalecimento do próprio poder público, como um poder de estado, ou ao fortalecimento de uma opção político-partidária assumida e realizada através, também, do exercício de um trabalho profissional no setor público. Mesmo quando reconheço que a razão de ser de meu partido político de opção deva ser o serviço à sociedade civil e, de maneira mais motivada ainda, às classes populares, é ao próprio partido, de maneira direta, aquele a quem dirijo o motivo e os resultados de meu trabalho.

Casos extremos desta opção podem ser o serviço preferencial ou exclusivo a um partido único associado ao poder de estado, ou a este próprio Estado, tal como aconteceu diversas vezes no passado e segue acontecendo em estados totalitários, teocráticos ou profanos.

Segunda alternativa: trabalhando em uma instituição do poder de estado, realizo as minhas atividades profissionais em nome do mercado de bens e de serviços. Independentemente de uma opção política definida, reconheço uma escolha ideológica destinatária de meu trabalho profissional. Acredito que o mercado do mundo dos negócios concentra hoje em dia o poder de decisões de que o poder público, em qualquer uma de suas esferas (federal, estadual e municipal) e em qualquer um dos seus planos (executivo, legislativo e judiciário) é um emissário. É este mundo do mercado quem deve ser melhorado através de pessoas melhor capacitadas para o exercício de atividades que o promovam, aperfeiçoem e fortaleçam.

Mesmo quando reconheço que o meu trabalho é destinado a pessoas, estudantes da rede pública de educação, ou não, acredito que minha opção de fala é o mercado de bens e de serviços. A ele as pessoas devem ser dirigidas e para ele elas devem ser educadas. O destino social do ser humano na sociedade globalizada não é outro senão o mercado.

Nota: acredito que as pessoas cuja opção é: trabalho para mim mesmo, para ganhar a vida e nada mais, para subir na vida, para meu próprio benefício, e assim por diante, realizam de maneira individualizada e extrema a opção do lugar social do mercado de bens e de serviços. Esta opção de um modo ou de outro realiza a dimensão mais individualizada da lógica do mundo dos negócios.

Terceira alternativa: trabalhando em uma instituição do poder de estado, realizo as minhas atividades profissionais em nome de comunidades da sociedade civil. Em alguns casos a escolha do lugar de destino pode ser mais marcada: comunidades de vida e cultura popular e movimentos populares.

Alternativas combinadas quanto ao lugar social de origem e o lugar social de destino são sempre possíveis e é bastante provável que uma pesquisa feita a pessoal de educação da rede pública de Porto Alegre viesse a apontar isto com

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clareza. Seriam raras as opções do tipo: poder de estado + mercado de bens e serviços, a não ser quando ela quase se dissolve na segunda alternativa sugerida aqui. Esta é, no entanto e de maneira muito crescente, a escolha proclamada de boa das instituições particulares de educação no País. Um simples olhar aos documentos de propaganda – dos out-doors aos volantes de rua – deixa ver como a cada ano mais as universidades se anunciam com uma clara mensagem de mercado em um duplo sentido: a) elas são instituições ágeis e modernas da educação realizada como um negócio entre outros num mundo onde o mercado é a norma e de pleno direito invade e domina os campos de práticas sociais até a pouco de responsabilidade do poder de estado: a educação, a saúde, a previdência social, a segurança pública, os transportes43; b) elas se destinam a capacitar pessoas para o “sucesso na vida”, pensado e vivido como a realização da pessoa no mundo dos negócios através da educação.

Serão bastante mais frequentes as duas alternativas combinadas seguintes: poder de estado + comunidades civis-populares versus comunidades civis-populares + poder de estado. A sutil diferença entre elas está em que na primeira alternativa a destinação do trabalho de educação e pesquisa à comunidade serve a aproxima-las da submissão política (vocação perversa) ou da participação cidadã na partilha do poder de estado, como lugar social de realização da vocação democrática de presença na vida social. Enquanto na segunda o lugar social de uma permanente vocação cidadã é a comunidade e cabe ao poder de estado uma função meramente representativa de um poder que não lhe é próprio em nenhuma dimensão. Mas, convenhamos, este é um assunto político demais para merecer mais espaço do que este em um diálogo sobre alternativas de trabalho de pesquisa social na/através da educação.

Aquilo a que dei até aqui o nome de lugar social de origem de um trabalho qualquer, de uma prática social (como a educação), científica (como a pesquisa associada à educação), filosófica, artística, religiosa, de uma outra dimensão cultural, ou resultante da interação entre as lembradas aqui, divide-se em Boaventura de Souza Santos em três princípios de regulação da vida social: o do mercado, o do estado e o da comunidade. Os dois primeiros são hegemônicos no Mundo Moderno e ora se alternam, ora se enfrentam, ora se aliam como princípios dominantes e colonizadores da vida cotidiana realizada na esfera da comunidade.

43 . Como um bom exercício de pesquisa sugiro a leitura atenta das reportagens que estão sendo publicadas nas revistas nacionais de ampla divulgação (VEJA, Isto É, Exame, Carta Capital, Caros Amigos) tendo a crise da universidade pública e o avanço geométrico das instituições e empresas de educação de nível superior no Brasil. No final de 2001 Carta Capital publicou uma matéria extremamente crítica sobre o assunto, sob o título: diplomados em ganhar dinheiro. Em direção oposta, a Exame de 3 de abril de 2002 publicou como matéria de capa a reportagem: nota alta, cuja manchete diz na página 35: a educação já movimenta 90 bilhões de reais por ano no Brasil e deve ser o setor que mais crescerá no mundo nas próximas duas décadas. Na sociedade do conhecimento, o ensinar e o aprender abrirão uma fronteira de negócios de dimensões inimagináveis. Mas no número de 5 de junho de 2002 Carta Capital retorna com a matéria: mais desigualdade nas universidades, cuja manchete da página 16 anuncia: o aumento de vagas nas instituições particulares agravou a elitização. Enquanto isso, as públicas dividem-se em núcleos privilegiados e bolsões de pobreza.

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E é este último princípio de regulação, o da comunidade, aquele que pode, bem mais do que o princípio do mercado ou o princípio do estado, vir a ser emancipador.

Em meu entender, as representações que a modernidade deixou até agora mais inacabadas e abertas são, no domínio da regulação, o princípio da comunidade e, no domínio da emancipação, a racionalidade estético-expressiva. Dos três princípios de regulação (mercado, Estado e comunidade), o princípio da comunidade foi, nos últimos duzentos anos, o mais negligenciado. E tanto assim foi que acabou por ser quase totalmente absorvido pelos princípios do Estado e do mercado. Mas, também por isso, é o princípio menos obstruído por determinações e, portanto, o mais bem colocado para instaurar uma dialética positiva com o pilar da emancipação44

Colonizada e corroída ao longo dos anos pelos princípios de regulação do poder de estado e dos interesses do mercado, a comunidade, isto é, os espaços da vida e do trabalho ainda não dominados por inteiro pela lógica instrumental das relações regidas pelo poder e pelo interesse do capital, constituem espaços abertos à solidariedade e à participação. Quando Paulo Freire opunha uma educação bancária a uma educação libertadora, ele queria traçar a distância cultural, pedagógica e política entre uma esfera de criação, difusão e controle do saber regido pela lógica instrumental do interesse do mercado e uma outra esfera, regida não por um projeto político-ideológico único (atenção para este ponto!) mas por uma proposta de ruptura com o domínio das ideias e a domestificação dos imaginários através de um re-centrar o lugar do conhecimento legítimo na comunidade popular e no enlace entre o senso comum e uma ciência múltipla e ativamente emancipadora.

Não se tratava então (nos anos da criação da pesquisa participante) e continua não se tratando agora, de mudar somente conteúdos de ensino-aprendizagem e modernizar alguns processos didáticos, alterando apenas a capa pedagógica de algo que tem os pés plantados no chão da política. Um chão complicado, é certo, e eu mesmo não gosto muito dele. Mas, afinal, um lugar onde ficam as raízes da vida social. Pois bem, o desafio está em trabalhar, passo a passo, no sentido de deslocar o lugar de criação do conhecimento e das trocas de sentido e de valor da vida através de saberes, de significados, de sensibilidades e de sociabilidades, do domínio de regulação do estado centrado em si-mesmo ou do mercado centrado no interesse utilitário, para o domínio alternativo da comunidade. Da vida comunal, das múltiplas e interconectáveis teias de grupos humanos não colonizados pela lógica e pelos desejos do mundo dos negócios.

44 . Boaventura de Souza Santos, a crítica da razão indolente – contra o desperdício da experiência, op. cit. pg. 75.

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Eis o chão da pesquisa participante. Por isto eu lembrei mais acima que ela não se confunde com uma teoria científica única (nem o materialismo histórico e nem outra qualquer, tomadas em sua exclusividade excludente), com um método de trabalho. A experiência de pesquisas que entre tateios, enganos e acertos aqui e ali temos experimentado por toda a parte, em incontáveis cenários de enlace entre comunidades populares e educadores comprometidos no Brasil, na América Latina e em vários outros recantos do Mundo, procura ser uma aproximação a esta mudança de paradigma científico. Uma mudança de modos de pensar e saber através da qual a educação popular e a pesquisa participante podem ser consideradas como uma fecunda contribuição do Terceiro Mundo aos paradigmas emergentes da ciência pós-moderna anunciada, entre outros tantos, por Boaventura de Souza Santos.

E com boas razões, porque poucos outros sistemas de pensamento entre nós têm colocado desde os anos sessenta, como a educação popular e a pesquisa participante, uma ênfase tão persistente: a) no retorno a diálogo com o senso comum das culturas populares e das comunidades de excluídos; b) na ruptura com os velhos modos de pensar, de educar e de investigar a realidade fundados na lógica utilitária do mercado; c) no deslocamento do lugar social da busca de sentidos e de projetos de construção da história do poder totalitário e do mundo dos negócios para a sociedade civil e, nela, para a esfera das comunidades e dos movimentos populares, d) na construção de modelos de educação e de pesquisa fundados no diálogo e na dissolução da hierarquia de competentes desiguais em nome da interação igualitária entre co-criadores diferentes.

Coube à ciência moderna uma prolongada luta contra monopólios estabelecidos de interpretação, da família tradicional ao estado autoritário, do partido único à teocracia religiosa. No entanto, eis chegado o momento em que a ciência e a tecnologia se erigem como a ideologia progressista de nosso tempo. Ao fazerem isto elas ocupam o lugar de . interesse do mercado e cada vez mais parecem sugerir que o desmantelamento das ideologias utópicas dos tempos passados (mas não tanto) deixa lugar apenas à utopia possível a ser instaurada em todo o mundo quando todo o planeta Terra estiver colonizado pelo princípio do mercado45. Um mercado globalizado, excludente e organicamente desigual ao qual devem se subordinar os estados de todas as nações e em que devem subalternamente desaguar as comunidades de todos os povos.

Ao lado de ser um instrumento de valor local, as experiências de pesquisa participante ou de participação da pesquisa em atividades de conhecimento de comunidades populares como um instrumento de trabalho pedagógico são também um esforço a mais em um processo de emancipação muito importante. A criação e o fortalecimento, em direção à autonomia e à consolidação de redes e teias sociais 45 . Gosto muito da análise feita a este respeito por Jurgen Habermas em seu escrito já citado aqui: técnica e

ciência enquanto ideologia. já citado aqui.

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de confronto solidário frente ao poder de colonização do mundo do mercado, de múltiplas comunidades interpretativas. É em nome delas que as pesquisas descritas e debatidas aqui têm uma razão de ser. Em nome do esforço para criar e multiplicar grupos humanos dedicados a aprender a pensar por conta própria, e a transformar em ações de uma lenta, difícil, mas desesperadamente inevitável emancipação comunitária o que tem sido até aqui o predomínio da hegemonia monótona do mercado. Por complicado que possa parecer a primeira vista, eis como Boaventura de Souza Santos fala sobre isto:

Assim se explica que o conhecimento emancipatório pós-moderno tenha de enfrentar desde o início dois poderosos inimigos: os monopólios de interpretação e a renúncia à interpretação. O combate a ambos baseia-se na mesma estratégia: a proliferação de comunidades interpretativas. Esta estratégia, embora guiada pelo conhecimento teórico local, não é um artefacto cognitivo: as comunidades interpretativas são comunidades políticas. São aquilo que chamei neo-comunidades, territorialidades locais-globais e temporalidades imediatas-diferidas que englobam o conhecimento e a vida, a interacção e o trabalho, o consenso e o conflito, a intersubjetividade e a dominação, e cujo desabrochar emancipatório consiste numa interminável trajectória do colonialismo para a solidariedade própria do conhecimento-emancipação46

Livros lidos, consultados e sugeridos (relação incompleta, imperfeita, repetida e fora de ordem)

BRANDÃO, Carlos RodriguesA canção das sete cores – educando para a paz2003, Editora Contexto, São Paulo

BUBER, Martin Eu e Tu1985, Editora Centauro, São Paulo

CHAUÍ, Marilena de SouzaSaudação a Boaventura de Souza Direitos Humanos, democracia e desenvolvimento2014, Editora Cortez de São Paulo

46 . Boaventura de Souza Santos, op. cit. pg. 95.

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HERNANDEZ, José, Martin Fierro 1979, Ediciones Losada, Buenos Aires

LÉVINAS, Emmanuel Entre nós

LISPECTOR, ClarisseEm busca do outro – Aprendendo a viver

SONTAG, SusanDiante da dor do Outro

SROPIGLIA, Giuseppe Piantare alberi costruire altalene2004, Macondo Libri, Pove del Grappa

TODOROV, Tzevetan A Conquista da América - a questão do outro

TODOROV, TzevetanNous et les Autres - la reflexión française sur la diversié humaine1989, Editions Du Seuil, Paris

VILLA, Mariano MorenoEl hombre como persona1995, Caparróz Editores, Madrid

LÉVINAS, Emmanuel Difficile liberte

Bachelard, GastonO novo espírito científico1968, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro

Brandão, Carlos Rodrigues e Fals Borda, OrlandoInvestigación ParticipativaCetrullo, Ricardo (org)I985, Instituto Del Hombre/Ediciones de la Banda Oriental, Montevideo

D’Ambrósio, UbiratanTransdisciplinaridade1997, Editora Palas Atenía, São Paulo

Diocese de GoiásCondições de vida e situação do povo de Goiás(oito cadernos de pesquisa)S/d, Diocese de Goiás/UCG, Goiânia

Freire, PauloCriando métodos de pesquisa alternativaIn: Brandão, Carlos Rodrigues (org)Pesquisa participante1981, Brasiliense, São Paulo

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Moraes, Maria CândidaO paradigma educacional emergente2000, Papirus, Campinas

Popper, Karl Rudolf Conhecimento Objetivo 1975, Itatiaia/EDUSP,São Paulo

Santos, Boaventura de SouzaPela mão de Alice – o social e o político na pós-modernidade2001, Cortez Editora, São Paulo

Santos, Boaventura de SouzaA crítica da razão indolente – contra o desperdício da experiência2001, Cortez Editora, São Paulo

Santos, Boaventura de SouzaUm discurso sobre a ciênciaAfrontamento, Porto, 2001 (12ª ed)

Adorno, TheodorLa sociedad – lecciones de sociologiaCópia em xerox sem maiores indicações

Bachelard, GastonFilosofia do novo espírito científico – a filosofia do não1972, Editorial Presença, Lisboa

Bachelard, GastonA formação do espírito científico1996, Editora Contraponto, Rio de Janeiro

Bachelard, GastonTextos selecionadosColeção Os PensadoresEdição selecionada e organizada por José Américo Motta Pessanha1978, Abril Cultural, São Paulo

Bachelard, GastonA poética do Devaneio1987, Martins Fontes, São Paulo

Bachelard, GastonA água e os sonhos1989, Martins Fontes, São Paulo

Bachelard, GastonO ar e os sonhos1990, Martins Fontes, São Paulo

Bachelard, GastonA poética do espaço1989, Martins Fontes, São Paulo

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Bachelard, GastonA psicanálise do fogo1972, Edições Estúdio Cor, Lisboa

Barbier, RenéA pesquisa-ação2002, Editora Plano, Brasília

Barbosa, ElyaneGaston Bachelard – o arauto da pós-modernidade1993, Editora Universitária-americana, Salvador

Barthes, RolandAula1978, Cultrix, São Paulo

Bernardes, Sueli Teresinha AbreuSem memória e sem desejoTrabalho de conclusão de curso regular do Mestrado em Educação da Universidade Federal de Goiás, em 2002. Cópia de micro cedida pessoalmente

Betto, FreiAlfabetto – autobiografia escolar2002, Ática, São Paulo

Bion, Wilfred RuppertLearning from Experience1991, Marefield Library, Londres

Buber, MartinEu e TuS/d, Editora Centauro, São Paulo 5ª edição

Buber, Martin,Do diálogo e do dialógico1982, Editora Perspectiva, São Paulo

Buber, MartinSobre Comunidade1987, Editora Perspectiva, São Paulo

Buber, MartinO socialismo utópico1986, Editora Perspectiva, São Paulo

Comparato, DocDa criação ao roteiro1999, Editora Rocco, Rio de Janeiro

Cunha, Euclides da Caderneta de Campo1974, Cultrix, São Paulo

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Franco, Maria Laura BarbosaPorque o conflito entre tendências metodológicas não é falso1988, Cadernos de Pesquisa do CEDES, nº. 66, Campinas

Freire, PauloPedagogia da Autonomia1997, Editora Paz e Terra, São Paulo

Goffman, ErvinA representação do eu na vida cotidiana1987, VOZES, Petrópolis

Jupiassu, HiltonPara ler Bachelard1976, Francisco Alves, Rio de Janeiro

Lévinas, EmmanuelTotalidade e infinito1988, Edições 70, Lisboa

Lévinas, EmmanuelHumanismo do outro homem1993, VOZES, Petrópolis

Lévinas, EmmanuelEntre nós, ensaios sobre a alteridade1997, VOZES, Petrópolis

London, JackContos2009, 2ª edição, Editora Expressão Popular, São Paulo

Ludke, MengaComo anda o debate sobre metodologias quantitativas e qualitativas na pesquisa1988, Cadernos de Pesquisa do CEDES, v. 66, Campinas

Luna, Sérgio V deO falso conflito entre tendências metodológicas1988, Cadernos de Pesquisa do CEDES, v. 66, Campinas

Marques, Gabriel GarciaMe alugo para sonhar – oficinas de roteiro1997, Jorge Zahar, Rio de Janeiro

Merleau-Ponty, MauriceTextos selecionadosEdição preparada por Marilena de Souza ChauíColeção Os Pensadores1989, Abril Cultural, São Paulo

Moraes, Osvando J. deGrande Sertão, Veredas – o romance transformado: semiótica da construção do roteiro televisivo2000, EDUSP, São Paulo

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Nóvoa, Antônio (org)Vidas de Professores2000, Edições Porto, Porto

Spink, Mary Jane (org) Práticas discursivas e produção de sentido no cotidiano1999, Cortez Editora, São PauloTurner, VictorO processo ritual – estrutura e anti-estrutura1974, VOZES, Petrópolis

BARBIER, RenéA pesquisa-ação2002, Editora Plano Brasília,

BONILLA, Victor; Castillo, Gonzalo; FALS-BORDA, Orlando e LIBREROS AugustoCausa popular, ciência popular: uma metodologia do conhecimento científico através da açãoin: Brandão, Carlos RodriguesRepensando a pesquisa participante1999, Editora Brasiliense, São Paulo

DE SCHUTTER, Anton e YOPO Boris, 1983 Desarrollo y perspectivas de la investigación participativa Verajano, Gilberto M (org) La investigación participativa en América Latina1983, CREFAL, Pátzcuaro

FALS-BORDA, Orlando e BRANDÃO, Carlos RodriguesInvestigación participativaRicardo Cetrullo (org)1985, Instituto del Hombre/Ediciones de la Banda Oriental, Montevideo

FERNANDEZ, Walter e RAJESH Tandon (eds)Participatory research and evaluation1981, Indian Social Institute, Nova Delhi

FREIRE, PauloCriando métodos de pesquisa alternativaIn: BRANDÃO, Carlos Rodrigues (org)Pesquisa participante1981, Editora Brasiliense, São Paulo

GAJARDO, Marcel Pesquisa Participante na América Latina1982, Editora Brasiliense, São Paulo,

LAPASSADE, GeorgesAs microssociologias2005, Liber Livro, Brasília

GABARRON, Luis Rodrigues e LANDA, Libertad HernándezInvestigación participativa

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1984, Cadernos Metodológicos 10, Centro de Investigaciones Sociológicas, Madrid

JARA, OscarPara sistematizar experiências1986, Editora da Editora da Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa

JARÁ, Oscar Conocer la realidad para transformala1991, ALFORJA, San José

JARA, Oscar Investigación participativa: una dimensión integrante de la educación popular, 1990, ALFORJA, San José

REYNOSO, CarlosEl Surgimiento de la antropologia posmoderna1998, Editorial Gedisa, Barcelona

SANTOS, Boaventura de SouzaRenovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social2007, Editorial Boitempo, São Paulo

THIOLLENT, Michel Metodologia da pesquisa-ação2002, Editora Cortez, São Paulo

ASSUMPÇÃO, Rayane e BRANDÃO, Carlos RodriguesCultura rebelde – escritos sobre a educação popular ontem e agora2009, Editora do Instituto Paulo Freire, São Paulo

BAUMAN, ZigmuntIsto não é um diário2012, Zahar Editora, Rio de Janeiro

FÁVERO, OsmarMemória dos anos sessenta: cultura popular e educação popular1985, Edições Graal, Rio de Janeiro (creio que há edições mais novas ainda da Graal ou já da Paz e Terra).

FREIRE, PauloPedagogia do Oprimido1974, Paz e Terra, Rio de Janeiro

STEPHANOU, Maria e BASTOS, Maria Helena, Histórias e memórias da educação no Brasil – vol. 3. Século XX 2001, Editora VOZES, Petrópolis

Brandão, Carlos Rodrigues e Fals Borda, OrlandoInvestigación ParticipativaCetrullo, Ricardo (org)I985, Instituto Del Hombre/Ediciones de la Banda Oriental, Montevideo

D’Ambrósio, Ubiratan

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Transdisciplinaridade1997, Editora Palas Atenía, São Paulo

Diocese de GoiásCondições de vida e situação do povo de Goiás(oito cadernos de pesquisa)S/d, Diocese de Goiás/UCG, Goiânia

Freire, PauloCriando métodos de pesquisa alternativaIn: Brandão, Carlos Rodrigues (org)Pesquisa participante1981, Brasiliense, São Paulo

Grof, StanislavO jogo cósmico – explorações das fronteiras da consciência1999, Editora Atheneu, São Paulo

Moraes, Maria CândidaO paradigma educacional emergente2000, Papirus, Campinas

Popper, Karl Rudolf Conhecimento Objetivo 1975, Itatiaia/EDUSP,São Paulo

Santos, Boaventura de SouzaPela mão de Alice – o social e o político na pós-modernidadeCortez Editora, São Paulo

Santos, Boaventura de SouzaA crítica da razão indolente – contra o desperdício da experiência2001, Cortez Editora, São Paulo

Santos, Boaventura de SouzaUm discurso sobre a ciênciaAfrontamento, Porto, 2001 (12ª ed)

Santos, Boaventura de SouzaA crítica da razão indolente – contra o desperdício da experiênciaVolume ICortez Editora, São Paulo, 2001

Walsh, Roger e Vaughan, Frances (orgs)Além do Ego – dimensões transpessoais em psicologia1997, Cultrix/Pensamento, São Paulo

Walsh, Roger e Vaughan, Frances (orgs)Caminhos além do Ego – uma visão transpessoal1999, Cultrix/Pensamento, São Paulo

EAGLETON, TerryA ideia de cultura

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SONTAG, SusanDiante da dor do outro

STOPIGLIA, GioseppePiantare alberi costruire altalene, Dabasis, \Macondo Libri, Pove del Grappa

TODOROV, TzevetanNous et les Autres - la reflexión française sur la diversié humaineEd. Du Seuil, Paris, 1989

CLASTRES, PierreSociedade contra o Estado

HERNANDEZ, José Martin Fierro1979, Ediciones Losada, Buenos Aires

LÉVINAS, EDificile Liberté

CHAUI, Marilena de SouzaSaudação a Boaventura de Souza SantosDireitos Humanos, democracia e desenvolvimentoEditora Cortez de São Paulo, em 2014.

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Este volume de escritos envolve um conjunto de textos antigos e novos,

entre inéditos e já editados; mantidos como no original, ou

revisitados e revistos.Ele integra a série

ESCRITOS DA ROSA DOS VENTOSÉ colocado em circulação para ser acessado, lido e partilhado livre e

gratuitamente.Livros meus podem ser encontrados

em www.apartilhadavida.com.br www.sitiodarosadosventos.com.br

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