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1 A pequena flor do campo

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A pequena flor do campo

Luiz Gonzaga Pinheiro

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Dedicatória

Para meu neto Luan.Que seja tão forte e sábio Quanto o guerreiro da lua.

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Índice

1. Introdução2. Alegrias de um pai ou o relampejar do tempo3. A obsessão em crianças4. O passado recente de Hortência5. A lança do Centro Espírita6. A falange dos mutilados7. As avós quimbandeiras8. O guerreiro da lua9. O estranho e compreensível sentimento materno10. Ogum – A força avassaladora da lei11. A batalha dos polvos voadores12. Conversa entre guerreiros13. Mulheres atormentadas14. Homens de luz15. Tecnologia de ponta16. Visita ao cemitério17. Devolvendo o coração18. Evitando choques futuros19. Guerreiros não atacam mulheres20. Recanto de paz21. Fragmento de biografia22. Conclusão23. Anexos

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Introdução

Não há quem não se enterneça diante de uma flor solitária no campo, principalmente quando ameaçada por ervas que a sufocam. A tendência natural de qualquer caminhante é protegê-la, chegando mesmo a limpar o terreno ao seu redor, a fim de que este divino espetáculo da natureza se prolongue por mais tempo.

Assim também nos sentimos diante de Hortência, quando sua mãe, Margarida, a trouxe ao Centro Espírita Grão de Mostarda para que lhe ministrássemos um passe. Serena, ela sentou-se à nossa frente e passou a contar sua estranha história.

Seu sofrimento fora anunciado há alguns anos. Sua mãe, frequentadora e trabalhadora de um Centro Espírita em Fortaleza fora informada de que seu marido já desencarnado, voltaria à carne na condição de filha de sua filha, ou seja, a neta receberia o avô para dar-lhe a devida educação, cuja falta o tornara um déspota familiar.

“Seu Flores” era ao mesmo tempo pai e avô de Margarida. Estando uma de suas filhas grávida, por não gostar de quem a engravidara deixou que a neta nascesse e a registrou como filha criando-a como tal.

Além de tirano dentro de casa, revelou Margarida, seu avô considerava toda mulher uma vagabunda e todo negro um marginal. Contudo, forçou mulheres a fazer sexo com ele e depois as desprezou. Sua opinião era de que mulher só servia para esta finalidade.

“Seu Flores”, como era conhecido, pois seu nome era Armando Flores, fez inimigos mesmo entre os familiares. Segundo Margarida, ele só tinha, dentre os de sua parentela, uma réstia de afinidade com ela, sendo os demais familiares, afastados através da costumeira intolerância.

O fato é que quando a pequena Hortência nasceu, a vida de todos na família sofreu profunda alteração. Brigas e inimizades se instalaram no lar; espíritas e católicos, pois a família tinha preferências díspares no terreno religioso, partiram para hostilidades; figuras sinistras oriundas do mundo invisível passaram a ser vistas pelos cômodos e a criança sentia dificuldade para adormecer e se alimentar.

A gravidez fora dificultosa e o pós-parto doloroso. Margarida passou a ter pesadelos. Em um deles, uma figura aterradora lhe cortou os seios e a obrigou a engoli-los. O trauma foi tão marcante que seus seios, antes generosos na alimentação da pequena, secaram por algum tempo.

Do diálogo que mantive com ela guardei uma frase que bem demonstra sua fibra de mãe dedicada: sei que meu avô tem muitos inimigos. Mas quero educá-lo para que respeite a todos, principalmente a Deus.

Margarida sabia que um Espírito em débito com a Lei poderia optar por um pagamento embasado no trabalho honesto e no amor aos mais sofridos. Este era o seu plano para a pequena Hortência. Educá-la, sobretudo, moralmente, para que ela suportasse os golpes dos inimigos, conquistando-os pelo exemplo de fé e de amor aos sofredores.

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Um belo plano como este certamente terá apoio integral da parte dos bons Espíritos. Foi o que lhe disse no final de nossa conversa. Naquela noite a reunião de desobsessão, emergencialmente, foi toda dedicada à pequena Hortência.

Este livro narra o processo de desobsessão de uma garotinha com apenas 45 dias de reencarne, acossada por cruéis inimigos que, a todo custo, pretendiam levá-la ao desencarne.

Seus agressores, escravos bantos, sempre se referiam a ela como “o assassino”, ignorando totalmente a condição atual que a fragilizava. Vendo-o apenas como o antigo algoz que ceifara seus filhos, mães e pais transformados em insistentes verdugos a agrediam a chicotadas, transformando o pequeno apartamento em verdadeiro espetáculo de magia negra.

A linguagem, que neste caso poderia ser chula e bastante agressiva, foi adaptada pelos médiuns, que tolhiam a agressividade e repassavam o pensamento, vestindo-o com suas próprias palavras, sem, contudo, alterar a essência da comunicação. O chefe banto agora seria escravo, diziam seus antigos e atuais perseguidores.

Mas Deus é pai de infinita misericórdia. Vejamos como Ele, através do amor extremado dos bons Espíritos, atendeu a todos, propiciando-lhes oportunidades de esclarecimento e de recomeço nas abençoadas sendas do progresso.

Alegrias de um pai ou o relampejar do tempo

Antes de começar, de fato, a trabalhar no drama que se agigantava à minha frente, recebi de meu filho a cópia ou resumo do que seria o seu discurso de orador oficial na conclusão do curso de medicina.

Foi uma das maiores alegrias que senti. Eu o vi pequeno, o tomei nos braços, ministrei-lhe lições importantes. Ele fez o restante da caminhada. Lembro-me dos pirulitos, dos bicos de pão, dos desenhos que fazíamos riscando o chão da nossa casa.

Lembro-me do primeiro dia na escola, do sarampo que o maltratou, dos cabelos cacheados que ele tinha e que eu mesmo cortava; até da velha bicicleta que ele parecia adorar, recordo, embora não a tenha guardado. Seus dentes de leite, eu os guardei em uma caixinha que ainda está comigo. Se isso tudo aconteceu ontem como pode esse menino me aparecer agora com um bisturi na mão atendendo àqueles enfermos todos?

Quando ele nasceu eu o entreguei ao doutor Bezerra de Menezes: Tome-o doutor Bezerra! Ajude-me a criá-lo, foi o que disse. Sei que o senhor tem bastante trabalho, mas conseguirá um tempo para orientá-lo quando em vez. E o doutor Bezerra nunca o abandonou.

Sinto falta das chuvas que não nos molharam, dos filmes que só depois dele crescido foram feitos, das cantigas de roda que nunca cantamos. Mas em meu coração fizemos todas as brincadeiras e traquinagens a que tínhamos direito. Pulamos muros, roubamos frutas, nadamos em lagoas e subimos em árvores. Só nunca maltratamos passarinhos, porque os amamos.

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E ele foi crescendo com aquele jeito de poeta tímido, de herói escondido pelo blusão da humildade, de criança que adora livros, até que, de repente, me apareceu com aquele discurso digno de Neruda ou do meu velho amigo Manuel Bandeira.

O tempo relampejara e tingira meus cabelos com alguma prata, e meu Espírito, envolvido com livros e reuniões não notara aquelas transformações. As imagens dos meus filhos, Victor Emmanuel e Lívia parecem ter coagulado no tempo da infância. É a maneira como gosto vê-los.

Mas o tempo, esse devorador de imagens, foi substituindo as fotos antigas por outras belíssimas, de homem e mulher fortes, de pessoas generosas e responsáveis, de corações sensíveis e mãos operosas. Intimamente agradeci a Deus por jamais ter me enganado a respeito deles. Enganei-me com outras coisas, com eles, jamais.

Quando eu era criança julgava que amigos eram aqueles que me ensinavam a matar aulas. Hoje sei que eram os futuros mendigos. Pensei também que os que pulavam cercas comigo eram salteadores. Com o tempo os reconheci como saltimbancos; mágicos que se tornavam invisíveis diante do dono da chácara.

Imaginava que os homens que contavam vantagens entre um trago e outro no botequim do meu pai eram mentirosos. Eram poetas do cotidiano. Quando eu era criança ensinaram-me a ter medo de Deus. Que bobagem! Foi preciso descobrir que Ele era diferente do meu pai para começar a amá-lo.

Ninguém me ensinou a arte de navegar corações. Aprendi isso escrevendo poemas e canções. Eles encontraram, cada um a seu modo, essa importante maneira de tratar a vida e às pessoas.

O discurso do meu filho serve para qualquer médico, em qualquer lugar deste planeta tão belo e maltratado. Quem me dera que todos tivessem tal sensibilidade.

“Éramos tão jovens tentando domar o futuro com nossos atos e um sonho nascia

em nós, apontando os rumos da vida profissional, luzindo os caminhos da nossa

existência. “Existirmos, a que será que se destina?”

Hoje, diante da concretização desse sonho, sentimo-nos de volta ao começo.

Mas ele ainda nos impulsiona a seguir em frente, pois se transformou em estrada,

viagem em busca do horizonte das realizações.

É preciso semear o sonho com as mãos no trabalho para germinar realidade.

Assim transformamos a dor e a morte de muitos em esperança e vida, para que possam,

igualmente, semear seus sonhos. Desse modo, ao longo de tantos outros anos, veremos

que o horizonte-sonho nunca é alcançado, só se expande. Veremos que o sonho torna-se

antigo, jamais velho.

Nossos sonhos se eternizam nos anseios de nossos irmãos, tornando-nos

humanos, fazendo-nos instrumentos de perpetuação da segurança e da beleza da vida.

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Dessa forma, ao final desse ciclo terreno, a morte, o sonho nos levará de volta a um

começo, por ter se tornado maior que nossa própria vida: a vida se vai, mas os frutos do

trabalho, semeados por este sonho, permanecem para fazer a realidade que melhorará a

vida de outros.

Ainda somos tão jovens, porém lúcidos para entender que seremos eternos

alunos da vida, aprendendo com ela para nos tornarmos professores de nós mesmos;

arquitetos de sonhos; engenheiros do amanhã; médicos de nossos anseios; filósofos de

nossa existência. Eis no que nos tornamos.

Hoje, celebrando um final, comemoramos um recomeçar. Realizamos parte de

um desejo que não é só nosso, mas de toda humanidade desde sempre, perpetuando-se

num ciclo, como uma semente. Nossa alegria maior não é a de sermos médicos ou

historiadores, mas de ser alguém que possa semear esperanças de um futuro melhor.

Existirmos, a isso se destina nossa vida. Para extrair da vida o milagre do

trabalho. Avante! Para isso existimos: para forjar através do trabalho o milagre da vida”.

A obsessão em crianças

Muitas pessoas se admiram diante do sofrimento das crianças. Perguntam-se entre dúvidas e lamentos por que Deus não espera que elas cresçam para então permitir que a Lei faça suas cobranças.

Deus é misericórdia, mas é também justiça. É pai do agressor e do agredido. Em meio às tempestades coloca sempre abrigos para salvação. Encarnada ou desencarnada, uma criança é um Espírito velho, e quando não tem méritos, foi esta a conclusão a que cheguei através de muitas reuniões de desobsessão, pode ser apanhada por cruéis obsessores.

O que sentimos, espíritas ou não, quando uma criança, cheirando cola, vem em nossa direção? Fugimos dela, mesmo que tenha apenas cinco anos de idade. Quantas crianças, sem nenhuma chance de defesa são assassinadas por abortos no Brasil? Quantas morrem de fome neste vasto mundo? Quantas são mutiladas e mortas em guerras engendradas por adultos? O que fazem com elas os pedófilos? De onde parte a maioria das agressões a elas senão da própria família que a abriga sob seu teto?

Recentemente li um relatório da Confederação Internacional de Crédito Agrícola, dando conta de que se chega a gastar oitocentos bilhões de dólares em armamentos por ano, em período de paz, enquanto trinta crianças morrem de fome, em

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apenas um minuto, no mundo; que milionários gastam milhões de dólares em tacos para jogar golfe enquanto a morte cava covas cada vez mais profundas.

O mundo material gasta boa parte da sua violência em atormentar crianças. O mundo espiritual inferior, do qual a Terra é cópia aproximada deveria ser diferente? Claro que há casos e casos, e que em todos eles devemos observar atenuantes e agravantes, mas negar que crianças passam por obsessões, não há como. Mesmo os apóstolos, não foram carinhosos, afastando-as de Jesus, que interferiu a favor delas (Então lhe apresentaram uns meninos para que os tocasse; mas os discípulos ameaçavam os que lho apresentavam... Marcos, X: 13-16)

Não mandou Herodes, segundo consta relato bíblico, matar todas as crianças inferiores a dois anos de idade? O mesmo não fazia os egípcios periodicamente, para que a população de escravos não se tornasse dispendiosa? Portanto, a agressão vem de longe e em todas elas há de se analisar imparcialmente o histórico, sobretudo, moral do Espírito agredido.

Todavia, por conta de ser um Espírito velho e comprometido com a Lei, jamais se deve ficar impassível diante do sofrimento de quem quer que seja, principalmente, de uma criança. Jesus tinha especial carinho por elas (... E abraçando-os e pondo as mãos sobre elas, as abençoava).

Mas voltemos às obsessões. Vejamos o comentário de Kardec em complemento à resposta 199 a de “O Livro dos Espíritos” relacionada ao destino das crianças depois da morte: Não é racional, aliás, considerar a infância como um estado normal de inocência. Não se vê crianças dotadas dos piores instintos em idade na qual a educação não pôde, ainda, exercer sua influência? Algumas não há que parecem trazer do berço a astúcia, a felonia, a perfídia, o instinto mesmo para o roubo e o homicídio, não obstante os bons exemplos dados pelos que com ela convivem?

Vejamos o que nos diz André Luiz em seu livro “Evolução em dois mundos”, capítulo XV, vampirismo espiritual, psicografado por Chico Xavier:

Parasitismo e reencarnação: Nas ocorrências dessa ordem, quando a decomposição da vestimenta carnal não basta para consumar o resgate preciso, vítima e verdugo se equiparam na mesma gama de sentimentos e pensamentos do além-túmulo, em dolorosos painéis infernais, até que a misericórdia divina, por seus agentes vigilantes, após estudo minucioso dos crimes cometidos, pesando atenuantes e agravantes, promove a reencarnação daquele espírito que, em primeiro lugar, mereça tal recurso.

E, executado o projeto de retorno do beneficiário, a regressar do plano espiritual para o plano terrestre, sofre a mulher, indicada por seus débitos à gravidez respectiva, o assédio de forças obscuras que, em muitas ocasiões, se lhe implantam no vaso genésico por simbiontes que influenciam o feto em gestação, estabelecendo-se, desde essa hora inicial da nova existência, ligações fluídicas através dos tecidos do corpo em formação, pelas quais a entidade reencarnante, a partir da infância continua enlaçada ao companheiro ou aos companheiros menos felizes, que integram com ela toda uma equipe de almas culpadas em reajuste.

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Desenvolve-se-lhe, então a meninice, cresce, reinstrui-se e retorna à juvenilidade das energias físicas, padecendo,porém, a influência constante dos assediantes, até que, frequentemente por intermédio de uniões conjugais, em que a provação emoldura amor, ou em circunstâncias difíceis do destino, lhes ofereça novo corpo na Terra, para que, como filhos de seu sangue e de seu coração lhes devolva em moeda de renúncia os bens que lhes deve, desde o passado próximo ou remoto.

Acredito que a nossa admiração diante do fato de uma criança ser obsidiada deve-se às nossas idéias cristalizadas do passado, quando por ocasião da morte de uma delas dizíamos: É um anjinho! Não teve tempo para pecar! Vai direto para o céu!

Mas a reencarnação não aprova tal raciocínio. Sabemos que havendo Espírito devedor da lei cujo ofendido não o tenha perdoado e um possível encontro entre ambos pode ocorrer obsessão; que não existe Espírito criança, mas Espírito com o corpo de criança, que pode ser, inclusive, mantido por ele nesta forma como opção de apresentar-se aos demais.

Se a obsessão em criança é permita na condição de encarnada, quando o auxílio imediato por parte dos bons Espíritos depende de inúmeras variáveis,  por que não o seria na condição de desencarnada quando depende apenas das decisões deles? Qual a razão? Dois pesos e duas medidas? Isso não ocorre entre mentores espirituais. Ou existe obsessão em "criança" ou não existe. Não tenho conhecimento de uma lei moral válida para encarnados e não válida para desencarnados.

Fui tocado por imensa, emoção enquanto conversava com a mãe da garota, ao me lembrar daquele pai abraçado ao filho, ajoelhado diante de Jesus (sempre me enterneço com ele) rogando: Senhor! Tem compaixão do meu filho, que é lunático e padece muito; porque muitas vezes cai no fogo, e muitas na água. E tendo-o apresentado aos teus discípulos, eles não o puderam curar. O mínimo que posso fazer por Hortência é dar o máximo de mim na resolução desse drama. Foi o que prometi ao meu coração.

Conversei demoradamente com Margarida, sua mãe, pessoa lúcida, espírita consciente. Enquanto conversava, a imagem de Maria, e a dor imensa que sofreu ao ver seu filho, Jesus, torturado, ensangüentado, olhos semimortos, mas cheios de esperança, não me saia da cabeça. Estaria aquela mãe, sentada a minha frente, preparada para enfrentar inimigos do passado com as armas da fé e da oração? Adiantando-se ao meu pensamento ela própria se propôs fazer o Evangelho no lar, trazer Hortência para tomar passes, fluidificar a água através de orações e trazer para a evangelização infantil, sua filha, logo que esta reconhecesse as primeiras letras.

Ainda por muito tempo as crianças terrenas terão fantasmas a enfrentar. Em um planeta cuja maioria da população não tem respeito pelos passarinhos, regatos e flores, dificilmente a criança é amada como merece.

Todavia, casos envolvendo criança são alvos de intenso cuidado por parte de nossos instrutores. Tibiriçá se empenharia ao máximo, já que não tolera qualquer desagrado feito às crianças. Tapuinha, a nossa médica-guerreira, muito menos. Certamente meus amigos índios não poupariam esforços para livrar Hortência da ameaça que se instalara em sua vida.

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“Seu Flores” seria auxiliado por todos nós, jardineiros a serviço do Senhor dos mundos; rosas com mais espinhos que pétalas, mas na sua função de perfumar o ambiente com o suave aroma da caridade.

Pensando assim dirigi-me ao abençoado salão de diálogos, ou seja, para a reunião de desobsessão.

O passado recente de Hortência

A história do Espírito que ora se chama Hortência é bem peculiar. Diria mesmo bem estranha, pois sua encarnação foi anunciada várias vezes, por mais de uma fonte. Margarida, a atual mãe, foi sua neta e pouco conviveu com ele. Dos diálogos que tive com ela transcrevo aqui alguns fragmentos, logicamente mudando nomes e datas a fim de manter o anonimato dos envolvidos.

Tais informações são necessárias para que o leitor possa compreender o contexto no qual “Seu Flores”, atual Hortência, veio ao mundo dos encarnados na cidade cearense de Itapipoca no ano de 1908, desencarnando em Fortaleza 1988. Do envolvimento com mulheres: Durante sua vida se envolveu com várias mulheres casadas, pois tinha grande apetite sexual, inclusive, pegando algumas à força. Na mulher com quem casou gerou nove filhos, mas adultérios eram comuns em sua vida.

Do seu jeito de ser: Era um comerciante totalmente analfabeto, pois nunca entrou em uma escola. Acredito que isso tenha contribuído para os arraigados preconceitos que nutriu durante a encarnação. Rejeitava negros, deficientes físicos e considerava a mulher uma criatura inferior, cuja função era apenas procriar. Não tolerava visitas porque, segundo ele, estas só serviam para lhe roubar a paz e se servirem do alimento que lhe pertencia. Eis alguns pensamentos seus: Não se deve ensinar negro a ler porque ele vai escrever indecências nas paredes; se você ensinar uma cunhã a ler, a primeira coisa que ela vai fazer é escrever uma carta para um caboclo, querendo se enroscar com ele. Sabendo que uma pessoa tinha má vida, se afastava dela sob o argumento de que era um cidadão, e assim sendo, não deveria se contaminar com a ralé. Na verdade era orgulhoso e preconceituoso.

Sobre a missão de pai: Não foi um bom pai. Em uma discussão banal quis matar um dos filhos com uma foice. Este, se desvencilhando, foi embora e jamais voltou. De outra feita, sabendo que uma filha estava grávida de um deficiente, correu atrás dela para matá-la com uma faca. Quando a criança nasceu, também quis matá-la, por ser filho de um deficiente. Posteriormente, quando este filho já era adulto e ocupando um cargo de destaque, “Seu Flores” necessitou de seus préstimos para acelerar sua aposentadoria. Recorreu a ele e lhe disse: se você me ajudar eu o perdoou pelo fato de ser filho de deficiente.

Sobre seu desencarne: Sua saúde foi sendo minada por uma série de doenças, dentre as quais, câncer de próstata, cirurgias mal sucedidas de catarata e mal de Parkinson. Era viciado em álcool, cigarros e jogos de azar. Levou consigo muito ódio e desejo de vingança de pessoas estranhas e de familiares. Minha avó, inclusive, já lhe

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rogou muitas pragas, pois na última briga que teve com ele foi cuspida, amarada e violentada sob a mira de um revólver apontado para sua cabeça. Sua mágoa maior é

porque acabara de ter saído de um aborto espontâneo. Sobre minha história: Minha mãe levou ao conhecimento de sua família que

iria casar com um homem negro. Recebeu de cara do “Seu Flores” a seguinte advertência: prefiro vê-la morta por atropelamento e totalmente estraçalhada do que casada com um negro. Minha mãe partiu para outra e começou um relacionamento que não foi bem sucedido. Quando meu pai se foi deixou uma semente, está que lhe fala. Minha avó, prevendo represálias por parte do marido, “Seu Flores”, inventou que minha mãe estava grávida de um homem que havia sofrido um acidente e que agora era um inválido. Então ele me registrou como sua filha legítima, pois jamais aceitaria um inválido na família. Dessa maneira fiquei sendo filha e neta ao mesmo tempo

Contaram-me que ele sempre me acolheu bem, desde o ventre da minha mãe. Fui crescendo e quando completei oito anos de idade ele desencarnou. A partir de então, sempre que ia passar por grandes dificuldades, sonhava com ele. Era como uma advertência para que eu me preparasse para enfrentá-la. Passei a sentir um amor inexplicável e um desejo arrebatador de ajudar meu avô a pagar as dívidas que ele contraiu. Quero que ele pague à Lei Divina, com amor, através do Evangelho de Jesus.

Na minha família sempre me contaram várias versões sobre minha origem. Nenhuma que me fizesse feliz. Diziam que minha mãe era uma mulher promíscua e abortadeira, coisa que não acredito. Cresci com muitos problemas. Como tive formação religiosa no catolicismo era lá que tentava me livrar do desejo de por fim à minha vida. Hoje venci este impulso e melhorei meu comportamento rebelde, revoltado, infeliz, que me acompanhava desde a infância.

Atualmente estudo a Doutrina Espírita e estou conseguindo mudar muita coisa em minha vida.

Sobre a anunciação: Minha mãe trabalha em um Centro Espírita e lá um Espírito chamado José do Nascimento, o Dragão do Mar, dirigindo-se a ela no dia 9 de outubro de 1997 disse-lhe que seu “Flores” voltaria à carne como filho de sua neta. Segundo ele, o moço se arrependera profundamente ao constatar a extensão dos seus erros e pedira uma oportunidade, em caráter imediato, para reparar parte do mal que praticara. Essa informação foi confirmada no nosso evangelho no lar e em outras oportunidades. Acredito que era uma espécie de aviso para que nos preparássemos para recebê-lo.

Sobre a gravidez e o nascimento de Hortência: Minha gravidez não foi das piores. Tive alguns cistos no ovário que me obrigaram a uma intervenção cirúrgica. Também tive descolamento de placenta. No mais, graças as minhas preces e a ajuda dos amigos espirituais ela nasceu bem.

Margarida é uma pessoa consciente de suas responsabilidades. No momento participa de um curso básico de Espiritismo, embora demonstre conhecimentos além dos que ora estuda. Acredito que esteja preparada para a tarefa que lhe confiaram: educar “Seu Flores” dentro da Doutrina Espírita para que ele comece a extensa subida em direção à luz divina.

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A lança do Centro Espírita

Algumas pessoas consideram que unir as mãos em defesa de uma idéia significa atingir o final de um processo evolutivo no campo em que operam. Isso as faz bloquear o recanto mental que poderia lhes fazer avançar com ensinamentos novos.

Tais pessoas rebaixam o Espírito a simples operário exposto a estagnação e pouco apreço dá a evolução, que exige constantes mudanças e rápidas passadas, naquilo em que se empenham.

São, no dizer de Jesus, os que fazem o que deveriam fazer, e não o que poderiam fazer, pois avançariam velozmente se utilizassem o “motor de propulsão” desativado. Médiuns e doutrinadores de mãos unidas é alguma coisa; de almas unidas é tudo.

Nelson Mandela, cansado de pedir e de explicar que os negros tinham direito à liberdade dentro do seu próprio país, sem jamais ser escutado, organizou um movimento armado a que chamou de “a lança da nação”. Algo semelhante, embora de maneira pacífica, aconteceu a Gandhi e Luther King que criaram a desobediência civil, e Steve Biko, mentor da consciência negra.

Às vezes me parece que as pessoas precisam ser empurradas para fazer aquilo que necessitam ou que se comprometeram a fazer. Sem dúvidas isso promove um desgaste da energia que poderia ser utilizada dentro da própria atividade do Centro Espírita e é responsável por desistências e desagrados, melindres e futricas dentro do ambiente de trabalho espiritual.

Sob o argumento de que precisam sobreviver, do qual se servem para justificar todos os atrasos, faltas e desistências, algumas pessoas levam o “desculpismo” para dentro de uma reunião mediúnica. Outras, mais desavisadas, chegam mesmo a encarar o trabalho voluntário como aquele no qual o trabalhador vai desempenhar sua tarefa no dia que quer e chegar na hora que lhe convém.

Duas coisas parecem bem estranhas quando partem de pessoas que se dizem espíritas. Uma delas é o “desculpismo” diante da falta ou da negligência para com a oportunidade de serviço; a outra é o “achismo”, que consiste em emitir respostas inadequadas ou equivocadas devido ao personalismo ou a falta de estudo das questões doutrinárias, sejam elas científicas, filosóficas ou morais.

Cabe ao doutrinador alertar a todos que o dueto “disciplina e caridade” é a senha de entrada e a regra utilizada nas relações do grupo, salvo em raríssimas exceções. Deve ouvir a desculpa do retardatário ou faltoso e lembrar-lhe de que Deus espera de todos nada menos que fidelidade no que foi acordado.

Infelizmente, em qualquer Centro Espírita o doutrinador enfrenta o problema da falta de médiuns destinados aos trabalhos do dia. Este detalhe é responsável por boa parte do seu estresse e da ineficiência que ronda as portas da oficina em que trabalha.

Doutrinador com paciência curta precisa aprender a moderar sua vontade de chamar o faltoso e dizer-lhe sem meias palavras: Deus é o mais ocupado de todos e mesmo assim trabalha sem cessar, sem jamais faltar a um só compromisso. Ainda não consegui demonstrar serenidade diante da negligência ao trabalho espírita. Sempre fico

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ao lado de Tibiriçá nessas horas de avaliar a falta. Aprendi na cartilha dele que nem morto se falta a um compromisso. No caso dele, como já é desencarnado, ou seja, não desencarna em serviço, jamais faltou a um compromisso nesses quarenta anos de convívio. No meu caso, disse-me ele certa vez referindo-se a minha condição de encarnado, é deixar o corpo no caixão e comparecer ao trabalho.

Como alguns médiuns haviam faltado à reunião por motivos variados, decidi escrever pequena mensagem para que fosse lida no início da primeira reunião dedicada a Hortência, a pequena flor do campo, como a chamei logo que soube de sua condição espiritual.

Pensei no dueto, “disciplina e caridade” a lança do Centro Espírita, estiquei o arco e lancei minha seta para o mundo das idéias. É assim que sempre faço quando quero pescar palavras. Sem demora, como um bumerangue encantado, de algum lugar secreto, dos confins do dicionário de algum poeta, as palavras chegaram como um rio caudaloso e prateado.

Invadiram minha mente como um raio de sol penetra uma vidraça colorida de biblioteca, deixando em minha pele um arrepio e na minha mente um rodopio. Capturei-te palavra! Se Deus quiser sempre estarás comigo, disse. E tive a sensação de escutar um sussurro vindo do mesmo mundo das idéias, para aonde havia atirado a seta: sou tua.

Desse namoro com o infinito resultou o seguinte texto, que foi lido na primeira reunião de Hortência.

Substituindo velhas frases

Antes de dizer não, ao chamado do trabalho espírita com o qual se comprometeu, reflita sobre suas atividades cotidianas, à luz do sábio ditado popular: quando queremos, sempre arranjamos um jeito; quando não queremos, sempre encontramos uma desculpa.

Portanto, no lugar de dizer: não tenho tempo, diga: priorizando tarefas sei que estarei lá.

Ao invés de pensar: estou cheio de trabalho, diga: que bom que Deus me permitiu mais uma oportunidade de serviço.

No lugar de dizer: tenho um aniversário para ir, diga: depois da minha tarefa irei abraçar o aniversariante.

No lugar de dizer: o lazer me espera, diga: o fazer me chamaNa tentação de argumentar: meu filho vem me visitar, diga: vou visitar os filhos

do meu coração, na volta abraçarei o filho da minha alma.Se é dia das mães, Finados, Carnaval, Semana Santa ou similares, não diga: é

feriado, não haverá trabalho. No lugar disso, reforce: Eu trabalho e meu Pai trabalha sem cessar.

Se está chovendo, não dê a desculpa à sua consciência de que não vai ao Centro porque não tem um guarda-chuva. Ela não aceitará este argumento a não ser que esteja ocorrendo uma inundação e você não tenha uma canoa. Antes diga a si próprio: mesmo sabendo que iria morrer dolorosamente Jesus compareceu diante dos algozes.

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Se um amigo o convidar para qualquer evento que o fará feliz, segundo o conceito mundano de felicidade, não diga a ele que o seguirá, mas agradeça-lhe o convite e explique-se: Tenho um compromisso inadiável com alguém mais importante que o governador. Se ele insistir em saber com quem você está comprometido, diga: com Jesus.

Se os amigos organizaram uma festa em sua homenagem no dia de sua reunião mediúnica e exige sua presença, não diga: estou nessa! Seja fiel aos seus verdadeiros amigos, os espirituais, e responda com gentileza: Vou participar de um banquete neste mesmo horário. Se puderem esperar, comemoraremos juntos a alegria que este encontro nos causa.

Mesmo que alguém muito amado lhe diga: Não vá! Você pode ser assaltado e morto. Responda: Se isso acontecer, já que estarei a caminho, comparecerei para trabalhar na condição de desencarnado.

Seja qual for o motivo que o leve a se afastar da casa espírita, este deve ser seriamente avaliado. O espírita deve ir além do senso comum e ter a certeza de que ele é que precisa do Centro Espírita, pois este sobreviverá com a sua ausência. Além do mais deve estar convicto de que o local mais fácil de ser encontrado pelos bons Espíritos é no trabalho.

Li a mensagem para os médiuns que a escutaram sem pronunciar uma única palavra. Mas a absorveram sem deixar escapar nenhuma delas.

Em nossa casa espírita há regulamentos versando sobre faltas e condições exigidas para que um médium adentre uma reunião de desobsessão. No entanto, consideramos como mais eficientes os mandamentos que gravamos na mente e conservamos no coração por necessidade da consciência. Daí o esforço que fazemos em sempre levar mensagens que lembrem a obrigação moral de assumirmos com responsabilidade o trabalho com o qual nos comprometemos de livre vontade.

Guias disciplinados e incentivadores que temos não nos permitem adormecer em área de trabalho. Dr. Mário Rocha, um dos nossos instrutores espirituais definiu há muito tempo, em parceria com Tibiriçá, o lema que deveríamos seguir: Compromisso assumido é compromisso cumprido.

Gostei e me afinei com ele. Por isso o adotei como regulamento da minha consciência.

A falange dos espedaçados

O ódio atua no perispírito como um ácido a danificar-lhe as engrenagens. Incompatível com a felicidade, ele é um ladrão da paz e um assassino da saúde, uma vez que é fábrica de tormentos, dentre os quais se destacam a ansiedade e a frustração.

Quando alguém diz, odeio, diz também, sou infeliz, estou doente, perdi a fé, caminho para o abismo. É preciso muita paciência, compreensão e amor para lidar com quem odeia, pois este exige demais sem nada retribuir, a não ser decepções e desgosto.

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Somente Espíritos fortes acolhem e tratam os infectados por este mal, uma vez que têm a piedade como marca inconfundível das virtudes que já conquistaram.

Os que perseguiam a pequena Hortência estavam todos doentes. E como afirmara Jesus ter vindo ao mundo por causa deles, ovelhas desgarradas, pois os sãos não necessitam de médicos, deveríamos fazer o melhor ao nosso alcance para amenizar-lhes as dores. É pensando em tal argumento que o doutrinador deve iniciar uma reunião sob seu comando.

E foi assim que, advertido por uma médium de que já estava em serviço, encaminhei-me para ela ciente da presença de todos os amigos desencarnados que sempre estiveram comigo neste mundo de lutas.

- Estou no quarto de Hortência. Tudo esta avermelhado pelo sangue. As paredes, o berço, o teto... Poderia jurar que estou em um abatedouro de animais, sem a mínima higiene. No interior do apartamento encontram-se espalhados bebês mutilados e ensangüentados. Isso está me dando náuseas. Eles se movem em estertores, fazem caretas de dor, fecham os punhos como se quisessem pegar o ódio com as mãos.

Coisa tétrica. A pequena Hortência tem sono intranqüilo. Os bebês deformados parecem espreitá-la. Diria que eles agem de maneira planejada, ou seja, sabem muito bem o que fazem, e o fazem com a intenção de assombrar a menina.

Vejo um negro muito forte e alto. Ele tem um chicote na mão e parece esperar que a pequena saia do corpo para atacá-la. Além do chicote porta outros instrumentos de flagelação, que embora rudimentares, são perigosos.

Tibiriçá vai laçá-lo. Acho que vai ser uma briga feia, pois a caça é tão forte quanto o caçador. Se bem conheço nosso amigo, o oponente poderia ter até o dobro da sua altura que ele não desistiria. A rede cortou o vento e caiu em cheio por cima do africano. Ele se debate, tenta rasgá-la, ruge como um animal com os olhos fixos em Tibiriçá, mas está seguro.

Vai ser encostado a mim para que você ouça, primeiramente, os insultos, depois quando ele cansar, os argumentos.

- Covardes! Mesmo vendo o que ele fez, ainda ficam do lado dele? É o que se pode esperar de brancos matadores de negros. Quando sair daqui, acertaremos as contas segundo minha tabuada.

- Não estamos em guerra contra você ou seu povo. Queremos que a criança cresça em paz a fim de pagar os débitos que fez à lei de Deus. Acredito que este seja também o seu desejo. O Espírito antigo, agora nesse corpo frágil, comprometeu-se a resgatar o passado doloroso. Mas como pagar se os credores se negam a receber?

- Queremos que ele pague o que nos deve, mas com muita dor. Fez a nós, deve pagar a nós. Não nos interessa lei ou religião. Quando estávamos nas mãos dele nenhuma das duas fez nada por nós. Pois que não se meta agora que o temos na mira.

- Sei que está em posição desconfortável nessa rede, mas se me prometer discutir as ofensas cometidas contra você e seu povo, com calma, o libertaremos para uma conversa frente a frente, como vocês lutam com os leões nas savanas.

- Nada de conversa com traidores. - Pode, pelos menos, me dizer quais os crimes que ele cometeu contra seu povo?

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- Contra o povo dele. O desgraçado é banto como nós. Era o chefe da nossa tribo. Cruel e sanguinário, matou e mutilou muitos de nós. A outros vendeu como escravos, destroçando suas famílias. Matava crianças sob o pretexto de que faltaria comida se a tribo aumentasse muito. Mutilava as mulheres cortando-lhes os seios para que não mais amamentassem as crianças e elas morressem à míngua. É esse miserável que vocês defendem. É esse o monstro que querem apadrinhar.

- Não sabíamos da extensão dos crimes que ele cometeu. Mesmo assim insisto que a justiça divina, que é incorruptível, cuide dele. As crianças que a médium vê esquartejadas são apenas criações mentais ou Espíritos com idéias fixas no instante da morte?

- O que você acha? Que estamos aqui para brincar de desenhar crianças esquartejadas? É uma falange de Espíritos que foi cortada pelo facão dele. Todas elas estão presentes para cobrar o que lhes devem. Sou o pai de uma delas.

- Não quer mesmo conversar fora da rede, como dois amigos?- Não. Não tenho amigos traidores.- Lamento. Vou ficar com seu chicote e com os demais instrumentos.

Permanecerá aqui como nosso hóspede para prolongarmos esta conversa quando estiver mais calmo. Preciso me ausentar para atender a uma amiga sua que acaba de ser capturada enquanto pulava pelas paredes.

A médium havia confidenciado que uma mulher negra a observava como se estivesse pregada à parede. Capturada, encheu-nos de insultos por retirá-la de junto de Hortência.

- Pensam que podem deter a minha mão armada? Estou de vigia e espreito cada movimento do assassino. O filho que ele me roubou vai lhe custar muito caro. O sangue do meu filho vai ser resgatado gota a gota.

- A primeira preocupação de uma mãe deveria ser a de cuidar do seu filho. No entanto, não ouvi de seus lábios nenhuma pergunta com relação a ele.

- Como posso falar de amor a um filho esquartejado? Não acredito mais no amor, mas na força e na guerra. No meu coração não há espaço para outra coisa que não seja ódio. Ele é a energia que me movimenta por essas paredes. O trabalho de me prender em grades é inútil, pois ninguém consegue arrancá-lo de dentro de mim. Onde estiver, permanecerei direcionando o mal e a ruína para o desgraçado que cobriu de dor o meu povo.

- Como ele matou seu filho?- Arrancando-o de dentro de mim e dividindo-o a facão. Ele é o demônio que

habitou entre os bantos. Representa o mal, a covardia, a destruição, a força das trevas descida sobre o povo negro. Nenhum branco nos fez tanto mal quanto ele.

- Sinto pelo seu filho e entendo o seu ódio, embora não pactue com ele. Gostaria de ajudá-la, mas no momento não sei como. Tudo quanto tenho e posso oferecer são nossos médicos, nossos abrigos, nossa amizade. Se quiser permanecer entre nós para que encontremos um meio de ajudar seu povo, sinta-se à vontade.

- Na condição de prisioneira? Tudo que os brancos nos têm ofertado são prisões e miséria. Pilharam nossas aldeias, fizeram nossos filhos escravos, dividiram nosso povo, pois irmãos combatiam irmãos incentivados por eles. Nem mortos somos livres,

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pois o ódio nos aprisiona. Serei livre quando matar o corpo que se forma e capturar o Espírito que me deve. Essa é a minha convicção. Não pense que somos poucos ou frágeis. Somos muitos e firmes. A selva tem sua lei. Agora somos os leões e ele o filhote de gazela.

- Julgo que irredutível como se encontra, nossa conversa não será conclusiva. Ficará um tempo conosco para que a criança respire melhor. Quando estiver pronta para um mergulho no passado, lugar da verdadeira causa dessa chacina, voltaremos a conversar. Até lá ficará conosco e será bem tratada.

As primeiras conversas com Espíritos endurecidos exigem complementos. Eles estão raivosos, enfurecidos por estarem tolhidos, se julgando vítimas, pois as causas passadas, ou seja, seus próprios equívocos, gênese da agressão que sofreram, estão sepultados pelo esquecimento.

Não é hora de levá-los a uma regressão, pois ainda não estão preparados para um mergulho no passado. É preciso deixá-los perceber outras janelas abertas cujo painel mostrado não seja o ódio. Isolados, ouvindo músicas suaves, conversando com psicólogos, sendo visitados por quem realmente se interessa pelos seus destinos, fora do ciclo de ódio que os alimentavam, aos poucos entram no clima da reflexão. É então que são levados novamente à reunião de desobsessão. Às vezes tudo se resolve em trabalhos durante o sono físico dos médiuns, no plano espiritual, onde as reuniões têm continuidade. Nesses casos, como estes não se lembram dos trabalhos realizados, tudo se passa como se aquele personagem que não mais retorna houvesse sumido sem deixar pistas.

No clima bélico instalado pelas entidades capturadas, voltei-me para um grito de afronta de mais uma médium.

- A criança vai morrer! - E quem decretou a sentença de morte?- Eu! Não adianta tratamento médico, espiritual, psíquico, neurológico, nada! O

salário do assassino é a morte. Ela está condenada! Vai morrer seca, assustada, gritando. Vai ter a pior morte! Ela não sobreviverá dois meses!

- Foi o tempo que ele gastou em torturá-lo?- Não! O facão dele era rápido. Digo mais! A Mãe dele vai ficar arrasada! Vai

ter que arrastar a dor da perda e do remorso.- Qual o grau de envolvimento da atual mãe nesse drama?- Até os cabelos. Era mulher dele. Quando tinha ciúme das negrinhas jovens e

bonitas, mandava decepar os seios, arrancar os dentes, riscar o rosto para torná-la feia. Hoje ela se faz de inocente, mas de inocente não tem nada.

- Sua tribo era grande? - Muito grande. Ela também entregava negras para serem escravizadas. Era tão

ruim que até os da família dela, vendia como escrava. - Lembra do nome dele?- Só posso dizer que ele faz parte da história. Tenho que respeitar o sigilo.- De onde partiu a ordem para ocultar o nome dele? - Existe algo superior que nos adverte para não revelá-lo. Temos que obedecer.

Faz parte do contexto histórico. Não podemos ignorar essa ordem.

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O Leitor poderá se perguntar por que negros com idéias cristalizadas na vingança, alguns analfabetos, expressam suas idéias tão corretamente. Neste caso os médiuns traduzem o pensamento do comunicante, utilizando-se para isso, de suas próprias palavras, o que não caracteriza uma alteração ou mistificação.

- Qual o mal que ele lhe fez? Foi vendido, decepado?- Fui vendido e vim parar no Brasil. Sou um jovem. Desembarquei aqui com

minhas irmãs. Trabalhei em engenho de cana-de-açúcar.- Foi bem tratado pelo seu dono?- Sim. Não cheguei a apanhar nem fui para o tronco, mas morri escravo, sem

alcançar a liberdade, que era meu grande sonho.- Ficou gostando do Brasil?- Sim. Ainda sinto o cheiro do mel da cana. Ás vezes visito engenhos que teimam

em sobreviver. Nessas ocasiões parece que fico mais leve. Ajudo meus irmãos nessa vingança por ter visto tudo aquilo. Por desaprovar a conduta dele. Digamos que estou na luta por solidariedade.

- Ninguém se importa ao vê-lo na pele de uma criança indefesa? - A maioria não liga para este fato, pois sabe que ali está um assassino. Quando

o olhamos de frente vemos o rosto dele e não a inocência de uma criança. - Vocês têm acesso a ele?- Total. Quando ele sai do corpo sua aparência é a do assassino. Nessas

ocasiões o torturamos e o corpo da criança estremece. Procuramos castigá-lo ao máximo em pouco tempo porque sabemos que ele vai correr e se refugiar no corpo. Batemos, maltratamos e vampirizamos, sem nos saciar.

- Não há nessas ocasiões um só Espírito que o defenda?- Há. Uma matriarca. Uma espécie de madrinha que parece compadecida com o

seu drama. Quando ela ora, respeitamos. A prece o alivia, mas ela não pode ficar o tempo todo com ele.

- Qual o efeito que a prece produz em você.- Respeito. Fico receoso. Fico tocado e digo para mim mesmo para parar um

pouco.- Você acredita em Deus? - Eu acredito. Mas a maioria dos meus irmãos está descrente devido ao que

passou.- E o que sua consciência, que é a voz de Deus dentro de você, lhe adverte

quando você o tortura?- Procuro não pensar nisso para não me fragilizar e desistir. Lembro mais dos

meus irmãos ofendidos e esse pensamento me fortalece. Não sou de todo ignorante. Tive chance de estudar um pouco e sei que serei cobrado pelo que estou fazendo. Mas sei que ele também merece isso. A justiça de Deus é lenta e queremos uma coisa mais imediata.

- Vocês são muitos?- Sim. O equivalente a uma população de dez senzalas. - Gostaria de ficar conosco para prolongarmos esta conversa? Interesso-me

bastante por este período da história, e como você a viveu, muito teria a me ensinar.

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- Se na condição de convidado, sim. Posso explicar-lhe a saga do meu povo.Nunca se sabe o que está na mente ou no coração de um comunicante. O

doutrinador deve acolher a todos, confiante, mas com aquela reserva de vigilância aconselhada pela prudência. É comum durante um diálogo a calma se exasperar e o destempero se acalmar. O coração da maioria dos obsessores tem cofres e armadilhas. Nos primeiros, estão guardadas as fagulhas de bondade, pois ninguém é de todo mau. Nas segundas, todo sentimento negativo que ainda não conseguiram alijar.

Daí o cuidado e o tato psicológico que o doutrinador deve empregar, sempre deixando claro que qualquer movimento em favor da reconciliação entre os litigantes terá apoio integral da equipe que o auxilia.

As primeiras reuniões que visam à solução de casos complexos de obsessão são sempre movimentadas e com forte traço de agressividade. Hortência estava sob fogo cerrado e era preciso desocupar, ou pelo menos aliviar, o espaço onde tentava sobreviver, pois estava infestado de crianças deformadas.

Tibiriçá, cuja função é capturar agressores e zombeteiros da lei, geralmente pede ajuda a outros Espíritos, que o atendem devido ao respeito que conquistou entre eles, quando precisa enfrentar a magia negra. Desta feita, uma mulher exótica, com voz metálica e afeita a dar ordens, estava com ele. Ambos seguiram com a médium até o quarto da pequena Hortência, iniciando-se o trabalho com a descrição da médium.

- Aqui estou com Tibiriçá e uma senhora muito valente que não quis se identificar. Todavia sei que ela é uma entidade da umbanda. Ela olha o cenário sem demonstrar medo ou admiração, com se estivesse acostumada a espetáculos dantescos como o que vemos. São dezenas de Espíritos na forma de crianças recém-nascidas, todas mutiladas, faltando pedaços, ensangüentadas, mostrando carantonhas horríveis.

Há sangue por toda parte. A mulher, que tem aspecto de guerreira, vasculha o ambiente com seu olhar felino e se detém na figura de uma negra que apresenta cerca de cinqüenta anos de idade e tem uma espécie de bacia de barro na mão.

No interior da bacia há seios cortados, muitos dele. Meu Deus! Agora entendo as dores que sinto nos seios desde ontem. Já marquei, inclusive, uma consulta médica para avaliar este problema. De alguma maneira, devo estar ligada desde ontem a esta entidade. A bacia está encharcada de sangue bem como as vestimentas da senhora negra. A guerreira se dirige para ela com as mãos fechadas, como se fosse agredi-la e a segura pela gola.

- Que está tentando fazer sua imbecil. Até mesmo entre os maus uma criança deve ser respeitada. Se lhe restou algum juízo depois que foi torturada, desfaça já esse trabalho sujo. Aprenda a esperar a ordem natural das coisas. Pensa que pode ser mais do que Deus?

- E quem foi que disse que tenho medo de você, sua arrogante. Para nós Deus não existe, pois nos abandonou à própria sorte. Isso aqui é Quimbanda! É dessa maneira que resolvemos nossos problemas. Se tem coragem para me enfrentar entre na roda; se não tem, corra depressa antes que a panela ferva.

- Aqui estou para impedir que você desça mais fundo do que já conseguiu. Não queira medir forças comigo, pois não tem energia para isso. Põe fogo nessa bacia ou eu mesmo te obrigo a deixá-la em pedaços.

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- Quem você pensa que é para atrapalhar o meu serviço, sua vadia? Se quer provar do meu veneno se achegue.

- Olha bem para o meu rosto para que o respeite quando nos encontrarmos novamente. Por agora beija o chão e obedece!

Dizendo isso, a estranha derrubou a africana e a obrigou a vomitar tudo quanto tinha ingerido e a incendiar o conteúdo da bacia. Em seguida a entregou a Tibiriçá que ficou responsável por sua segurança.

E voltando-se para mim (a médium) explicou-me o que ocorria naquele quarto macabro.

- Aqui não tem nenhuma criança. Esses Espíritos se mantêm assim por vontade própria. Foram crianças, quando assassinadas na África, mas conscientemente optaram por permanecer com essa forma para assustar seus algozes. Isso é coisa pensada. É um pacto de sangue, coisa difícil de quebrar. Se quiserem podem, com o auxílio dos técnicos, retornarem a forma humana adulta, mas enlouquecidos de ódio, se aproveitam de suas cristalizações para induzir seus antigos pais a persistirem na vingança. É filho alimentado pai com a energia do ódio.

Foi esse trabalho que fez secar os seios de Margarida? Perguntei a africana que se queixava de estar cega e sem seus instrumentos de trabalho.

- Aquilo foi apenas um pequeno efeito. Ele vai pagar por todos os seios que decepou. Você não sabe o que é ter um filho arrancado de suas entranhas e vê-lo cortado a facão. Você sabe por que ele decepava seios? Por não gostava de seios fartos. Maldito!

- O que ele era? Dono de harém, chefe de tribo?- Assassino! Este é o seu nome e o seu título. Era o chefe da nossa tribo. Somos

bantos. Na condição de chefe que deveria servir ao povo, o maltratava, matava, vendia como escravo.

- Por que ele matava crianças?- Instinto assassino. Dizia que haveria fome com muitas bocas para comer. Mas

era pura maldade. Canalha! Imundo! Todos éramos escravas dele. Muitas das minhas irmãs chegaram aqui em navios, famintas, doentes, sujas como animais. Foram vendidas, humilhadas, separadas da família, e passaram a vida a limpar o chão dos brancos. Se um branco as quisesse como objeto sexual bastava tomar a força. Se negassem iam para o tronco. Sou escolada na história do meu povo. Por isso meu ódio é maior.

- Parabenizo pelos seus conhecimentos e sou solidário na sua dor, não no seu ódio. Desde já me coloco à disposição para auxiliar na busca pelo seu filho. Deve ser um grande guerreiro hoje.

- Não! Não quero dever nenhum favor a você nem a branco nenhum.- Está enxergando melhor? ( A mulher se queixava de dor os olhos).- Um pouco.- Deixe-me melhorar sua visão.- O que vai pedir em troca? Se é para não odiar àquele assassino perde seu

tempo. Hei de odiá-lo até o fim dos meus dias.- Julga que seu ódio é justo porque lhe faltam dados para entendê-lo.

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- Nada é compreensível. Como pode alguém prejudicar a tantas pessoas e ter proteção?Como pode o demônio ficar impune pelas maldades que praticou? Eu odeio o mundo, a Deus, aos homens, a tudo. Só existe o mal, as trevas, o demônio que encarnou nele.

- E se eu lhe mostrar nessa tela, fatos que a convençam de que Deus existe?- Não vai me convencer porque eu só conheço a tortura, o sangue, a dor. Agora

vocês vão me prender feito um bicho. Vão me engaiolar e defender a ele. São hipócritas como ele.

- Olhe para mim. Veja meu rosto. Ainda vamos conversar sobre a justiça divina. Virei durante o sono para conversarmos mais demoradamente.

- Você não entende mesmo, não é?Eu só vejo sangue. Tudo que eu vejo tem a cor vermelha. Que me interessa o seu rosto? Quero atitudes. Se quer ser meu amigo tome partido e me defenda. Se não pretende auxiliar-me nessas condições, desista.

- Somos teimosos quando se trata de ajudar nossos amigos.- A julgar pelos choques e maus tratos que recebi, sua amizade não é grande

coisa. Se tivesse visto uma filha pequena ser estuprada e morta não esqueceria facilmente a cena e perseguiria o assassino até os confins do inferno. Estou prisioneira e você se diz amigo. De que lado você está?

- De Deus- Houve um tempo em que pensei que ele existisse. Hoje não mais acredito nele.

Certamente é uma invenção para nos fragilizar e dominar com mais facilidade. Hoje acredito na força.

- Quer um calmante para dormir um pouco? Acredito que esteja cansada e necessitada de repouso.

- Não!- Precisa descansar. O ódio deixa qualquer pessoa exausta. Quer ver paisagens

com sua filha?- Não! - Não se interessa mais por ela? Dizem que é uma jovem muito bonita.- Enquanto estiver saturada de ódio prefiro não vê-la. Quando tiver depositado

todo ele no coração daquele assassino a buscarei.- Teme que ela desaprove o que você faz?- Não é isso. Sei que mentem quando falam dela.- Baseio-me no fato de que toda mãe reconhece seu filho. Se mostrarmos uma

imagem dela seu amor a registrará de imediato como verdadeira.- Chega! Arranje outra maneira para me torturar. Essa é dolorosa demais.- Julguei que falar de uma filha para sua mãe, trazendo-lhe boas notícias, fosse

motivo de refrigério para sua alma.- Não! Não quero! Quero primeiro matá-lo. Ai! Meu coração.Deve estar doendo muito. Dizem que o ódio vai obstruindo todas as veias e

artérias e acaba por enfermar seriamente este generoso órgão. Deixe que nossos médicos a examinem.

- Não! Vai passar logo! - Há quanto tempo não passa?

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- Jamais deixou de doer desde que me cortaram os seios e mataram minha filha- Então por que tenta enganar a si mesma?- A dor está aumentando agora...- Estamos em uma emergência médica. Nesses casos o paciente não tem vontade

própria. Vou lhe ministrar um calmante para que possa dormir. Quando acordar estará sob os cuidados de nossos médicos. Depois voltaremos a falar sobre sua filha.

A mulher foi adormecendo aos poucos, inclinando a cabeça sobre a mesa até que, colocada em maca seguiu para atendimento médico. A desconhecida saiu de cena e Tapuinha, uma índia que nos auxilia nos dramas onde a quimbanda predomina como arma ofensiva, veio em nosso auxilio. Eis como a médium continua a descrição do ocorrido

- Entre os que estão deformados existem alguns que apresentam brechas mentais através das quais podemos penetrar e quebrar os vínculos que os prendem ao passado. É o que vamos fazer agora. Pareço adentrar uma espécie de túnel, segura pela mão de Tapuinha. Não sei exatamente o que devo fazer, mas ela diz que servirei com intermediária, para os Espíritos que se apresentam cansados dessa luta inglória e podem sair do cenário com a nossa ajuda.

Em caso de comunicação não haverá diálogo, pois emitirei apenas palavras desconexas, servindo o intercâmbio como um choque anímico para despertá-los das cenas coaguladas na mente.

Noto que não estamos sozinhos. Existem Espíritos luminosos, médicos da equipe do doutor Bezerra participando desse trabalho. Eles recolhem as crianças como se fossem filhos e partem com eles deixando apenas os mais endurecidos para resgates posteriores.

Por parte da médium ouvimos apenas gritos e urros, gemidos e lamentos, até que se aquietou e adormeceu. Sem demora outra médium já entrava em cena.

- Veja meus dedos cortados! Aqui estou para mostrar o que ele fez comigo. Vocês estão sendo injustos tomando o partido de um assassino.

- Por que um chefe de tribo cortaria os dedos de um dos seus guerreiros?- Por que ambicionava sua mulher. Eu tinha um amor; acreditava nele, gostava

de viver nos campos da minha terra. Era um jovem de apenas dezoito anos quando ele cobiçou a minha mulher. Aprisionou-me e apoderou-se dela, estuprando-a na minha presença. Como me revoltei e o insultei ele mandou primeiro cortar-me os dedos e depois me matou.

- Por que veio até nós?- Para dar testemunho da maldade dele. Aqui está uma prova de que ele é um

assassino, portanto, não existem razões para protegê-lo, a não ser que também sejam assassinos.

- Não estamos em um tribunal. Isso aqui é uma emergência médica. Deixe-me ver seus dedos, pois conheço uma técnica para restaurá-los.

Como era um Espírito ainda muito ligado a eventos materiais, molhei minhas mãos e modelei cada ponta do seu dedo, induzindo-o a lembrar como eram suas mãos antes do incidente. Quando terminei o que chamei de tratamento, disse-lhe: verifique por você mesmo como tudo está perfeito.

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Ele olhou demoradamente para as mãos e respondeu: parece que sim. Parece não é bem a palavra. Quero que você teste se seus dedos estão regenerados escrevendo seu nome nesta folha. Insisti, dando-lhe uma folha em branco e um lápis. Ele escreveu em letras graúdas: Naibo

- Quer que consertemos sua cabeça?- Não! Certamente vão me pedir em troca que eu não mais o persiga. E isso eu

não farei. Não quero dever favores a vocês.- Não nos deve nada. Tudo de bom que conseguimos realizar vem de Deus.

Utilize bem seus dedos para que não lhe suceda algo pior.- Tenho bons planos para eles. Ainda vai ouvir falar de mim.- Queira Deus que seja para alegrar-nos sabendo-o feliz e em bom caminho.Assim terminamos aquela agitada semana na qual nossas reuniões foram

reservadas para Hortência. Deus, em sua infinita bondade, nos enviara aquele chefe de tribo para que o ajudássemos entre os espinheiros que ele semeara. Sempre fico feliz quando tenho trabalho. É uma felicidade difícil de explicar, mas, igualmente, difícil de largar.

As avós quimbandeiras

A situação da pequena Hortência era muito complicada. A falange de Espíritos que se mantinham com a forma infantil, ensangüentada, atraía muitos Espíritos interessados no sangue e nas energias desprendidas pelo ódio, material utilizado em práticas de magia negra.

O quarto da pequena era um caos que a todo custo era amenizado pela atuação dos pretos velhos e dos nossos instrutores, que tudo faziam para torná-lo habitável. Aos poucos eram retirados do local, aqueles que ofereciam condições de resgate, os penetras, os contratados, os atraídos pelo cheiro do sangue, para então, tratarmos dos enfermos e dos alucinados pelo ódio.

Ali este sentimento era palpável. Os médiuns em desdobramento sentiam sua pressão em forma de atmosfera sufocante, perturbadora, que provocava náuseas, dores de cabeça, tremores, sendo-lhes necessário muito equilíbrio para desempenharem as funções e as tarefas que lhes eram destinadas.

Diziam que penetrar na casa de Hortência era como mergulhar em uma piscina lamacenta na qual sentiam asfixia e sensação de estresse muito grande. Mas ao trabalhador espírita não cabe escolher tarefa. Se é para cavar ele cava: se é para voar ele voa. Foi assim que nos foi ensinado e é assim que agimos. Portanto, mais uma vez entramos na casa da pequena para auxiliá-la.

- Estamos aqui, Eu, Tibiriçá e seus ajudantes, para capturarmos agressores da pequena Hortência. Nosso objetivo, explica o chefe dos milicianos, é capturar e retirar do recinto algumas senhoras que trabalham com quimbanda. Os índios já se encontram com uma delas que se debate e os agride com palavrões pronunciados em seu idioma nativo.

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Vão encostá-la a mim para que você converse com ela. Espero segurar sua fúria, pois ela se debate muito, cuspindo a todos.

- Não vou sair daqui, coisa nenhuma! A escuridão já se abateu sobre este teto e a morte em breve virá buscar o assassino. Ninguém vai me impedir de concluir o que iniciei. Estou irada com vocês. Tenho que matar o desgraçado! Qualquer interferência terá toda a ira das avós da quimbanda.

- São realmente avós das crianças que ele matou?- Somos. Todas as que aqui se encontram tiveram netos e netas mortos por ele.

Unimos nossas forças para mandá-lo de volta ao inferno onde estava antes de nascer. Não nos interessa se ele se arrependeu. Arrependimento tarde é chuva fora de época que não é útil para a lavoura. Queremos a pele dele pendurada na ponta da lança dos nossos guerreiros e queimada pelas nossas ervas.

- Sei que foram maltratadas e que estão sofridas por seus netos. Mas nosso plano é ampará-los e encaminhá-los a novos renascimentos. Queremos retirá-los dessa forma infantil e deformada, torná-los homens feitos, guerreiros fortes, e enviá-los a terras ricas em caça e pesca.

- Não perca seu tempo em fantasias. No momento só a bruxaria deve comandar as ações por aqui.

- O que faz com ela? Que material utiliza?- Sangue! A matéria prima da nossa magia é o sangue.- E onde o consegue?- Cravo minhas unhas na garganta dele e tiro, tiro, tiro! Ele se apavora! Chora!

Ele vai morrer pouco a pouco, como aconteceu conosco. Morremos por dentro. Secamos pela falta de nossos netos e pelo ódio que os substituiu.

- O que faz com o sangue?- Misturo com o das crianças. Risco no chão a morte dele. Invoco os demônios

para que o levem.- Que desenho tem a morte?- O pavor! A dor! A sensação de assombro eterno.A comunicante, ao dizer isso, começou a bater sobre a mesa dizendo: vou matá-

lo! Vou Matá-lo!- Não bata na mesa. Coloquei pregos aí e não quero que se fira. Como era sua

neta?Alguns Espíritos, ainda muito apegadas à matéria, sentem a dor da perfuração

quando teimam em continuar batendo na mesa. - Para uma avó, toda neta é perfeita. Mas ele não matou somente meninas da

tribo dele. Eu pertencia a uma tribo vizinha, e ele em sua ânsia de dominação, nos invadiu. Levava nossos guerreiros para vender, roubava nossas cabras, nossas peles e nossas mulheres para acasalar. Crianças ele matava.

- Naquela época já entendia de magia negra?- Desde criança que lido com isso. Crianças aprendem com as avós. É uma

espécie de tradição na tribo. É a nossa religião. Se não temos inimigos usamos nossa magia de ervas para curar doenças. Se os temos para atormentá-los.

- Lembra do nome dele?

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- Damiano. O rei do inferno! Estou muito cansada. Preciso retornar para meu posto.

- Ainda não. Poderá passar o restante da noite aqui e descansar. Amanhã retomaremos esta conversa. Como esta com muito sono, sugiro que deite nesta maca. Ninguém lhe fará nenhum mal.

Mas não somente uma médium havia sido desdobrada até a casa de Hortência.- Confirmo que o clima aqui é fumarento. O ar esta infestado pela atuação de

quimbandeiros e de aproveitadores que terão que ser removidos. A tragédia das crianças deformadas e ensangüentadas é como um imã a atrair viciados em sangue. Que coisa! Por que tanto Espírito gosta disso?

Tibiriçá diz que não é ocasião para perguntas. Que devo me ater ao trabalho, que no momento, requer o máximo de atenção. Ele me mostra um Espírito que em nada se diferencia de um sapo. É enorme e está se alimentando de uma espécie de gosma que se forma no ambiente como resultado do caos que aqui impera.

Ele pula como um sapo. Sua língua alcança certa distância e se gruda à gosma que lhe falei. Seu alvo no momento são os fluidos da menina e da mãe dela. Devo registrar que é a primeira vez que vejo um cenário assim. Ele está bufando, agora que me viu! É do tipo raivoso, adverte Tibiriçá. Sem se deter para explicações o chefe dos lanceiros eleva sua lança e a atira. A cena é tão rápida que quando vi a lança novamente, ela estava cravada no pescoço do sapo.

Ele está rodopiando sob os olhares atônitos de alguns aproveitadores, que se dispersam temerosos. Tibiriçá e os guerreiros invadem a área e lançam uma grande rede sobre ele. Espero que.... Não! Mas é justamente isso que vão fazer! Vão encostá-lo em mim para que você o escute.

A médium começou a tremer e a dar sinais de engasgo, que na verdade eram tentativas do Espírito dizer o quanto estava odiando aquela situação. Tentando levantar-se e reagir, urrava, gemia, colocava sua longa língua para fora a fim de nos atingir com sua gosma. Finalmente consegui dizer

- Vou cuspir em você, seu imbecil. Meu veneno vai deixar sua pele em frangalhos.

- Há um campo entre nós que impede qualquer contato. A cada vez que se debate a lança penetra mais fundo. Para seu próprio bem é melhor acalmar-se e esperar que os técnicos a retirem.

- Marquei seu rosto. Você vai morrer.- Vou morrer quando minha hora for determinada por Deus. Enquanto ela não

chega continuarei fazendo meu trabalho. Vou injetar este liquido em seu braço para que se acalme. É um calmante muito forte que o fará dormir.

A sugestão funcionou, mesmo porque eu havia pressionado o braço da médium no local onde, geralmente, se toma injeção na veia, para que o comunicante, sentindo o efeito da pressão a interpretasse como a introdução de uma agulha em seu corpo. Sem demora ele tombou sobre a mesa.

Mas já outro visitante exigia minha presença com nervosas gargalhadas.- Que engraçados! Pensam que é com meia dúzia de palavras que vão dominar

a mim e a quem está lá? É muito difícil! Não é assim que se esfola um gato não, amigo.

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- Se vem de lá, poderia dizer-me em que tipo de trabalho se empenhava, quando foi capturado?

- Sou uma espécie de ajudante de equipe. Como não tenho especialização em magia negra nem em hipnotismo, fico fazendo mandados. Mas o senhor sabe que todo cargo é importante. Sem a ação dos pequenos os grandes param.

- Tem certa razão. Mas não estou entendendo as gargalhadas. Estamos diante de uma tragédia e você rindo como se estivesse de braços com a felicidade.

- É isso! Estou feliz! Tudo está se encaminhando como o combinado. Suas palavras no meio daquele vendaval não vão produzir efeito nenhum.

- Perdeu algum filho para ele?- É claro! Quem ali no meio daquele matadouro não perdeu? - Quantos?- Não quero lembrar isso!- Quantos?- Já disse que não quero me lembrar desse fato. Ele me fragiliza toda vez que o

recordo. Fui trazido à sua frente para uma conversa de homem para homem e não para que você falasse da minha antiga família.

- Antiga? Quer dizer que já a descartou? Que já não se interessa por ela?- Não distorça o que eu disse. O que quero é evitar que essa conversa me

amoleça.- E amolecendo irá dar prioridade á busca de seus filhos? É disso que tem medo?

De encontrá-los e abraçá-los?- Diabo de homem teimoso! Eu tinha duas filhas.- Por que só fala no passado? Não seria melhor dizer: tenho duas filhas?- Você está sendo inconveniente. É melhor me liberar antes que nos tornemos

inimigos.- Talvez tenha razão. Acho que não é a pessoa que me disseram para ajudar a

encontrar as filhas. Deve ter havido algum engano. Com quem deveria conversar, disseram, amava demais as filhas e jamais trocaria o amor delas por futricas.

- Ninguém lhe disse nada. É apenas um mentiroso tentando se aproveitar de um pai desesperado.

- Desesperado para que? Para voltar à casa da criança e enchê-la de sopapos?- Ela não é uma criança. É um assassino. Por que não entendem isso? É um

assassino escondido no corpo de um bebê, mas é um assassino.- Quando vejo uma criança, logo me lembro dos meus filhos quando tinham

aquela idade. Crianças são frágeis e dependentes. É preciso ser muito covarde para agredir alguém tão indefeso.

- Pois era isso que ele fazia. Preciso voltar para lá. Se o matarmos acabaremos com o drama daqueles bebês esquartejados.

- Isso não é verdade. O motivo que os mantêm esquartejados é o ódio e o desejo de vingança. O esquecimento das ofensas logo abriria margem para que nossos médicos curassem a todos. Mesmo que o matem, o ódio continuará em seus corações e o buscarão no além-túmulo para torturá-lo. Acho que já viveu o bastante para saber que

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esse tipo de ódio só se desfaz com o perdão. Talvez seja melhor enviá-lo a outro dialogista. Não é mesmo o homem que disseram que me procuraria.

- Quem lhe disse isso?- Meu instrutor. Disse que um homem com saudades das filhas me buscaria. Que

o atendesse com boa vontade e dissesse que sabemos onde elas estão.- Por que mente em caso tão importante? Pelo amor de Deus, não me tire

daquela casa.- Agora deu provas de que é a pessoa certa! Quando pronunciou a palavra,

“Deus”, entendi que ainda há amor em você. Ainda acredita Nele?- Eu sempre acreditei em Deus. Mas ele foi muito injusto comigo. Deixou que

matassem minhas filhas.- Deus é justo por excelência. Nosso entendimento é que é curto para alcançá-lo.

Aceita ficar conosco para terminarmos esta conversa logo mais quando eu for dormir? Temos as explicações corretas e nossos instrutores saberão como encontrar suas filhas.

- E ele?Ficará impune?- Quem com o ferro fere com o ferro será ferido. Essa é a lei da vida.

Responderá por cada crime cometido contra crianças; pelo desrespeito aos idosos; pela agressão às mulheres e a quem quer que tenha ofendido. Qualquer Espírito está submetido a essa lei.

- Sabem mesmo onde minhas filhas se encontram?- Sabemos. Aguarde junto aos guerreiros de Tibiriçá. Ele o atenderá quando a

reunião terminar.Apressei-me, pois outra médium, com ânsia de vômitos há alguns minutos, me

buscava. - Que está sentindo? - Aquela casa é maldita. Disseram-me para passar por lá que a farra estava

boa. Boa, coisa nenhuma! Informaram que tinha sangue, energia de angústia, de ódio, esses petiscos que a gente gosta. Que nada! Passei mal! Para completar ainda fui capturado por esses índios. Veja! Estou machucado.

- É. Parece que não deu sorte. Quem sabe com uma prece...- O quê! Ainda escutar sermão? Só pode ser um pesadelo. E o que fizeram das

minhas asas? Com essa maré de azar só me falta ficar preso aqui.- É o que vai acontecer. Estou sem tempo para conversas longas e vou entregá-lo

aos cuidados dos lanceiros. São ótimos corredores. Não tente nada para não se arrepender.

- Sei.Com certos comunicantes, não convém esticar conversa, pois o tempo disponível

deve ser utilizado para casos mais sérios. Aquele Espírito era um “penetra” em busca de alguma vantagem. Uma hiena tentando se aproveitar dos restos alimentares após o repasto dos leões. Personagem assim, na maioria das vezes, é retido por algum tempo e depois, sob severas advertências, libertado. Movi-me. A dança em uma reunião mediúnica não pára.

- Eu só estou aqui para dar um recado e ir embora. Pediram-me este favor, e como não me custa atender, vou lhe passar o recado.

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- De onde partiu o pedido?- Isso não interessa. O recado serve para que você se situe melhor no contexto

do drama. Eu era um guerreiro do grupo que protegia este assassino na África. Mas nem todos nós concordávamos com o que ele fazia. Ele maltratava as pessoas. Nossa tribo era enorme. Daí o grande número de inimigos que ele tem hoje. Fugi da tribo porque não concordava com as atitudes dele. Não o odeio. Penso que ele é apenas um iludido que se deu mal. Sou neutro nesse episódio. Vim apenas para dizer que nem todas as pessoas que o protegiam concordavam com ele. Alguns o lamentam, outros o detestam, mas não é o meu caso. Apenas observo.

Em uma reunião mediúnica surgem fatos novos a todo instante. O doutrinador precisa estar atento para reunir os dados e formar o enredo correto. Existem as informações falsas, as profecias que não se realizam, as “intuições” encomendadas, próprias de um jogo de gato e rato. É preciso avaliar tudo com cautela, utilizar à lógica e o bom senso, e se necessário, indagar diretamente os instrutores espirituais sobre comunicações suspeitas. Mais uma vez outra médium deslocou-se até a casa da pequena Hortência para nova missão.

- O jovem que se comunicou agora tem razão. As crianças esquartejadas estão protegidas por guerreiros que se sensibilizaram com o sofrimento delas. Ao desencarnarem, acostumados à arte da guerra, pois a tribo não oferecia estudos nem outras opções que não fossem as voltadas para a sobrevivência, ou seja, caça, agricultura mirrada e guerra, entraram em contato com essas crianças, e até mesmo para se engajarem em alguma tarefa que os mantivessem ocupados, se organizaram em torno delas para justiçar o chefe sanguinário que os dirigia.

São homens sem perspectiva, acostumados à guerra, ainda não burilados nem aptos para se organizarem em uma sociedade fraterna. Parecem sentir falta de alguém que os lidere, pois têm tendência a obedecer a um chefe. Não parecem maus. Apenas ainda não conquistaram valores que os capacitem para uma vida com objetivos mais transcendentais. Aparentam ser muito ligados a terra; mais força que intelecto. Não vai aqui nenhum preconceito contra eles. É uma análise que faço baseada na vida que tiveram e pela maneira como respondem às questões que enfrentam agora.

O jovem guerreiro que está comigo diz que a minha análise foi boa, mas que eles já têm uma noção de justiça bem acentuada, pois souberam muito bem definir-se a favor dos massacrados. Ele está aqui para me auxiliar a retirar uma criança esquartejada. Não sei por que esta em especial, mas ela terá que apartar-se das demais. Há planos para ela.

A criança está muito perturbada. Não a sinto arrependida nem motivada para largar a luta. Muito ao contrário. Ela resiste para ficar com as demais e o seu ódio é intenso. Como existe na falange uma sintonia formada por este sentimento negativo, mais difícil é arrancá-la do círculo que a atrai e a mantém agrupada.

- Assassino! Assassino! Não me tirem daqui! Eu preciso ficar e matá-lo! Não! Não! Não! Maldito! Eu vou te matar! Quem ousa me arrancar daqui!

- Estou lhe retirando para levá-lo a uma vida melhor. Preciso entregá-lo aos seus pais. Todos se alegrarão com sua chegada...

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A médium foi adormecendo aos poucos, o que significava que a criança estava segura nos braços de algum instrutor nosso. Outra médium que a auxiliava descreve o cenário da casa, sempre renovado por sucessivas visitas de nossos dirigentes.

- Consigo ver no aparente caos aqui instalado, alguns médicos, pretos velhos com suas ervas e nossos amigos franciscanos. Se não fossem eles, Hortência estaria muito pior. Quem sabe até desencarnada. Essa proteção está garantindo um pequeno bem-estar para ela e para a mãe.

Estamos aqui para levar alguém que está aprontado algumas trapalhadas. Tibiriçá diz que foi ele quem explodiu o copo no meu rosto hoje, e que por milagre, os fragmentos não atingiram meus olhos.

A médium estava em casa junto ao filho e, de repente, ao tentar tomar um copo com água, este explodiu em vários fragmentos em sua mão, fato que a assustou e a deixou confusa devido ao acontecido.

- Estou de passagem. Vim aprender com os mestres que estão dando um curso intensivo por lá.

- E o que já conseguiu aprender? - Pouca coisa. A magia traz respeito. Todo mundo quer contratar quem sabe

manejar essas forças. Quero que respeitem o meu poder.- Só vale a pena respeitar o poder quando ele emana de Deus. Outro tipo de

poder é força desgovernada.- Iguais a mim tem muitos lá. Não tenho nada a ver com o caso. Entrei no frevo

para me escolar.- Ouvi dizer que tentou agredir uma mulher hoje, invadindo-lhe a casa e

quebrando um copo em suas mãos.- É verdade. Para você vê como a magia é útil. Absorvi as energias lá e elas

passaram a fazer parte de mim. Fiquei igual a uma pilha. Com essa energia cheguei perto do copo e utilizando a vontade disse: explode! E ele explodiu. Mas esse índio estava espreitando e se lançou entre o copo e a mulher. Se não fosse ele os cacos teriam feito um bom estrago no rosto dela. A partir daí ele me aprisionou e tive as aulas interrompidas.

- Fez uma coisa muito grave. Pelas leis dos índios deverá passar bom tempo em trabalho de campo, lavrando a terra, até que tenha expiado todo mal que há em seu coração.

- Sei que é o manda-chuva por aqui. Se pedir aos índios que me soltem eles o obedecerão.

- Fez o pedido à pessoa errada. Eu é que obedeço ao que eles dizem. Por sinal já me disseram que você está aqui para desfazer um trabalho que iniciou. Portanto, Já que sente necessidade de aprender algo, iniciemos por desfazer o mal feito praticado.

Não é raro que o comunicante se recuse a atender a ordem de desfazer um trabalho, mas, também, é comum, diante da aplicação de técnicas que o imobilizam, o fazem sentir choques, pesos enormes sobre a coluna, coceiras e queimaduras na pele, vomitar tudo quanto engoliu, que obedeça prontamente.

- Pronto! Aí estão! As ervas, a areia, o sangue! Tudo! Maldita hora em que eu vim parar neste local!

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- O que pagaram para que você invadisse a casa da mulher e explodisse o copo?- Conhecimento. Ensinaram-me a fazer. Também me deram sangue, e energias

para outros trabalhos.- Agora vai receber ensinamentos sobre agricultura. Segundo meu pai, que era

sertanejo, não há nada mais lindo que um roçado de milho com seus pendões balançando ao vento. Não faça nada que desagrade aos índios. Eles são muito amigos, mas não são bestas.

Tendo alguns minutos restantes ainda houve tempo para mais uma comunicação.- Que coisa boa! Esse poço não seca nunca! Vocês tiram um e trazemos dez. O

malditozinho esta piorando. Eu estava lá neste minuto e posso afirmar que ele se encaminha para o buraco. Já lesou até o corpo físico. Não tem jeito! Matou, tem que morrer!

- Preciso saber qual sua função neste caso para averiguar se volta ou não a trabalhar nele.

- Volto! Gosto de ver o circo pegar fogo. Sou olheiro e presto contas do que observo.

- Presta contas a quem?- A Deus. - É certo que prestamos contas a Deus de todos os nossos atos. Quero saber o

motivo da sua vingança.- Nenhum! Ele nada fez a mim. Mas tenho notícia de que fez mal a muita gente

indefesa. É um monstrinho que a gente tem que observar e cortar as asas. - Se não tem relação com a briga por que entrou nela?- Gosto de ver a palha voar. Se tem confusão estou nela. Digamos que sou um

observador da natureza humana e que hoje ele vai ter uma piora especial.- E pensa que estará lá para verificar isso?- Claro! Estou a serviço da justiça. Obstrução da justiça é crime. Esses índios

que me trouxeram, certamente, me levarão de volta. Se houver problema passo uma conversa neles.

- Está confundindo índio com ignorante; guerreiro com imbecil. Como eles escutaram o que disse já temos um problema aqui: acalmá-los para que não lhe ministrem uma boa sova.

- Acho que não usei o verbo adequadamente.- Como estão os rostos deles?- Sérios! Parecem que vão enfrentar um leão. Mas sou apenas uma formiguinha,

cara.- Deixo a seu cargo se justificar pela ofensa feita aos nossos guerreiros. Está sob

os cuidados deles. Quem sabe um pedido de desculpa sincera não lhe caia bem? - E o que vou ficar fazendo aqui? Tenho que cuidar do monstrinho.- Continua usando o verbo inadequadamente. Cuidarão da criança os bons

Espíritos e de você os guerreiros. Deus cuida de tudo e de todos. Boa sorte! Vai precisar!

Confesso que fiz um pouco, só um pouquinho, de terrorismo com ele. Os guerreiros agem com lealdade e justiça. Estão preparados para a guerra e atuam em

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combates. Com prisioneiros apenas fazem a guarda sob as ordens de Espíritos superiores.

De coração leve pela tarefa realizada, nos despedimos para nossos afazeres. Deus velaria por Hortência até nossa volta. Senti aquela sensação de estar à frente do tempo e acima do espaço, que às vezes sinto, quando viro a chave do templo onde trabalho. Alguns chamam isso de amor ao trabalho. Chamo de missão cumprida.

O guerreiro da lua

A pequena Hortência havia passado uma semana com muito cansaço, falta de sono, perturbações que atingiam também sua mãe, Margarida. Todavia, esta continuava firme em sua fé, a trazê-la para tomar passes e a frequentar o curso sobre iniciação à Doutrina, com a mesma robustez que apresentara na entrevista.

A falange dos esquartejados, ciente de sua força, não retrocedera em seus ataques, antes os recrudescendo, com a finalidade de acelerar a passagem do Espírito a quem perseguia, para seu domínio.

Iniciamos a reunião naquele dia com cuidados redobrados. Deus, senhor dos mundos, ligado em uma simples folha de sua criação, jamais abandonaria seus filhos no campo de trabalho. Mesmo assim, havia uma parte sob nossa responsabilidade que precisava de perseverança e de fidelidade.

Feita a prece inicial, de imediato, um médium foi levado através de desdobramento a uma região desconhecida por todos do grupo. Apesar da asfixia que passou a sentir, iniciou a descrição do entorno, tentando situar o doutrinador para os eventos seguintes e encaminhá-lo à postura a ser assumida em diálogo.

- Isso parece uma coisa sem fim. É uma espécie de muralha enorme, verticalmente muita alta e sem limites na horizontal. Há um vigia, guardião ou sentinela que vela por ela. Com sua habilidade em subir, descer, e locomover-se, ele tenta me intimidar, inclusive, desaparecendo e reaparecendo próximo a mim.

Ele é muito rápido, apesar do seu aspecto pavoroso que lembra um sapo. Como se desloca na vertical, presumo que suas patas têm ventosas que o grudam ao muro sustentando-lhe o peso. Ele agora me encara agressivamente.

Toquei no muro e senti que é como uma geléia, ou seja, é algo que permite ser atravessado. Ao permanecer com a mão sobre ele, como se minhas “digitais” não fossem reconhecidas, ele se tornou sólido na região em que o toquei.

Agora percebo junto a mim, mais uma médium, Tibiriçá, Tapuinha e um grande número de guerreiros, todos armados e pintados para a guerra. Não sei o que nos espera do outro lado desse muro, mas que vai haver uma batalha, não tenho dúvidas.

Quatro pessoas desconhecidas passam frente a mim e se dirigem para o muro. Pelo que vi na mão de uma delas, uma bolinha luminosa, e como sei que é uma arma altamente explosiva, devastadora mesmo, pois já a vi em ação (espécie de bomba de alto poder explosivo que afeta apenas obstáculos materiais) em outros resgates, acredito que esse muro sairá do contexto em segundos.

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Ocorreu o que eu disse. Tudo ruiu diante de um cogumelo luminoso. O guardião já se encontra nas mãos dos guerreiros e a tropa avança sob o comando de Tibiriçá. Ganhamos terreno, mas paramos diante de novo obstáculo. É difícil acreditar no que vejo. Tudo é espantoso. Parecemos estar em um mundo estranho, um cenário semelhante aos filmes de guerra medievais, uma ficção ou epopéia imaginada por uma mente criativa e agressiva. Se alguém me contasse sobre o que vejo aqui, certamente duvidaria. Estamos dentro de um ambiente que lembra uma grande placenta, ou útero, não sei bem.

Tem vilosidades. Nos meandros dessas vilosidades se abrigam “crianças” esquartejadas, iguais as que se encontram rebeladas. Acho que é uma maneira de se protegerem contra agressões do meio e de inimigos externos. O que vejo aqui é coisa engendrada por mente humana e não um cenário formado pela natureza.

Começamos a passar mal. É como se alguém nos tivesse cortado o ar, que, aliás, aqui é insuportável. Mesmo os guerreiros encontram dificuldades em meio tão hostil. Adaptar-se a esse clima de ódio e de agressão é algo que parece estar acima de nossas forças.

Tibiriçá organiza a tropa, incentiva os guerreiros, manda que nos amparem, pois sente que estamos quase desfalecendo.

Na verdade os dois médiuns demonstravam enorme sinal de estresse e cansaço. Ânsias de vômitos os obrigavam a levar a mão à garganta tentando aliviar a agonia que os tomara. Por nossa vez orávamos e ministrávamos passes sobre eles incentivando-os a que buscassem suas reservas de forças, pois, certamente, Tibiriçá não os levaria tão longe apenas para mostrar-lhes um cenário de guerra. Lembramos de Emmanuel, o disciplinado mentor de Chico Xavier, que deixou impresso no seu excelente livro “Paulo e Estevão”: Que cada discípulo possa entender quanto lhe compete trabalhar e sofrer, por amor a Jesus Cristo.

Quando tudo parecia insuperável, que nossos guerreiros encarnados capitulariam diante da agressividade do meio em que estavam, um deles, vencendo a angustiante asfixia gritou:

- Vejo uma luz que se aproxima! É forte como o Sol. É um grande risco no horizonte, formando o próprio horizonte, que se agiganta e vem em nossa direção. A luz derruba tudo ao redor; passa por cima de tudo; vem levando qualquer obstáculo que tenha a ousadia de se colocar à sua frente.

Estou tremendo dos pés à cabeça! Mesmo porque o tropel dos cavalos faz também a terra tremer. Deve ser a luz de Deus que invade as trevas. São guerreiros luminosos! Vejo à frente da tropa uma espécie de anjo guerreiro, montado em um cavalo muito grande. Ele se destaca dos demais pela luminosidade. De espada em punho organiza a batalha, ordena que cerquem os rebeldes, dita ordens. Seus auxiliares, todos armados, atiram redes, fazem verdadeiras varreduras, capturando a horda. Isso é que é batalha! São centenas! Todos atirando redes. O general os incentiva!

- Chega de rebeldia às leis divinas! Acabou a desordem! A partir de agora a bandeira do Cristo tremulará nessa região. Que toda treva seja banida! Toda violência

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desarticulada! Toda maldade vencida! A luz que Jesus fez brilhar no mundo reinará aqui também!

Ao pronunciar tais palavras o médium agigantou-se em palavras e gestos. Seu braço erguido, como a segurar uma espada, rodopiava entre nós, ora apontando em uma direção, ora para outra.

- Que a luz expulse as trevas! O bem não pode ser detido pela ignorância! Vamos meus bravos! A criação de Deus não pode se voltar contra Ele! Os limites da tolerância foram ultrapassados! Este pedaço de terra tem que refletir a bondade de Deus! O que não pertence a Ele que seja extirpado!

- A voz do comandante causa verdadeiro desespero entre os habitantes da placenta. Diria que há apenas tentativa de fuga, e não resistência. O arrastão continua. Há correria, gritaria, maldições, quedas espetaculares, redes voando, espadas luzindo, cavalos que se empinam mostrando suas patas dianteiras elevadas.

Os rostos dos guerreiros permanecem serenos, como se fizessem uma operação necessária não vinculada a um combate. Organizados e, certamente, em obediência a um plano pré-estabelecido, cercam tudo, derrubam obstáculos, capturam qualquer coisa móvel e a obriga a adentrar uma espécie de gaiola. Prisioneiros são libertados, mas igualmente controlados para averiguação. Um dos guerreiros passou próximo a mim! É belíssimo! Quando eles se aproximam de algo, iluminam tudo ao redor. A noite virou dia com a presença deles. Detenho-me em observação do cenário. Árvores ressequidas, lama petrificada, aves agourentas. Os guerreiros continuam aprisionando os rebeldes.

Não sei quem é o comandante, mas a semelhança com a figura de São Jorge é inegável. Se tiver alguma chance pergunto se é o guerreiro da lua que comanda esta batalha. Suas feições são tão brilhantes que é preciso fixar o rosto por algum tempo para perceber algum detalhe. Suas armas à vista, armadura, lança e espada, mais servem para direcionar que para atacar, pois toda sua autoridade se reflete dele mesmo, causando medo e uma sensação de que é inútil resistir. Seu cavalo é muito branco, musculoso, ornado por um manto com bordados dourados.

Todos os combatentes do batalhão estão uniformizados. Usam trajes brancos com tons azulados, e mostram alguma semelhança com os guerreiros romanos. Com eles, vieram técnicos, igualmente, capacitados, que se encarregam de colocar as “crianças” em macas. Vou descrever o que eles fazem com uma delas.

Eles a colocam em uma espécie de maca, feita de um material semelhante ao mármore branco. A criança parece um pequeno monstro ensangüentado. Quatro deles ocupam os cantos da maca e colocam as mãos seguindo os ângulos retos da mesma, de forma que vejo oito mãos com as palmas voltadas para a criança. Concentram-se como se estivessem em oração e tudo fica tão luminoso que não percebo mais a criança. Quando volto a vê-la já não é criança, mas um Espírito adulto, deformado, com o corpo semelhante ao de um escorpião. Apenas sua cabeça é humana.

Posso afirmar que ele é meio homem e meio escorpião. De sua mente se projetam imagens mentais, como se houvessem sido liberadas sob a força hipnótica dos técnicos. As imagens que se projetam ao seu redor são de um feiticeiro que fazia

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sacrifícios humanos utilizando crianças como vítimas. Eles as esquartejava. Agora o Espírito é posto para dormir. Parece que vão empregar esta técnica com todos.

Não sei exatamente o que eles fizeram, mas foi rápido. Diria, intuitivamente, que penetraram na mente do enfermo e de lá tiraram a trava, o bloqueio, a cristalização, fazendo-o mostrar-se tal qual é na realidade. O enfermo, que se mantinha perispiritualmente modificado por sua vontade ou por hipnotismo, teve o comando mental anulado e recebeu uma ordem irrecusável de assumir o “traje nupcial” compatível com seu estado evolutivo.

Daqui partirão para cirurgias reparadoras, modelações perispirituais necessárias, sobretudo, educação mental visando amenizar o sofrimento moral de que são portadores. A lei do progresso parece ter chegado a este pedaço de mundo enegrecido, mostrando claramente que ninguém zomba da Lei por muito tempo.

A batalha ainda se desenrola sem nenhuma chance de vitória para os rebeldes. Há centenas deles adormecidos em macas, em espécies de gaiolas, na verdade, prisões temporárias para que sejam retirados de combate e aguardem o tratamento que lhe falei.

Aproximo-me de uma das “crianças” aprisionadas. Sua forma infantil não tem a meiguice desses pequenos seres. É tão escura que não há nitidez em seu rosto. São sombras, hematomas, pústulas, sangue. Aqui só o amor, com suas mãos cariciosas, conseguirá modificar tão apavorante quadro.

Ainda há muito movimento por aqui. Tibiriçá diz que devemos dormir cedo e nos prepararmos para mais trabalho durante o sono. O choque da batalha passou, mas seus efeitos vão continuar durante dias.

Nessa reunião comunicaram-se prisioneiros apavorados, escravizados pelos que chamavam de “demônios da escuridão”. Demonstraram medo profundo, esgotamento, sinais de loucura em meio a um pouco de lucidez desesperada. Foi a nossa maneira de participarmos da batalha, epopéia difícil de descrever, e para muitos, de acreditar.

Mas estamos no Espiritismo a serviço. Se nossos instrutores, no afã de ajudar a superar as dores do mundo, nos levam a tais cenários e nos autorizam divulgar o que ocorre além de nossas pedreiras materiais, alguma utilidade deve haver.

Como atuamos e pesquisamos nos campos da mediunidade e da obsessão, e como não somos os únicos, muito provavelmente, outros grupos têm a chance de encontros semelhantes aos nossos. Tais relatos são testemunhos de que a vida no além continua em sua diversidade sem fronteiras. Confirmam que, através dos seus auxiliares, Deus se faz presente em qualquer recanto do universo. Que em nenhum lugar a ignorância domina soberana, pois as rédeas do universo sempre estiveram nas mãos Dele.

Por outro lado incentiva a que novos grupos mediúnicos se aperfeiçoem para que sejam utilizados como auxiliares dos bons Espíritos em seus trabalhos de resgates. A seara de Jesus é imensa e diversificada. Há trabalho para todos, em qualquer nível de evolução. Candidate-se e verá.

O estranho e compreensível sentimento materno

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Um filho é uma evocação muito forte. Não é propriedade da mãe, mas prioridade em sua bonança e amargura em seu sofrimento. Por um filho ela enfrenta exércitos e desertos; planta jardins, limpa fontes e aplaina caminhos.

Um filho é como a linha do horizonte, cuja função é impulsionar o caminhante para novos passos. O coração de uma mãe é como o coração de um guerreiro. Está sempre pronto para uma nova batalha.

Quão estranho, compreensível e maravilhoso é o sentimento materno. Já se tornaram comuns, cenas de mães desesperadas diante de presídios, enquanto seus filhos queimam colchões, agridem vigilantes, ameaçam matar quem lhes evite a fuga. Elas sabem que eles estão errados, que violaram leis justas, que são, às vezes, ladrões e assassinos, mas os amam como se fossem anjos imaculados.

Mas o sacrifício materno não se contenta com apenas isso. Desde que o filho é gerado, ainda no útero, procuram fazer o melhor que sabem, sacrificam-se, e se dependesse da vontade dessas heroínas, optariam por morrer no parto, conquanto seus filhos fossem salvos. Quando eles nascem, elas ficam sem comer, se o alimento é pouco, pois preferem alimentá-los que a si próprias. E ainda mais. Se o alimento é suficiente, a melhor parte é para eles.

Por isso estabeleci como definição para minha mãe, já desencarnada, uma frase com cheiro de sertão cearense que bem define a sua garra ao criar dezessete filhos, multiplicando o alimento de cada dia qual Jesus fez com pães e peixes: Minha mãe era uma mulher muito bonita. Chorava sem botar água e achava graça sem fazer barulho . Mas tenho a certeza absoluta de que esta frase define todas, pois todas são reflexos da bondade de Deus na Terra. Concordo com Chico Xavier, quando disse: Mãe que abandona os filhos é caso patológico.

Não há quem não se emocione com elas. Sejam encarnadas ou desencarnadas esse sentimento não muda. Encarnadas e abandonadas pelos maridos, não largam os filhos nem na fome nem na doença, preferindo morrer ao lado deles tentando ajudá-los. Desencarnadas, os buscam desesperadas sem se deter diante de qualquer perigo para tê-los em seus braços.

O amor materno é tão forte que o doutrinador, diante de uma mãe que por algum desespero esteja perseguindo alguém, pode perguntar: Prefere continuar nessa briga inglória ou abraçar seu filho? Ela é tomada por uma onda avassaladora de ternura e começa a ver centenas de imagens que se atropelam em sua mente, todas relacionadas com seu filho. Se o doutrinador mostra uma cena com a figura dele, ela geralmente chora e se entrega.

É uma carga de emoção da qual ninguém se isola, pois é tão palpável que faz vibrar até mesmo as células materiais dos componentes do grupo. Se alguma mãe ler este depoimento que agora escrevo, lembrar-se-á da sua mãe e não de si própria, tão generoso é este sentimento, pleno de doação. Nossa reunião mediúnica começou com uma delas, muito perturbada.

- Estou novamente no quarto de Hortência. A confusão ainda é grande, uma vez que mães e pais das “crianças” retalhadas se encontram desnorteados, tentando inutilmente reatar um vínculo com elas, agora prisioneiras e em assistência.

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Eles tentam continuar os trabalhos, riscam pontos no chão, procuram manter a rotina, mas não conseguem o resultado anterior. Parece lhes faltar potência, a força mental que as “crianças” forneciam.

O berço de Hortência está protegido por uma espécie de véu. Parece com um mosquiteiro, mas é luminoso. É um campo protetor contra as energias agressivas emitidas contra ela.

Tibiriçá lembra que os filhos deles, as “crianças” retalhadas que aqui estavam, eram auxiliados pela falange que foi desarticulada pelo guerreiro da lua. Como agora estão sem essa ajuda extra, sentem-se perdidos, sem um comando para orientá-los.

Na condição de cacique, Tibiriçá entende que os guerreiros sentem falta de um chefe em quem possam confiar e de quem recebam orientações seguras. Eles estão órfãos, diz Tibiriçá. Mas não se engane quanto ao teor de ódio que eles conservam. Este parece ter duplicado. Uma mãe vem em minha direção e...

- Sua cadela maldita! O que fizeram com nossos filhos? Precisamos deles. São nossos! Pensa que só porque odiamos um assassino não temos amor em nossos corações?Devolvam-nos nossas crianças. Precisamos delas para prosseguir!

- Precisamos de Deus para prosseguir viagem. Ele é nosso pastor e guia. Buscando a Ele em primeiro lugar, tudo mais nos será dado como acréscimo.

- É melhor calar sua boca mentirosa antes que nosso ódio se volte contra todos vocês. Não acreditamos em Deus. Se Ele existe é cruel, tirano, desinteressado da sua criação, pois permite que assassinos dominem o mundo. Vocês são iguais a Ele. Tiram tudo que temos e ainda querem nos impedir a defesa. Vão pagar caro por tudo isso, pois jamais desistiremos. Vamos permanecer aqui até que ele morra.

- Entendo seu ódio, mas garanto que as “crianças” estão sendo bem tratadas e orientadas para um futuro melhor. Em breve poderão vê-las.

- Mentirosos. O que alguém pode esperar de um mentiroso que protege assassino senão mais traição? Sabemos que são juízes falsos a mando de um deus falso. Que vão condenar nossas ”crianças” ao inferno. Vão afastá-las de nós, que somos pais e mães. Devolvam-nos os filhos! Ainda é tempo de se livrarem da nossa vingança.

- Quantos filhos você tinha entre aquelas “crianças”?- Três. Quero meus filhos perto de mim! Tenho esperança de fazê-los voltar ao

normal. Um dia isso vai acabar. Basta que o assassino morra para que isso acabe.- Sabe que não será assim. A vingança é um poço sem fundo. Como ele não

morre, todos continuariam a massacrá-lo após o desencarne. Para que essa doença sare o remédio é o perdão.

- Isso jamais! Faremos justiça com nossas mãos, já que Deus nos esqueceu. Nossos filhos clamam por vingança e se acalmarão quando o matarmos. Por isso os queremos perto de nós.

- As “crianças” merecem destino melhor. Deveria se envergonhar de, na condição de mãe, reter um filho retalhado e ensangüentado, se arrastando pelo chão como um verme, apenas para motivar sua vingança.

- Você é um ingênuo mesmo. Elas é que nos obrigavam a ficar aqui e manter a batalha. Elas obtiveram apoio de outra falange que lhes assistia, nos dominaram e obrigavam a manter a perseguição. Ficamos por amor, pois são nossos filhos.

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Entendíamos que eles poderiam estar em outro local em condições piores. Aqui, pelos menos estavam sob nossas vistas. Você não sabe de nada, além de prender. Você e esses índios.

- Então o domínio e a condução do plano estavam nas mãos delas? - Somos um grupo dominado, mas nossa motivação era o amor por elas.

Tínhamos esperança de resgatá-las. Agora vocês as aprisionaram e vão mandá-las para o inferno.

- Não existe inferno. Garanto-lhe que todas estão sendo bem tratadas e que as verão quando estiverem melhores.

- Só sossegaremos quando estivermos com elas. São nossos filhos. Nossos, entende?

- Não seria mais racional pensar que antes de serem seus, são filhos de Deus, e que Ele sabe o que é melhor para eles?

- Você é burro? Já lhe dissemos que não acreditamos em Deus. Esse argumento só nos irrita. Os meus três são filhos daquele assassino. Mesmo sendo dele, os vendeu, os separou de mim, que morri de tristeza e dor.

- Então seus filhos foram gerados por ele?- Sim! Odeio você! Odeio a todos! É dor demais. Se existir alguma entidade boa

que não seja esse Deus tirano que você representa, que me ajude. Estou exausta! Se pudesse deixar de existir, desistiria. Eu não agüento mais!

- Veja! Vou mostrar na tela como eles estão. Toda mãe reconhece seus filhos. Se isso acalma seu coração, prometo que os verá em breve.

- Estão diferentes... Vocês vão nos separar. Eles fizeram coisas erradas. Sei que vão para o inferno. Não quero ficar longe deles. O que será deles sem mim. Esse deus carrasco vai mandá-los para o inferno. Vocês são maus. Vão condená-los! São juízes, mas são maus. Deixem-me ir com eles...

- Eles vão para campos de caça com muito verde, muita paz. Inferno é esse que vocês habitam agora.

- Isso não existe. O que existe é a dor, a separação, a mentira. - Mas existe também o amor, a união, a verdade, o acolhimento. Vamos

providenciar um alojamento para você. Queremos que descanse. Prometo-lhe que será bem tratada e que verá seus filhos. Quando entender toda a extensão desse drama verá que Deus é justo e bom.

A mulher foi adormecendo devagar, descontraindo o rosto, parecendo ver intimamente os campos de paz de que eu lhe falara. Maciamente a médium colocou o rosto sobre a mesa. A comunicante adormecera. Outro, com enorme asfixia, sorvendo o ar com sofreguidão tentava falar nervosamente.

Antes de iniciar a descrição do diálogo, narro ao leitor o que a médium que lhe servia como instrumento de comunicação, nos contou sobre o trabalho noturno: sonhei que estávamos aqui, nessa mesma sala de reuniões, e que um Espírito de aparência ainda jovem, médium curador, como me disse Tibiriçá, orava e tocava nas crianças.

Estas se apresentavam esfarrapadas, com cortes na pele, deformadas. O curador as colocava no colo, uma a uma, parecia orar e eu podia ver a transformação que nelas se operava. No momento lembrei de que poderia solicitar dele uma cura para

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as dores lombares que me atormentam. Fiquei próximo, na esperança de que ele me atendesse, e o resultado é que amanheci sem elas, visitantes costumeiras.

Mas o que quero contar é que enquanto ele tentava a cura em uma menina de colo, um Espírito muito irado invadiu o recinto e a todo custo tentava agredi-lo, visando machucar a pequenina que ele protegia. No meio dessa confusão acordei. Acho que foi esse o motivo pelo qual me lembro de tudo, ter acordado na hora, e fixado as cenas na memória.

Pois bem! O Espírito que invadiu o recinto, tendo sido capturado e estando prisioneiro, foi trazido à reunião para se explicar.

- Mande imediatamente que ele tire aquela criança do colo! Ela é nossa! Ninguém pode tocar nela! Está sob nossa guarda e ninguém pode ficar com ela!

- Então resolveu seguir a pequenina até aqui? Se ela está recebendo ajuda teve a permissão de Deus, já que nada ocorre sem o seu consentimento. Por que odeia tanto a essa criança?

- Por que é o assassino de minhas duas filhas gêmeas. Elas eram lindas. Primeiro abusou delas, depois as matou. Tenho motivos justos para vingar-me. Ela é minha! Minha! Mande o curandeiro largá-la senão quebro essa vidraça de luz que o cobre e acerto as contas com os dois.

- Mas é claro que não fará nada aqui. Tem seus motivos que julga serem justos, mas Deus tem planos que são sábios. Aconselho a que se acalme e espere a vez de suas gêmeas serem curadas por ele.

- Vou quebrar! Vou quebrar essa vidraça! Transformei-me num monstro para defender minhas filhas. Não está vendo minhas asas? Com essas garras posso quebrar aquela vidraça e apertar a garganta dos dois. Ela é minha! Estou exigindo o que é meu! Ele não tem o direito de curar um assassino! Quer ajudar? Ajude as outras que necessitam mais. Esta me pertence. Eu sei que ele está nela! O assassino se esconde nela! Se eu matar a criança poderemos fazer o que quiser com ele.

- Meu amigo. Entendo sua dor, mas no momento o trabalho deve prosseguir. Se quiser aguardar em paz que suas filhas sejam atendidas, teremos prazer em ajudá-lo. Caso contrário será tolhido e levado daqui a seu próprio benefício. A misericórdia divina não deve ser tolhida pelo ódio irracional. Decida urgente, pois duas opções o esperam: uma cadeira confortável ou a força dos guerreiros.

- Seus covardes! Ela é minha! Ainda ajustaremos contas! Não esquecerei este gesto arrogante seu.

Acostumei-me, ao longo dos anos com as ameaças dos obsessores. Não que as considere insignificantes. Mas sei que quando descobrem que Deus é justo, e que eles sofrem por terem feito outros sofrerem, geralmente desistem da vingança.

O homem optou por sair imobilizado pelos guerreiros, enquanto a pequena Hortência, nos braços do curador, já adormecera tranquilamente. Foi então que uma senhora nos chamou para o diálogo.

- Bom dia, moço! O estresse está grande hoje. Tudo que é bruxa e macumbeiro está assanhado demais. Estamos de olho, na moita, aguardando um desfecho que nos favoreça.

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- Então, por gentileza, explique-me o motivo dessa espreita e o que pretendem fazer quando esse desfecho aparecer.

- Queremos a nossa parte na vingança. O assassino também nos interessa. Tem dívidas conosco. Os credores são muitos e é justo que sejam ressarcidos dos prejuízos que tiveram.

- Era também uma das mães africanas cujos filhos foram vendidos?- Não! Somos mais de cima. Da América do Norte. Somos as cobradoras do

Johnny. Rico, bonitão, bigodão, mas descontrolado dos nervos.- Desconhecia este fato. Ainda bem que me alertou. Mas o que ele fez a você

para querer matá-lo.- A nós. Sou apenas alguém que estava no lugar certo, mas no momento errado.

Ele se apaixonou por uma mulher de fibra, que ligava mais para suas vontades do que para o dinheiro dele. Quando ela resolveu se mudar para o motel e juntar-se a nós ele a matou.

- Então ela preferiu uma vida de ...- Dançarina, como diziam os caridosos; bailarina, como nos rotulavam os

irônicos, prostitutas, como afirmavam os puritanos. Éramos vinte e três mulheres. Ele invadiu o motel, dirigiu-se ao reservado onde estávamos nos aprontando e matou a todas.

- Foi realmente um ato de loucura. A mulher que ele amava está entre vocês?- É ela que nos dirige. Somos pacientes. Estamos observando a luta. Disse as

minhas amigas que viria apenas observar. No entanto estou sendo acossada pelo sentimento materno. Vejo aquela pobre mãe, que conosco não tem dívida nenhuma, sofrer pela criança e isso me comove. Já cheguei mesmo a ter pena da criança e num instante de amolecimento a segurei nos braços. Lembrei dos meus filhos. Eu era uma mexicana que foi para os Estados Unidos à procura de trabalho. Engravidei, tive filhos e acabei me prostituindo para sustentá-los.

- Sinto muito pelo que sofreu. Esse estranho e compreensível sentimento materno amolece qualquer coração. Pode levar um recado para suas amigas?

- Certamente. - Diga-lhes que qualquer uma que esteja cansada da luta (mesmo porque quem

lhes fez mal já está sendo justiçado e vai continuar pagando seu débito à Lei) e que queira recomeçar uma vida nova tem nosso apoio garantido. Se alguma quiser reencontrar amores perdidos, filhos, pais, irmãos distantes, tudo faremos para encontrá-los. Se alguém estiver doente temos médicos, psicólogos e medicamentos. Diga-lhes enfim, que nossas portas estarão sempre abertas e que as receberemos como amigas e irmãs, sem preconceito e discriminação alguma.

- Transmitirei seu recado. É bom saber que existe um abrigo para os momentos de tempestade.

- Até um dia.Passado aquele momento, bem humano, um homem com severo sentimento de

ódio começou a nos repreender, pelo apoio dado a Hortência. - Vocês não têm a mínima noção do que fazem! Ainda acabo com todos! Gente

metida não merece piedade. Saibam que a intromissão tem um preço.

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- Assim como a desobediência às leis divinas, a agressão, o ódio, a vingança...- Esqueceu a maldade. É o preço da maldade que estamos cobrando. Nada a

justifica. É da maldade dele que estou falando.- Está falando do Espírito que se abriga no corpo daquela criança?- Isso não quer dizer nada! É um assassino! Vai ser sempre um assassino! - Não é verdade. A lei do progresso a tudo e a todos faz melhorar.- Não é o caso dele. Eu o sigo há três existências. Faliu em todas elas. Foi um

traidor em todas. Na África se aproveitou do poder em benefício próprio. O que faz um homem vender seus irmãos infelicitando toda uma tribo? Todos viviam em paz, em equilíbrio com a natureza, e de repente, um só traz a desgraça para a vida de centenas. Ele é um traidor da sua raça. Menosprezou a vontade do povo.

- Aqui no Brasil ele traiu a quem? Não era ele um comerciante comum?- Traiu princípios. Traição não se refere apenas às pessoas. Ele traiu sua raça,

os princípios de moral e de honestidade; traiu seus amigos, seus irmãos, sua pátria, a Deus... A traição sempre foi uma marca dele. Perdoa-se facilmente a um ladrão, mas a um traidor a palavra perdão causa repulsa. Garanto-lhe que esta quarta encarnação ele não concluirá.

- Seu encontro com ele foi na África?- Não. É anterior. Nascemos na Europa. Éramos homens prósperos quando me

ofendeu. Depois disso foi se esconder na África para que eu não o encontrasse. Ele pode se esconder em mil corpos diferentes, mil cores diferentes, mas eu o encontrarei e o justiçarei.

- Ele deve ter lhe ofendido rudemente. Não que me dizer como ele o agrediu?Não. Pensa que não sei que lhe dando subsídios você encontra meus aliados e

os faz desistirem de me ajudar? - Estou apenas tentando entender o drama que infelicitou tantas pessoas. Quem

sabe não consiga ajudar algumas.- Entender? Está querendo entender a maldade? Ele é mau. Isso é a realidade.

É essa maldade que me deixa em alerta dia e noite para que ele não escape. - Não é maldade. É imaturidade do senso moral. Não é por causa da tribo que o

persegue, pois disse que algo aconteceu enquanto eram europeus.- Na África, quando ele era chefe da tribo, estava sob sua proteção uma alma

muito querida por mim. Ele deveria protegê-la, no entanto, abusou dela e a vendeu. Isso triplicou o meu ódio. Não queria falar, mas você é insistente demais.

- E nunca mais encontrou essa pessoa?- Não. Meu objetivo mudou. Tudo que quero agora é me manter firme nesse

foco; a vingança.- Já vi isso muitas vezes. Nunca acaba bem. Principalmente quando se troca um

amor que cresce a cada dia por um ódio que nos amargura a cada minuto. Não troquei nada. Apenas me concentro em um ponto determinado. Já disse, é o

meu foco.- Sei. E se essa pessoa estiver precisando de você? E se souber que mudou de

foco? E se para ela, mudar de foco for o mesmo que abandono? E se estiver lhe procurando, aflita, angustiada?

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- Não acredito. Era uma pessoa boa.- Pessoas boas também sofrem. Pessoas boas têm dívidas passadas e passam por

grandes expiações nas quais um amigo faz toda diferença; pessoas boas choram de solidão e buscam a fidelidade dos amigos. Quando não encontram se desesperam...

- Chega! - Ainda não terminei. Pessoas boas, quando têm um amigo ao lado têm a dor

reduzida à metade, pois um bom amigo ajuda a levar a cruz; pessoas boas perguntam: onde está o meu amado? O que faz ele agora? Terá me esquecido?

- Se quer me torturar está conseguindo. O que quero agora é matar o infeliz que está naquele corpo minguado. Ele vai morrer!

- E se disséssemos a você como encontrar a pessoa que ama, faria alguma diferença?

- Não se meta nisso! È inútil me mostrar paisagens bonitas onde passeávamos, flores... eu não vou me comover com isso. Não vão me pegar pela saudade, sem que antes ajuste as contas com a maldade. Temos um casulo preparado para ele quando aqui chegar. Ele passará séculos vegetando sob nosso domínio.

- Pense bem na oportunidade que tem agora. Se matar a criança não terá mais acesso à pessoa que ama. O amor lhe abrirá muitas portas e o ódio fechará as poucas que lhe restam. Se não aceitar nossa proposta estará dando provas de que valoriza mais o ódio do que o amor que diz sentir. Agindo assim não há como evitar mais um desgosto a quem ama.

- Não estou pronto. Meu ódio é maior do que eu mesmo. Não saberia me comportar diante do amor com tanto fel no coração. Preciso esvaziá-lo e isso só será possível com a vingança.

- Infelizmente fez a opção errada. Espero que mude de idéia durante sua permanência conosco, pois será nosso hóspede por alguns dias. Que Deus nos ajude a compreender o amor, sobretudo, o Seu amor por nós.

Já íamos proferir a prece final quando uma médium começou a chorar como uma criança recém-nascida. Um choro inconfundível, sofrido, de quem reclama carinho e proteção.

- Estamos aqui para ajudá-la. Não tenha medo! Breve estará nos braços da sua mãe.

- Quem sou eu?... Que lugar é esse?... O que faço aqui?... Agora me lembro. Sou o Johnny... Sou o homem apaixonado que fez aquela loucura. Apaixonei-me por uma mulher que não me amava.

- E o que fez com ela?- Matei a ela e as amigas dela. - O que ocorreu depois?- Fui preso, mas apesar de todos os cuidados para me manterem vivo eu me

matei. Não suportei ficar sem amor e sem liberdade.- Como se sente agora? - Perseguido. Nasci de novo, mas não consegui me esconder das pessoas que

me perseguem. Sou uma menina. Não era para estar aqui. Por que estou aqui?

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Então Johnny começou a chorar como criança novamente e a comunicação foi encerrada. Talvez este fato, haver sido abandonado por quem amava, tenha deixado “Seu Flores”, sem consideração para com as mulheres. Lembremo-nos de que ele não as tratava bem, dizendo, inclusive que eram criaturas inferiores que só serviam para o sexo.

Durante toda sua vida como Flores, ele foi incapaz de gestos de ternura para com uma mulher, acolhendo cordialmente, apenas a neta que viria a ser sua mãe. Os traumas sofridos pelo Espírito levam tempo para serem curados. Adormecem, mais acordam, até que sejam superados pelo esforço de renovação. Não há outra saída. O passado delituoso é folha que deve ser reescrita com outras tintas. Hortência viera para reescrevê-lo. Que a poesia a ajude nessa nova versão da vida.

Ogum - A força avassaladora da lei

Inicio este capítulo dizendo que, mesmo com quarenta anos dirigindo reuniões de desobsessão, ainda não havia estado no meio de uma batalha como a que foi travada na defesa da pequena Hortência.

Primeiramente é necessário dizer que os bons Espíritos são solidários em seus trabalhos de libertação. Entre eles há uma espécie de pacto para se ajudarem na defesa da lei e da ordem, da caridade e da justiça. Sempre trabalhei conjuntamente com pretos velhos, índios, frades e outros instrutores com revestimento perispiritual dando-lhes a aparência de homens brancos.

Na verdade todos são Espíritos em essência, a maneira como se apresentam é mero detalhe. Respeito a todos como irmãos amados e me reconheço como trabalhador comum, daqueles que limpam o assoalho onde os enfermos pisam. Todavia sinto-me irmanado com todos no objetivo de servir a Deus, embora ainda utilizando imperfeitamente minhas ferramentas de trabalho e microscópicas conquistas evolutivas.

Talvez, essa ausência de preconceito, tenha sido o motivo pelo qual a pequena Hortência tenha sido enviada ao “Grão de Mostarda”. É sabido de todos que há dirigentes de reuniões mediúnicas que cerram portas a pretos velhos, índios, crianças, sob o argumento de que é difícil saber se são ou não mistificadores querendo se infiltrar em meio ao trabalho. Argumentam, sem nenhum fundamento, que tais entidades devem se comunicar em seus terreiros e não em mesa branca.

Com todo respeito aos meus irmãos espíritas, uma emergência deve superar todos esses entraves, que nada representam diante da dor humana. Quem ergue um prédio é o operário humilde, embora um doutor faça os cálculos e outro o desenho.

Sem que os brancos saibam, muitos pretos velhos limpam os salões destinados às reuniões de desobsessão que eles dirigem; muitas das moléstias dos brancos são tratadas com ungüentos, ervas medicinais e aromáticas, cultivadas por mãos negras. Por trás do véu que cobre a limitação visual humana, espalham-se guerreiros, na maioria das vezes, índios, que trazem os obsessores até a reunião. Antecede o diálogo com o

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obsessor, uma captura, pois geralmente, obsessores não atendem a convites formais. Ninguém trabalha sozinho, nem mesmo Deus dispensa seus ajudantes.

Doutor Bezerra de Menezes não pega a pulso nenhum obsessor, mas um guerreiro seja índio ou branco, faz isso para ele. O médico dos pobres não se limita a atender apenas enfermos oriundos de Centros Espíritas, mas vai, ele mesmo, a Centros de Umbanda, templos católicos, tendas indígenas e favelas infectas. Para Espíritos valorosos como este doutor branco, a dor não obedece fronteiras, Deus não se interessa por rótulos doutrinários, a cor da pele nada diz sobre a luz do Espírito e todo trabalho honesto é digno de ser realizado.

Contudo, quem vai ao campo minado, arranca o perverso das cavernas escuras, enfermos da lama pútrida, invade trincheiras de arma em punho, são os guerreiros. E isso não diminui nem causa desprestígio aos mentores que, se quisessem, adensariam seus perispíritos e iriam até as furnas, fazendo eles mesmos o desgastante trabalho.

Todavia, quem poderia imaginar o meigo Bezerra de Menezes, empunhando uma espada e invadindo um antro de Espíritos maus, subjugando-os e obrigando-os a beijar o solo a chicote? Para os que pensam que isso é falta de caridade, é bom lembrar de que há Espíritos que não têm o mínimo respeito pelo Evangelho e que só obedecem alguma ordem mediante o uso da força, única linguagem que entendem.

Tal linguagem, a disciplina férrea, falam os guerreiros. Eles têm habilidade em batalha, experiência em táticas de guerra, afinidade com este tipo de trabalho. Estranhamente o amor a Jesus pode ser expresso através da força e da disciplina dos guerreiros. Por isso os bons Espíritos os apadrinham e com eles contam para os serviços que exigem o fogo abrasador das batalhas.

O guerreiro é a força que faz tremer a horda de malfeitores. Quando ele invade um antro qualquer onde a maldade governa, seu batalhão treinado, sobretudo mentalmente, impõe a ordem e o respeito às leis, pois limpa a área, destrói as construções mentais existentes, ou as restaura, dando-lhes a beleza que deve imperar nas terras do Senhor da vida.

Não há maldade ou vingança, crueldade ou indiferença na atuação dos guerreiros do Bem, apenas amor e fidelidade Àquele que tudo governa. Eles atuam com justiça e misericórdia, fazendo o que é necessário, à semelhança de um médico que extirpa um tumor para salvar um órgão. Guerreiros que se posicionam ao lado da justiça são necessários em todos os mundos de provas e expiações, como necessários são os missionários que deles se servem.

Médiuns e doutrinadores devem acompanhar a disciplina dos guerreiros, cuja função é zelar pela harmonia e produtividade do grupo. Tal como a semente necessita de adubo e água para se transformar em árvore frondosa, a mediunidade exige estudo e disciplina para gerar os frutos que dela se espera.

Ao médium não se decreta santificação imediata, mas aconselha-se fidelidade ao compromisso assumido e progresso contínuo em sua missão, pois como o mofo e a traça rondam o livro sem uso, a indisciplina e a falta de estudo agridem a mediunidade, tornando-a inoperante e fonte de perturbações indesejáveis.

A mediunidade é, portanto, uma missão, e sua aplicação está mais ligada ao suor do que ao deleite ou a curiosidade. Que se apressem aqueles que a possuem de forma

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ostensiva, a mantê-la firme e afiada, sob pena de ter em mãos um instrumento acusatório que, fatalmente servirá como prova para sua própria condenação.

Iniciamos a reunião com rápido desprendimento de dois médiuns a um local de atmosfera asfixiante.

- Estou em um local desconhecido e de natureza muito agressiva. É uma espécie de casa grande, fazenda ou coisa parecida. Estamos, eu e minha companheira, sob a proteção de Tibiriçá e de alguns guerreiros. Não sei ainda o que temos a fazer, mas a ordem é para subir os degraus e adentrar o recinto.

Aqui dentro a atmosfera muda para pior. A aparência é de uma clínica clandestina de abortos, pois há macas, sangue pelo chão, aparelhos médicos utilizados em locais adaptados para esta finalidade. Passamos mal, locomovemo-nos com dificuldade, as ânsias de vômitos são constantes, mas prosseguimos.

Vejo três entidades de aspecto repelente. Duas delas são magras como varas e a outra se metamorfoseia a cada instante. Ora se mostra como uma mulher pavorosa, de olhos esbugalhados, cabelos desgrenhados, abdome volumoso, sangue a escorrer pelas pernas, e ora parece um monstro. Seu abdome é enorme. Ela grita, esperneia, tenta perfurar o abdome com as mãos para retirar algo que traz dentro de si, mas não consegue.

É dor demais! Mesmo estando à distância sinto todas as suas emoções. Minhas carnes parecem rasgar. Sinto repuxões no abdome como se algo estivesse forçando uma saída. As dores são superlativas. Ela odeia crianças. O que existe em seu ventre é obra do demônio, diz ela. Vejo agora alguém trajado grosseiramente como um médico. Seu aspecto é de um louco. Deve ser um cientista que enlouqueceu fazendo experiências macabras.

Ele gargalha sem motivos, treme, tem trejeitos e esgares. Sua bata está suja de sangue e no lugar dos seus olhos vejo apenas dois buracos negros.

Ele pega uma espécie de fórceps e introduz na mulher grávida retirando de dentro dela restos humanos. Acredito que esses restos que ele extrai da mulher, sejam formados por material modelado pelo seu pensamento enlouquecido. Ele toma esse material ensangüentado e joga em um quarto onde estão outras mulheres prisioneiras.

Não sei se você entendeu o que eu quis dizer. Ele não retirou as crianças (já sei que são crianças que a mulher tem no útero) que se alojam no ventre da mulher, mas um material ensangüentado, como restos de placenta ou coisa parecida. Com seu pensamento viciado nesse gesto, penso que ele materializou por força da sua vontade essa pasta sanguinolenta.

Que coisa horrível! Meu Deus! Será isso possível? As prisioneiras se atiram como feras aos restos e os devoram. São loucas, de aspecto apavorante. Que mente demoníaca criou isso aqui?

Os dois médiuns continuavam com muita dificuldade para respirar, com náuseas, ameaçando vomitar a qualquer instante. Impensadamente um deles disse: Luiz! Tire-me daqui! Para animá-los e afastá-los do foco daquelas cenas macabras, tentei o diálogo.

- Quem está falando comigo nesse instante?- Somos nós dois. A entidade já se apossou de mim e seu peso parece dominar-

me.

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- Isso não pode acontecer. Assuma o comando! O domínio da situação deve permanecer com você. As dores e a loucura são dela. A disciplina é sua. Levante e ande! Foi isso que Jesus disse a Lázaro quando este parecia morto. Imponha sua vontade sobre a dela que a sensação de enjôo vai amenizar. Foi então que o doutor apossou-se de vez do médium.

- Comam, minhas belezinhas! É carne! Matem a fome! Estragar alimento é pecado!

Este Espírito, durante quase toda a comunicação, gargalhou como louco. Na realidade estava louco.

- É você o responsável por este recinto?- Não! Eu sou apenas o doutor. Dou a elas o que sai delas. Não é um bom

plano?- Quem são essas pobres mulheres?- Gente que matou os filhos. Gente que comia os filhos. Gente que se matou com

medo do fogo do inferno.- Quem comanda esse matadouro?- Não conheço. Recebo as ordens na minha mente. Ele fala e eu obedeço.- Tem mesmo certeza de que não faz isso por conta própria?- Já disse que não. Ele me dá ordens à distância. Ouço a voz, mas não sei quem

me comanda. Eu só o vi uma vez quando eu estava pendurado em uma corda. Eu pensava que estava morto, mas ele me ordenou: Saia daí! Tenho um trabalho para você!

- E por que se suicidou? Era um médico que fazia abortos?- Sim! Mas não foi essa a causa do meu suicídio. Tinha uma filha pequena.

Matei-a e comi sua carne. Sou um canibal! Ele gostou do meu gesto e me recrutou.Ao começar a relembrar do passado o comunicante foi entendendo a extensão do

seu drama, talvez por estar se libertando do comando hipnótico daquele que o recrutara. Falando mais pausadamente foi cessando de gargalhar.

- Não quero me lembrar desse fato. - Lembrar é o primeiro passo para sua libertação.- Eu me alimentava de carne humana; da carne macia dos bebês que matava. - Recorda-se de como ele o abordou? - Agora sim. Estava em casa roído pelo remorso quando ele entrou e disse: está

vendo aquelas cortinas? Tire uma e ponha ali! Amarre! Enrole no pescoço! Pule! E eu pulei.

- Sua loucura está passando. Terá que seguir com os guerreiros para um longo tratamento.

Terminada esta parte, já o médium voltava-se para a mulher que continuava em sua loucura querendo arrancar as crianças do ventre a qualquer custo.

- Tenho nojo de crianças! Quero matá-las! São filhas de Satanás! Sai de dentro de mim podridão! Tudo que não presta está dentro de mim! Filhos de estupro! Tire essa desgraça de dentro de mim! Sai Satanás! Você vai sair nem que eu rasgue minha barriga toda!

Então outra entidade capturada entrou em cena.

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- As crianças devem permanecer onde estão! Se tocarem no meu serviço irão parar na barriga dela também!

- Então você é o responsável por essa aberração?- Sou apenas o enfermeiro encarregado. Acenda já as minhas velas que esse

índio apagou.- Nada de velas acessas! Vamos terminar com essa bruxaria já! A ordem é

limpar tudo! Comece! - Eu não vou me condenar! Se quer desfazer, desfaça você mesmo!- Tem gente que tem vocação para apanhar! Você já se condenou quando iniciou

isso. Agora termine o parto antes que a minha paciência encurte.Enquanto eu, de um lado, conversava com o falso enfermeiro, do outro, a

médium gemia e chorava como criança recém-nascida. - Tenha pena de mim! Você vai me prejudicar!- Coen! Coen! Coen!....A médium ia dando passagem às crianças, uma de cada vez, para que

recebessem um choque anímico, e a cada uma delas, víamos no corpo da companheira em serviço, os gestos típicos de bebês se enroscando e buscando proteção.

- Acelera o trabalho que eu detesto ver criança sofrendo!- Estou terminando! São muitas!- Coen! Coen! Coen!....Quando o falso enfermeiro terminou seu trabalho e foi aprisionado, os médiuns

estavam exaustos. Então fizemos leve pausa para que se recuperassem. Enquanto procuravam ar para sorver, contaram assombrados, detalhes do que haviam visto.

- O que vimos aqui parece loucura. Mesmo estando dentro do cenário e do enredo, custo a acreditar que isso esteja acontecendo. Dentro da barriga da mulher existiam vários Espíritos reduzidos e feitos prisioneiros. Foram retirados um a um. Como cabiam tantos, não sei explicar. Agora ela está em torpor.

- Concentre-se no trabalho, pois ele ainda não acabou. - Tibiriçá manda que eu me levante, pois é hora do chefe ser preso. Diz que ele é

uma figura muito grande, mas nada que não possa ser derrotada. Em se tratando de Espíritos maldosos, quanto maiores, maior é a queda. Ele resmunga para consigo mesmo. Vamos... Mas o que é isso? As portas da casa voaram. Um cavalo enorme com suas patas dianteiras as derrubou e está entrando um guerreiro, o mesmo da última batalha. Seus soldados vasculham tudo. Derrubam portas, libertam prisioneiros, prendem as mulheres loucas que se alimentavam de restos de fetos.

Toda a casa fica iluminada com eles. Ele vem em minha direção ...- A luz chegou nessa casa! Quando Ogum chega, a treva bate em retirada!

Quem se atreve a me enfrentar? O que se viu a partir daí foi o duelo de forças entre o vampiro responsável pela

“Mansão dos condenados” e o guerreiro da lua, como o apelidaram os médiuns.- Quem você pensa que é bicho pequeno! Você não é ninguém! Vai ficar cada

vez menor!Pelas palavras do vampiro deduzimos que ele era muito grande, como afirmara

Tibiriçá, e que era dessa maneira que, utilizando do hipnotismo, fazia seus prisioneiros

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assumirem a condição perispiritual de fetos. Mas ao tentar utilizar esta técnica contra quem muito bem a dominava, o resultado não foi bom para ele.

- Abre tua mente! A minha ordem é irrecusável! Abre a mente! Faz o que eu mando! Reduz! Torna-te pequeno! Teu poder não existe diante de Ogum! Derruba as asas! Fixa teu pensamento em mim! Não se afasta! Sai escuridão! Limpa! Limpa! Limpa!

A outra médium, que servia como intermediária para o vampiro foi entortando, diminuído, assumindo a forma fetal. A voz de Ogum trovejava dentro da sala mediúnica.

- Agora ele vai esquecer tudo! Estava louco devido ao mal que fez. A mente dele está vazia. Vamos limpar a sujeira que ele fez. Colocar cada coisa em seu devido lugar! Chega de desordem! O momento de parar é agora, porque Ele assim quis! Basta uma ordem Dele para que toda tempestade se acalme! Não há monstro que não seja domado! Não há sujeira que não possa ser lavada! Nenhum mal que não encontre remédio! Eu sou aquele que pode porque fui enviado por Seus ajudantes para restabelecer a ordem! E eu sou obediente! Como prometi, fiz! Chega! Cada coisa deve voltar ao seu devido lugar.

Os dois médiuns que participaram da batalha disseram que o guerreiro da lua nem sequer tocou no vampiro. Enquanto falava, as coisas aconteciam. O vampiro foi reduzido perispiritualmente à condição de criança. Um dos soldados o levou nos braços para alguma região que desconhecemos.

Então uma equipe de pretos velhos entrou em ação, sendo que um deles me abordou.

- Meu filho já pode fazer a reza, pois vamos levar seus trabalhadores para limpar.

Os médiuns ainda tossiam e demonstravam ânsia de vômito, mas foram levados a locais verdejantes onde tomaram banho em cachoeiras e aspiraram ervas aromáticas. Um deles ainda chorava quando retornou.

Os pretos velhos limparam nossos corpos, nossa sala, espalharam ervas cheirosas no ambiente, enquanto proferíamos a prece final. Foi uma batalha dura, disse um deles. Necessária, argumentou um segundo. E a favor do bem, finalizou um terceiro.

A mãe de Hortência perseverava no estudo, no Evangelho, em trazer a pequena para tomar passe. Gradativamente ela melhorava. Deus, através dos seus auxiliares, os bons Espíritos, limpava o terreno para que a pequena flor do campo vicejasse e espargisse o perfume que, enfim, começava a exalar de si mesma.

A batalha dos polvos voadores

Como já dissemos, o caso da pequena Hortência, muito ligado às forças da magia negra, nos trazia uma surpresa após outra. Iniciamos a reunião com um pedido de desculpa feito por um comunicante que afirmou já ter dialogado com o doutrinador há alguns dias.

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- Bom dia, professor! Sou o combatente que ficou aqui, como hóspede, e que se ofereceu para contar a saga do povo banto, caso interessasse a alguém.

- Lembro deste fato. Mas a que devemos o prazer da visita?- Vim desculpar-me por combatê-los enquanto defendiam a pequena Hortência.

Ficando aqui pude saber a outra versão da história dos bantos e prometi aos instrutores que, de hoje em diante, estaria ao lado deles na tentativa de repassar aos meus irmãos o meu aprendizado, uma vez que eles ainda se encontram aferrados a uma luta que só gera sofrimentos.

- A que outra versão se refere?- A de que nenhum escravo é vítima nem Deus é o senhor da crueldade. Há uma

história por trás da história que eles desconhecem. O sofrimento deles não tem por base a injustiça. Brancos e negros são apenas Espíritos que mais se atritam que se respeitam e daí surge à necessidade de reajuste. Além do mais, os Espíritos, ora estagiando em corpos negros, ora em corpos brancos, não têm nenhuma razão para se odiarem nem rejeitarem a cultura que é de ambos.

Quando decidi participar da vingança, via na pequena apenas um homem mau, uma pessoa perversa necessitada de punição. Mas observando um pouco das ações passadas, minhas e deles, com o auxílio dos instrutores que me adotaram, reconheci a fragilidade da minha tese. Que sou mais digno de caridade e de esclarecimento do que de críticas e de rejeição. A ignorância, disse-me um deles, é mãe da violência e ceifadora de muitos sonhos de paz. Combati a criança na condição de ignorante e agora vou tentar desfazer o traçado mal elaborado.

- Lembro-me de que um dos participantes da reunião, nos comentários finais, considerou sua linguagem muito elevada para quem foi escravo.

- Ainda estava presente quando ele fez este comentário. Por gentileza, diga-lhe que embora tenha sido escravo no Brasil, fui também estudante de filosofia, morto no golpe militar de 1964. Não pertenci a nenhum partido político. Era apenas um idealista que queria ver meu país livre da injustiça e dos preconceitos. Por este sonho fui preso, torturado e morto.

- Considera que houve preconceito neste comentário?- De forma alguma. Acabei de dizer que o desconhecimento, ou seja, a

ignorância acerca de determinado tema, torna nossos discursos insensatos. Meus irmãos não sabem que foram feridos porque feriram aos outros. Centrados em sua dor, nada detectam além dela. Como o senhor pode notar estou sempre me metendo em confusão.

- Confusões perdoáveis. Pelo menos esta segunda foi por uma boa causa.- Hoje já consigo me lembrar do general Costa e Silva sem ódio. Foi sob seu

comando que deixei a Terra. Agora estou agregado a esta casa e recebo lições de uma filosofia mais prática, a filosofia espírita. Se o senhor quiser falar comigo, chame por Edson, codinome que utilizei na guerrilha contra o golpe.

- Se tiver algum tempo disponível, terei prazer em estudar essa nova filosofia com você. Obrigado por nos ajudar.

Tendo atendido a Edson, encaminhei-me para uma das médiuns que relatava a situação no quarto da criança.

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- O apartamento da Hortência está mais iluminado hoje. A área de proteção que se restringia apenas ao berço foi alargada para todo o quarto. Vejo-o como uma grande tenda, pois está adornado por um véu prateado. Cercando o quarto estão os guerreiros de Tibiriçá, todos armados e em estado de alerta.

Todavia, as mães desesperadas ainda tentam penetrar no quarto vigiado. Quando alguma delas ameaça invadi-lo logo é rechaçada pelos guerreiros. O ódio e a revolta não amenizaram. Vejo seus rostos, com pena, pois são duros e sofridos, revoltados e sem esperança de paz.

Os índios não as capturam nem as maltratam. Parecem ter ordem de apenas afastá-las quando tentam penetrar no recinto. Olhando para a criança vejo apenas um bebê frágil e indefeso, mas as mães não conseguem perceber nada além do assassino que lhes ceifou a vida dos filhos.

Já me perceberam. Agridem com insultos e palavrões a mim e aos guerreiros. Acusam-nos de defender assassinos e de aprisionar crianças. Kröller, que está ao meu lado, diz que as mais rebeldes serão retiradas hoje. Por falar em mais rebeldes, uma delas vem em minha direção...

- Sua cadela! Tire seus malditos índios daqui! Assassina! Onde estão nossos filhos? Demônios! Seus malditos! Vamos penetrar naquele quarto e matar quem matou nossos filhos!

- Respeito sua dor e afirmo que todos nós estamos aqui para ajudá-las. Estão enfermas e precisam de tratamento imediato. Quando estiverem melhores as levaremos para junto de seus filhos.

- Fora daqui! Filhos do demônio! Exijo meus filhos já! Eu vou entrar naquele quarto! Ele tem que vir para nossas mãos! Há uma cama preparada para ele. Não vamos desistir nunca! Ninguém tem o direito de nos impedir.

- Estamos fazendo o possível para resolvermos este caso sem desespero e sem usarmos a força. Você está extrapolando em suas acusações. Estamos dando a chance de sair do recinto de livre vontade, caso contrário teremos que retirá-la à força.

- Isso é o que quero ver! Já prevíamos isso. Veja nossos pés. Aprendemos a criar raízes e a ficar encravada na Terra. Nada ou ninguém conseguirá nos tirar daqui!

- Pois bem! Prepare-se para ser arrancada da terra. Mesmo uma sequóia vem ao chão.

- Sai daqui, anjo do demônio! Pensa que me cegando com essa luz vai me retirar? Não! Essa luz queima! Onde está você demônio? Por que me cegou? Não me tire! Ai! Você cortou minhas raízes! Seu cavaleiro do demônio! Você me cegou, maldito guerreiro.

Alguém desencarnado dominou a mulher e a obrigou a sair do local onde se fixara. Entendi de imediato o que se passara e retomei o diálogo.

- Os cortes nos pés podem ser fechados caso queiram vir conosco. Apelo uma vez mais para seu sentimento materno. Poderemos levá-la para junto de seus filhos quando estiver em condições de entender sua própria dor.

- Não quero sua piedade seu maldito! Estou sangrando! Vocês me mutilaram os pés!

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- Vou lhe ministrar um calmante que a fará dormir. Não tenha medo de fechar os olhos e descansar. Nada de mal acontecerá a você enquanto estiver dormindo.

A mulher foi ficando com os gestos tardos e as palavras lentas, e vencida pelo sono, despencou sobre a mesa. As outras, em orquestração combinada, fincaram-se a terra através de liames semelhantes a raízes e iniciaram tremenda gritaria, atirando petardos contra os índios, como a distraí-los, para que fossem surpreendidos pelo que haveria de vir.

No meio dessa confusão, na qual os guerreiros se mantiveram em alerta resguardando-se com seus escudos, surgiu como que do ar, voando como uma nuvem de gafanhotos, um batalhão de polvos enegrecidos, causando pavor à médium que descrevia o acontecido.

- Não sei o que está acontecendo. São muitos polvos negros que chegaram voando e se atiraram contra os índios. Eles tentam rasgar o véu que guarda o quarto da criança. Tibiriçá toma a frente dos guerreiros e ordena que atirem as redes, usem as lanças, que honrem a bravura dos ancestrais.

Os guerreiros atingem os polvos com as lanças e vejo-os sangrar. Outros são capturados com redes. Tentáculos são cortados e vejo as ventosas se moverem em seus pedaços. Tibiriçá não recua. Continua animando os índios: Lancem as redes! Formar muralha! Lançar o gás! Protejam as costas dos lançadores! Que a dança comece!

Alguns índios começam a dançar ao redor do quarto da criança. Não estou entendendo a razão da dança. A criança está calma e alheia a tudo ao seu redor. Há tanta calma que posso ver um leve sorriso em seus lábios. As mães começam a tremer como se estivem sob o efeito de choques ininterruptos. Todas elas estão passando mal. Algumas começam a cair. Os índios continuam dançando e de suas mãos saem uma fumaça que vai intoxicando a todas.

- Parem seus miseráveis! Parem esse ritual dos infernos! Vocês não têm mais força do que nós!

- Quem não se render vai engasgar e cair! No chão! Todo mundo no chão!- A muralha a que Tibiriçá se referiu é um cordão de isolamento junto ao quarto

de Hortência. Na posição em que o batalhão se encontra, está de frente para o quarto e de costas para a luta. Não sei se sai dos corpos deles ou unicamente das mãos, a mesma fumaça que os dançarinos expelem. Essa fumaça asfixiante vai abatendo todos que a respiram.

Sinto-me uma combatente no meio dessa confusão. As mulheres que pareciam presas ao chão começam a cair e o mesmo acontece com os polvos. Está tudo rodando por aqui. Como os guerreiros não são atingidos pelo efeito da fumaça acredito que saibam como se defender dela ou tenham tomado algum medicamento para suportar seus efeitos sem perder os sentidos. Quanto a mim, pobre repórter no meio desse tiroteio, saindo do centro da luta, escapei dos efeitos da fumaça.

Tibiriçá ordena que aprisionem os polvos, recolham as mulheres e as entreguem aos enfermeiros, já com macas prontas. Enquanto estes aplicam calmantes às mulheres para que durmam, os índios apertam os nós das redes com os prisioneiros. O chefe deles vai se comunicar.

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O chefe levou algum tempo para se recuperar dos efeitos da fumaça e, bastante desconfortável, iniciou seus insultos.

- Pensam que são deuses? Isso é só o começo da luta. Usamos uma tática de guerra. Deixamos que vencessem a primeira batalha para que pensem que são fortes. Na segunda, que não saberão o dia nem a hora, abateremos todos.

- É você o responsável por essa tropa agora prisioneira?- Não! Sou apenas um soldadinho do diabo! O inferno abriu suas portas e nos

mandou recepcioná-los. Preparem-se, pois vem mais festa por aí.- São todos Espíritos que se deixaram modificar ou entre vocês há criações

mentais que agem como esses monstros?- Olhe para mim! O que eu sou? Pareço uma criação mental?Eu sou uma

criação do demônio. Eu e meus soldados fazemos o serviço sujo para ele.- O que esperavam realizar com este ataque?- Abater o inimigo. Não é esse o objetivo de todos os ataques? Mas parece que

estávamos sendo esperados. O fator surpresa foi anulado. Esses índios nos abateram. Não está vendo que estou sangrando?

- Como conseguiram se transformar nesses seres?- Fomos transformados. Quem tem oito braços luta melhor e supera com

facilidade quem tem apenas dois. Somos os guerreiros do inferno.- Isso não é verdade. Os índios têm apenas dois braços. O diferencial do

guerreiro está na mente e nos objetivos que ele defende. Informo a você, que está sob as ordens de Tibiriçá. Querendo aprender a verdadeira arte do guerreiro espelhe-se nos objetivos dele.

Ainda resmungando, o guerreiro com a forma de polvo, foi aprisionado. Em seguida, Kröller se comunicou para uma ligeira conversa.

- Irmãos, necessitamos que conversem e decidam entre si, sobre a necessidade urgente de adicionar mais médiuns ao grupo já existente. Admiramos e incentivamos o esforço dos que aqui trabalham, mas sentimos necessidade de mais trabalhadores. Que haja a capacitação dos que aqui procuram oportunidades de serviço; que cursos e revisões sejam ministrados, não apenas na área do intelecto, mas, sobretudo, na conscientização das responsabilidades assumidas; no compromisso firmado entre o trabalhador e Aquele que faculta o trabalho.

Em todo o Brasil a quantidade de médiuns está decrescendo. Há discussões em simpósios e congressos sobre temas secundários, deixando a mediunidade, ponte entre os dois mundos, em plano inferior. É uma recomendação do doutor Bezerra de Menezes, que aconselhemos a educação de novos médiuns, visando o fortalecimento dos trabalhos desobsessivos.

Renovar não significa descartar os antigos, mas incentivá-los ao ânimo, ao compromisso com a causa, dar-lhes nova seiva para que, junto aos que iniciam, com seus exemplos de dignidade e de humildade, sejam referenciais seguros.

A mediunidade é uma ferramenta. Para que serve uma ferramenta senão para a o uso naquilo a que se destina?Quando Deus presenteia a um trabalhador com a mediunidade, ou seja, o favorece com uma ferramenta a mais para o trabalho em sua gleba, espera dele nada menos que a conserve afiada e em serviço.

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Por isso conclamamos aos que foram agraciados com este reforço, mediante méritos, pedidos ou prova, para que jamais o negligencie. Que não o surpreenda ao chegar ao país de origem, as seguintes perguntas: se as chuvas foram abundantes, a terra era próspera e as sementes estavam selecionadas por que estivestes em repouso?A terra esperava por ti; os homens dependiam de ti; Deus confiava em ti. Por que os decepcionastes?

A mediunidade é um presente de Deus para seus filhos. O que dizer de alguém que recusa um presente dado com amor? No mínimo que é um ingrato e que não merece ser atendido em outras necessidades.

A mesa mediúnica na qual trabalhamos tem quatro pernas. Se pudéssemos substituí-las por palavras, acredito que as mais adequadas seriam estudo, lealdade, disciplina e amor. Este recado, como enfatiza nosso amigo e benfeitor, Bezerra, é para ontem. O diagnóstico está feito; o carcinoma foi detectado e o carimbo do cirurgião é: URGENTE.

Notícias da Terra são veiculadas por aparelhos mecânicos. Do além, através da mediunidade. Deus não esqueceria detalhe tão importante. Todavia, este sistema de comunicação, o correio do além, não dispensa os constantes ajustes exigidos pela lei da oferta e da procura.

Como em um mundo de provas e de expiações as dores são sempre volumosas é natural que a busca por notícias de cura se multipliquem.

Carteiros da Terra! Não deixem que a vaidade, a preguiça ou a acomodação, letra morta em meio aos versos da poesia divina, se alastre pelas belas páginas que devem escrever. Sejam os portadores da boa palavra, do bom pensamento, do bom combate.

Levem em seus alforjes a consoladora doutrina do médico das almas; a fagulha de luz que deverá atingir o combustível oculto nos corações humanos. Tal fagulha, em qualquer situação, tempo ou lugar, tem sempre a mesma essência, o amor. Somente assim, quando retornarem à pátria espiritual, não encontrarão olhares indagadores, rostos decepcionados ou palavras duras, mas amplexos carinhosos e acenos de paz.

Que Deus nos ampare em nossas escolhas e decisões.

Parece que a cobrança, embora feita de maneira suave, cheia de metáforas e de incentivos, havia sido combinada anteriormente, pois até mesmo Tibiriçá, que geralmente não se comunica através de médiuns, também solicitou um aparte surpreendendo-me com suas advertências.

- Meu amigo, você sabe que não sou de muitas palavras. Mas quando o trabalho por este lado começa a ser afetado porque os médiuns não priorizam o compromisso que assumiram mesmo antes de encarnar, é hora de um grito de alerta.

Algumas coisas na vida são trocas, outras são presentes. A troca foi inventada pelos homens. Presente é o que vem de Deus. A chuva, o sol, o ar, a vida, são presentes. O ódio, o egoísmo, o orgulho, são trocas que o homem faz na tentativa de se tornar maior que seus irmãos.

No ódio ele troca sua paz por um sentimento que o atormenta; no orgulho, troca a razão por um vício que o rebaixa; no egoísmo, troca sua afeição pela enfermidade

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que o maltrata. Mas como pode alguém crescer sem o elixir que o torna grande, a fidelidade? Tornando-se um comerciante dos bens divinos o homem se embrutece e caminha rápido para a loucura, pois Deus não aceita oferendas doadas com segundas intenções.

A mediunidade é um presente que traz implícito a condição de repasse de seus frutos para os que deles necessitam. Transformada em objeto de troca perde seu caráter divino, uma vez que tudo que procede de Deus traz a marca da doação. O médium não desonra sua faculdade apenas quando a negocia, mas, também, quando a negligencia.

Sou apenas um índio. Mas índios não entendem apenas de guerras, caçadas ou pescarias. Aprendi que Deus dá presentes, mas cobra fidelidade. Se um pajé infiel é uma vergonha para sua tribo, um médium infiel é um embaraço para seus irmãos. Um médium que deixa sua ferramenta sem uso ou a utiliza incorretamente, é como um índio que renega sua tribo; é um guerreiro que não defende seu povo nem respeita seus ancestrais; é arco que não dispara sua flecha; rede furada, que deixa o peixe escapar.

É preciso que os mais velhos ensinem aos mais novos a arte do carteiro, como falou meu irmão branco, Kröller. Que façam conselhos, como nos reunimos ao pé da fogueira para decidirmos o destino da nossa tribo. Que cada um se sinta responsável pelo todo e que todos estejam atentos às feridas de cada um.

Não há glória na preguiça; não há bravura em quem apenas come, deita e dorme; não se ganha uma guerra apenas com palavras. É no campo de batalha que o guerreiro se revela; herói não é quem morre ou mata, mas quem faz o que é necessário para que a vitória seja alcançada.

Portanto, irmãos. Cada um sabe o que precisa fazer. Por este lado não há ausências, discórdias nem acomodação. Cuidem do lado que lhes pertence para que a balança da vida não incline seu prato desperdiçando o esforço do dia.

Na planície que ora habitamos por este lado da vida, os campos de caça abundante não se destinam aos guerreiros que desertaram ou se afastaram de suas tarefas. Os tambores dos que foram justos não anunciam a chegada dos que fugiram ao compromisso assumido; não há lugar de honra junto à fogueira para quem se esqueceu das obrigações que lhe cabiam.

Entra nas campinas de paz os que realizam o bom combate; os que não perdem oportunidades de zelar pelo Bem; os que fazem o que seu Senhor lhes aconselha. Trilhar por outros caminhos e candidatar-se à derrota.

Com este maravilhoso “puxão de orelha”, válido segundo nossos instrutores, para todos os Centros Espíritas que sofrem com esta deficiência, encerramos a tarefa da noite.

Conversa entre guerreiros

É do conhecimento dos espíritas que o Espírito pode, uma vez liberto do corpo carnal, enquanto este dorme, retomar trabalhos incompletos, confraternizar com amigos

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desencarnados, assistir palestras, participar de cursos, enfim, dirigir-se ao mundo espiritual, nele desembarcando em regiões compatíveis ao plano dos seus pensamentos, a fim de realizar o desejo que lhe abrasa.

Às vezes nossos instrutores espirituais nos presenteiam com lembranças dessas viagens, para mim de valores inestimáveis, permitindo-nos gravar o conteúdo das palestras ouvidas e até mesmo refazê-las, quando necessárias ao trabalho desenvolvido em vigília.

Após o término da reunião na qual Tibiriçá nos advertiu quanto à necessidade de ampliarmos o quadro mediúnico, chegando ao lar, logo adormeci, acordando em meio a uma conversa informal com ele e seus bravos.

De repente estava ao redor da fogueira conversando sobre a bravura de alguns e as bravatas de outros, entre risadas e o cheiro da lenha queimando. Tibiriçá contava uma história que escutara de Kröller, sobre um general chamado Napoleão, muito valente, mas, segundo ele, esquecido de pequenos detalhes. Detalhes, às vezes decidem uma batalha. Isso um guerreiro deve saber, enfatizava o cacique.

- Napoleão invadiu a Rússia com 600 mil homens e voltou esfomeado com apenas 10 mil. Os uniformes dos seus soldados e generais eram ajustados com botões de estanho, material forte e brilhante apenas no clima quente. Quando a temperatura caiu em campo de batalha para abaixo de zero, os botões começaram a esfarelar, deixando os soldados, quando mais precisavam de calor, sem os meios de retê-lo. Com fome, doentes, esfarrapados e quase mortos, vencido pelo general inverno e pelo coronel botão, Napoleão voltou para casa. O detalhe que concorreu para a derrota foi o botão.

Terminada a história, logo um gaiato entrou na conversa.- Ainda bem que na tribo usamos para amarrar, couro e cipó.Aquela história me enviou (coisa de escritor) ao pensamento equivocado de

quem, às vezes, desavisados julgam índios, negros e favelados, pessoas sem cultura, ignorantes, desconhecedores da sabedoria livresca ou mesmo excluídos das refinadas noções dos centros acadêmicos avançados.

Tal raciocínio é fruto do preconceito e do desconhecimento da reencarnação, lei natural que favorece a volta do Espírito ao corpo físico, quando ainda é suscetível de nele abrigar-se.

Através dessa lei um branco pode reencarnar como negro, um sábio em meio a ignorantes, israelitas se transformarem em árabes, europeus se transportarem para tribos africanas, homens se tornarem mulheres, com direito a vice-versa para todo o parágrafo.

Tudo depende do merecimento, da necessidade evolutiva, da missão que o reencarnante precisa desempenhar, das injunções débito-crédito a que está vinculado. Um índio pode conhecer determinados teoremas científicos se reencarnou na condição de branco, freqüentou suas universidades, absorveu suas teorias. E mesmo havendo dominado tal conhecimento, este pode se encontrar oculto pelo espaço de tempo em que ele se aprofunda em outra cultura.

Lembrei da nota de rodapé que Bezerra de Menezes introduziu em seu livro “Dramas da Obsessão” referindo-se ao seu amigo e ajudante, o indio Peri, cujo conteúdo transcrevo: O nome Peri encobre individualidade espiritual indígena que não desejamos identificar, já reencarnada. Sua existência nas matas brasileiras traduz

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estágio de repouso e esconderijo, necessária para se furtar às continuadas perseguições obsessoras que, como antigo chefe de tribos árabes guerreiras, adquirira com as atrocidades praticadas. Não seria, portanto, espírito primitivo, como também acontecia com muitos outros índios brasileiros e escravos africanos no Brasil.

Resulta disso, que sabemos mais do que supomos e que estão mal orientados os que julgam de maneira parcial um índio ou outro indivíduo qualquer, rotulando-o de ignorante. É atitude imatura e precipitada julgar sem conhecimento de causa, pois a ninguém é dado apreender a síntese da essência moral-intelectual de ninguém.

Daí Jesus ter aconselhado o “não julgueis”, pois, geralmente, o julgamento emitido, mesmo quando bem elaborado, baseia-se em pálido reflexo da realidade do momento a que se ateve o julgador. Para um julgamento mais justo seria necessário ao julgador conhecer a história de vida de quem está julgando, circunstâncias ignoradas de sua existência, forças e leis que os homens apenas iniciam a perceber, como a lei de ação e reação e a reencarnação.

Tudo isso passou em fração de segundo na minha mente, pois bem sabemos que livre dos entraves da matéria o raciocínio é alado. Mas outros guerreiros iniciavam suas histórias.

- Existiu numa terra longínqua chamada Esparta, um rei de nome Leônidas, cujo significado é: forte como um leão. Quando criança, participando da sua preparação para tornar-se guerreiro, obrigatória para os de sua raça, foi dado como morto, devido o rigor dos testes de resistência física e mental exigidos pelo treinamento.

Mas o guerreiro sobreviveu. Quando ocupou o trono de sua cidade, outro rei tentou invadir sua terra. Ele consultou seu deus, que lhe disse: ou a cidade cai, ou cai o rei. Então Leônidas preferiu morrer a deixar sua cidade tombar. Perguntou ao seu general quantos soldados tinha o inimigo. São muitos, respondeu o general. São tantos, que se atirarem juntos suas flechas são capazes de bloquear o Sol. O rei respondeu: então lutaremos nas sombras! (os índios adoram histórias assim).

O rei, que ficou conhecido como o mais valente do seu tempo, escolheu os 300 guerreiros mais bravos do seu exército e foi para um desfiladeiro apertado, formando lá verdadeira muralha humana, sobre a qual era impossível passar. Matou milhares de inimigos, sem voltar atrás nem se render.

O corpo do rei ficou sob a guarda dos seus soldados até que o último deles caiu. Então o vencedor, que perdeu mais da metade do seu exército para matá-lo, cortou sua cabeça e crucificou seu corpo. Hoje, nesse desfiladeiro alguém escreveu: Venham buscá-las! Pois dizem que as almas dos guerreiros ainda estão lá, guardando a terra que agora é dos seus filhos. O detalhe aqui foi o lugar.

Logo que um encerrava seu relato, outro já introduzia outro personagem.- Existia no país chamado macedônia, um menino que se tornou rei com apenas

18 anos de idade. Seu divertimento era domar cavalos bravios e treinar a arte da guerra com os generais do exército do seu pai. Quando ficou órfão, assumiu o exército e saiu pelo mundo guerreando com outros imperadores e vencendo a todos. Era um homem muito valente e jamais perdeu uma luta.

Seu nome era Alexandre. Seu exército tinha mais de 30 mil homens a pé e 5 mil a cavalo. Ele era um general diferente. Ficava na frente do exército, dando o exemplo de

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coragem na luta. No seu exército cada homem cobria com seu escudo o corpo do seu vizinho. As lanças dos seus soldados tinham um cabo muito grande e atingia o inimigo de longe, sem que fosse ferido. Lutou contra homens, feras e gigantes; tudo que aparecia à sua frente era derrotado por ele.

Organizava os soldados de maneira que se moviam em todas as direções, como se dançassem, formando uma muralha impossível de ser penetrada. Seus generais e soldados o amavam e tinham plena confiança na sua coragem. Ele os fazia acreditar que eram invencíveis.

Mas um dia foi picado por um mosquito e morreu de febres. Kröller diz que foi de cansaço, bebedeira e loucura. Mas um homem com tanta coragem não morre de loucura. Esse mosquito devia ser também um rei entre os mosquitos. Os índios comentavam entre risadas essas coisas do cotidiano deles, e eu os sentia como minha gente. O diferencial de Alexandre, ou seja, o detalhe que o distinguia, era a bravura em combate.

Finalmente chegou a minha vez de contar uma história é então falei de uma mulher forte, guerreira, corajosa, dessas que passa o dia lutando sem se cansar. Seu nome era Madre Tereza de Calcutá. Talvez tenha sido a mulher que mais batalhas venceu e mais exemplos de coragem deixou.

Quando quiseram saber que arma ela usava, disse que era apenas a sua fé em Jesus e uma vontade de ajudar os mais pobres, como poucos haviam demonstrado. Começou sozinha e formou um exército tão grande ou maior do que o de Alexandre. Invadiu mais países que ele. Conquistou mais corações que todos os generais juntos. O detalhe que a tornava invencível e incansável era o amor aos pobres mais pobres.

Batalhas são vencidas, mais pelo gênio do guerreiro do que pela força bruta de seus músculos, conclui. Mas como sabem tantas histórias de brancos, indaguei?

- Lemos seus livros, comentou um deles entre risadas. Ao final da conversa sobre os detalhes que venciam batalhas em uma guerra, um

curumim leu um pequeno poema, segundo Kröller, pertencente à literatura infantil inglesa.

Por causa do detalhe

Por falta de um cravo, perdeu-se a ferraduraPor falta de uma ferradura, perdeu-se o cavalo

Por falta do cavalo, perdeu-se o cavaleiroPor falta do cavaleiro, perdeu-se a batalha

Por falta da batalha, perdeu-se o reinoTudo por causa de um prego para ferradura.

Esta foi uma das raras conversas da qual me lembro com clareza, pois as demais sempre se misturam com fatos do cotidiano, necessitando de peneiradas para organizar um texto. Não posso negar que gostaria de ter ficado na festa por mais tempo. Mas guerreiro, diz Tibiriçá, só se sente bem em batalha. Por isso agradeci ao Sol pelo seu beijo matinal.

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Mulheres atormentadas

Apesar de muitos homens negros terem sido vendidos como escravos para o Brasil, o contingente maior que perseguia Hortência, pelo menos na fase que atravessávamos, era formado por mulheres. Ao primeiro estágio da desobsessão, no qual foram retirados os oportunistas, os contratados por aluguel e pessoas não ligadas diretamente ao drama, seguiu-se o atendimento às crianças retalhadas e seus pais. Terminado este, abriu-se outro ciclo de conversações, desta feita, com mulheres atormentadas, que também haviam sido mães, mas que formavam o ex-grupo de escravas sexuais do chefe de tribo.

O diálogo com essas mulheres foi bastante difícil devido ao estado de alienação, ou mesmo loucura, que apresentavam. Iniciamos a reunião com três delas rondando a sala, mostrando-se apenas como vultos negros, sem feições definidas, rosto coberto por véu escuro, mexendo um caldeirão como se fossem bruxas em serviço.

O aspecto do trio era tão apavorante que o primeiro comunicante da reunião, um jovem desencarnado que acompanhava um estudante do curso de iniciação ao Espiritismo, ministrado naquele momento em outra sala, rogou para que o afastassem delas.

- Por favor, tirem-me daqui! Eu só estava acompanhando o rapaz. Não quero fazer mal a ele. É que ele vai para o lugar onde as mulheres se divertem e eu gosto disso. Eu não sou um marginal. Apenas gosto de sexo.

- O assunto não é tão simples assim. Você invadiu um templo de trabalho e de oração. Está perseguindo um dos estudantes de nossos cursos. Deve ficar para que os guardas verifiquem se sua versão é verdadeira.

- Sei que não estou completamente sem culpa. Mas eu não quero mal a ele. Apenas o sigo na esperança de que ele vá se divertir. Se me obrigam a ficar, por favor, levem-me para longe dessas mulheres. Elas são bruxas. Não vê o que elas estão fazendo?

Como o jovem estava gélido de medo, disse-lhe que um índio o acompanharia para o setor de investigação, a fim registrar a ocorrência; que ficaríamos de olho nele e diante de qualquer deslize cometido o traríamos novamente para um ajustamento de conduta. Aceito tudo, desde que me tirem daqui, respondeu. Era um jovem imaturo, desconhecedor dos perigos que cercam os incautos nesta área tão visada pelos vampiros. A advertência à moda policial, talvez o impressionasse e o enviasse aos campos de trabalho honesto de onde não deveria ter saído. Levado o jovem por um guerreiro de Tibiriçá, uma das médiuns iniciou a descrição do trio.

- Desde o início da reunião, vejo três vultos negros em trabalho entre nós. Com o passar do tempo descobri que são mulheres, apesar do véu negro que usam sobre o rosto. Tibiriçá, que está comigo, mostra em uma tela nosso encontro noturno com elas. Na tela, como em um filme, estamos em uma casa comprida, com muitos quartos aparelhados e decorados com motivações sexuais.

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Deve ser um local onde as pessoas se encontram para fazer sexo. As três confabulam e se dirigem para um quarto onde existe uma criança de aproximadamente oito anos de idade. Ela está morta, e diante dela, um homem desesperado se indaga sobre o que fazer.

É uma situação delicada. O homem fez sexo com a criança e a sufocou. As três mulheres, treinadas em invadir conjuntamente o pensamento culpado, sentindo-se dominadoras na indução de tragédias na área sexual, aconselham a que o homem se mate. É uma vida por uma vida! Uma medida justa, dizem elas. Você ainda terá lucro, pois a criança apenas iniciava a caminhada e você é apenas uma pessoa imprestável, que abusou dela e a matou. Vamos! Toma esta faca! Perfura esse coração pecador! É a lei que manda! Uma vida por uma vida! Por que vacila? Obedece! Mata-te!

O homem, movido pelo remorso, matou a si próprio e foi aprisionado por elas, que o carregam para lugar desconhecido. Tibiriçá aproveita a ausência do trio e retira a criança.

A criança comunicou-se na reunião, gritando, pedindo socorro, sendo acalmada, e sob promessas de ajuda e de acolhimento, adormeceu.

- Vejo que elas voltam e procuram pela criança. Vasculham a área como a pressentir algo de errado. As imagens na tela cessam e vejo que elas continuam o trabalho de magia em nossa sala. Pela confiança que demonstram, pensam que nos pegaram em uma armadilha. A que está próximo a mim vai se comunicar.

- Vamos mulher! Fale o que estou mandando! Daqui por diante esta sala nos pertence e vocês farão apenas o que mandarmos.

- Pensa realmente que podem se apossar de nossa sala e de nossas mentes? - Sim! Hoje essa mesa vai voar! Vamos pegar aquela mulherzinha traidora que

está lá fora e levá-la para nosso cárcere. Nosso assunto é com aquela prostituta que está no salão. Vá chamá-la! Quero saber por que ela quebrou o pacto que fez conosco.

- Antes preciso de informações. O que fizeram com o homem que se suicidou?- Está prisioneiro. É nosso escravo agora. Trabalhará para realizar nossos

interesses. Quem sabe não o enviemos como hóspede dela? Isso é para você ver que não estamos aqui para brincadeira e que somos poderosas.

- Não estou convencido ainda. Por que querem aprisionar nossa aluna e por que a rotulam de prostituta?

- Por que é o que ela é! Uma prostituta! A preferida dele! Sabe o que é um pacto? Temos um com ela. Ela deveria matá-lo! No entanto, agora o cobre de mimos. No lugar de apertar-lhe a garganta, oferece o seio; cerca-lhe de cuidados quando deveria envenená-lo.

- Estou começando a entender. Todavia, desconheço o início da história.- Somos as bruxas do mal. Incentivamos o uso do sexo, pois fomos abusadas a

vida inteira. É a nossa vingança. Somos a ponta da lança. O restante, o cabo, está atuando em outros lugares.

- Está querendo dizer que são líderes? Com tanto ódio no coração a tendência não é cada uma fazer o que quer?

- Ninguém faz o que quer quando existe um pacto que o orienta. Estamos aqui porque a traidora, a prostituta, o quebrou.

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- Não entendo o ódio contra nossa aluna. Ele é que vendeu escravos, matou crianças, fez inimigos. Ela era só a esposa.

- Esposa? Que gracinha! Um chefe de tribo com uma esposa. Ela era a favorita dele, mas todas eram escravas sexuais. Ele torturou algumas e a outras matou. Terceiras se suicidaram. As que estavam mortas se uniram com as que estavam vivas e formaram um pacto para trazê-lo para este lado e escravizá-lo. A favorita, agora é quem mais o defende, quebrando o pacto que fizemos.

- Quando ele morreu vocês o pegaram?- Claro. O pegamos mais cedo do que supúnhamos. As mortas induziram as

vivas a matá-lo. E foi justamente ela, a favorita dele, que o matou a pauladas. Não imagina a festa quando o agarramos. Mas chega de conversa! Vá chamá-la! Se não obedecerem viramos esta sala pelo avesso.

- É muita conversa para pouca força. O caso aqui está mais para hienas do que para leões. Primeiro vamos retirar esse véu para que possamos nos encarar face a face.

Dito isso fiz o gesto como se arrancasse o véu do rosto da médium. A comunicante, cheia de fúria, reagiu.

- Seu maldito! Pensa que é páreo para mim?Como houve tentativa de reação, a julgar pelos movimentos realizados pela

médium, os índios a imobilizaram, deixando apenas que sua boca continuasse a verbalizar toda a raiva que não conseguia conter.

- Tire esses macacos de cima de mim! Todos vocês devem obedecer ao meu comando!

- Um pouco ingênuo seu raciocínio. A situação é justamente inversa. Se não obedecer aos índios, certamente vai ser ferida.

- Tire essa lança do meu pescoço!- É apenas uma medida para que se mantenha quieta. A ponta da lança é muito

fina e num movimento brusco pode rasgar sua pele. Contudo, estamos dispostos a deixá-la sob vigilância, para uma conversa mais demorada, se prometer não reagir.

- Tem outro jeito? - É o único.- Pois que seja!Aprisionada a primeira mulher, logo a segunda se comunica, fazendo enorme

esforço para separar os pulsos amarrados.- Quem são vocês? Pensam que têm mais força do que nós? Se não

desamarrarem meus pulsos reduzo esta mesa a pó!- Estava com as outras duas?- É claro que sim! Atuamos em conjunto. Nunca ouvi dizer que a união faz a

força?- Neste caso ela não prevalece. A sua companheira é nossa prisioneira. O mesmo

vale para você. Também está perseguindo nossa aluna?- Que aluna? Uma traidora! Se ela está aprendendo alguma coisa aqui é trair

um compromisso assumido. Não se esquece velhas companheiras. Não se quebra um pacto nem se trai a confiança de aliadas. Ela fez tudo isso e agora deve morrer com o criminoso que abriga e defende.

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- Não quer dar sua versão sobre a atuação dela enquanto era considerada a preferida?

- Quem lhe contou isso? Espere até nossa panela chegar ao ponto para ver o que lhe acontece. Preferida ou não, ela vai ter que matá-lo, senão mataremos os dois.

- Queria lhe informar que os índios já derramaram o que havia na panela. Se olhar bem, verá que dela restam apenas cacos. Quanto ao preparado, jogaram areia por cima.

- Índios duma figa! Quando sair daqui, vou queimar seus mocambos. Se pegar um bicho desses solto na mata dou-lhe uma boa surra, para ele nunca esquecer o respeito que deve as bruxas. Tire esse monstrengo da minha frente!

- A quem se refere chamando de monstrengo?- A esse índio gigante. Se estivesse com minhas urtigas dava um passe nele que

ele iria se atirar na água se coçando que nem um macaco. Mande-o embora, pois ainda tenho força para derrubá-lo.

- Pelo visto não está em condições de derrubar nem um pernilongo. - Não me afronte! Faço mandinga que amansa até leão. Com meu poder, fiz

onça se acovardar e ovelha sangrar lobo. Já fiz velho virar moço e moço desconjuntar; Pego um negro valente e dele faço um covarde; do fraco retiro o sangue, faço dele um preparado e ele vira lobisomem.

- Folclore à parte, essa conversa está mais apropriada para os cantadores de rua ou escritores de cordel. Devo entregá-la a Tibiriçá para que a acompanhe até nossos instrutores.

- Covardes que são! Bandidos! O que ganham nos prendendo aqui? O que ganham ajudando a dois criminosos?

- Não estamos trabalhando por recompensa. Ajudar pessoas nos dá satisfação. Esse é o nosso objetivo.

- E por que não nos ajudam, nós que já nascemos na peia? Quando estávamos com ele apanhávamos; enquanto éramos escravas apanhamos; se recordamos o passado, as dores das pisas retornam. Peia para duas tribos nós levamos sozinhas. Existe alguém mais necessitada de ajuda do que nós?

A mulher tinha bom humor. Gostei dela de imediato. Aquela era a linguagem dos botequins, e foi em um deles que cresci, ouvindo as mais loucas histórias. Torci para que ficasse conosco e para que pudesse conversar longamente com ela durante meu sono físico. Quando se referiu ao passado começou a sofrer tremenda dor de cabeça. Não demorou muito para que gritasse pedindo ajuda.

- De novo, não! Que inferno de vida! Será que essa dor não acaba nunca? Existirá inferno pior do que este em que vivo?

- O que aconteceu com sua cabeça? - Foi amassada por pauladas. Este lado esquerdo está todo massacrado.- Permite-me examiná-lo?- Sim. A dor é maior que a raiva nesse instante.Comecei a ministrar passes na mulher, enquanto dizia palavras de conforto.

Prometi auxílio médico, hospedagem e, sobretudo, respeito a sua dor. Disse-lhe também

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que amigos podem estar de lados diferentes, mas isso não impede que se ajudem na hora da necessidade. Ao final da conversa, ela se sentia aliviada. Ainda perguntei.

- Quer que mande chamar nossos médicos para um exame mais detalhado?- Gostaria. Foi então que disse para meu ajudante encarnado, como se ele pudesse e

soubesse como executar a ordem que estava emitindo. - Chame um médico da equipe do doutor Bezerra! Essa senhora precisa de

atendimento urgente.Foi assim que ganhei sua confiança e a deixei escutando a música enquanto me

dirigia para a terceira mulher.- Está assustada com a minha cara de porco, não é? Ela sempre assusta as

pessoas. Mas como esse índio me tirou o véu, não me importo de mostrá-la. Veja bem, pois ela vai persegui-la em seus sonhos.

A terceira mulher, a mais enferma, tinha o rosto deformado, semelhante ao de um porco, e a cada espaço de tempo, roncava, imitando o barulho emitido por esses animais. Aceitara a mudança de fisionomia e de hábitos e não estava interessada em mudá-los, o que indicava uma mente enferma e sofrida.

- Você fez isso ou fizeram isso a você?- Fizeram isso comigo, mas eu gostei. Sou uma porca. Preciso assustar aquele

assassino e a traidora que o abriga.- E para isso precisa chegar a esse ponto de degradação? Como seu filho,

familiares, amigos se sentiriam vendo-a assim?- Não me toquem! Tragam meu véu! Tire esses médicos daqui! Vocês não têm o

direito de mudar meu rosto! Quero permanecer assim!- Suas amigas disseram que era uma mulher muito bonita. Deixe que os médicos

façam seu rosto voltar à beleza anterior. Por causa de uma vingança não precisa se rebaixar ao nível de um animal.

- Tire essa luz daqui! Está queimando o meu rosto! Não quero plástica! Eu não quero ser bonita...

- Como eram seus olhos?- Não tenho olhos. São apenas dois buracos, pois ele os perfurou.- Mais uma razão para fazê-los voltar ao normal. Por favor, deixe-nos ajudá-la. É

um ser humano sofrido, merece ser feliz.- Não me toque! Está esticando meu rosto! Está queimando! - Seu rosto está ficando lindo! Não entendo como chamavam a outra de “a

preferida” se você é muito mais bonita.- Eu não quero ser linda! Foi por isso que ele me escravizou. Foi por causa

dessa beleza que sofri e fiz outros sofreram.- Não foi por causa da sua beleza. Foi por maldade e ignorância que lhe

maltrataram. Que cor tem seus olhos?- A cor do mel das abelhas. Ele os furou porque eram bonitos. Eu não quero ser

bela! Quero continuar sendo uma porca. Era assim que me chamavam: negra porca! Negra suja!

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- Veja no espelho como você está linda. Seus amigos vão ficar maravilhados quando a virem.

- Não quero olhar! Quero continuar cega! Eu sou feia. Não façam isso comigo! A beleza só me trouxe desgraça. Esse rosto só me lembra dor e sofrimento. Eu era assim. Hoje sou uma porca! Nojenta! Imunda! Fedida! Era assim que me tratavam!

- Isso foi o que colocaram na sua cabeça. O que queriam que você pensasse sobre você mesma. Mas você é uma mulher bela, que pode refazer sua vida, seus amores. Afirmo-lhe que a felicidade está ao seu alcance, pois todos somos filhos de Deus e é este o destino que ele nos reserva.

- Não quero este rosto esticado! Não quero mais olhar! Não sou mais assim. Vou rasgar minha face com as unhas; vou pegar esse rosto e queimar...

Então a mulher, que segundo as videntes era uma negra bela e exótica, tentou rasgar a face com as próprias unhas, rejeitando a beleza que os técnicos espirituais lhe restituíram. Sem demora eles a interromperam, vestindo-lhe uma camisa de força.

- Como aceitar um corpo bonito e enfrentar tudo de novo? Prefiro um rosto feio para que me ignorem ou me desprezem. Eu não sou o que estou vendo no espelho. Não quero ser.

- Ninguém mais lhe fará sofrer por causa da sua beleza. Começará com ela outra página da sua vida. Prometa-me não se agredir para que não precisemos sedá-la.

Mas a mulher foi falando compassadamente, perdendo as forças, encostando o rosto da médium na mesa.

Durante toda a prece final lembrei-me dela. Os videntes ainda a viram sobre uma maca, adormecida, com o rosto mais calmo, com sua cor de ébano e sua beleza rara. Apesar da camisa de força que a manietava, pois a todo custo queria ferir o rosto, seguiria para tratamentos especializados e redescobriria os sentimentos de mulher, o desejo de ser amada, de conquistar e ser conquistada, de ter filhos. Certas coisas, como diz Francisco, meu instrutor, não mudam neste vasto mundo.

Homens de luz

A reunião começou com uma paz no ambiente, tão contagiante, que podia ser sentida até por nossa respiração. Os videntes disseram que o motivo daquele clima saudável era a presença de médicos luminosos da equipe do doutor Bezerra de Menezes, que tomara para si o aconselhamento e a medicação de tão sofridos irmãos. Eles se situaram em volta da mesa, e a vibração que deles emanava, parecia penetrar nossos poros energizando-os. Certamente, como ocorre em reuniões desse estilo, seria exigido do doutrinador um esforço extra a fim de captar as intuições que deles procediam.

Senti na mente o desejo sincero de contribuir, ou de pelo menos, não atrapalhar. Sei que não tenho méritos suficientes para estabelecer uma sintonia duradoura com tais entidades, mas me coloquei à disposição para o trabalho, qualquer que ele fosse. Como afirmam os trabalhadores de boa vontade, disse mentalmente: aqui estou irmãos; posso limpar o estábulo sem reclamações.

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Muitas pessoas gostariam de ocupar a função de doutrinador em uma reunião mediúnica, mas desistem da idéia quando as exigências começam a pedir estudo, dedicação, disciplina, burilamento.

Se pudéssemos repartir em porcentagem a figura de um doutrinador, a equação matemática seria aproximadamente esta: Doutrinador = caridade + disciplina + estudo + amor ao que faz.

Se o poeta só é grande quando sofre, segundo narra antiga canção popular, o mesmo se pode dizer com relação ao doutrinador. A piedade, este necessário sentimento que aproxima o assistente do assistido, não se firma sobre as pilastras do intelecto. Está mais ligado a sensibilidade que a genialidade. É filho do aprofundamento moral, sendo mais justo dizer que é lição extraída do próprio sofrimento, quando bem entendido e aceito, pois deixa marcas, qual plugues nos quais se conectam os que também sofrem.

A distância existente entre o doutrinador e os bons Espíritos é muito mais elástica do que o espaço entre ele e os obsessores. Essa proximidade se deve aos erros que ainda comete ou cometeu no passado. Mesmo desejando uma maior proximidade ou intimidade (sintonia) com seus instrutores, o que lhe é dificultoso pelas virtudes que ainda não conquistou, recebe deles exagerada porção de carinho e proteção.

Como essa distância evolutiva estabelece um grau de afinidade, é justo supor que a grande maioria dos doutrinadores mais se afina com os obsessores do que com os mentores. Ocorre, que no momento do diálogo entre ambos, o obsessor, geralmente, se mostra enlouquecido pelo ódio, o que induz algumas pessoas a pensar que ele é mau, inferior, distante evolutivamente do doutrinador.

Mas passado o achaque, caindo em si o obsessor, mostra-se, às vezes, tão ou mais capaz no enfrentamento dos seus problemas do que o doutrinador. Este é o momento em que os dois se reconhecem como aprendizes da vida e ao observador atento fica claro o quanto são semelhantes.

Todavia, como até do erro Deus nos permite extrair lições, observando atentamente a semelhança, nela identificamos uma vantagem para o doutrinador. Os que descrevem melhor nossos defeitos são aqueles que também os possuem ou já entenderam com detalhes, os meandros da natureza humana.

Sendo Espírito endividado e necessitado de constantes lições, sobretudo, de natureza moral, o doutrinador, por força dessa proximidade com o obsessor, o que lhe rende certa dose de afinidade, dela se beneficia em sua função, e embasado nela constrói sua redenção espiritual.

Gosto de dizer que os doutrinadores, por força do aconselhamento que promovem se auto-instruem, ou seja, incentivando, são incentivados; doutrinando, acabam sendo doutrinados. Pensando assim, sentindo que a dor que a mim seria apresentada era profunda e prolongada, me solidarizei com ela, a tal ponto de, enquanto conversava com os enfermos, querer abraçá-los e dizer: estou aqui. Não sei bem o que fazer, mas estou aqui. Estava formada, pelo menos durante o período da reunião, a sintonia com aqueles médicos.

Certamente tal sentimento de piedade tinha gênese nos homens de luz que nos cercavam. Mas o absorvi. E cheio de boa vontade, comecei o diálogo.

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- Você já viu um besouro grande e monstruoso com gosma saindo pela boca? Eu transformei a criança em um besouro. A maldita ou o maldito, como queiram chamar, agora é apenas um inseto.

- Bom dia, amigo. Um bom diálogo começa com a verdade. Sei que no momento ela está protegida, e sem autorização daqueles que a defendem, nada será capaz de atingi-la. Portanto, sejamos sinceros um com o outro e deixemos que Deus, que a todos observa, decida quem está com a razão.

- Por que julga que não possa fazer isso? Eu era o feiticeiro da minha tribo. Minha função era conversar com os Espíritos, pedir progresso para a tribo e desgraça para seus inimigos. Posso transformá-lo em um besouro e quando a mãe for amamentar ele irá picá-lo.

- Teremos mais sucesso nessa conversa deixando as fantasias de lado. A julgar pelos médicos presentes, é a dor que deve ser enfatizada aqui. Se tem alguma coisa contra o irmão que se abriga naquele corpo pequeno, chegou a hora de externar. Estamos hoje trocando dor por saúde, revolta por paz, desespero por esperança. É a ordem dos nossos instrutores.

- Tenho todas as razões para carregar este ódio no peito. Aquele maldito, com suas guerras de conquista, destroçou minha tribo. Queimou nossas casas, roubou nossa criação, escravizou nossas mulheres e tocou fogo nos homens. Até com nossos vasilhames ele ficou. Miserável, desgraçado! Maldito! Por mais cruel que um homem seja, deveria ter o escrúpulo de não matar crianças.

- Havia muita gente perseguindo-o. Por que somente agora vocês se apresentaram para tentar pegá-lo?

- Estávamos de tocaia a espera que outros o capturassem. Aguardávamos nosso momento.

- E julga que o momento é este? - Sim. Se outros desistiram, nós permaneceremos. Estávamos retraídos por que

muitos ainda sentem as queimaduras na pele. Minha magia não foi capaz de curá-los. - Quando despertaram depois da morte qual a situação de vocês?- A maioria com ódio e disposição para ir atrás dele. Juntamo-nos aos outros

que também foram prejudicados e partimos para apanhá-lo. - Você sabe, realmente, como utilizar a magia negra ou quis apenas me

impressionar?- Sei fazer muitas coisas nessa arte. Ocorre que estamos doentes e um homem

doente não raciocina bem. Nosso ódio maior é devido às crianças que ele matou. E sabe por quê? Porque comia carne humana. Ele se alimentava com a carne das crianças, aquele maldito!

- Recebemos ordens de nossos instrutores para atender e ajudar a todos vocês. Por que traz os punhos cerrados? Ainda não vi suas mãos abertas.

- Antes de ser morto ele cortou minhas mãos e as lançou no fogo. Tive que assistir a destruição da minha aldeia antes de ser, definitivamente, queimado.

- E como elas estão hoje?- Com o meu ódio atuando, fui desenvolvendo estas garras para esganá-lo

quando o encontrasse. Mesmo assim sinto as dores das queimaduras.

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- Permite que eu as examine? Quem sabe não possa consertá-las com nossa magia.

- Se fizer isso volto com mais força ainda para cima dele.- Se fizer isso, a magia perde o efeito. O conserto só é permanente se a pessoa

curada não usar as mãos para fazer o mal. Em todo caso, vou tentar. Se der certo é porque Deus reserva para você um tempo de paz no qual possa usar suas mãos para um bom plantio.

Aqueles homens e mulheres eram ainda, presos a terra, as ervas, aos metais, aos pontos riscados e mandingas. Adentrei a cultura deles e disse, ao pegar um copo com água que descansava sobre uma mesinha ao lado: este preparado estica qualquer pele e faz qualquer órgão do corpo voltar ao normal. Tudo que quero é que você pense em suas mãos; como eram elas antes de serem cortadas.

- Eram longas. Tinha os dedos finos. Dedos de jovem. Molhei as mãos com a água e massageei as mãos da médium ciente de que ele

estava percebendo e sentindo o que eu fazia.- Esta esfriando. Está fervilhando! Sinto meus dedos se mexendo. Mas como fez

isso? Que magia e esta? Minhas mãos voltaram a ser o que eram. Mãos de jovem de 23 anos. Meu Deus! Como vivi pouco naquela tribo.

- Poderá recomeçar uma vida nova agora. Mas lembre-se! Como deu certo é porque Deus reservou para você um tempo de paz. Se utilizar as mãos na guerra a magia perde o efeito. Vai voltar para junto dos seus amigos?

- Sim. Vou mostrar as mãos a outros mutilados. Se vocês estão dispostos a atender quem tem problema, não vai faltar serviço hoje.

- Diga aos velhos e as crianças que venham primeiro. Depois as mulheres e por fim os guerreiros. Diga-lhes que Deus quer ver toda a tribo feliz e com saúde.

- Então é essa a razão da presença desses homens de luz? A magia deles é poderosa. Estou tão feliz com as minhas mãos que acho que fiz um bom negócio: trocar minha saúde pelo ódio àquele infeliz.

- Pode ter certeza que sim.Enquanto este personagem alegrou-se pela saúde, outros, por orgulho, mesmo se

sentindo enfermos e frágeis, deram muito trabalho antes de aceitarem a caridade dos bons Espíritos. O orgulho é um vício de visgo severo. Não há como escondê-lo sob máscaras, porque ele sempre se revela através de frases prontas, verdadeiros gatilhos já preparados para expelir a cólera, a prepotência, o complexo de superioridade de quem se sente dono da verdade.

Até coberto de andrajos o orgulhoso, diante de uma contestação, mesmo autêntica, costuma dizer: ninguém pisa em cima de mim! Eu sou sincero e digo logo umas verdades! Você sabe com quem está falando? Em razão da demora no diálogo com tais entidades não transcrevemos suas falas. Aproveitamos o espaço para o diálogo com os mais sofridos.

- Sei qual é a intenção de vocês quando promovem curas. É a de que fiquemos devendo favores para barganhar depois. Pensam que só porque somos negros, somos ignorantes e não percebemos as intenções ocultas. Esses médicos bonzinhos fazem o serviço e depois mandam a conta a ser paga em forma de obediência.

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- Fez um julgamento precipitado. Não estamos pedindo nada nem mandando fatura para ninguém. A ordem é fazer o bem sem olhar a quem.

- A mim vocês não enganam. Remédio em uma mão e cobrança na outra. Branco é bicho astuto. Se estão defendendo aquela peste, alguma coisa vão ganhar.

- Faz parte da tribo desse jovem que foi queimado ou foi prejudicada de outra maneira?

- Sou companheira das três que vocês prenderam. Tivemos o rosto queimado quando éramos escravas dele. O desgraçado prometeu aos anjos dele que iria nos ajudar quando nasceu como fazendeiro no Brasil. Por nossos débitos, nascemos escravas, filhas das primeiras que ele vendera. Marcou-nos a ferro novamente quando deveria amparar-nos.

- Como você sabe dessa história?- Enquanto estamos prisioneiras entre vocês, esses médicos vão mostrando

nossas existências passadas. Sei que fui castigada por ter feito mal aos outros. Aliás, não quero saber disso. Passado é passado! Por que preciso pagar por uma conta velha cujo cobrador já me esqueceu?

- Mas que bom que já sabem do passado! Isso facilita tudo. Quer dizer que o chefe banto renasceu no Brasil com a missão de, como fazendeiro branco, amparar os escravos que maltratara?

- Foi o que me disseram. Isso só aumentou minha raiva. Ele vai pagar! Não me venha com essa história de perdoar, pois não estou interessada nisso!

- Mas eu nem falei em perdão. - Mas seus amiguinhos médicos, sim (doutrinação paralela).- Existem outras além de vocês quatro?- Sim. Quatro andorinhas não fazem um verão. Somos muitas, e com vontade de

tirar o couro dele para espichar em uma vara. - Suas três amigas estão em nosso hospital. Quer visitá-las?- Quanto vai me custar isso?- Que mania que você tem de pensar que tudo exige um preço. Não há preço que

pague a visita de uma amiga.- Não quero saber dessa história de operação. Sou mais forte do que elas. Sei

agüentar uma dor até obter o que quero.- Lembra da senhora que tinha o rosto parecido com o rosto de um porco?

Recuperou suas verdadeiras feições. Agora está muito bonita. - Qual o seu interesse em nos tornar bonitas?- Somos advogados de defesa de ambos os lados. Aos enfermos queremos levar

a saúde; aos que odeiam queremos ver em paz.- Sei. E para isso o defendem e engaiolam as inimigas dele. Boa maneira de

demonstrar amizade.- O que acabou de ser feito ao jovem pajé foi uma agressão?- Não. Mas ainda falta o segundo ato. A cobrança da dívida. Em que mundo

você vive?- Nesse mesmo em que você está.

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- Conversa! Todo mundo cobra, explora, se aproveita, agride. O mais bonzinho aqui toma doce de criança.

- Ouviu a leitura do Evangelho: amai-vos uns aos outros como eu vos amei.- Evangelho é fábula! Não preciso dessas leituras todas para saber que os

homens mentem. Os que querem ser bons são logo massacrados pelos maus. Não tem jeito de melhorar. Por isso a gente responde violência com violência.

- Não aqui. Os médicos estão prontos para distribuir amor. Você também usa véu?

- Usava, mas o índio o tirou. Você não está me vendo? Por que faz tantas perguntas?

- Apenas ouço sua voz. Por que usa um véu se, a julgar pelo que diz, é do tipo de pessoa que não esconde nada?

- Por que tenho vergonha do meu rosto. Agora vai pisar em mim?- Claro que não. Se tem problema no rosto, mais uma razão para que aceite a

ajuda dos médicos. É muito triste viver escondendo o rosto dos amigos.- Se olhar meu rosto vai tomar um susto e vai entender porque odeio tanto

àquele canalha. Ele o queimou com um ferro em brasa. Tinha o hábito de ferrar as pessoas como gado. Tenho de ambos os lados do rosto uma ferradura de cavalo impressa a fogo.

- Mas por que alguém praticaria tão desumana agressão? - Crueldade. Ele sempre teve raiva de negro. Colocava os negros abaixo dos

animais. - Há muitos anos trabalho com a dor alheia. Já vi muita maldade no mundo. Não

há razão para se esconder de nós. Sei que há muita dor entre vocês. Por isso os médicos estão a postos. Acredite! Nada cobrarão para lhe restituir a saúde.

- Não quero mais conversar sobre isso. Leve-me para a gaiola em que eu estava. Não é só isso que sabem fazer?

- Não posso acreditar que esteja perdendo a chance de recomeçar a vida.- Que perca! Já perdi tudo mesmo! O que falta mais me retirarem? - Quem perde tudo recomeça a luta para recuperar tudo. Se sabe que chegou à

situação em que se encontra devido aos erros passados, pode começar evitando cometer os mesmos erros. Por falar em agressões passadas, deve ter notado que não está aqui presente, cobrando vingança, nenhum dos que você ofendeu. Pode recomeçar a vida como suas três amigas recomeçam.

- Elas devem estar prisioneiras em algum buraco por aí. Aquela que se diz mãe dele, aquela traidora vai ser perseguida até o fim do mundo. Ela que se prepare!

- Ela está firme na missão de mãe. Está defendendo a filha. No seu lugar você faria o mesmo.

- Traidora maldita! Cuspo nela!- Mas ela não o matou a pauladas naquela encarnação?- É pouco! O problema é que ela se uniu a nós e jurou vingança contra ele.

Fizemos um pacto. Agora quer protegê-lo.

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- Não aprovamos o que ele fez. Sabemos que ele vai pagar tudo que deve a Lei. Não precisa ser você a cobradora. Ele passará por doenças, dificuldades, sofrimentos, é a forma de cobrança da Lei.

- Vocês sabem lá o que é sofrimento! Nem vocês nem esses médicos. Já nasceram em berço de ouro.

- Está enganada. Todos que habitam a Terra sofrem. Estes médicos não chegaram ao ponto em que estão por privilégio divino. Vêm de uma longa batalha onde sofreram, suaram, aprenderam e amaram. Foi assim que venceram suas imperfeições. Foram pais, tiveram doenças, sofreram injustiças, mas tiveram a dignidade de sofrer resignados, sem perder a fé em Deus.

- Deixe-me voltar para a cela!- Hoje é o dia em que você pode ficar em paz consigo mesma- Não quero que mexam no meu rosto! Não quero!- Mas disse que tinha vergonha dele!- Tenho- Teve filhos?- Você sabe que sim. Não são todos da mesma laia? Não contam uns para os

outros, o que escutam?- Muitos filhos de vocês já foram encontrados. Quem sabe os seus estejam entre

eles? Vai querer apresentar-se a eles com esse rosto marcado? Não seria melhor abraçá-los com o rosto antigo? O mesmo que eles olhavam e confiavam?

A mulher, de repente, começou a chorar convulsivamente. Alguém ao seu lado lhe dissera algo grave que a fizera estremecer.

- Você sabe quem é minha filha? Foi aquela que matou o maldito a pauladas. É ela! Estão me mostrando isso agora.

- E sabendo disso ainda pretende matá-la?- Por que ela foi ceder à chantagem de vocês? - Ela é mãe agora! Sabe o que é e o que pode o sentimento materno? - Sei! Sei!- Então por que reprova sua filha?- Porque ela abrigou no ventre aquele maldito. - Ela o matou. Reconheceu que havia errado. Assumiu a culpa e resolveu ajudar

seu inimigo. Foi uma prova de amor e de coragem. Devia estar orgulhosa dela.- Pode me revelar tudo. Que ela é mãe! Que é heroína! Que é minha filha, mas

isso não muda meu ódio.- Odeia sua filha?- Não sabia quem era ela. Por isso a agredia.- Perguntei se a odeia e se vai perseverar na vingança, já que qualquer agressão à

filha ferirá a mãe.- A ela não, mas a ele sim!- Não é melhor ter uma conversa calma com ela e ouvir suas razões? Dizem que

coração de mãe não se engana.

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- Não adianta! Ele sendo filha dela! Que mente organizou isso? Tenho que esquecer que ela foi minha filha. Mas ele, vou matar! Podem me prender mil anos, mas vou matá-lo!

- Está tentando enganar a si mesma quando diz que vai esquecer sua filha? Ninguém esquece um filho, a não ser que esteja louco. É preciso ser muito insensível para desprezar um filho.

- Você, com suas palavras, vai encurralando a gente, vai apertando o laço, fazendo a gente sofrer. Gosta de machucar! Ferir!

- Tudo quanto quero é ajudá-la. Agora mais ainda, pois sei que é mãe da Margarida.

- Se quisesse mesmo me ajudar jamais deveria ter deixado retirarem o meu véu. Deveria me deixar caminhar com meus próprios pés.

- Você caminhava rápido demais para o abismo. Os bons Espíritos não queriam que caísse.

- Pois deixe que eu vá para o abismo! Eu quero ir para o abismo!- Essa revelação de que ela é sua filha é mais um motivo para evitar a queda. - Não aceito isso! Não aceito! Não aceito!- É uma pena que seja tão radical. Sua teimosia só vai piorar as coisas. Matar a

criança, você não pode. Ela agora tem proteção. Mesmo se matasse seu corpo, não capturaria seu Espírito. Seria uma assassina e adicionaria outras dores às já existentes. A vida vai lhe tolher os passos, pois Deus já decretou o basta para essa guerra.

- Você pensa que vai me segurar aqui por muito tempo?- Chega! Não seja ingênua ou me julgue ingênuo. Só sairá daqui com ordem

expressa dos seus protetores, que já a advertiram demais. Você não e uma vítima, pois viu o que fez no passado; está tendo a chance de recuperar a saúde e está rejeitando o benefício; Sabe onde está a filha, mas quer assassinar a neta, tendo ciência de que isso vai de encontro às leis divinas e o sentimento materno; sabe que sua neta vem com um plano traçado para pagar suas dívidas, mas não quer deixar que ela pague. O que quer afinal, com tanta rebeldia?

- Quando ele crescer vai maltratá-la. Ele não muda! Ninguém passa de demônio para santo em uma vida. Será que esses anjos que estão aqui não percebem isso?

- As pessoas mudam. Sua filha mudou. Ele vai ser educado na Doutrina Espírita, caminhará sob a vigilância dos fiadores e poderia seguir com mais segurança se pudesse contar com a sua ajuda. Se inspire na nobreza de sua filha. Ninguém sabe o futuro. Só Deus. Ele não enviaria um filho já condenado a praticar mais crimes.

- A nobreza dela só trará mais sofrimento. Na minha mente se eu o matasse a livraria de uma desgraça futura.

- Quanto mais uma pessoa odeia e agride outra, mais se aproxima dela. Nascem como pai e filho, irmãos, marido e mulher e até mesmo gêmeos xifópagos, emendados pelo resto da encarnação.

- Não! Emendado, não! Esse seu Deus é carrasco.- Deus dá inúmeras oportunidades, quais as que você está tendo no momento.

Rejeitando-as, as provas são mais duras.

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- Mais dura do que ver uma filha abrigar no ventre o assassino da mãe, é difícil. Tudo quanto quero é livrar minha filha da presença daquele assassino, pois muito duvido da sua melhora. Um fruto podre não volta a ser maduro.

- Ninguém se livra de outro dessa maneira. Aceite sua saúde; apresente-se para sua filha e ajude-a a levar o fardo. Livre-se dessa máscara de horror em seu rosto, pois isso serve apenas para alimentar mais ódio. Apresentando-se a ela nessas condições vai confundi-la, deixá-la na dúvida se tomou a decisão correta. Dê a mão a sua filha! Não coloque mais lenha em uma fogueira difícil de apagar.

- Chega! Chega! Eu já entendi! Não vou mais persegui-lo. Você me convenceu! - Agora nos deixe cuidar de você. Queremos que encontre sua filha, com o rosto

que ela viu pela primeira vez e que a encheu de esperança.- Isso não! Não podem me obrigar a isso! Eu não vou mais lá. Já dei minha

palavra. É tudo que me resta.- Vai condená-la a ausência de sua melhor amiga? Não se importa com a

saudade dela? Não consegui extrair nada das lições que a dor deixou? Não estará sendo egoísta pensando somente em você, enquanto sua filha, sozinha, atravessa o deserto? Não vê que seu coração clama por um encontro, mas seu orgulho está fechando a porta para ele? Mulher! Quem somos nós diante de Deus! Ele sabe o que é melhor para cada filho. Não atrapalhemos Seu trabalho nem Suas decisões, pois só conseguiremos mais dor com essa rebeldia. Quantos amigos sinceros ela terá nessa fase tão difícil de sua vida?

- Não estou abandonando ninguém! Quero ficar sozinha! Ela nem sabe da minha existência.

- Quando o corpo dela adormece seu Espírito pode se libertar e encontrar com você. Isso é mais uma prova da bondade de Deus a quem você acusa de crueldade. Como pensa que compareço diante do trabalho à noite? Com esse corpo que me veste agora?

- Está inventando! Deixe-me! Já me machucou o bastante!- Não posso deixá-la! Só dei o primeiro passo. O segundo é cuidar de você;

restaurar sua saúde. Ajude-me! Não me deixe falhar em meu trabalho. Jamais lhe cobrarei alguma coisa por isso. Prometi aos médicos que você aceitaria o tratamento e eles estão aguardando. Que direi a eles agora?

- Estou com medo! Não estou querendo punir minha filha. Disse muita coisa que ofendeu a vocês...

- Não precisa se punir condenando-se a deformação ou ao ódio. Deus espera mais de você. Não se exclua da felicidade. Ela está tão perto.

- Talvez esta seja a minha pior doença. Não acredito mais em Deus. - Pois acredite na boa vontade dos médicos. Quando entender que Deus é pai de

misericórdia o aceitará. Por enquanto confie nos médicos que estão aqui apenas para curar seu corpo. Deus curará sua alma

- Tenho muito medo que minha filha cometa o mesmo crime de novo. Que ele a atormente até enlouquecê-la.

- Acredita que um raio caia duas vezes na cabeça da mesma pessoa? Deus cuida dos pássaros, dos pequeninos animais, até das cobras venenosas. Ele não permite que

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morram de fome. Como esqueceria você e sua filha? Já viu uma flor no campo entre sarças e espinhos? Como seu perfume e colorido descansam os olhos do caminhante? Lembra das fontes de sua terra? Do pôr-do-sol avermelhado, da lua cheia iluminando a mata? Deus cuida de tudo! Mas para ele o principal são seus filhos. Lembre dessas coisas simples; deixe seu coração viajar até a beira do mar e diga: como é poderoso e belo este mar! Entregue a ele todas as suas mágoas que ele as carregará para longe; para um lugar onde o quando é agora.

- Posso ficar aqui um pouco e decidir depois, se faço ou não essa operação?- Claro! Não queremos forçá-la a nada.Um ódio duradouro não se acaba com apenas uma conversa. Aquela mulher iria

desbastar este sentimento funesto aos poucos, à proporção que seu sentimento materno a empurrasse para um encontro com a filha. Um poeta, se a olhasse, com seu falar encantado, certamente diria: Ah, coração humano! Quão pequeno e quanto ódio comporta! Ah, coração humano! Tua desgraça é fechar a porta!

A solidão, para quem não a entende ou não sabe administrá-la, é como um falar no deserto onde o vento leva a voz para o nada, negando-lhe ressonância. É sonho de uma voz encontrar outra que a decifre e acolha; também é sonho do acolhimento unir as vozes. Quem fala agressivamente apedreja o acolhimento e afugenta o afago que, silencioso, busca mãos para enroscar-se. Aquela pobre mulher aprenderia tal lição sabe Deus como. Intimamente desejei que fosse de maneira breve e suave.

O restante do trabalho seria feito pelos médicos. Satisfeito, encaminhei-me para mais um diálogo.

- Não vou sair de lá!- Ainda está nas proximidades da casa? Sei que lá ninguém entra sem

autorização. - Olhe como meu corpo ainda arde pelo fogo que aquele demônio atirou em

mim. - Fazia parte do batalhão que ele queimou? - Quando ele invadiu nosso território com seus guerreiros, queimou tudo. Era

jovem e fui facilmente dominado. Meu corpo ainda hoje sofre essa ardência que não pára.

- Está ciente de que tiramos o dia para tratar todos os queimados por ele?- Ouvi falar. Mas fiz minha escolha. Vou esperar nas redondezas até que ele

cresça mais um pouco e alguém se descuide. Então o pego.- Haverá guardas junto dele até que aprenda a se defender sozinho. Até lá essa

ardência terá derretido sua pele. Se é tão jovem por que não volta para os campos de caça com Tibiriçá? Como guerreiro ele tem muito a lhe ensinar.

- Não sou índio. Sou negro. Ele vai querer me afastar do meu inimigo e isso eu rejeito.

- Sabendo que jamais morre, vai querer passar o resto da existência com essas queimaduras?

- Às vezes chego a perder a consciência...- Mais um motivo para querer se curar. Entre nós há um ditado popular que diz:

Saúde é o que interessa! O resto, não tem pressa! Acho que ele cai bem no seu caso.

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- Rejeito sua ajuda.- Tem gente assim. Reclama do sofrimento, mas quando o remédio aparece

recusa.- Não quero ajuda! Quero vingança!- Então veio ao lugar errado. Aqui todo mundo está pensando em amor e paz. - Como pensar nisso com o corpo queimado? Se estivesse em meu lugar o que

faria?- Procuraria um rio para mergulhar. Aceitaria o concurso do primeiro médico

que se apresentasse para ajudar-me. - Está brincando com a minha dor?- De maneira alguma. Quando entra um espinho no meu pé o retiro

imediatamente. Ninguém é obrigado a viver com uma queimadura que o incomoda só para mostrar ao outro que foi queimado. Se ele ateou fogo em você ele sabe disso. Não precisa mostrar. Faça o contrário. Cure seu corpo, se apresente a ele e diga: agora estou limpo. Começa para você o resgate da sua dívida para com a vida.

- Como posso confiar em você com tantos guarda-costas que tem?- Não são para você. Nossa casa às vezes sofre ameaça de invasão. Os índios a

defendem. Não precisa olhar para eles. Seu caso está relacionado com os médicos e não com os guerreiros.

- Ele vai ficar impune?- Ninguém fica impune após ter ferido a Lei. Pagará cada centavo que deve à

vida com sofrimento, dores, dificuldades e até com amor, se ele tiver.- Duvido muito que tenha. Quero mais! Quero vigiá-lo e pegá-lo!- Então vai espera muitos anos. Mas isso não é vida para guerreiro. Um guerreiro

não se esconde para pegar uma criança. Faz isso com um javali, um leão, um leopardo. Guerreiro que tem coragem enfrenta feras e não crianças.

- Faço um negócio com você. Eu deixo que ele fique em paz por uns tempos se você tirar essa ardência de mim.

- Vamos tirar a ardência porque prometemos cuidar de todos. Não fazemos tratos nem negociações com a dor alheia. Vou tocar em você e passar a porção mágica que usei no seu amigo. A recomendação é a mesma; lembrar da sua pele quando tinha vinte anos de idade. Se souber rezar isso sempre ajuda.

Aplicamos passes sobre ele, incentivando a que se lembrasse de sua pele saudável, a fim de auxiliar os médicos na modelagem perispiritual necessária. Ao término da operação perguntei.

- Como se sente? - Bem. Minha pele está jovem e sem ardência. Sua magia é muito boa. - É realmente muito boa. Só falha quando a pessoa que a recebe continua com

ódio no coração. Então o guerreiro-menino, pois assim foi descrito pelos videntes, olhou os

campos verdes que o mostravam e chorou, quem sabe, de saudade. Uma lágrima não é apenas uma gota salgada e cristalina. Surge de uma explosão que sacode o universo que é o Espírito. Vem das profundezas do ser; traz um turbilhão de sentimentos, recados e

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indagações; escorre com a temperatura e a composição que seu criador lhe imprime, pois pode ser ácida ou doce, e cai feito meteoro sobre o mar.

Mas pode cair silenciosa qual pétala sobre o veludo, transformando-se em diamante. As lágrimas do guerreiro eram assim. Com respeito, e manso nos gestos, dirigi-me para o último comunicante.

- Não adianta fazer essas curas nem usar seus conhecimentos em mim. Não vou desistir! O salafra é nosso! Eu devia tê-lo matado quando tive chance.

- Quer dizer que já o teve em mira?- Já! Eu o capturei e o salafra escapuliu. Eu era um guerreiro da outra tribo. Na

primeira oportunidade ele me aniquilou. Eu o devia ter esquartejado.- Era chefe da tribo que ele atacou?- Sim. Ele tocaiou a tribo e incendiou tudo. - Então morreu queimado com os demais.- Sim. Mas antes fui torturado. Veja! Sua marca foi colocada em ferro quente

nas minhas costas. - Dói muito?- Muito! É a dor da humilhação, de ser ferrado como um animal, sob o olhar

cruel de seu vencedor.- Para a marca do seu corpo temos a cura; para as da sua alma Jesus o ajudará

através do seu Evangelho. - Não me venha com essas propostas. O capturarei na primeira oportunidade. - Vai ser difícil. Ele está sob proteção. Não porque mereça, mas porque precisa,

para sobreviver e pagar seus débitos.- Já tentei me aproximar, mas ninguém mais consegue açoitá-lo. Sabia que

antes de vocês chegarem tínhamos acesso aos dois, ele e a mãe, e metíamos a peia neles? Agora estão guardados pela polícia.

- É verdade. Por isso me acho no direito de lhe perguntar. Vai aceitar a oferta de cura ou agüenta mais um século de dor nas costas?

- Agüento até dez se for preciso! Depois que acabar com ele, meu coração se abrandará.

- Duvido. Já ouvi esse verso. É de um poema ruim. Depois da vingança vem o vazio, a sensação de inutilidade, o remorso por ter feito algo errado e estar longe da paz.

- O meu ódio maior é por estar ferrado com a marca dele nas costas.- Que desenho tem a marca? Permite que eu a veja? - É uma cabeça de boi, símbolo da tribo dele. - Quer que a retire agora?- Quer fazer um acordo comigo não é? Você tira a marca e eu desisto de

persegui-lo.- Não. Está errado. Nem pensei nisso. Só lhe fiz uma pergunta.- Aceito que a tire, pois me incomoda muito.- A dor sempre incomoda. Esta é a função dela. Vou tocar em seu ombro e

retirar a marca.Esfreguei uma mão na outra e as coloquei sobre seu ombro esquerdo. Fiz um

gesto como se a arrancasse e disse.

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- Olhe! Ela passou para minha mão.- É essa mesmo! Que mágica é essa? Como fez isso?- Pegue no ombro. Quero que saia daqui com a certeza de que ele está limpo. - Está tudo macio como era antes.- Agora a marca vai sair da minha mão e se desfazer na areia.- Está sumindo. Esfarelou-se. - É um presente de Deus para você. Tomara que saiba conservá-lo.O homem estava há dezenas de anos preso pelo ódio, sofrendo com uma marca

no ombro, que o queimava e o ofendia com a humilhação. Fixo na idéia de vingança, se esquecera, ou não aprendera ainda, que era um deus, e que poderia, ele mesmo, curar seu corpo, e adentrar os mais belos salões do universo.

O Espírito é um ser livre, não está preso a um país específico, a um povo, a um amigo ou inimigo. Seu país é o universo. A ele é facultado o infinito espaço e infinitas culturas. Tudo está ao seu alcance, a depender do estágio moral-intelectual que conquiste.

Deus parece gostar de coisas infinitas, pois é, Ele mesmo, infinito em suas perfeições; presenteia-nos com infinitas moradas, infinitas famílias e infinitos saberes. Mas alguns gostam de se prender a pequenos blocos de areia, de sentimento, de recordações, aos quais chamam país, ódio, vingança, saudade, e se condenam por séculos ao isolamento e a perturbação. Excluem-se voluntariamente da companhia prazerosa de outros irmãos, somente porque alguns foram ingratos para com ele.

Ainda é assim na Terra. Ainda é assim o coração do caminhante apegado às convenções mundanas. O ódio é o amor marcado com um sinal negativo. Quem odeia tem todo o universo para explorar, mas quer ficar perto do ser odiado. Abdica do infinito, congela o tempo, põe antolhos e segue como uma sombra por vielas tortuosas, sempre com medo de perder de vista seu desafeto.

Queria ter dito isso àquele homem. Mas ele deveria chegar a este ponto por suas próprias conclusões. Fiz a prece final e passei aos comentários que sempre complementam e ajudam os médiuns em suas dúvidas.

Tecnologia de ponta

Tal como o dinheiro e as drogas, a tecnologia pode ser utilizada para o bem ou para o mal, a depender dos objetivos de quem a emprega. Causa admiração a algumas pessoas o uso de tecnologia por desencarnados, somente porque esquecem de que Espíritos são homens despidos da vestimenta carnal, e tudo quanto aprendem na Terra conservam e aprofundam no plano espiritual.

Este oferece tudo quanto existe naquele, com uma parcela a mais por conta da facilidade em pesquisar e apreender, mais tempo disponível para se dedicar ao trabalho, maior rapidez na locomoção, menos entraves pela ausência de um corpo carnal, dentre outras vantagens.

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Que fique certo o leitor da existência no plano espiritual de universidades, laboratórios, fábricas, armamentos, prisões, hospitais, máquinas voadoras, enfim, tecnologia de ponta, cuja ponta está muito além da sua imaginação e compreensão.

Claro que a parte avançada está nas mãos dos bons Espíritos, a quem cabe orientar, educar e manter a ordem, vigiando e fazendo intervenções necessárias, sempre que o livre-arbítrio de algum aprendiz é extrapolado.

Iniciamos a reunião com a descrição de uma médium levada à casa de Hortência por Tibiriçá.

- Vejo que uma equipe especializada em informática está trabalhando no local. Os computadores estão instalados em pontos estratégicos da casa e os técnicos tentam colocar três deles no quarto da criança. Sinto que não é gente do nosso lado, pois escuto o chefe da equipe dizer que o chip colocado no cérebro da menina já está funcionando. Que de agora em diante, mesmo em vigília, ela poderá ver e sentir com o entendimento de um adulto, perdendo assim a vantagem do refúgio na carne.

Continuando a explicação o chefe diz que ela já tem consciência da presença dos inimigos, o que a fará perder o sono, ficar inquieta, adoecer e desencarnar.

- Percebe se eles estão a mando dos negros que o perseguem?- Acredito que não. Os negros são guerreiros e enfrentam seus inimigos frente a

frente. Isso é coisa de gente que não tem coragem, que se esconde e envia matadores de aluguel. Mas vou ficar observando para me certificar. Eles são brancos e bem vestidos. Não há diferença entre eles e uma equipe terrena em atividade. Seus computadores são semelhantes aos nossos, bem como a maneira de operá-los. Diria que estão no nosso nível tecnológico. O chefe da missão acaba de me notar e caminha em minha direção.

- Atenção, equipe! Temos uma espiã na área. Pode ser sabotagem ou espionagem. Capturem-na para averiguações!

- Parece que não se apercebeu de que o capturado aqui é você. Se reparar atentamente, verá que estão cercados! Mais atentamente ainda, terá a desagradável surpresa de saber que desde o nascimento, seu plano é monitorado. Na verdade, se fosse uma equipe competente, já estaria se desculpando junto aos guerreiros, pois agora sua aparelhagem vai virar cinza e fumaça.

- O que! Cercados? Como ocorreu isso? Há um minuto tudo estava sob controle e agora estamos dominados? Como fez isso?

- Nós fazemos as perguntas. Qual o seu interesse em observar e prejudicar a criança?

- Pessoalmente nenhum. Somos uma equipe contratada para fazê-la raciocinar, perceber e agir como adulta. Conseguimos isso com nossa tecnologia. Embora pequeno o corpo, o Espírito nele albergado agora percebe e raciocina como o antigo chefe banto, ou seja, o chip o obriga a permanecer no passado, ativo e acesso. Como tem consciência de que não pode reagir devido seu corpo frágil, sofre e se apavora.

- Qual a vantagem disso para seus contratantes? - Dor e sofrimento. Uma moeda que lhes devem e querem cobrar com juros.- Como conseguiu esses computadores?- Nos pertencem. Já disse que somos uma equipe de consultoria, elaboração e

aplicação de projetos.

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- Quantos computadores utilizou nessa operação?- Por que saber tantos detalhes? - Você disse que é uma boa equipe. Quero averiguar seu potencial ofensivo e a

capacidade de reação. Uma boa equipe não comete falhas primárias.- Toda a casa está cercada com câmaras e computadores. Estávamos nos

preparando para romper a barreira do quarto. Tivemos acesso ao chefe quando ele saiu do corpo e ultrapassou a barreira de proteção. O capturamos e colocamos um chip em seu cérebro. Isso é ou não, uma boa equipe.

- Tenho minhas dúvidas. Por que ele não saiu com as feições da última encarnação?

- Se isso é uma argüição saiba que nos sairemos bem. A presença de tantos inimigos em seu encalço aviva suas lembranças passadas e o faz assumir a antiga aparência. Com essa aparência ele tenta encontrar velhos comparsas para organizar uma defesa. É um movimento instintivo. Digamos que seja um reflexo ou fruto do instinto de sobrevivência atuando. A presença dos inimigos o fez retornar ao passado, impondo à mente a modelação espiritual do chefe guerreiro. O chip conservará o estado neurótico e ansioso que antecede à chegada de um inimigo.

- Que outros efeitos o chip causa em seu cérebro?- Faz com que a criança, mesmo em estado de vigília permaneça com a

consciência alerta. Mas não a consciência de bebê. Ela nos percebe, sente medo, agitação, sofrimento. O chip anula o benefício do esquecimento que a reencarnação propicia. Sem ele, quando acuado, o Espírito poderia correr para o corpo e se sentir protegido devido o esquecimento. Com ele, mesmo adentrando o corpo ele continua vendo e sentindo com a consciência de adulto. Como não pode reagir, e sabendo da fragilidade do seu estado, sofre e se desespera. Esse chip é coisa de última geração.

- A equipe aceita contratos para atuar?- É uma equipe grande. Há muita procura por serviços. Os clientes já não se

interessam mais pela magia dos bruxos que é muito primitiva. Nossa magia é a tecnologia. A ciência avança nos dois planos e é preciso especialização em ambos. Quem não se capacita fica para trás. O senhor não ignora que conhecimento é poder e nossos chefes se preparam tecnologicamente para continuar dominando, agora com a ajuda das máquinas.

- Vou lhe falar um pouco da tecnologia dos nossos instrutores. Seu projeto, seus técnicos, seus planos e instalações são monitorados e catalogados por eles. Todos eles invadem mentes e retiram de lá as informações de que necessitam; tornam-se invisíveis e a tudo fiscalizam. Mesmo um parafuso de sua oficina consta em seus relatórios. Seu projeto acaba agora. Um médico retirará o chip da criança e seus computadores serão reduzidos a cinza. Vocês já são nossos prisioneiros e serão entregues aos guerreiros até que sejam interrogados.

- Você deve estar exagerando. Estamos em serviço. Está tudo feito. A criança nos percebe. Estamos dominando a área.

- Ainda são principiantes nessa tecnologia. Veja o cenário real que estava oculto aos seus olhos.

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- Mas nosso trabalho é de última geração. Tem alguém melhor do que nós nessa área?

- Melhor, maior, mais potente, superior.- Cercados. Não! Não façam isso! Destruíram um trabalho tão bem feito! Uma

obra de arte! Os computadores implodiram. Deles só restaram cinzas. Nosso equipamento virou pó. Somos prisioneiros agora?

- Sim, mas serão tratados com decência. Se entre vocês alguém quiser utilizar a tecnologia para fazer o Bem, passará pela leitura de mentes e se seu desejo for realmente verdadeiro, poderá ser aproveitado como aprendiz em nossas oficinas. Reflitam no que estão fazendo de suas vidas e como estão utilizando a ciência, um bem de Deus, para depois conversarem com nossos instrutores, Garanto que não serão agredidos.

- Também não agrediremos. Somos técnicos e não marginais.- Muito bem! Tibiriçá os acompanhará até seus alojamentos.Há dias que Margarida vinha sonhando, e mesmo em vigília, sentindo a presença

de um guerreiro muito alto, atlético, armado com escudo e lança, tentando com ela se comunicar através de um dialeto africano. A mente desse guerreiro estava centrada na África, nos tempos em que foi chefe de sua tribo e Matilde sua mulher. Sua fixação era resgatá-la a qualquer custo. O diálogo com ele não foi fácil devido estar séculos atrasado com relação ao progresso atingido pela civilização.

A essa altura outros guerreiros africanos, inclusive da sua antiga tribo, haviam caminhado com o progresso e estavam auxiliando os guerreiros de Tibiriçá na vigília da casa e da criança. Rondando a casa, ele foi capturado. Mas apesar de ter a mente fixa no resgate da mulher e na vingança do seu inimigo, agora filho dela, ele jamais reagiu contra seus irmãos de cor.

Ele não entendia como um irmão pode se voltar contra outro e nem lhe interessava se sua mulher agora tinha outro marido. Isso ele não aceitava. Estava fossilizado no passado, nas tradições de sua tribo, coagulado no tempo.

Mas a evolução é como um rio caudaloso que leva tudo à sua frente, mesmo o monte mais resistente. Que se esconda o insistente, nas idéias mais estranhas; que se agarre o persistente ao seu arsenal de manhas; a evolução não tem tranca. Que se acorrente o mais teimoso, por fobia do moderno; e mumifique-se o tinhoso nas profundezas do inferno; A evolução o arranca. Aquele era do dia dele.

Bem que estes versos, por seu aroma folclórico, poderiam constar nas cantigas de rua da minha terra, o Ceará. Mas contento-me em aqui escrevê-los para falar do guerreiro teimoso que nos visitou exigindo um encontro com sua esposa.

- Vejo que alguns guerreiros negros acompanham outro que se destaca pelo seu corpo atlético. Este parece ser conduzido na condição de prisioneiro, mas não está manietado. Seu aspecto é muito primitivo e contrasta com os guerreiros que o escoltam, pois estes já demonstram hábitos mais civilizados. Ele está irredutível em sua exigência, embora não reaja contra seus irmãos de cor. Seu alvo é a mãe da criança. Sinto como se meu corpo aumentasse de volume. Esta sensação deve ser devido ao corpo dele, muito parecido com o de Tibiriçá. Ao mesmo tempo em que me assusta pelo

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seu porte, sinto que respeita seus irmãos negros e isso me tranqüiliza. Ele se aproxima de mim.

- Bom dia, amigo.- Não me chame de amigo nem de irmão! Não lhe conheço nem temos o mesmo

sangue! Somos de raças diferentes e a sua sempre quis dominar a minha.- Aprendemos que só existe uma raça, a humana. Somos todos filhos de um

único pai.- Se só existe uma raça por que estou nessa condição de prisioneiro? Por que

estou sendo vigiado por meus irmãos? Por que eles se voltaram contra mim?- Precisamos resolver nossas diferenças na calma, com conversa educada. Você

estava querendo invadir uma casa alheia e isso não é permitido em nossas leis.- Que casa alheia que nada! Lá mora minha mulher que agora vive pajeando

aquele demônio que me assassinou. Estou no meu direito de reclamá-la, pois me pertence! Deve obediência a mim! Quem já se viu uma mulher se voltar contra o marido e se juntar com um inimigo de sua tribo? Nem você nem esses anjos brancos de candura vão me fazer desistir dela!

- Precisamos baixar o tom da voz. Nesse ambiente a voz alta provoca dor na cabeça. Portanto, amigo, vamos manter a calma e resolver isso sem maiores complicações.

- Falo como quero! A mulher é minha! Tenho todo o direito de invadir e levá-la comigo. E se não fiz isso até agora foi por respeito aos meus irmãos que a estão vigiando. O que fizeram com eles? Eram valentes e agora vigiam criança? Que aconteceu com a bravura dos meus guerreiros? Foram transformados em mulheres?

- Seus irmãos aprenderam coisas novas e sábias. Não querem feri-lo, mas não permitirão que ataque uma mulher ou uma criança. Isso não é valentia.

- Eu jamais atacaria minha mulher. Já ele eu não garanto. É uma peste que apodrece tudo em que coloca a mão. Não sei que justiça é essa que protege um demônio e separa um marido da sua mulher. Não é assim que funciona a lei da minha tribo.

- Você desconhece muitas partes da lei. Por que não me conta sua história para ver se consigo explicar como ela funciona agora?

- Vou contar o que vi e ouvi desses brancos. Eles tiraram essas informações da minha cabeça. Éramos chefes de tribo na África. Um dia eu roubei a mulher dele e a matei. Com o tempo me arrependi e procurei meu inimigo naquela mesma vida para fazer um acordo de paz. Ninguém atacava ninguém. Ele aceitou a proposta, mas logo que dei as costas, fez pior comigo. Matou a mim e a minha mulher.

Hoje os encontrei, a ele e a mulher, sendo mãe e filha. Como pode ser uma coisa dessas?

- Você perdeu uma parte da história. Na vida que se segui a essa que você falou, sua mulher nasceu na tribo dele. Foi uma das esposas, a preferida dele. Como ela ainda mantinha uma mágoa oculta pelo que acontecera no passado, acabou matando-o a pauladas.

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- Pior! Como é que mata e depois recebe? É para matar novamente e me seguir. Tudo precisa ser como antes, pois ela é minha para sempre. A mulher de um guerreiro nas mãos de um inimigo é desonra para ele.

- Você ainda gosta dela?- Não sei! Depois que ela abrigou na barriga meu assassino tenho dúvidas. Mas

é minha mulher! Com dúvida ou não, tem que me seguir! Quanto à filha dela, deve morrer! Para que ela volte para mim, as duas devem morrer! Ela tem que me honrar!

- Ela tem outro marido agora. É uma mulher casada e tem uma filha. Isso deve ser respeitado, pois foi planejado para o bem de todos.

- Todos menos eu! Tem que me honrar! Você fica falando bobagem! Não gosto de falar com gente ignorante! Pode botar toda proteção sobre ela, mas vai comigo! Você fala muito difícil. Quero um encontro com ela!

- Ela se arrependeu de tê-lo matado e ele se arrependeu pelo mau que fez a tantas pessoas. Resolveram nascer novamente para pagar os débitos e ajudar aos que prejudicaram.

- Aquele maldito não se arrepende nunca! - Se fosse capaz de conversar amigavelmente, talvez promovêssemos um

encontro entre os dois. Mas dessa maneira, querendo ser o dono dela, arrastá-la a força, acredito que não seja conveniente. Se quiser conversar com ela terá que mudar algumas idéias sobre o relacionamento entre pessoas.

- Um guerreiro jamais deixa suas tradições. - As pessoas mudam. Aprendem coisas novas. Veja o exemplo dela, dos seus

irmãos, do mundo, que não é mais o mesmo. - Os meus valores não mudam. Preciso conversar com ela e você não vai me

negar isso! - Aceitaria nessa conversa que ela fique com o atual marido, a filha, e que você

siga seu caminho em paz?- Isso eu não admito!- Você começou isso no passado. Assuma sua parte na culpa. Converse com

calma. Quem sabe não o enviem como filho dela? Isso seria ótimo, pois ficaria próximo dela e faria as pazes com seu inimigo.

- Comecei, mas o demônio deu continuidade. Não cumpriu sua palavra. É preciso ser muito cego para olhar para aquela criança e não ver a cara do demônio. Vocês me agridem, me colocam em uma gaiola, querem me impedir de levar minha mulher. O que estão querendo?

- Que seja feliz. Dar a cada um o que é de direito.- Você está acovardado. Um guerreiro não age assim. Onde está seu sangue de

guerreiro?Ainda não resolvi isso na lança porque não quero agredir meus irmãos.- Troquei a lança pela caneta. Talvez um dia entenda por que fiz isso.

Infelizmente vai ter que ficar onde está e refletir, com a ajuda dos nossos instrutores, até que entenda que as leis mudaram. Onde era tribo hoje é cidade. Onde é cidade hoje, amanhã será um grande lar com irmãos que se amam.

- Não entendo suas leis. Fui ensinado dessa maneira e é assim que sei agir. Talvez deva conversar com os irmãos que me vigiam e saber deles por que mudaram.

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Talvez tenha ficado tempo demais olhando para mim mesmo e esquecido que o rio segue até o mar e que o mar se mistura com outro. Talvez precise correr para alcançar o tempo perdido, pois é esse tempo que se esqueceu de me puxar para frente.

- É um bom começo. O Sol e as estrelas caminham no céu. Se as nuvens, os pássaros, mesmo uma pedra muda de lugar. Por que um guerreiro ficaria parado? Pense na nossa conversa. Acredito que ainda nos falaremos.

- Talvez! Mas ainda não desisti da minha mulher. - Não devemos desistir nunca de ter fé em Deus e acreditar que Ele nos ajuda a

cada hora. Até um dia.O guerreiro teimoso voltou com seus irmãos de cor para seu alojamento,

enquanto eu deveria ainda dialogar com dois outros perseguidores de Hortência, que felizmente, desistiram da vingança após recuperarem a visão. Não transcreverei aqui os diálogos, por serem semelhantes a outros já escritos e por ocuparem muito espaço.

Daqui por diante transcreveremos apenas os diálogos mais importantes, a fim de que o leitor tome ciência através da doutrinação, do andamento, do emaranhado e da conclusão de dramas pessoais dentro da tragédia coletiva.

Veio a prece final, toque de clarim anunciando mais uma oportunidade de serviço aproveitada. Feliz quem não a desperdiça. É a única moeda válida no país aonde iremos depois do desencarne.

Visita ao cemitério

Às vezes Margarida chegava cedo e ficava a conversar comigo me atualizado quanto ao comportamento da pequena Hortência, cuja melhora era vagarosa, mas constante. Tinha sonhos estranhos que, em muitos aspectos se assemelhavam com os acontecimentos passados nas reuniões.

Seus sonhos pareciam antecipar a próxima reunião. Notando este fato perguntei se era constante em sua vida pressentir algo antes que acontecesse, confirmando-me ela que aquilo era normal; que todo evento triste que a afetava era antecipado por um sonho premonitório.

Fiquei satisfeito por ela se encontrar em estudo no lugar certo. Chegada a hora de iniciar a reunião, lemos o evangelho, e mais uma vez, reiniciamos a batalha para livrar a pequena da grande confusão em que se metera.

- Estou em um cemitério. Lugar lúgubre, assombrado, e só não corro daqui porque vejo todo ele cercado pelos índios e por guerreiros negros. Não sei o que há de importante nele, mas deve ser algo bem assustador, pois a vigilância é severa e, pela cara dos guerreiros, posso assegurar que desse pedaço de chão não sai ninguém.

Vejo levantar-se de uma cova uma espécie de zumbi. Ele vaga lentamente pelo cemitério, como tentando segurar as carnes do seu corpo, que se espedaçam. Passa constantemente a mão sobre o nariz, como a espantar o mau cheiro que do seu corpo exala. Suas carnes estão apodrecendo ou, pelo menos, é isso que sua mente acredita e

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materializa em seu perispírito. Ele vem em minha direção e acho que vou ter que deixá-lo falar através da minha voz.

- Vida maldita! Onde o paraíso que nos prometeram? Este fedor! Como se não bastasse o tormento, está na hora daquele desgraçado chegar para nos perseguir.

- Boa noite, amigo! Fomos enviados para retirá-los deste cemitério. Como está com dificuldades com seu corpo, seria conveniente que o ajudasse a consertá-lo.

- Não! Não toque em mim! Minhas carnes estão despregando! Quando caminho, caem pedaços que preciso juntar. Preciso voltar para minha terra! Este solo é amaldiçoado! Saia dele! Você vai se contaminar.

- Meus pés estão protegidos. Fique quieto e deixe-me colar suas carnes. Tenho um remédio forte que foi preparado por nossos médicos. Se aplicá-lo verá como seu corpo vai sarar.

- Não posso ser tocado por branco! Os da minha raça estão presentes. Deixe que eles me atendam.

Os curandeiros negros, enfeitados com suas plumas coloridas, imprimiram novo ânimo ao desfalecido, que ajoelhado agradecia em sua língua o benefício que recebia. Todavia, e devido a isso o cemitério estava cercado, um brutamonte que se considerava o dono da região e dos que lá habitavam, vendo que ia perder seus escravos favoritos, entrou em cena ocupando a voz de outra médium.

- Ninguém vai retirar meus escravos daqui! Eles me pertencem e eu quero ver quem tem coragem de tocar em um deles!

Coitado! Certamente não vira os índios e os guerreiros negros, tal a arrogância que demonstrava em gestos e palavras. Muito calmo, mas firme, entrei em cena com água fria em sua fervura.

- Então você é o covarde que se aproveita de pobres enfermos para seus trabalhos? Conheço gente assim! É muito valente com quem não pode reagir, mas diante de um guerreiro de verdade corre como bebê assustado. Se não ficar quieto enquanto atendemos a todos eles, será algemado, pois preso já está.

- Duvido que alguém tenha a coragem de me enfrentar! Tenho defensores! Mando neste cemitério! Todos os que ainda estão aqui me pertencem e farão o que eu mandar!

- Queria evitar isso, mas como a linguagem que entende é a força, que os guerreiros tomem conta de você.

O que se viu a seguir, através dos esforços do médium, foi um verdadeiro teste de resistência às suas energias. Ele se contorcia, trincava os dentes, fazia esforços para reagir, mas ficou estático e grunhindo, com a cabeça encostada na mesa e os olhos quase a saltar das órbitas.

- Ninguém vai me prender aqui! E você fique calado! Não dê uma palavra senão lhe quebro todo de chicote quando sair daqui!

Mesmo manietado ele ameaçava o enfermo que estava sendo atendido pelos curandeiros.

- Pelo que vejo, mesmo com o corpo preso ainda está com a língua solta. Se não calar imediatamente retiraremos sua voz.

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A partir de então, o médium ficou apenas tentando pronunciar insultos, sem lograr dizer mais uma única palavra. Procurou articular alguns sons até que o ar lhe faltou por completo. Passamos então a ouvir o que outra médium descrevia.

- Estão todos se levantando das tumbas. Isso parece a procissão das almas penadas. Há zumbis de todas as formas. Digno de nota é que todos se suicidaram utilizando métodos diferentes. A forca, o fogo, o veneno, a lança. Mas por que tanta gente se suicidaria? O que justificaria tal fato? Conversando com eles talvez você obtenha esta resposta. Vou me aproximar de uma menina que está muito aflita. Você a ouvirá.

- Onde está ele? Onde está ele? Preciso me esconder! Ele vem todas as noites. Seu chicote quebra a gente toda! Os bichos! Os bichos! Eles nos atacam e obrigam a que voltemos para as tumbas. Precisamos achar o caminho para nossa terra.

- Se está se referindo ao desordeiro que andava por aqui assustando pessoas já o prendemos. Ele não mais usará o chicote em ninguém. Queria que se acalmasse e olhasse ao seu redor. Há homens de sua tribo ajudando a resgatar seus irmãos para que todos voltem para sua terra.

- Sim! São nossos curandeiros. Como nos encontraram? Eles saberão nos curar. Agora poderemos encontrar os eternos campos de caça. Ficamos perdidos no caminho.

- Agora vai ficar tudo em paz. Mas, diga-me, que bichos ameaçavam vocês para que voltassem para as tumbas?

- O homem que nos perseguia tinha cinco pumas pretos. Eles nos perseguiam e encurralavam, obrigando-nos a voltar para as sepulturas. Sofremos muito com o mau cheiro, o calor, a falta de ar.

Os pumas, certamente, deveriam ser Espíritos com seus perispíritos transformados através de modelações impostas pelo hipnotismo.

- Mas qual a razão de tantos suicídios, até mesmo de crianças?- Costume da tribo. A cada período de tempo era oferecido aos deuses o

sacrifício de uma família inteira para que jamais faltassem boas chuvas e boa caça. Essa família era purificada. Durante quatro anos seus chefes não poderiam fazer uso do sexo e no sacrifico ninguém poderia matar ninguém. Todos deveriam morrer espontaneamente através do método que escolhessem.

- Você fazia parte de uma dessas famílias?- Sim! Escolhemos ser envenenados. Mas nos lugar dos campos felizes aonde

deveríamos chegar, caímos nessa terra miserável. Queríamos sair para ir atrás do nosso chefe, pois mentiu ao afirmar que acordaríamos no paraíso.

- Entendo. Realmente houve um atraso na chegada do paraíso. Ele é muito mais distante do que seu chefe supunha. Também não é necessário para alcançá-lo que alguém se mate. Basta que trabalhem honestamente, que se ajudem nas dificuldades, devagar e com paciência, todos chegarão aos campos de felicidade eterna.

- O senhor tem certeza do que fala?- Sim. Seus curandeiros, que agora recolhem os irmãos, podem confirmar o que

digo. Todos vocês serão hospedados em uma terra fértil e informados dessas coisas. Esqueçam desse tempo de sofrimento e tenham esperança no futuro, pois Deus, que nos ampara até hoje, não nos faltará amanhã.

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- Quer dizer que não precisaremos punir nosso chefe pelo que nos fez passar?- Ele já está sendo punido pelo que fez. Além do mais, ele também acreditava

que aquele procedimento agradava aos deuses. Mas o que agrada a Deus é ver seus filhos felizes. E para ser feliz é preciso ser bom e honesto; agir com justiça e caridade para com seus irmãos. Esse é o melhor caminho para os campos felizes e para agradar a Deus. Diga isso a seus irmãos.

- Acho que já estão sendo informados dessa questão através dos curandeiros. A médium ainda ficou descrevendo o cenário que se apresentava a sua volta- Todos os que estavam enterrados já foram retirados. Estão agora sendo limpos

e tratados. Os curandeiros e os índios fazem a retirada de todos para fora do cemitério, e como se a terra estivesse molhada por combustível inflamável, tudo pega fogo.

Guerreiros e enfermos ficam olhando o pedaço de chão encoberto pelo fogo. Quem sabe os enfermos não estejam fazendo o mesmo que os técnicos fizeram ao terreno, ou seja, queimando em suas mentes as cenas de dor e sofrimento vividas nesse local?

Já não há mais nada por aqui, a não ser vestígios de fumaça. As macas com os mais sofridos estão sendo levadas. A menina que atendemos vai caminhando ao lado dos curandeiros. Acho que é o final de um pesadelo e o início de um bom sonho para todos eles. Tibiriçá disse que eles não são considerados suicidas, pois eram praticamente obrigados a participarem do ritual ou convencidos de sua utilidade.

Vendo-os assim se afastarem dá uma vontade de ir com eles para ver o final da história, mas preciso voltar.

Também temos vontade de estar sempre com nossos instrutores, mas nossa batalha é aqui e agora. Quem faz o melhor que pode a serviço do Bem está com Deus. Haverá melhor companhia?

Devolvendo o coração

Pequenos artefatos, às vezes, desafiam grandes obstáculos com a força e a

inteligência de seus operadores. Este é o exemplo típico da jangada e dos jangadeiros da minha terra, o Ceará, que se aventuram no oceano incomensurável, munidos apenas de uma jangada e da coragem que lhes caracteriza.

A vida é uma grande travessia. Falando nela situemo-nos como pescadores; imersos nela preparemos nossa jangada, pois entre uma calmaria e outra, costuma mostrar o rosto, a tempestade.

É nela que a covardia ou a coragem se mostra. Pescador mesmo é aquele que jamais se abate. Pena que estes sejam superados em número pelos que se entregam antes da última onda anunciar nova calmaria. Por muito tempo este será o comportamento de alguns navegantes desta colônia pesqueira chamada Terra.

O grupo mediúnico é o barco do Centro Espírita. Os médiuns e o doutrinador são os remadores e Jesus é o timoneiro. Foi nesse espírito de navegador que iniciamos mais um encontro com os irmãos vinculados a Hortência e Margarida.

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Ninguém conhece o coração humano. Guarda ódio por séculos e o despede em um segundo. Foi nesse tom que começou o diálogo um homem já cansado de brigar.

- Estou aqui para dizer que desisto. Não quero mais esta vida! Chega! Tudo que a gente faz é desfeito. Se colocamos arame farpado, vocês retiram; enviamos penetras e são presos; computadores são destruídos e planos desarticulados. Chega! Vocês estão sempre à nossa frente. Disse para meu chefe que não trabalharia mais para ele e estou aqui para dizer ao seu que estou fora da briga. Quero outro tipo de vida para mim.

- Se é que está falando a verdade, acaba de fazer uma boa escolha. Quando não vamos bem por um caminho é preciso escolher outro.

- Foi o que disse para eles. Chamaram-me de fraco, de covarde, disseram-me que eu ia ser castigado, mas não sou palhaço para ficar nesse vai e vem. Não sou bobo de corte para divertir ninguém à custa do meu trabalho.

- Quem disse que ia ser castigado?- Os que me vigiam. Meus patrões eu nunca vi. A gente não vê quem comanda,

pois nunca aparece. Tal como em uma firma, trabalhamos para obter promoções, cargos de confiança, postos de chefia. Estou cansado de tentar pegar o vento. Essa vida de ódio na qual estou, esvaziou para mim. A criança que fique sob os cuidados deles. Por mim não a persigo mais.

- Você é destemido e sabe tomar decisões na hora certa. Acho que por si só, se auto-promoveu e terá uma vida melhor daqui para adiante.

- Eles perguntaram se eu ia me aliar ao inimigo. Disse que viria apenas avisar que caía fora. Não quero perseguições à minha pessoa de nenhum dos dois lados.

- Do nosso lado fique tranqüilo. Se quiser contar sua história para nossos instrutores, eles o receberão de bom grado.

- Gostaria. Estou tão tenso que um desabafo com alguém me aliviaria. Mas sinto-me melhor comigo mesmo. Gosto de trabalho, mas esse de ficar espetando uma criança e vigiando a mãe dela não me parece digno de um homem.

- Tem razão. Talvez encontre um bem melhor por aqui.O ódio é um sentimento tão cáustico que agride primeiro e mais profundamente

a quem o sente. Quem odeia se condena a uma vida de paisagens monótonas e agressivas. Desaparece de sua vida a diversidade com a qual Deus pintou a natureza. É como se o filme fosse sempre preto e branco, o local sempre um pântano, a música sempre a marcha fúnebre. A mente passa a modelar no cérebro um circuito único, viciando-o e agredindo-o. Se observar um por do sol ou um arco-íris deixa a alma mais jovem, odiar deixa a alma envelhecida, mumificada, com o desagradável odor dos terrenos destinado ao lixo. A personagem seguinte tinha em sua mente toda a tragédia que o ódio é capaz de gerar.

- Estamos, eu e Tibiriçá, na residência de Margarida. Tudo está calmo, apesar de alguns vigias da parte dos agressores ainda rondarem o local. A minha presença aqui se deve a existência de um fio ligando a criança a algo que precisamos averiguar. O fio, muito tênue, sai do seu peito, atravessa o telhado e segue para local desconhecido. Vamos segui-lo.

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Chegamos a um lugar na mata. Há uma cabana rústica, coberta de palha, com alguns guerreiros negros vigiando. Vamos adentrá-la. Em seu interior vejo muitos instrumentos utilizados em magia negra. Existem bonecos com o peito perfurado por um espinho longo, que mais parece um estilete, representando cada membro do nosso grupo.

A cabana tem um odor muito característico de cemitério, de terra, de coisa podre. Há restos de cadáver, cabelos, vísceras petrificadas, coisa que dá nojo descrever. Vejo em movimento apenas uma senhora negra, gorda, rosto duro, concentrada em seu trabalho.

Como se estivesse dormindo, alguns Espíritos retirados do cemitério, daqueles que se suicidavam para agradar aos deuses (ver capítulo anterior) estão sendo enrolados por uma espécie de gaze.

- Quem está fazendo isso se só estava presente a mulher a que se referiu?- Não vejo. Só noto que eles estão sendo mumificados e que agora aparentam

estar em casulos. Quem fez isso vai levá-los, pois estão sendo retirados. Claro que a feiticeira também viu o que descrevi e está uma fera com a subtração do seu “material”. Agora me percebeu e vem em minha direção como um trator.

- Menina boba! Acha que pode entrar aqui, roubar o que me pertence e sair branquinha como chegou?

- Ela não está só. Há um índio bravo com ela e um batalhão de outros do lado de fora, prontos para queimar tudo ao comando dos bons Espíritos. Primeiro vamos conversar.

- Conversar com ladrões e agressores? Somos inimigos! Inimigos não conversam! Enfrentam-se! Conheço sua voz! Você é a peste que comanda o grupo que vai ser eliminado por dores e desastres. Sua parte é bem melhor que a dos demais.

- Estamos levando o que não lhe pertence. Espíritos pertencem a Deus, que os fez para a liberdade.

- Estes são usados para causar doenças, dores, pensamentos depressivos. São de minha propriedade! Deus que se contente com os outros.

- Está passando dos limites. Ultrapassado o limite da caridade vem a extensão da disciplina. Se continuar ofendendo, teremos que imobilizá-la.

Nesse momento a médium dirigiu-se a mim, doutrinador, e disse: Tibiriçá apontou para o coração dela. Vejo, como se meus olhos penetrassem todo o seu corpo, que ela tem todos os órgãos, menos o coração. Tenho certeza absoluta de que o coração dela está ausente. Se Tibiriçá apontou este detalhe, certamente você precisará utilizá-lo.

- Entendeu agora o que ocorre, menina boba. Isso não era para ser revelado. Esse era um segredo meu. Sabe de onde parte o fio que está ligado ao coração daquele demônio? Daqui! Do lugar onde batia o meu coração retirado por ele.

- Então ele fez isso a você? Retirou seu coração? Por que ele faria uma maldade dessas?

- O mal não precisa de motivos. Ele é o motivo. Invadiu minha tribo e torturou a todos antes de matá-los. Agora é nossa vez de matá-lo aos poucos. Agora ele está nas mãos da quimbanda.

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- Estamos aqui para ajudá-la a colocar seu coração no lugar. Toda magia que a fez viver até agora sem ele, desapareceu com o trabalho que fez para matar a criança. Terá que aceitar seu coração ou não suportará a falta de ar que se abaterá sobre você a partir de agora.

- Meu coração está sendo utilizado há anos nesse trabalho que o matará. É graças a ele que conseguiremos pegá-lo. Recolocá-lo em meu peito representará a quebra do feitiço. Jamais farei isso. O que podem fazer contra mim? Matar-me? Já estou morta.

- É uma pena que tenha preferido o caminho mais difícil. Escolha o local mais confortável da choupana, pois vai cair com a falta de ar!

- Cair? Sou como uma árvore! Ainda está para nascer quem me derrube. O coração dele vai explodir! O feitiço é irreversível. Meu coração cheio de ódio levou todo o fel que concentrava para o dele. É um veneno tão mortal que ele não chegará a um ano de vida. Passando para cá o pegaremos.

- A falta de ar vai aumentar! Você não vai agüentar!A essa altura a minha indução já fazia efeito. A mulher falava com dificuldade,

arrastava a voz, mas mantinha acessa a palavra com a força do ódio que alimentava.- Todos esses fantasmas, essa podridão do cemitério, as dores do inferno vão

matar vocês.- Pense no que está fazendo com a sua vida. Estamos aqui para ajudá-la. A

maneira de fazer isso é quebrando o fio que liga você à criança. A cabana está cercada; os Espíritos que mantinha escravizados estão livres. Não resta mais nada em que se agarrar. Vamos mulher! Decida, pois sua queda é urgente!

- Ai! Meu peito! Que falta de ar horrível! Todos do seu bando vão morrer.- É verdade! Mas quando Deus quiser, e não você. O tempo está esgotando.

Mais um minuto e não vou poder lhe ajudar. - Não depende só de mim, já lhe disse.- Isso não me interessa! Ou deixa que recoloque seu coração ou cai.- Isso depende daquele maldito que me matou com sua lança. Foi ele que o

arrancou de mim. Quando fez isso me ligou a ele. O ódio do meu coração pulsa e envenena o dele.

- E por que não permitiu que os médicos que a acolheram após o desencarne o recolocassem no lugar?

- Para não me esquecer do ódio que tomou conta de mim. O coração dele vai explodir lentamente. O trabalho que fiz vai matá-lo. Se mexer em mim o bebê morre.

- Pois olhe bem o que faz o poder de Deus! Vou cortar esse fio e...- Não! Eu odeio vocês! Odeio todos que atrapalharam os meus planos. Foram

anos preparando este trabalho! Você e seu bando serão amaldiçoados para sempre.- Vai cair! Vou contar até três e você vai cair!- Ainda posso suportar mais dor!- Vai cair! Um, dois,- O bebê vai morrer! Eu fiz bem feito!- Três!

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No “três” Tibiriçá pulou como um tigre sobre ela e enterrou a mão em seu peito. Foi essa a impressão que a médium teve. A partir de então o coração da feiticeira passou a pulsar e o fio que a ligava à criança foi rompido.

- Índio desgraçado! Colocou meu coração no lugar. Você não podia ter feito isso! Um dia ainda o pegarei com a minha magia.

- Agora pode respirar. Deus lhe devolveu o ar. Ele não quer a morte do pecador, mas que ele viva e se arrependa.

- Ele tem que morrer! Precisa morrer! E saiu da cabana escoltada por Tibiriçá, enquanto os guerreiros colocavam fogo

sobre tudo. Talvez o coração da mulher estivesse ali mesmo, revestido por uma camada de fluidos que o tornava invisível até mesmo para ela. Nesse caso, Tibiriçá apenas teria quebrado esse cofre fluídico expondo o órgão em sua plenitude. Não nos esqueçamos de que, o corpo mental, do qual o perispírito é grosseira cópia, tem o molde do coração guardado em sua intimidade. Nesse caso, técnicos invisíveis para a médium, poderiam ter modelado o órgão baseando-se na cópia do corpo mental. Na verdade, só saberemos mesmo o que aconteceu naquele momento quando perguntarmos a nossos instrutores.

Ainda diante da cabana ardente, outra médium em serviço, deixou que a voz de um queixoso fosse ouvida.

- Que fogo é esse? Que desgraça! Como pode acontecer isso? Cadê aquele índio desgraçado? Distraiu-me e cai como um idiota. Estava tudo pronto e agora tudo arruinado.

- Qual o seu papel nessa bruxaria que queimamos?- Era ajudante da bruxa. Preparava os bonecos; os enchia de cinzas, cabelos

dos mortos, coisas assim.- Então você estava naquele cemitério que invadimos?- Pego as coisas lá. Restos de peles, sangue de cadáveres novos, músculos

petrificados. Por que fizeram Isso? Vocês não tinham esse direito. Um trabalho que levou anos para ser feito...

Segundo a médium o homem teve um ataque de fúria e rolou pelo chão, gemendo, reclamando, ameaçando e maldizendo a todos nós.

- A ordem de queimar veio de nossos superiores. Você sabe que uma ordem superior tem que ser cumprida.

- De onde estava senti a catinga da fumaça. Imaginei logo que o índio tinha me enganado. Ele é um covarde! Um bandido! Ele sabe quem sou eu e que não devia ter feito isso. Sabe o poder que eu tenho.

- Está extrapolando! Está na linha do abismo e mais uma palavra pode fazê-lo cair nele. Você não tem poder nenhum. O homem tem força como um cavalo a tem. Mas quem detém o poder é Deus. Baixe sua voz, antes que Tibiriçá escute suas sandices. Se isso acontecer não responderei mais pela sua saúde. Respire fundo, se acalme, pois lhe aguarda uma conversa dura com nossos instrutores. Como será levado pelos guerreiros faça uma cara amigável, pois eles não gostam de gente abusada.

- Existem muitas outras tendas armadas. Vão pagar por tudo que fizeram! Meu trabalho foi provisoriamente perdido. Outros capítulos virão.

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- Não existe coisa mais ridícula em um homem do que querer parecer o que não é. Siga com os guerreiros e atente para o que eu disse.

O homem foi praguejando sob a força dos guerreiros de Tibiriçá, que se fez de mouco para as bravatas dele. Já vivera o suficiente para entender que aquele fanfarrão era como uma lagosta. Esta, para crescer, precisa se livrar da carapaça e modelar uma nova. No caso dele, largar a carapaça de ódio que o envolvia. Algumas pessoas dizem que o ódio é o amor enlouquecido. Penso justamente o contrário. O amor não enlouquece e vira ódio. O ódio é que caindo em si, com algum tempo transforma-se em amor.

Como aquela manhã estava destinada à resolução da quebra daquele fio, ainda faltava conversar com mais um dos que contribuíram para a sua materialização.

- Vamos, tire-me daqui desse gelo! Você sabe que eu gosto de calor, de coisa abafada. Esse gelo está quebrando minhas forças e isso não pode acontecer.

- Estava participando do caso de feitiçaria, agora desfeito?- Estava trabalhando. Um homem não pode mais trabalhar?- Qual é mesmo o seu trabalho?- Trago coisas podres do cemitério. É lá que eu moro. Vivo catando material

para trocar com os bruxos. Tire-me do gelo! Preciso chegar à cabana para terminar um trabalho.

- A cabana virou cinzas. Tudo quanto existia lá foi queimado.- Pois me leva para lá. Deve estar quente ainda. - Como iniciou a fazer um trabalho tão desgastante como esse?- Ajudando a bruxa a fazer os dela. Éramos da mesma tribo.- Sabe como foi feito o trabalho contra a criança?- Começou já faz alguns anos. Ela fez com o coração dela. O objetivo é fazer o

coração da criança ir parando aos poucos.- O feitiço foi quebrado. Ela agora tem o coração no lugar. Você pensa que com

isso ela amenizará seu ódio?- Nada! Aquilo é uma fraca. Conheço o ponto fraco dela. Um verdadeiro

feiticeiro tem que ser frio. Não deve colocar seus interesses pessoais acima do feitiço, pois o contamina.

- Então você acha que ela, por odiar demais, não soube fazer a magia como deveria ser feita?

- É isso. A natureza tem leis. Na matemática dela havia um ingrediente a mais, o ódio. Ela deveria ter mandado outra pessoa fazer. Alguém neutro, assim não introduziria elementos fragilizando o trabalho.

- Estou gostando dessa nossa conversa. Não havia notado isso. Nunca pensou em fazer algo de bom? Por que fazer o mal lhe agrada?

- Você pensa que a gente não reza?- Para quem você reza? Segundo me consta Deus não atende pedidos loucos, tais

como fazer o mal a seus irmãos.- Rezo para a escuridão. Para algum diabo que possa me dar forças para

derrotar meus inimigos. - Já tentou rezar para o Deus verdadeiro?

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- Tenho muito ódio dentro de mim. Não conheço outra coisa que não seja o ódio. Odeio até a mim mesmo. Eu sou mal. Daqui para frente vou fazer apenas o mal. É isso que sei fazer.

- E aquela criança tem algo a ver com isso?- Você acha mesmo que ela é uma coisinha inocente? Acha que é um anjinho de

ouro? Aproveite e a coloque em um altar.- Ele fez algo a você?- Fez. Por que essa luz me persegue? É muito forte. Tire-a de cima de mim.- Você dizia que ele lhe fez algo. Quem sabe possamos reparar?- Não pode. Vi quando virou cinza. Está perdido.- A magia desses homens luminosos é muito forte. Pode até mesmo fazer o que

virou cinzas retornar. Diga-me o que é que pedirei a eles.- Nunca mais fui homem para mulher nenhuma desde o dia em que aquele

demônio me torturou. Entendeu agora. Eu não queria lhe falar isso. Ele me castrou, colocou meu órgão na ponta de uma vara e tocou fogo. Vi quando virou cinza. Fiquei naquela capoeira perdendo sangue. Fui me acabando, lembrando aquilo que tanto necessitava. Por que você me fez lembrar isso?

- Era de outra tribo?- Sim. Ele me capturou. - Quer nossa ajuda para recuperar essa parte perdida do seu corpo?- Como, se não tem jeito? Eu vi a cinza cair. Vi tudo ser destruído. - Claro que tem jeito. Basta que me autorize e peço a eles agora mesmo.- Eu me cobri de um ódio tão profundo, mas tão profundo, que me tornei uma

pessoa má, rancorosa, com ódio do mundo. Tudo por causa daquele bandido que me mutilou. Se existe um jeito quero ser curado.

- Tenho tudo que preciso para esta operação. Música, oração, ajuda dos médicos. Essa é a nossa parte. A sua é a seguinte: pensar fortemente no seu corpo antes desse acidente; depois pedir a Deus que tire o ódio do seu coração. Aceita tentar?

- Aceito.Então me concentrei na oração, solicitando a Jesus a reposição do órgão perdido

daquele companheiro e que seu coração tão sofrido e amargurado, fosse invadido por sua luz libertadora. Quando terminei, ele estava tímido, com medo, admirado do que acontecera ao seu corpo. Perguntei baixinho.

- Tem certeza de que tudo está normal em seu corpo?- Tenho. Estou sentindo que sim. - Quer ficar conosco mais um tempo para descansar? Garanto que será tratado

como nosso hóspede e que ninguém lhe fará nenhum mal.- Se isso for permitido, sim. - Pois bem, seja bem-vindo à nossa casa. Todo mundo quer chegar a um lugar onde a paz tenha morada. Acho que aquele

guerreiro encontrou esse lugar. Disse-me a médium que seu rosto estava calmo. Fiquei feliz por tê-lo ajudado fazendo a parte da formiguinha. Com a confiança em alta esperei pela próxima reunião. Deus cuidaria de tudo até lá.

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Evitando choques futuros

A reunião de domingo veio com as cores indígenas e o brilho das lanças dos guerreiros. Tibiriçá e Tapuinha estavam juntos para uma missão, certamente de resgate a Espíritos sofredores. A médium, impressionada com a beleza da guerreira começa a descrevê-la.

- Tapuinha é uma índia belíssima! Seus cabelos são longos, negros, e têm o brilho da seda. Seus olhos são serenos, mas firmes. Acho que aquele dueto, disciplina e caridade, que seguimos na reunião mediúnica, pode ser encontrado em seu rosto. Seus gestos são suaves, mas impõem respeito e autoridade. Ela notou que eu falava dela e me solicitou descrever o que vejo ao redor.

Estamos caminhando na mata. Batedores índios vão à frente para averiguar o terreno. Paramos. A nossa frente uma fortaleza cercada por grossos rolos de arames. Pelo comportamento dos guerreiros eles já conhecem o local, pois se espalham obedecendo a um plano já determinado, cercando os galpões de modo a que nada escape sem passar por eles.

Todos já sabem o que fazer, pois esses guerreiros não trabalham com improviso. Quando deixam seus alojamentos sabem que um inimigo os espera, como combatê-lo e derrotá-lo.

Um guerreiro chega junto a Tibiriçá trazendo um homem com estertores, de aspecto enlouquecido, com queimaduras na cabeça e no rosto. Acho que é o início do trabalho.

- Não! Não! Por favor, a cadeira, não! Eu já paguei pelo meu crime. Eu sei que matei, mas já sofri muito. Tenham piedade!

- Olhe para mim! Vamos! Acorde! Saia desse pesadelo! Estamos aqui para ajudá-lo!

- Por favor, meu Deus! Não permita que isso aconteça de novo. Eu já me arrependi! Quantas vezes deverei pagar por esse crime?

A médium tremia e parecia não escutar nada ao seu redor, fixa apenas no drama íntimo que fechava o comunicante em sua idéia. Então bati levemente em seu rosto, como quem procura acordar alguém muito sonolento. O comunicante não me ouvia. Foi só quando molhei as mãos em água e respinguei algumas gotas no rosto da médium que ele, fortemente ligado a ela, tomou leve choque e despertou para a realidade circundante.

- Desperta, homem! Preciso lhe tirar daqui! Por que está com tanto medo?- Da cadeira elétrica. Eles já me condenaram várias vezes à cadeira elétrica.

Não agüento mais passar por ela. Estou condenado à morte sem jamais morrer. Não suporto mais essa uma agonia sem fim.

- Sossegue! Isso acaba hoje. Olhe para a cadeira que lhe martirizava.- Está pegando fogo! Como fez isso?- É o que vai acontecer com tudo que for agressivo por aqui. Agora vamos nos

retirar, pois você precisa de tratamento médico.

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- Tem certeza de que estou livre. Fui um criminoso.- Como dizia, já pagou pelos seus crimes. Certifique-se de que a cadeira está

bem queimada e saiamos daqui.- Sim. Dela só restam cinzas. Mas, e os outros?- Cada um sairá a seu tempo. Você primeiro.Em seguida a médium começou a descrever o local a que fora levada com a

finalidade de situar o doutrinador na batalha que se avizinhava. - O local onde me encontro parece ser um campo de concentração onde a

violência é largamente empregada. Tibiriçá, diz que é um campo de tortura com alguns aparelhos utilizados em guerras e revoluções da Terra. Vejo cadeiras elétricas, guilhotinas, forcas, troncos para castigos, paredões para fuzilamento, dentre outras loucuras engendradas pela mente humana.

Cercando o campo, pelo lado exterior, dois batalhões se organizam para combate. Um composto pelos guerreiros de Tibiriçá e outro formado por negros, índios e brancos sob o comando de Tapuinha. São simpatizantes do trabalho que ela desenvolve; gente que gosta de ver a justiça triunfar. Os guerreiros estão devidamente paramentados para entrar em combate. Suas armas são redes, escudos e lanças.

Pelo lado interior vejo que existem alguns homens brancos pendurados em forcas. Estão imóveis, pescoços encurvados, caretas de dor e falta de ar, mas como são Espíritos desencarnados submetidos à tortura, sei que estão vivos. Tapuinha diz que eles sentem a mesma sensação de dor e sufocação como se fossem encarnados e que os choques, geralmente, os fazem desmaiar. O castigo é pior porque não morrem. Adentro mais o campo sem que me vejam e noto um vigia que faz a ronda com um chicote na mão. Ele passa e me concentro agora em um negro enorme, de rosto semelhante ao rosto de um gorila, que bate cruelmente em outro negro amarrado ao tronco. Suas mãos são humanas, mas seu rosto é semelhante ao de um gorila.

Até aqui só tinha visto branco batendo em negro, mas esse negro parece deter em si bastante ódio contra a Humanidade inteira. Ele tem prazer em bater. Por isso lhe deram o posto de chefe dos carrascos. Tibiriçá afirma que ele sofreu muito durante a escravidão, pois tem uma natureza muito rebelde, e hoje agride a qualquer um, como a querer se vingar do mundo, pelo que lhe fizeram.

Esse negro, se não for detido agora, fatalmente encontrará quem lhe vendeu. Antecipando-se a este possível desfecho, desastroso para a pequena Hortência, os instrutores querem barrá-lo aqui. Outro motivo para a invasão é a rebeldia desses torturadores desafiando as leis divinas. Isso não pode perdurar por mais tempo, pois Deus não necessita de algozes para fazer valer sua justiça.

O negro já largou o outro desacordado e agora agride um índio com uma corrente. Tibiriçá está calmo, mas suas mãos estão cerradas e seus olhos percorrem o negro de alto a baixo. Seguro de si caminha em direção do índio que está desfalecido, e sem que eu saiba explicar como agiu, simplesmente o faz desaparecer. Foi algo como um fenômeno de transporte, no qual o Espírito envolve o objeto que quer transportar em um fluido e, tornando-o invisível aos circunstantes, larga-o onde quer. Mas ele não saiu do meu raio visual um instante sequer. Acredito que tenha sido uma atuação dos nossos instrutores.

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O negro, que tem seu perispírito modificado de modo a se assemelhar a um enorme gorila, fica aturdido, sem compreender o que aconteceu. Tibiriçá gira ao seu redor e lança sobre seu rosto um pó retirado de sua sacola. Tapuinha, de imediato coloca uma espécie de capacete em minha cabeça e diz: Ele vai urrar bastante.

- Malditos! Malditos! A médium tentou se levantar, urrando e fazendo esforço para virar a mesa.

Coloquei minhas mãos sobre seus olhos e contra-ataquei.- Está cego! Esse tranqüilizante vai fazê-lo dormir.- Bandido! Mesmo cego tenho força para fazer desse barraco um monte de

pedras.Segurei o braço da médium, que a todo custo queira se erguer, e apertei de

maneira suave no local onde, geralmente, são aplicadas injeções na veia. Com voz decidida afirmei.

- Apliquei o tranqüilizante! Saiam de perto que ele vai cair! Mas para minha surpresa ele não caiu. Ficou parado, petrificado, duro como uma

estátua. Esse comportamento foi confirmado pela médium no final da reunião, quando disse que se sentiu tão rígida como uma estátua.

- No centro do campo há uma espécie de caixa blindada. É um apartamento de substância rígida como o aço. Em seu interior ficam os chefes da organização. Eles passam ordens por pequenas aberturas. Tais ordens são grafadas em pequenos pedaços de papel. Os carrascos a lêem e em seguida procedem às torturas.

Os batalhões se movimentam e invadem o campo. Há um corre-corre para todos os lados. Não há como escapar ao cerco formado. Quem tenta, encontra uma lança no pescoço ou uma rede onde se enrosca. Os carrascos já estão presos. O apartamento do centro veio abaixo e quem estava lá dentro está manietado e muito bem vigiado.

O combate chamou a atenção de um grande número de aves enormes, sequiosas por restos humanos e coisas podres. São parecidas com os nossos urubus. Como são agressivas, os guerreiros lançam suas redes e as capturam. São dezenas em combate, mas não conseguem resistir. Tibiriçá está no centro da batalha e, como sempre, anima seus guerreiros com ordens e contra-ordens.

Tapuinha revela que não são aves, mas irmãos que degradaram a forma perispiritual com constantes agressões, rebaixando-se ao nível desses animais. Os capturados serão levados e tratados. Os guerreiros retiram todos, enfermos, prisioneiros, grandes urubus, do campo, e põem fogo nos instrumentos de tortura.

Tibiriçá retorna e afirma que ainda há tempo para atender a alguns enfermos graves. O primeiro deles é um homem que se apresenta sem a cabeça. Foi torturado através da guilhotina. Sua comunicação será breve. Apenas um choque anímico.

O homem, quando colocado junto à médium deu verdadeiros gritos de terror, gemidos macabros, estertores que expressavam toda a loucura e o desespero que trazia em sua mente. Exibia forte falta de ar, tossia muito, e colocava as mãos sobre o pescoço como a reter a cabeça, que teimava em tombar para o solo. Já mais calmo, perguntou.

- Onde esta ela? Onde está minha cabeça? Como pude perdê-la?- Aqui está! Basta que fique quieto que a recoloco no lugar.- Graças a Deus! Como conseguiu achá-la?

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- Vi quando a cortaram e a guardei para devolvê-la. Trouxe também a cola para que tudo volte ao normal.

Após alguns gestos a imitar quem colava a cabeça no pescoço de alguém, procedimento que o obrigava a sair da idéia coagulada em sua mente para acompanhar o que eu fazia e a se concentrar na imagem de sua cabeça no lugar, colaborando na modelagem, disse-lhe.

- Esta tudo como antes. Pode mexer a cabeça de um lado para outro a fim de se certificar de que o trabalho está terminado:

- Está bem feito. - Vamos embora. Esse matadouro já não existe mais.Em seguida um vigia que se escondera na mata, desesperado por estar sendo

caçado entrou em cena.- Eles vão me pegar! Vão me pegar! Estavam todos dormindo e agora estão

acordando. Eu não tive culpa. Era mandado! Cumpria a lei! Eles estão chegando! Afaste-os de mim!

- Quando se fala em perigo existem dois tipos de homens: os que correm e os que enfrentam. Parece que você é do tipo que não enfrenta as conseqüências do que faz. Está seguro! Prisioneiro, mas seguro. Ninguém o agredirá.

- Eu cumpria a lei. Era mandado. Tinha que obedecer senão fariam o mesmo comigo.

- O que você fazia?- Era responsável pelo pelotão de fuzilamento. - Que arma utilizava?- Uma metralhadora. Fuzilava muitos de uma vez. Eles, após serem atingidos,

ficavam dormindo, mas agora estão acordando e virão atrás de mim. Quero proteção. Confesso tudo, mas quero proteção. Sei que estão à minha procura. Leve-me! Leve-me! Apenas não deixe que me peguem. Eles estão acordando! Eu vi! Estão se levantando! Saindo das forcas. Andando por aí sem cabeça!

- Mantenha-se calado! Quando os índios passarem por aqui você se entrega e pede proteção. Eles não farão nada contra você.

- Está certo! Entrego-me! Só não quero cair nas mãos dos condenados. Os urubus! Tirem eles de cima de mim! Bichos nojentos!

E vieram outros com cordas arrochadas ao pescoço, com imensa dificuldade de falar e de respirar. Mas a todos os enfermeiros espirituais atenderam com cuidado e presteza, até que o silêncio reinou sobre o que antes era uma fábrica de gemidos e lamentos.

Foi então que Tapuinha utilizou a voz da médium para expressar seu agradecimento e, ao mesmo tempo, deixar sua mensagem de protesto contra a discriminação e o preconceito.

- É muito bom estar com vocês na noite de hoje. Deus, que me permitiu estar aqui, possibilitou-me esta oportunidade de serviço a favor da harmonia entre os seres. Espero confiante, que o dia em que nenhum ser possa se considerar dono de outro esteja próximo e que venha revestido de toda a alegria dos mundos venturosos.

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Gostaria que você, amigo Luiz, transmitisse aos seus leitores o acontecido aqui, não somente como advertência àqueles que possuem tendências aos preconceitos, as discriminações, como também, àqueles que ostensivamente se consideram donos de patrimônios pertencentes exclusivamente a Deus. A escravidão sob qualquer forma é execrável e não pode ter a aprovação Daquele que é todo amor e justiça.

A tortura, a prepotência, o preconceito, o exclusivismo em questões plurais, deve ser varrido da Terra. O que deve prevalecer é a amizade entre os povos, a solidariedade na resolução de seus problemas, o respeito às diferentes culturas e maneiras de pensar. Lembremo-nos de que o destino da Terra é a felicidade, construída com o suor de cada habitante.

Somos o rebanho de Jesus, e o traço que deve nos unir é o amor. Muito me entristece ter que invadir redutos onde impera o ódio, a tortura e o desapreço pela vida. O tempo, o trabalho, o amor e por que não dizer, a dor, são ferramentas naturais utilizadas para sanear o mundo. Todo aquele que levanta o braço contra seu irmão é forçado pela justiça divina a baixá-lo. Os credores apressados, os justiceiros não autorizados, os adoradores da violência, os loucos que querem se igualar a Deus jamais terão sucesso.

Velam pelo cumprimento da Lei, milhares de trabalhadores do Senhor, em todos os níveis, que sem cansaço vigiam o universo mantendo-o em harmonia. O mal é uma exceção; filho do livre-arbítrio mal administrado, ao seu tempo se transformará e dará sementeiras de luz. A luz é o nosso destino final; morada das nossas esperanças; túmulo dos nossos desenganos.

Operária pequena, irmã de índios, pretos, brancos e de toda a natureza, rogo para que todos se entendam e se respeitem. A diversidade é uma coisa boa. Jesus disse haver milhares de moradas na casa do Pai. Certamente são elas diferentes e cada uma tem sua beleza. Lembremo-nos de que não há preconceito ou discriminação em nenhum capítulo da lei de Deus, pois tudo foi criado por Ele de forma a se completar harmoniosamente.

O que existe por trás de uma roupagem negra, índia ou branca é um Espírito que pode ser mais ou menos puro. Todos somos Espíritos. Ao agredirmos um deles, estamos agredindo o próprio Deus, de quem todos são imagem e semelhança.

Que Jesus, o amigo de todos, possa estar bem acomodado em nossos corações. Com essa mensagem concluímos nossa tarefa naquela noite, colocando-nos à

disposição junto a nossos instrutores para o trabalho durante o sono físico.

Guerreiros não atacam mulheres

Guerreiros são homens decididos e corajosos. Têm sua ética e não se admitem quebrá-la, pois o vocábulo honra tem forte significado em suas vidas. Quando enlouquecidos, podem até agir contrariamente a determinados valores, antes sagrados. Mas logo que caem em si, abertos os olhos e o coração, retornam ao caminho reto onde plantaram seus valores. A doutrinação de homes assim não é difícil, pois não são maus,

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apenas magoados e sofridos. A conversa é franca e sem subterfúgios; os argumentos são claros e lógicos; os sentimentos, fáceis de externar. Este capítulo é sobre uma reunião com guerreiros.

- Estou na casa de Margarida. Tudo parece tranqüilo em seu interior. A pequena Hortência está deitada e ao redor do seu berço se destaca uma luz azulada que a envolve por completo. Não diviso a fonte, mas é uma luz suave que a deixa calma e protegida. Todavia, sua mãe parece acuada, temerosa, alvo da ferocidade dos últimos guerreiros que ainda teimam em atingir sua filha.

O pensamento que me vem à mente é que o trabalho com a pequena está terminado. Resta livrar sua mãe dos que ainda persistem na vingança. Retorno para a reunião.

- Eu mato! Eu mato aquela desgraçada! Ela pensa que tem força contra nós. Ela não é de nada! Não pode nada! Só porque freqüenta um Centro Espírita pensa que isso confere imunidade contra nós? É só uma formiga que será esmagada por nossos pés.

- Vejo que está bastante furioso. Não esqueça de que está em uma casa alheia e de que nada fizemos contra você.

- Ela acolheu aquele monstro. Vocês fornecem o apoio. Quem não está conosco está contra nós! Vocês não são de nada!

- Mas se ela não é de nada, por que tanta preocupação? Se não somos de nada, não vale a pena tanta aflição e nervosismo.

- Estou zangado porque não consegui pegá-la. Até agora ela tem escapado com a ajuda de vocês.

- Sabe por quê? Porque ela tem valor. É uma mulher de valor. Perdoou seu inimigo e deu a ele a oportunidade de nascer através dela. Não é todo mundo que tem essa coragem. Você seria capaz disso? Mas o que lhe fizeram para estar tão desesperado?

- Não quero relembrar minha vida. Vocês querem me fazer mal. - Está enganado. Já amparamos seus irmãos, que agora são nossos amigos.

Estamos autorizados a abrigá-lo e a tratá-lo como um dos nossos. Sei que não é agressor. É guerreiro e, portanto, respeita os valores da amizade e do acolhimento. Se quiser, pode dispor da nossa hospitalidade.

- Estou com raiva da interferência de vocês. Vou conversar com eles, disse a mim mesmo, pois talvez não saibam o que ele fez. Ele é um bandido da pior espécie e não merece o respeito com o qual é tratado.

- Foi agredido por ele?- Mais do que isso. Fui morto covardemente sem ter tempo para me defender.

Eu me recusei a matar os da minha própria tribo. Então ele me matou sem me dar tempo para pegar minha lança.

- Mas por que ele queria que você matasse seu próprio irmão? - Porque desconfiava dele. Deu-me a ordem para matá-lo e eu desobedeci.- Por que não se juntou aos outros nessa vingança?- É um caso particular. Não quis envolver meus irmãos nessa briga. - E agora, como não consegue pegar a filha, quer matar a mãe.- É isso.

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- Mas você não acha que ela está fazendo justamente o que qualquer mãe faria, ou seja, protegendo sua filha? Sua lógica é: vim matar a filha, mas para não perder a viagem, mato a mãe. Julga mesmo tal raciocínio correto: ter raiva de uma pessoa e descontar em outra?

- Não! É errado.- E por que a persegue se em seu lugar faria o mesmo? Deixou o ódio lhe

enlouquecer e está agindo como um ébrio. É isso?- É isso mesmo. Estou dementado pelo ódio. Fiquei cego quando a vi

defendendo aquele desgraçado. Na minha mente os dois são da mesma panelinha.- Por que não conversa com seus irmãos e procura saber o motivo pelo qual eles

já desistiram da luta? Eles estão bem, alegres, em um campo de caça muito calmo. A mulher a quem persegue era uma escrava que também foi prejudicada por ele. Quer, igualmente, maltratá-la? Pense na coragem que ela tem. Perdoou seu inimigo, o aceitou como filha e está lutando contra batalhões para criá-la. Não acha que ela merece uma chance?

- Parece que sim. Logo eu, um guerreiro que nunca atacou uma mulher. Acho que estava ficando louco. Vou esquecê-la. Eu estava errado.

- Todos nós temos instantes de fraqueza na vida. Mas fique conosco. Converse com nossos instrutores e conte-lhes seus planos para o futuro. Eles sempre têm boas idéias para ajudar.

- Aceito sua proposta. Estou mesmo cansado. Após um descanso parto em busca dos meus irmãos.

Havendo conquistado mais um amigo encaminhei-me para nova conversa.- Vocês querem saber da minha história? Por que persigo tão tenazmente àquele

covarde? - Gostaríamos. Estamos em uma sala de amigos e, guardados o respeito e a

disciplina, podemos conversar como antigos companheiros.- Eu jamais tocaria em um fio de cabelo dela. Mesmo diante da desfeita que me

fez aceitando ser mãe daquele traste. Como já sabem, ela foi a preferida dele. Éramos de uma mesma tribo, em uma época em que tínhamos, eu e alguns guerreiros, a ilusão de vivermos fraternalmente, como irmãos, em paz, sem atacarmos ou sermos atacados por ninguém.

Mas o traste tinha sede de sangue. Ele não ficava satisfeito enquanto não derramasse muito sangue. Em suas loucas aventuras, nos envolvia, e éramos obrigados a matar em nome de uma conquista que não nos interessava.

Eu jamais o perdoei por isso. Ele também não gostava de mim. Certo dia ele me viu conversando com sua preferida e, louco de ciúme, jurou que me mataria. Sabendo-me condenado à morte arquitetei um plano com a ajuda de uma velha que conhecia ervas.

Eu jamais tocaria nela, pois isso estava contra todos os meus princípios. Sempre a amei, mas mantinha o respeito devido a uma mulher comprometida. A velha me deu as ervas e meu corpo morreu temporariamente. Foi sepultado em uma espécie de abrigo de barro que me permitiria respirar quando voltasse à vida.

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Para a alegria dele, eu estava morto. Quando despertei, fiquei escondido. A velha me trazia alimentos. Passados alguns dias, saia à noite para assustá-lo. Ele, que me julgava morto, interpretou o fato como a aparição de minha alma exigindo vingança por tantas mortes cometidas.

Foi enlouquecendo. Por outro lado, aparecia também para ela e minha presença a perturbava. Ambos, ensandecidos, pois pensavam tratar-se de um Espírito que os perseguiam, agrediam-se verbalmente, acusando-se um ao outro de suas desditas. Em uma dessas agressões ela o matou.

- Então, de certa forma. Você o assassinou.- Sim. Mas esse era o desejo de dezenas de Espíritos que o queriam morto. Ele

já era um homem cercado por vingadores.- Ele já era um velho quando isso aconteceu?- Não. Tinha meia idade. Depois disso desapareci, mas fui, posteriormente,

capturado e então me mataram de verdade. Agora que a encontrei não vou mais sair do seu encalço.

- Por que deseja prejudicá-la, se a ama?- Porque ela aceitou ser mãe daquele traste. - Ela aceitou ser mãe, acossada pelo remorso do crime que cometeu. Entendeu

que para crescer para Deus precisa pagar seus débitos. Optou por recebê-lo, educá-lo e encaminhá-lo para o Bem. Assim ele deixará a vida perigosa que sempre levou.

- Ela não precisa fazer isso. O responsável pelo crime sou eu, pois a enlouqueci. - Se deseja ajudá-la deixe que ela crie a filha em paz. Ambos terão muitos

problemas a enfrentar. Não precisam que crie mais alguns. - Não adianta tentar me convencer. Eu não vou sair de perto dela. - Deve saber que ela tem outro marido a quem ama, e que ambos têm o direito

legal de constituir uma nova família. Sua interferência será interpretada pelos bons Espíritos como agressiva e haverá uma censura a ser aplicada.

- Não interessa. Eu ainda a chamo e sou atendido. Sei que ela ainda tem algum sentimento por mim.

- Mas tem obrigações com outro. E aquela história de não tocar em um fio de cabelo de uma mulher comprometida, pois seria trair seus princípios, não existe mais? Não esqueça de que ela tem uma filha. Sacrificou-se para recebê-la e educá-la nos princípios cristãos.

- Não chame aquilo de filha! É um monstro! Ela já me fez uma proposta horrível, que não pude aceitar. Ser irmão daquele imbecil. Sei que não agüentaria isso.

- Então ela quer recebê-lo como filho?- Sim. Foi a proposta dela. Mas eu a quero como mulher. - Não existe maior amor sobre a Terra do que o de uma mãe por um filho. - Eu jamais serei irmão daquele louco.- Ele não e mais aquele que você conheceu. Arrependeu-se e quer fazer as pazes

com seus inimigos. Cansou de brigar e agora quer recuperar o tempo que perdeu fazendo loucuras. Tenho certeza de que ele se sentiria honrado e satisfeito por ter um irmão como você.

- Não! Prefiro sair de perto dela. Quero estar com ela, mas como amante.

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- Está se comportando como criança birrenta que está com fome e rejeita o alimento. Na condição de mãe ela o acolherá nos braços, o protegerá no frio, na doença, o alimentará e embalará em suas noites. Não terá mais solidão nem ficará angustiado perguntando onde e como estará o seu amor, pois o terá ao seu lado. Poderá abraçá-la e contar sobre seus medos, ouvir suas histórias, explicar suas dúvidas, enquanto recebe dela carinho e amor. Vai ficar ao lado dela e protegê-la na velhice.

- Mas estarei do lado do traste que detesto. Na primeira briga com ele eu o matarei. Então ela sofrerá amargamente por me ter recolhido.

- Só quem conhece o futuro é Deus. Se fugir seu sofrimento será pior, pois onde estiver, vai lamentar, não ter aceitado a proposta. Vai querer voltar, espiar de longe e acabará em seus braços pedindo perdão. O amor é um imã tão forte que vai enredando os que se amam em linhas de força onde a fuga é improvável. Sei que entende o que digo. Se for para longe vai ficar se perguntando: como ela estará? Será que está sendo maltratada pela filha? Por que não estou lá para protegê-la? Que amor é esse que abandona a quem se ama?

- Você é louco. Como pode estar me empurrando para um abismo onde a possibilidade de cair é maior do que a de se salvar?

- Meu amigo! Cai no abismo quem é cego. O seu abismo é plano e tem placas enormes advertindo: Paciência! Tolerância! Caridade! Não enfrentará isso sozinho. O amor que ela lhe proporcionará o tornará forte. Terá uma educação diferente da que teve até agora; será disciplinado em seus sentimentos pela Doutrina Espírita; terá uma mãe afetuosa, não precisará viver com uma lança na mão para se defender ou ganhar o pão de cada dia. Terá amor, e o amor, dizem, cobre uma multidão de pecados.

- Ela tem um sentimento de culpa horrível. - Mas diminuirá se você ajudá-la. Quando você reencarnar vai esquecer toda

essa história e sua mente estará preparada para uma nova vida. Não vai reconhecer sua irmã como inimiga; vai entrar em outro contexto, conhecer novos valores. Terei o máximo prazer de vê-lo aqui na escolinha de evangelização infantil. Prometo me esforçar para não morrer antes.

- Estou com medo! Não quero ser irmão de ninguém. Eu o odeio. Temo que esse ódio seja mais forte do que o amor que sinto por ela.

- Mas que amor é esse que deixa a pessoa amada no perigo e foge? Que raios de guerreiro é você? Ser irmão dele não significa concordar com suas atitudes. Como pensa que Deus promove a paz entre inimigos? Manda-os reencarnar como pais e filhos, irmãos, marido e mulher. Na nova vida, enfrentando as dificuldades e sentindo as alegrias de uma convivência familiar criam vínculos, se perdoam, se amam.

- E se matam. É disso que tenho medo. Que vocês me empurrem para um crime.- Tem seu livre-arbítrio. Só cometerá um erro se quiser. Você manda em sua

lança ou é governado por ela? Não tenha medo de sofrer, pois sofrerá muito mais fugindo da oportunidade que Deus está lhe dando. Vai ter que nascer em algum lugar. Se não for junto dela será com outra mãe que talvez não o ame tanto quanto ela. Quem garante que, ao invés de matá-la não se tornarão bons amigos? Que ela, sendo mais velha não o defenderá na escola contra algum menino malcriado que queira pisar em seu

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pé. O sangue fala alto nessas horas. É a tribo que se reúne novamente, mas em paz. Aquela paz que você sonhava.

- Você faz tudo parecer fácil, mas tenho medo de matá-la num acesso de fúria.- Ela será uma mulher e não um guerreiro. Será trabalhada pela educação e pela

religião. Logo estará namorando e casando. Você cuidará de sua mãe até que ela fique bem velhinha. Quando sua irmã alterar a voz, se é esse o seu temor, educadamente você dirá: Alto lá! Minha mãe tem razão! Você vai ajudar os dois e terá o mérito de ter auxiliado a transformar um homem rude em uma pessoa melhor; um inimigo em um amigo.

- Mas se isso acontecer não vou ficar com essa calma toda. Vou partir para a violência. Passei toda a minha vida lutando e matando e você me manda para a guerra, no meio de um combate, e não quer que use minhas armas?

- Vai usar outras armas. A inteligência, a educação, a paciência, o otimismo, o bom humor... Espelhe-se no sacrifício dela. Se ela pensasse como você teria dito: não quero ser mãe dele porque na primeira contrariedade que ele me fizer eu o mato.

- Logo mais conversarei com ela. O pior é que não vou ter coragem de dizer um não.

- Pois diga sim. Um guerreiro não se sente bem fugindo da batalha. Tenho esperança de que ainda o verei aqui no Grão de Mostarda aprendendo o evangelho, correndo e gritando por esses corredores. Se gritar muito alto, puxo suas orelhas.

- Vou sentar ali naquele banco e esperar que ela chegue.- Tenha fé em Deus. Tudo dará certo. Os últimos guerreiros estavam se despedindo. Mais ainda havia tempo para mais

um.- Finalmente vocês encontraram um guerreiro inteligente que não foi capturado.

Pegaram todo mundo e eu escondido. Quando acendiam uma luz para lá eu caía para o lado de cá. Fui tapeando a todos e ainda estou na caça dele.

- E nem sequer notou que foi trazido para cá para se explicar?- O que? Quem me trouxe? Que lugar é esse?Por que esses índios estão de olhos

em mim? - Estamos em uma oficina de trabalho e de oração. Mas explique-se. Era da tribo

dele?- Não. Nunca trabalhei para aquele desgraçado. Minha rixa com ele é por ter

tido minha família destruída. Ninguém chega perto dele agora. O bandido está em berço de ouro, debaixo de luz azul. Agora o jeito é me vingar na mãe dele.

- Disse-nos que era um guerreiro inteligente. Um guerreiro não ataca uma mulher! O que aconteceu com sua honra? O que fez de sua coragem? Deixou a raiva manchar sua nobreza e a covardia contaminar sua conduta? Não seria melhor largar a lança e procurar outra atividade?

- Mas eu fui apunhalado pelas costas. - E por causa disso se transformou em um covarde que ataca mulheres e

crianças? - Aceito a reprovação pela mulher, mas não pela criança. Ele é um assassino.

Vou lhe contar minha história. Nosso primeiro encontro foi há muito tempo. Éramos

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gladiadores. Entramos em luta pelo amor de uma mesma mulher. Eu estava vencendo, mas alguém gritou atrás de mim e eu me voltei para ver quem era. Ele se aproveitou e enterrou a espada nas minhas costas.

Cai e me fingi de morto. Ele ficou lambendo o sangue da espada, gargalhando e se exibindo para os assistentes. Então me levantei e o apunhalei pelas costas. Ele foi comigo para o buraco. Enquanto ele caía, vi os olhos dele saírem faíscas de ódio contra mim.

Depois de muitos anos nos encontramos na África. Ele em uma tribo e eu em outra. Ele invadiu a minha e me matou. Agora o encontrei, mas já não posso matá-lo, pois tem proteção. Por isso parti para uma vingança a nível secundário. Matando a mãe dele o estarei prejudicando.

- Será que essa mulher a quem persegue hoje, não e a mesma pela qual brigaram no passado? Quer que averigüemos isso na tela a sua frente?

- Será? O quebra-cabeça está se decifrando. Começo a ver na tela. A mulher pela qual brigávamos se enclausurou em uma torre, fechou a porta por dentro, morrendo de fome e sede. Ela gostava de nós dois. Foi a maneira que encontrou para se punir. Não! Deixe isso para lá! Não quero saber do restante! É ela. Deve ser ela, mas não quero saber.

- Tem mesmo certeza de que não quer saber o final da história?- Tenho! Posso estar querendo matar a quem muito amo. Acho melhor desistir

disso e tocar a vida por outro caminho.- Sábia decisão, amigo. Se é reprovável levantar a mão contra um inimigo,

imagine contra um amigo. Há uma caravana que parte com seus irmãos para um lindo campo. Deve haver lugar para mais um nessa viagem.

- Obrigado. Estou mesmo com saudades dos campos da minha terra. Quando julgava encerrada a reunião, mais um guerreiro, chefe de um grupo que

cercava a casa sem poder adentrá-la, pediu permissão para falar.- Estou aqui com meus homens para entregar nossas armas. Estávamos errados.

Encontravamo-nos pelos arredores quando sua voz ressoou alta, forte e em bom tom, dizendo: um guerreiro não ataca uma mulher! Isso calou forte no meu coração e na minha alma. Imediatamente me vi aqui. Estou ciente de que o senhor tem toda razão. Trouxe comigo toda a minha equipe. Todos os meus guerreiros. Não mais atacaremos aquela mulher. Um guerreiro não ataca uma mulher. Saímos de lá, onde fizemos várias operações para atacar a criança, pois como sabe, não a vemos como criança, mas como monstro que foi.

- Todos os senhores eram da tribo dele?- Não! Éramos de uma tribo atacada por ele. Estávamos lá à procura de furar o

cerco para atacá-lo. Impossibilitados, devido à defesa que ele tem hoje, ou ela, encarando o fato no presente, nos voltamos contra a mulher que era a preferida dele. Preferida que, ao mesmo tempo, era uma escrava e uma sofredora. Enlouquecidos pelo ódio decidimos agredi-la. Mas suas palavras ecoaram fundo em nosso íntimo e estamos aqui para dizer que encerramos a nossa perseguição.

- Entendemos e agradecemos. Colocamos todos os nossos recursos a sua disposição. Instrutores, médicos, alojamentos, seja o que for que tivermos, agora

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pertence também a vocês. Estamos felizes com a companhia de tantos guerreiros honrados e valentes.

- O que estávamos fazendo não era papel de guerreiro. Um guerreiro não chora, mas eu chorei quando vi que estava errado. Muito obrigado.

Emocionei-me com aquele guerreiro, o qual não podia ver o rosto. Sua voz era a de alguém sentido, arrependido por ter feito algo contrário à sua moral. O arrependimento é um estado de conflito no qual o Espírito se vê acossado por cobranças e remorsos. É, na maioria das vezes, o preço cobrado pela imaturidade do senso moral, fruto, geralmente, que só adocica regado a lágrimas e adubado com sofrimento.

Mas funciona de maneira positiva, pois impulsiona a quem fere, a atos heróicos; a refazer o mal traçado bordado de sua vida; a mais aproximar-se de Deus.

Certamente se tivesse chance o teria abraçado e confirmado sua coragem, pois existe mais coragem em reconhecer um erro do que em um combate corpo-a-corpo. Escutei o comentário de cada médium e fui para casa pensando naquele gesto de bravura.

Recanto da paz

E atingimos a última reunião destinada à pequena Hortência. Preparei uma lista com algumas dúvidas sobre o caso, na certeza de que Francisco, o guia espiritual que sempre me acompanha nas tarefas espíritas, me socorreria. Feita a prece inicial, logo um dos instrutores deu seu parecer.

- A casa da pequena Hortência está limpa, iluminada e sem ameaças à sua integridade física ou saúde espiritual. De agora em diante tudo correrá por conta da sua mãe, responsável maior pela educação da menina. Estaremos acompanhando de perto seu desenvolvimento e auxiliando no que for possível, pois ambas devem caminhar com os próprios pés.

Todavia, é necessário, por enquanto, apoio ostensivo por parte da equipe encarnada, sobre a aprendizagem de Margarida, pois esta se encontra, no momento, impressionada com o drama, em parte resolvido. A fixação em determinados passos já percorridos poderá levá-la a uma auto-obsessão, caso não se apegue com firmeza à oração e à vigilância, centralizando todas as suas energias nas tarefas atuais e vindouras.

O passado deve ser esquecido. Quebrar o vínculo de vez é uma necessidade imperiosa. Que ela some os esclarecimentos evangélicos que já tem com os conhecimentos espíritas que adquire. Esta será sua bússola e seu porto. Que siga o rumo certo: para frente e para o alto. Resumindo o recado que queremos transmitir como síntese de sua atuação, a partir de agora, citaremos o sábio conselho de Jesus para os indecisos: colocar a mão no arado e não olhar para trás.

Em seguida outra médium se deslocou até uma região do espaço, onde estavam em confraternização e trabalho, todos os nossos instrutores. Antes passou pela casa de Hortência para descrever a partida dos guerreiros.

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- Estou diante da casa de Hortência. Realmente aqui está tudo em paz. Os índios da tribo de Tibiriçá, e os guerreiros africanos que se uniram a nós, abandonam a casa. Os africanos deixam ao lado do berço da pequena, algumas oferendas. Francisco diz que faz parte da cultura deles. Um coloca uma pena, outro um colar, terceiro um amuleto, e se afastam respeitosos. É uma cena comovente que deixa feliz quem a assiste. Como nada há para fazer aqui, Francisco me leva a outro local, igualmente emocionante. Centenas de pessoas que foram atendidas por nós, nas reuniões mediúnicas, encontram-se trabalhando em uma região muito linda, verde, florida, de ar puro e natureza privilegiada. Diz que este espaço foi preparado pelos bons Espíritos, inspirados na misericórdia divina, para abrigar a todos que haviam perdido seus lares, afetos e haveres nas guerras de conquista empreendidas pelo chefe banto agora encarnado.

É um recanto de paz que Deus, em seu profundo amor, concedeu aos cansados pelo sofrimento, a injustiça, o ódio e tantas misérias que os atormentaram. Reconheço neles, homens e mulheres que passaram pelas reuniões. Estão felizes com o novo recomeço. Alguns tímidos, mas há esperança em todos os olhares.

A cena que me é mostrada assemelha-se a um mutirão. As mulheres plantam hortaliças. Os homens preparam os canais para irrigação, utilizando ferramentas e bambus. Outros constroem casas. São muitas e alvas, com enfeites à moda africana. Brincam ao redor, crianças africanas misturadas aos curumins.

Todos os nossos instrutores estão aqui. Vejo Tapuinha, Tibiriçá, Kröller, Dr. Mário, médicos da equipe do doutor Bezerra, técnicos que nos auxiliaram, enfim é realmente uma festa de confraternização. Francisco afirma que este caso, muito singular, exigiu esforços de grande equipe espiritual.

Os chefes africanos fazem uma roda para conversar. Estão renovados, calmos, e fazem planos de paz para o recanto que receberam como morada. Francisco retorna comigo para a reunião aqui no Grão de Mostarda. Quer falar com você sobre algumas dúvidas que já foram esclarecidas durante o sono físico, mas que você gosta de uma confirmação em vigília.

- Bom dia, amigos. É uma felicidade estar entre vocês nesse trabalho que tanto bem nos faz. Como a médium falou, há um sentimento de recomeço, de alegria e de esperança nessa nova fase da caminhada dos irmãos atendidos. Todos nós estamos felizes com a alegria deles. Somos parte dessa alegria construída através do trabalho mediúnico, e isso é um grande conforto para nossos Espíritos.

O que estamos vendo é o nascimento de uma pequena colônia planejada pela espiritualidade maior, em obediência a misericórdia divina, que jamais desampara seus filhos. Estamos aqui para esclarecer sobre algumas peculiaridades. Como foi dito, Margarida precisa de nossas preces e de um acompanhamento mais direto a fim de se firmar na caminhada que a espera.

Digamos que ela está com a porta mental entreaberta. Isso é perigoso. Ou a tranca para que lá fiquem as más recordações ou corre o risco de ter idéias recorrentes sobre um passado que deve ser sepultado. Reviver os fatos significa atingir com o pensamento, Espíritos que já se desligaram do caso; atrair outros que estão perdidos à procura de vingança; chamar a atenção de oportunistas e de desocupados que podem

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perturbá-la. O mais grave é que ela poderá, mesmo sem a presença de outras entidades que a perturbem, caso não seja bem orientada, perturbar a si própria gerando uma auto-obsessão.

Todos nós temos falhas e dificuldades. É natural que uma vez ou outra haja cobrança de nossa consciência. Devemos redobrar nossos esforços em encaminhá-la para a serenidade, fazendo prevalecer sua força e sua coragem sobre esses instantes de fraqueza. Ela deve buscar incessantemente a elevação de sua auto-estima e a concretização de sua paz interior.

Sei que você tem perguntas a fazer. Estou a sua disposição no que puder atendê-lo.

- Pelo que incomodo durante o sono, deve saber que sempre tenho dúvidas. A primeira é quanto à senhora que fazia um trabalho de quimbanda e que se apresentou à médium sem o coração.

- Você descreveu corretamente o que aconteceu. O médium transmitiu o que viu e o pensamento da comunicante. Esta, em sua mente, não possuía o órgão em seu peito. Com sua força mental ela o deslocara e formara um espaço vazio em seu mediastino. Ocorre que o coração sempre esteve lá, encoberto por uma camada fluídica que o escondia em uma espécie de neblina, turvando a visão menos treinada, impedindo-a de detectá-lo. Sua descrição foi perfeita. Tibiriçá quebrou a camada que escondia o órgão, revelando-o, inclusive, para ela, que tinha o pensamento fixo na sua ausência.

- Outra pergunta refere-se às mulheres do Johnny. Elas foram assassinadas por ele e compareceram a uma reunião, desaparecendo em seguida. O que aconteceu com elas?

- Você sabe que muitos assuntos são resolvidos por este lado, através dos trabalhos noturnos e das doutrinações paralelas. Por intermédio de uma delas, que já estava cansada da perseguição que empreendia, penetramos no coração das demais as alertando para a continuidade da vida. Eram mulheres sofridas que ao reencontrarem pessoas queridas se renderam a esperança de felicidade.

- Como Tibiriçá fez aquele índio desaparecer?- Não foi ele. A analogia que fez no livro está correta. Realmente o processo é

parecido com o fenômeno de transporte, mas com alguma diferença. São técnicos de nossa equipe que promovem esses desaparecimentos. Não são Espíritos superiores, mas detêm o conhecimento e a técnica, aliadas ao desejo de fazer o bem. Não tenho permissão para entrar em detalhes nessa questão.

- E quanto ao Espírito ficar rígido como uma estátua, fato que tenho visto algumas vezes aqui nas reuniões de desobsessão?

- Você não desconhece que um Espírito superior pode penetrar na mente de outro que lhe é inferior e ditar uma ordem irrecusável. O hipnotismo, tardiamente utilizado nos tratamentos médicos da Terra, é largamente empregado no plano espiritual há muito tempo. No caso, um dos nossos técnicos emitiu uma ordem hipnótica para que ele ficasse com o corpo rígido como uma estátua e ele obedeceu. O mesmo ocorre quando ele sente coceiras, queimação, peso nas costas, dentre outras técnicas de subjugação. Os obsessores também utilizam essas técnicas quando delas se apropriam.

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- Margarida disse-me ter visto cabelos no leito de Hortência. Acha que foi produto de magia negra?

- Não. Ela é médium, atualmente, e no passado vivenciou essas práticas. Como para nós espíritas, a prece e a comunicação com os desencarnados é algo natural, para sua tribo as práticas da quimbanda faziam parte do cotidiano. São reminiscências do passado vistas pela visão espiritual. São fatos que afloram dos diques mentais e são interpretados como atuais. Você sabe que os neurônios cerebrais não distinguem se o fato está ocorrendo no momento ou é produto de uma recordação. Por isso ela precisa de ajuda em sua educação mediúnica. Gostaria que você fosse para ela o professor paciente e dedicado que tem sido com todos. Que a tratasse como uma filha que precisa de orientação de alguém mais experiente. É preciso que ela saiba que com a última reunião de desobsessão não acabou o processo de libertação dela nem da sua filha. Vencemos a primeira fase; subimos alguns degraus. Ela deve intensificar os estudos, trabalhar a renovação moral, apegar-se à vigilância e a oração. Só assim, ao ler o livro que retrata seu processo desobsessivo, suportará sem recaídas os fatos ali narrados.

- Por fim, Francisco, enviada por quem surgiu à equipe de técnicos em computação que tentou prejudicar a pequena Hortência?

- De um grupo dissidente de africanos, que diante do fracasso da magia negra, optou por contratar uma equipe técnica em computação. Técnicos inescrupulosos utilizam seus conhecimentos para fazer o mal, mediante pagamento e vantagens. Isso é fato comum em planetas qual a Terra. Felizmente nossos técnicos são mais eficientes.

Sei que suas perguntas esgotaram. Queria agradecer ao grupo o empenho com o qual tratou este caso e deixar a certeza de que sempre estaremos com todos, pois somos uma equipe. Nossos laços afetivos são fortes e duradouros. Somos irmãos afinados pelo trabalho e o desejo de servir. Laços assim são inquebráveis.

Que Jesus, o modelador de nossos sentimentos, seja também o inspirador de nossas ações.

Conclusão

À proporção que um grupo mediúnico se aperfeiçoa, mais casos complicados surgem como oportunidades de serviço e de aprendizagem para seus membros. É o processo natural de crescimento a exigir novos testes de fidelidade e de renovação.

Devemos a resolução dos estranhos casos de obsessão que nos chegam, a maravilhosa atuação de nossos instrutores, que se desdobram no atendimento da dor humana. Mas um pouco do suor derramado, da prece evocativa e da fé na bondade divina, vem dos corações que pulsam na sala mediúnica.

Sem esse amor ao que faz e a persistência no que faz dificilmente uma equipe mediúnica chega a bom termo. A pequena Hortência, certamente, ainda terá problemas, não mais causados pela presença espiritual de seus agressores, já orientados.

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Os obstáculos futuros, superáveis, pois Deus não coloca um fardo além das forças de quem o carrega, são os já impressos em seu perispírito, as provas rudes que terá de enfrentar, a expiação das faltas que cometeu, procedimento corriqueiro do qual ninguém foge quando fere a Lei. Como a obsessão deixa seqüelas perispirituais, a pequena deverá continuar tomando passes e ser educada objetivando a valorização das virtudes evangélicas, o que se tornará mais fácil com a implantação do evangelho no lar, sua inscrição e freqüência na evangelização infantil, mocidade espírita, e por que não dizer, velhice espírita.

Mas não somente o Espiritismo oferece tais meio de libertação. Que siga Jesus e tudo caminhará bem; que faça o bem e o bem a seguirá, pois Deus não se preocupa com rótulos doutrinários, mas com o amor que cada filho seu espalha. Jesus resumiu este pensamento da seguinte maneira: Amar a Deus e ao próximo como a si mesmo. Aí está toda a lei e os profetas.

Amparada como foi pelos bons Espíritos, a pequena Hortência tem para com eles uma dívida de gratidão bem acentuada. Que se lembre disso em cada dificuldade vencida e em cada alegria edificada. Que jamais se recuse a semear o perdão, porque foi perdoada por inúmeros desafetos: que nunca se negue a amparar os indefesos, pois foi amparada e protegida como uma semente de vida em um deserto escaldante.

Sua história nos emocionou a todos. Eram tantos os inimigos que a buscavam que nos perguntávamos como alguém pode semear tantos espinhos em uma única existência. Mas Deus deixou-lhe uma porta com saída para a liberdade; os bons Espíritos lhe deram a chave. Cabe a ela substituir a sementeira antiga por frutos generosos.

Sua mãe saberá educá-la convenientemente. Ajuda não lhe faltará, mesmo que oculta aos seus olhos e imperceptível aos demais sentidos. Espero ter tempo para vê-la crescer e ser uma fiel trabalhadora do Senhor de todos os mundos.

Que Jesus, o amigo dedicado que sustenta os sofredores deste mundo, nos ampare e nos permita a alegria desses pequenos sonhos.

Fragmento de biografia

Nasci na terra tórrida do Ceará.

Caminhando de viés sob as dificuldades

Já próximo à fronteira do cansaço

Ao avistar a estrela da manhã

Matriculei-me na escola da esperança

Para um curso de vida inteira.

Só depois me disseram que aquela estrela se chamava Espiritismo.

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Anexos

Dragão do mar

Em 1884, o Ceará tornou-se a primeira província brasileira a abolir a escravidão. O Movimento Abolicionista Cearense, surgido em 1879 contribui, embora não decisivamente, para essa abolição pioneira.

As ações cearenses em favor da liberdade dos negros repercutem em todo o Brasil, e os abolicionistas, gente de elite, brava e culta, são ovacionados pela imprensa nacional. Entre eles há, porém, uma pessoa humilde, de cor parda, trabalhador do mar: Chico da Matilde. Chefe dos jangadeiros, eles e seus colegas se engajaram na luta já em 1881, recusando-se a transportar para os navios negreiros, os escravos vendidos para o Sul do País.

Por sua atuação a favor dos negros, Chico da Matilde é levado para corte com sua jangada, ocasião em que desfila pelas ruas, recebe chuvas de flores da multidão e ganha um novo nome, pomposo e mítico: Dragão do Mar. De lá escreve à mulher: “seu velho está tonto com tanta festa e cumprimentos de tanta gente importante”.

São Jorge

É o santo patrono da Inglaterra, Portugal, Geórgia, Catalunha, Lituânia e da cidade de Moscou, além de ser padroeiro dos escoteiros e do Esporte Clube Corinthians Paulista. No dia 23 de Abril seu martírio e relembrado, o mesmo ocorrendo no dia 3 de novembro, quando, por toda parte, se comemora a reconstrução da igreja dedicada a ele, em Lida (Israel), onde se encontram suas relíquias, erguida a mando do imperador romano Constantino I. Há uma tradição que aponta 303 o ano da sua morte. Apesar de sua história se basear em documentos lendários e apócrifos (decreto gelasiano do século VI), a devoção a São Jorge se espalhou por todo o mundo.

De acordo com a lenda, o santo teria nascido na antiga Capadócia, região do sudeste da Anatólia que, atualmente, faz parte da República da Turquia. Ainda criança, mudou-se para a Palestina com sua mãe, após seu pai morrer em batalha. Sua mãe, originária da Palestina, possuía muitos bens e o educou com esmero.

Ao atingir a adolescência, entrou para a carreira das armas, por ser a que mais satisfazia à sua natural índole combativa. Logo foi promovido a capitão do exército romano devido sua dedicação e habilidade, qualidades que levaram o imperador a lhe conferir o título de conde da Capadócia. Aos 23 anos passou a residir na corte imperial, em Roma, exercendo a função de Tribuno Militar.

Neste tempo sua mãe faleceu e ele, tomando a parte das riquezas que herdou, vendo que existia muita crueldade contra os cristãos, distribuiu entre os mais pobres toda a riqueza que tinha.

O imperador Diocleciano arquitetava planos para matar todos os cristãos, e no dia marcado para o senado confirmar o decreto imperial, Jorge levantou-se no meio da reunião, e declarando-se espantado com aquela decisão afirmou que os ídolos adorados nos templos pagãos eram falsos deuses.

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Todos ficaram atônitos ao ouvirem estas palavras de um membro da suprema corte romana, defendendo com grande ousadia a fé em Jesus Cristo. Indagado por um cônsul sobre a origem da rebeldia, Jorge prontamente respondeu-lhe que era por causa da Verdade. Seu interlocutor, não satisfeito, quis saber: "O que é a Verdade?". Jorge respondeu-lhe: "A Verdade é meu Senhor Jesus Cristo, a quem vós perseguis e, de quem sou servo; confiado nele estou no meio de vós para dar testemunho da Verdade."

Como Jorge mantinha-se fiel ao cristianismo, o imperador tentou fazê-lo desistir da fé torturando-o de várias maneiras. E, após cada tortura, era levado perante o imperador, que lhe perguntava se renegaria a Jesus para adorar os ídolos romanos.

Todavia, Jorge reafirmava sua fé. Seu martírio, aos poucos, foi ganhando notoriedade e muitos romanos, tomado as dores daquele jovem soldado, se converteram ao cristianismo, inclusive a mulher do imperador. Finalmente, Diocleciano, não tendo êxito, mandou degolá-lo no dia 23 de abril de 303, segundo a tradição católica, em Nicomédia (Ásia Menor).

Os restos mortais de São Jorge foram transportados para Lida (Antiga Dióspolis), cidade em que crescera com sua mãe. Lá ele foi sepultado, e mais tarde o imperador cristão Constantino, mandou erguer suntuoso oratório aberto aos fiéis para que a devoção ao santo fosse espalhada por todo o Oriente.

Pelo século V, já havia cinco igrejas em Constantinopla dedicadas a São Jorge. Só no Egito, nos primeiros séculos após sua morte, construíram-se quatro igrejas e quarenta conventos dedicados ao mártir. Na Armênia, em Bizâncio, no Estreito de Bósforo na Grécia, São Jorge era inscrito entre os maiores santos da Igreja Católica (adaptado da Wikipédia).

Tapuinha

Índia que auxilia a uma potente médium em Tabatinga, no interior do Ceará, realizando importantes trabalhos de cura, de materialização e de transporte. Em local pobre, sem assistência médica, Tapuinha é o recurso que Deus colocou entre os esquecidos, para aliviar suas dores. Sua atuação é descrita no projeto, “ Janelas Para a Outra Vida”, que gerou os livros: Mediunidade - Temas indispensáveis para os espíritas e Mediunidade - Aprendizado fundamental sobre desobsessão, publicados pela editora EME. O objetivo deste projeto foi abrir 10 janelas para o mundo espiritual a fim de estudar temas relevantes para a mediunidade, a doutrinação, a obsessão e a desobsessão.

Contracapa ou orelha

Romance espetacular, no qual um ex-chefe de tribo africana que fazia guerras de conquista e vendia negros bantos para que fossem escravizados no Brasil, reencarna neste país, e antes mesmo de nascer, começa a ser perseguido por falanges de inimigos.

Com apenas 45 dias de nascida a pequena Hortência chega ao Centro Espírita dando início a uma verdadeira guerra levada a efeito entre seus perseguidores e os fiadores de sua encarnação. Por um lado, africanos e sua magia negra; de outro, o

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guerreiro da lua, como o apelidaram os índios, ou ogum, a força avassaladora da lei, como se apresentava.

Para curar tantos escravos marcados a ferro em brasa, crianças esquartejadas e mulheres sedentas de vingança, uma equipe de médicos dirigida pelo luminoso Espírito Bezerra de Menezes, não poupou esforços no resgate, na aplicação de medicamentos e no aconselhamento necessário ao recomeço de caminhada.

Nesta obra os temas, obsessão, desobsessão, mediunidade, doutrinação, bem como outros afins, são estudados em sua prática, ensejando a que o aprendiz veja o desenrolar das batalhas como em um filme e a doutrinação como se estivesse dentro da sala mediúnica, tal a fidelidade com que é narrada.

Vejamos a história: o nascimento de Hortência, a pequena flor do campo, havia sido anunciado pelo “dragão do mar” um jangadeiro cearense que defendia a libertação dos escravos...