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A promessa-iv

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A PROMESSA

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IV. Os Achadiços

Em 1800, uma semana antes ou depois de nascer Sebastião, mais

coisa menos coisa, que eu não me lembro porque não era nascido,

quando os figos cuidavam de serem doces e tentadores nas

margens da levada para a Cabeça e num dia de calor ardente ou

‘chisneira’, como se diz em Loriga, nasceu também berrando uma

criança que prontamente foi baptizada, cuidando que não caísse

no Limbo, caso morresse sem o primeiro sacramento. O acto passou-

se muito longe da Serra da Estrela e numa capela, em terras

planas do Ribatejo. Filho indesejado de uma jovem solteira de uma

das melhores famílias da região, tinha como única defesa e

garante de vida a força do avô materno, pois até a avó cuidava

que ele fora fruto de uma maldição do Diabo.

A mãe fora violada por um rapaz que trabalhava nas cavalariças

da família. A rapariga debatia-se em gritos e arranhões,

enquanto era selvaticamente agredida. O barulho foi grande e

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depressa chegou gente a acudir. O agressor fugiu e foi procurado

dias sem conta, mas nunca foi encontrado. Para trás apenas

deixou uns papéis e um fio em ouro com um escaravelho egípcio

verde, em pedra sabão.

A moça desejou e tentou a morte por dias, mas depois de bem

lavada e sossegada, entre orações e pedidos de perdão ao divino,

acalmou e procurou esquecer tudo. Depois, quando os dias

pareciam ser maiores e as flores teimavam em florir, foi

desmaiando e enjoando, até que aquilo que parecia uma leve

dúvida se tornou certeza e pesadelo.

Entre choros para aqui e para ali, o desmancho estava logo

afastado à partida pelo facto de ser pecado e porque nunca um

Veiga tiraria a vida a um dos seus. Assim, nasceu; e ao nascer, sem

que a mãe quisesse ver a criança, dela foi afastado por vontade

dela e pelo destino clausura monástica da ‘Lectio Divina’ a que a

mãe seria obrigada, da Ordem do Carmo.

A criança cresceu assim com os avós maternos. O avô era um Veiga.

Último de uma linhagem de militares e fiéis incondicionais ao

Rei, a Portugal, à família e a Deus. Havia sangue e honra dos

seus em todas as batalhas do reino e de quase todas saíram

vitoriosos.

Este Veiga não era menos dos que os outros, embora tivesse

andado mais ausente do cuidado da paternidade, em terras da

Índia e do Brasil. Fora aliás no Brasil, que os Veigas tiveram

sempre uma segunda casa, antes e depois da descoberta de filões

de ouro. Os Veigas estiveram sempre na segunda linha de

importância nos Brasis, fossem os vice-reis Meneses, Noronhas ou

Mascarenhas. Com eles, também o território colonial cresceu.

Viram crescer do nada o Rio de Janeiro, Olinda, Maranhão.

Estiveram em momentos históricos e conheceram bem os rostos e as

feridas de Fernão dias Pais Leme, Manuel de Borba Gato, de Luís

Castanho de Almeida e de outros mais bandeirantes. Nos momentos

certos, beijaram a mão a Anchieta e a Manuel da Nóbrega. Foi

aliás um Veiga que aproveitou as dissensões entre as partes em

quezília para na Guerra das Emboadas, tomar o controlo das

minas e da exploração do ouro de Minas Gerais, mesmo que ainda

uma grande dose desaparecesse constantemente por contrabando. E

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quando a extracção do ouro parecia aligeirar, os portugueses

descobriram diamantes naquela terra abençoada por Deus e

bonita por natureza. Apesar de tudo, voltavam sempre ao Ribatejo,

como se a alma se misturasse com os cavalos, o gado e o cheiro da

terra.

Agora, os tempos eram outros e Portugal era uma panóplia de

políticas, interesses e velhacarias, em que tudo mudava

constantemente. Desde 1790 e pouco ou mesmo antes, falava-se de

mudar a Corte para o Brasil, entre duas correntes cada vez mais

assanhadas, a anglófila e a francófona. Um Veiga nunca optaria

por esta última, pois significava humilhação e traição a tudo o

que defenderia. Por isso, para este recém-avô, seriam dias cruéis.

De oito filhos, Veiga veria quatro morrer a defender Portugal e

fazê-lo pensar se as cinco quinas valeriam a sua dor, quando o

Rei e os seus filhos apreciavam as areias claras e as frutas

abundantes dos Brais. Todas as noites rezava para não perder a

calma, a alma e mais filhos.

O seu único neto era a sua única esperança. Criança nascida no

menos desejado momento e do menos querido dos pais, Veiga

perdoara tudo e até aquela ofensa ao rapaz violador, pois o

sorriso da criança desarmava a mais fria das criaturas…ou não.

O moço era da Cabeça e entre pontapés daqui e dacolá, um dia

fixou morada nas terras da família Veiga. Jovem e atrevido face

a uma moça que o mais desafiante na vida fora o ponto cruz,

facilmente conseguiu o que sempre desejava, pois desde nascença

que vivia de acordo com a direcção do vento e do capricho, sem

eira nem beira.

A Veiga sobrava apenas a esperança de um Mundo bem diferente e

melhor, em que o neto pudesse crescer alegremente. Dos dois

rapazes que tinha, o mais velho, Abílio, abraçou a religião e não

pudendo abraçar a Companhia de Jesus, como mais um dos seus

pilares, rumou a Roma e ao Vaticano e que, durante os

pontificados dos papas Pio VI e Pio VII, foi secretário particular

do cardeal polaco Tadeusz Brzozowski, mais tarde Prepósito Geral

da Companhia de Jesus, quando foi reestabelecida em 1814. Quanto

ao rapaz mais novo, António, o pai procurara educar em vão, pois

era o exemplo trágico do resultado dos mimos da mãe. Era pródigo

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nos gastos, vaidoso onde deveria ser modesto e estúpido nos

modos, pese embora a educação recebida. Meteu-se em negócios que

nada deram e nunca se deu ao trabalho de trabalhar. A

inteligência, por seu turno, também não ajudava e a pouca que

tina era gasta em provocar ou fazer mal aos outros; portanto, a

sua força era a sua enorme mediocridade e malvadez. Depois,

Veiga tinha igualmente duas filhas, quando nasceu o neto. A mais

velha seria forçosamente carmelita e a mais nova, Irene, embora

mais esperta que António e menos má, superava-lhe em preguiça.

Nunca precisou de fazer nada, pois passou do sustento materno

para a exploração marital de um francês, filho de um banqueiro,

que se tinha apaixonado por Lisboa. Os quatro filhos eram

assustadoramente diferentes, sendo os dois mais velhos parecidos

e os dois mais novos também…

E num ambiente tão pouco prometedor e convidativo, num Mundo

que terminava e noutro que parecia nascer em promessas de

Liberdade, mas que só espalhava a dor, o neto de Veiga foi

baptizado com o irónico nome de José Benedito.

Enquanto José dormia sobre cetim e brincava com guizo de prata,

Sebastião dormia em colchão de palha e entretinha-se a tirar a

palha pelos remendos ou buracos da capa do colchão. José

gastava as manhãs a montar póneis e Sebastião a pastar cabras.

Ao lanche, José comia scones e Sebastião mugia e chupava as

tetas das cabras e ovelhas. José crescia a aprender a fazer

bolas de sabão e a ver teatros de fantoches e Sebastião divertia-

se a tomar banho de ‘inqueiro’, nu em ‘loriguês’ e a procurar

grilos em buracos nas courelas e malhadas.

Sebastião dormia numa cama de ferro agarrado pelos braços

afagantes da mãe e José nunca vira a mãe, apesar de dormir numa

cama de estilo qualquer coisa... Sebastião sorria quando comia

arroz frio e José não chorava quando ouvia diariamente

palavras frias do seu tio António.

A mãe de Sebastião acariciava-o e cantava-lhe “Sebastião come

tudo, tudo, tudo”. O tio de José apertava-lhe as orelhas às

escondidas e chamava-lhe constantemente ‘bastardo’. Irene sempre

que via um asno na propriedade do pai, dizia “Lá vai um JB” e

ria, ria...

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Depois do nascimento de Sebastião e de José Benedito, a vida

continuou como tudo o resto. Em 1802, apresenta-se em Lisboa um

novo embaixador de França, o General Lannes, mas a festa foi

tamanha que muitos julgaram que Deus voltara à Terra para o

juízo final. E logo que Lannes chegou, exigiu por portas e

travessas que o intendente Pina Manique fosse corrido e assim

foi. Lannes era agora como que a segunda ou terceira figura da

Nação e tão importante era a criatura que a 13 de Junho de 1802,

na noite de Santo António – pasme-se o Senhor e todos os anjos ou

querubins -, Lisboa e todos os alfacinhas ouviram tocar a marcha

da Marselhesa em honra do Santo António. Dias depois, não sei

precisar o dia ou melhor a noite, funda-se a Loja Maçónica

Portuguesa, O Grande Oriente Lusitano. Lannes, em 19 de Dezembro

de 1803, consegue a convenção garantindo a neutralidade de

Portugal. No mesmo mês, nasce o Colégio da Luz como símbolo do

melhor que ainda sobrevivia de Portugal e que seria o

antecessor do Colégio Militar. Ainda no mesmo mês três marcos

importantes para o futuro da indústria portuguesa, a aula de

Desenho e Debuxo é incorporada na Academia Real da Marinha e

do Comércio, o luso-brasileiro José António Carvalho Rodrigues

da Silva escreve “A Memória Sobre o Estado Actual das Fábricas

de Lanifícios da Vila da Covilhã e das coisas que retardam a

sua última perfeição” e Manuel Luís da Veiga, comerciante,

cristão-novo e parente afastado de José Benedito escreve a obra

“Escola Mercantil sobre o Comércio” e outras obras surgem, como

as de Joaquim José Rodrigues de Brito, de José da Silva Lisboa

sobre economia e a de Soares Franco sobre Agricultura.

Regulamentam-se, nos finais de 1804, os aforamentos dos maninhos

e montados e afirma-se o “individualismo agrário”. Napoleão

reconhece a neutralidade e o peso do “partido francês” provoca a

ascensão de António de Araújo Azevedo à Secretaria dos Negócios

estrangeiros e na mesma noite celebra-se em Lisboa um tratado de

amizade e fraternidade entre as duas obediências maçónicas dos

dois Grandes Orientes de França e de Portugal.

A 20 de Abril de 1805 entrega cartas o novo embaixador de França

em Portugal, Junot que antes passara por Madrid para decidir

sobre a invasão franco-espanhola de Portugal que apesar de

neutral vivia infestado de tropas inglesas. Nessa altura o

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príncipe D. João anda mais ocupado com o sagrado e propõe-se a

criar seminários em todas as dioceses e também cemitérios

públicos. Por esse ano surge o cemitério de Loriga, no actual

local do jardim de Santo António. O cerco a Portugal desenha-se e

avisado o príncipe manda celebrar missas.

1807 é o ano tramado, mas naturalmente precedido de um não menos

ruim 1806, que de Novembro a finais de Dezembro temos Napoleão a

decretar o Bloqueio Continental e os ouvidos mocos de Portugal

às ordens do natural de Ajaccio, Napoleão Bonaparte. Dá-se a

Conspiração de Mafra onde vários nobres sonham com o

afastamento de D. João. Os pombeiros Pedro Baptista e Amaro José

chegam ao Cazembe, no interior da África Austral. O Duque de

Lafões morre e Veiga vai ao velório e missa de 7º dia…

O pior está para vir.