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Revista Virtual Direito Brasil – Volume 4 – nº 2 - 2010
A Reconstrução do Conceito de Cidadania numa
Perspectiva Pós-nacional 1
Danilo Vieira Vilela 2
Introdução
As drásticas transformações ocorridas no contexto internacional
sobretudo após o fim da Guerra Fria despertaram dúvidas acerca da real
importância da nacionalidade como pressuposto para o exercício dos direitos
decorrentes da cidadania no século XXI, sendo que dessas indagações surgiu a
necessidade de se reavaliar a estrutura do Estado Moderno em um contexto de
globalizações.
Assim, o presente artigo visa evidenciar os múltiplos fatores que
interferiram na definição clássica dos elementos do Estado Moderno, a começar
pela flexibilização do conceito de soberania, que direta e indiretamente repercutiu
na amplitude daquilo que deva ser entendido por território e povo, permitindo,
assim, a reconstrução do conceito de cidadania numa perspectiva pós-nacional.
Para tanto, busca-se em um primeiro momento discutir a cidadania na
perspectiva da nacionalidade, apontando suas origens e mutações na História,
desde a sua utilização como fundamento para a unificação de estados nacionais
como Itália e Alemanha, até os abusos perpetrados em nome do mesmo Estado-
nação alemão ante a política anti-semita de intolerância e genocídio.
A seguir, reconhecendo-se a II Guerra Mundial como um “divisor de
águas” na História da humanidade, analisa-se como o surgimento de uma nova
ética global no Pós-guerra, fundada no Direito Internacional dos Direitos
Humanos, foi capaz de reestruturar a relação de poderes entre os atores da
sociedade internacional e definir a cidadania universal a partir do consenso em
torno do “direito a ter direitos”.
1 Artigo desenvolvido na condição de aluno especial da disciplina Direito Comparado da Cidadania junto ao programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP. 2 Advogado. Bacharel em Direito e Mestre em Direito Obrigacional Público e Privado pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho - UNESP, Especialista em Direito Processual pela Universidade do Estado de Minas Gerais, Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UCDB e MBA em Gestão Empresarial pelo UNESC. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito no Centro Universitário do Espírito Santo (UNESC) e no curso de graduação em Direito da Universidade de Sorocaba - (UNISO). [email protected]
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Superados os efeitos da Guerra Fria e, definitivamente encerrado o
ciclo histórico que representou a II Guerra Mundial, diversas formas de
globalização são apontadas como razões para a desconstrução dos últimos
pilares ainda remanescentes da sociedade internacional westfaliana, e, nesse
contexto, novos agentes internacionais consolidam-se como ameaças à cidadania
nacional.
Caracterizadas as causas da transformação do Estado Moderno e
identificada a coexistência de diversos atores internacionais, na última parte do
trabalho pretende-se apontar as conseqüências de uma nova compreensão do
conceito de cidadania e as tendências para uma nova Era pós-nacional, bem
como os obstáculos ainda existentes que impedem que tais tendências sejam
apontadas como verdades absolutas em um mundo em constante e interminável
mutação.
Nessa esteira, parte-se de um enfoque crítico dialético para que o
objeto do estudo seja compreendido como resultante de múltiplas determinações
e fatores, sobretudo de ordem política e histórica.
Com isso, buscando-se um trabalho sistemático de organização lógica
de idéias e partindo-se de uma observação rigorosa de fatos particulares para se
chegar a conclusões gerais, é utilizado o método indutivo com o intuito de se
alcançar os objetivos traçados no plano de trabalho.
1. Origens e evolução histórica do conceito de cidadania
A idéia de nacionalidade já estava presente na Grécia e em Roma,
onde predominou a concepção segundo a qual o indivíduo pertencia primeiro à
família e depois ao Estado. Assim, tendo como fundamento os laços familiares, o
princípio do jus sanguinis foi o primeiro a disciplinar a matéria, e, com as
conquistas romanas, se espalhou rapidamente pela Europa.3
Todavia, a incerteza causada pela existência de diferentes regras
aplicáveis e a fixação do homem à terra, em decorrência da ascensão do regime
feudal, acabam por conduzir à falência o sistema do jus sanguinis, sendo
substituído, como resultado da evolução social, ainda na Idade Média, pelo jus
3 MELLO, Celso Albuquerque. Curso de direito internacional público. 15.ed. v. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p.994.
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soli que levava em consideração o local do nascimento do indivíduo para
determinar a sua nacionalidade e não a sua ancestralidade como o modelo
anterior.
Mais tarde, a Revolução Francesa, como reação lógica a quase tudo o
que fosse remanescente do feudalismo, abandonou o jus soli e fez com que
voltasse a ganhar força o sistema do jus sanguinis, tendo este sido consagrado
no Código de Napoleão e alcançado grande relevância na Europa Ocidental,
sofrendo, contudo, significativo abalo nos países do Novo Mundo, os quais, como
região de imigração, tinham interesse em tornar os estrangeiros membros da
comunidade nacional, adotando, assim, predominantemente o jus soli4.
Entretanto, o presente trabalho não visa discutir este ou aquele modelo,
até mesmo porque hoje, o que se vê na grande maioria dos países, inclusive no
Brasil, é uma mescla entre o sistema do jus soli e do jus sanguinis disciplinando
as formas de aquisição da nacionalidade originária.
Pretende-se, por outro lado, uma abordagem crítica do próprio direito
da nacionalidade, visando-se evidenciar as significativas mudanças por este
percebida no decorrer da história e as conseqüências para o exercício da
cidadania.
Assim, é imprescindível uma abordagem do Estado Moderno, a partir
de seus três principais elementos: soberania, território e povo.
Atributo fundamental do Estado, a soberania vem sofrendo importantes
variações no decorrer da História, de forma que a compreensão de seu conceito
na atualidade é muito diferente daquela de suas origens.
Criado o Estado Moderno, para se consolidar, o Poder Estatal
necessitava sobrepor-se, sobretudo, a dois outros poderes, quais sejam:
internamente, o poder feudal e externamente, o poder da Igreja Católica. E da
concentração de forças e competências para enfrentar tais poderes é que surgiu a
noção de soberania, imaginando-se, a princípio, que representaria uma categoria
intangível, definitiva e intransformável do Direito das gentes5.
4 MELLO, Celso Albuquerque. Curso de direito internacional público. 15.ed. v. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p.994. 5 MIRANDA, F.C. Pontes de. Tratado de direito internacional privado. Tomo I. Rio de Janeiro: José Olympio, 1935. p. 07-08.
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Ou seja, ao figurar como um dos elementos constitutivos do Estado
Moderno, a soberania surgiu numa concepção absoluta, com base na qual os
Estados, partindo-se de uma compreensão dualista do direito, poderiam fazer o
que bem entendessem dentro de suas fronteiras, de forma a fixar normas cujo
alcance e interesse seriam apenas daquele respectivo Estado.
É essa a concepção inicial que fez surgir na doutrina a suposição
quanto à existência de duas realidades, pelo menos a princípio, impenetráveis: a
soberania interna, que representa a “exclusividade de poderes normativos e de
ação política no relativo ao sistema normativo interno” e a soberania externa,
como “elemento que mais precisamente definiria a personalidade do Estado, no
universo das relações internacionais e que marcaria sua individualidade”6.
Com base nessa compreensão, a expressão “soberania” foi empregada
durante séculos, fundamentando a atuação dos Estados como sujeitos do Direito
Internacional Público em importantes contextos históricos, dentre os quais se
destaca a Paz de Westfália de 1648.
Todavia, se a concepção absoluta do conceito de soberania foi decisiva
para a consolidação do Estado Moderno, mais tarde, serviu ainda para
fundamentar, dentre outros, o totalitarismo nazista alemão, findo o qual, coube à
Sociedade Internacional, representada pelas Nações Unidas, reapreciar a
amplitude do conceito, vindo a abalar as estruturas da concepção Moderna de
Estado, o que, conforme a seguir será demonstrado, repercutiu também nos
demais elementos (povo e território).
Já o território, pode ser considerado como o espaço onde o “Estado
exerce jurisdição (termo preferido pela doutrina anglo-saxônica), o que vale dizer
que detém uma série de competências para atuar com autoridade (expressão
mais ao gosto dos autores da escola francesa)”, conforme ensina Francisco
Rezek7.
Ou seja, é a área terrestre do Estado, somada aos espaços nos quais o
Direito Internacional reconhece que o Estado exerça a sua jurisdição genérica e
exclusiva. Salvo pontos de disputas espalhados por todos os continentes do
6 SOARES, Guido Fernando Silva. Curso de direito internacional público. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 145. 7 Direito internacional público: curso elementar. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 161.
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planeta, a regra na atualidade é a existência de fronteiras fixas e bem delimitadas,
o que caracterizam pormenorizadamente as dimensões territoriais dos Estados.
Todavia, ainda que o elemento “território” seja, salvo exceções, fixo e
determinado, pode-se dizer que, assim como a soberania e o povo, também vem
sofrendo importantes reinterpretações nas últimas décadas, sobretudo em
decorrência do avanço das novas tecnologias da comunicação, cuja repercussão
é imediata naquilo que se apontou como “jurisdição estatal”.
Dessa forma, ainda que as fronteiras não tenham passado por grandes
transformações, não há como negar que o avanço do comércio eletrônico e da
era digital minimizou sobremaneira os limites entre Estados, povos e culturas,
levando a uma necessária reinterpretação acerca da relevância que deva ser
dada aos limites geográficos de cada país.
Por fim, como terceiro elemento deve ser destacado o povo, qual seja,
o “conjunto de pessoas que se unem para constituir um Estado, criando um
vínculo jurídico-político de natureza permanente”8.
Ao analisar o povo como elemento do Estado, a doutrina procura,
inicialmente, distinguir o conceito povo do conceito de população, entendendo-se
este como “a expressão numérica do conjunto de pessoas que vivem num
Estado, incluindo nacionais e estrangeiros” e de nação, este último mais
complexo e subjetivo, compreendido como “comunidade histórico-cultural”.9
Assim, as expressões “povo”, “nação” e “população” merecem ser
tratadas com o devido cuidado, por abrangerem conceitos com alcance
diferentes, devendo-se frisar que da idéia de nação, decorre nacionalidade, que,
em “sentido sociológico, corresponde ao grupo de indivíduos que possuem a
mesma língua, raça, religião e possuem um ‘querer viver comum, sendo que
nesse sentido ela deu origem ao princípio das nacionalidades, em cujo nome foi
feita a unificação alemã e italiana”10.
Considerando-se a globalização e o cosmopolitismo contemporâneos,
pode-se afirmar que a idéia de que cada nação deva corresponder a um Estado
8 SILVA, Roberto Luiz. Direito internacional público. 2.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 166. 9 Ibid. p. 165. 10 MELLO, Celso Albuquerque. Curso de direito internacional público. 15.ed. v. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p.991.
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encontra-se praticamente superada, sem, contudo, deixar de lado questões
polêmicas envolvendo, dentre outros, curdos e palestinos.
Talvez a crescente aproximação entre os povos decorrente dos
acontecimentos que marcaram o último quartel do século XX, tais como o fim da
Guerra Fria e a globalização econômica, somados ao espírito de cooperação pós-
II Guerra, que encontra nas Nações Unidas seu maior expoente, tenha sido
suficiente para evidenciar que os chamados laços históricos-culturais sejam, por
um lado, fluidos no transcorrer das gerações e, por outro, insuficientes para a
caracterização de um povo como elemento de um Estado e, muito menos de
objetivar a determinação de fronteiras a partir de um Estado Nação.
Por outro lado, o próprio conceito de nação talvez seja insuficiente em
determinados contextos históricos e geográficos para significar laços entre os
povos. Assim entende-se ser o caso do Brasil, onde, ante a sua História, e sua
dimensão territorial, a união de seu povo e dos vinte e sete estados membros que
o compõem mais o Distrito Federal, seja muito mais em razão de um pacto
político oriundo da Constituição Federal, optando-se, nesse sentido, por uma
visão mais contratualista.
Na verdade, ainda que a língua portuguesa possa ser um significativo
diferenciador do povo brasileiro na América do Sul, é realmente de se questionar
se realmente há um vínculo histórico-cultural a ponto de se afirmar que exista
uma verdadeira nação brasileira, o que, por si só, coloca em xeque a análise do
conceito.
Todavia, ainda que haja concordância no sentido de não haver uma
“nação brasileira”, não há a menor dúvida de quais sejam os limites
constitucionalmente fixados da nacionalidade brasileira.
Todavia, como já mencionado, em outros contextos, tal como no
processo de unificação italiana, a nacionalidade foi alçada à posição de elemento
máximo na integração dos povos, nesse sentido a clássica obra de Pasquale
Stanislao Mancini que, ao tratar em seu primeiro capítulo sobre a nacionalidade
como fundamento das gentes, estabelece, dentre outros aspectos, que:
Um Estado em que muitas viçosas nacionalidades são sufocadas numa união forçada, não é um corpo político, mas um monstro incapaz de transmitir vida. As nações que não possuem governo saído das próprias entranhas e que servem a leis a elas impostas de fora não têm mais
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vontade jurídica, já se tornaram meios de fins de outrem, portanto, coisas. 11
Assim, estabelece o autor italiano, no ápice da relevância dada à
nacionalidade, que esta, como a idéia-mãe mãe da ciência do Direito
Internacional Privado, funda-se no “grande fato natural da divisão da humanidade
em nacionalidades distintas por caracteres bem mais certos e duradouros que os
instáveis arbítrios das combinações diplomáticas”12 e, com isso, busca
fundamentos para a bem sucedida campanha em prol da unificação da Itália.
Desta forma, espera-se ter demonstrado como a idéia de Estado
Moderno, somada à de Estado Nacional, foram relevantes na configuração do
conceito de nacionalidade, o qual, face às transformações dos próprios elementos
que compõem o estado, vem passando por significativas transformações que
conduzem à conclusão de que seu alcance é, hoje, extremamente diferente
daquele dado por Mancini em sua preleção ministrada no Curso de Direito
Internacional Marítimo da Real Universidade de Turim em 22 de janeiro de 1851.
Nessa perspectiva, o estudo do direito à nacionalidade chega ao século
XXI estampado nas principais constituições, dentre elas na brasileira, com
principalmente duas razões de ser: primeiramente como assunto de direito
interno, decorrente da atuação soberana do Estado no sentido de determinar
quem são seus nacionais e qual o alcance de seus direitos e, em um segundo
momento, como um dos principais elementos de conexão do Direito Internacional
Privado.
No primeiro plano, o estudo da nacionalidade abrange importantes
aspectos da relação jurídica estabelecida entre o Estado e seus súditos, no
âmbito da qual são tratados, dentre outros, assuntos como a proteção
diplomática, os direitos políticos, a possibilidade de ocupação de unções públicas,
o serviço militar, o exercício de determinados direitos privados e profissionais e,
por fim, os limites do poder de expulsão e extradição.
Nesse aspecto é imperiosa a distinção entre nacionalidade, cidadania e
naturalidade. Assim:
Naturalidade é meramente o vínculo material (geográfico). Cidadania se refere apenas aos direitos políticos; entretanto, em alguns países (EUA)
11 MANCINI, Pasquale Stanislao. Direito internacional. Ijuí-RS: UNIJUÍ, 2003. p. 66. 12 Ibid. p. 70.
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esta palavra (“citizenship”) é utilizada como sinônimo de nacionalidade. O passaporte de um soviético tinha como “cidadania” (soviética) e “nacionalidade” (russo, “uzbek”, etc.). Tem-se observado que a confusão entre nacionalidade e cidadania advém dos EUA e os seus autores confundem as duas noções. No Brasil Colônia falava-se em naturalidade. No Império e na 1ª República usava-se a palavra cidadania. O primeiro autor a usar a palavra nacionalidade foi Pimenta Bueno. A partir de 1930 é que se passou a distinguir cidadania, nacionalidade e naturalidade. A partir da Constituição de 1934 usava-se nacionalidade.13
Mesmo considerando-se que a doutrina, em um primeiro momento
distingue nacionalidade de cidadania, atribuindo a esta última um vínculo com o
exercício dos direitos políticos, opta-se, para a continuidade do presente trabalho,
por abordar o segundo conceito não apenas em sua dimensão política, mas sim
numa perspectiva de exercício de direitos fundamentais tal como estampado na
Carta dos Direitos do Homem e do “Cidadão” de 1789.
Assim, a cidadania é tratada como atributo de todos os indivíduos para
o gozo de direitos fundamentais, sendo nessa perspectiva, diferenciada do
conceito de nacionalidade, cuja origem é o já mencionado vínculo histórico-
cultural caracterizador da nação, que hoje se funda na fixação de um vínculo
jurídico-político com o Estado Moderno, sendo objeto central do presente artigo
demonstrar como a cidadania, inicialmente inseparável da nacionalidade, hoje
pode ser claramente abordada numa perspectiva pós-nacional.
Ainda como vínculo jurídico-político que une um indivíduo a um Estado,
a nacionalidade foi alçada à posição de direito fundamental, estando estampada
nos principais documentos internacionais sobre o assunto.
Sob esse prisma, a Declaração Universal dos Direitos do Homem
estabelece em seu art. XV que: “1. Todo homem tem direito a uma nacionalidade.
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de
mudar de nacionalidade.”
Já o Pacto dos Direitos Civis e Políticos de 1966, visando garantir a
todos o direito a uma nacionalidade, determina, no art. 24, que “toda criança tem
direito a adquirir uma nacionalidade.
13 MELLO, Celso Albuquerque. Curso de direito internacional público. 15.ed. v. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p.1004.
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Por sua vez, a Convenção Americana sobre direitos humanos
estabelece a nacionalidade como direito fundamental em seu artigo 20,
determinando que:
1. Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade. 2. Toda pessoa tem direito à nacionalidade do Estado em cujo território houver nascido, se não tiver direito a outra. 3. A ninguém se deve privar arbitrariamente de sua nacionalidade, nem do direito de mudá-la.
Observa-se, assim, diante da análise dos tratados que o tema
nacionalidade, não obstante estar diretamente atrelado à soberania dos Estados,
sofreu um processo de internacionalização, sendo preocupação de importantes
normas internacionais, disciplinar seu alcance, evidenciando-se a necessidade de
se fixar normas para se atribuir nacionalidade àquele que, por alguma razão, não
a tenha obtido mediante a simples aplicação da norma interna dos Estados,
evitando-se ao máximo a apatridía.
Esse também é o escopo da Convenção sobre nacionalidade de
Estrasburgo que, em 1997 fixou dentre outros que:
a) a legislação sobre nacionalidade é de competência do estado. Os demais estados devem respeitar a legislação; b) cada indivíduo tem direito a uma nacionalidade; c) o casamento não é modo de aquisição nem de perda de nacionalidade; d) o estado deve dar a sua nacionalidade aos recém-nascidos no seu território que de outro modo seriam apátridas.
Indiscutível foi, portanto, a delimitação da nacionalidade para o Estado
Moderno já que somente a partir dela, foi possível o estabelecimento, com
exatidão quase absoluta, do povo, enquanto um dos elementos componentes do
Estado.
Nesse sentido, também merece aplausos a atitude da sociedade
internacional ao internacionalizar o tratamento do assunto, cuja repercussão
atinge de imediato a situação do indivíduo, seja no exercício de seus direitos
como estrangeiro (daí a nacionalidade como elemento de conexão no Direito
Internacional Privado), seja no exercício de vários direitos decorrentes da sua
relação jurídico-política para com o Estado.
Todavia, esse mesmo conceito de nacionalidade que serviu para unir
pessoas com vínculos comuns em torno de um único Estado, também serviu e
ainda serve em uma espécie de contra-fluxo da História, como fundamento para
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segregação e desrespeito às minorias, sendo o maior de todos os trágicos
exemplos, a Alemanha sob o regime totalitarista onde, elevando-se aos extremos
os vínculos étnicos e culturais do povo alemão, o Estado nazista subtraiu de todos
os não nacionais, todo e qualquer direito.
Ou seja, a mesma nacionalidade que uniu o povo italiano e alemão,
dentre outros, alimentou ódios e serviu de fundamento para a doutrina nazista que
consistia na superioridade racial dos arianos, fundamentando a intolerância, a
não-aceitação da diversidade, o repúdio à alteridade a ao outro14.
Assim, a ordem do Führer para que os judeus fossem exterminados
fisicamente, sob o codinome de “Solução Final”15 e os demais acontecimentos
que abalaram o mundo durante a II Guerra Mundial redundaram numa
reinterpretação do conceito de soberania, que, por sua vez, mais tarde abalaria a
clássica concepção dos demais elementos do Estado Moderno, abrindo espaços
para a discussão de uma cidadania verdadeiramente pós-nacional.
2. A cidadania universal como fundamento ético do mundo pós II
Guerra
As atrocidades decorrentes da II Guerra fizeram surgir uma nova
consciência ética na humanidade que progressivamente deu origem ao sistema
internacional de proteção aos direitos humanos.
A política anti-semita, a Solução Final e outros crimes de guerra
perpetrados durante a II Guerra, levaram os vencedores (sobretudo URSS,
Inglaterra, França e EUA) a estabelecer Tribunais Penais Internacionais em
Nuremberg e em Tóquio para o julgamento dos principais responsáveis.
Ainda que alguns possam apontá-los como tribunais de exceção, uma
reinterpretação da História sob a visão do século XXI, evidencia que, não
obstante não haverem normas claras que fixassem muitos dos procedimentos
observados em ambos os tribunais, o costume internacional e, sobretudo, as
normas de direito internacional humanitário, eram suficientes para embasar as
acusações que conduziram tais julgamentos.
14 GUERRA, Bernardo Pereira de Lucena Rodrigues. Direito internacional dos direitos humanos: nova mentalidade emergente pós-1945. Curitiba: Juruá, 2006. p. 30. 15 ARENDT, Hannah. Einchmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 2003. p. 98-99.
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Resta, todavia, a insuperável crítica pelo fato de os Tribunais de Tóquio
e de Nuremberg terem sido tribunais de vencedores contra vencidos, o que
impediu, por exemplo, que a maior de todas as atrocidades perpetradas durante a
guerra, qual seja, a utilização de armas nucleares pelos Estados Unidos
deixassem de ser julgados e punidos.
Entretanto, tais críticas, por mais severas que possam ser, jamais terão
o condão de reduzir a importância histórica dos julgamentos, sobretudo daquele
ocorrido em Nuremberg, pois dele pode-se afirmar, surgiu uma nova
compreensão dos limites do poder estatal em detrimento do crescente poder da
sociedade internacional já que pela primeira vez indivíduos não puderam utilizar
da soberania do Estado como um escudo impeditivo de sua responsabilização
pelos crimes praticados em consonância com o ordenamento de um Estado.
Sobre as críticas ao Tribunal de Nuremberg merecem ser lembradas as
palavras de Jacques-bernard Herzog:
Justiça de vencedores? Pode ser. Admitamo-la para facilitar a argumentação. Mas, afinal de contas, melhor foi que os vencedores tivessem exercido a sua justiça à luz meridiana de um pretório aberto ao controle da opinião pública internacional, do que na penumbra de uma floresta e no pipocar das metralhadoras da vingança.16
O grande legado, todavia, do Julgamento de Nuremberg é o fato de ter,
pela primeira vez, evidenciado que a soberania não poderia ser concebida como
“inalienável, indivisível, imprescritível, perpétua e absoluta”, como queriam seus
primeiros estudiosos17 já que tal compreensão foi um dos fatores responsáveis
por permitir à Alemanha nazista a efetivação de um dos maiores genocídios da
História.
Ainda com base na concepção absoluta da soberania é que os
advogados dos réus submetidos ao Tribunal de Nuremberg tentaram demonstrar
que determinados atos praticados deveriam ser concebidos como “atos de
governo, somente podendo ser imputados ao Estado, jamais aos indivíduos que
16 A justiça penal internacional vinte anos após Nuremberg. Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal. S.1., v. 4, n. 14, p. 37, jul./set. 1996 Apud FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: dos precedentes à confirmação de seus princípios. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 69. 17 OLIVEIRA, Liziane Paixão Silva. O conceito de soberania perante a globalização. Revista CEJ. Brasília, n. 32, jan./mar. 2006, p. 83.
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12
os haviam praticado na posição de órgãos estatais”18; argumento diretamente
refutado por alguns dos princípios do Estatuto do Tribunal Militar Internacional de
Nuremberg, mais tarde considerados pelas Nações Unidas, o direito então em
vigor19:
• Toda pessoa que comete um ato que constitui crime segundo o direito internacional é responsável por tal e passível de punição.
• O fato de que a legislação nacional não impõe sanção por um ato que constitui crime internacional não exime a pessoa que o cometeu de responsabilidade perante o direito internacional.
• O fato de que o autor de um crime internacional agiu na qualidade de chefe de Estado ou de funcionário não o exime de responsabilidade perante o direito internacional.
• O fato de que uma pessoa agiu em cumprimento de uma ordem de seu governo ou de um superior não o exime de responsabilidade perante o direito internacional, desde que uma escolha moral lhe fosse de fato possível.
O fim da II Guerra Mundial, O Julgamento de Nuremberg e a criação
das Nações Unidas com seu respectivo sistema de proteção aos direitos
humanos, representaram a eclosão de uma nova ética universal que, além de
alçar os indivíduos à condição de sujeitos de direito internacional, concretizaram a
reformulação do conceito de soberania ao sujeitarem os Estados e os indivíduos,
às normas do Direito Internacional.
Também tendo como pressuposto a flexibilização da soberania ante a
relevância das questões ligadas aos direitos humanos é que a Organização das
Nações Unidas foi criada e, com ela, um sistema internacional de proteção aos
direitos humanos, a partir da Declaração Universal de dezembro de 1948, um dos
principais marcos no processo que Norberto Bobbio denominou como a plena
realização dos direitos do homem como direitos positivos universais.20
Mais tarde, com o objetivo de transformar em normas os princípios
elencados na Declaração, foram adotados, em 1966 os Pactos de Direitos Civis e
Políticos e de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, caracterizados como os
“três principais elementos que dão sustentação a toda a arquitetura internacional
de normas de proteção aos Direitos Humanos”.21
18 FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nuremberg: dos precedentes à confirmação de seus princípios. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 85. 19 Ibid., p. 84-92. 20 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 50. 21 ALVES, José Augusto Lindgren. A arquitetura internacional dos direitos humanos. São Paulo: FTD, 1997. p. 24.
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Paralelamente a esse sistema geral de proteção aos direitos humanos,
desenvolveu-se o chamado Sistema Especial que, ao delimitar sujeitos ou
contextos específicos, fixa normas internacionais aplicáveis a situações de maior
vulnerabilidade, dentre os quais merece destaque a Convenção para a prevenção
e repressão do crime de Genocídio (1948), a Convenção contra a tortura e outros
tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes (1984), a Convenção
Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial
(1965), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), a Convenção sobre a
eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (1979), dentre
outros.
Fugiria à proposta do presente trabalho uma análise pormenorizada de
cada uma das principais Convenções ou Sistemas internacionais de proteção aos
direitos humanos, cabendo, entretanto, reiterar que a consolidação de tal modelo,
evidencia o surgimento de uma nova Era nas relações internacionais, na qual sob
a égide de valores comuns, Estados de todo o globo, representantes das mais
variadas culturas, optam, ou, pelo menos, aceitam, a interferência da Sociedade
Internacional naquilo que outrora foi considerado como sendo assunto de
interesse apenas interno.
Ou seja, da mesma forma que as revoluções do século XVIII
evidenciaram a necessidade de se fixar padrões mínimos de proteção dos
indivíduos, a II Guerra Mundial demonstrou que tal proteção não pode nem deve
operar-se somente nos limites internos dos Estados, mas que, ao contrário, deve
ser assunto de interesse internacional; o que só é possível, graças ao
desmantelamento da noção de soberania absoluta que durante séculos
disciplinou o Direito Internacional numa perspectiva Westfaliana.
Assim, nessa perspectiva de “ressurgimento dos valores universais de
paz e justiça e como desejo de criar uma nova Ordem Jurídica Internacional”22 é
que surgiu no cenário do Direito Internacional a concepção das chamadas normas
imperativas de Direito Internacional ou, simplesmente, jus cogens, as quais
22 FIORATI, Jete Jane. Jus cogens: as normas imperativas de direito internacional público como modalidade extintiva dos tratados internacionais. Franca: UNESP-FHDSS, 2002. p. 52.
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configuram-se como um mínimo “legal de asseguramento da ordem mundial, além
de manifestar a crescente institucionalização da sociedade internacional”23.
Ao levar para si a responsabilidade de garantir padrões mínimos de
direitos aos seres humanos é que o Direito Internacional passa a promover aquilo
que, mais uma vez, Hannah Arendt, denomina como o “direito a ter direitos”24, o
que, para Celso Lafer significa pertencer, pelo vínculo da cidadania, a algum tipo
de comunidade juridicamente organizada e viver numa estrutura onde se é
julgado por ações e opiniões, por obra do princípio da legalidade25.
Essa crescente internacionalização de assuntos internos já seria, por si
só, suficiente para demonstrar a quebra de paradigmas decorrente da reinvenção
da soberania, o que acaba por atingir a própria concepção atual de Estado.
Com o objetivo de demonstrar que esse processo de interferência do
Direito das gentes em assuntos internos dos Estados é algo contínuo e que conta
com a expressa anuência do Estado enquanto sujeito do Direito Internacional, é
cabível a menção à Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969 que,
finalmente, no ano de 2009 teve, no Brasil a autorização do Congresso Nacional
para que o Presidente a ratifique.
Tal Convenção, em seu artigo 27 que trata do direito interno e
observância dos tratados, traz uma das principais normas do direito dos tratados,
ao disciplinar que: “uma parte não pode invocar as disposições de seu direito
interno para justificar o inadimplemento de um tratado”.
Essa norma, e sua aceitação expressa por parte do Congresso
Nacional brasileiro pode conduzir à conclusão de que, se ainda não for possível
se falar em um monismo nos moldes preconizados por Hans Kelsen, não há
dúvidas que em diversos aspectos o Direito Interno vem cedendo espaço à
interferência do Direito Internacional, o que, mais uma vez, evidencia a
minimização do Poder Estatal ao disciplinar as regras sobre suas competências e
jurisdição internas.
Nesse sentido:
23 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. São Paulo: RT, 2006. p.108. 24 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. 6. reimp. São Paulo: Cia das Letras, 2006. 25 A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Cia das Letras, 1988. p. 154.
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Toda a evolução técnico-jurídica apontada tem, em última análise, a tendência para fazer desaparecer a linha divisória entre Direito internacional e ordem jurídica do Estado singular, por forma que o último termo da real evolução jurídica, dirigida a uma centralização cada vez maior, parece ser a unidade de organização de uma comunidade universal de Direito mundial, quer dizer, a formação de um Estado mundial. Presentemente, no entanto, ainda não se pode falar de uma tal comunidade. Apenas existe uma unidade cognoscitiva de todo o Direito, o que significa que podemos conceber o conjunto formado pelo Direito internacional e as ordens jurídicas nacionais como um sistema unitário de normas – justamente como estamos acostumados a considerar como uma unidade a ordem jurídica do Estado singular.26
3. A nova ordem mundial pós Guerra Fria e a globalização
econômica
Não obstante a consolidação de uma nova mentalidade no pós-II
Guerra, caracterizada pela noção do “direito a ter direitos”, assegurada pelo
Direito Internacional dos Direitos Humanos, a evolução desses direitos, ou de
outros anseios da Sociedade Internacional viu-se frustrada graças à eclosão de
um novo conflito de natureza político-ideológica, envolvendo as duas
superpotências que emergiram do conflito (URSS e EUA), historicamente
denominado de Guerra Fria.
Nesse contexto,
“[...] apesar da retórica apocalíptica de ambos os lados, mas sobretudo do lado americano, os governos das duas superpotências aceitaram a distribuição global de forças no fim da Segunda Guerra Mundial, que equivalia a um equilíbrio de poder desigual mas não contestado em sua essência. A URSS controlava uma parte do globo, ou sobre ela exercia predominante influência – a zona ocupada pelo Exército Vermelho e/ou outras forças armadas comunistas no término da guerra – e não tentava ampliá-la com o uso da força militar. Os EUA exerciam controle e predominância sobre o resto do mundo capitalista, além do hemisfério norte e oceanos, assumindo o que restava da velha hegemonia imperial das antigas potências coloniais. Em troca, não intervinha na zona aceita de hegemonia soviética.”27
Todavia, a década de oitenta do século XX trouxe, com a queda do
Muro de Berlim e da Cortina de Ferro na Europa, o fim da Guerra Fria e, com os
anos noventa, a intensificação da globalização que, dentre outros aspectos,
“coloca a questão de se saber se tanto o controle social quanto a emancipação
social deverão ser deslocados para o nível global”, a partir de concepção de uma
26 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 364. 27 HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Cia das Letras, 2003. p. 224.
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“sociedade civil global, governo global, equidade global e cidadania pós-
nacional”.28 (grifo nosso)
Lamentavelmente a expressão “globalização” no meio político e no
espaço acadêmico acabou por tornar-se um jargão utilizado em conceitos mais
variados para expressar diferentes fatos e sentimentos. Nesse sentido, para se
conhecer os verdadeiros impactos da globalização no direito da cidadania e na
idéia de nacionalidade, é imprescindível, antes de tudo, delimitar o alcance que se
pretende dar à expressão, partindo-se, para tanto, da lição dada por Boaventura
de Souza Santos.
Para o referido autor português, “globalização é o processo pelo qual
determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e,
ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de considerar como sendo local outra
condição social ou entidade rival”. 29 Todavia, cumpre frisar, Boaventura Santos,
reconhecendo a existência de uma série de assimetrias, opta por considerar a
globalização no plural, identificando quatro formas pelas quais esta se manifesta.
Primeiramente aborda as duas formas de globalização de cima para
baixo, quais sejam: o globalismo localizado e o localismo globalizado. Enquanto o
primeiro caracteriza-se como “o processo pelo qual determinado fenômeno local é
globalizado com sucesso”, tendo como exemplos dados pelo próprio autor a
globalização do modelo fast-food ou da música estadunidense; o segundo modelo
consiste no “impacto específico de práticas e imperativos transnacionais nas
condições locais, as quais são, por essa via, desestruturadas e reestruturadas de
modo a responder a esses imperativos transnacionais”, tendo-se como exemplos,
dentre outros, o desmatamento maciço de recursos naturais para o pagamento da
dívida externa e a conversão da agricultura de subsistência em agricultura para a
exportação30.
Os dois outros modelos, que representam uma espécie de contra-
globalização, ou globalização de baixo para cima, manifestam-se a partir do
cosmopolitismo, qual seja:
conjunto muito vasto e heterogêneo de iniciativas, movimentos e organizações que partilham a luta contra a exclusão e a discriminação
28 SANTOS, Boaventura de Souza. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 432. 29 Ibid., p. 433. 30 Ibid.,p. 435.
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sociais e a destruição ambiental produzidos pelos localismos globalizados e pelos globalismos localizados, recorrendo a articulações transnacionais tornadas possíveis pela revolução das tecnologias de informação e de comunicação31.
Por fim, e também como forma de manifestação da globalização de
baixo para cima, tem-se, na concepção de Boaventura de Souza Santos, a
emergência de temas que pela sua natureza são tão globais quanto o planeta,
sendo chamados de patrimônio comum da humanidade, dentre os quais merece
destaque a sustentabilidade e a proteção da biodiversidade na Terra.32
Concordando-se com o autor, é possível reconhecer as diversas formas
de globalizações como responsáveis por remodelar a estrutura de poder a partir
dos anos noventa do século passado, o que culmina por colocar em xeque não
apenas a soberania, já há muito flexibilizada, mas a própria noção de cidadania e
nação.
Em um primeiro momento, imediatamente posterior ao fim da Guerra
Fria, é possível perceber a ocorrência de movimentos paradoxais como
decorrentes da ampliação de regimes democrático-liberais: por um lado, vê-se o
aprofundamento da cidadania democrática, na medida em que em certos países
tem-se pela primeira vez a possibilidade de participação eleitoral popular e a
emergência de novos atores no contexto político local. Por outro, o espaço
surgido no pós-Guerra Fria é preenchido por conflitos étnicos abafados por
décadas, cujos mais drásticos exemplos são aqueles que resultaram em
genocídios na ex-Iugoslávia e em Ruanda.33
Noutro prisma, vale destacar que a já contraditória relação entre
cidadania nacional e globalizações, passa a sofrer outro tipo de pressão
decorrente do fortalecimento de novos atores no cenário internacional, seja na
função de criadores de normas, seja na consolidação enquanto formas não
estatais de governança.
A título ilustrativo pode-se inicialmente apontar a ampliação do espectro
de atuação dos agentes do Direito Internacional Público, que, através daquilo que
31 SANTOS, Boaventura de Souza. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 436. 32 Ibid., p. 437. 33 VIEIRA, Listz. Cidadania global e estado nacional. Disponível em: http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/buscalegis/article/viewFile/21829/21393 Acesso em 03 nov. 2009.
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a doutrina chama de verticalização e horizontalização, passa a interferir cada vez
mais em assuntos antes reservados ao direito interno e, por outro lado, a
disciplinar ramos mais diversos das relações humanas e estatais34.
Nesse contexto vale mencionar a criação do tribunal Penal Internacional
que, a partir do Estatuto de Roma de 1998, representa um antigo anseio da
Sociedade Internacional, sendo um locus destinado ao julgamento de indivíduos
responsáveis pela prática de crimes de guerra, crimes contra a humanidade,
genocídio e agressões, este último tipo ainda dependente de regulamentação.
Ainda nessa perspectiva da consolidação de novos agentes
internacionais como ameaças à cidadania nacional, tem-se o fortalecimento dos
blocos de integração regional, valendo destacar o Mercosul e, sobretudo, a União
Européia que, com o tratado de Maastricht consagra uma idéia que desconecta a
cidadania da nacionalidade cujo efeito, ainda que simbólico, possui relevante
significado, já que, dentre outros aspectos, insere a cidadania supranacional
como uma segunda camada, adicionada à cidadania nacional.35
Também nesse contexto, merece destaque o fortalecimento de
Organizações Internacionais cujas normas e decisões bem sendo cada vez mais
aceitas no âmbito dos Estados, tais como aquelas advindas da Corte e da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos para o Brasil, merecendo
destaque o caso Maria da Penha que resultou na criação da lei 11.340 que criou
mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher e o caso
Ximenes Lopes, cuja condenação foi perfeitamente acatada e exemplarmente
cumprida pelo Estado brasileiro.
A verdade é que essas múltiplas globalizações, somadas à
consolidação de novos atores no cenário internacional e ao fluxo cada vez mais
desterritorializado do capital, retiraram do Estado o monopólio na elaboração das
normas e a capacidade de elaborar projetos nacionais autônomos.
Estando a cidadania vinculada ao exercício de direitos por parte do
indivíduo, fica evidenciada a perda de poder por parte do estado, sobretudo na
medida em que este não mais detém o monopólio na criação e/ou na execução 34 SOARES, Guido Fernando Silva. Curso de direito internacional público. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 32-33. 35 VIEIRA, Listz. Cidadania global e estado nacional. Disponível em: http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/buscalegis/article/viewFile/21829/21393 Acesso em 03 nov. 2009.
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dessas normas assecuratórias de direitos, levando, cada vez mais, à aceitação de
uma cidadania universal na concepção arendtiana.
4. As conseqüências de uma nova compreensão do conceito de
cidadania
Conforme demonstrado até aqui, não é prematuro dizer que o Estado
do século XXI não é mais o mesmo que aquele de concepção Westfaliana, o que
traz como conseqüência, o fato de que também seus elementos passaram por
significativas transformações, tendo como dois importantes marcos a II Guerra e o
Final da Guerra Fria.
A soberania não pode mais ser concebida numa concepção fechada e
absoluta. Ao contrário, com a consolidação de novos atores na seara
internacional e a interferência cada vez maior do Direito Internacional em
assuntos tradicionalmente de competência exclusiva do Estado, a soberania vem
se flexibilizando a cada dia, como comprovam o Sistema Internacional de
proteção aos Direitos Humanos e os blocos econômicos, cujo exemplo mais
pujante é a União Européia.
Também o território não apresenta as mesmas feições que aquelas
oriundas do século XVIII e XIX já que, a cada instante é menor a importância dos
limites materiais de cada Estado, frente à consolidação de espaços virtuais
transfronteiriços, por onde circulam capitais e, consequentemente, poder.
Por fim, a própria noção de povo tem sua relevância reduzida à medida
em que é cada vez menor a diferença do tratamento dispensado a estrangeiros,
seja em decorrência da consolidação da noção de “cidadania internacional”, seja
por causa das facilidades de deslocamento que conferem ao indivíduo uma
perspectiva cada vez mais cosmopolita36.
Diante de tais fatores, é plenamente possível afirmar que a cidadania,
umbilicalmente ligada à nacionalidade e ao Estado-nação, encontra-se hoje
destes desvinculada, e sua compreensão tem como pressuposto o entendimento
da forma pela qual hoje se operam as tradicionais e as novas forças
transnacionais em um contexto de quebra de paradigmas e globalizações.
36 GUINSBURG, J. (Org.). A paz perpétua: um projeto para hoje. (Kant, Derrida, Rosenfeld, Romano). São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 50-51.
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Nesse sentido, pretende-se nesta última parte, analisar as
conseqüências e as incertezas decorrentes dessa reconstrução do conceito de
cidadania numa perspectiva pós-nacional.
Primeiramente vale destacar que o Estado, não sendo mais a única
comunidade politicamente relevante, torna-se incapaz de, por sua conta, garantir
a proteção ao indivíduo. Assim, seja na esfera econômica, seja na proteção aos
direitos humanos múltiplos centros passam a deter a responsabilidade política,
tais como Organizações internacionais interestatais (ex. FMI, ONU, TPI...) ou,
ainda, Organizações de natureza não governamental, ou alguém se recusaria a
admitir que determinadas ONGs têm voz mais importante no cenário internacional
que a maioria dos Estados? Veja-se a título ilustrativo o exemplo da Anistia
Internacional, do Greenpeace ou da Transparência Internacional.
Somando-se a consolidação desses novos atores, há, hoje, ainda, uma
inquestionável concentração de poderes nas mãos das chamadas empresas
multinacionais que, seja a favor, seja contra os interesses individuais, acabam por
ditar suas regras em diferentes Estados, muitas vezes até se sobrepondo ao
poder destes últimos, o que, mais uma vez, evidencia que mesmo as grande
potências perderam o monopólio da proteção do cidadão.
Ou seja, se o Estado nação tinha como pressuposto um vínculo
jurídico-político com seu povo, que, numa perspectiva contratualista, estabelecia
uma relação recíproca de obrigações e direitos, esse vínculo sofre significativo
abalo à medida em que este Estado não tem mais como efetivar sua parte do
“contrato”, de forma que hoje, o significado de ser cidadão deste ou daquele país
é bem menor quando se reconhece a construção de uma verdadeira cidadania
global.
Essa redução de importância na relação indivíduo-Estado é, por sua
vez recíproca, já que, também para o Estado, a determinação de seu “povo” vem
sendo significativamente mitigada.
Veja-se o exemplo do campo militar. Uma das razões para se
determinar quem compunha o povo de um Estado, nas origens do Estado
Moderno, era a possibilidade de se saber quem poderia compor os exércitos,
essenciais na defesa das comunidades. Todavia, três fatores evidenciam como,
nas últimas décadas, esse aspecto também perdeu a relevância.
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O mais evidente de todos os argumentos é o avanço da tecnologia, cujo
resultado indiscutível é a certeza de que, na atualidade, qualquer batalha será
vencida não em razão do número de soldados ou do tamanho dos exércitos, mas
sim em decorrência do avanço tecnológico das armas. Em segundo lugar, é
possível mencionar a mudança na natureza do inimigo combatido nos conflitos
militares já que, apesar de hoje existirem vários conflitos instalados em todo o
mundo, poucos são aqueles que envolvem diretamente Estados contra Estados,
sendo a maioria conflitos dentro dos próprios Estados ou, ainda, envolvendo
Organizações Criminosas que atual sobre diversos territórios.
Por fim, a conjugação de esforços para a criação de exércitos
internacionais, seja liderados pelas Nações Unidas, seja compostos por uma
coalisão de estados, também demonstra sob a mesma causa podem lutar
membros de diferentes bandeiras.
Além disso, as globalizações de baixo para cima, representadas pelo
cosmopolitismo e pelo patrimônio comum da humanidade, somadas aos avanços
na tecnologia da comunicação, possibilitam a criação de laços transnacionais
entre comunidades e indivíduos, em prol de objetivos comuns tais como o
combate à fome, a proteção ao meio ambiente ou na luta pelo desarmamento, de
forma que é perceptível uma tendência de que as novas relações entre indivíduos
se dê muito mais em razão de interesses ou ideologias comuns que propriamente
em virtude de vínculos histórico-culturais ou étnicos.
Ou seja, a ascensão de forças sociais transnacionais acaba por
constituir um novo tipo de política que, por sua vez, redunda numa espécie de
cidadania global, na qual os indivíduos têm uma obrigação ética com o resto da
humanidade, numa perspectiva que demonstra ser, sem dúvida, moralmente
desejável e politicamente possível desvincular cidadania de Estado.37
Desde o início da presente discussão procurou-se evidenciar o papel
crucial do Direito Internacional dos Direitos Humanos nesse processo de
“reinvenção do Estado” iniciado a partir da II Guerra Mundial e acelerado ao
término da Guerra Fria. Assim, não seria possível concluir o presente trabalho
37 VIEIRA, Listz. Cidadania global e estado nacional. Disponível em: http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/buscalegis/article/viewFile/21829/21393 Acesso em 03 nov. 2009.
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sem retornar àquela questão para uma análise do tema numa perspectiva
contemporânea.
Cumpre destacar que, não obstante a consolidação de um Sistema
Global e outros regionais de proteção aos direitos humanos, em lenta, mas
progressiva evolução, a questão que se coloca na atualidade diz respeito ao
conflito entre a corrente relativista e a universalista.
Nesse sentido, Flavia Piovesan destaca que segundo a perspectiva
relativista, a noção de direito está estritamente relacionada ao sistema político,
econômico, cultural, social e moral vigente em determinada sociedade. Cada
cultura possui seu próprio discurso acerca dos direitos fundamentais, que está
relacionado às específicas circunstâncias culturais e históricas de cada
sociedade. Além disso, o pluralismo cultural impediria a formação de uma moral
universal, tornando-se necessário que se respeitem as diferenças culturais
apresentadas por cada sociedade, bem como seu peculiar sistema moral.38
Por outro lado, a concepção universalista, traz como fundamento dos
direitos humanos a dignidade humana, valor intrínseco à própria condição
humana39.
Esse confronto de idéias vem há anos causando inflamados debates
entre os teóricos dos direitos humanos, sofrendo os universalistas, acusações de
quererem impor ao mundo a prevalência de interesses e da cultura ocidental.
Todavia, apesar de o universalismo ter sido a corrente prevalecente nos
documentos internacionais40 a análise da cidadania numa perspectiva pós-
nacional só é possível se for superada essa discussão dicotômica entre
universalistas e relativistas, já que, ambas representariam, de uma ou outra
forma, a prevalência da globalização de cima para baixo, seja o localismo
globalizado, seja o localismo globalizado.
38 Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 142-143. 39 Ibid., p. 144. 40 O ponto 5 da Declaração e Programa de Ação de Viena de 1993 estabelece que: Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em consideração, assim como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais.
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Para que a cidadania universal seja, definitivamente desvinculada do
Estado nacional é imprescindível analisar os direitos humanos a partir de um
diálogo intercultural, instrumentalizado por uma hermenêutica diatópica, que,
reconhecendo a incompletude de todo e qualquer sistema jurídico, e de toda e
qualquer cultura, opte por um diálogo verdadeiramente multicultural.41
Conclusão
O Estado Moderno, calcado pelo indissociável vínculo entre povo,
território e soberania, encontrou seu ápice na Paz de Westfalia de 1648 e serviu
de parâmetro para nortear as relações de poderes na comunidade interna e na
sociedade internacional durante cerca de três séculos.
Todavia, a nova ética surgida do pós-II Guerra Mundial - cujo símbolo
maior é o movimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos em suas
múltiplas vertentes - tem como primeiro impacto, sentido já nos julgamentos de
Tóquio e Nuremberg, a superação da soberania em sua vertente clássica e
absoluta.
Assim, para coexistirem em um ambiente de cooperação, os Estados
admitem ceder parcela de sua soberania a outros atores internacionais
responsáveis pelo desenvolvimento de interesses comuns, de forma que
reconhecem que determinados assuntos são tão importantes que merecem ser
tratados numa perspectiva internacional.
A Guerra Fria, entretanto, ao polarizar o planeta em áreas de influência
estadunidense e soviética, freia uma efetiva prevalência de objetivos comuns,
ante as diferenças ideológicas que fundamentaram o conflito. Porém, a queda do
Muro de Berlim em 1989 possibilita o esfacelamento do bloco socialista e a
prevalência do modelo imposto pelo capitalismo estadunidense gerando uma
espécie de globalização axiológica em que, finalmente, há espaço para se falar
em interesses comuns a serem perseguidos em todo o planeta.
Esses interesses, capitaneados pela política capitalista hegemônica,
resultam naquilo que Boaventura de Souza Santos chama de globalismo
localizado e localismo globalizado, duas formas de manifestação da globalização
41 SANTOS, Boaventura de Souza. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 443-451.
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que harmonizam modelos de produção e de consumo em todo o planeta, o que,
somado à evolução da tecnológica da comunicação, faz ruir a concepção
tradicional de fronteiras e limites estatais, possibilitando uma circulação
transnacional do capital.
Tais fatores são, por si mesmos, responsáveis pelo enfraquecimento do
poder estatal já que, como conseqüência, mais uma vez a soberania como centro
de determinação de competências sofre uma significativa mitigação ante a
emergência de novos centros de poder, seja de natureza interestatal como o
Fundo Monetário Internacional, seja de natureza eminentemente privada como as
grandes multinacionais cujo faturamento é hoje superior ao Produto Interno Bruto
da maioria dos países.
Esse modelo, inicialmente apontado como um consenso resultante da
hegemonia estadunidense, logo passa a ser alvo de críticas que resultam numa
espécie de contra-globalização, caracterizadas pelo cosmopolitismo e pela
consciência em torno de um patrimônio comum da humanidade.
Como conseqüência, mais uma vez, o Estado nação perde espaço
diante do surgimento de outras forças transnacionais e a consolidação de formas
não estatais de governança que passam a interferir diretamente na elaboração e
aplicação de normas que atingem diretamente o indivíduo no exercício de sua
cidadania global.
Assim, o vínculo de nação deixa de ser elemento indispensável para o
exercício dos direitos decorrentes da cidadania, chegando-se ao extremo de, na
União Européia, até mesmo direitos políticos serem exercidos além dos limites
das fronteiras do Estado de nacionalidade do indivíduo.
Ao contrário das conseqüências da II Guerra, já solidificadas pela
História, ou mesmo das múltiplas globalizações, reconhecidamente irreversíveis
em médio prazo, a reconstrução do conceito de cidadania numa perspectiva pós-
nacional ainda encontra-se em curso, e tem como pressuposto a consolidação do
cenário pautado pela presença de novos atores comprometidos com o
multiculturalismo.
Nesse sentido, é imperioso concluir o presente trabalho admitindo que
forma apontadas tão somente tendências, que poderão ou não serem
confirmadas no transcorrer das próximas décadas, reconhecendo, contudo, ainda
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que minoritariamente, há contextos múltiplos no planeta onde, diferentemente do
que se propõe, o nacionalismo ganha força e apresenta-se como obstáculo à
construção de uma nova cidadania desvinculada do Estado nação.
A prevalência de um ou outro modelo depende, portanto, de como, nos
próximos anos, os atores internacionais e locais direcionarão a economia, o
desenvolvimento e a política de direitos humanos, pois somente esses três
pilares, conjuntamente, poderão afastar o fortalecimento de focos de resistência
ao cosmopolitismo e ao patrimônio comum da humanidade.
Ou seja, ainda que existam pontos onde cresce o nacionalismo seja
numa perspectiva de purificação étnica, seja como preservação de postos de
emprego, seus efeitos nefastos à promoção da Paz Perpétua, no sentido kantiano
da expressão, poderão ser superados mediante uma política consensual de
desenvolvimento, democracia e direitos humanos.
Enfim, a primeira década do século XXI traz como única certeza a
ruptura como decorrência das múltiplas formas de globalizações e o pós-
nacionalismo ainda se afigura como uma tendência em um futuro de inúmeras
incertezas.
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