9
Ensaios FEE, Porto Alegre, 2(2) 109-117, 1981 A REPRODUÇÃO SUBORDINADA DO CAMPESINATO* José Vicente Tavares dos Santos** O objetivo deste texto é indicar algumas determinações econômicas epo- líticas da reprodução do campesinato, tomando como referencia os peque- nos proprietários rurais do Brasil meridional. O percurso da análise toma como orientação duas hipóteses de trabalho. A primeira parte da constatação de que a especificidade da acumulação do capital na agricultura brasileira tem sido dada pelo caráter desi- gual de sua realização, desigualdade manifestada nos planos econômico, político e ideológico. Mais ainda, tal desigualdade obedece a um padrão de combinação segundo o qual é a lógica do capital que se impõe a to- dos os processos, variando, todavia, os vínculos da subordinação e as formas dos processos sociais considerados. O desenvolvimento desigual pode ser percebido, em uma primeira aproxi- mação, como uma diversidade de processos produtivos, na qual as rela- ções de produção especificamente capitalistas se desenvolveram mais em algumas regiões e setores do que em outros. Tal combinação entre setores capitalistas e setores nao-capitalistas de produção, longe de ser uma debilidade do processo de acumulação,po- de ser analisada como a forma própria de se realizar da reprodução am- pliada do capital. Por conseguinte, o mercado interno, conceituado co- mo espaço econômico organizado segundo relações de produção capitalis- tas, teria necessidade do mercado externo, espaço econômico organizado segundo relações de produção nao-capitalistas, necessidade fundada no Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no Seminário "Estrutura Agrária, Estado e Soeiedade", promo- vido pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, em setcmbrode 1980. * Sociólogo, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, autor de vários artigos c do livro Colonos do Vinho (estudo sobre a subordinação do trabalho camponês ao capital), publicado pela Hucitcc, em 1978. SINGER, Paul. Desenvolvimento econômico e evolução urbana. São Paulo, Nacional/EDUSP, 1968 cap,3,4 AMADO, Janáina. Conflito social no Brasil: a revolta dos Muckcr, São Paulo, Simbolo, 1978. SLYIl RI H, Giralda A colonização alemã no Vale do Itajai-Mirim. Porto Alegre, Movimento, 1974 LI IDKI , Elida Rubini Camponeses e capitalismo. Brasília, Universidade Nacional de Brasilia, 1977 ROCHE.Jean A colonização alemã no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Globo, 1969 LANDO.A SBARROS,! A colonização alemã no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Movimento, 1976. AZI VtDO.Thales Italianos egaúchos. Porto Alegre, A Nação/IEL, 1975 MON 1 AI 1 l.ilia 1 Do núcleo colonial no capitalismo monopolista São Paulo, USP/F.I .LC.H , 1979. SAN 1 OS, Jo^é Vitente Favares dos Colonos do vinho (estudo sobre a subordinação do trabalho camponês ao capilal) São Paulo HU( I llC . 1978

A REPRODUÇÃO SUBORDINADA Camponesa, 1981, Tavares Do Santos

Embed Size (px)

DESCRIPTION

texto

Citation preview

  • Ensaios FEE, Porto Alegre, 2(2) 109-117, 1981

    A REPRODUO SUBORDINADA DO CAMPESINATO*

    Jos Vicente Tavares dos Santos**

    O objetivo deste texto indicar algumas determinaes econmicas e p o -lticas da reproduo do campesinato, tomando como referencia os peque-nos proprietrios rurais do Brasil meridional.

    O percurso da anlise toma como orientao duas hipteses de trabalho. A primeira parte da constatao de que a especificidade da acumulao do capital na agricultura brasileira tem sido dada pelo carter desi-gual de sua realizao, desigualdade manifestada nos planos econmico, poltico e ideolgico. Mais ainda, tal desigualdade obedece a um padro de combinao segundo o qual a lgica do capital que se impe a to-dos os processos, variando, todavia, os vnculos da subordinao e as formas dos processos sociais considerados.

    O desenvolvimento desigual pode ser percebido, em uma primeira aproxi-mao, como uma diversidade de processos produtivos, na qual as rela-es de produo especificamente capitalistas se desenvolveram mais em algumas regies e setores do que em outros.

    Tal combinao entre setores capitalistas e setores nao-capitalistas de produo, longe de ser uma debilidade do processo de acumulao,po-de ser analisada como a forma prpria de se realizar da reproduo am-pliada do capital. Por conseguinte, o mercado interno, conceituado co-mo espao econmico organizado segundo relaes de produo capitalis-tas, teria necessidade do mercado externo, espao econmico organizado segundo relaes de produo nao-capitalistas, necessidade fundada no

    Uma verso preliminar deste texto foi apresentada no Seminrio "Estrutura Agrria, Estado e Soeiedade", promo-vido pelo Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas, em setcmbrode 1980.

    * Socilogo, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, autor de vrios artigos c do livro Colonos do Vinho (estudo sobre a subordinao do trabalho campons ao capital), publicado pela Hucitcc, em 1978. SINGER, Paul. Desenvolvimento econmico e evoluo urbana. So Paulo, Nacional/EDUSP, 1968 cap,3,4

    AMADO, Janina. Conflito social no Brasil: a revolta dos Muckcr, So Paulo, Simbolo, 1978.

    S L Y I l RI H, Giralda A colonizao alem no Vale do Itajai-Mirim. Porto Alegre, Movimento, 1974 LI IDKI , Elida Rubini Camponeses e capitalismo. Braslia, Universidade Nacional de Brasilia, 1977

    ROCHE.Jean A colonizao alem no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Globo, 1969

    LANDO.A S B A R R O S , ! A colonizao alem no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Movimento, 1976.

    AZI VtDO.Tha les Italianos egachos. Porto Alegre, A Nao/IEL, 1975

    MON 1 AI 1 l.ilia 1 Do ncleo colonial no capitalismo monopolista So Paulo, USP/F.I .LC.H , 1979.

    SAN 1 OS, Jo^ Vitente Favares dos Colonos do vinho (estudo sobre a subordinao do trabalho campons ao capilal) So Paulo HU( I l lC . 1978

  • ^ LUXEMBURG, Rosa. A acumulao do capital. Rio de Janeiro, Zaliar, 1970

    ^ SILVA, Jos F Graziano da coond Estrutura agrria e produo de subsistncia na agricultura brasileira. So Paulo, Hucitcc, 1978

    CASTRO, Ana Clia et alii Evoluo recente e situao atual da agricultura brasileira; sntese das transformaes. Braslia, BINAGRI, 1979

    FUNDAO DE ECONOMIA E ESTATSTICA. A agricultura do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1978 (2.5 Anos de f conomia Gacha. 3).

    " MOURA, Margarida Maria Os herdeiros da terra. So Paulo, Hucitcc, 1978

    fornecimento, por este ltimo, de matrias-primas, fora de trabalho e consumidores ao mercado interno. Em suma, a reproduo ampliada do ca-pital necessita de relaes de produo nao-capitalistas para se efe-tivar . 2

    No caso da agricultura brasileira, ' reproduo ampliada do capital realiza-se, por um lado, mediante a expropriaao do produtor direto e a conseqente penetrao de relaes capitalistas de produo na agri-cultura. Por outro lado, o movimento da acumulao desenvolve-se atra-vs da dominao do capital sobre processos de trabalho nao-capitalis-tas, resultando na reproduo subordinada do campesinato.^

    A segunda hiptese de trabalho enuncia que o campes inato desenvolve uma estratgia de reproduo nao-subordinada, enquanto resistncia e rea-o ao movimento do capital. Nessa perspectiva, a manuteno e a busca da apropriao da terra para servir de espao de produo de vida, sob regime de propriedade familiar ou de posse, expressamuma resistncia expropriaao das condies de produo. Tambm a preservao do traba-lho familiar reflete uma resistncia individualizaao do trabalho. Um e outro processo conduzem, ainda, a definio de regras costumeiras de herana entre grupos camponeses.''* Desta forma, delinea-se a tarefa de investigar as vrias estratgias possveis de reproduo social viven-ciadas pelo campesinato.

    Para iniciar a anlise, deve-se retomar a conceituaao do campons,com base nos elementos especficos de seu processo de trabalho. A produo camponesa define-se pela presena da fora de trabalho familiar, coor-denando-se as atividades de todos os membros da famlia em um trabalha-dor coletivo. Caracteriza-se, ainda, pela apropriao da terra, em re-gime de propriedade familiar ou de posse, bem como pela apropriaao dos instrumentos de trabalho. Esta unidade com-as condies d produo pos-sibilita a produo direta dos meios de vida, conjugada com a produo simples de mercadorias. Por ltimo, a pauperizaao relativa que o cam-pons vivncia estabelece a necessidade do trabalho acessrio,possibi-litado pelas oscilaes do ciclo de existncia da famlia.

    O trabalho campons est subordinado, formalmente, ao capital, medi-da que este estabelece um conjunto de determinaes sobre seu processo de trabalho, sem contudo chegar a expropria-lo completamente. Por uma parte, o capital subordina o processo de trabalho do campons tal como ele existe, reproduzindo sua singularidade: o campons permanece pro-prietrio da terra e dos outros meios de produo; continua a utiliza-o da fora de trabalho familiar e o baixo nvel de mecanizao das atividades agrcolas; mantm-se, ainda, a produo direta de meios de vida e a produo simples de mercadorias.

  • S A N T O S o p cit. nota 1.

    SANTOS, Jos V icente Tavares dos. Cantinciros e colonos (a indstria vincola no Rio Grande do Sul). In: ACA-NAI. , J H & GONZAGA, S, Org RS: imigrao c colonizao Porto Alegre, Mercado Aberto, 1980 p I 38

    Por outra parte, o capital impe suas determinaes ao processo de tra-balho campons: converte a terra em equivalente de mercadoria, coagin-do o campons a compr-la para se tornar proprietrio privado da ter-ra; transforma as regies camponesas em viveiro de fora de trabalho pa-ra os setores agrcola e urbano-industrial das zonas de ocupao anti-ga e recente; leva os camponeses a produzir alimentos e matrias-pri-mas para o setor urbano-industrial, estabelecendo a produo de valor de troca; provoca a extenso da jornada de trabalho da famlia campo-nesa; efetua o controle parcial do processo produtivo campons; induz dependncia ao capital financeiro que viabiliza a reposio dos meios de produo; efetiva, mediante relaes de troca desiguais, a explora-o do valor gerado pelo campons; e, finalmente, produz a pauperiza-ao relativa das famlias camponesas.-'

    A reproduo subordinada do campesinato vai ocorrer, em um primeiro n-vel, pela subordinao do trabalho campons ao capital. A explorao da fora de trabalho camponesa efetiva-se pela converso dessa forma de produo em viveiro de fora de trabalho para o prprio setor agrcola, para o setor urbano-industrial e para as frentes de expanso e frentes pioneiras, expressando-se pela presena de membros da famlia campone-sa em trabalhos temporrios no setor agrcola e por sua participao nos fluxos migratrios rural-urbano erural-rural contemporneos.

    Ao mesmo tempo,da-se uma apropriao do sobre-trabalho cristalizado no produto da unidade produtiva camponesa, seja na forma de alimentos,se-ja na forma de matrias-primas, apropriao que se d por intermdio das relaes de mercado.

    Tais situaes configuram historicamente a subordinao do campesinato a distintas formas do capital. A primeira forma do capital que os tem subordinado o capital comercial. Desde o assentamento de colonos eu-ropeus no sul do Pais, no sculo dezenove, essa vinculaao tem-se pro-cessado da seguinte forma: " ... o colono vendia o excedente agrcola e artesanal dos fatores de produo de subsistncia para o comerciante rural ( 'vendista' ), e este o repassava aos comerciantes locais, nos n-cleos urbanos. Em seguida, os comerciantes locais vendiam as mercado-rias para os comerciantes situados nos ncleos regionais ( 'os atacadis-tas' ). Inversamente, os comerciantes regionais ofereciam mercadorias manufaturadas ou mesmo agrcolas para os comerciantes locais que as re-vendiam por intermdio dos comerciantes rurais ou, em um perodo poste-rior, atravs dos vendedores viajantes para os colonos enquanto consu-midores finais. A resultante do circuito mercantil foi a drenagem,pos-svel dadas as desigualdades relativas dos preos agrcolas e indus-triais, de recursos dos colonos para os outros elos da cadeia mercan-til."5

    No perodo mais recente da indus tr ial izaao brasileira, passa a ser o ca-pital industrial aquele que detm a primazia sobre o campesinato, apro-priando-se do valor cristalizado no produto do trabalho campons. Ta] apropriao se d por uma relao monetria, na qual as condies de tro-ca desfavorecem o campons, produtor atomizado frente ademandistas oli-

  • ^ LOPLS. Juarez R. B. tmpresas e pequenos produtores no desenvolvimento do capitalismo agrrio em So Paulo (1940-1970), Estudos Cebrap, So Paulo, (22):41-110,

    gopsnicos. Ao mesmo tempo, o capital industrial organiza um controle indireto do processo de trabalho campons, expresso em "contratos de produo" que impem condies para o plantio, trato e comercializao ds alimentos ou matrias-primas produzidas pelos pequenos produtores.

    Finalmente, a modernizao da agricultura que se expande no Pais a par-tir dos anos 60 levou, em algumas culturas, a uma utilizao de tcni-cas modernas no processo de trabalho campons. Esse procedimento: foi viabilizado pelo capital financeiro, cabendo ao crdito rural possibi-litar o consumo produtivo de insumos industrializados,e de mquinas e equipamentos agrcolas, sem que tenha havido uma transformao do cam-pons em pequeno capitalista.'

    Todavia, a reproduo subordinada do campesinato vai-se dar tambm pe-la subordinao do campons a propriedade privada da terra. Desde a Lei de Terras de 1850, o campesinato do Brasil meridional estabelece-se em um contexto no qual a terra foi convertida em equivalente de mercado-ria, passando a ter um preo formado pela renda da terra capitalizada. Circunscrita pela plantagem escravista, a colonizao da segunda meta-de do sculo dezenove atribuiu aos colonos as terras de fertilidade e de situao piores, reduzindo-se, assim, a capacidade de gerao da renda da terra. Verifica-se, a partir de ento, a apropriao pelo ca-pital da renda da terra gerada pela produo camponesa, atravs das re-laes de troca entre o produto campons e o capital.

    Precisa-se dar um passo adiante na anlise e perceber que a reproduo subordinada do campesinato, expressa pelos vnculos de apropriao de seu trabalho excedente acima indicados, implica necessariamente uma subordinao poltica.

    O estilo de desenvolvimento capitalista brasileiro tem sido marcado por uma aliana de classes entre os grandes proprietrios de terra e a bur-guesia agrria, comercial, industrial e financeira. Porm parece haver outro componente nesse pacto poltico, representado pela incorporao subordinada do campesinato, situao que pode ser observada se tomarmos como referencia a regio meridional.

    Na atualidade, pode-se acompanhar algumas iniciativas do Estado brasi-leiro no sentido de incorporar, ainda que de modo secundrio, demandas dos pequenos proprietrios rurais.

    A tentativa de estabelecer controles sobre o movimento sindical de tra-balhadores na agricultura representa uma das iniciativas estatais apon-tadas. Ela se configura, em particular, no ativamente das diferenas sociais entre os pequenos produtores e os trabalhadores rurais e vem conseguindo relativa eficcia, ao menos se observarmos o posicionamen-to conservador da maioria dos sindicatos de pequenos proprietrios e trabalhadores rurais da Regio Sul. Os debates realizados no III Con-gresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, que teve lugar em Braslia,em maio de 1979, evidenciam tambm essas diferenas.

    Outra estratgia consiste no Programa de agricultura de baixa renda,de objetivos explcitos: "A estratgia governamental de apoio aos peque-

  • proposta de deciso, lrasiiia. 1979 p.47

    ' a) lANNl, Octa'vio A luta pela terra. Pctrdpolis, Vozes, 1978. b) . Colonizao e contra reforma agrria na Amaznia. Petrpos, Vozes, 1979 c) Ditadura e agricultura. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1979. SILVA, Josc I C.raziano da Para onde vai a agricultura' Encontros c-om a Civilizao Brasileira. Rio dc Janeiro,

    (IO):58-69, abr 1979

    nos produtores rurais que se adota neste trabalho orieuLi-se por duas principais linhas de atuao. A primeira consiste em propor mecanismos diretos de mudana na estrutura fundiria, com nfase na reestrutura-o fundiria e no apoio as organizaes dos pequenos produtores. A se-gunda, por sua vez, fundamenta-se na adoo de estmulos econmicos de mercado que viabilizem as mudanas de estrutura agrria, no contexto de uma economia de mercado, onde se encaminhe para uma ampliao quanti-tativa e qualitativa de sua base social."^

    Uma terceira estratgia consiste na distribuio restrita e localizada de ttulos de propriedade da terra, em reas de tenso soe ia 1,com o que se visa a eliminar o protesto e reduzir a fora rGivindicatria e or-ganizativa dos camponeses.

    Finalmente, cresce a importncia da estratgia de reproduo subordi-nada do campesinato desenvolvida pela poltica de colonizao, em par-ticular relacionada com as terras da Amaznia Legal, desde os anos 60 .'^

    O objetivo global dessa poltica tem sido bloquear os processos de ocu-pao espontnea de novas terras, mediante o controle e orientao dos fluxos migratrios internos, de forma a: primeiro, preservar a "se-gurana interna", segundo as concepes da doutrina de segurana nacio-nal, atravs de mecanismos de demarcao fundiria que tentam restrin-gir a chegada de novos migrantes e conter os movimentos de luta pela terra; segundo, incentivar a realizao do valor das terras apropria-das por titulao pela burguesia agrria''^; terceiro-, orientar o mo-vimento espacial dos contingentes da super populao relativa; quarto, efetivar uma "contra-reforma agrria", de modo a preservar a estrutura fundiria, tanto da Regio Nordeste, da qual retira trabalhadores ru-rais e camponeses excedentes, quanto da Regio Sul, na qual sao expro-priados camponeses minifundiarios.

    No perodo do desenvolvimento dependente associado, a poltica de colo-nizao passou por tres momentos. O primeiro foi o do esboo da estra-tgia, configurado no Estatuto da Terra (Lei n9 4.504, de 30/11/1964), legislao na qual, ao lado de dispositivos acerca de uma reforma agra-ria, existe um conjunto de resolues referentes acolonizaao (esp.T-tulo III, Cap . II), regulamentadas pos ter ioriiiiiritc pelo Deere to n9 59.428, de 29/10/1966, que dispe sobre a "colonizao e outras formas de pro-priedade" .

    O segundo momento refer'e-se ao perodo de instalaao da colonizaao di-rigida oficial na Amaznia Legal, tendo como base o Plano de Integra-o Nacional (decreto n9 1.106, de 16/6/1970) e como estratgia a ocu-pao das margens das rodovias federais. Tratava-se de uma resposta as contradies sociais da Regio Nordeste, canalizando as populaes ru-rais excedentes mediante uma poltica de distribuio controlada e re-

  • MARTINS, Jos de Souza, Expropriaao e violncia. So Paulo, Hucitcc, 1980 p , 8 6 , 9 1 e l 7 8 .

    lANNI .op , cit

    Ibidem, p.60.

    duzida de terras, cuja finalidade era a criao de oferta de mo-de--obra e de produo de alimentos para a empresa rural na Amaznia.

    O terceiro momento, expresso pela implantao do Polamazonia, em setem-bro de 1974, o da redefinio da poltica no sentido de incentivar a colonizao dirigida particular, sob a forma de empresas de coloniza-o, caracterizadas como cooperativas de desenvolvimento agropecurio (Instrues n? 11 e n9 13, do INCRA, em 1976). A populao a ser deslo-cada passa a ser a das regies camponesas do sul, induzindo-se os co-lonos a venderem a propriedade para que, dispondo dos recursos assim ob-tidos, possam pagar o preo da terra nos projetos de colonizao . ^ Monta-se, com aS mesmas finalidades de instalao de um viveiro de for-a de trabalho e de um cultivo de alimentos, um processo produtivo que tende a reproduzir a situao vigente nas reas de origem, repondo a subordinao do campons ao^capital, personificado agora nas empresas e cooperativas de colonizao.13

    Paralelamente a esses aspectos, os projetos de colonizao contem um detalhado controle dos parceleiros pelo Estado, tanto na organizao da produo quanto na estrutura interna do poder: "Na prtica, os colonos sao diretamente subordinados ao aparelho estatal: por via do INCRA,que decide como e quando os trabalhadores se tornam portadores de promes-sas, documentos provisrios ou ttulos definitivos de propriedades dos lotes; por via da agncia do Banco do Brasil, que, de comum acordo com o INCRA, decide quem tem ou nao condies jurdicas para receber cr-ditos ou emprstimos."!'+

    A reproduo subordinada docampesinato tem seu alicerce ideolgico na instituio da propriedade privada da terra. No contexto da poltica imigratria do sculo dezenove, a ideologia do trabalho, elaborada pe-los fazendeiros do caf com o intuito de assegurar o fornecimento e a manuteno da fora de trabalho na lavoura, acenava a possibilidade vir-tual da propriedade da terra para aqueles que trabalhassem com afinco como "colonos do caf"-'^. Nessa perspectiva, a colonizao com base na pequena propriedade rural, tanto a estabelecida nos ncleos prxi-mos s zonas cafeeiras quanto a desenvolvida nas regies meridionais do Pais, forneceu a justificativa ideolgica da poltica de imigrao: pe-lo exemplo da possibilidade de o imigrante tornar-se proprietrio da terra, a colonizao atraiu os camponeses e artesos expropriados das sociedades europias pra serem, em sua maioria,trabalhadores nas gran-des fazendas no regime do colonato, condio social diversa da vivida pelos colonos meridionais, ainda que, ideologicamente, a situao cam-ponesa destes formasse o horizonte da trajetria do imigrante.

    A instituio da propriedade privada da terra tem servido como instru-mento ideolgico para a cooptaao poltica dos pequenos produtores, medida que as classes dominantes se colocam como defensoras da proprie-dade em geral, por suposto tambm a propriedade familiar; e, como tal.

  • CONGRESSO N-\CIONAL DOS TRABALHADORlS RURAIS, 3. Braslia, 1979 Anais. . , Braslia CONTAG 1979. p.154-9 e 173-6,

    lUNDAO DL ECONOMIA E ESTATSTICA, op. cit nota 3.

    tem conseguido apoio eleitoral dos pequenos proprietrios, e, esgrima-do contra as propostas de reforma agraria sob a alegao, muito difun-dida no perodo final do populismo no Brasil, de que esta atingiria a propriedade fundiria em geral.

    Hoje, a opo governamental pela poltica de colonizao e a violenta reao do aparelho repressivo e jurdico do Estado contra os posseiros evidenciam a eficcia poltica da propriedade privada da terra.

    O desenvolvimento, pelas populaes camponesas meridionais, de uma es-tratgia de reproduo nao-subordinada manifesta-se, em primeiro lugar, atravs do encaminhamento de presses no sentido de permanncia na pr-pria regio, principalmente atravs do movimento sindical e da Igreja.

    A permanncia nas regies meridionais assume para os camponeses a feio de um movimento pela ampliao da reteno do valor do produto do tra-balho familiar, configurando uma luta contra a subordinao ao capital comercial, industrial e financeiro. Alguns sindicatos, principalmente aqueles localizados em zonas de pequenos proprietrios rurais produto-res de matrias-primas para as agroindstrias, tem reivindicado um au-mento do preo mnimo dos produtos agrcolas, como o caso dos sindi-catos de Bento Gonalves e de Santa Cruz do Sul, ambos no Rio Grande do Sul. Tambm o sindicalismo rural tem definido reivindicaes no senti-do de alterar a poltica agrcola modernizadora, a fim de que se incen-tivem tecnologias alternativas que possam, inclusive, reduzir a depen-dncia do pequeno produtor aos insumos industrializados. Por outro la-do, o movimento sindical tem criticado a poltica de colonizao, con-siderando que ela nao e uma alternativa a reforma agrria.

    0 deslocamento para as frentes agrcolas, afim de reproduzir a proprie-dade familiar ou de efetuar uma posse, constitui a segunda forma da es-tratgia da reproduo nao-subordinada do campesinato meridional.

    Esse processo de reafirmao do trabalho familiar pode ser verificado pelo acompanhamento do percurso dos migrantes rurais que tem-se evadi-do do Rio Grande do Sul neste sculo. As causas estruturais que conver-teram este Estado em uma rea de evaso populacional tm sido identi-ficadas, por um lado, na concentrao da propriedade fundiria, que re-duz a disponibilidade das terras ocupadas pelos pequenos produtores, levando a uma fragmentao dos estabelecimentos que vem redobrando a presso populacional solsre a terra e tem induzido evaso das regies camponesas. Por outro, o redobrar da subordinao econmica provoca a expropriaao de parte das famlias camponesas, cujos filhos tendem a migrar. Enfim, o estancamento do crescimento econmico regional reduz a criao de empregos, ao mesmo tempo em que a lavoura empresarial da so-ja e do trigo, responsvel pelo dinamismo do setor agrcola gacho no perodo 1968-1975, caracterizou-se pelo incremento da mecanizao do processo de trabalho, reduzindo, portanto, sua capacidade de absoro da fora de trabalho.

    Todas as reas de evaso populacional do Rio Grande do Sul podem ser caracterizadas como de produo camponesa: "Uma analise da estrutura

  • INDICADORES SOCIAIS Migraes internas RS. Porto Alegre, Fundao de Economia e Estatstica, v.4, n 4, out. 1975 Nmero E.special

    IBGE reas de atuao e evaso populacional no Brasil no perodo 1960-1970. Rio de Janeiro, 1979 " S U D t S U L . O fenmeno migratrio na R^io Sul. Porto Alegre, 1 975 p 62

    Ibidem, p,6I ^ ' IBGE, op. cit nota 18, p . l4

    MARTINS, op, cit , p,161-2 S lNGLR.Paul Migraes internas: consideraes tericas sobre seu estudo In: Economia poltica da urbani-

    zao. So Paulo, Brasiliensc/CEBRAP, 1973 p.52

    fundiria dos municpios de expulso leva a caracteriza-los como reas onde predomina o minifndio. (...) De modo geral, pode-se denominar de agropecuria tradicional o seu modo tpico de produo, que se carac-teriza pela alta participao do fator trabalho na combinao dos fa-tores no processo produtivo. Usa pouco capital e terra. O trabalho uti-lizado predominantemente familiar, a propriedade e pequena (minifn-dio) e se dedica produo lavoureira tradicional (milho, mandioca, feijo, uva e batata), suinocultura e produo leiteira. O destino da produo principalmente o autoconsumo e o abastecimento do mercado interno. "1^

    O destino dessa corrente migratria, apos ter percorrido, desde o s-culo dezenove, um trajeto dentro do prprio Estado, das chamadas "col-nias velhas" para as "colnias novas" situadas no Nordeste do Rio Gran-de do Sul, foi Santa Catarina. Em particular, "constata-se ter havido impressionante concentrao das levas migratrias gachas em apenas duas microrregioes: a Colonial do Oeste Catarinense e a Colonial do Rio do Peixe." Em outras nalavras, "o Oeste Catarinense foi ocupado pelos pe-quenos proprietrios agrcolas do Rio Grande do Sul (...)."''^

    Repetiu-se, depois, o mesmo fluxo migratrio de Santa Catarina para o Paran: "As microrregioes do Extremo-Oeste Paranaense e Sudoeste Para-naense (...) constituiram-se na rea de destino preferencial de agri-cultores gachos e catarinenses, a maioria dos quais expulsos pelas condies econmicas desvantajosas de suas propriedades minifundi-r i a s . " 2 0

    J nas ltimas duas dcadas, essas regies de Santa Catarina e do Pa-ran seriam consideradas reas de atrao com caractersticas rurais, devido ao incremento da policultura e com a crescente penetrao dos cultivos da soja e do trigo.^1

    Tambm no mesmo perodo, o fluxo migratrio de populaes rurais avan-a para a Regio Centro-Oeste e para o Territrio de Rondnia. No Mato Grosso, a presena de colonos, em sua maioria provenientes do Rio Gran-de do Sul e do noroeste do Paran, vai ser expressiva tanto nos proje-tos de colonizao particular quanto em reas de regime de posse. Ja Rondnia tera seu carter de foco de atrao, acentuado na dcada de setenta, igualmente marcado por colonos dirigidos a projetos de colo-nizao oficiais e por posseiros.22

    Apreende-se, desta forma, todo o fluxo migratrio^3: "colnias velhas" do Rio Grande do Sul, "colnias novas" do Rio Grande do Sul, oeste e meio oeste de Santa Catarina, sudoeste e extremo oeste do Paran, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Rondnia.

  • Todos os momentos desse fluxo migratrio contem, a um s tempo, a expro-priaao do campesinato e sua reproduo, variando a forma de ocupao das terras, efetivada ora por via da posse, ora por expanso da pro-priedade familiar, ora por colonizao. Contudo, o significado maior parece_^ter sido o da presso dos camponeses no sentido de reafirmar sua situao social, seja pela propriedade familiar, seja pela posse. Para os colonos meridionais, migrar tem sido repor a independncia da pro-duo familiar e reiterar a autonomia do trabalho, em uma busca, reti-rante e resistente, de reproduo nao-subordinada da situao campone-sa.

    A alternncia dos regimes de ocupao da terra dependeu ou da inexis-tncia de um mercado de terras ou do seu carter. Em um primeiro momen-to, quando o mercado est em constituio, seu carter lbilecompe-titivo, favorecendo a compra de pequenas propriedades pelos camponeses. Ja em um perodo mais recente, o mercado de terras torna-se mais oligo-polico, incrementa-se a interveno do Estado e consolida-se a funo econmica de reserva de valor da propriedade fundiria-. Estreitam-se, em conseqncia, as opes do campons, no sentido de converter-se ou em posseiro ou em colono.

    O percurso analtico realizado tentou indicar que a estratgia do ca-pital de reproduzir subordinadamente o campesinato sugere a possibili-dade de constituio de uma hegemonia burguesa sobre os camponeses. Ao mesmo tempo, a estratgia do campesinato de se reproduzir de forma nao--subordinada repe as condies sociais da autonomia de sua terra e de seu trabalho.

    Ambas posicionam-se enquanto estratgias sociais diversas, que se vin-culam reciprocamente no campo das contradies complexas da reproduo ampliada do capital. Tendem a expressar-se, portanto, em relaes de conflito entre a instaurao da hegemonia burguesa ou a construo de outra hegemonia, dos dominados do campo e da cidade.