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A Sociedade contra o Estado

Pierre Clastres

publicado em 1974

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A Sociedade contra o Estado

Pierre Clastres

publicado em 1974

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As sociedades primitivas são sociedades sem Estado: esse jul-gamento de fato, em si mesmo correto, na verdade dissimula umaopinião, um juízo de valor, que prejudica então a possibilidade deconstituir uma antropologia política como ciência rigorosa. O fatoque se enuncia é que as sociedades primitivas estão privadas de algu-ma coisa – o Estado – que lhes é, tal como a qualquer outra socieda-de - a nossa, por exemplo - necessária. Essas sociedades são, portan-to, incompletas. Não são exatamente verdadeiras sociedades - não sãopoliciadas -, e subsistem na experiência talvez dolorosa de uma falta- falta do Estado - que elas tentariam, sempre em vão, suprir. De ummodo mais ou menos confuso, é isso mesmo o que dizem as crônicasdos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imagi-nar a sociedade sem o Estado, o Estado é o destino de toda socieda-de. Descobre-se nessa abordagem uma � xação etnocentrista tanto

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mais sólida quanto é ela, o mais das vezes, inconsciente. A referênciaimediata, espontânea 'é, se não aquilo que melhor se conhece, pelomenos o mais familiar. Cada um de nós traz efetivamente em si, inte-riorizada como a fé do crente, essa certeza de que a sociedade existepara o Estado. Como conceber então a própria existência das socie-dades primitivas, a não ser como espécies à margem da história uni-versal, sobrevivências anacrônicas de uma fase distante e, em todosos lugares há muito ultrapassada? Reconhece-se aqui a outra face doetnocentrismo, a convicção complementar de que a história tem umsentido único, de que toda sociedade está condenada a inscrever-senessa história e a percorrer as suas etapas que, a partir da selvageria,conduzem à civilização “Todos os povos policiados foram selvagens”,escreve Raynal. Mas o registro de uma evolução evidente de formaalguma fundamenta uma doutrina que, relacionando arbitrariamenteo estado de civilização com a civilização do Estado, designa este últi-mo como termo necessário atribuído a toda sociedade. Pode-se entãoindagar o que manteve os últimos povos ainda selvagens.

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As sociedades primitivas são sociedades sem Estado: esse jul-gamento de fato, em si mesmo correto, na verdade dissimula umaopinião, um juízo de valor, que prejudica então a possibilidade deconstituir uma antropologia política como ciência rigorosa. O fatoque se enuncia é que as sociedades primitivas estão privadas de algu-ma coisa – o Estado – que lhes é, tal como a qualquer outra socieda-de - a nossa, por exemplo - necessária. Essas sociedades são, portan-to, incompletas. Não são exatamente verdadeiras sociedades - não sãopoliciadas -, e subsistem na experiência talvez dolorosa de uma falta- falta do Estado - que elas tentariam, sempre em vão, suprir. De ummodo mais ou menos confuso, é isso mesmo o que dizem as crônicasdos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: não se pode imagi-nar a sociedade sem o Estado, o Estado é o destino de toda socieda-de. Descobre-se nessa abordagem uma � xação etnocentrista tanto

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mais sólida quanto é ela, o mais das vezes, inconsciente. A referênciaimediata, espontânea 'é, se não aquilo que melhor se conhece, pelomenos o mais familiar. Cada um de nós traz efetivamente em si, inte-riorizada como a fé do crente, essa certeza de que a sociedade existepara o Estado. Como conceber então a própria existência das socie-dades primitivas, a não ser como espécies à margem da história uni-versal, sobrevivências anacrônicas de uma fase distante e, em todosos lugares há muito ultrapassada? Reconhece-se aqui a outra face doetnocentrismo, a convicção complementar de que a história tem umsentido único, de que toda sociedade está condenada a inscrever-senessa história e a percorrer as suas etapas que, a partir da selvageria,conduzem à civilização “Todos os povos policiados foram selvagens”,escreve Raynal. Mas o registro de uma evolução evidente de formaalguma fundamenta uma doutrina que, relacionando arbitrariamenteo estado de civilização com a civilização do Estado, designa este últi-mo como termo necessário atribuído a toda sociedade. Pode-se entãoindagar o que manteve os últimos povos ainda selvagens.

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Por trás das formulações modernas, o velho evolucionismopermanece, na verdade, intacto. Mais delicado para se dissimular nalinguagem da antropologia, e não mais na da � loso� a, ele a✁ ora con-tudo ao nível das categorias que pretendem ser cientí� cas. Já se per-cebeu que, quase sempre, as sociedades arcaicas são determinadas demaneira negativa, sob o critério da falta: sociedades sem Estado, so-ciedades sem escrita, sociedades sem história. Mostra-se como sendoda mesma ordem a determinação dessas Sociedades no plano econô-mico: sociedades de economia de subsistência. Se, com isso, quiser-mos signi� car que as sociedades primitivas desconhecem a economiade mercado onde são escoados os excedentes da produção, nada a� r-mamos de modo estrito, e contentamo-nos em destacar mais uma fal-ta, sempre com referência ao nosso próprio mundo: essas sociedadesque não possuem Estado, escrita, história, também não dispõem demercado. Todavia, pode objetar o bom senso, para que serve ummercado, se não há excedentes? Ora a ideia de economia de subsis-tência contém em si mesma a a� rmação de que, se as sociedades pri-

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mitivas não produzem excedentes, é porque são incapazes de fazê-lo,inteiramente ocupadas que estariam em produzir o mínimo necessá-rio à sobrevivência, à subsistência. Imagem antiga, sempre e� caz, damiséria dos selvagens. E, a � m de explicar essa incapacidade das so-ciedades primitivas de sair da estagnação de viver o dia-a-dia, dessaalienação permanente na busca de alimentos, invocam-se o subequi-pamento técnico, a inferioridade tecnológica.

O que ocorre na realidade? Se entendermos por técnica oconjunto dos processos de que se munem os homens, não para asse-gurarem o domínio absoluto da natureza (isso só vale para o nossomundo em seu insano projeto cartesiano cujas consequências ecológi-cas mal começamos a medir), mas para garantir um domínio domeio natural adaptado e relativo às suas necessidades, então não maispodemos falar em inferioridade técnica das sociedades primitivas:elas demonstram uma capacidade de satisfazer suas necessidadespelo menos igual àquela de que se orgulha a sociedade industrial etécnica. Isso equivale a dizer que todo grupo humano chega a exer-

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Por trás das formulações modernas, o velho evolucionismopermanece, na verdade, intacto. Mais delicado para se dissimular nalinguagem da antropologia, e não mais na da � loso� a, ele a✁ ora con-tudo ao nível das categorias que pretendem ser cientí� cas. Já se per-cebeu que, quase sempre, as sociedades arcaicas são determinadas demaneira negativa, sob o critério da falta: sociedades sem Estado, so-ciedades sem escrita, sociedades sem história. Mostra-se como sendoda mesma ordem a determinação dessas Sociedades no plano econô-mico: sociedades de economia de subsistência. Se, com isso, quiser-mos signi� car que as sociedades primitivas desconhecem a economiade mercado onde são escoados os excedentes da produção, nada a� r-mamos de modo estrito, e contentamo-nos em destacar mais uma fal-ta, sempre com referência ao nosso próprio mundo: essas sociedadesque não possuem Estado, escrita, história, também não dispõem demercado. Todavia, pode objetar o bom senso, para que serve ummercado, se não há excedentes? Ora a ideia de economia de subsis-tência contém em si mesma a a� rmação de que, se as sociedades pri-

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mitivas não produzem excedentes, é porque são incapazes de fazê-lo,inteiramente ocupadas que estariam em produzir o mínimo necessá-rio à sobrevivência, à subsistência. Imagem antiga, sempre e� caz, damiséria dos selvagens. E, a � m de explicar essa incapacidade das so-ciedades primitivas de sair da estagnação de viver o dia-a-dia, dessaalienação permanente na busca de alimentos, invocam-se o subequi-pamento técnico, a inferioridade tecnológica.

O que ocorre na realidade? Se entendermos por técnica oconjunto dos processos de que se munem os homens, não para asse-gurarem o domínio absoluto da natureza (isso só vale para o nossomundo em seu insano projeto cartesiano cujas consequências ecológi-cas mal começamos a medir), mas para garantir um domínio domeio natural adaptado e relativo às suas necessidades, então não maispodemos falar em inferioridade técnica das sociedades primitivas:elas demonstram uma capacidade de satisfazer suas necessidadespelo menos igual àquela de que se orgulha a sociedade industrial etécnica. Isso equivale a dizer que todo grupo humano chega a exer-

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cer, pela força, o mínimo necessário de dominação sobre o meio queocupa. Até agora não se tem conhecimento de nenhuma sociedadeque se haja estabelecido, salvo por meio de coação e violência exteri-or, sobre um espaço natural impossível de dominar: ou ela desapare-ce ou muda de território. O que surpreende nos esquimós e nos aus-tralianos é justamente a riqueza, a imaginação e o re� namento da ati-vidade técnica, o poder de invenção e de e� cácia demonstrada pelasferramentas utilizadas por esses povos. Basta fazer uma visita aosmuseus etnográ� cos: o rigor de fabricação dos instrumentos da vidacotidiana faz praticamente de cada modesto utensílio uma obra dearte. Não existe portanto hierarquia no campo da técnica, nem tecno-logia superior ou inferior; só se pode medir um equipamento tecnoló-gico pela sua capacidade de satisfazer, num determinado meio, as ne-cessidades da sociedade. E, sob esse ponto de vista, não parece deforma alguma que as sociedades primitivas se mostraram incapazesde se proporcionar os meios de realizar esse � m. Essa potência deinovação técnica testemunhada pelas sociedades primitivas desdobra-

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se sem dúvida no tempo. Nada é fornecido de uma só vez, há sempreo paciente trabalho de observação e de pesquisa, a longa sucessão deensaios, erros, fracassos e êxitos. Os historiadores da pré-história nosdão notícia de quantos milênios foram necessários para que os ho-mens do paleolítico substituíssem os grosseiros bifaces pelas admirá-veis lâminas do solutreano. Segundo outro ponto de vista, observa-seque a descoberta da agricultura e a domesticação das plantas sãoquase contemporâneas na América e no velho Mundo. E impõe-seconstatar que os ameríndios em nada se mostram inferiores, muitopelo contrário, no que se refere à arte de selecionar e diferençar,múltiplas variedades de plantas foram úteis.

Detenhamo-nos por um momento no funesto interesse que le-vou os índios a quererem instrumentos metálicos. Com efeito, eleestá diretamente relacionado com a questão da economia nas socie-dades primitivas, mas não da maneira que se poderia acreditar. Essassociedades estariam, segundo se a� rma, condenadas à economia desubsistência em razão da inferioridade tecnológica. Como acabamos

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cer, pela força, o mínimo necessário de dominação sobre o meio queocupa. Até agora não se tem conhecimento de nenhuma sociedadeque se haja estabelecido, salvo por meio de coação e violência exteri-or, sobre um espaço natural impossível de dominar: ou ela desapare-ce ou muda de território. O que surpreende nos esquimós e nos aus-tralianos é justamente a riqueza, a imaginação e o re� namento da ati-vidade técnica, o poder de invenção e de e� cácia demonstrada pelasferramentas utilizadas por esses povos. Basta fazer uma visita aosmuseus etnográ� cos: o rigor de fabricação dos instrumentos da vidacotidiana faz praticamente de cada modesto utensílio uma obra dearte. Não existe portanto hierarquia no campo da técnica, nem tecno-logia superior ou inferior; só se pode medir um equipamento tecnoló-gico pela sua capacidade de satisfazer, num determinado meio, as ne-cessidades da sociedade. E, sob esse ponto de vista, não parece deforma alguma que as sociedades primitivas se mostraram incapazesde se proporcionar os meios de realizar esse � m. Essa potência deinovação técnica testemunhada pelas sociedades primitivas desdobra-

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se sem dúvida no tempo. Nada é fornecido de uma só vez, há sempreo paciente trabalho de observação e de pesquisa, a longa sucessão deensaios, erros, fracassos e êxitos. Os historiadores da pré-história nosdão notícia de quantos milênios foram necessários para que os ho-mens do paleolítico substituíssem os grosseiros bifaces pelas admirá-veis lâminas do solutreano. Segundo outro ponto de vista, observa-seque a descoberta da agricultura e a domesticação das plantas sãoquase contemporâneas na América e no velho Mundo. E impõe-seconstatar que os ameríndios em nada se mostram inferiores, muitopelo contrário, no que se refere à arte de selecionar e diferençar,múltiplas variedades de plantas foram úteis.

Detenhamo-nos por um momento no funesto interesse que le-vou os índios a quererem instrumentos metálicos. Com efeito, eleestá diretamente relacionado com a questão da economia nas socie-dades primitivas, mas não da maneira que se poderia acreditar. Essassociedades estariam, segundo se a� rma, condenadas à economia desubsistência em razão da inferioridade tecnológica. Como acabamos

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de ver, esse argumento não tem fundamento em direito nem em fato.Nem em direito, porque não existe escala abstrata pela qual se pos-sam medir as "intensidades" tecnológicas: o equipamento técnico deuma sociedade não é diretamente comparável àquele de uma socieda-de diferente, e de nada serve opor o fuzil ao arco. Nem em fato, umavez que a arqueologia, a etnogra� a, a botânica etc. nos demonstramprecisamente a potência de rentabilidade e de e� cácia das tecnologi-as selvagens. Por conseguinte, se as sociedades primitivas repousamnuma economia de subsistência, não é por lhes faltar uma habilidadetécnica. A verdadeira pergunta que se deve formular é a seguinte: aeconomia dessas sociedades é realmente uma economia de subsistên-cia? Precisando o sentido das expressões: se por economia de subsis-tência não nos contentamos em entender economia sem mercado esem excedentes - o que seria um simples truísmo, o puro registro dadiferença - então com efeito se a� rma que esse tipo de economiapermite à sociedade que ele funda tão somente subsistir; a� rma-seque essa sociedade mobiliza permanentemente a totalidade de suas

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forças produtivas para fornecer a seus membros o mínimo necessárioà subsistência.

Existe aí um preconceito tenaz, curiosamente co-extensivo àideia contraditória e não menos corrente de que o selvagem é pregui-çoso. Se em nossa linguagem popular diz-se "trabalhar como um ne-gro", na América do Sul, por outro lado, diz-se "vagabundo comoum índio". Então, das duas uma: ou o homem das sociedades primi-tivas, americanas e outras, vive em economia de subsistência e passaquase todo o seu tempo à procura de alimento, ou não vive em eco-nomia de subsistência e pode portanto se proporcionar lazeres pro-longados fumando em sua rede. Isso chocou claramente os primeirosobservadores europeus dos índios do Brasil. Grande era a sua repro-vação ao constatarem que latagões cheios de saúde preferiam se em-petecar, como mulheres, de pinturas e plumas em vez de regaremcom suor as suas áreas cultivadas. Tratava-se, portanto, de povos queignoravam deliberadamente que é preciso ganhar o pão com o suordo próprio rosto. Isso era demais, e não durou muito: rapidamente se

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de ver, esse argumento não tem fundamento em direito nem em fato.Nem em direito, porque não existe escala abstrata pela qual se pos-sam medir as "intensidades" tecnológicas: o equipamento técnico deuma sociedade não é diretamente comparável àquele de uma socieda-de diferente, e de nada serve opor o fuzil ao arco. Nem em fato, umavez que a arqueologia, a etnogra� a, a botânica etc. nos demonstramprecisamente a potência de rentabilidade e de e� cácia das tecnologi-as selvagens. Por conseguinte, se as sociedades primitivas repousamnuma economia de subsistência, não é por lhes faltar uma habilidadetécnica. A verdadeira pergunta que se deve formular é a seguinte: aeconomia dessas sociedades é realmente uma economia de subsistên-cia? Precisando o sentido das expressões: se por economia de subsis-tência não nos contentamos em entender economia sem mercado esem excedentes - o que seria um simples truísmo, o puro registro dadiferença - então com efeito se a� rma que esse tipo de economiapermite à sociedade que ele funda tão somente subsistir; a� rma-seque essa sociedade mobiliza permanentemente a totalidade de suas

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forças produtivas para fornecer a seus membros o mínimo necessárioà subsistência.

Existe aí um preconceito tenaz, curiosamente co-extensivo àideia contraditória e não menos corrente de que o selvagem é pregui-çoso. Se em nossa linguagem popular diz-se "trabalhar como um ne-gro", na América do Sul, por outro lado, diz-se "vagabundo comoum índio". Então, das duas uma: ou o homem das sociedades primi-tivas, americanas e outras, vive em economia de subsistência e passaquase todo o seu tempo à procura de alimento, ou não vive em eco-nomia de subsistência e pode portanto se proporcionar lazeres pro-longados fumando em sua rede. Isso chocou claramente os primeirosobservadores europeus dos índios do Brasil. Grande era a sua repro-vação ao constatarem que latagões cheios de saúde preferiam se em-petecar, como mulheres, de pinturas e plumas em vez de regaremcom suor as suas áreas cultivadas. Tratava-se, portanto, de povos queignoravam deliberadamente que é preciso ganhar o pão com o suordo próprio rosto. Isso era demais, e não durou muito: rapidamente se

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puseram os índios para trabalhar, e eles começaram a morrer. Doisaxiomas, com efeito, parecem guiar a marcha da civilização ocidentaldesde a sua aurora: o primeiro estabelece que a verdadeira sociedadese desenvolve sob a sombra protetora do Estado; o segundo enunciaum imperativo categórico: é necessário trabalhar. Os índios, efetiva-mente, só dedicavam pouco tempo àquilo a que damos o nome detrabalho. E apesar disso não morriam de fome. As crônicas da épocasão unânimes em descrever a bela aparência dos adultos, a boa saúdedas numerosas crianças, a abundância e variedade dos recursos ali-mentares. Por conseguinte, a economia de subsistência das tribos in-dígenas não implicava de forma alguma a angustiosa busca, em tem-po integral, de alimento. Uma economia de subsistência é, pois, com-patível com uma considerável limitação do tempo dedicado às ativi-dades produtivas. Era o que se veri� cava com as tribos sul america-nas de agricultores, como os Tupi-Guarani, cuja ociosidade irritavaigualmente os franceses e os portugueses. A vida econômica dessesíndios baseava-se sobretudo na agricultura, e, acessoriamente, na

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caça, na pesca e na coleta. Uma mesma área de cultivo era utilizadapor um período ininterrupto de quatro a seis anos. Em seguida, eraabandonada, por esgotar-se o solo ou, mais provavelmente, em virtu-de da invasão do espaço destacado por uma vegetação parasitária dedifícil eliminação. O grosso do trabalho, efetuado pelos homens,consistia em arrotear, por meio de um machado de pedra e com au-xílio do fogo, a superfície necessária. Essa tarefa, realizada no � m daestação das chuvas, mobilizava os homens durante um ou dois meses.Quase todo o resto do processo agrícola - plantar, mondar, colher -,em conformidade com a divisão sexual do trabalho, era executadopelas mulheres. Donde a seguinte conclusão feliz: os homens, isto é,a metade da população, trabalhavam cerca de dois meses em cadaquatro anos! O resto do tempo era passado em ocupações encaradasnão como trabalho, mas como prazer: caça, pesca; festas e bebedei-ras; a satisfazer, en � m, o seu gosto apaixonado pela guerra.

Ora, esses dados maciços, qualitativos, impressionistas, en-contram uma brilhante con � rmação em pesquisas recentes - algumas

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puseram os índios para trabalhar, e eles começaram a morrer. Doisaxiomas, com efeito, parecem guiar a marcha da civilização ocidentaldesde a sua aurora: o primeiro estabelece que a verdadeira sociedadese desenvolve sob a sombra protetora do Estado; o segundo enunciaum imperativo categórico: é necessário trabalhar. Os índios, efetiva-mente, só dedicavam pouco tempo àquilo a que damos o nome detrabalho. E apesar disso não morriam de fome. As crônicas da épocasão unânimes em descrever a bela aparência dos adultos, a boa saúdedas numerosas crianças, a abundância e variedade dos recursos ali-mentares. Por conseguinte, a economia de subsistência das tribos in-dígenas não implicava de forma alguma a angustiosa busca, em tem-po integral, de alimento. Uma economia de subsistência é, pois, com-patível com uma considerável limitação do tempo dedicado às ativi-dades produtivas. Era o que se veri� cava com as tribos sul america-nas de agricultores, como os Tupi-Guarani, cuja ociosidade irritavaigualmente os franceses e os portugueses. A vida econômica dessesíndios baseava-se sobretudo na agricultura, e, acessoriamente, na

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caça, na pesca e na coleta. Uma mesma área de cultivo era utilizadapor um período ininterrupto de quatro a seis anos. Em seguida, eraabandonada, por esgotar-se o solo ou, mais provavelmente, em virtu-de da invasão do espaço destacado por uma vegetação parasitária dedifícil eliminação. O grosso do trabalho, efetuado pelos homens,consistia em arrotear, por meio de um machado de pedra e com au-xílio do fogo, a superfície necessária. Essa tarefa, realizada no � m daestação das chuvas, mobilizava os homens durante um ou dois meses.Quase todo o resto do processo agrícola - plantar, mondar, colher -,em conformidade com a divisão sexual do trabalho, era executadopelas mulheres. Donde a seguinte conclusão feliz: os homens, isto é,a metade da população, trabalhavam cerca de dois meses em cadaquatro anos! O resto do tempo era passado em ocupações encaradasnão como trabalho, mas como prazer: caça, pesca; festas e bebedei-ras; a satisfazer, en � m, o seu gosto apaixonado pela guerra.

Ora, esses dados maciços, qualitativos, impressionistas, en-contram uma brilhante con � rmação em pesquisas recentes - algumas

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em curso - de caráter rigorosamente demonstrativo, já que medem otempo de trabalho nas sociedades com economia de subsistência.Quer se trate de caçadores-nômades do deserto do Kalahari ou deagricultores sedentários ameríndios, os números obtidos revelamuma divisão média do tempo diário de trabalho inferior a quatro ho-ras por dia. Jacques Lizot, que vive há muitos anos entre os índiosYanomami da Amazônia venezuelana, estabeleceu, cronometrica-mente, que a duração média do tempo, que os adultos dedicam todosos dias ao trabalho, incluídas todas as atividades, mal ultrapassa trêshoras. Não chegamos, pessoalmente, a realizar cálculos desse gêneroentre os Guayaki, caçadores nômades da � oresta paraguaia. Maspode-se assegurar que os índios - homens e mulheres – passavampelo menos a metade do dia em quase completa ociosidade, uma vezque a caça e a coleta se efetuavam, e não todos os dias, entre, maisou menos, 6 e 11 horas da manhã. É provável que estudos desse gê-nero, levados a efeito entre as últimas populações primitivas, resul-

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tassem - consideradas as diferenças ecológicas - em resultados muitoparecidos.

Estamos portanto bem longe da miserabilidade que envolve aideia de economia de subsistência. Não só o homem das sociedadesprimitivas não está de forma alguma sujeito a essa existência animalque seja a busca permanente para assegurar a existência, como é aopreço de um tempo de atividade notavelmente curto que ele alcança -e até ultrapassa -. esse resultado. Isso signi✁ ca que as sociedades pri-mitivas dispõem, se assim o desejarem, de todo o tempo necessáriopara aumentar a produção dos bens materiais. O bom senso questio-na: por que razão os homens dessas sociedades quereriam trabalhar eproduzir mais, quando três ou quatro horas diárias de atividade sãosu✁ cientes para garantir as necessidades do grupo? De que lhes servi-ria isso? Qual seria a utilidade dos excedentes assim acumulados?Qual seria o destino desses excedentes? É sempre pela força que oshomens trabalham além das suas necessidades. E exatamente essaforça está ausente do mundo primitivo: a ausência dessa força exter-

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em curso - de caráter rigorosamente demonstrativo, já que medem otempo de trabalho nas sociedades com economia de subsistência.Quer se trate de caçadores-nômades do deserto do Kalahari ou deagricultores sedentários ameríndios, os números obtidos revelamuma divisão média do tempo diário de trabalho inferior a quatro ho-ras por dia. Jacques Lizot, que vive há muitos anos entre os índiosYanomami da Amazônia venezuelana, estabeleceu, cronometrica-mente, que a duração média do tempo, que os adultos dedicam todosos dias ao trabalho, incluídas todas as atividades, mal ultrapassa trêshoras. Não chegamos, pessoalmente, a realizar cálculos desse gêneroentre os Guayaki, caçadores nômades da � oresta paraguaia. Maspode-se assegurar que os índios - homens e mulheres – passavampelo menos a metade do dia em quase completa ociosidade, uma vezque a caça e a coleta se efetuavam, e não todos os dias, entre, maisou menos, 6 e 11 horas da manhã. É provável que estudos desse gê-nero, levados a efeito entre as últimas populações primitivas, resul-

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tassem - consideradas as diferenças ecológicas - em resultados muitoparecidos.

Estamos portanto bem longe da miserabilidade que envolve aideia de economia de subsistência. Não só o homem das sociedadesprimitivas não está de forma alguma sujeito a essa existência animalque seja a busca permanente para assegurar a existência, como é aopreço de um tempo de atividade notavelmente curto que ele alcança -e até ultrapassa -. esse resultado. Isso signi✁ ca que as sociedades pri-mitivas dispõem, se assim o desejarem, de todo o tempo necessáriopara aumentar a produção dos bens materiais. O bom senso questio-na: por que razão os homens dessas sociedades quereriam trabalhar eproduzir mais, quando três ou quatro horas diárias de atividade sãosu✁ cientes para garantir as necessidades do grupo? De que lhes servi-ria isso? Qual seria a utilidade dos excedentes assim acumulados?Qual seria o destino desses excedentes? É sempre pela força que oshomens trabalham além das suas necessidades. E exatamente essaforça está ausente do mundo primitivo: a ausência dessa força exter-

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na de� ne inclusive a natureza das sociedades primitivas. Podemos ad-mitir, a partir de agora, para quali� car a organização econômica des-sas sociedades, a expressão economia de subsistência, desde que nãoa entendamos no sentido da necessidade de um defeito, de uma inca-pacidade inerentes a esse tipo de sociedade e a sua tecnologia, mas,ao contrário, no sentido da recusa de um excesso inútil da vontade derestringir a atividade produtiva à satisfação das necessidades. E nadamais. Tanto mais que, para examinar as coisas mais de perto, há efe-tivamente produção de excedentes nas sociedades primitivas: a quan-tidade de plantas cultivadas produzidas (mandioca, milho, fumo, al-godão etc.) sempre ultrapassa o que é necessário ao consumo do gru-po, estando essa produção suplementar, evidentemente incluída notempo normal de trabalho. Esse excesso, obtido sem sobre-trabalho,é consumido, consumado, com � nalidades propriamente políticas,por ocasião de festas, convites, visita de estrangeiros etc. A vantagemde um machado de metal sobre um machado de pedra é evidente de-mais para que nela nos detenhamos: podemos, no mesmo tempo, rea-

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lizar com o primeiro talvez dez vezes mais trabalho que com o se-gundo; ou então executar o mesmo trabalho num tempo dez vezesmenor. E, ao descobrirem a superioridade produtiva dos machadosdos homens brancos, os índios os desejaram, não para produziremmais no mesmo tempo, mas para produzirem a mesma coisa numtempo dez vezes mais curto. Mas foi exatamente o contrário que severi� cou, pois, com os machados metálicos, irromperam no mundoprimitivo dos índios a violência, a força, o poder, impostos aos selva-gens pelos civilizados recém-chegados.

As sociedades primitivas são, como escreve Lizot ao propósi-to dos Yanomami, sociedades de recusa do trabalho: "O desprezodos Yanomami pelo trabalho e o seu desinteresse por um progressotecnológico autônomo é certo”1 Primeiras sociedades do lazer, pri-meiras sociedades da abundância, na justa e feliz expressão de

1 Jaques Lizot, "Economie ou sociéte? Quelques thêmes à propos de l'étuded'une communauté d'Amérindiens.” Journal de Ia Sociiti des Amiricanistes, n.9, 1973, pp 137-75.

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na de� ne inclusive a natureza das sociedades primitivas. Podemos ad-mitir, a partir de agora, para quali� car a organização econômica des-sas sociedades, a expressão economia de subsistência, desde que nãoa entendamos no sentido da necessidade de um defeito, de uma inca-pacidade inerentes a esse tipo de sociedade e a sua tecnologia, mas,ao contrário, no sentido da recusa de um excesso inútil da vontade derestringir a atividade produtiva à satisfação das necessidades. E nadamais. Tanto mais que, para examinar as coisas mais de perto, há efe-tivamente produção de excedentes nas sociedades primitivas: a quan-tidade de plantas cultivadas produzidas (mandioca, milho, fumo, al-godão etc.) sempre ultrapassa o que é necessário ao consumo do gru-po, estando essa produção suplementar, evidentemente incluída notempo normal de trabalho. Esse excesso, obtido sem sobre-trabalho,é consumido, consumado, com � nalidades propriamente políticas,por ocasião de festas, convites, visita de estrangeiros etc. A vantagemde um machado de metal sobre um machado de pedra é evidente de-mais para que nela nos detenhamos: podemos, no mesmo tempo, rea-

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lizar com o primeiro talvez dez vezes mais trabalho que com o se-gundo; ou então executar o mesmo trabalho num tempo dez vezesmenor. E, ao descobrirem a superioridade produtiva dos machadosdos homens brancos, os índios os desejaram, não para produziremmais no mesmo tempo, mas para produzirem a mesma coisa numtempo dez vezes mais curto. Mas foi exatamente o contrário que severi� cou, pois, com os machados metálicos, irromperam no mundoprimitivo dos índios a violência, a força, o poder, impostos aos selva-gens pelos civilizados recém-chegados.

As sociedades primitivas são, como escreve Lizot ao propósi-to dos Yanomami, sociedades de recusa do trabalho: "O desprezodos Yanomami pelo trabalho e o seu desinteresse por um progressotecnológico autônomo é certo”1 Primeiras sociedades do lazer, pri-meiras sociedades da abundância, na justa e feliz expressão de

1 Jaques Lizot, "Economie ou sociéte? Quelques thêmes à propos de l'étuded'une communauté d'Amérindiens.” Journal de Ia Sociiti des Amiricanistes, n.9, 1973, pp 137-75.

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Marshall Sahlins. Se o projeto de constituir uma antropologia econô-mica das sociedades primitivas como disciplina autônoma tem umsentido, este não pode advir da simples consideração da vida econô-mica dessas sociedades: permanecemos numa etnologia da descrição,na descrição de uma dimensão não-autônoma da vida social primiti-va. É muito antes, quando essa dimensão do "fato social total" seconstitui como esfera autônoma, que a ideia de uma antropologiaeconômica parece fundamentada: quando desaparece a recusa ao tra-balho, quando o sentido do lazer é substituído pelo gosto da acumula-ção, quando, em síntese, surge no corpo social essa força externa queevocamos antes, essa força sem a qual os selvagens não renunciariamao lazer e que destrói a sociedade como sociedade primitiva; essaforça é a potência de sujeitar, é a capacidade de coerção, é o poderpolítico. Mas, em consequência disso, a antropologia deixa desde en-tão de ser econômica, e perde de alguma forma o seu objeto no pró-prio instante em que crê agarrá-lo, e a economia torna-se política.Para o homem das sociedades primitivas, a atividade de produção é

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exatamente medida, delimitada pelas necessidades que têm de ser sa-tisfeitas, estando implícito que se trata essencialmente das necessida-des energéticas: a produção é projetada sobre a reconstituição do es-toque de energia gasto. Em outros termos, é a vida como naturezaque - com exceção dos bens consumidos socialmente por ocasião dasfestas - fundamenta e determina a quantidade de tempo dedicado areproduzi-la. Isso equivale a dizer que, uma vez assegurada a satisfa-ção global das necessidades energéticas, nada poderia estimular a so-ciedade primitiva a desejar produzir mais, isto é, a alienar o seu tem-po num trabalho sem � nalidade, enquanto esse tempo é disponívelpara a ociosidade, o jogo, a guerra ou a festa. Quais as condições emque se podem transformar essa relação entre o homem primitivo e aatividade de produção? Sob que condições essa atividade se atribuiuma � nalidade diferente da satisfação das necessidades energéticas?Temos aí levantada a questão da origem do trabalho como trabalhoalienado.

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Marshall Sahlins. Se o projeto de constituir uma antropologia econô-mica das sociedades primitivas como disciplina autônoma tem umsentido, este não pode advir da simples consideração da vida econô-mica dessas sociedades: permanecemos numa etnologia da descrição,na descrição de uma dimensão não-autônoma da vida social primiti-va. É muito antes, quando essa dimensão do "fato social total" seconstitui como esfera autônoma, que a ideia de uma antropologiaeconômica parece fundamentada: quando desaparece a recusa ao tra-balho, quando o sentido do lazer é substituído pelo gosto da acumula-ção, quando, em síntese, surge no corpo social essa força externa queevocamos antes, essa força sem a qual os selvagens não renunciariamao lazer e que destrói a sociedade como sociedade primitiva; essaforça é a potência de sujeitar, é a capacidade de coerção, é o poderpolítico. Mas, em consequência disso, a antropologia deixa desde en-tão de ser econômica, e perde de alguma forma o seu objeto no pró-prio instante em que crê agarrá-lo, e a economia torna-se política.Para o homem das sociedades primitivas, a atividade de produção é

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exatamente medida, delimitada pelas necessidades que têm de ser sa-tisfeitas, estando implícito que se trata essencialmente das necessida-des energéticas: a produção é projetada sobre a reconstituição do es-toque de energia gasto. Em outros termos, é a vida como naturezaque - com exceção dos bens consumidos socialmente por ocasião dasfestas - fundamenta e determina a quantidade de tempo dedicado areproduzi-la. Isso equivale a dizer que, uma vez assegurada a satisfa-ção global das necessidades energéticas, nada poderia estimular a so-ciedade primitiva a desejar produzir mais, isto é, a alienar o seu tem-po num trabalho sem � nalidade, enquanto esse tempo é disponívelpara a ociosidade, o jogo, a guerra ou a festa. Quais as condições emque se podem transformar essa relação entre o homem primitivo e aatividade de produção? Sob que condições essa atividade se atribuiuma � nalidade diferente da satisfação das necessidades energéticas?Temos aí levantada a questão da origem do trabalho como trabalhoalienado.

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Na sociedade primitiva, sociedade essencialmente igualitária,os homens são senhores de sua atividade, senhores da circulação dosprodutos dessa atividade: eles só agem para si próprios, mesmo se alei de troca dos bens só mediatiza a relação direta do homem com oseu produto. Tudo se desarruma, por conseguinte, quando a atividadede produção se afasta do seu objetivo inicial quando em vez de pro-duzir apenas para si mesmo, o homem primitivo produz tambémpara os outros, sem troca e sem reciprocidade. Só então é que pode-mos falar em trabalho: quando a regra igualitária de troca deixa deconstituir o "código civil” da sociedade, quando a atividade de pro-dução visa a satisfazer as necessidades dos outros, quando a regra detroca é substituída pelo terror da dívida. Na verdade, é exatamente aíque se inscreve a diferença entre o selvagem amazônico e o índio doimpério inca. O primeiro produz, em suma, para viver, enquanto osegundo trabalha, de mais a mais, para fazer com que outros vivam –os que não trabalham, os senhores que lhe dizem: cumpre que tu pa-

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gues o que nos deves; impõe-se que tu eternamente saldes a dívidaque conosco contraíste.

Quando, na sociedade primitiva, o econômico se deixa identi-

� car como campo autônomo e de� nido, quando a atividade de produ-ção se transforma em trabalho alienado, contabilizado e imposto poraqueles que vão tirar proveito dos frutos desse trabalho, é sinal deque a sociedade não é mais primitiva, tornou-se uma sociedade divi-dida em dominantes e dominados, em senhores e súditos, e de queparou de exorcizar aquilo que está destinado a matá-la: o poder e orespeito ao poder. A principal divisão da sociedade, aquela que servede base a todas as outras, inclusive sem dúvida a divisão do trabalho,é a nova disposição vertical entre a base e o cume, é o grande cortepolítico entre detentores da força, seja ela guerreira ou religiosa, e su-jeitados a essa força. A relação política do poder precede e funda-menta a relação econômica de exploração. Antes de ser econômica, aalienação é política, o poder antecede o trabalho, o econômico é uma

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Na sociedade primitiva, sociedade essencialmente igualitária,os homens são senhores de sua atividade, senhores da circulação dosprodutos dessa atividade: eles só agem para si próprios, mesmo se alei de troca dos bens só mediatiza a relação direta do homem com oseu produto. Tudo se desarruma, por conseguinte, quando a atividadede produção se afasta do seu objetivo inicial quando em vez de pro-duzir apenas para si mesmo, o homem primitivo produz tambémpara os outros, sem troca e sem reciprocidade. Só então é que pode-mos falar em trabalho: quando a regra igualitária de troca deixa deconstituir o "código civil” da sociedade, quando a atividade de pro-dução visa a satisfazer as necessidades dos outros, quando a regra detroca é substituída pelo terror da dívida. Na verdade, é exatamente aíque se inscreve a diferença entre o selvagem amazônico e o índio doimpério inca. O primeiro produz, em suma, para viver, enquanto osegundo trabalha, de mais a mais, para fazer com que outros vivam –os que não trabalham, os senhores que lhe dizem: cumpre que tu pa-

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gues o que nos deves; impõe-se que tu eternamente saldes a dívidaque conosco contraíste.

Quando, na sociedade primitiva, o econômico se deixa identi-

� car como campo autônomo e de� nido, quando a atividade de produ-ção se transforma em trabalho alienado, contabilizado e imposto poraqueles que vão tirar proveito dos frutos desse trabalho, é sinal deque a sociedade não é mais primitiva, tornou-se uma sociedade divi-dida em dominantes e dominados, em senhores e súditos, e de queparou de exorcizar aquilo que está destinado a matá-la: o poder e orespeito ao poder. A principal divisão da sociedade, aquela que servede base a todas as outras, inclusive sem dúvida a divisão do trabalho,é a nova disposição vertical entre a base e o cume, é o grande cortepolítico entre detentores da força, seja ela guerreira ou religiosa, e su-jeitados a essa força. A relação política do poder precede e funda-menta a relação econômica de exploração. Antes de ser econômica, aalienação é política, o poder antecede o trabalho, o econômico é uma

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derivação do político, a emergência do Estado determina o apareci-mento das classes.

Inacabamento, incompletude, falta: não é absolutamente des-se lado que se revela a natureza das sociedades primitivas. Ela im-põe-se bem mais como positividade, como domínio do meio ambien-te natural e do projeto social, como vontade livre de não deixar esca-par para fora de seu ser nada que possa alterá-lo, corrompê-lo e dis-solvê-lo. É a isso que nos devemos prender com � rmeza: as socieda-des primitivas não são os embriões retardatários das sociedades ulte-riores, dos corpos sociais de decolagem "normal" interrompida poralguma estranha doença; elas não se encontram no ponto de partidade uma lógica histórica que conduz diretamente ao termo inscrito deantemão, mas conhecido apenas a posteriori, o nosso próprio sistemasocial. (Se a história é essa lógica, como podem ainda existir socie-dades primitivas?) Tudo isso se traduz, no plano da vida econômica,pela recusa das sociedades primitivas em se deixarem tragar pelo tra-balho e pela produção, através da decisão de limitar os estoques às

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necessidades sociopolíticas, da impossibilidade intrínseca da concor-rência – de que serviria, numa sociedade primitiva, ser rico entre ospobres? – em suma, pela proibição, não formulada ainda que dita, dadesigualdade.

O que é que determina que numa sociedade primitiva a eco-nomia não seja política? Isso se dá, como se vê, devido ao fato daeconomia nela não funcionar de maneira autônoma. Poder-se-ia dizerque, nesse sentido, as sociedades primitivas são sociedades sem eco-nomia por recusarem a economia. Mas deve-se então classi� car tam-bém como ausência a existência do político nessas sociedades? Épreciso admitir que, por se tratar de sociedades "sem lei e sem rei " ocampo político lhes falta? E não tornaríamos dessa forma a cair narotina clássica de um etnocentrismo para o qual a falta assinala emtodos os níveis as diferentes sociedades?

Abordemos pois a questão do político nas sociedades primiti-vas. Não se trata simplesmente de um problema "interessante", deum tema reservado apenas à re✁ exão dos especialistas, pois a etnolo-

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derivação do político, a emergência do Estado determina o apareci-mento das classes.

Inacabamento, incompletude, falta: não é absolutamente des-se lado que se revela a natureza das sociedades primitivas. Ela im-põe-se bem mais como positividade, como domínio do meio ambien-te natural e do projeto social, como vontade livre de não deixar esca-par para fora de seu ser nada que possa alterá-lo, corrompê-lo e dis-solvê-lo. É a isso que nos devemos prender com � rmeza: as socieda-des primitivas não são os embriões retardatários das sociedades ulte-riores, dos corpos sociais de decolagem "normal" interrompida poralguma estranha doença; elas não se encontram no ponto de partidade uma lógica histórica que conduz diretamente ao termo inscrito deantemão, mas conhecido apenas a posteriori, o nosso próprio sistemasocial. (Se a história é essa lógica, como podem ainda existir socie-dades primitivas?) Tudo isso se traduz, no plano da vida econômica,pela recusa das sociedades primitivas em se deixarem tragar pelo tra-balho e pela produção, através da decisão de limitar os estoques às

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necessidades sociopolíticas, da impossibilidade intrínseca da concor-rência – de que serviria, numa sociedade primitiva, ser rico entre ospobres? – em suma, pela proibição, não formulada ainda que dita, dadesigualdade.

O que é que determina que numa sociedade primitiva a eco-nomia não seja política? Isso se dá, como se vê, devido ao fato daeconomia nela não funcionar de maneira autônoma. Poder-se-ia dizerque, nesse sentido, as sociedades primitivas são sociedades sem eco-nomia por recusarem a economia. Mas deve-se então classi� car tam-bém como ausência a existência do político nessas sociedades? Épreciso admitir que, por se tratar de sociedades "sem lei e sem rei " ocampo político lhes falta? E não tornaríamos dessa forma a cair narotina clássica de um etnocentrismo para o qual a falta assinala emtodos os níveis as diferentes sociedades?

Abordemos pois a questão do político nas sociedades primiti-vas. Não se trata simplesmente de um problema "interessante", deum tema reservado apenas à re✁ exão dos especialistas, pois a etnolo-

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gia ganha as dimensões de uma teoria geral (a construir) da socieda-de. A extrema diversidade dos tipos de organização social, a abun-dância, no tempo e no espaço, de sociedades dessemelhantes, nãoimpedem entretanto a possibilidade de uma ordem na descontinuida-de, a possibilidade de uma redução dessa multiplicidade in� nita dediferenças. Redução maciça, uma vez que a história só nos oferece,de fato, dois tipos de sociedade absolutamente irredutíveis um ao ou-tro, duas macro-classes, cada uma das quais reúne em si sociedadesque, além de suas diferenças, têm em comum alguma coisa de funda-mental. Existem por um lado as sociedades primitivas ou sociedadessem Estado; e, por outro lado, as sociedades com Estado. É a presen-ça ou a ausência da formação estatal (suscetível de assumir múltiplasformas) que fornece a toda sociedade o seu elo lógico, que traça umalinha de irreversível descontinuidade entre as sociedades. O apareci-mento do Estado realizou a grande divisão tipológica entre selvagense civilizados, e traçou uma indelével linha de separação além da qualtudo mudou, pois o Tempo se torna História. Tem-se frequentemente

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descoberto - e com razão - no movimento da história mundial duasacelerações decisivas do seu ritmo. O motor da primeira foi o que sedenomina a revolução neolítica (domesticação dos animais, agricultu-ra, descoberta das artes da tecelagem e da cerâmica, sedentarizaçãoconsequente dos grupos humanos etc.). Estamos ainda vivendo, ecada vez mais (se nos é lícita a expressão) no prolongamento da se-gunda aceleração, a revolução industrial do século XIX.

Evidentemente não há dúvida de que a linha de separação ne-olítica alterou de modo considerável as condições de existência mate-rial dos povos outrora paleolíticos. Mas essa transformação teria sidotão radical a ponto de afetar em sua mais extrema profundidade a es-sência das sociedades? Pode-se falar em um funcionamento diferentedos sistemas sociais, conforme sejam eles pré-neolíticos ou pós-neo-líticos? A experiência etnográ� ca indica antes o contrário. A passa-gem do nomadismo à sedentarização seria a consequência mais ricada revolução neolítica, no sentido de que permitiu, pela concentraçãode uma população estabilizada, a formação das cidades e, mais adi-

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gia ganha as dimensões de uma teoria geral (a construir) da socieda-de. A extrema diversidade dos tipos de organização social, a abun-dância, no tempo e no espaço, de sociedades dessemelhantes, nãoimpedem entretanto a possibilidade de uma ordem na descontinuida-de, a possibilidade de uma redução dessa multiplicidade in� nita dediferenças. Redução maciça, uma vez que a história só nos oferece,de fato, dois tipos de sociedade absolutamente irredutíveis um ao ou-tro, duas macro-classes, cada uma das quais reúne em si sociedadesque, além de suas diferenças, têm em comum alguma coisa de funda-mental. Existem por um lado as sociedades primitivas ou sociedadessem Estado; e, por outro lado, as sociedades com Estado. É a presen-ça ou a ausência da formação estatal (suscetível de assumir múltiplasformas) que fornece a toda sociedade o seu elo lógico, que traça umalinha de irreversível descontinuidade entre as sociedades. O apareci-mento do Estado realizou a grande divisão tipológica entre selvagense civilizados, e traçou uma indelével linha de separação além da qualtudo mudou, pois o Tempo se torna História. Tem-se frequentemente

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descoberto - e com razão - no movimento da história mundial duasacelerações decisivas do seu ritmo. O motor da primeira foi o que sedenomina a revolução neolítica (domesticação dos animais, agricultu-ra, descoberta das artes da tecelagem e da cerâmica, sedentarizaçãoconsequente dos grupos humanos etc.). Estamos ainda vivendo, ecada vez mais (se nos é lícita a expressão) no prolongamento da se-gunda aceleração, a revolução industrial do século XIX.

Evidentemente não há dúvida de que a linha de separação ne-olítica alterou de modo considerável as condições de existência mate-rial dos povos outrora paleolíticos. Mas essa transformação teria sidotão radical a ponto de afetar em sua mais extrema profundidade a es-sência das sociedades? Pode-se falar em um funcionamento diferentedos sistemas sociais, conforme sejam eles pré-neolíticos ou pós-neo-líticos? A experiência etnográ� ca indica antes o contrário. A passa-gem do nomadismo à sedentarização seria a consequência mais ricada revolução neolítica, no sentido de que permitiu, pela concentraçãode uma população estabilizada, a formação das cidades e, mais adi-

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ante, dos aparelhos de Estado. Mas determina-se que, ao fazer isso,todo "complexo" tecnocultural desprovido de agricultura está neces-sariamente fadado ao nomadismo. Eis o que é etnogra� camente ine-xato: uma economia de caça, pesca e coleta não exige obrigatoria-mente um modo de vida nômade. Vários exemplos, tanto na Américacomo em outros lugares, o atestam: a ausência de agricultura é com-patível com o sedentarismo. Isso permitiria supor, então, que, se cer-tos povos não chegaram a possuir agricultura, no momento em queela era ecologicamente possível, não foi por incapacidade, atraso tec-nológico, inferioridade cultural, porém, mais simplesmente, porquedela não tinham necessidade.

A história pós-colombiana da América apresenta o caso depopulações de agricultores sedentários que, sob o efeito de uma revo-lução técnica (conquista do cavalo e, acessoriamente, das armas defogo), preferiram abandonar a agricultura para se dedicarem de ma-neira quase exclusiva à caça, cujo rendimento era multiplicado pelamobilidade dez vezes maior proporcionada pelo cavalo. A partir do

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momento em que se tornaram equestres, as tribos das planícies daAmérica do Norte ou as do Chaco, na América do Sul, intensi� ca-ram e estenderam os seus deslocamentos: contudo, estamos aí bemlonge do nomadismo em que recaem geralmente os bandos de caça-dores-coletores (como os Guayaki do Paraguai), e o abandono daagricultura não se traduziu, para os grupos em questão, pela disper-são demográ� ca, nem pela transformação da organização social ante-rior. Que nos é ensinado por esse movimento de maioria de socieda-des que passaram da caça à agricultura e pelo movimento inverso, dealgumas outras, que, partindo da agricultura, chegaram à caça? É queisso parece efetivar-se sem que ocorra qualquer mudança na naturezada sociedade; que esta permanece idêntica a si mesma enquanto setransformam apenas as suas condições de existência material; que arevolução neolítica, se por um lado afetou consideravelmente, e semdúvida facilitou, a vida material dos grupos humanos de então, poroutro lado não acarreta de maneira automática uma perturbação daordem social. Em outros termos, e no que tange às sociedades primi-

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ante, dos aparelhos de Estado. Mas determina-se que, ao fazer isso,todo "complexo" tecnocultural desprovido de agricultura está neces-sariamente fadado ao nomadismo. Eis o que é etnogra� camente ine-xato: uma economia de caça, pesca e coleta não exige obrigatoria-mente um modo de vida nômade. Vários exemplos, tanto na Américacomo em outros lugares, o atestam: a ausência de agricultura é com-patível com o sedentarismo. Isso permitiria supor, então, que, se cer-tos povos não chegaram a possuir agricultura, no momento em queela era ecologicamente possível, não foi por incapacidade, atraso tec-nológico, inferioridade cultural, porém, mais simplesmente, porquedela não tinham necessidade.

A história pós-colombiana da América apresenta o caso depopulações de agricultores sedentários que, sob o efeito de uma revo-lução técnica (conquista do cavalo e, acessoriamente, das armas defogo), preferiram abandonar a agricultura para se dedicarem de ma-neira quase exclusiva à caça, cujo rendimento era multiplicado pelamobilidade dez vezes maior proporcionada pelo cavalo. A partir do

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momento em que se tornaram equestres, as tribos das planícies daAmérica do Norte ou as do Chaco, na América do Sul, intensi� ca-ram e estenderam os seus deslocamentos: contudo, estamos aí bemlonge do nomadismo em que recaem geralmente os bandos de caça-dores-coletores (como os Guayaki do Paraguai), e o abandono daagricultura não se traduziu, para os grupos em questão, pela disper-são demográ� ca, nem pela transformação da organização social ante-rior. Que nos é ensinado por esse movimento de maioria de socieda-des que passaram da caça à agricultura e pelo movimento inverso, dealgumas outras, que, partindo da agricultura, chegaram à caça? É queisso parece efetivar-se sem que ocorra qualquer mudança na naturezada sociedade; que esta permanece idêntica a si mesma enquanto setransformam apenas as suas condições de existência material; que arevolução neolítica, se por um lado afetou consideravelmente, e semdúvida facilitou, a vida material dos grupos humanos de então, poroutro lado não acarreta de maneira automática uma perturbação daordem social. Em outros termos, e no que tange às sociedades primi-

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tivas, a mudança no plano do que o marxismo chama a infraestruturaeconômica não determina de modo algum o seu re� exo consequentea superestrutura política, já que esta surge independente da sua basematerial. O continente americano ilustra claramente a autonomia res-pectiva da economia e da sociedade. Grupos de caçadores-pescado-res-coletores, nômades ou não, apresentam as mesmas propriedadessociopolíticas que os seus vizinhos agricultores sedentários: "infraes-truturas" diferentes, "superestrutura” idêntica. Inversamente, as soci-edades mesoamericanas – sociedades imperiais, sociedades com Es-tado - eram tributárias de uma agricultura que, mais intensiva quealhures, não ✁ cava muito longe, do ponto de vista de seu nível técni-co, da agricultura das tribos "selvagens" da Floresta Tropical: "infra-estrutura" idêntica, "superestruturas" diferentes, uma vez que, numdos casos, se trata de sociedades sem Estado, e, no outro, de Estadosacabados.

É então a ruptura política - e não a mudança econômica - queé decisiva. A verdadeira revolução, na proto-história da humanidade,

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não é a do neolítico, uma vez que ela pode muito bem deixar intactaa antiga organização social, mas a revolução política: é essa apariçãomisteriosa, irreversível, mortal para as sociedades primitivas, que co-nhecemos sob o nome de Estado. E caso haja desejo de conservar osconceitos marxistas de infraestrutura e de superestrutura, então tal-vez seja necessário reconhecer que a infraestrutura é o político e quea superestrutura é o econômico. Somente uma convulsão estrutural,abissal pode transformar, destruindo-a como tal, a sociedade primiti-va: aquilo que faz surgir em seu seio, ou do exterior, aquilo cuja au-sência mesma de✁ ne essa sociedade, a autoridade da hierarquia, a re-lação de poder, a dominação dos homens, o Estado. Seria vão procu-rar sua origem numa hipotética modi✁ cação das relações de produ-ção na sociedade primitiva, modi✁ cação que, dividindo pouco a pou-co a sociedade em ricos e pobres, exploradores e explorados, condu-ziria mecanicamente à instauração de um órgão de exercício do po-der dos primeiros sobre os segundos, ao aparecimento do Estado.

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tivas, a mudança no plano do que o marxismo chama a infraestruturaeconômica não determina de modo algum o seu re� exo consequentea superestrutura política, já que esta surge independente da sua basematerial. O continente americano ilustra claramente a autonomia res-pectiva da economia e da sociedade. Grupos de caçadores-pescado-res-coletores, nômades ou não, apresentam as mesmas propriedadessociopolíticas que os seus vizinhos agricultores sedentários: "infraes-truturas" diferentes, "superestrutura” idêntica. Inversamente, as soci-edades mesoamericanas – sociedades imperiais, sociedades com Es-tado - eram tributárias de uma agricultura que, mais intensiva quealhures, não ✁ cava muito longe, do ponto de vista de seu nível técni-co, da agricultura das tribos "selvagens" da Floresta Tropical: "infra-estrutura" idêntica, "superestruturas" diferentes, uma vez que, numdos casos, se trata de sociedades sem Estado, e, no outro, de Estadosacabados.

É então a ruptura política - e não a mudança econômica - queé decisiva. A verdadeira revolução, na proto-história da humanidade,

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não é a do neolítico, uma vez que ela pode muito bem deixar intactaa antiga organização social, mas a revolução política: é essa apariçãomisteriosa, irreversível, mortal para as sociedades primitivas, que co-nhecemos sob o nome de Estado. E caso haja desejo de conservar osconceitos marxistas de infraestrutura e de superestrutura, então tal-vez seja necessário reconhecer que a infraestrutura é o político e quea superestrutura é o econômico. Somente uma convulsão estrutural,abissal pode transformar, destruindo-a como tal, a sociedade primiti-va: aquilo que faz surgir em seu seio, ou do exterior, aquilo cuja au-sência mesma de✁ ne essa sociedade, a autoridade da hierarquia, a re-lação de poder, a dominação dos homens, o Estado. Seria vão procu-rar sua origem numa hipotética modi✁ cação das relações de produ-ção na sociedade primitiva, modi✁ cação que, dividindo pouco a pou-co a sociedade em ricos e pobres, exploradores e explorados, condu-ziria mecanicamente à instauração de um órgão de exercício do po-der dos primeiros sobre os segundos, ao aparecimento do Estado.

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Hipotética, essa modi� cação da base econômica é ainda maisimpossível. Para que, numa dada sociedade, o regime de produção setransforme no sentido de uma maior imensidade de trabalho que visaa uma produção acrescida de bens, é necessário ou que os homensdessa sociedade desejem essa transformação de seu gênero de vidatradicional, ou que, mesmo não a desejando, eles se vejam obrigadospor uma violência externa. No segundo caso, nada advém da própriasociedade, que sofre a agressão de uma força externa em bene� cio daqual o regime de produção vai modi� car-se: trabalhar e produzirmais para satisfazer as necessidades dos novos senhores do poder. Aopressão política determina, chama, permite a exploração. Mas aevocação de uma tal "encenação" não serve de nada, uma vez que elacoloca uma origem externa, contingente, imediata, da violência esta-tal, e não a lenta realização das condições internas, socioeconômicas,de seu aparecimento. O Estado, dizem, é o instrumento que permiteà classe dominante exercer sua dominação violenta sobre as classesdominadas. Que seja. Para que haja o aparecimento do Estado, é ne-

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cessário pois, que exista antes divisão da sociedade em classes soci-ais antagônicas, ligadas entre si por relação de exploração. Por conse-guinte, a estrutura da sociedade - a divisão em classes - deveria pre-ceder a emergência da máquina estatal. Observemos de passagem afragilidade dessa concepção puramente instrumental do Estado. Se asociedade é organizada por opressores capazes de explorar os opri-midos, é que essa capacidade de impor a alienação repousa sobre ouso de uma força, isto é, sobre o que faz da própria substância do Es-tado "monopólio da violência física legítima". A que necessidade res-ponderia desde então a existência de um Estado, uma vez que sua es-sência - a violência - é imanente à divisão da sociedade, já que é,nesse sentido, dada antecipadamente na opressão exercida por umgrupo social sobre os outros? Ele não seria senão o inútil órgão deuma função preenchida antes e alhures.

Articular o aparecimento da máquina estatal com a transfor-mação da estrutura social leva somente a recuar o problema desseaparecimento. É então necessário perguntar por que se produz, no

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Hipotética, essa modi� cação da base econômica é ainda maisimpossível. Para que, numa dada sociedade, o regime de produção setransforme no sentido de uma maior imensidade de trabalho que visaa uma produção acrescida de bens, é necessário ou que os homensdessa sociedade desejem essa transformação de seu gênero de vidatradicional, ou que, mesmo não a desejando, eles se vejam obrigadospor uma violência externa. No segundo caso, nada advém da própriasociedade, que sofre a agressão de uma força externa em bene� cio daqual o regime de produção vai modi� car-se: trabalhar e produzirmais para satisfazer as necessidades dos novos senhores do poder. Aopressão política determina, chama, permite a exploração. Mas aevocação de uma tal "encenação" não serve de nada, uma vez que elacoloca uma origem externa, contingente, imediata, da violência esta-tal, e não a lenta realização das condições internas, socioeconômicas,de seu aparecimento. O Estado, dizem, é o instrumento que permiteà classe dominante exercer sua dominação violenta sobre as classesdominadas. Que seja. Para que haja o aparecimento do Estado, é ne-

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cessário pois, que exista antes divisão da sociedade em classes soci-ais antagônicas, ligadas entre si por relação de exploração. Por conse-guinte, a estrutura da sociedade - a divisão em classes - deveria pre-ceder a emergência da máquina estatal. Observemos de passagem afragilidade dessa concepção puramente instrumental do Estado. Se asociedade é organizada por opressores capazes de explorar os opri-midos, é que essa capacidade de impor a alienação repousa sobre ouso de uma força, isto é, sobre o que faz da própria substância do Es-tado "monopólio da violência física legítima". A que necessidade res-ponderia desde então a existência de um Estado, uma vez que sua es-sência - a violência - é imanente à divisão da sociedade, já que é,nesse sentido, dada antecipadamente na opressão exercida por umgrupo social sobre os outros? Ele não seria senão o inútil órgão deuma função preenchida antes e alhures.

Articular o aparecimento da máquina estatal com a transfor-mação da estrutura social leva somente a recuar o problema desseaparecimento. É então necessário perguntar por que se produz, no

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seio de uma sociedade primitiva, isto é, de uma sociedade não-divi-dida, a nova divisão dos homens em dominantes e dominados. Qual éo motor dessa transformação maior que culminaria na instalação doEstado? Sua emergência sancionaria a legitimidade de uma proprie-dade privada previamente surgida, e o Estado seria o representante eo protetor dos proprietários. Muito bem. Mas por que se teria o sur-gimento da propriedade privada num tipo de sociedade que ignora,por recusá-la, a propriedade? Por que alguns desejaram proclamarum dia: isto é meu, e como os outros deixaram que se estabelecesseassim o germe daquilo que a sociedade primitiva ignora, a autorida-de, a opressão, o Estado? O que hoje se sabe das sociedades primiti-vas não permite mais procurar no nível econômico a origem do polí-tico. Não é nesse solo que se enraíza a árvore genealógica do Estado.Nada existe, no funcionamento econômico de uma sociedade primiti-va, de uma sociedade sem Estado, que permita a introdução da dife-rença entre mais ricos e mais pobres, pois aí ninguém tem o estranhodesejo de fazer, possuir, parecer mais que seu vizinho. A capacidade,

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igual entre todos, de satisfazer as necessidades materiais, e a troca debens e serviços, que impede constantemente o acúmulo privado dosbens, tornam simplesmente impossível a eclosão de um tal desejo,desejo de posse que é de fato desejo de poder. A sociedade primitiva,primeira sociedade de abundância, não deixa nenhum espaço para odesejo de superabundância.

As sociedades primitivas são sociedades sem Estado porque,nelas, o Estado é impossível. E entretanto todos os povos civilizadosforam primeiramente selvagens: o que fez com que o Estado deixassede ser impossível? Por que os povos cessaram de ser selvagens? Queformidável acontecimento, que revolução permitiram o surgimentoda � gura do Déspota, daquele que comanda os que obedecem? Deonde provém o poder político? Mistério, talvez provisório, da origem.Se parece ainda possível determinar as condições de aparecimentodo Estado, podemos em troca precisar as condições de seu não-apa-recimento, e os textos que foram aqui reunidos tentam cercar o espa-ço do político nas sociedades sem Estado. Sem fé, sem lei sem rei: o

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seio de uma sociedade primitiva, isto é, de uma sociedade não-divi-dida, a nova divisão dos homens em dominantes e dominados. Qual éo motor dessa transformação maior que culminaria na instalação doEstado? Sua emergência sancionaria a legitimidade de uma proprie-dade privada previamente surgida, e o Estado seria o representante eo protetor dos proprietários. Muito bem. Mas por que se teria o sur-gimento da propriedade privada num tipo de sociedade que ignora,por recusá-la, a propriedade? Por que alguns desejaram proclamarum dia: isto é meu, e como os outros deixaram que se estabelecesseassim o germe daquilo que a sociedade primitiva ignora, a autorida-de, a opressão, o Estado? O que hoje se sabe das sociedades primiti-vas não permite mais procurar no nível econômico a origem do polí-tico. Não é nesse solo que se enraíza a árvore genealógica do Estado.Nada existe, no funcionamento econômico de uma sociedade primiti-va, de uma sociedade sem Estado, que permita a introdução da dife-rença entre mais ricos e mais pobres, pois aí ninguém tem o estranhodesejo de fazer, possuir, parecer mais que seu vizinho. A capacidade,

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igual entre todos, de satisfazer as necessidades materiais, e a troca debens e serviços, que impede constantemente o acúmulo privado dosbens, tornam simplesmente impossível a eclosão de um tal desejo,desejo de posse que é de fato desejo de poder. A sociedade primitiva,primeira sociedade de abundância, não deixa nenhum espaço para odesejo de superabundância.

As sociedades primitivas são sociedades sem Estado porque,nelas, o Estado é impossível. E entretanto todos os povos civilizadosforam primeiramente selvagens: o que fez com que o Estado deixassede ser impossível? Por que os povos cessaram de ser selvagens? Queformidável acontecimento, que revolução permitiram o surgimentoda � gura do Déspota, daquele que comanda os que obedecem? Deonde provém o poder político? Mistério, talvez provisório, da origem.Se parece ainda possível determinar as condições de aparecimentodo Estado, podemos em troca precisar as condições de seu não-apa-recimento, e os textos que foram aqui reunidos tentam cercar o espa-ço do político nas sociedades sem Estado. Sem fé, sem lei sem rei: o

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que no século XVI o Ocidente dizia dos índios pode estender-se semdi� culdade a toda sociedade primitiva. Este pode ser mesmo o crité-rio de distinção: uma sociedade é primitiva se nela falta o rei, comofonte legítima da lei, isto é, a máquina estatal. Inversamente, toda so-ciedade não-primitiva é uma sociedade de Estado: pouco importa oregime socioeconômico em vigor. É por isso que podemos reagruparnuma mesma classe os grandes despotismos arcaicos – reis, impera-dores da China ou dos Andes, faraós – as monarquias mais recentes -O Estado sou eu - ou os sistemas sociais contemporâneos, quer o ca-pitalismo seja liberal como na Europa ocidental, ou de Estado comoalhures... Portanto, a tribo não possui um rei, mas um chefe que nãoé chefe de Estado. O que signi� ca isso? Simplesmente que o chefenão dispõe de nenhuma autoridade, de nenhum poder de coerção, denenhum meio de dar uma ordem. O chefe não é um comandante, aspessoas da tribo não têm nenhum dever de obediência. O espaço dache✁ a não é o lugar do poder, e a � gura (mal denominada) do "che-fe" selvagem não pre� gura em nada aquela de um futuro déspota.

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Certamente não é da che� a primitiva que se pode deduzir o aparelhoestatal em geral.

Em que o chefe da tribo não pre� gura o chefe de Estado? Emque uma tal antecipação do Estado é impossível no mundo dos selva-gens? Essa descontinuidade radical - que torna impensável uma pas-sagem progressiva da che� a primitiva à máquina estatal - se fundanaturalmente nessa relação de exclusão que coloca o poder políticono exterior da che� a. O que se deve imaginar é um chefe sem poder,uma instituição, a che� a, estranha à sua essência, a autoridade. Asfunções do chefe, tal como foram analisadas acima, mostram perfei-tamente que não se trata de funções de autoridade. Essencialmenteencarregado de eliminar con✂ itos que podem surgir entre indivíduos,famílias e linhagens etc., ele só dispõe, para restabelecer a ordem e aconcórdia, do prestígio que lhe reconhece a sociedade. Mas evidente-mente prestígio não signi� ca poder, e os meios que o chefe detémpara realizar sua tarefa de paci� cador limitam-se ao uso exclusivo dapalavra: não para arbitrar entre as partes opostas, pois o chefe não é

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que no século XVI o Ocidente dizia dos índios pode estender-se semdi� culdade a toda sociedade primitiva. Este pode ser mesmo o crité-rio de distinção: uma sociedade é primitiva se nela falta o rei, comofonte legítima da lei, isto é, a máquina estatal. Inversamente, toda so-ciedade não-primitiva é uma sociedade de Estado: pouco importa oregime socioeconômico em vigor. É por isso que podemos reagruparnuma mesma classe os grandes despotismos arcaicos – reis, impera-dores da China ou dos Andes, faraós – as monarquias mais recentes -O Estado sou eu - ou os sistemas sociais contemporâneos, quer o ca-pitalismo seja liberal como na Europa ocidental, ou de Estado comoalhures... Portanto, a tribo não possui um rei, mas um chefe que nãoé chefe de Estado. O que signi� ca isso? Simplesmente que o chefenão dispõe de nenhuma autoridade, de nenhum poder de coerção, denenhum meio de dar uma ordem. O chefe não é um comandante, aspessoas da tribo não têm nenhum dever de obediência. O espaço dache✁ a não é o lugar do poder, e a � gura (mal denominada) do "che-fe" selvagem não pre� gura em nada aquela de um futuro déspota.

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Certamente não é da che� a primitiva que se pode deduzir o aparelhoestatal em geral.

Em que o chefe da tribo não pre� gura o chefe de Estado? Emque uma tal antecipação do Estado é impossível no mundo dos selva-gens? Essa descontinuidade radical - que torna impensável uma pas-sagem progressiva da che� a primitiva à máquina estatal - se fundanaturalmente nessa relação de exclusão que coloca o poder políticono exterior da che� a. O que se deve imaginar é um chefe sem poder,uma instituição, a che� a, estranha à sua essência, a autoridade. Asfunções do chefe, tal como foram analisadas acima, mostram perfei-tamente que não se trata de funções de autoridade. Essencialmenteencarregado de eliminar con✂ itos que podem surgir entre indivíduos,famílias e linhagens etc., ele só dispõe, para restabelecer a ordem e aconcórdia, do prestígio que lhe reconhece a sociedade. Mas evidente-mente prestígio não signi� ca poder, e os meios que o chefe detémpara realizar sua tarefa de paci� cador limitam-se ao uso exclusivo dapalavra: não para arbitrar entre as partes opostas, pois o chefe não é

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um juiz e não pode se permitir tomar partido por um ou por outro,mas para, armado apenas de sua eloquência, tentar persuadir as pes-soas da necessidade de se apaziguar, de renunciar às injúrias, de imi-tar os ancestrais que sempre viveram no bom entendimento. Empre-endimento cuja vitória nunca é certa, aposta sempre incerta, pois apalavra do chefe não tem força de lei. Se o esforço de persuasão fra-cassa, então o con� ito corre o risco de se resolver pela violência e oprestígio do chefe pode muito bem não sobreviver a isso, uma vezque ele deu provas de sua impotência em realizar o que se esperadele.

Em função de que a tribo estima que tal homem é digno deser um chefe? No ✁ m das contas, somente em função de sua compe-tência "técnica": dons oratórios, habilidade como caçador, capacida-de de coordenar as atividades guerreiras, ofensivas ou defensivas. E,de forma alguma a sociedade deixa o chefe ir além desse limite téc-nico, ela jamais deixa uma superioridade técnica se transformar emautoridade política. O chefe está a serviço da sociedade, é a socieda-

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de em si mesma - verdadeiro lugar do poder - que exerce como talsua autoridade sobre o chefe. É por isso que é impossível para o che-fe alterar essa relação em seu proveito, colocar a sociedade a seu pró-prio serviço, exercer sobre a tribo o que denominamos poder: a soci-edade nunca tolerará que seu chefe se transforme em déspota. Gran-de vigilância, de certo modo, a que a tribo submete o chefe, prisio-neiro em um espaço do qual ela não o deixa sair. É possível que umchefe deseje ser chefe? Que ele queira substituir o serviço e o interes-se do grupo pela realização do seu próprio desejo? Que a satisfaçãodo seu interesse pessoal ultrapasse a submissão ao projeto coletivo?Em virtude do estreito controle a que a sociedade - por sua naturezade sociedade primitiva e não, é claro, por cuidado consciente e deli-berado de vigilância - submete, como todo o resto, a prática do líder,raros são os casos de chefes colocados em situação de transgredir alei primitiva: tu não és mais que os outros. Raros certamente, mas nãoinexistentes: acontece às vezes que um chefe queira bancar o chefe, enão por cálculo maquiavélico, mas antes porque de✁ nitivamente ele

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um juiz e não pode se permitir tomar partido por um ou por outro,mas para, armado apenas de sua eloquência, tentar persuadir as pes-soas da necessidade de se apaziguar, de renunciar às injúrias, de imi-tar os ancestrais que sempre viveram no bom entendimento. Empre-endimento cuja vitória nunca é certa, aposta sempre incerta, pois apalavra do chefe não tem força de lei. Se o esforço de persuasão fra-cassa, então o con� ito corre o risco de se resolver pela violência e oprestígio do chefe pode muito bem não sobreviver a isso, uma vezque ele deu provas de sua impotência em realizar o que se esperadele.

Em função de que a tribo estima que tal homem é digno deser um chefe? No ✁ m das contas, somente em função de sua compe-tência "técnica": dons oratórios, habilidade como caçador, capacida-de de coordenar as atividades guerreiras, ofensivas ou defensivas. E,de forma alguma a sociedade deixa o chefe ir além desse limite téc-nico, ela jamais deixa uma superioridade técnica se transformar emautoridade política. O chefe está a serviço da sociedade, é a socieda-

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de em si mesma - verdadeiro lugar do poder - que exerce como talsua autoridade sobre o chefe. É por isso que é impossível para o che-fe alterar essa relação em seu proveito, colocar a sociedade a seu pró-prio serviço, exercer sobre a tribo o que denominamos poder: a soci-edade nunca tolerará que seu chefe se transforme em déspota. Gran-de vigilância, de certo modo, a que a tribo submete o chefe, prisio-neiro em um espaço do qual ela não o deixa sair. É possível que umchefe deseje ser chefe? Que ele queira substituir o serviço e o interes-se do grupo pela realização do seu próprio desejo? Que a satisfaçãodo seu interesse pessoal ultrapasse a submissão ao projeto coletivo?Em virtude do estreito controle a que a sociedade - por sua naturezade sociedade primitiva e não, é claro, por cuidado consciente e deli-berado de vigilância - submete, como todo o resto, a prática do líder,raros são os casos de chefes colocados em situação de transgredir alei primitiva: tu não és mais que os outros. Raros certamente, mas nãoinexistentes: acontece às vezes que um chefe queira bancar o chefe, enão por cálculo maquiavélico, mas antes porque de✁ nitivamente ele

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não tem escolha, não pode fazer de outro modo. Expliquemo-nos.Em regra geral, um chefe não tenta (ele nem mesmo sonha) subvertera relação normal (conforme às normas) que mantém com seu grupo,subversão que, de servidor da tribo, faria dele o senhor. Essa relaçãonormal, o grande cacique Alaykin, chefe guerreiro de uma tribo Abi-pione do Chaco argentino, a de� niu perfeitamente na resposta quedeu a um o� cial espanhol que queria convencê-lo de levar sua tribo auma guerra que ela não desejava: "Os Abipiones, por um costume re-cebido de seus ancestrais, fazem tudo de acordo com sua vontade enão de acordo com a do seu cacique. Cabe a mim dirigi-los, mas eunão poderia prejudicar nenhum dos meus sem prejudicar a mim mes-mo; se eu utilizasse as ordens ou a força com meus companheiros,logo eles me dariam as costas. Pre� ro ser amado e não temido poreles” E, não duvidemos, a maior parte dos chefes indígenas teria sus-tentado o mesmo discurso.

Existem entretanto exceções quase sempre ligadas à guerra.Sabemos com efeito que a preparação e a condução de uma expedi-

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ção militar são as únicas circunstâncias em que o chefe pode exercerum mínimo de autoridade, fundada somente, repitamo-lo, em suacompetência técnica de guerrear. Uma vez as coisas terminadas, equalquer que seja o resultado do combate, o chefe guerreiro volta aser um chefe sem poder, e em nenhuma hipótese o prestígio decor-rente da vitória se transforma em autoridade. Tudo se passa precisa-mente sobre essa separação mantida pela sociedade entre poder eprestígio, entre a glória de um guerreiro vencedor e o comando quelhe é proibido exercer. A fonte mais apta para saciar a sede de prestí-gio de um guerreiro é a guerra. Ao mesmo tempo, um chefe cujoprestígio está ligado à guerra não pode conservá-lo e reforçá-lo senãona guerra: é uma espécie de fuga impulsiva para a frente que o fazquerer organizar sem cessar expedições guerreiras das quais ele contaretirar os benefícios (simbólicos) aferentes à vitória. Enquanto seudesejo de guerra corresponder à vontade geral da tribo, em particulardos jovens para os quais a guerra é também o principal meio de ad-quirir prestígio, e enquanto a vontade do chefe não ultrapassar a da

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não tem escolha, não pode fazer de outro modo. Expliquemo-nos.Em regra geral, um chefe não tenta (ele nem mesmo sonha) subvertera relação normal (conforme às normas) que mantém com seu grupo,subversão que, de servidor da tribo, faria dele o senhor. Essa relaçãonormal, o grande cacique Alaykin, chefe guerreiro de uma tribo Abi-pione do Chaco argentino, a de� niu perfeitamente na resposta quedeu a um o� cial espanhol que queria convencê-lo de levar sua tribo auma guerra que ela não desejava: "Os Abipiones, por um costume re-cebido de seus ancestrais, fazem tudo de acordo com sua vontade enão de acordo com a do seu cacique. Cabe a mim dirigi-los, mas eunão poderia prejudicar nenhum dos meus sem prejudicar a mim mes-mo; se eu utilizasse as ordens ou a força com meus companheiros,logo eles me dariam as costas. Pre� ro ser amado e não temido poreles” E, não duvidemos, a maior parte dos chefes indígenas teria sus-tentado o mesmo discurso.

Existem entretanto exceções quase sempre ligadas à guerra.Sabemos com efeito que a preparação e a condução de uma expedi-

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ção militar são as únicas circunstâncias em que o chefe pode exercerum mínimo de autoridade, fundada somente, repitamo-lo, em suacompetência técnica de guerrear. Uma vez as coisas terminadas, equalquer que seja o resultado do combate, o chefe guerreiro volta aser um chefe sem poder, e em nenhuma hipótese o prestígio decor-rente da vitória se transforma em autoridade. Tudo se passa precisa-mente sobre essa separação mantida pela sociedade entre poder eprestígio, entre a glória de um guerreiro vencedor e o comando quelhe é proibido exercer. A fonte mais apta para saciar a sede de prestí-gio de um guerreiro é a guerra. Ao mesmo tempo, um chefe cujoprestígio está ligado à guerra não pode conservá-lo e reforçá-lo senãona guerra: é uma espécie de fuga impulsiva para a frente que o fazquerer organizar sem cessar expedições guerreiras das quais ele contaretirar os benefícios (simbólicos) aferentes à vitória. Enquanto seudesejo de guerra corresponder à vontade geral da tribo, em particulardos jovens para os quais a guerra é também o principal meio de ad-quirir prestígio, e enquanto a vontade do chefe não ultrapassar a da

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sociedade, as relações habituais entre o segundo e o primeiro man-ter-se-ão inalteradas. Mas o risco de uma ultrapassagem do desejo dasociedade pelo desejo do seu chefe, o risco para ele de ir além do quedeve, de sair do estreito limite determinado à sua função, é perma-nente. O chefe às vezes aceita corrê-lo, tenta impor à tribo seu proje-to individual tenta substituir o interesse coletivo por seu interessepessoal. Alterando a relação normal que determina o líder comomeio a serviço de um � m socialmente de� nido, ele tenta fazer da so-ciedade o meio de realizar um � m puramente privado: a tribo a ser-viço do chefe, e não mais o chefe a serviço da tribo. Se isso funcio-nasse, então teríamos aí a terra natal do poder político, como coer-ção e violência, teríamos a primeira encarnação da � gura mínima doEstado. Mas isso nunca funciona.

No belíssimo relato dos vinte anos que passou entre os Yano-mami,2 Helena Valero fala longamente de seu primeiro marido, o lí-

2 Ettore Biocca, Yanoama (Paris: Pkm, 199?).

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der guerreiro Fousiwe. Sua história ilustra perfeitamente o destino dache� a selvagem quando ela é, por força das coisas, levada a transgre-dir a lei da sociedade primitiva que, verdadeiro lugar do poder, recu-sa cedê-lo, recusa delegá-lo. Fousiwe foi então reconhecido como"chefe" por sua tribo em virtude do prestígio que adquiriu como or-ganizador e condutor de ataques vitoriosos contra os grupos inimi-gos. Ele dirige consequentemente guerras desejadas por sua tribo, co-loca à disposição de seu grupo sua competência técnica de homem deguerra, sua coragem, seu dinamismo, e é o instrumento e� caz de suasociedade. Mas a infelicidade do guerreiro selvagem é que o prestígioadquirido na guerra se perde rapidamente, se não se renovam cons-tantemente as fontes. A tribo, para a qual o chefe é apenas “um ins-trumento apto a realizar sua vontade”, esquece facilmente as vitóriaspassadas do chefe. Para ele, nada é de� nitivamente adquirido e, seele quer devolver às pessoas a memória tão facilmente perdida de seuprestígio e de sua glória, não é apenas exaltando suas antigas faça-nhas que o conseguirá, mas antes suscitando a ocasião de novos feitos

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sociedade, as relações habituais entre o segundo e o primeiro man-ter-se-ão inalteradas. Mas o risco de uma ultrapassagem do desejo dasociedade pelo desejo do seu chefe, o risco para ele de ir além do quedeve, de sair do estreito limite determinado à sua função, é perma-nente. O chefe às vezes aceita corrê-lo, tenta impor à tribo seu proje-to individual tenta substituir o interesse coletivo por seu interessepessoal. Alterando a relação normal que determina o líder comomeio a serviço de um � m socialmente de� nido, ele tenta fazer da so-ciedade o meio de realizar um � m puramente privado: a tribo a ser-viço do chefe, e não mais o chefe a serviço da tribo. Se isso funcio-nasse, então teríamos aí a terra natal do poder político, como coer-ção e violência, teríamos a primeira encarnação da � gura mínima doEstado. Mas isso nunca funciona.

No belíssimo relato dos vinte anos que passou entre os Yano-mami,2 Helena Valero fala longamente de seu primeiro marido, o lí-

2 Ettore Biocca, Yanoama (Paris: Pkm, 199?).

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der guerreiro Fousiwe. Sua história ilustra perfeitamente o destino dache� a selvagem quando ela é, por força das coisas, levada a transgre-dir a lei da sociedade primitiva que, verdadeiro lugar do poder, recu-sa cedê-lo, recusa delegá-lo. Fousiwe foi então reconhecido como"chefe" por sua tribo em virtude do prestígio que adquiriu como or-ganizador e condutor de ataques vitoriosos contra os grupos inimi-gos. Ele dirige consequentemente guerras desejadas por sua tribo, co-loca à disposição de seu grupo sua competência técnica de homem deguerra, sua coragem, seu dinamismo, e é o instrumento e� caz de suasociedade. Mas a infelicidade do guerreiro selvagem é que o prestígioadquirido na guerra se perde rapidamente, se não se renovam cons-tantemente as fontes. A tribo, para a qual o chefe é apenas “um ins-trumento apto a realizar sua vontade”, esquece facilmente as vitóriaspassadas do chefe. Para ele, nada é de� nitivamente adquirido e, seele quer devolver às pessoas a memória tão facilmente perdida de seuprestígio e de sua glória, não é apenas exaltando suas antigas faça-nhas que o conseguirá, mas antes suscitando a ocasião de novos feitos

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bélicos. Um guerreiro não tem escolha: ele está condenado a desejara guerra. É exatamente aí que se dá o limite do consenso que o reco-nhece como chefe. Se seu desejo de guerra coincide com o desejo deguerra da sociedade, esta continua a segui-lo. Mas se o desejo deguerra do chefe tenta se estabelecer sobre uma sociedade animadapelo desejo de paz - com efeito, nenhuma sociedade deseja sempreguerrear -, então a relação entre o chefe e a tribo se modi� ca, o lídertenta utilizar a sociedade como instrumento de seu objetivo individu-al, como meio de sua meta pessoal. Ora, não o esqueçamos, o chefeprimitivo é um chefe sem poder: como poderia ele impor a lei de seudesejo a uma sociedade que o recusa? Ele é ao mesmo tempo prisio-neiro de seu desejo de prestígio e de sua impotência em realizá-lo. Oque pode então ocorrer? O guerreiro está destinado à solidão, a essecombate duvidoso que só o conduz à morte. Tal foi o destino doguerreiro sul-americano Fouiswe. Por ter querido impor aos seusuma guerra que eles não desejavam, foi abandonado por sua tribo. Sórestava lutar sozinho nessa guerra, e ele morreu crivado de ✁ echas. A

39

morte é o destino do guerreiro, pois a sociedade primitiva é tal quenão permite que a vontade de poder substitua o desejo de prestígio.Ou, em outros termos, na sociedade primitiva, o chefe, como possi-bilidade de vontade de poder, está antecipadamente condenado àmorte. O poder político isolado é impossível na sociedade primitiva;nela não há lugar, não há vazio que o Estado pudesse preencher. Me-nos trágica em sua conclusão, mas muito semelhante no seu desen-volvimento é a história de um outro líder indígena, in � nitamentemais célebre que o obscuro guerreiro amazônico, uma vez que se tra-ta do famoso chefe apache Gerônimo. A leitura de suas Memórias3 ,se bem que bastante futilmente recolhidas, se revela muito instrutiva.Gerônimo não passava de um jovem guerreiro como os outros quan-do os soldados mexicanos atacaram o acampamento de sua tribo emassacraram mulheres e crianças. A família de Gerônimo foi inteira-mente exterminada. As diversas tribos Apache se aliaram para se

3 Mimoires de Géronimo (Paris: Maspero, 197:1.).

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bélicos. Um guerreiro não tem escolha: ele está condenado a desejara guerra. É exatamente aí que se dá o limite do consenso que o reco-nhece como chefe. Se seu desejo de guerra coincide com o desejo deguerra da sociedade, esta continua a segui-lo. Mas se o desejo deguerra do chefe tenta se estabelecer sobre uma sociedade animadapelo desejo de paz - com efeito, nenhuma sociedade deseja sempreguerrear -, então a relação entre o chefe e a tribo se modi� ca, o lídertenta utilizar a sociedade como instrumento de seu objetivo individu-al, como meio de sua meta pessoal. Ora, não o esqueçamos, o chefeprimitivo é um chefe sem poder: como poderia ele impor a lei de seudesejo a uma sociedade que o recusa? Ele é ao mesmo tempo prisio-neiro de seu desejo de prestígio e de sua impotência em realizá-lo. Oque pode então ocorrer? O guerreiro está destinado à solidão, a essecombate duvidoso que só o conduz à morte. Tal foi o destino doguerreiro sul-americano Fouiswe. Por ter querido impor aos seusuma guerra que eles não desejavam, foi abandonado por sua tribo. Sórestava lutar sozinho nessa guerra, e ele morreu crivado de ✁ echas. A

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morte é o destino do guerreiro, pois a sociedade primitiva é tal quenão permite que a vontade de poder substitua o desejo de prestígio.Ou, em outros termos, na sociedade primitiva, o chefe, como possi-bilidade de vontade de poder, está antecipadamente condenado àmorte. O poder político isolado é impossível na sociedade primitiva;nela não há lugar, não há vazio que o Estado pudesse preencher. Me-nos trágica em sua conclusão, mas muito semelhante no seu desen-volvimento é a história de um outro líder indígena, in � nitamentemais célebre que o obscuro guerreiro amazônico, uma vez que se tra-ta do famoso chefe apache Gerônimo. A leitura de suas Memórias3 ,se bem que bastante futilmente recolhidas, se revela muito instrutiva.Gerônimo não passava de um jovem guerreiro como os outros quan-do os soldados mexicanos atacaram o acampamento de sua tribo emassacraram mulheres e crianças. A família de Gerônimo foi inteira-mente exterminada. As diversas tribos Apache se aliaram para se

3 Mimoires de Géronimo (Paris: Maspero, 197:1.).

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vingar dos assassinos e Gerônimo foi encarregado de conduzir ocombate. Sucesso completo para os Apache, que eliminaram a guar-nição mexicana. O prestígio guerreiro de Gerônimo, principal artí� ceda vitória, foi imenso. E, desde esse momento, as coisas mudaram,alguma coisa se passou em Gerônimo, alguma coisa sucedeu. Pois se,para os Apache, satisfeitos com uma vitória que realizou perfeita-mente seu desejo de vingança, o caso estava de alguma forma acaba-do, para Gerônimo, os rumores eram outros: ele queria continuar ase vingar dos mexicanos e considerou insu � ciente a sangrenta derrotaimposta aos soldados. Mas ele não pôde, é claro, atacar sozinho asaldeias mexicanas. Tentou pois, convencer os seus a fazer uma novaexpedição. Inutilmente. A sociedade Apache, uma vez realizado oobjetivo coletivo – a vingança – aspirava ao repouso. O objetivo deGerônimo foi, portanto, um objetivo individual para cuja realizaçãoele pretendeu arrastar a tribo. Ele quis fazer da tribo o instrumentode seu desejo, ao passo que antes ele foi, em função de sua compe-tência como guerreiro, o instrumento da tribo. Evidentemente, os

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Apache jamais quiseram seguir Gerônimo, da mesma forma que osYanomami se recusaram a seguir Fousiwe. Quando muito o chefeApache conseguia (por vezes, ao preço de mentiras) convencer al-guns jovens ávidos de glória e de saque. Para uma dessas expedições,o exército de Gerônimo, heroico e ridículo compunha-se de dois ho-mens! Os Apache, que, em função das circunstâncias, aceitavam a li-derança de Gerônimo em virtude da sua habilidade de combatente,sistematicamente lhe davam as costas quando ele queria fazer suaguerra pessoal. Gerônimo foi o último grande chefe de guerra norte-americano, que passou trinta anos de sua vida querendo "bancar ochefe" e não conseguiu...

A propriedade essencial (quer dizer, que toca a essência) dasociedade primitiva é exercer um poder absoluto e completo sobretudo que a compõe, é interditar a autonomia de qualquer um dossubconjuntos que a constituem, é manter todos os movimentos inter-nos, conscientes e inconscientes, que alimentam a vida social nos li-mites e na direção desejados pela sociedade. A tribo manifesta, entre

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vingar dos assassinos e Gerônimo foi encarregado de conduzir ocombate. Sucesso completo para os Apache, que eliminaram a guar-nição mexicana. O prestígio guerreiro de Gerônimo, principal artí� ceda vitória, foi imenso. E, desde esse momento, as coisas mudaram,alguma coisa se passou em Gerônimo, alguma coisa sucedeu. Pois se,para os Apache, satisfeitos com uma vitória que realizou perfeita-mente seu desejo de vingança, o caso estava de alguma forma acaba-do, para Gerônimo, os rumores eram outros: ele queria continuar ase vingar dos mexicanos e considerou insu � ciente a sangrenta derrotaimposta aos soldados. Mas ele não pôde, é claro, atacar sozinho asaldeias mexicanas. Tentou pois, convencer os seus a fazer uma novaexpedição. Inutilmente. A sociedade Apache, uma vez realizado oobjetivo coletivo – a vingança – aspirava ao repouso. O objetivo deGerônimo foi, portanto, um objetivo individual para cuja realizaçãoele pretendeu arrastar a tribo. Ele quis fazer da tribo o instrumentode seu desejo, ao passo que antes ele foi, em função de sua compe-tência como guerreiro, o instrumento da tribo. Evidentemente, os

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Apache jamais quiseram seguir Gerônimo, da mesma forma que osYanomami se recusaram a seguir Fousiwe. Quando muito o chefeApache conseguia (por vezes, ao preço de mentiras) convencer al-guns jovens ávidos de glória e de saque. Para uma dessas expedições,o exército de Gerônimo, heroico e ridículo compunha-se de dois ho-mens! Os Apache, que, em função das circunstâncias, aceitavam a li-derança de Gerônimo em virtude da sua habilidade de combatente,sistematicamente lhe davam as costas quando ele queria fazer suaguerra pessoal. Gerônimo foi o último grande chefe de guerra norte-americano, que passou trinta anos de sua vida querendo "bancar ochefe" e não conseguiu...

A propriedade essencial (quer dizer, que toca a essência) dasociedade primitiva é exercer um poder absoluto e completo sobretudo que a compõe, é interditar a autonomia de qualquer um dossubconjuntos que a constituem, é manter todos os movimentos inter-nos, conscientes e inconscientes, que alimentam a vida social nos li-mites e na direção desejados pela sociedade. A tribo manifesta, entre

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outras (e pela violência se for necessário), sua vontade de preservaressa ordem social primitiva, interditando a emergência de um poderpolítico individual, central e separado. Sociedade à qual nada escapa,que nada deixa sair de si mesma, pois todas as saídas estão fechadas.Sociedade que, por conseguinte, deveria eternamente se reproduzirsem que nada de substancial a afete através do tempo. Há contudoum campo que, parece, escapa, ao menos em parte, ao controle dasociedade: é um "� uxo" ao qual ela só parece poder impor uma "co-di✁ cação" imperfeita. Trata-se do domínio demográ✁ co, domínio re-gido por regras culturais, mas também por leis naturais, espaço dedesdobramento de uma vida enraizada tanto no social quanto no bio-lógico, lugar de uma "máquina" que funciona talvez segundo umamecânica própria e que estaria, em seguida, fora de alcance da em-presa social.

Sem sonhar em substituir um determinismo econômico porum determinismo demográ✁ co, em inscrever nas causas - o cresci-mento demográ✁ co - a necessidade dos efeitos - transformação da or-

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ganização social - é entretanto necessário constatar, sobretudo naAmérica, o peso sociológico do número da população, a capacidadeque possui o aumento das densidades de abalar - não dissemos des-truir a sociedade primitiva. Com efeito é bastante provável que umacondição fundamental da existência da sociedade primitiva consistanuma fraqueza relativa de seu porte demográ✁ co. As coisas só po-dem funcionar segundo o modelo primitivo se a população é pouconumerosa. Ou, em outros termos, para que uma sociedade seja pri-mitiva, é necessário que ela seja pequena em número. E, de fato, oque se constata no mundo dos selvagens é um extraordinário esface-lamento das “nações”, tribos, sociedades em grupos locais que tratamcuidadosamente de conservar sua autonomia no seio do conjunto doqual fazem parte, com o risco de concluir alianças provisórias comseus vizinhos “compatriotas”, se as circunstâncias – guerreiras emparticular – o exigem. Essa atomização do universo tribal é certa-mente um meio e✁ caz de impedir a constituição de conjuntos socio-

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outras (e pela violência se for necessário), sua vontade de preservaressa ordem social primitiva, interditando a emergência de um poderpolítico individual, central e separado. Sociedade à qual nada escapa,que nada deixa sair de si mesma, pois todas as saídas estão fechadas.Sociedade que, por conseguinte, deveria eternamente se reproduzirsem que nada de substancial a afete através do tempo. Há contudoum campo que, parece, escapa, ao menos em parte, ao controle dasociedade: é um "� uxo" ao qual ela só parece poder impor uma "co-di✁ cação" imperfeita. Trata-se do domínio demográ✁ co, domínio re-gido por regras culturais, mas também por leis naturais, espaço dedesdobramento de uma vida enraizada tanto no social quanto no bio-lógico, lugar de uma "máquina" que funciona talvez segundo umamecânica própria e que estaria, em seguida, fora de alcance da em-presa social.

Sem sonhar em substituir um determinismo econômico porum determinismo demográ✁ co, em inscrever nas causas - o cresci-mento demográ✁ co - a necessidade dos efeitos - transformação da or-

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ganização social - é entretanto necessário constatar, sobretudo naAmérica, o peso sociológico do número da população, a capacidadeque possui o aumento das densidades de abalar - não dissemos des-truir a sociedade primitiva. Com efeito é bastante provável que umacondição fundamental da existência da sociedade primitiva consistanuma fraqueza relativa de seu porte demográ✁ co. As coisas só po-dem funcionar segundo o modelo primitivo se a população é pouconumerosa. Ou, em outros termos, para que uma sociedade seja pri-mitiva, é necessário que ela seja pequena em número. E, de fato, oque se constata no mundo dos selvagens é um extraordinário esface-lamento das “nações”, tribos, sociedades em grupos locais que tratamcuidadosamente de conservar sua autonomia no seio do conjunto doqual fazem parte, com o risco de concluir alianças provisórias comseus vizinhos “compatriotas”, se as circunstâncias – guerreiras emparticular – o exigem. Essa atomização do universo tribal é certa-mente um meio e✁ caz de impedir a constituição de conjuntos socio-

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políticos que integram os grupos locais, e, mais além um meio deproibir a emergência do Estado que, em sua essência, é uni� cador.

Ora, é perturbador constatar que os Tupi-Guarani parecem,na época que a Europa os descobre, afastar-se sensivelmente do mo-delo primitivo habitual, e em dois pomos essenciais: a taxa de densi-dade demográ✁ ca de suas tribos ou grupos locais ultrapassa clara-mente a das populações vizinhas; por outro lado, o porte dos gruposlocais não tem medida comum com o das unidades sociopolíticas daFloresta Tropical. Evidentemente, as aldeias tupinambá, por exem-plo, que reuniam vários milhares de habitantes, não eram cidades;mas deixavam igualmente de pertencer ao horizonte "clássico" da di-mensão demográ� ca das sociedades vizinhas. Sobre essa base de ex-pansão demográ� ca e de concentração da população se destaca - fatotambém inabitual na América dos selvagens, ao menos na dos impé-rios - a tendência evidente das che� as em obter um poder desconhe-cido alhures. Os chefes tupi-guarani não eram certamente déspotas,mas não eram mais de modo algum chefes sem poder. Não cabe aqui

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empreender a longa e complexa tarefa de analisar a che� a entre osTupi-Guarani. Baste-nos simplesmente revelar, num extremo da so-ciedade, se é possível dizer, o crescimento demográ� co, e, no outro,a lenta emergência do poder político. Sem dúvida não cabe à etnolo-gia (ou ao menos a ela sozinha) responder às questões das causas daexpansão demográ� ca numa sociedade primitiva. Em compensação,incumbe a essa disciplina a articulação do demográ� co e do político,a análise da força que o primeiro exerce sobre o segundo através dosociológico.

Não cessamos, ao longo deste texto, de proclamar a impossi-bilidade interna do poder político separado numa sociedade primiti-va, a impossibilidade de uma gênese do Estado a partir do interior dasociedade primitiva. E eis que, ao que parece, evocamos nós mes-mos, contraditoriamente, os Tupi-Guarani como um caso de socieda-de primitiva onde começava a surgir o que poderia ter podido se tor-nar o Estado. Incontestavelmente se desenvolvia, nessas sociedades,um processo, sem dúvida, em curso já há muito tempo, de constitui-

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políticos que integram os grupos locais, e, mais além um meio deproibir a emergência do Estado que, em sua essência, é uni� cador.

Ora, é perturbador constatar que os Tupi-Guarani parecem,na época que a Europa os descobre, afastar-se sensivelmente do mo-delo primitivo habitual, e em dois pomos essenciais: a taxa de densi-dade demográ✁ ca de suas tribos ou grupos locais ultrapassa clara-mente a das populações vizinhas; por outro lado, o porte dos gruposlocais não tem medida comum com o das unidades sociopolíticas daFloresta Tropical. Evidentemente, as aldeias tupinambá, por exem-plo, que reuniam vários milhares de habitantes, não eram cidades;mas deixavam igualmente de pertencer ao horizonte "clássico" da di-mensão demográ� ca das sociedades vizinhas. Sobre essa base de ex-pansão demográ� ca e de concentração da população se destaca - fatotambém inabitual na América dos selvagens, ao menos na dos impé-rios - a tendência evidente das che� as em obter um poder desconhe-cido alhures. Os chefes tupi-guarani não eram certamente déspotas,mas não eram mais de modo algum chefes sem poder. Não cabe aqui

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empreender a longa e complexa tarefa de analisar a che� a entre osTupi-Guarani. Baste-nos simplesmente revelar, num extremo da so-ciedade, se é possível dizer, o crescimento demográ� co, e, no outro,a lenta emergência do poder político. Sem dúvida não cabe à etnolo-gia (ou ao menos a ela sozinha) responder às questões das causas daexpansão demográ� ca numa sociedade primitiva. Em compensação,incumbe a essa disciplina a articulação do demográ� co e do político,a análise da força que o primeiro exerce sobre o segundo através dosociológico.

Não cessamos, ao longo deste texto, de proclamar a impossi-bilidade interna do poder político separado numa sociedade primiti-va, a impossibilidade de uma gênese do Estado a partir do interior dasociedade primitiva. E eis que, ao que parece, evocamos nós mes-mos, contraditoriamente, os Tupi-Guarani como um caso de socieda-de primitiva onde começava a surgir o que poderia ter podido se tor-nar o Estado. Incontestavelmente se desenvolvia, nessas sociedades,um processo, sem dúvida, em curso já há muito tempo, de constitui-

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ção de uma che� a cujo poder político não era negligenciável, a pontomesmo de os cronistas franceses e portugueses da época não hesita-rem em atribuir aos grandes chefes de federações de tribos os títulosde "reis de província” ou “régulos. Esse processo de transformaçãoprofunda da sociedade tupi-guarani teve uma interrupção brutal coma chegada dos europeus. Quererá isso dizer que, se o descobrimentodo Novo Mundo tivesse sido adiado de um século por exemplo, umaformação estatal seria imposta às tribos indígenas do litoral brasilei-ro? Sempre é fácil, e arriscado, reconstruir uma história hipotéticaque nada viria desmentir. Mas, no presente caso, pensamos poderresponder com � rmeza pela negativa: não foi a chegada dos ociden-tais que cortou a emergência possível do Estado entre os Tupi-Gua-rani, e sim um sobressalto da própria sociedade enquanto sociedadeprimitiva, um sobressalto, uma sublevação de alguma forma dirigida,se não explicitamente contra as che� as, ao menos, por seus efeitos,destruidor do poder dos chefes. Queremos falar desse estranho fenô-meno que, desde os últimos decênios do século XV, agitava as tribos

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tupi-guarani a predicação in✁ amada de alguns homens que, de grupoem grupo, concitavam os índios a tudo abandonar para se lançaremna procura da Terra sem Mal, do paraíso terrestre.

Che� a e linguagem estão, na sociedade primitiva, intrinseca-mente ligadas; a palavra é o único poder concedido ao chefe: mais doque isso a palavra é para ele um dever. Mas há uma outra palavra,um outro discurso, articulado não pelos chefes, mas por esses ho-mens que, nos séculos XV e XVI, arrastavam atrás de si milhares deíndios em loucas migrações em busca da pátria dos deuses: é o dis-curso dos karai, é a palavra profética, palavra virulenta eminente-mente subversiva que chama os índios a empreender o que se devereconhecer como a destruição da sociedade. O apelo dos profetas prao abandono da terra má, isto é, da sociedade tal como ela era, paraalcançar a Terra sem Mal, a sociedade da felicidade divina, implicavaa condenação à morte da estrutura da sociedade e do seu sistema denormas. Ora, a essa sociedade se impunha cada vez mais fortementea marca da autoridade dos chefes, o peso de seu poder político nas-

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ção de uma che� a cujo poder político não era negligenciável, a pontomesmo de os cronistas franceses e portugueses da época não hesita-rem em atribuir aos grandes chefes de federações de tribos os títulosde "reis de província” ou “régulos. Esse processo de transformaçãoprofunda da sociedade tupi-guarani teve uma interrupção brutal coma chegada dos europeus. Quererá isso dizer que, se o descobrimentodo Novo Mundo tivesse sido adiado de um século por exemplo, umaformação estatal seria imposta às tribos indígenas do litoral brasilei-ro? Sempre é fácil, e arriscado, reconstruir uma história hipotéticaque nada viria desmentir. Mas, no presente caso, pensamos poderresponder com � rmeza pela negativa: não foi a chegada dos ociden-tais que cortou a emergência possível do Estado entre os Tupi-Gua-rani, e sim um sobressalto da própria sociedade enquanto sociedadeprimitiva, um sobressalto, uma sublevação de alguma forma dirigida,se não explicitamente contra as che� as, ao menos, por seus efeitos,destruidor do poder dos chefes. Queremos falar desse estranho fenô-meno que, desde os últimos decênios do século XV, agitava as tribos

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tupi-guarani a predicação in✁ amada de alguns homens que, de grupoem grupo, concitavam os índios a tudo abandonar para se lançaremna procura da Terra sem Mal, do paraíso terrestre.

Che� a e linguagem estão, na sociedade primitiva, intrinseca-mente ligadas; a palavra é o único poder concedido ao chefe: mais doque isso a palavra é para ele um dever. Mas há uma outra palavra,um outro discurso, articulado não pelos chefes, mas por esses ho-mens que, nos séculos XV e XVI, arrastavam atrás de si milhares deíndios em loucas migrações em busca da pátria dos deuses: é o dis-curso dos karai, é a palavra profética, palavra virulenta eminente-mente subversiva que chama os índios a empreender o que se devereconhecer como a destruição da sociedade. O apelo dos profetas prao abandono da terra má, isto é, da sociedade tal como ela era, paraalcançar a Terra sem Mal, a sociedade da felicidade divina, implicavaa condenação à morte da estrutura da sociedade e do seu sistema denormas. Ora, a essa sociedade se impunha cada vez mais fortementea marca da autoridade dos chefes, o peso de seu poder político nas-

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cente. Talvez então possamos dizer que, se os profetas, surgidos nocoração da sociedade, proclamavam mau o mundo em que os ho-mens viviam, é porque eles revelavam a infelicidade, o mal, nessamorte lenta à qual a emergência do poder condenava num prazo maisou menos longo, a sociedade tupi-guarani, como sociedade primitiva,como sociedade sem Estado. Habitados pelo sentimento de que o an-tigo mundo selvagem tremia em seu fundamento, perseguidos pelopressentimento de uma catástrofe sócio-cósmica, os profetas decidi-ram que era preciso mudar o mundo, abandonar o dos homens e ga-nhar o dos deuses.

Palavra profética ainda viva, como o testemunham os textos"Profetas na selva" e "Do Um sem o Múltiplo". Os 3 ou 4 mil índiosGuarani que subsistem miseravelmente nas � orestas do Paraguai go-zam ainda da riqueza incomparável que os karai lhes oferecem. Estesnão são mais - duvidamos - condutores de tribos, como seus ances-trais do século XVI, não é mais possível a procura da Terra sem Mal.Mas a falta de ação parece ter permitido uma embriaguez do pensa-

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mento, um aprofundamento sempre mais tenso da re� exão sobre ainfelicidade da condição humana. E esse pensamento selvagem quequase cega por tanta luz, nos diz que o lugar de nascimento do Mal,da fonte da infelicidade, é o Um.

Talvez seja preciso dizer um pouco mais e se perguntar o queo sábio guarani designa sob o nome de Um. Os temas favoritos dopensamento guarani contemporâneo são os mesmos que inquietavam,há mais de quatro séculos, aqueles a quem já se chamava karai, osprofetas. Por que o mundo é mau? O que podemos fazer para esca-par ao mal? Questões que ao cabo de gerações esses índios não ces-sam de se colocar: os karai de agora se obstinam pateticamente emrepetir o discurso dos profetas de outros tempos. Estes sabiam, pois,que o Um é o mal; eles o diziam de aldeia em aldeia, e as pessoas osseguiam na procura do Bem, na busca do não-Um. Temos, portanto,entre os Tupi-Guarani do tempo do Descobrimento, de um lado umaprática – a migração religiosa – inexplicável se não vemos nela a re-cusa da via em que a che✁ a engajava a sociedade, a recusa do poder

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cente. Talvez então possamos dizer que, se os profetas, surgidos nocoração da sociedade, proclamavam mau o mundo em que os ho-mens viviam, é porque eles revelavam a infelicidade, o mal, nessamorte lenta à qual a emergência do poder condenava num prazo maisou menos longo, a sociedade tupi-guarani, como sociedade primitiva,como sociedade sem Estado. Habitados pelo sentimento de que o an-tigo mundo selvagem tremia em seu fundamento, perseguidos pelopressentimento de uma catástrofe sócio-cósmica, os profetas decidi-ram que era preciso mudar o mundo, abandonar o dos homens e ga-nhar o dos deuses.

Palavra profética ainda viva, como o testemunham os textos"Profetas na selva" e "Do Um sem o Múltiplo". Os 3 ou 4 mil índiosGuarani que subsistem miseravelmente nas � orestas do Paraguai go-zam ainda da riqueza incomparável que os karai lhes oferecem. Estesnão são mais - duvidamos - condutores de tribos, como seus ances-trais do século XVI, não é mais possível a procura da Terra sem Mal.Mas a falta de ação parece ter permitido uma embriaguez do pensa-

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mento, um aprofundamento sempre mais tenso da re� exão sobre ainfelicidade da condição humana. E esse pensamento selvagem quequase cega por tanta luz, nos diz que o lugar de nascimento do Mal,da fonte da infelicidade, é o Um.

Talvez seja preciso dizer um pouco mais e se perguntar o queo sábio guarani designa sob o nome de Um. Os temas favoritos dopensamento guarani contemporâneo são os mesmos que inquietavam,há mais de quatro séculos, aqueles a quem já se chamava karai, osprofetas. Por que o mundo é mau? O que podemos fazer para esca-par ao mal? Questões que ao cabo de gerações esses índios não ces-sam de se colocar: os karai de agora se obstinam pateticamente emrepetir o discurso dos profetas de outros tempos. Estes sabiam, pois,que o Um é o mal; eles o diziam de aldeia em aldeia, e as pessoas osseguiam na procura do Bem, na busca do não-Um. Temos, portanto,entre os Tupi-Guarani do tempo do Descobrimento, de um lado umaprática – a migração religiosa – inexplicável se não vemos nela a re-cusa da via em que a che✁ a engajava a sociedade, a recusa do poder

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político isolado, a recusa do Estado; do outro, um discurso proféticoque identi� ca o Um como a raiz do Mal e a� rma a possibilidade deescapar-lhe. Em que condições é possível pensar o Um? É precisoque, de algum modo, sua presença, odiada ou desejada, seja visível.É por isso que o Um é o Estado. O profetismo tupi-guarani é a tenta-tiva heróica de uma sociedade primitiva para abolir a infelicidade narecusa radical do Um como essência universal do Estado. Essa leitura"política" de uma constatação metafísica deveria então incitar a colo-car uma questão, talvez sacrílega: não se poderia submeter a seme-lhante leitura toda a metafísica do Um? Que acontece ao Um comoBem, como objeto preferencial, que, desde sua aurora, a metafísicaocidental impõe ao desejo do homem? Detenhamo-nos nesta pertur-badora evidência: o pensamento dos profetas selvagens e aquele dosgregos antigos pensam a mesma coisa, o Um; mas o índio Guaranidiz que o Um é o Mal, ao passo que Heráclito diz que ele é o Bem.Em que condições é possível pensar o Um como Bem? Voltemos,para concluir, ao mundo exemplar dos Tupi-Guarani. Eis uma socie-

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dade primitiva que, atravessada, ameaçada pela irresistível ascensãodos chefes, suscita em si mesma e libera forças, capazes, mesmo aopreço de um quase-suicídio coletivo, de fazer fracassar a dinâmica dache� a, de impedir o movimento que poderia levar à transformaçãodos chefes em reis portadores de leis. De um lado os chefes; do ou-tro, e contra eles os profetas: tal é, traçado segundo suas linhas essen-ciais, o quadro da sociedade tupi-guarani no � nal do século XV. E a"máquina" profética funcionava perfeitamente bem, uma vez que oskarai eram capazes de se fazer seguir por massas surpreendentes deíndios fanatizados, diríamos hoje, pela palavra desses homens, a pon-to de acompanhá-los até na morte.

O que quer isso dizer? Os profetas, armados apenas de seuslogos, podiam determinar uma "mobilização" dos índios, podiam rea-lizar esta coisa impossível na sociedade primitiva: uni� car na migra-ção religiosa a diversidade múltipla das tribos. Eles conseguiram rea-lizar, de um só golpe, o "programa" dos chefes! Armadilha da histó-ria? Fatalidade que apesar de tudo consagra a própria sociedade pri-

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político isolado, a recusa do Estado; do outro, um discurso proféticoque identi� ca o Um como a raiz do Mal e a� rma a possibilidade deescapar-lhe. Em que condições é possível pensar o Um? É precisoque, de algum modo, sua presença, odiada ou desejada, seja visível.É por isso que o Um é o Estado. O profetismo tupi-guarani é a tenta-tiva heróica de uma sociedade primitiva para abolir a infelicidade narecusa radical do Um como essência universal do Estado. Essa leitura"política" de uma constatação metafísica deveria então incitar a colo-car uma questão, talvez sacrílega: não se poderia submeter a seme-lhante leitura toda a metafísica do Um? Que acontece ao Um comoBem, como objeto preferencial, que, desde sua aurora, a metafísicaocidental impõe ao desejo do homem? Detenhamo-nos nesta pertur-badora evidência: o pensamento dos profetas selvagens e aquele dosgregos antigos pensam a mesma coisa, o Um; mas o índio Guaranidiz que o Um é o Mal, ao passo que Heráclito diz que ele é o Bem.Em que condições é possível pensar o Um como Bem? Voltemos,para concluir, ao mundo exemplar dos Tupi-Guarani. Eis uma socie-

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dade primitiva que, atravessada, ameaçada pela irresistível ascensãodos chefes, suscita em si mesma e libera forças, capazes, mesmo aopreço de um quase-suicídio coletivo, de fazer fracassar a dinâmica dache� a, de impedir o movimento que poderia levar à transformaçãodos chefes em reis portadores de leis. De um lado os chefes; do ou-tro, e contra eles os profetas: tal é, traçado segundo suas linhas essen-ciais, o quadro da sociedade tupi-guarani no � nal do século XV. E a"máquina" profética funcionava perfeitamente bem, uma vez que oskarai eram capazes de se fazer seguir por massas surpreendentes deíndios fanatizados, diríamos hoje, pela palavra desses homens, a pon-to de acompanhá-los até na morte.

O que quer isso dizer? Os profetas, armados apenas de seuslogos, podiam determinar uma "mobilização" dos índios, podiam rea-lizar esta coisa impossível na sociedade primitiva: uni� car na migra-ção religiosa a diversidade múltipla das tribos. Eles conseguiram rea-lizar, de um só golpe, o "programa" dos chefes! Armadilha da histó-ria? Fatalidade que apesar de tudo consagra a própria sociedade pri-

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mitiva à dependência? Não se sabe. Mas, em todo o mais poder doque os segundos detinham. Então talvez seja preciso reti� car a ideiada palavra como oposto da violência. Se o chefe selvagem é obrigadoa um dever de palavra inocente, a sociedade primitiva pode também,evidentemente em condições determinadas, se voltar para a escuta deuma outra palavra, esquecendo que essa palavra é dita como um co-mando: é a palavra profética. No discurso dos profetas jaz talvez emgerme o discurso do poder, e sob os traços exaltados do condutor dehomens que diz o desejo dos homens se dissimula talvez a � gura si-lenciosa do Déspota.

Palavra profética, poder dessa palavra: teríamos nela o lugaroriginário do poder, o começo do Estado no Verbo? Profetas con-quistadores das almas antes de serem senhores dos homens? Talvez.Mas, mesmo na experiência extrema do profetismo (porque sem dú-vida a sociedade tupi-guarani tinha atingido, por razões demográ � casou outras, os limites extremos que determinam uma sociedade comosociedade primitiva), o que os selvagens nos mostram é o esforço

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permanente para impedir os chefes de serem chefes e a recusa dauni� cação; é o trabalho de conjuração do Um, do Estado. A históriados povos que têm uma história é, diz-se, a história da luta de clas-ses. A história dos povos sem história é, dir-se-á como ao menos tan-ta verdade, a história da sua luta contra o Estado.

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mitiva à dependência? Não se sabe. Mas, em todo o mais poder doque os segundos detinham. Então talvez seja preciso reti� car a ideiada palavra como oposto da violência. Se o chefe selvagem é obrigadoa um dever de palavra inocente, a sociedade primitiva pode também,evidentemente em condições determinadas, se voltar para a escuta deuma outra palavra, esquecendo que essa palavra é dita como um co-mando: é a palavra profética. No discurso dos profetas jaz talvez emgerme o discurso do poder, e sob os traços exaltados do condutor dehomens que diz o desejo dos homens se dissimula talvez a � gura si-lenciosa do Déspota.

Palavra profética, poder dessa palavra: teríamos nela o lugaroriginário do poder, o começo do Estado no Verbo? Profetas con-quistadores das almas antes de serem senhores dos homens? Talvez.Mas, mesmo na experiência extrema do profetismo (porque sem dú-vida a sociedade tupi-guarani tinha atingido, por razões demográ � casou outras, os limites extremos que determinam uma sociedade comosociedade primitiva), o que os selvagens nos mostram é o esforço

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permanente para impedir os chefes de serem chefes e a recusa dauni� cação; é o trabalho de conjuração do Um, do Estado. A históriados povos que têm uma história é, diz-se, a história da luta de clas-ses. A história dos povos sem história é, dir-se-á como ao menos tan-ta verdade, a história da sua luta contra o Estado.

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