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25 A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NA ESCOLA: UM ENFOQUE INTERDISCIPLINAR Resumo Pesquisa em andamento numa escola pública municipal de Juiz de Fora (MG) - Projeto BIC/UFJF - tem constatado a viabilidade da adoção da pedagogia da variação linguística na educação linguística dos alunos. A perspectiva interdisciplinar foi a proposta desafiadora. Um grupo focal constituiu-se na Faculdade de Educação da UFJF para discussão inicial, tendo o tema atraído professores de diversas áreas de ensino. O estudo e discussão de textos da área (BORTONI-RICARDO, 2004; 2005; FARACO, 2008; PERINI, 2010), ensejou a implementação de uma pesquisa-ação (KEMMIS; MC TAGGART, 1998) com dois grupos de professores, um deles atuando no Ensino Médio (professores de Língua Portuguesa e de História) e outro no nível inicial do processo de alfabetização (professora alfabetizadora e professora contadora de histórias). No primeiro grupo, focalizou-se um cordel, de Ferreira Goulart, cujo enredo suscitou reflexões sócio-políticas, por um lado e, por outro, a identificação da variedade linguística não prestigiada do português do Brasil. As reflexões conduziram ao reconhecimento da legitimidade dessa expressão da cultura popular, além da especificidade de outra, adequada à circulação do saber científico. O segundo grupo, centrando-se mais no processo de aquisição do código escrito do que na característica dialetal das crianças, levou-as a produzir um pequeno texto, o que representou grande avanço daquelas crianças, antes avaliadas pelo PROALFA como tendo baixo desempenho. A pesquisa-ação demonstrou ser viável, em todos os níveis de escolaridade, o trabalho de educação linguística sem fragmentação, mas focando, em todas as disciplinas, a língua em uso, apagando, portanto, as diferenças. Palvras-chave: Pedagogia da variação linguística; Interdisciplinaridade; Ensino de linguagem. Introdução Este trabalho apresenta os primeiros resultados de uma pesquisa em andamento que investiga a viabilidade de se aplicar a reflexão sociolinguística no trabalho escolar com a linguagem, numa perspectiva interdisciplinar. A pesquisa coloca em questão o mito que circula nas escolas em geral, segundo o qual desenvolver competências de uso da língua materna é tarefa restrita aos professores da disciplina Língua Portuguesa. Uma das graves consequências de se insistir nesse ponto de vista, todos sabemos, é reforçar, cada vez mais, a fragmentação do saber e do processo de aquisição do conhecimento, resultando daí, no caso específico da educação linguística, jovens e profissionais que se julgam maus falantes, maus escritores e que, por isso mesmo, passam a delegar a “especialistas” a tarefa de construir seus textos, falados ou escritos. Isso significa, inclusive, que se aceitam como incompetentes usuários de sua própria língua. Nesse sentido, o que procuraremos mostrar XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002029 Lucia Furtado De Mendonça Cyranka Simone Rodrigues Peron

A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NA ESCOLA: UM … · Resumo . Pesquisa em ... correlação positiva entre o grau de padronização linguística de um país e seu ... desmitificá-lo e demonstrar

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A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NA ESCOLA: UM ENFOQUE

INTERDISCIPLINAR

Resumo

Pesquisa em andamento numa escola pública municipal de Juiz de Fora (MG) - Projeto BIC/UFJF - tem constatado a viabilidade da adoção da pedagogia da variação linguística na educação linguística dos alunos. A perspectiva interdisciplinar foi a proposta desafiadora. Um grupo focal constituiu-se na Faculdade de Educação da UFJF para discussão inicial, tendo o tema atraído professores de diversas áreas de ensino. O estudo e discussão de textos da área (BORTONI-RICARDO, 2004; 2005; FARACO, 2008; PERINI, 2010), ensejou a implementação de uma pesquisa-ação (KEMMIS; MC TAGGART, 1998) com dois grupos de professores, um deles atuando no Ensino Médio (professores de Língua Portuguesa e de História) e outro no nível inicial do processo de alfabetização (professora alfabetizadora e professora contadora de histórias). No primeiro grupo, focalizou-se um cordel, de Ferreira Goulart, cujo enredo suscitou reflexões sócio-políticas, por um lado e, por outro, a identificação da variedade linguística não prestigiada do português do Brasil. As reflexões conduziram ao reconhecimento da legitimidade dessa expressão da cultura popular, além da especificidade de outra, adequada à circulação do saber científico. O segundo grupo, centrando-se mais no processo de aquisição do código escrito do que na característica dialetal das crianças, levou-as a produzir um pequeno texto, o que representou grande avanço daquelas crianças, antes avaliadas pelo PROALFA como tendo baixo desempenho. A pesquisa-ação demonstrou ser viável, em todos os níveis de escolaridade, o trabalho de educação linguística sem fragmentação, mas focando, em todas as disciplinas, a língua em uso, apagando, portanto, as diferenças. Palvras-chave: Pedagogia da variação linguística; Interdisciplinaridade; Ensino de linguagem.

Introdução

Este trabalho apresenta os primeiros resultados de uma pesquisa em andamento que

investiga a viabilidade de se aplicar a reflexão sociolinguística no trabalho escolar com a

linguagem, numa perspectiva interdisciplinar. A pesquisa coloca em questão o mito que

circula nas escolas em geral, segundo o qual desenvolver competências de uso da língua

materna é tarefa restrita aos professores da disciplina Língua Portuguesa. Uma das graves

consequências de se insistir nesse ponto de vista, todos sabemos, é reforçar, cada vez mais,

a fragmentação do saber e do processo de aquisição do conhecimento, resultando daí, no

caso específico da educação linguística, jovens e profissionais que se julgam maus falantes,

maus escritores e que, por isso mesmo, passam a delegar a “especialistas” a tarefa de

construir seus textos, falados ou escritos. Isso significa, inclusive, que se aceitam como

incompetentes usuários de sua própria língua. Nesse sentido, o que procuraremos mostrar

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aqui é a inconsistência da concepção, tanto de língua quanto da construção da cidadania

(SIGNORINI, 2011).

A insatisfação diante dessa realidade motivou-nos a, prosseguindo em nossos

estudos de Sociolinguística Educacional (Cf. CYRANKA, 2011), propor um projeto de

pesquisa sobre educação linguística na escola básica sob o enfoque interdisciplinar. O

projeto se intitula “A Sociolinguística no ensino fundamental: um enfoque interdisciplinar”

e é patrocinado pela Universidade Federal de Juiz de Fora (BIC/2011-2012), dentro de seu

programa de iniciação científica. Duas bolsistas desse programa, alunas do Curso de Letras,

trabalham nessa investigação.

A primeira fase, como se pode deduzir, não foi muito fácil, porque demandou,

inicialmente, a formação de um grupo de professores que trabalhassem com diferentes

disciplinas e que estivessem interessados em discutir as implicações da linguagem da escola

e do aluno na construção do conhecimento nas áreas específicas que lecionavam. A

dinâmica dessa formação resultou, por isso, na constituição de um grupo de professores de

diferentes escolas e níveis de escolaridade dos alunos, e não, como seria de se esperar, de

uma única instituição e/ou de agrupamento por série. Mesmo assim, ao que tudo indica,

essa realidade não tem prejudicado o andamento dos estudos, muito ao contrário, tem

provocado o interesse de outros colegas que, pouco a pouco, passam a fazer parte do que

era, inicialmente, um pequeno grupo.

Passamos, a seguir, à discussão da proposta do trabalho e à descrição da primeira

etapa dessa investigação.

A educação linguística na escola é tarefa de todas as áreas

Nosso ponto de partida, repetimos, foi o reconhecimento de que o trabalho

escolar com a linguagem não é tarefa apenas dos professores da disciplina Língua

Portuguesa. Perpassando todas as áreas, ela é o lugar da construção da subjetividade e,

por via dela, do mergulho no social, no processo de elaboração dos conceitos, dos

valores e da ideologia, segundo esclarecem Bakhtin/Volochínov (2006). Desse modo, o

discurso se realiza na troca, na interação. Sejam quais forem os conteúdos trabalhados e

discutidos na escola, é através da linguagem que o objeto de estudo se concretiza.

Portanto, não há como pretender-se a desvinculação de linguagem e conteúdo.

Na escola, no entanto, tradicionalmente, o trabalho com as diferentes disciplinas

tem acontecido sem que professores e alunos tomem consciência da seminal vinculação

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entre pensamento e linguagem. Disso tem resultado dificuldades no processo de

ensino/aprendizagem, gerando, frequentemente, o fracasso escolar.

Esse problema se agrava nas escolas públicas onde, em geral, estudam alunos

provenientes de comunidades usuárias de variedades linguísticas desprestigiadas. O

tratamento tradicionalmente dado à questão da linguagem, como afirma Soares (1989, p.

77) “[...] vincula-se a uma pedagogia conservadora, que vê a escola como instituição

independente das condições sociais e econômicas, espaço de neutralidade, de que

estariam ausentes os antagonismos e as contradições de uma sociedade dividida em

classes.” Daí decorre um trabalho com a linguagem feito a partir da ideologia das

classes dominantes, que privilegiam uma certa variedade linguística considerada a única

boa e correta.

Observa-se que é inquestionável que todas as disciplinas apresentam teorias,

conceitos e propostas didáticas, sejam as preparadas pelos professores, sejam as

extraídas de livros didáticos ou de periódicos que pretendem popularizar o saber

científico, expressos unicamente na variedade linguística, conhecida como variedade

culta. A esse respeito, comenta Bortoni-Ricardo (2005, p. 14-15 ):

Se a padronização é impositiva, não deixa também de ser necessária. Ela está na base de todo estado moderno, independente de regime político, na formação de seu aparato institucional burocrático, bem como no desenvolvimento do acervo tecnológico e científico. Pesquisas na área de planejamento linguístico mostram que existe uma correlação positiva entre o grau de padronização linguística de um país e seu estágio de modernização. O problema não parece estar, pois, na existência de um código-padrão, mas no acesso restrito que grandes segmentos da população têm a ele.

A grande questão está, portanto, no insuficiente acesso dos alunos a essa

variedade, já que, na escola, ela é imposta, apontando-se como errado e inadequado

qualquer uso que se afaste do padrão, considerado melhor, símbolo da cultura

dominante.

A concepção bakhtiniana de linguagem oferece subsídios importantes para quem

precisa compreender essa premente questão das pressões escolares sobre os alunos

procedentes de grupos sociais falantes de uma variedade linguística desprestigiada.

Nessa concepção, qualquer falante, seja de que dialeto for, está legitimado pela sua

condição de ser social que se constitui pela linguagem. Ora, se, como nos ensina esse

filósofo da linguagem, a palavra é a ponte que une os interlocutores (2006, p. 117),

então parece necessário que a escola permita, pelo diálogo entre alunos e agentes

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escolares, inclusive o professor, que a comunicação plena se estabeleça, sem que o

ranço das avaliações sociais sobre o dialeto utilizado pelos primeiros os emudeça.

Referimo-nos, mais objetivamente falando, à necessidade de a escola colocar em prática

o que a ciência da linguagem já concluiu sobre certo e errado em língua, isto é, que tudo

o que existe na língua é certo. Nesse sentido, adverte Perini ( 2010, p. 21):

Para nós, ‘certo’ é aquilo que ocorre na língua. É verdade que quase todo mundo tem suas preferências, detesta algumas construções, prefere a pronúncia de alguma região etc. Mas o linguista precisa manter uma atitude científica, com atenção constante às realidades da língua e total respeito por elas.

Mais à frente, ele mesmo acrescenta: “O linguista, cientista da linguagem,

observa a língua como ela é, não como algumas pessoas acham que ela deveria ser.”

(Ibidem).

Portanto, temos, como ponto de partida da presente discussão, a necessidade de a

escola respeitar a variedade linguística do aluno.

Há, no entanto, um segundo ponto, que é também fundamental e decorrente do

que lemos acima, na afirmação de Bortoni-Ricardo sobre o processo de padronização da

língua: ele é necessário, impositivo; portanto, não podemos desconhecê-lo. Nesse caso,

à escola cabe a tarefa, de importância inquestionável, de levar o aluno a se tornar

competente no uso dessa variedade da língua, tanto na sua modalidade oral quanto na

escrita. Não se trata portanto, simplesmente de uma tradição, mas do reconhecimento de

que saber utilizar a variedade de prestígio é condição para o exercício amplo da

cidadania, para a constituição do falante e do escritor respeitados dentro de seu grupo

social. Mas que isso seja feito, sem lhe impor, como condição, o abandono e o

esquecimento do seu vernáculo. Trata-se, portanto, de ampliação de competência.

Caso contrário a escola estará violentando direitos, tornando seus alunos das

classes populares vítimas da incompreensão e desprestígio de seus valores culturais, o

que resulta, em última análise, num processo de desconstrução de sua condição

humana, porque não podem se constituir como sujeitos de discurso, nem como

interlocutores do discurso do professor. Seria esse o capital cultural de que nos fala

Bourdieu (2002 [1930], p. 310).

Torna-se possível, no entanto, à luz da reflexão bakhtiniana, a implementação de

uma reflexão sociolinguística no trabalho escolar com a língua materna. Refiro-me a

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uma pedagogia culturalmente sensível que, como esclarece Bortoni-Ricardo (2005, p.

128) tem por objetivo

[...] criar em sala de aula ambientes de aprendizagem onde se desenvolvam padrões de participação social, modos de falar e rotinas comunicativas presentes na cultura dos alunos. Tal ajustamento nos processos interacionais é facilitador da transmissão do conhecimento, na medida em que se ativam nos educandos processos cognitivos associados aos processos sociais que lhes são familiares.

Pensar assim não significa negar o prestígio da variedade culta. Nesse sentido,

ainda Bortoni-Ricardo ( p.14),

O prestígio associado ao português-padrão é sem dúvida um valor cultural arraigado, herança colonial consolidada nos nossos cinco séculos de existência como nação. Podemos e devemos questioná-lo, desmitificá-lo e demonstrar sua relatividade e seus efeitos perversos na perpetuação das desigualdades sociais, mas negá-lo, não há como.

No entanto, o reconhecimento do falante legítimo deve ser anterior e prevalecer

sobre quaisquer julgamentos de valor. Por isso, adverte Signorini (2011, p. 171):

A igualdade entre falantes, enquanto falantes, independentemente das posições numa dada ordem sociolinguística, é primeira e fundamental para que se coloque a questão da legitimidade da língua em uso (e não da legitimidade de determinados usos da língua), pois é anterior a toda hierarquização.

Mais à frente (p. 172), acrescenta:

[...] a legitimidade do falante e de sua língua é consequência da aquisição dos padrões, ou seja, são as formas e funções instituídas pelas metapragmáticas institucionalizadas que legitimam e igualam os falantes enquanto falantes porque apagam/neutralizam as diferenças (inclusive cor, credo, gênero, condição socioeconômica, por exemplo) e as hierarquizações daí decorrentes, estabelecendo a igualdade mínima de condições entre interlocutores para uma comunicação social significativa.

Aí está a função da escola de, através das práticas de letramento, fazer valer essa

igualdade. Ainda, nas palavras de Signorini (ibidem), “[...] por meio da escolarização,

todos podem apropriar-se das formas e funções valorizadas pelo Estado e demais

instituições e, assim, conquistar a igualdade de condições na comunicação social.”

Não há, portanto, como negar que a linguagem deva ser tratada em todas as

instâncias escolares, nem mesmo apenas durante as aulas, muito menos se restringindo

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às da disciplina Língua Portuguesa. Isso significa que não é tarefa exclusiva do

professor de português familiarizar o aluno com a variedade prestigiada da língua, a

variedade culta, a que veicula o “saber oficial”. Ainda que seja esse o pensamento que

se encontra no senso comum, as investigações no âmbito da pedagogia já têm apontado

caminhos mais promissores. Sem a linguagem, a construção do conhecimento não seria

possível.

Isso aponta para a necessidade de uma mudança de atitude dos professores frente

à presença do vernáculo dos alunos provenientes das classes populares, isto é, um

trabalho de reconhecimento da sua legitimidade, como ponto de partida. A seguir, a

ampliação de sua competência de uso da língua falada e da língua escrita como

expressão do saber comum, passando à expressão do pensamento científico.

Apontando para essa necessidade, Faraco (2008, p. 196) adverte: “Sem um

envolvimento orgânico dos docentes da escola básica, sem que lhes seja reconhecido

um papel de protagonistas dos processos de mudanças, continuaremos andando em rotas

paralelas”.

Por isso mesmo, pensamos ser necessário o envolvimento de professores de

diversas disciplinas, porque, todos eles trabalhando com a linguagem, podem, em

conjunto, construir metodologia que abra caminhos para um tratamento mais adequado

do vernáculo levado à escola pelos alunos, possibilitando-lhes a expansão de

competências. Um trabalho colaborativo, sendo mais orgânico, como supõe Faraco,

deve levar a bons resultados.

Tudo isso sendo levado em conta, nosso projeto foi então, como referido acima,

implementado numa escola pública municipal de Juiz de Fora (Projeto BIC/UFJF/

ago/2011 a jun/2012).

As primeiras investigações aconteceram ainda na Faculdade de Educação da

UFJF, onde constituímos um grupo de estudos, do qual fazem parte professores das

disciplinas Língua Portuguesa, Matemática, História, Artes, mas o espaço continua

aberto à participação de outras disciplinas. Professores de outras escolas, inclusive

particulares se mostraram interessados e foram admitidos. O projeto nos possibilitou

constatar que, a participação dos professores regentes das turmas do ensino básico das

diversas áreas tem sido bastante relevante para a adoção e implementação das reflexões

sociolinguísticas na escola, já que tiveram a oportunidade de ampliá-las ao retornar aos

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estudos acadêmicos, através de leituras, discussão sobre pesquisas terminadas ou em

andamento, promovendo, enfim a atualização de seu conhecimento nessa área.

Metodologia

O grupo de estudos se constituiu, então, num grupo focal, cujo tema central

passou a ser a Sociolinguística Educacional, de modo que pudéssemos construir um

discurso comum sobre língua e variação, dialetos sociais, norma padrão e norma culta,

até chegarmos à proposta de uma pedagogia da variação linguística (FARACO, 2008).

Decidimos, em comum acordo com os professores, pela pesquisa-ação

(KEMMIS; MC TAGGART, 1998), enfoque metodológico em que se trabalha

diretamente com os professores, enquanto se investiga o objeto alvo, no presente caso,

as dificuldades/viabilidade de se implementar, na escola, a pedagogia da variação

linguística, numa perspectiva interdisciplinar.

A pesquisa-ação

Desde 2009, vínhamos realizando uma pesquisa-ação centrada na pedagogia da

variação linguística desenvolvida com alunos do Ensino Fundamental de uma escola

pública municipal de Juiz de Fora. Em 2011, como dito acima, procuramos estender

essa reflexão às outras áreas de ensino, já que a linguagem perpassa todas elas.

Decidimos atuar diretamente com os professores, para que a reflexão sociolinguística

passasse a se constituir como princípio estruturante das atividades didáticas a serem

implementadas nas aulas.

Sendo assim, o foco da pesquisa, com o apoio do programa BIC/UFJF, tem sido:

i) constituir, com os professores das diversas disciplinas de turmas de Ensino

Fundamental, um modo de pensar sociolinguístico que oriente as atividades didáticas de

acordo com a necessidade e relevância de cada disciplina; ii) Pesquisar estratégias

didáticas, a partir de proposições teórico-práticas, permitindo que os alunos utilizem seu

vernáculo, orientando-os, ao mesmo tempo, para que ampliem sua competência

linguística de modo a aprenderem a variedade prestigiada da língua portuguesa,

utilizada na construção do conhecimento científico na escola; iii) implementar junto aos

alunos dessas salas de aula, com a colaboração de seus professores (independente da

disciplina lecionada) os diversos usos da língua, de acordo com cada contexto

sociocomunicativo, refletindo sobre a legitimidade das variedades linguísticas, de modo

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a levá-los a perceberem a possibilidade de se tornarem bidialetais; iv) Colaborar para o

respeito ao vernáculo dos alunos, para a construção de suas atitudes e crenças positivas

sobre ele, estimulando-os, ao mesmo tempo, a ampliarem sua competência linguística

em direção ao domínio da variedade culta, ensinada pela escola.

Do grupo focal constituído na Faculdade de Educação, participaram 7 professores

Dele surgiram duas propostas de trabalho interdisciplinar: uma entre a professora da

disciplina Língua Portuguesa, do primeiro ano do Ensino Médio, juntamente com a

professora de História, da mesma sala; a outra foi implementada por uma professora

alfabetizadora, juntamente com uma colega, contadora de estórias da mesma turma.

Descrição da experiência interdisciplinar com as disciplinas Língua Portuguesa e

História

.A professora L, que lecionava a disciplina Língua Portuguesa, dando

continuidade a sua explanação sobre a Semana de Arte Moderna, e seus principais

autores e obras, desenvolveu um trabalho com o cordel intitulado João Boa-Morte

(cabra marcado pra morrer, de autoria de Ferreira Gullar.

Para introduzir esse gênero textual, procurou verificar qual era o conhecimento

prévio dos alunos sobre ele. A vinheta abaixo é um recorte do seu diálogo com os

alunos:

L: Alguém conhece cordel?

Aluna 1: Cordel encantado! A novela (risos) – referência à novela global do horário das

18h intitulada “Cordel do Fogo Encantado”.

Aluna 2: Da roça!

L: Não é da roça!

Aluna 2: Do interior.

Bárbara: Tem rima!

L: A Bárbara lembrou muito bem, muito rimado, cantado!

Observe-se que a professora partiu de experiência vivenciada pelos alunos,

condição fundamental para que o trabalho escolar faça sentido. Como o enredo da obra

se passava no cenário político-social em que se deu o chamado Golpe Militar no Brasil,

conduziu a discussão no sentido de criar uma interlocução com a professora de História,

a quem coube, então, a tarefa da contextualização histórica.

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Procurando situar o autor no contexto da década de 60-70 (os Anos Rebeldes, a

presidência de João Goulart – 1961/1964, o golpe de Estado, a ditadura de 64), a

professora discutiu com os alunos sobre alguns movimentos e/ou manifestações

culturais que repercutiram na sociedade, como por exemplo, Movimento Hippie, Rock

roll, entre outros. Sempre estabelecendo “pontes” entre o que já havia sido estudado em

suas aulas e os elementos apontados pelo texto, levou os alunos a perceberem como

Gullar utilizou a literatura para mostrar a realidade daquela época.

A professora L, por sua vez, forneceu informações complementares, levando os

alunos a observar a linguagem utilizada e relacioná-la ao fato de o cordel ser

considerado uma literatura marginal, justamente por se constituir como uma expressão

da cultura popular, gozando de pouco prestígio no saber oficial. As reflexões voltadas

para a Sociolinguística possibilitaram a identificação de estruturas morfossintáticas e

itens lexicais próprios daquela variedade linguística.

Ambas as professoras apontaram para a importância da associação entre arte,

linguagem e sociedade. Aquele trabalho resultara numa vivenciação dessa verdade. A

história e a literatura são irmãs gêmeas, porque a produção literária se insere no

contexto histórico – a linguagem é expressão do homem e sua cultura.

Explorando os aspectos poéticos do texto, as rimas, a sonoridade, os efeitos

discursivos utilizados, a professora M, solicitou aos alunos que produzissem um cordel

sobre a temática: “Grandes navegações”, trabalho também orientado pela professora L,

e em cuja realização os alunos se empenharam com entusiasmo. Aí a questão da

variedade linguística do gênero cordel foi alvo de interesse e discussão, já que se

poderia contrastá-la com a norma padrão utilizada no livro didático em que se estudava

esse capítulo da História.

Procurando aprofundar a correlação entre língua e sociedade, a atividade seguinte

foi o estudo do conhecido Rap do Silva. Os alunos conseguiram perceber a

intertextualidade existente entre ele e o cordel antes estudado. Nesse momento, o

gênero funk passou a ser o novo tema abordado, para levar os alunos a compreenderem

o objetivo daquele estudo: fazer um trabalho comparativo entre esse gênero e o cordel

de Ferreira Gullar. A professora procurou chamar a atenção para a linguagem utilizada

em cada texto, sua finalidade, levando os alunos a identificarem os interlocutores, o

contexto em que cada um está inserido, de modo que pudessem compreender a

diversidade linguística e a legitimidade das variedades que são consideradas inferiores.

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Ao final do trabalho, considerou-se que importante passo estava dado no sentido

de viabilizar as considerações sobre linguagem e cultura em contextos disciplinares que

se somam, não se separam, nem se fragmentam.

Refletindo sobre a necessidade de se reconhecer, em educação, a chegada dos

novos tempos, de profundas mudanças nas ciências sociais, Moita Lopes (2011, p. 23)

reconhece a Linguística Aplicada (LA) como teoria fundamental nessa reconstrução.

Ele afirma:

É assim que a LA precisa dialogar com teorias que têm levado a uma profunda consideração dos modos de produzir conhecimento em ciências sociais (cf. Signorini, 1998), na tentativa de compreender nossos tempos e de abrir espaço para visões alternativas ou para ouvir outras vozes que possam revigorar nossa vida social ou vê-la compreendida por outras histórias. Isso parece ser imperioso em uma área aplicada que, em última análise, quer intervir na ou falar à prática social.

A linguagem no processo de alfabetizar letrando

O segundo trabalho nascido do grupo focal foi, conforme dito acima, entre alunos

de uma classe de alfabetização, em que, novamente se somaram esforços, desta vez, na

perspectiva do alfabetizar letrando (SOARES, 2003).

Tratava-se de uma turma heterogênea com alunos ainda em fase inicial do

processo de alfabetização, ao lado de outros que, embora já compreendessem os

processos de leitura e de escrita, ainda não liam nem escreviam com facilidade as

sílabas mais complexas, nem eram capazes compreender o que liam e, muito menos, se

sentiam confiantes para produzir textos. Em Matemática, muitos ainda não

compreendiam o sistema decimal de numeração, embora conhecessem os numerais de 0

a 100 e efetuassem adições e subtrações simples. Já estávamos no mês de setembro...

Além disso, não se mostravam inseridos em práticas de letramento em seu

ambiente doméstico. No ano anterior, haviam sido avaliados pelo PROALFA como

tendo baixo desempenho.

As ações de letramento mais sistematizadas já haviam sido iniciadas por uma das

professoras, que passou a desenvolver, nessa turma, um projeto de contação de estórias,

em que incluía lendas urbanas, contos de fada, estória de bruxas. Após cada história

apreciada, era feito um registro em ficha com os dados da narrativa (título da história,

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autor etc), além da introdução de recursos teatrais que iam ampliando o universo

referencial das crianças.

Com a intervenção das ações do projeto, procurou-se associar o processo de

aquisição de escrita à ampliação dos recursos de linguagem. Uma nova atividade foi

proposta, então, a partir do livro intitulado Duas dúzias de coisinhas à-toa que deixam a

gente feliz. O texto se centrava na escolha de objetos preferidos pelas crianças, quase

num simples efeito-listagem, de modo que suscitava a identificação de vocábulos

conhecidos, mas tendo sempre garantida a inserção das palavras em textos, em

contextos significativos. Várias atividades decorreram daí, até que os alunos, foram

convidados a escrever seu próprio livrinho em que listavam as “coisinhas” que os

faziam felizes.

Os resultados mostraram crianças mais felizes diante do desafio escolar, um

pouco mais integradas no ambiente alfabetizador, ao mesmo tempo em que

mergulhavam, por si mesmas, no mundo da escrita.

Como se viu, ainda que as histórias narradas às crianças, especialmente os contos

de fada, estejam vazadas numa variedade linguística distanciada do vernáculo dos

alunos, isso não constituiu obstáculo para sua compreensão, já que as professoras

haviam compreendido que não caberiam restrições nesse sentido.

Conclusão

Ambas as experiências parecem confirmar a necessidade de que a educação

linguística na escola se faça não apenas sem fronteiras e espaços demarcados entre áreas

do conhecimento, mas também sem espaços institucionais exclusivos. O falante se

legitima de qualquer forma. Signorini tem razão quando afirma em relação a esse tipo

de trabalho proposto pela LA (2011, p. 182):

Na verdade, o campo aplicado, enquanto espaço transdisciplinar de reflexão sobre a língua em uso, ou seja, sobre a língua enquanto performance, ação, evento singular num dado espaço e tempo [...] vai se produzir no campo institucional de qualquer disciplina dos estudos da linguagem a cada vez que se construírem domínio de articulação entre práticas de focalização do linguístico, do discursivo, do social, do cultural, do ideológico, do psicoafetivo, do cognitivo, bem como do político e do histórico segundo epistemologias centradas em questões sobre como funciona e opera a língua em dada situação para os falantes, entre os falantes e pelos falantes enquanto seres em relação e movimento.

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Que a tarefa escolar de promover a educação linguística dos alunos se aproxime

dessas práticas que, sem fragmentarem o saber, o integrem a ponto de mais

enriquecerem as experiências dos alunos nas suas relações com a linguagem, legítimos

falantes que são de sua língua materna.

A continuação da pesquisa pretende aprofundar a investigação, na busca da

confirmação da viabilidade do trabalho com a pedagogia da variação linguística, num

enfoque interdisciplinar.

Referências

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XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002040